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 38º Encontro Anual da Anpocs SPG11    Múltiplos discursos e práticas sobre drogas: medicina, direito e consumidores sob a perspectiva das Ciências Sociais Coordenadores: Frederico Policarpo (UFF); Beatriz Caiuby Labate (UNICAMP) Felicidade artificial: o consumo de psicofármacos e a patologização do sofrimento na contemporaneidade Gleiciane Silva Vieira de Souza

GleicianeSouza Felicidade

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O excesso da medicalização.

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  • 38 Encontro Anual da Anpocs

    SPG11 Mltiplos discursos e prticas sobre drogas: medicina, direito e consumidores sob a perspectiva das Cincias Sociais

    Coordenadores: Frederico Policarpo (UFF); Beatriz Caiuby Labate (UNICAMP)

    Felicidade artificial: o consumo de psicofrmacos e a patologizao do

    sofrimento na contemporaneidade

    Gleiciane Silva Vieira de Souza

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    Felicidade artificial: o consumo de psicofrmacos e a patologizao do

    sofrimento na contemporaneidade1

    Gleiciane Silva Vieira de Souza

    O fenmeno do consumo de psicofrmacos tem se tornado um relevante problema

    de pesquisa nas Cincias Sociais. A procura por uma soluo qumica para os problemas

    da vida tem sido imperativa na sociedade contempornea. Tal ao amplamente

    legitimada por um conjunto de saberes que, atravs de seu discurso verdadeiro no

    sentido foucaultiano tem acrescentado ao seu domnio cada vez mais categorias do

    comportamento e das emoes humanas. Frequentemente os noticirios divulgam os

    mais recentes estudos e pesquisas sobre a incidncia crescente de patologias de ordem

    psquica como a depresso, a ansiedade, etc. De acordo com a Organizao Mundial de

    Sade 2

    (OMS), mais de 350 milhes de pessoas de todas as idades sofrem de depresso

    no mundo, at 2020 essa ser a segunda doena de maior ocorrncia (abaixo apenas de

    doenas cardacas) e logo em 2030 ocupar a primeira posio (WHO, 2008). Ainda de

    acordo com a OMS, em 2011 o Brasil foi o pas com maior ocorrncia de depresso,

    10,8% da populao apresentou o distrbio (BROMET et al. 2011).

    Nesse sentido, o crescente diagnstico de patologias psquicas como a depresso,

    corrobora com o aumento do consumo de psicofrmacos na mesma escala, em pouco

    tempo os antidepressivos sero os medicamentos mais vendidos no mundo. No Brasil os

    psicotrpicos Clonazepam, Bromazepan e Alprazolam foram as substncias controladas

    mais consumidas pela populao do perodo de 2007 a 2010, segundo a Agncia

    1 O presente ensaio fruto de algumas reflexes iniciadas em trabalho de concluso de curso de

    graduao e, no momento, esto em desenvolvimento em pesquisa de mestrado, no Programa de

    Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), atravs do

    financiamento da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES).

    Agradeo em particular aos professores Artur Perrusi e Eliane da Fonte pela disciplina de

    Sociologia da Loucura ofertada no primeiro semestre de 2012, na UFPE, bem como pelos

    trabalhos desenvolvidos e publicados pelo professor Jonatas Ferreira e pela sociloga Erliane

    Miranda, sem os quais careceria de referencial bibliogrfico.

    2 Fonte: . Acesso em: 15 out de 2013.

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    Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA) (BRASIL, 2011). Em 2010, foram vendidas

    cerca de 10 milhes de caixas de Clonazepam, o mais vendido da lista, seguidos do

    Bromazepan (4,4 milhes de unidades) e do Alprazolam (4,3 milhes de unidades). Os

    gastos dos brasileiros foram estimados em cerca de 92,4 milhes de reais, considerando

    o preo mximo ao consumidor e a menor faixa de imposto (12%) aplicvel (BRASIL,

    2011).

    Em contrapartida, esses dados nos levam a questionar at que ponto o alto ndice

    de diagnsticos e o consequente consumo de psicofrmacos correspondem, de fato,

    existncia de uma patologia. bem verdade que vivemos em um perodo de crescente

    poder da jurisprudncia mdica, poder esse que arrasta para os seus limites uma gama de

    sentimentos e comportamentos considerados normais vida humana em outras pocas.

    Tal fenmeno tem sido chamado de medicalizao, processo pelo qual problemas no

    mdicos se tornam definidos e tratados enquanto tal, segundo Peter Conrad (2007), e que

    vem sendo considerada uma das mais importantes transformaes ocorridas na segunda

    metade do sculo passado. No caso especfico do Transtorno Depressivo, relevantes

    trabalhos tm sido desenvolvidos nas Cincias Sociais, os quais trazem os grandes

    debates em torno das definies dos Manuais de Diagnsticos das Doenas Mentais

    DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) que esto

    constantemente em mudana e tm como consequncia, a possibilidade de confuso entre

    tristeza normal e depresso (HORWITZ e WAKEFIELD, 2010).

    Acreditamos que a exploso recente de casos de Transtorno Depressivo no

    decorre do nmero real de pessoas com a patologia, mas que essa exploso

    consequncia da confuso entre tristeza normal e Transtorno Depressivo decorrente dos

    manuais de diagnsticos, que acabam por classificar muitos casos de tristeza como

    depresso quando nem sempre , concordando com Horwitz e Wakefield (2010). Nesse

    sentido, argumentamos que, na sociedade contempornea, ao se transformar em

    patologia, o sofrimento tem um novo lugar, ele pode ser localizado no corpo humano e,

    enquanto esfera da vida vem passando por um processo de racionalizao em termos

    weberianos tendo seu sentido esvaziado com o processo de desencantamento do

    mundo. A civilizao ocidental transformou o progresso em sinnimo de reduo do

    sofrimento atravs do processo de eliminao ou sedao da dor e de possveis

    sintomas de doenas crnicas, levando-as a serem vistas como um mal que aflige apenas

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    aos indivduos que no foram beneficiados pelo artefato sofisticado da instituio mdica

    (ILLICH, 1975, apud TESSER, 2006). O indivduo contemporneo vive o esvaziamento

    do sentido da vida e de dimenses como a do sofrimento, ancorado no discurso da

    cincia mdica que atribuiu ao sofrimento o carter de patologia.

    Medicina e Psiquiatria: a construo da doena mental

    A humanidade sempre conviveu com sofrimentos durante todo o seu

    desenvolvimento, no entanto, a grande maioria desses sofrimentos eram considerados

    comuns e da ordem da vida. Com o desenvolvimento de alguns saberes cientficos,

    como a medicina, - particularmente a psiquiatria - a humanidade passou a assistir a um

    amplo processo de patologizao dos sofrimentos:

    A histria das categorias que tm sido criadas nas sociedades ocidentais para ordenar e dar sentido ao fenmeno do sofrimento

    mental passou pela criao da doena mental definida pela medicina e

    pela psiquiatria, por analogia com a doena fsica (ALVES, 2010, p. 26).

    Mas o que podemos entender por sade e doena? Para a OMS, sade "um estado

    de completo bem-estar fsico, mental e social e no meramente a ausncia de doena ou

    enfermidade (WHO, 2005)3. Em alguns livros, doena descrita como ausncia de

    sade e sade como ausncia de doena, o que nos mostra como difcil definir o que

    seja doena (AMARANTE, 2007).

    No entanto, acreditamos que os sentidos da doena so produzidos no meio social,

    mas medicina atribudo o papel majoritrio de produzir esses sentidos, de acordo com

    Perrusi (1995), do ponto de vista histrico, a doena o status fsico mais a significao

    social recebida. Esse saber atribui um novo significado doena, mas o que temos visto

    com o processo cada vez mais amplo de desenvolvimento da medicina uma nfase ao

    status fsico da doena e uma anulao crescente de sua significao social:

    O mdico seria formado para uma vida prtica e no para uma reflexo crtica sobre o seu saber e o seu objeto. raro um mdico se

    perguntar sobre o que doena; na verdade, ele no quer saber e sim

    3 A state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of

    disease or infirmity (WHO, 2005; traduo nossa).

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    detectar, procurar, examinar, olhar, diagnosticar etc. (PERRUSI, 1995, p.112).

    Podemos considerar, portanto, que a medicina seja um dos grupos relacionados

    gesto do controle social na moderna sociedade que constroem as normas produtoras dos

    desvios sociais as doenas e particularmente a doena mental - (PERRUSI, 1995).

    Todavia, a gesto que estabelece essas normas est para alm da medicina, um sistema

    maior determinado por leis econmicas, do qual ela dependente e extremamente

    vinculada, mas que ultrapassa a sua ideologia (BASAGLIA, 2005):

    Os mdicos, na sociedade moderna, so o grupo social especfico encarregado de atribuir o desvio doena. Tal atribuio ocorre atravs, principalmente, da construo profissional da doena (PERRUSI, 1995, p. 118).

    Nesse sentido, o significado atribudo doena pela medicina pode ser entendido

    como uma afirmao da subjetividade do prprio mdico que se utiliza de uma

    objetualidade para legitimar sua prtica profissional. Dessa maneira a medicina se

    assemelha a sociedade que relega e esconde suas contradies atravs de reas de

    compensao (BASAGLIA, 2005).

    A questo de legitimidade da prtica mdica, particularmente da psiquiatria,

    tambm vem sendo desenvolvida por Perrusi (1995; 2010). De acordo com o autor, as

    dificuldades de apreenso do objeto profissional dos psiquiatras, a doena mental, cria

    nos mesmos a necessidade de control-lo, se transformando numa questo de coeso

    social (coeso de grupo) que pe em risco a legitimidade de seu saber cientfico.

    Desde sua produo do conceito de doena mental, a psiquiatria vem

    transformando o sofrimento psquico em patologia. Ao conceituar a Loucura como

    doena mental o saber psiquitrico apropriou-se de tal objeto, legitimando, ao mesmo

    tempo, sua prtica profissional, pois, na construo profissional da doena mental, se

    inscreve o processo de identificao profissional (PERRUSI, 1995, p. 215):

    Foi no final do sc. XVIII que, na Europa, surgiu a nova categoria social para as pessoas que apresentavam comportamentos estranhos;

    incompreensveis, e que rompiam com as normas sociais os doentes mentais e, com eles, a Psiquiatria. O doente mental vem a ocupar o

    lugar do louco enquanto marca do desvio, da excluso (FOUCAULT, 1987 Apud ALVES, 2010, p. 28).

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    A apropriao dos comportamentos humanos pela medicina (pela psiquiatria, mais

    precisamente) foi se consolidando no passar dos anos, tendo por alicerce o progresso

    cientfico. Um dos acontecimentos mais importantes neste processo foi a descoberta do

    arco reflexo o conjunto de nervos percorridos por um impulso nervoso, do ponto de

    origem no receptor at o sistema central e seu retorno (DWORKIN, 2007). Essa

    descoberta d incio ao reducionismo biolgico do comportamento humano, antes

    vinculado a questes subjetivas do esprito:

    A descoberta do arco reflexo, em 1823, provou que os nervos podiam ser estimulados sem imput cerebral, o que significava que alguns

    comportamentos humanos aconteciam de forma reflexa sem que a alma os comandasse. Os clrigos acreditavam que a insanidade era uma

    prova de desarranjo da alma e um problema moral; para sua

    consternao, o arco reflexo tornou possvel desconectar o

    comportamento humano da alma, potencialmente privando a doena

    mental do seu contedo moral (DWORKIN, 2007, p. 155).

    No sculo seguinte a natureza da doena mental transformada com o pensamento

    de Freud que introduz a teoria analtica e o sistema mais amplo da psiquiatria dinmica

    unindo, assim, as neuroses s categorias de doena da psiquiatria (ALVES, 2010). A

    ampliao do conceito de doena mental no para por a, nas sociedades ocidentais

    complexas assistimos a uma crescente medicalizao de categorias do comportamento,

    de sofrimentos comuns da vida como a perda de um ente querido, desemprego,

    desenlaces afetivos entre tantos outros acontecimentos que, de alguma forma, causam dor

    e sofrimento aos indivduos, pois a medicina e a psiquiatria mais precisamente, a

    encarregada de lidar com essas dimenses:

    Em pleno sculo XXI, nas sociedades ocidentais complexas, assistimos extenso das categorias de doena mental a uma grande

    variedade de comportamentos humanos, o que Robert Castel (1976)

    denominou por psiquiatrizao das sociedades ocidentais, complemento

    da medicalizao a vida (Illich, 1975; Conrad e Schneider, 1992 Apud ALVES, 2010).

    Ento a doena mental seria o oposto de sade mental? Enquanto diz respeito ao

    estado mental dos sujeitos e das coletividades, a sade mental um campo complexo e

    plural (AMARANTE, 2007). Mas a cincia, e a sociedade baseada nela, que constri a

    imagem social da doena mental que se revelar determinante no desenvolvimento da

    doena (BASAGLIA, 2005),

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    Isto indica o poder da cincia moderna em aniquilar outras formas de conhecimento e de interveno, porque as consideram menores,

    irracionais, arcaicas, ultrapassadas, contrrias aos valores da

    modernidade e s suas exigncias (ALVES, 2010, p. 31).

    difcil separar sade mental de doena mental, de acordo com Basaglia (2005)

    no existe uma separao ntida entre elas, a objetividade da doena mental s existe a

    partir da internao e da definio cientfica da prpria doena, pois antes que o doente

    mental seja considerado como tal ele representa uma presena contraditria no seu meio

    social e familiar. O que se toma por doena mental tambm pode ser considerado como

    o resultado de sofrimento mental, normal ou continuado do qual a pessoa que sofre no

    conseguiu ultrapassar; ou a doena mental pode ser considerada como decorrncia da

    natureza do indivduo tanto da personalidade como do organismo (ALVES, 2010).

    De acordo com a OMS, uma das condies da existncia de sade mental no

    indivduo ele ser capaz de contribuir com sua comunidade, o que nos leva a pensar na

    doena de uma perspectiva socialmente construda, sendo assim, se alguns indivduos

    no contribuem com a sua comunidade de alguma forma, eles so considerados

    incapazes, logo desviantes e fora da conduta de vida aceitvel e respeitada. A OMS

    entende por sade mental:

    Um estado de bem-estar no qual o indivduo realiza suas prprias capacidades, pode fazer face ao estresse normal da vida, trabalhar de

    forma produtiva e frutfera e capaz de prestar uma contribuio para a

    sua comunidade (WHO, 2005)4.

    Tais princpios de participao e contribuio social so, sobretudo, relacionados

    capacidade dos sujeitos de serem eficientes em alguma atividade laboral, os quais esto

    atrelados aos valores modernos que preconizam o individualismo, a autonomia e a

    autodeterminao enquanto norma absoluta da conduta de vida, constituindo, dessa

    forma, uma anttese da doena mental (ALVES, 2010). No seio de uma sociedade

    capitalista-produtivista em que os valores imperativos so a sade, a produo e a

    juventude, a doena, a velhice e os sofrimentos psquicos de maneira geral correspondem

    incapacidade, acidentes no percurso de uma vida que no quer preocupar-se com tais

    condies (BASAGLIA, 2005).

    4 a state of well-being in which the individual realizes his or her own abilities, can cope with the

    normal stresses of life, can work productively and fruitfully, and is able to make a contribution to

    his or her community (WHO, 2005).

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    Portanto, tomemos a apreenso de doena mental como percurso da incapacidade,

    j que o doente mental rechaado de sua vivncia social e objetificado por um ente

    mrbido que anula sua condio de indivduo no mundo, suas redes sociais de

    relacionamento so enfraquecidas quando o estigma da doena mental se instala neles:

    Crculos sociais normalmente presentes em sociabilidades cotidianas como vizinhana, colegas de trabalho, inseres em clubes e

    associaes voluntrias so visivelmente enfraquecidos quando do adoecimento. O retraimento da vida social talvez seja a consequncia

    mais visvel e provavelmente uma das sequelas mais importantes dos que enfrentam o sofrimento psquico (FONTES, 2010, p. 3).

    A doena mental, ente mrbido, objeto natural e externo ao indivduo, foi o

    elemento sobre o qual o saber psiquitrico se debruou, deixando revelia o sujeito que a

    detm. Ela um objeto da natureza, segundo os tratados de psiquiatria, tendo seus tipos,

    semelhanas e distines analisadas e catalogadas (AMARANTE, 2007).

    Tal processo de anulao do indivduo em detrimento de um processo de cura

    proposto pela psiquiatria, no qual o sujeito que vivencia a doena ignorado, pode ser

    considerado de um ponto de vista mais amplo, do qual a cincia foi a responsvel por

    esse processo de reduo da pessoa humana a mecanismos orgnicos e biolgicos,

    deixando merc a totalidade da existncia.

    Nesse sentido, a Loucura foi capturada por um saber, o saber psiquitrico, que

    a conceituou de doena mental, dando incio a uma relao vertical, relao de poder,

    atravs da interveno mdica, do exerccio do controle e da disciplina (FOUCAULT,

    1995). Esse poder vai se refinando, a dominao exercida atravs de novos mecanismos

    de sujeitamento, passando dos asilos medicamentalizao. Logo a psiquiatria o poder

    que contm a loucura:

    Toda interveno prtica sobre o outro implica um saber que possui uma relao necessria com o poder. H um trio nefasto na psiquiatria:

    saber (poder) interveno. Por isso, as crticas psiquiatria e ao seu saber so crticas ao poder do psiquiatra. tambm uma crtica

    institucional, pois a instituio possibilita e viabiliza a interveno

    sobre o outro (PERRUSI, 2010, p. 89).

    O tabu e o estigma presente na dinmica da doena mental esto visveis na prpria

    construo dos discursos, como o discurso psiquitrico que aconselha o afastamento

    dessa realidade ameaadora (ALVES, 2010). A imagem social da doena mental

    determinante no percurso da doena foi construda pela cincia e pela sociedade que nela

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    se fundamenta a partir de um conceito de norma que a classifica e descrimina

    (BASAGLIA, 2005). Dessa maneira, a cincia que explica, codifica as causalidades e

    define a maneira como devemos interagir com a doena mental, passando da loucura

    enquanto diferena para a loucura domesticada por um saber cientfico (ALVES, 2010).

    No entanto, a premissa que determina o valor absoluto da cincia enquanto a nica

    detentora da verdade e sua neutralidade no mais considerada universal, o paradigma

    cientfico vem passando por uma importante transformao. Dessa maneira, o saber

    psiquitrico, fundamentado nas cincias da natureza, nico capaz de revelar a verdade

    sobre a loucura, tambm tem sua hegemonia colocada em questo (AMARANTE, 2007).

    Especificamente, a doena mental sempre representou um dilema no campo da

    medicina, graas a sua natureza de difcil apreenso colocava o saber psiquitrico numa

    delicada posio de legitimidade diante do saber mdico:

    A doena mental um fenmeno sui generis na medicina. Ela jamais conseguiu ser enquadrada pelo paradigma biomdico da

    medicina. Sendo o objeto profissional da psiquiatria, sua instabilidade,

    enquanto representao mdica de doena condiciona diversas

    dificuldades no campo do saber psiquitrico: falta de consenso

    etiolgico, confronto de diversos paradigmas de doena, desvalorizao

    do conhecimento psiquitrico (PERRUSI, 2010, p. 73).

    A impotncia da psiquiatria est nitidamente visvel na sua prtica de custdia que

    definiu e catalogou a doena mental considerando-a meramente uma alterao biolgica,

    de difcil identificao diante da qual a nica sada seria aceitar sua condio de

    desviante da norma social (BASAGLIA, 2005). Mas como esteve ancorada na cincia

    e enquanto prtica mdica, a psiquiatria conseguiu ser a forma explicativa absoluta da

    loucura, pois no momento em que se desenvolveu como disciplina mdica a cultura

    ocidental vivia o momento pleno da razo. O projeto de August Comte, o mais

    importante positivista, era o de construir uma sociedade planejada e administrada atravs

    da cincia (AMARANTE, 2007), tambm no campo das Cincias Sociais outras

    definies sobre a natureza da doena mental foram elaboradas, umas concordando e

    outras no com a perspectiva desenvolvida pelo saber mdico:

    Nas Cincias Sociais, a Sociologia Mdica de orientao estruturalista centrou a sua anlise na identificao dos fatores sociais que precipitam

    o surgimento da doena mental. Basicamente, aceita a concepo

    dominante (mdica) sobre a doena mental. So conhecidos os estudos

    que correlacionam o surgimento da doena mental com a classe social

    (HOLLINGSHEADE REDLICH, 1958; DOHRENWEND e CHIN-

  • 10

    SHONG, 1967, sexo (BROWN, et al.,1978), e o suporte social

    (HENDERSON, 1998), acentuando a vulnerabilidade (MEEHL, 1962),

    as circunstncias do meio e os fatores scio-culturais nas explicaes

    causais (DUNHAM, 1977) (ALVES, 2010, p. 28).

    Em oposio a esta corrente, a Sociologia Interacionista define a doena mental

    como comportamento desviante produzido pela sociedade indicando o carter de

    ferro em que a nossa sociedade se transformou, indo alm da perspectiva mdica que se

    reduz a signific-la como perturbao intrapsquica (GOFFMAN, 1982; GOMM, 1996;

    SCHEFF, 1999, WEBER, 1991 Apud ALVES, 2010, p. 28).

    Na perspectiva da antropologia a conjuntura cultural define a doena mental,

    significando que ela construda a partir da cultura. Diferente da anlise que se ocupa do

    significado da doena, na antropologia se procura interpretar a cultura, construtora das

    normas e dos significados na sociedade, bem como a ateno dada ao ponto de vista do

    nativo na perspectiva de Geertz:

    Os significados associados loucura e doena mental, experienciada ou no, so construes scio-culturais (BENEDICT, 1934 1 ed.;

    FOUCAULT, 1987; BASTIDE, 1967; DEVEREUX, 1977) em que o

    conhecimento cientfico da medicina se interpenetra com o saber leigo

    para a produo de sentido. Esses significados sociais manifestam um

    acordo que num determinado tempo e espao se estabelece numa sociedade. So, por isso mesmo, relativos o que loucura, doena mental, numa sociedade pode no o ser na outra (Apud ALVES, 2010, p. 25).

    Na perspectiva de Alves (2010), a doena mental surge no senso comum, chamado

    por ela de racionalidades leigas enquanto carter polissmico significando um defeito,

    uma falha inscrita alm do plano fsico, uma falha na identidade do sujeito, que

    diminui o doente mental e o transforma em uma pessoa estigmatizada, um excludo da

    sociedade:

    Assim, tomando como referncia o conhecimento existente sobre sade e doena, em geral, e sobre sade e doena mental, em particular,

    propomos a noo plural de racionalidades leigas sobre a doena

    mental, noo diversa da racionalidade profissional reconhecida, a

    racionalidade da cincia mdica/ psiquitrica. O que principalmente as

    distingue a no linearidade da lgica de pensamento leigo que assenta

    em conhecimentos do mundo da vida, feito de representaes culturais,

    de experincia social, e de informaes de vrios tipos em que se inclui

    a reflexividade da cincia (ALVES, 2010, p. 63).

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    Nesse sentido, o individuo carrega uma falha na sua identidade, na perspectiva de

    Goffman (1998); a noo de normal e estigmatizado so aspectos originados no meio

    social no so pessoas - atravs do contato com outros, em detrimento do

    descumprimento de normas que formam o pano de fundo do encontro:

    Desta forma, se torna possvel constatar o que Basaglia (inspirado no poeta e dramaturgo Antonin Artaud) denominou duplo da doena mental, isto , o conjunto de pr-concepes, preconceitos (estigmas, valores, juzos) relacionados doena mental (AMARANTE, 2007, p. 67).

    A identidade social do indivduo se torna evidente no relacionamento com outras

    pessoas. Quando vemos o outro pela primeira vez nossas impresses primordiais

    comeam automaticamente a enquadrar esse outro em alguma categoria, assim

    identificamos sua identidade social. Criamos expectativas quanto ao que o outro deva ser,

    portanto essa identidade uma identidade social virtual, nos termos de Goffman (1998).

    No entanto, os verdadeiros atributos que o outro possui, equivalem sua identidade

    social real.

    Nesse caso introduzido o conceito de estigma, o qual Goffman usou para se

    referir s caractersticas depreciativas, ou seja, estigma corresponde a um tipo especial

    de relao entre atributo e esteretipo (GOFFMAN, 1998, p. 7). Segundo o autor, h

    trs tipos de estigma: as abominaes do corpo, as culpas de carter individual e os

    estigmas tribais de raa, nao e religio.

    Segundo Goffman (1998), o individuo que carrega um estigma pode vivenciar

    algumas experincias no processo de aprendizagem correspondentes ao seu estigma, bem

    como ter a concepo do eu transformada. Desse modo, a carreira moral" ter uma

    sequncia semelhante de ajustamentos pessoais. O autor chama a ateno para duas fases

    do processo de socializao: a primeira corresponde apreenso pela pessoa

    estigmatizada da perspectiva dos ditos normais, levando-a a carregar os valores e ideias

    sociais mais amplos em relao sua identidade e estigma; na segunda fase a pessoa tem

    conhecimento de seu estigma e das consequncias de possu-lo (GOFFMAN, 1998).

    Dessa forma, o indivduo estigmatizado sofre uma excluso que o determina como

    perigoso e inferior tal como o negro numa sociedade racista que o explora para manter-se

    viva, determinando-o como inferior, tal processo de excluso, ento, aparece como um

    fato social (BASAGLIA, 2005). A doena mental surge como representao da violncia

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    e do perigo, o doente metal, o maluco representa uma ameaa para a sociedade,

    despertando medo e receio nos ditos normais (ALVES, 2010), ele segregado e

    reprimido em instituies e, enquanto um dos out da sociedade, proibido de manter

    relao com os in, que os encerram na clausura para impedir-lhes tal contato

    (BASAGLIA, 2005).

    O valor moral, incutido doena mental de falhas de carter e fsicas, confirmam e

    reproduzem o esteretipo estigmatizante como representao social predominantemente

    negativa sobre a doena (GOFFMAN, 1982 Apud ALVES, 2010). Tais representaes

    tem suas fontes alm da psiquiatria e se ancoram em momentos anteriores da histria

    atravs de imagens mticas atreladas aos meios rurais (ALVES, 2010). Na cidade as

    imagens mticas so substitudas por comportamentos bizarros, ligados aparncia que

    so visveis aos transeuntes se opondo despersonalizao vivida no meio urbano

    (SIMMEL, 1987 Apud ALVES, 2010), temos ento o sujeito que vive margem das

    normas sociais, o desviante:

    Uma vez que a dinmica da diferena vergonhosa considerada uma caracterstica geral da vida social, pode-se passar a encarar a relao

    entre o seu estudo e o estudo de assuntos prximos associados ao termo

    comportamento desviante uma expresso atualmente em moda que foi, de certo modo, evitada aqui at agora, apesar da convenincia do

    rtulo (GOFFMAN, 1998, p. 118).

    Percebemos, ento que a doena foi colocada entre parnteses nestas abordagens,

    correspondendo a uma atitude epistmica, produtora de conhecimento que suspendeu

    um determinado conceito e torna possvel a construo de novas abordagens do

    fenmeno, como a experincia vivida pelos sujeitos, dessa maneira, colocar a doena

    entre parnteses no equivale a negar que a doena exista e que ela corresponde a um

    processo que pode causar dor e sofrimento, mas implica em considerar a totalidade do

    sujeito que a carrega (AMARANTE, 2007), pois:

    Se a psiquiatria havia colocado o sujeito entre parnteses para ocupar-se da doena, a proposta de Basaglia foi a de colocar a doena entre parnteses para que se fosse possvel se ocupar do sujeito em sua experincia. Franco Basaglia se inspirou em Edmund Husserl,

    considerado o pai da fenomenologia e autor do conceito de reduo analgica ou de colocar o conceito entre parnteses (AMARANTE, 2007, p. 66-67).

  • 13

    Ao colocar a doena entre parnteses Basaglia prope uma ruptura com o modelo

    utilizado pelas cincias naturais, mais precisamente o modelo terico-conceitual adotado

    pelo saber psiquitrico que resultou na coisificao do sujeito, na proposta de conhecer a

    subjetividade humana, constituindo, simultaneamente, a denncia social e poltica da

    excluso, e a ruptura epistemolgica com o saber naturalstico da psiquiatria

    (AMARANTE, 2007; 2009).

    Como vimos, a cincia tem passado por um processo de mudana que implica em

    transformaes em sua rede de saberes, como o psiquitrico, e diante desses moldes

    que Amarante prope uma anlise dos conceitos psiquitricos que irromperam no

    processo de Reforma Psiquitrica, consistindo numa consequncia natural de uma

    transformao da prpria cincia:

    Os autores da psiquiatria no assumem, mas a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrtica, - como veremos mais adiante nas Reformas

    Psiquitricas obrigaram a psiquiatria a abandonar o conceito de doena mental na medida em que provaram que no contribua em

    praticamente nada para entender e lidar com os sujeitos assim

    classificados: a resposta da psiquiatria foi criar asilos psiquitricos (AMARANTE, 2007, p. 68).

    Dentre as novas definies utilizadas pela psiquiatria para doena mental se

    encontram o transtorno mental para lngua portuguesa e espanhola e a desordem

    mental para a lngua inglesa (mental disorder), no Brasil o sujeito passa de paciente a

    portador de transtorno mental como consta na legislao (AMARANTE, 2007). As

    ideias presentes em tais terminologias nos remetem imagem de um sujeito que carrega

    um fardo, no caso do portador de transtorno mental e, no caso da concepo de

    desordem mental, no entanto, o termo desordem evoca a ideia de que h uma ordem,

    que extremamente difcil de estabelecer, portanto, a grande novidade no campo da

    sade mental e ateno psicossocial no Brasil consiste na utilizao da expresso

    sujeitos em sofrimento psquico ou sofrimento mental, pois essa ideia alude a um

    sujeito que sofre, a uma experincia que ele vivencia (AMARANTE, 2007).

    A medicamentalizao do sofrimento psquico

    O processo de utilizao de medicamentos que possam responder a situao

    entendida como patolgica tem sido denominado de farmacologizao ou

    medicamentalizao pela literatura corrente. Tal processo normalmente consequncia

  • 14

    da medicalizao da vida, na qual muitas dimenses da existncia que no pertencem

    exclusiva ou predominantemente medicina so apropriadas por este saber. O termo se

    refere transformao de esferas de ordem social, poltica ou econmica em esfera

    mdica. Os problemas da vida humana so transformados em problemas de sade: a

    tristeza diante do falecimento de um familiar se torna uma possvel depresso, a tristeza

    medicalizada (AMARANTE,1995):

    Medicalization describes a process by which nonmedical problems become defined and treated as medical problems,

    usually in terms of illness and disorders. Some analysts have

    suggested that the growth of medical jurisdiction is one of the most potent transformations of the last half of the twentieth

    century in the West (CONRAD, 2007, p. 4).

    O desenvolvimento do saber psiquitrico esteve ancorado desde o seu nascimento

    at as ltimas dcadas do sculo passado na lgica asilar, foi iniciada a medicalizao da

    loucura em doena mental, no entanto, a dificuldade em diagnosticar os transtornos

    mentais colocava este saber profissional num lugar desconfortvel no campo mdico.

    Esta dificuldade levou o saber psiquitrico elaborao e criao de seus manuais de

    diagnsticos:

    A psiquiatria uma das poucas disciplinas mdicas, seno a nica, que nunca teve um consenso etiolgico e nosolgico estvel, isto , uma

    representao nica e estvel guiando a conduta dos psiquiatras, sempre

    sofrendo assim uma inadequao permanente com a representao

    biomdica da doena (PERRUSI, 2010, p. 74).

    No ano de 1948 a primeira classificao internacional de doenas mentais lanada

    como parte da j existente Classificao Internacional de Doenas 6 (CID-6). Pouco mais

    tarde, em 1952, publicada pela Associao Psiquitrica Americana (APA) o Manual

    Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais I (DSM-I ) (RODRIGUES, 2006, p.

    24). Em 1968 lanada a CID-8 e o DSM-II, nos quais h uma grande influncia das

    teorias psicanalticas, mas j no ano de 1975 lanada a CID-9 que, embora no

    implique em mudanas significativas, introduz de maneira ainda sutil termos mais

    descritivos e com menor conotao etiolgica (RODRIGUES, 2006).

    nessa dcada que ocorre outra transformao importante nos manuais

    americanos, pois o programa responsvel pelo financiamento das seguradoras que

  • 15

    ofertavam o tratamento psiquitrico no estava mais disposta a despender investimentos

    neste segmento da sade porque as terminologias psicanalticas utilizadas para o

    diagnstico, cuidado e pesquisa sobre as doenas mentais no eram claras o suficiente o

    que significava um investimento sem fim para o governo (AGUIAR, 2004 Apud

    FERREIRA e MIRANDA, 2011).

    Dessa maneira, o procedimento mais descritivo presente j no CID-9 se torna

    uma tendncia marcante para o DSM-III, publicado em 1980, que se tornou um divisor

    de guas na psiquiatria contempornea, pois, neste manual, h a substituio do termo

    neurose de ansiedade por Distrbio de Pnico e Distrbio de Ansiedade Generalizada

    (RODRIGUES, 2006). Desta maneira, ao abandonar o termo neurose, a psiquiatria tenta

    descrever a diferena entre quadros agudos e quadros generalizados de ansiedade.

    Na mesma dcada surge o Prozac nos Estados Unidos, primeiro psicofrmaco que

    tem como base a substncia Fluoxetina que intercede no processo de produo da

    serotonina do crebro contribuindo no tratamento da depresso. Esta droga ficou

    conhecida em todo o mundo, tanto entre os mdicos que a receitavam como entre os

    pacientes que passaram a consumi-la e representando mais de 30% do que o laboratrio

    Eli Lilly faturava, dando incio a psicofarmacologia cosmtica (AGUIAR, 2004, p.

    108 Apud FERREIRA e MIRANDA, 2011).

    Vale ressaltar que tais mudanas foram iniciadas no momento da descoberta da

    substncia Clorpromazina, em 1950, na Europa, capaz de controlar as angstias

    psicticas (RODRIGUES, 2006). A responsabilidade por essas mudanas foi atribuda

    ao psiquiatra Donald Klein que, por no obter sucesso ao utilizar a substncia

    Clorpromazina no tratamento dos pacientes diagnosticados com ansiedade grave,

    dentre os quais estava ausente o sintoma psictico comea a pesquisar outra substncia

    muito prxima molecularmente desta, a Imipramina (Ibid).

    Com a utilizao da substncia Imipramina, Klein obteve sucesso no tratamento de

    pacientes que apresentavam quadros agudos de ansiedade, propondo por essa razo a

    distino entre ansiedade crnica e ataques de pnico, sendo posteriormente adicionada

    ao DSM-III, que se tornou um marco na psiquiatria contempornea por ter sido a

    primeira vez que uma nosologia era diferenciada tendo por alicerce a resposta clnica a

    uma determinada substncia farmacolgica (Ibid).

  • 16

    Entre os resultados promovidos pela criao do DSM-III esto questionrios de

    diagnstico elaborados para serem aplicados em estudos epidemiolgicos e

    principalmente o fato de que esses questionrios agora poderiam ser aplicados por no-

    psiquiatras, ou leigos, o que se consolidou como outro importante momento do

    processo de patologizao do sofrimento (FERREIRA e MIRANDA, 2011, p. 231).

    Aps esta fase que ficou conhecida como a revoluo farmacolgica, publicada

    a CID-10 em 1992 e o DSM-IV em 1994, os quais so utilizados em pesquisas e

    diagnsticos na atualidade. Desde ento, assistimos a um crescente processo de

    psiquiatrizao social, no qual o discurso medicamentalizante se torna um imperativo:

    No , sem uma sombra de tristeza, que temos observado os caminhos ou quem sabe, descaminhos que a psiquiatria tem tomado. Fascinado pelo pensamento tcnico, inebriado pela oferta feita pela

    cincia de inclu-lo em seu rol, o saber psiquitrico, progressivamente

    abre mo de refletir sobre a singularidade humana, j no deseja ser

    visto ao lado da filosofia e mesmo da psicologia. Em sua oferta de incluso, a cincia, entretanto, cobra pesado preo: todos os fenmenos,

    todas as expresses da subjetividade precisam ser passveis de

    mensurao, necessitam ser quantificadas (RODRIGUES, 2006, p. 15-16).

    Essa ruptura definitiva com as descries oriundas da psicanlise levou a

    psiquiatria a desenvolver classificaes de transtornos mentais que pudessem ser usadas

    em ambientes clnicos, educacionais e de pesquisa, tendo como consequncia para o

    meio mdico-cientfico a recuperao dos investimentos na sade mental, pois no mesmo

    ano em que o DSM-IV foi publicado, o National Institute of Menthal Health (NIMH)

    dispensou US$ 600 milhes para pesquisas neste segmento (AGUIAR, 2004, Apud

    FERRAIRA e MIRANDA, 2011, p. 231).

    Os psiquiatras passaram dividir uma parte de seu objeto profissional com

    mdicos de outras especialidades, j que a possibilidade de aplicao de questionrios

    por leigos e a preocupao da psiquiatria passou a ser o sofrimento e no mais

    especificamente a doena mental. Ao mesmo tempo em que o saber psiquitrico amplia

    seu campo de atuao, tambm perde a hegemonia da prescrio de determinadas drogas

    para mdicos no-psiquiatras (FERRAIRA e MIRANDA, 2011). Esse processo de

    ampliao da prescrio de psicofrmacos para outras especialidades mdicas foi muito

    bem recebido pela indstria de psicofrmacos, como pode ser percebido com a grande

    incidncia de depresso nos Estados Unidos:

  • 17

    Argumentamos que, na verdade, a suposta exploso recente de casos de transtorno depressivo no deriva primordialmente de um aumento

    real no nmero de pessoas com a doena. Ao contrrio, , em grande

    medida, consequncia da confuso entre essas duas categorias

    conceitualmente distintas tristeza normal e transtorno depressivo e, portanto, da classificao de muitos casos de tristeza normal como

    transtornos mentais. A atual epidemia, embora seja resultado de muitos fatores sociais, tornou-se possvel por uma modificao na

    definio psiquitrica de transtorno depressivo, a qual frequentemente

    permite a classificao de tristeza como doena, mesmo quando no (HORWITZ e WAKEFIELD, 2010, p. 18-19).

    Diante dessas transformaes a psiquiatria, influenciada pela psiquiatria americana

    e suas ferramentas de diagnsticos, ancoradas em substncias psicotrpicas, devem ser

    bem observadas para que no a subestimemos, pois sua influncia atingiu a prpria

    Organizao Mundial de Sade. No ano de 2009, a OMS5 recomenda a aplicao de

    algumas questes dos manuais americanos para pacientes que podem estar em risco de

    depresso. Nesse sentido, deve ser perguntado ao paciente se durante o perodo de quatro

    semanas ele esteve incomodado por se sentir deprimido ou intil e se tem estado

    preocupado por ter pouco interesse ou prazer em fazer coisas (FERREIRA, 2012, p. 5-6

    traduo nossa). Portanto, concordamos que houve um considervel aumento de

    diagnsticos6 baseado numa nova definio do que vem a ser o transtorno depressivo

    que notadamente falha e contribuiu para ampliar o domnio da referida patologia

    (HORWITZ e WAKEFIELD, 2010).

    A psiquiatria, atravs da indstria do psicofrmaco, expandiu seu campo de

    atuao, ao medicamentalizar o sofrimento. Qualquer tristeza, incapacidade de lidar com

    a vida e suas dimenses como um todo so patologizadas. Essa aparente negao do

    5The following two questions may be used in patients who might be at risck for depression: (1)

    During the past 4 weeks have you often been bothered by feeling down, depressed or hopeless? (2) During the past 4 weeks have you often been bothered by having little interest or pleasure in doing things? (FERREIRA, 2012, p. 5-6).

    6 Concordamos que tem ocorrido um processo de patologizao do sofrimento, ou seja, a

    medicalizao de sofrimentos subjetivos e de uma variedade de categorias do comportamento

    humano, no entanto, importante ressaltar que tal pressuposto extrapola os domnios de nossa

    anlise. Mesmo assim, acreditamos ser importante problematizar sobre categorizaes

    biologizantes como construes sociais, j que esta discusso fundante da Sociologia enquanto

    domnio cientfico.

  • 18

    sofrimento , portanto, um fenmeno reforado pelo consumo de psicofrmacos. O

    sentido do sofrimento esvaziado na cultura da medicalizao,

    Esta mudana, em uma medida significativa, estava implcita no momento em que o psicofrmaco passou a constituir parte da

    teraputica de pacientes tradicionalmente tratados por meio da

    psicanlise, ou seja, pacientes em estado de sofrimento psquico, mas

    em quem no se podia identificar uma patologia psiquitrica (FERREIRA e MIRANDA, 2011, p. 233).

    No entanto, o exacerbado consumo de psicofrmacos nos parece estar relacionado

    necessidade ou vontade humana de suprimir a dor, o sofrimento, j que a soluo

    qumica promete um alvio rpido e imediato dos problemas, pois lidar com a prpria

    vida e sua dimenses mais difceis, que poderiam levar o indivduo ao aprendizado, no

    corresponde mais aos valores disponveis, sofrer no leva nada (MIRANDA, 2009).

    O artifcio qumico se tornou um fim em si mesmo ele no mais um meio que

    impulsiona o indivduo reflexo, a pensar na prpria existncia, e mesmo quando este

    processo ocorre, ele apenas se passa de maneira superficial, no entrando na

    profundidade das situaes que causam os sofrimentos (Ibid). Nesse sentido, a

    oportunidade de se encarar a prpria existncia e de se estabelecer um maior elo consigo

    mesmo descartada, pois atravs do sofrimento e da dor o indivduo conseguiria retornar

    a si:

    Assim, a dor pode ser chance de envolvimento mais ntimo do doente consigo mesmo, seu meio, sua vida. Tal envolvimento pode ser e amide teraputico; dele pode a pessoa sair mais forte, mais autnoma, mais responsvel por si mesma e perante a vida e o

    sofrimento dos outros. Mas para uma melhor compreenso do problema

    da dor e do adoecimento, necessrio incluir nessa discusso o

    contexto sociocultural em que ela ocorre (TESSER, 2006, p. 64).

    Um importante momento do processo de luta travada contra a dimenso da dor e

    do sofrimento foi, segundo Ivan Illich, quando Descartes separa o corpo da alma e

    constri uma amostra com base na geometria e mecnica que pode ser consertada pela

    engenharia. Esse processo culminou na emancipao da dor do campo metafsico, no

    final do sculo XIX, e a partir da, a medicina ocidental se encaminhou para a analgesia

    que se insere dentro de uma reavaliao ideolgica da dor e do sofrimento, que

    podemos ver refletida na cultura contempornea e suas instituies (TESSER, 2006, p.

    64). A civilizao ocidental vem transformando o progresso em sinnimo de reduo do

  • 19

    sofrimento atravs do processo de eliminao ou sedao da dor e de possveis

    sintomas de doenas crnicas, levando a prpria dor e a doena a serem vistas como um

    mal que aflige apenas aos indivduosque no foram beneficiados pelo artefato sofisticado

    da instituio mdica (ILLICH, 1975, apud TESSER, 2006, p. 64).

    Sofrimento e racionalizao

    O sofrimento foi deslocado para o corpo humano e reduzido a mecanismos

    neuroqumicos e biolgicos das cincias naturais, tendo o seu significado esvaziado na

    sociedade contempornea. Mas nem sempre foi assim. O sofrimento um fenmeno

    presente em toda conhecida histria da humanidade, constituindo uma dimenso da vida.

    No mundo grego ele era representado atravs da tragdia, definida na Potica de

    Aristteles:

    Tragdia a imitao de uma ao importante e completa, de certa extenso; num estilo tornado agradvel pelo emprego separado de cada

    uma de suas formas, segundo as partes: ao apresentada no com a

    ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixo e

    o terror, tem por efeito obter a purgao dessas emoes (LESKY, 2010, p. 28).

    Para Aristteles a finalidade da poesia trgica a catarse, ou seja, um alvio

    combinado ao prazer, no estando ligada aqui a nenhum efeito moral. De maneira geral,

    nas peas tratadas pela tragdia esto presentes acontecimentos repletos de sofrimento e

    so esses acontecimentos que Aristteles reconheceu como especfico: a liberao de

    determinados afetos como principal caracterstica da tragdia. No entanto, para alguns

    crticos Aristteles permanece na pura descrio e explicao do trgico sem o aliviar

    (LESKY, 2010).

    Segundo Goethe, todo o trgico baseado numa contradio irreconcilivel, ele o

    situa no mundo das antinomias. De acordo com o poeta a verdadeira obra de arte

    incompatvel com a tendncia pedaggica, no entanto, o prprio Goethe elucida a

    questo do carter educativo da arte quando afirma que uma boa obra de arte poder e

    certamente ter consequncias morais, salvaguardo que estes objetivos no devem ser

    exigidos do artista, pois estragaria seu ofcio (Ibid).

    Dessa maneira, percebemos que o instrumento regulador da vida coletiva na Grcia

    era representado pela tragdia, na qual o mito entrava em cena exibindo suas

  • 20

    ambiguidades e contradies. A tragdia, por assim dizer, pode ser considerada a verdade

    da filosofia ocidental, pois nela algo esquecido retorna, algo que por ser perturbador

    esquecemos, ela representa o aprendizado pela dor, pelo sofrimento (FERREIRA e

    MIRANDA, 2011).

    O sofrimento era um meio atravs do qual o aprendizado poderia ocorrer, mesmo

    tendo carter externo ao indivduo j que o elemento da subjetividade ainda estava em

    seu germe no mundo grego. A verdade trgica pretendia que os indivduos controlassem

    suas paixes particulares, visto que, como mostrava o heri trgico, suas aes poderiam

    gerar violncia e tenso, atingindo a si e aos outros. Portanto, na Grcia, o sofrimento era

    dimenso constituinte da existncia, mesmo que o sofrimento do heri trgico fosse

    ausente de sentido e que a busca de um significado transcendente para a vida no

    consistisse numa preocupao entre os gregos.

    Em seguida, na passagem para o mundo cristo h o advento da interioridade e a

    busca de um sentido transcendente para a existncia: a redeno final da humanidade,

    atravs de Cristo, que confere sentido histria humana, com todas as suas vicissitudes e

    aparentes obscuridades (KUMAR, 2006, p. 108), deste modo, a experincia do

    sofrimento deslocada da exterioridade para a interioridade, pois,

    La aparicin de esta interioridad es completamente revolucionaria para el mundo. , dice Cristo em el sermn de la montaa. Esta

    sentencia de suprema sencillez y elasticidad va contra todo lo exterior

    que puede cargarse al espritu humano. O corazn puro es el terreno en

    donde Dios se hace presente al hombre (HEGEL, 2008, p. 557 grifo do autor).

    Dessa maneira, o sofrimento se torna ntimo do indivduo, recebendo um novo

    significado. No cristianismo h uma glorificao atravs do sofrimento, ele se configura

    como uma provao permitida pelo Senhor. Na cultura ocidental, tanto no mundo

    grego como no mundo cristo, o sofrimento uma dimenso constituinte da vida, no

    entanto, com a Reforma Protestante que insere o ethos racional, a conduta de vida

    racionalizada, donde tem gnese o capitalismo, o sentido da vida se esvazia e a atividade

    do indivduo torna-se o seu prprio fim. No h mais promessas de paraso, nem um

    sentido que o transcenda atravs do sofrimento,

  • 21

    De fato, o summum bonum desta tica, a obteno de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento de todo gozo

    espontneo da vida , acima de tudo, completamente destituda de

    qualquer carter eudemonista ou mesmo hedonista, pois pensado to

    puramente como uma finalidade em si, que chega a parecer algo de

    superior felicidade ou utilidade do indivduo, de qualquer forma algo de totalmente transcendental e simplesmente irracional (WEBER, 1967, p. 33).

    O indivduo contemporneo vive o esvaziamento do sentido da vida e de

    dimenses como a do sofrimento, ancorado no discurso da cincia que vem atribuindo ao

    sofrimento o carter de patologia. A oferta da cincia de suprimir esta dimenso da vida,

    promovendo o controle das emoes e dos humores atravs dos psicofrmacos, ou seja,

    da soluo qumica, representa uma nova forma de lidar com o sofrimento, dimenso

    negativa da existncia.

    Diferente da ausncia de um sentido da existncia no mundo grego, na

    sociedade contempornea h um esvaziamento do sentido iniciado na Reforma. O grego

    no conhecia sua interioridade, tampouco o mundo tinha uma finalidade transcendente

    para ele, no entanto, o sofrimento estava presente na constituio da vida, no s na dos

    indivduos como na dos deuses.

    Para Max Weber, a modernidade tem como caracterstica principal um processo

    crescente de racionalizao e desencantamento do mundo, temas utilizados pelo autor na

    tentativa de entender, compreender, interpretar a realidade social e suas

    transformaes, de maneira mais ampla, compreender e interpretar a ao social o

    objetivo da sociologia, ao essa que dotada de significado subjetivo. Nesse sentido,

    acreditamos que tais teorias racionalizao e desencantamento do mundo - podem ser

    utilizadas como uma chave interpretativa para tentar compreender a realidade social

    contempornea no que se refere ao fenmeno da medicamentalizao do sofrimento.

    No entanto, h divergncias entre os estudiosos de Weber quanto percepo do

    processo de racionalizao das esferas sociais como linear e teleolgico, como um

    processo em crescimento. Nesta perspectiva, Weber visto como um pessimista que

    acredita numa completa burocratizao das relaes sociais, concebendo a modernidade

    como uma jaula de ferro. J, de acordo com os neo-evolucionistas, tal processo

    considerado um processo histrico de seleo, no qual a sociedade ocidental

    representava um modelo de sociedade entre vrias outros modelos histricos, nesse

  • 22

    sentido, o processo de racionalizao teria ocorrido com avanos e recuos, sendo no-

    linear e no-crescente. Para essa corrente de estudiosos o pessimismo existente no

    pensamento de Weber sobre a modernidade e a consequente racionalizao equivale a

    alertas contra o carter de ferro da nova era (SANTIAGO, 1991).

    O emprego do tema da racionalizao por Weber possibilitou o desenvolvimento

    de uma anlise original sobre a cultura ocidental e sua particularidade que a diferencia

    das demais culturas. Essa particularidade consistia numa racionalidade especfica que

    separava, para o autor, o Ocidente das demais civilizaes. A principal caracterstica do

    racionalismo ocidental e sua manifestao mais contundente o capitalismo moderno,

    um processo inevitvel da racionalizao da vida, a imposio do pensar racional, o

    desenvolvimento da tcnica e do clculo em todas as esferas da vida: a religio, a cincia,

    o direito etc., como conhecemos hoje:

    O tema bsico de sua pesquisa cientfica acaba sendo a tendncia secularidade. Weber, contudo, sumariza o especial carter problemtico

    de nossa realidade contempornea sob o ttulo de racionalidade. Mas, Weber tenta tornar inteligvel esse processo geral de racionalizao de

    toda a nossa vida porque a racionalidade que dele aflora algo

    especificamente irracional e ininteligvel (FORACCHI e MARTINS, 1983, p. 151).

    A racionalidade da cultura ocidental est presente e enraizada nas esferas sociais,

    nas instituies, em todos os fenmenos dessas sociedades, constituindo um importante

    problema de pesquisa. Nessa racionalidade especfica, as aes sociais dos sujeitos se

    referem predominantemente a fins, as quais adotam o clculo sistemtico e preciso,

    sendo possvel controlar e prever os resultados almejados, esta racionalidade uma

    racionalidade formal. No entanto, foi a adoo, por determinados grupos, de outra

    racionalidade, a racionalidade substantiva com relao a valores - que culminou na

    construo da racionalidade formal como valor fundamental na modernidade ocidental,

    segundo a teoria weberiana (SANTIAGO,1991).

    No desenvolvimento da racionalizao ocidental a racionalidade formal se tornou

    a nica racionalidade considerada racional, adquirindo o atributo de verdade, de um

    ethos valorativo que passou a subjugar as demais racionalidades como irracionais. Esse

    processo foi chamado por Weber de dominao racional legal, na qual tal dominao

    seria a responsvel pela existncia de uma realidade formal no Ocidente moderno,

    espalhando a por todas as esferas sociais (SANTIAGO, 1991).

  • 23

    O significado mais importante da racionalizao ocidental seria, dessa forma, o de

    desencantamento do mundo, representando uma quebra com os mistrios, com as

    explicaes mticas e religiosas, a derrocada de foras incalculveis, pois todas as coisas

    j poderiam ser capturadas e dominadas pelo clculo:

    As foras mgicas e religiosas foram banidas do irracional. O mundo e o que nele acontece , agora, explicado pela fora propulsora desse

    processo de racionalizao, a cincia, numa relao de causa e efeito.

    Disso resulta que, por um lado, o processo de racionalizao terminologia, alis, no usada por Weber libertou o individuo das amarras da superstio, fazendo-o ver o mundo de forma

    completamente dominvel, por outro lado, deixou em aberto o

    significado ltimo da vida. Esse sentido coerente da via pertence ao passado, ao mundo encantado e religioso (SANTIAGO, 1991, p. 37).

    O termo desencantamento do mundo tem sido interpretado erroneamente por

    desencanto, se tornando psicologizado ao ser reduzido a um estado mental de

    desiluso pessoal com o mundo (moderno) ou com os rumos da sociedade (nacional), o

    que acaba por no gerar um sentido cognitivo ou terico do termo (PIERUCCI, 2005, p.

    34).

    Segundo Pierucci (2005), h dois significados simultneos para o sintagma

    desencantamento do mundo, o desencantamento pela religio e o desencantamento pela

    cincia, os quais foram trabalhados por Weber ao mesmo tempo e o tempo todo, desde

    sua fundao - pouco antes de 1913 - at os meses finais de sua vida, em junho de 1920.

    Nesse sentido, Pierucci critica a utilizao do termo como sendo basicamente perda de

    sentido, atestando que desencantamento para Weber significa a quebra da magia, o xito

    da racionalizao religiosa que desmagificada.

    O processo de moralizao da religio desencantou - desmagificou - o mundo e

    impulsionou os seus adeptos atividade tico-asctica no trabalho profissional cotidiano.

    Dessa maneira, ele estabeleceu uma correlao entre a magia e o tradicionalismo,

    considerando a remoo da magia como remoo de obstculos para o desenvolvimento

    do moderno capitalismo, ou seja, a magia era considerada uma barreira para o

    estabelecimento da racionalizao tica da conduta de vida eletivamente afim

    racionalidade econmica do capitalismo moderno (PIERUCCI, 2005).

    O racionalismo enquanto domnio de mundo no existiria sem que o judasmo e

    posteriormente o cristianismo tivesse iniciado o processo de desmagificao que marca a

  • 24

    cultura ocidental e a diferencia das demais civilizaes, pois no mundo oriental os bices

    da magia no foram expurgados pela prtica religiosa racionalizada de seus intelectuais,

    sendo essa a grande diferena entre a racionalizao do Ocidente e a do oriente, bem

    como de seus respectivos racionalismos (PIERUCCI, 2005).

    Questes sobre o significado do mundo e da vida - o problema da teodicia -

    foram completamente eliminados do mundo dando lugar a uma completa racionalizao

    do mundo, eliminao da magia como meio de salvao. A eliminao da magia do

    mundo desencadeou a prtica do ascetismo intramundado, fazendo com que a moral

    asctica penetrasse na vida profissional. Segundo Weber, a adoo da conduta asctica

    proporcionou o planejamento racional da vida dos sujeitos segundo a vontade de Deus,

    tal conduta era ento requerida por todo aquele que tivesse a salvao como certa. A

    racionalizao dessa conduta dentro do mundo foi uma consequncia do conceito de

    vocao empregado pelo protestantismo asctico (WEBER, 1967).

    A religio foi deslocada para o mundo do irracional a partir da crescente adoo

    do tipo intencional de racionalizao, resultando numa racionalizao total da concepo

    do mundo e do modo de vida terica e praticamente. Graas a combinao da seita

    asctica ativa pelos virtuosos religiosos foi possvel a fuga da contemplao do mundo

    para um trabalho neste mundo (WEBER, 2002).

    A adoo da conduta de vida asctica provocou o processo de desencantamento

    do mundo e, dessa maneira, desencadeou o moderno conhecimento cientfico de

    caracterstica experimentalista-instrumental que reduziu o mundo natural a um

    mecanismo causal atravs do clculo matemtico, destituindo-o do sentido metafsico

    outrora empregado. No h mais sentidos disponveis sobre o decurso do mundo, pois a

    investigao cientfica no consegue proporcion-los, dessa forma, ns que temos de

    cri-los. Pois, a cincia no produz vises do mundo, esbarrando em seus prprios

    limites. A religio monotesta ocidental desmagificou o mundo dando-lhe um sentido

    metafsico unificado, mas em seguida a cincia retira a metafsica religiosa e nos entrega

    um mundo totalmente naturalizado, reduzido a mecanismos causais analisveis e

    explicveis.

    Nesse sentido, as foras misteriosas incalculveis foram desalojadas para dar

    lugar dominao de todas as coisas pelo clculo, o mundo torna-se desencantado pela

    eliminao dos meios mgicos dando lugar a uma profunda intelectualizao do mundo:

  • 25

    Ora, esse processo de desencantamento, que continuou a existir na cultura ocidental por milnios e, em geral, esse progresso, a que a cincia pertence como um elo e uma fora propulsora, tero qualquer

    significado que v alm do exclusivamente prtico e tcnico? Esta

    questo foi levantada, com base em princpios, nas obras de Leon

    Tolsti, que a formulou de modo peculiar. Todas as suas reflexes

    giraram em torno do problema de ser ou no a morte um fenmeno

    dotado de sentido. E sua resposta foi: para o indivduo civilizado, a

    morte no tem significado. E no o tem porque a vida individual do

    indivduo civilizado, colocada dentro de um progresso infinito, segundo seu prprio sentido imanente, jamais deveria chegar ao fim;

    pois h sempre um passo frente do lugar onde estamos, na marcha do

    progresso. E nenhum indivduo que morre alcana o cume que est no

    infinito (WEBER, 2002, p. 97).

    Para o indivduo civilizado a vida e a morte no tm sentido algum, ele

    impregnado pelas explicaes das cincias Naturais da Astronomia, da Biologia, da

    Qumica que acabam por levar ao desaparecimento da prpria crena de que h algum

    significado do universo. Segundo Tolsti no h sentido na cincia porque ela consegue

    responder o que devemos fazer e como devemos viver (WEBER, 2002). A cincia visa o

    domnio tcnico do mundo atravs da tecnologia provocando uma verdadeira averso

    racionalidade substantiva, eliminando a questo do sentido, pois incapaz de

    proporcionar a definio de algum valor. A cincia e a falta de sentido caminham lado a

    lado na moderna sociedade, os mistrios da vida foram eliminados pelo clculo, fazendo

    com que o saber cientfico desencantasse o mundo:

    Vejamos a Medicina moderna, uma tecnologia prtica que est cientificamente muito desenvolvida. A pressuposio geral da Medicina apresentada trivialmente na afirmao de que a Cincia

    Mdica tem a tarefa de manter a vida como tal e diminuir o sofrimento

    na medida mxima de suas possibilidades. No obstante, isso

    problemtico. Com esses meios, o mdico preserva a vida dos que esto

    mortalmente enfermos, mesmo que o paciente implore a sua libertao

    da vida, mesmo que seus parentes, para quem a vida do paciente

    indigna e para quem o custo de manter essa vida indigna se torna

    insuportvel, lhe assegurem a redeno do sofrimento (WEBER, 2002, p. 100).

    Antes de ser apropriada e instrumentalizada pela Cincia Mdica, a ideia de cura,

    de redeno do sofrimento e da morte era pertencente ao campo mtico-religioso. O

    sofrimento que acometia o indivduo era causado por demnios e pela ira de um deus

    insultado. Nesse sentido, o sofrimento foi tratado como um sinal de desagrado aos deuses

  • 26

    gerando, em seguida, a ideia de culpa e punio pelas faltas cometidas, ou seja, o

    sofrimento seria uma expiao pelos maus atos cometidos.

    Nesse contexto surge a ideia religiosa de um salvador, pois, quase sempre

    alguma forma de teodicia do sofrimento originou-se da esperana de salvao. O mito

    do redentor desencadeou, de certa forma, a concepo racional do mundo, fornecendo um

    valor positivo ao sofrimento,

    Pode-se explicar o sofrimento e injustia em referncia ao pecado individual, cometido numa vida anterior (a migrao das almas), ao

    pecado dos ancestrais que recai at sobre a terceira e quarta geraes,

    ou o mais comum pela maldade das criaturas per se. Como promessas de recompensa, temos as esperanas de uma vida melhor no

    futuro, neste mundo (transmigrao das almas) ou as esperanas para os

    sucessores (reino messinico), ou de uma vida melhor no outro mundo

    (paraso) (WEBER, 2002, p. 194).

    Com o processo de desencantamento do mundo que elimina a magia e provoca o

    esvaziamento do sentido do mundo e da vida pela adoo de uma racionalidade formal

    que desloca a religio para o campo do irracional, iniciada a racionalizao da

    dimenso do sofrimento humano. Esta dimenso eliminada do campo do mito pela

    religio racional e posteriormente capturada pela cincia que tem como fundamento

    nico a eliminao das explicaes de sentido, reduzindo o fenmeno do sofrimento ao

    clculo cientfico, um reducionismo natural e sistemtico que pode ser previsto e

    controlado por artefatos de alta tecnologia como os psicofrmacos. O consumo de tais

    substncias na sociedade contempornea, segundo nossa tica, representa uma forma

    desencantada de lidar com o sofrimento, aqui tomado como um elemento negativo da

    existncia e, de certa forma, importante no processo do indivduo vir-a-ser si mesmo.

    No se pode negar o fato de que o ser humano sofre, os cristos criaram uma

    doutrina que levaram os indivduos negao de si, na qual a vida negada e entendida

    como um local de passagem. Os indivduos no conseguem transformar o sofrimento em

    sinais de uma vida ascendente, no reduzida pelo conjunto de saberes-poderes que

    esvaziam todo o seu sentido. Ao invs de adotarem o amor-fati, o amor ao prprio

    destino - que no significa de maneira alguma uma aceitao passiva do sofrimento

    os indivduos reduzem essa dimenso da vida a causalidade cientfica que elimina a

    possibilidade de uma experincia completa, de uma existncia na qual o sofrimento teria

    um papel impulsionador do vir-a-ser:

  • 27

    A compreenso do sentido do sofrimento na sua relao com o conceito de amor-fati passa, impreterivelmente, pelo sentido da

    tragdia, oriundo da relao estabelecida entre o apolneo e o

    dionisaco. O apolneo e o dionisaco caminham lado a lado, apesar da

    discrdia aberta entre ambos. So dois modos com os quais o ser

    humano precisa caminhar (CALADO, 2012, p. 90-91).

    Dessa maneira o sentido do trgico compreende o valor tanto dos prazeres quanto

    do sofrimento, pois na tragdia a vida deve ser amada em toda sua extenso nos

    momentos de dor e sofrimento, ela feita de desiluses, desprazeres, a dor, o sofrimento,

    est na raiz de todas as coisas, nesse sentido, a grande hipocrisia do pensamento

    moderno achar que a dor pode ser eliminada (CALADO, 2012). O processo de

    adoecimento, o sofrimento de maneira geral, pode levar a pessoa ao encontro de si

    mesma, fazendo com que ela se entenda finita e possa, assim, compreender a condio

    efmera da existncia:

    No se trata aqui de cultivar um amor ao sofrimento, como se ele fosse um bem, mas sim em olh-lo a partir de uma dinmica de encontro com

    o si mesmo, livre dos desvios e normalizaes do mundo exterior. J que a realidade da dor e do sofrimento inerente ao ser humano, trata-

    se de no neg-los, mas assumi-los num projeto de vida afirmativa,

    redimida pelo sentido. Negar essa condio, essa caracterstica prpria

    da finitude, alimentar uma iluso perigosa, que pode trazer em si uma

    dicotomia no interior da prpria existncia (CALADO, 2012, p. 187).

    Assim sendo, a dimenso do sofrimento representa a condio propulsora do

    existir, por promover o ir alm de si, o que nos leva a pensar na existncia como um

    eterno suprassumir no sentido da infinitude. A existncia tem como elemento

    constitutivo o negativo, ou seja, a morte, o perecer, portanto o sofrimento seria capaz de

    proporcionar o ir alm de si mesmo, levando o ser a superar-se enquanto determinao.

    Na pretenso de compreender os caminhos que levaram o sofrimento psquico

    a ser tratado como patologia, portanto, medicalizado, o seguinte trabalho no intenciona

    uma crtica total ao consumo de psicofrmacos. Nossa preocupao, em suma, no

    consiste apenas em questionar at que ponto o crescente diagnstico de transtornos

    mentais, como depresso e a ansiedade, corresponde, de fato, ao aumento do nmero de

    doentes. O que interessa aqui refletir sobre as bases sociais da expanso da jurisdio

    mdica e as consequentes implicaes sociais desse desenvolvimento (CONRAD, 2007).

  • 28

    Nesse sentido, buscou-se refletir sobre o consumo de psicofrmacos como um fim

    em si mesmo, consistindo num meio rpido, eficiente e eficaz para o alvio do

    sofrimento. Ou seja, acreditamos que o consumo de psicofrmacos enquanto uma

    forma na lida com o sofrimento - corresponde ao processo mais amplo de racionalizao

    da sociedade, na qual vrias esferas da vida foram desencantadas pela religio e pela

    cincia. A medicalizao do sofrimento um fenmeno que precisa de investigao e

    reflexo constantes nas Cincias Sociais atualmente, pois estamos diante de um profundo

    processo de mudana social que merece ser observado e tratado como chave

    hermenutica na tentativa de compreender a realidade social.

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