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8/17/2019 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante - Elementos melancólicos em Lira dos vinte anos.pdf
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
OLHOS TURVOS, MENTE ERRANTE -
ELEMENTOS MELANCÓLICOS
EM LIRA DOS VINTE ANOS , DE ÁLVARES DE AZEVEDO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras,como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Letras,
na área de Literatura Brasileira.
Aluno: Jaime Ginzburg
Orientação: Profa. Dra. Maria do Carmo Campos
1997
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G493o Ginzburg, Jaime
Olhos turvos, mente errante - elementosmelancólicos em Lira dos vinte anos , deÁlvares de Azevedo / Jaime Ginzburg. -Porto Alegre: UFRGS, Instituto de Letras,Programa de Pós-Graduação em Letras,1997.
321 p. : il.
Tese (doutorado) - Universidade Federaldo Rio Grande do Sul, 1997.
1. Literatura brasileira. 2. Literaturabrasileira - Crítica. 3. Literatura brasileira -Romantismo - Melancolia. 4. Literaturabrasileira - Poesia - Crítica. 5. Azevedo,Álvares de, 1831-1852. - Crítica. I. Título.
CDU: 869.0 (81)869.0 (81).09869.0 (81)”18/19”869.0 (81)-1.09
869.0 (81)-1.09AZEVEDOFicha catalográfica elaborada por Luzia de Lima Sant`AnnaCRB-10/728, Biblioteca Central da UFSM
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Para Bela e Jakob, meus pais, pelas horasem que não estive com eles.
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Sumário
RESUMO ................................................... ............................................................ ......................................... 7ABSTRACT .......................................................... ............................................................ ............................... 8AGRADECIMENTOS ....................................................... ........................................................... ...................... 9
NOTA INTRODUTÓRIA ................................................... ........................................................... .................... 11
1. LEITURAS DE ÁLVARES DE AZEVEDO .................................................................. .................... 16
1.1. MOMENTOS DA RECEPÇÃO ................................................................................................................... 161.2. O DUALISMO .......................................................... ........................................................... .................... 331.3. A MELANCOLIA SINCERA ...................................................................................................................... 38
2. A MELANCOLIA ................................................................................................... ............................. 47
2.1. CONCEITO DE MELANCOLIA ....................................................... ........................................................... 472.1.1. Origens ........................................................................................................................................ 472.1.2. Caminhos ...................................................... ........................................................... .................... 542.1.3. No romantismo ............................................................................................................................ 60
2.2. O ABSOLUTO POSSÍVEL......................................................................................................................... 712.2.1. Xerxes .......................................................................................................................................... 82
3. ELEMENTOS MELANCÓLICOS EM LIRA DOS VINTE ANOS .................................................. 86
3.1. OLHOS TURVOS, MENTE ERRANTE .................................................................................... .................... 863.2. A RUÍNA DO IDÍLIO ........................................................... ........................................................... ........ 101
3.2.1. O bizarro e o cômico ................................................................................................................. 1013.2.2. A embriaguez ............................................................................................................................. 1063.2.3. Ócio, dinheiro e miséria ............................................................................................................ 1173.2.4. Homem humano ...................................................... ........................................................... ........ 1293.2.5. A falta de centro ........................................................................................................................ 141
3.3. CREPÚSCULOS ....................................................... ........................................................... .................. 1463.3.1. Formas do crepúsculo ............................................................................................................... 146
3.3.2. A atitude contemplativa .................................................... ......................................................... 1593.3.3. Duas paisagens ....................................................... ........................................................... ........ 168
3.4. AMOR E RENÚNCIA .......................................................... ........................................................... ........ 1823.4.1. Figuras femininas .................................................................................................... .................. 1823.4.2. Extremos .................................................................................................................................... 200
3.5. PERDA ................................................................................................................................................ 2083.5.1. Formas da perda ....................................................................................................................... 2083.5.2. As perdas em Azevedo ............................................................................................................... 211
3.5.2.1. Anjinho ............................................................................................................................................... 2113.5.2.2. No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior .......................................................... 2203.5.2.3. Tarde de outono .................................................................................................................................. 2253.5.2.4. Virgem morta...................................................................................................................................... 235
3.6. MELANCOLIA E RELIGIÃO ................................................................................................................... 245
3.6.1. Morte e arrependimento ............................................................................................................ 2544. PERSPECTIVAS ................................................... ........................................................... .................. 264
ANEXOS ................................................................................................................................................. 273
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................... ............................................... 308
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O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essasmelancolias.
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas
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Resumo
Este trabalho consiste em uma leitura de Lira dos vinte anos , livro escrito
por Álvares de Azevedo, publicado em 1853. O propósito das reflexões é
examinar elementos como a ilusão, o amor, a morte, a religião, o humor, as
figuras femininas, a perda e a embriaguez. O enfoque escolhido consiste em
observar a presença da melancolia no livro.
O trabalho tem como ponto de partida uma revisão de estudos críticos
importantes sobre o poeta. Em sua segunda parte, apresenta elementos de
teoria da melancolia. Entre os autores consultados para fundamentação, estão
Aristóteles, Walter Benjamin, Jean-Pierre Schaller, Klibansky, Panofsky e Saxl.
A terceira parte consiste na reflexão sobre alguns poemas fundamentais
da Lira . Em Idéias íntimas , a melancolia está associada ao reconhecimento da
falta de substancialidade das ilusões e a uma problematização da relação do
sujeito com a realidade. Em textos como No túmulo de meu amigo João Batista
da Silva Pereira Júnior e Virgem morta , a melancolia se manifesta como
dificuldade de superar uma perda. Em vários textos, encontramos o interesse,
motivado pela melancolia, por experiências extremas. E em Lágrimas de
sangue , de teor religioso, o mundo é marcado pela presença da morte,
constituindo uma relação complexa entre melancolia e fé.
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Abstract
This is a study of Lira dos vinte anos , a book written by Álvares de
Azevedo, published in 1853. Its purpose is to understand elements like illusion,
love, death, religion, humour, female figures, loss and drunkenness. The
chosen approach is to observe the presence of melancholy in that book.
The paper`s first topic is a review of essential critical studies of the poet. The
second part presents theoretical points of view about melancholy. Some of the
theoreticians consulted are Aristóteles, Walter Benjamin, Jean-Pierre Schaller,
Klibansky, Panofsky and Saxl.
The third part is a reflection on some important poems from Lira . In Idéias
íntimas , melancholy is associated with the acknowledgement of weakness of
illusions and the subject`s problematic relationship with reality. In texts like No
túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior and Virgem morta ,
melancholy is associated with dificulty to overcome loss. In many cases, we can
see a melancholy-driven interest in extreme experiences. In Lágrimas de
sangue , which has a religious content, the world is marked by death`s
presence, which constitutes a complex relationship between melancholy and
faith.
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Agradecimentos
Há algumas pessoas e instituições a quem devo agradecer, pela
importância que tiveram no processo de elaboração deste estudo.
A Maria do Carmo Campos, que aceitou orientar o trabalho, acompanhou
as etapas sempre com estímulo, falando de poesia, sendo amiga, humana,
paciente e acolhedora.
A Antonio Marcos Vieira Sanseverino, amigo certo, interlocutor, responsável
por algumas idéias com que trabalhei (mas não pelos problemas), tendo
indicado leituras e aberto caminhos.
A Maria da Glória Bordini, que tem a capacidade de fazer a gente acreditar
que estudar literatura tem muito sentido, pela força, pelo material emprestado,
pela aprendizagem e pela lucidez.
A Márcia Ivana de Lima e Silva, amiga querida, que trouxe material nas
malas de viagem, foi carinhosa, e deu exemplo.
A José Antonio Pasta Jr., que deu muita força, conseguiu material e
melhorou o ânimo.
A Profa.Dra. Maria Eunice Moreira e Prof.Dr. Flávio Wolf Aguiar, pelasobservações atentas e indicações de leitura no exame de qualificação.
À Profa. Dra. Freda Indursky, Coordenadora do PPG-Letras, pela
compreensão.
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Ao meu chefe Hélio Neis, e aos colegas do Departamento de Letras
Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria, pelo incentivo.
Aos professores Alfredo Bosi, Regina Zilberman, Luís Augusto Fischer e
Maria Luíza Ritzel Remédios, pelos estímulos.
Aos amigos Vicente Saldanha, Nara Augustin Gehrke, Eunice Trevisan,
Nina Célia e Cláudio Barros, Clarinha Glock, Maria Aparecida Simões, Pedro
Brum Santos, Cláudio Pereira Elmir, Márcia Lopes Duarte, José Carlos
Volcato, Marcus Mello, Carlos Petri, Luciana Santos, Cláudia Caimi, Branca
Moellwald, Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, Almir Pedroso, Vitor Biasoli,
Cláudio Cruz, Carla Feistauer, Jeanine Cocaro, Rubem Penz, Annete Baldi e
Régis, Eni Celidônio e Sandra Barbosa, pelo apoio. Ao meu afilhado Ivan.
Ao Acervo Fontes de Literatura Brasileira, do Curso de Pós-Graduação em
Letras da PUC-RS, por ter dado acesso ao artigo raro de Joaquim Norberto de
Sousa e Silva.
Ao CNPQ, por ter concedido uma bolsa de estudos, durante o período de
créditos, em 1993, fundamental para a realização do trabalho.
Ao Canísio e à Márcia, da Secretaria do PPG, pela ajuda.
A meus pais e irmãs, que sempre estão por perto.
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Nota introdutória
Se Pentesiléia é apenas uma periferia de si mesma e o seucentro está em todos os lugares, você já desistiu de saber. Apergunta que agora começa a corroer a sua cabeça é mais
angustiante: fora de Pentesiléia existe um lado de fora?Ítalo Calvino, As cidades invisíveis
O tema deste estudo é o livro Lira dos vinte anos, publicado pela primeira
vez em 1853, da autoria de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852).
Em sua primeira edição, fez parte de um volume intitulado Poesias , que incluía
outros textos do escritor. A obra contém dois prefácios, sendo dividida em três
partes. A edição utilizada como referência é a apresentada no primeiro volume
das Obras completas do autor, organizada por Homero Pires1.
A Lira dos vinte anos é um livro reconhecido pela fortuna crítica de Álvares
de Azevedo. A produção do autor inclui outros poemas, uma peça de teatro,
Macário , um livro de prosa, Noite na taverna , correspondência, discursos e
estudos literários. De modo geral, é em sua poesia que os críticos encontram
maior interesse.
O autor é situado pela historiografia literária como um dos mais relevantes
do romantismo brasileiro, sendo considerado exemplar na poesia lírica
intimista. De acordo com alguns críticos, por ter morrido cedo, o autor não
pôde desenvolver sua capacidade como escritor, tendo-se construído a
imagem de que era uma promessa importante para as letras brasileiras.
Inicialmente, pretendia desenvolver no doutorado uma reflexão sobre as
relações entre Machado de Assis e o romantismo; depois de iniciar as leituras
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de embasamento, o tema acabou sendo substituído, em razão do interesse por
uma delas, a de Álvares de Azevedo. Na elaboração do projeto para esta tese,
foi fixado inicialmente como corpus o conjunto da produção do escritor. No
entanto, o andamento do estudo exigiu que ele fosse restrito, sob risco de
inviabilizar a finalização em um prazo aceitável. Por isso, foi escolhido como
objeto o livro Lira dos vinte anos .
O objetivo do trabalho é refletir a respeito de poemas da Lira , examinando
elementos como o amor, as figuras femininas, o devaneio, o ócio, o dinheiro,
as imagens cômicas, a atitude contemplativa, a religiosidade, a morte e a
perda. O enfoque escolhido para abordar a obra consiste em observar seus
elementos melancólicos. O fato de ser a Lira o objeto de interesse central, e
não outra parte da produção, se deve à densidade de presença desses
elementos no livro.
Partindo de uma compreensão do modo como Álvares de Azevedo foi lido
pela fortuna crítica, e da posição que assumiu no cânone nacional, pretende-se
examinar a complexidade de seu trabalho, cujas características de composição
envolvem ambigüidades temáticas e variações formais. Embora esteja em
sintonia com o ideário romântico, em seus textos encontramos abordagens
temáticas que remetem a trabalhos de escritores de outros períodos.
A escolha do enfoque se deve, em parte, ao interesse por Walter Benjamin,
filósofo em cuja obra o conceito de melancolia é importante. Na dissertação de
mestrado A desordem e o limite - a propósito da violência em Grande sertão:
veredas , concluída em 1993, foi importante utilizar a Origem do drama barroco
1 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. 2 v.
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alemão 2, livro que apontou alguns caminhos teóricos para pensar o conceito de
melancolia - Aristóteles, Constantinus Africanus, Dürer. Além disso, a leitura do
artigo de Machado de Assis sobre a Lira dos vinte anos estimulou a convicção
de que se tratava de um enfoque pertinente.
É difícil definir o conceito de melancolia. Raymond Klibansky, Erwin
Panofsky e Fritz Saxl, logo no início de Saturne et la mélancolie , alertam para
as variações de atribuições de sentido à palavra3. Jackie Pigeaud considera a
noção semanticamente muito vaga4. Entre os textos teóricos sobre o assunto,
encontramos abordagens diversas, que apontam para definições nem sempre
congruentes umas com as outras.
A abordagem exige a revisão de elementos de teoria da melancolia. A
intenção não é delimitar um conceito unívoco, mas levantar um repertório de
referências. As grandes diferenças de propósitos e métodos entre Aristóteles e
Freud, por exemplo, não foram encaradas como impeditivos para a reflexão.
Foram observados pontos de contato entre formulações antigas e modernas.
Este trabalho não pretende, no entanto, fixar um conceito genérico a partir
desses aspectos comuns, por entendermos que isso diminui o alcance
analítico das formulações. A proposta, metodologicamente, consiste em
recorrer às diversas referências teóricas sobre a melancolia, antigas e / ou
modernas, científicas ou não, na medida em que elas permitam avaliar a
relevância de imagens e temas poéticos, e identificar articulações entre
2 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.3 KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. Paris: Gallimard, 1989. p. 29.4 PIGEAUD, Jackie. Présentation. In: ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX, 1. Paris: Rivages, 1988. p.65.
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elementos de composições de um poema, ou entre diferentes poemas, ou
ainda entre textos de Azevedo e de outros autores. Por isso, nos permitimos
definir de diversas maneiras as características essenciais da melancolia, em
razão das variações de conceituação nas fontes.
A tese não é inteiramente exaustiva, isto é, não pretende comentar todos
os poemas do livro. Foi feita uma seleção, no sentido de contemplar textos
representativos dos temas mais constantes do livro, que manifestassem, de
diferentes modos, a presença da melancolia. Os textos selecionados para
estudo mais detido foram Idéias íntimas, Crepúsculo nas montanhas, Quando
à noite, no leito perfumado, Malva-maçã, Anjinho, No túmulo de meu amigo
João Batista da Silva Pereira Junior, Tarde de outono, Virgem morta e
Lágrimas de sangue, sendo feitas referências a outros. Os poemas aqui
listados foram transcritos na tese.
A estrutura do trabalho é a seguinte. Na primeira parte, Leituras de Álvares
de Azevedo , é apresentada uma revisão da fortuna crítica do poeta. Esta tem
três segmentos. O primeiro, Momentos de recepção , é genérico e aponta
linhas de leitura do autor. O segundo e o terceiro se restringem a comentar os
registros de identificação de dualismo e melancolia, respectivamente, em sua
produção. A segunda parte, A melancolia , consiste na fundamentação teórica,
e expõe idéias a respeito do conceito, detendo-se em suas relações com a
ironia.
A terceira parte, Elementos melancólicos em Lira dos vinte anos , apresenta
os estudos de poemas, em que são examinados os seguintes pontos: a
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associação entre melancolia e ironia, o grotesco e o humor, as representações
do ócio e da miséria, as imagens de crepúsculos, as figuras femininas, as
formas de amor, o sentimento de perda, as imagens da morte e a relação entre
o homem e Deus. Ao final, constam em anexo os poemas da Lira selecionados
para estudo mais detido, algumas pinturas examinadas, e a bibliografia.
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1. Leituras de Álvares de Azevedo
1.1. Momentos da recepção
A produção de Álvares de Azevedo foi submetida a avaliações severas.
Antonio Candido, por exemplo, escreveu a seu respeito: “Mareiam a sua obra
poemas sem relevo nem músculo, versalhada que escorre desprovida de
necessidade artística”
5
. Leitores como Machado de Assis e Joaquim Norbertode Sousa e Silva foram rigorosos, chamando a atenção para deficiências
formais nos textos do poeta romântico6. Mesmo merecendo esses juízos, sua
poesia foi considerada, em geral, superior a seus textos em outros gêneros.
No entanto, o que prevalece, por parte da crítica, é uma avaliação positiva.
Alfredo Bosi o caracteriza como um escritor exemplar 7, assim como Antonio
Candido 8. Suas opiniões estão de acordo com a tendência geral da fortuna
crítica. Embora nesta não haja uniformidade de métodos ou propósitos, é
possível observar uma convergência de juízos. A atitude predominante, entre
os leitores de Álvares de Azevedo, tende a ser o elogio, embora as razões para
gostar dele variem bastante.
Por ter falecido jovem, o escritor foi visto como um potencial que não
chegou a se realizar plenamente. Mesmo não tendo amadurecido, e mantido
5 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. v.2. p.178.6 Conforme ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. In: ____. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994. v.3. p. 894. SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto. Notícia sobre o autor esuas obras. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. Rio de Janeiro: Garnier, s.d. 6 ed. t.1. p. 69-72.7 BOSI. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 3 ed. p.110.
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inédita a Lira dos vinte anos até sua morte, seus trabalhos o levaram ao
reconhecimento, e hoje Azevedo tem um lugar no cânone da literatura
brasileira.
Entre as preocupações da crítica, duas foram muito constantes. A
primeira, explicar sua produção através da compreensão de sua vida. Vários
estudiosos se ocuparam de reunir dados biográficos, e utilizá-los como base
para justificar as escolhas temáticas e emoções representadas em sua poesia.
A segunda, demonstrar o alcance do empenho de Azevedo em conhecer a
literatura européia, propondo a compreensão de sua obra à luz de influências
variadas, em especial de Lord Byron e Alfred de Musset.
Glorificado logo após sua morte, classificado pelos historiadores da
literatura, avaliado em jornais e trabalhos acadêmicos, submetido a muitos
tipos de recepção crítica, Azevedo continua despertando interesse para leitura.
Entre as questões que reaparecem ao longo de décadas, estão: o que
representa a “binomia” de que ele fala na Lira dos vinte anos ? Como sua
produção se relaciona com a literatura européia? Em que medida ele é
confessional, falando de si mesmo em sua produção poética? Qual a sua
contribuição original à literatura brasileira? Porém, algumas questões
permanecem exigindo maior atenção. Poucas reflexões se dedicaram a
explicar, por exemplo, a relação entre a poesia de Azevedo e a história do
Brasil.
No início, era a perda. As caracterizações de Álvares de Azevedo feitas
por Joaquim José Teixeira e Joaquim Manuel de Macedo, logo após o
8 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.178.
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falecimento do poeta, fundem o lamento de dor com a manifestação pública de
admiração. Em 26 de abril de 1852, foram pronunciados por eles discursos de
homenagem a Álvares de Azevedo, cuja morte ocorreu antes que completasse
21 anos. Os textos de Teixeira e Macedo, preparados “por ocasião de dar-se a
sepultura”, se propõem a elogiar o poeta. O primeiro salienta duas virtudes -
religiosidade e patriotismo - e lamenta que tenha faltado tempo para
desenvolver suas qualidades. O segundo atribui a ele “excelentes poesias”, e
se empenha em sacralizar sua figura: “Deus tinha acendido na alma do
mancebo aquele fogo sagrado da poesia que eleva o homem acima da terra e
faz correr de seus lábios em cantos sonoros a linguagem do inspirado”9.
Atitude semelhante é encontrada no artigo de Lindorf França intitulado Duas
palavras sobre M. A. A. de Azevedo, de 1856. O poeta brasileiro é tratado
como figura de importância incomum, “astro” e “estrela d`alva”, e comparado a
Byron. França opina que o país lamenta tê-lo perdido, e afirma estar “em
nossos corações, a saudade”10.
Os trabalhos elogiados por Macedo ganham impressão em 185311, em
uma edição intitulada Poesias , no Rio de Janeiro. Em 1861, o português Lopes
de Mendonça publica no Jornal do comércio , na mesma cidade, um artigo
comentando a situação:
9 Peças elegíacas relativas ao autor. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. op.cit. p.117-22. A idéia de queDeus é o responsável pela capacidade de escrever do poeta remete a uma passagem de Macário, em quese lê: “Eu sinto-o, Deus me fez poeta”. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.74.10 FRANÇA, Lindorf E. F. Duas palavras sobre M.A.A. de Azevedo. In: CASTELLO, José Aderaldo.Textos que interessam à história do romantismo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1960. v.2.p.219-22.11 A informação está na apresentação de Homero Pires, à p.XXV, no primeiro volume das Obrascompletas.
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“Manuel Antonio Álvares de Azevedo, poeta brasileiro, cujaspoesias póstumas viram a luz em 1853 no Rio de Janeiro,era um talento de primeira ordem, uma daquelas vocaçõesonipotentes, que revelam, desde o berço, os fecundos donsdo gênio. Morto no ano de 1852, só um ano depois é que o
Brasil pôde deplorar a perda de uma das suas maisesperançosas ilustrações”12.
A argumentação de Mendonça procura enfatizar a hipótese de que, se
Azevedo tivesse permanecido vivo, sua produção futura seria de alto valor.
Elogia a Lira dos vinte anos, e considera o desaparecimento de seu criador um
episódio “funesto” para o “progresso das letras”. Compara-o a Gonçalves Dias,
e defende uma comunhão entre as letras portuguesas e brasileiras.
Machado de Assis, em 1866, dá continuidade à recepção positiva do poeta.
Comenta seu “grande talento”, sua “seiva poderosa”, sua “imaginação
vigorosa”. Como Mendonça, acredita que “lhe faltou o tempo”; porém,
diferentemente do escritor português, e com maior distanciamento afetivo,
Machado chama a atenção para imperfeições do autor examinado, entendendo
que o tempo lhe traria as “modificações necessárias”. O teor crítico do artigo
distingue variações de qualidade no interior da produção de Azevedo,
preferindo a poesia à prosa, considerada confusa. Elogia os poemas
humorísticos, mas encontra em sua produção “versos incorretos” e problemas
formais
13
.Em 1873, vem a público a Notícia sobre o autor e suas obras , de Joaquim
Norberto de Sousa e Silva, texto que desenvolve algumas das linhas de leitura
de Machado de Assis: a falta de maturidade do trabalho poético de Azevedo; o
12 O artigo está reproduzido em VÁRIOS. Juízo crítico. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. op.cit. p.16.
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estabelecimento de conexões entre o poeta brasileiro e a literatura inglesa, em
particular com Hamlet , de William Shakespeare; o reconhecimento de defeitos
de composição formal em textos poéticos. Sousa e Silva considera a Lira dos
vinte anos “o que há de melhor” em seu legado14. Grande parte do trabalho do
crítico é dedicado à apresentação de informações biográficas.
Sílvio Romero inclui em sua História da literatura brasileira , em 1888,
algumas páginas a respeito de Álvares de Azevedo, optando por iniciar sua
exposição com dados sobre a vida do poeta. Quanto à produção, manifesta
preferir a poesia aos demais gêneros. Em seu estudo, é importante a reflexão
sobre o dualismo do autor, ponto já discutido por Sousa e Silva. Para Romero,
a “dubiedade” de sua criação se deve à instabilidade do processo histórico em
que ela surge: “Todo o século XIX foi uma época de lutas e fortes comoções
intelectuais; os dogmas surgiam e tombavam, sem poder aliciar todos numa
crença apaziguadora e universal”15.
Outro ponto importante da leitura do crítico é a atribuição ao poeta de um
“certo modernismo”. Romero afirma: “o tom é novo; vê-se nitidamente que se
está a tratar com um filho do século”16. Como a argumentação não tem o
desenvolvimento esperado, a definição de modernismo resulta imprecisa. De
todo modo, importa salientar que o historiador reconhece em Azevedo traços
que o distinguem favoravelmente da produção poética brasileira anterior,
afastando-o da tradição.
13 ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. op.cit. p.892-4.14 SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p. 61.15 ROMERO, Silvio. Terceira fase do romantismo: o subjetivismo de Álvares de Azevedo e sua plêiada.In: ____. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. Tomo 3. p.956.
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Em 1901, José Veríssimo publica um volume de Estudos de literatura
brasileira , incluindo algumas páginas a respeito de Azevedo. Veríssimo retoma
uma das linhas de leitura de Sílvio Romero. Este, na História da literatura
brasileira , afirma que o poeta romântico tinha um temperamento “enfermo”17.
Para Veríssimo, ele possuía uma “imaginação doentia, como doentio era o seu
organismo”18. Nos dois casos, o traço doentio é vinculado à melancolia
observada em seus textos.
Como Sílvio Romero, José Veríssimo prefere a poesia aos textos escritos
em outros formatos, que não mereceriam a estima que receberam. E como
Machado de Assis, acredita que não houve tempo para o autor construir sua
produção como poderia. O estudo de Veríssimo amplia a reflexão a respeito
das afinidades entre Azevedo e a literatura européia, enumerando os autores
cuja influência seria decisiva, iniciando a lista com Byron e Musset19.
Quinze anos mais tarde, Veríssimo, na sua História da literatura brasileira ,
propõe a segmentação da produção poética do romantismo em três gerações.
A primeira estaria associada ao processo de independência política do país,
sendo freqüente em suas criações um “propósito patriótico”20. A segunda teria
“mais largo conceito estético”. Para o historiador, não havia razão para o
mesmo grau de patriotismo da geração anterior, pois a situação do país estaria
16 Idem. p.961.17 Idem, p.950.18 VERÍSSIMO, José. Álvares de Azevedo. In: ____. Estudos de literatura brasileira. Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1977. 2a. série. p.29.19 Idem, p.28.20 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Brasília: UNB, 1963. cap.13. p.137-8.
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mais estável21. Os poetas estariam agora dedicados ao “máximo de emoção”,
e interessados em tematizar a morte, por estarem contagiados pela
“melancolia de Gonçalves Dias”22. Quanto à terceira geração, Veríssimo
demonstra dificuldade em unificá-la por um traço comum, mas aponta
elementos como “feição social e humanitária” e “altiloqüência”23.
Nesse esquema, Álvares de Azevedo é situado como representativo da
segunda geração, sendo o primeiro a ser comentado, em um grupo contando
com Laurindo Rabelo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, Francisco
Otaviano de Almeida Rosa, José Bonifácio, Aureliano Lessa, Bernardo
Guimarães, Teixeira de Melo e José Joaquim Cândido de Macedo Jr. 24.
O esquema proposto por Veríssimo foi importante para a fortuna crítica
posterior. As histórias literárias de Alfredo Bosi25 e Massaud Moisés26 o
empregam, adotando hierarquia de valores semelhante ao privilegiar Azevedo
com relação aos demais poetas mencionados. Antonio Candido, em sua
Formação da literatura brasileira , desenvolve sua apreciação da “segunda
geração romântica”, em que encontra o “mal do século” e a ambivalência, a
”volúpia dos opostos” 27. “Mal do século” consiste em uma expressão criada
pelos europeus para designar um conjunto de traços perceptíveis na produção
romântica - introspecção, inconformismo, angústia metafísica, atração pela
21 Idem, p.214.22 Idem, p.216-7.23 Idem, p.241.24 Idem, conforme capítulo 13.25 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op.cit. Conforme p.109.26 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1985. v.2. (O romantismo)27 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.149-51.
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morte, desesperança 28 e, nos termos de Antonio Candido, “pessimismo,
humor negro, perversidade”.
A consagração do modelo proposto por José Veríssimo pode ser medida
pelo fato de que, na bibliografia sobre literatura voltada para o ensino
secundário no Brasil, existe um aproveitamento didático de seu esquematismo,
com o fim de mapear de maneira organizada obras e autores. Os livros de
Carlos Emílio Faraco e Francisco Moura, Douglas Tufano e Sérgius
Gonzaga29, por exemplo, seguem rigorosamente o princípio das três gerações
e, como José Veríssimo, apresentam Álvares de Azevedo como primeiro nome
do grupo referente à segunda geração.
O reconhecimento de historiadores da literatura como José Veríssimo,
Antonio Candido e Alfredo Bosi levou a estabelecer a posição de Álvares de
Azevedo no cânone brasileiro como “o poeta mais representativo da segunda
geração romântica” 30, para lembrar uma frase de um verbete dedicado ao
escritor em um dicionário de literatura brasileira. As caracterizações propostas
nos livros escolares expressam o respeito a esse estabelecimento e aos
critérios que o sustentam.
28 Conforme BIEDERMANN, Alfred, org. Le romantisme européen. Paris: Larousse, 1972. v.1. cap.III.BRIS, Michel de. Journal du romantisme. Genéve: Albert Skira, 1981. Cap.7. A expressão é empregada
de modo equivalente em: DAL FARRA, Maria Lucia. Da lira ao marimbau. In: AZEVEDO, Álvares de.Lira dos vinte anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. XV. VERÍSSIMO, Erico. Minha terra tempalmeiras. In: ____. Breve história da literatura brasileira. São Paulo: Globo, 1995. p.50. FACIOLI,Valentim. Pátria, natureza e sentimentos. In: ___ & OLIVIERI, Antonio Carlos, orgs. Antologia de poesiabrasileira: romantismo. São Paulo: Ática, 1996. p.10-2.29 FARACO, Carlos Emílio & MOURA, Francisco Marto. Língua e literatura. São Paulo: Ática, 1996.v.2. Unidades 3 a 7. TUFANO, Douglas. Estudos de literatura brasileira. São Paulo: Moderna, 1995.Parte III. GONZAGA, Sérgius. Manual de literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.cap.3.30 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Álvares de Azevedo. In: PAES, José Paulo & MOISÉS, Massaud.Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1987. p.65.
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Ainda com relação ao capítulo dedicado a Azevedo na História da
literatura brasileira , cabe registrar que José Veríssimo retoma o esforço de
Joaquim Norberto de Sousa e Silva em esclarecer a biografia do poeta. Essa
abordagem vai conseguir, mais adiante, um desenvolvimento importante na
fortuna crítica. Além disso, insiste em pontos levantados em 1901. Comenta
as influências do romantismo europeu, e novamente estão encabeçando a lista
Musset e Byron31; e aponta a sua “sensibilidade doentia”, voltada para o
desespero e o interesse pela morte 32.
Manoel Bonfim faz um registro de interesse por Azevedo, em 1931,
atentando para a multiplicidade de elementos contidos em sua produção;
indiferente às discussões sobre influências, considera-o “intensamente
brasileiro” 33. No mesmo ano, é publicado o livro de Veiga Miranda, Álvares de
Azevedo , que tem como finalidade essencial compor o itinerário da vida do
poeta. Traz um estudo da sua correspondência, e dedica atenção aos seus
estudos literários, elogiando sua capacidade de relacionar literatura e história34.
Nesse ponto, contraria frontalmente Sílvio Romero, que declarou a respeito de
seus ensaios: “o estilo é por vezes pesado, obscuro e amaneirado e as
contradições e obscuridades formigam”35.
A opção metodológica de Miranda consiste na pesquisa biográfica, com o
fim de traçar o perfil psicológico do autor, e dele derivar categorias para o
31 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. op.cit. p.218.32 Idem, p.219-20.33 BONFIM, Manoel. Álvares de Azevedo. In: ____. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira.Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.303-9.34 MIRANDA, Veiga. Álvares de Azevedo. São Paulo: s.e., 1931. p.236.35 ROMERO, Silvio. Terceira fase do romantismo. op.cit. p.962.
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entendimento da obra. Ao buscar uma lógica coerente que paute a produção
do autor, essa linha de estudo procura identificar elos de causalidade entre
ocorrências atribuídas à sua vida e elementos textuais, reduzindo através
dessas conexões a possibilidade de pensar as obras como elaborações
imaginárias relativamente independentes das circunstâncias imediatas da vida
pessoal do poeta, e sugerindo, por exemplo, que o sujeito lírico de um poema
corresponde diretamente a seu autor, como se a obra fosse necessariamente
expressão confessional.
Um caso expressivo dessa tendência é Álvares de Azevedo desvendado ,
de Vicente Azevedo, publicado em 1977 36. Ao longo de sua argumentação, o
crítico procura traçar vínculos entre eventos da vida do poeta e passagens de
seus escritos, explorando sistematicamente sua correspondência. O crítico,
assim como Veiga Miranda, está ostensivamente preocupado em construir
uma imagem tida como digna do autor; o trabalho é fundamentalmente uma
homenagem.
Na linha biográfica, se destaca o estudo Poesia e vida de Álvares de
Azevedo , de R. Magalhães Jr.37, de 1962, mais bem-sucedido do que o livro de
Vicente Azevedo. Além de uma contribuição importante para a compreensão
dos gêneros considerados menores em Azevedo, em especial de seu teatro, o
biógrafo estabelece conexões importantes entre o autor e a vida cultural do
século XIX, vinculando, por exemplo, a Noite na taverna à pintura de
36 AZEVEDO, Vicente. Álvares de Azevedo desvendado. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1977.37 MAGALHÃES JR., R. Poesia e vida de Álvares de Azevedo. São Paulo: Ed. das Américas, 1962.
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Géricault38. Em 1982, Hildon Rocha publica Álvares de Azevedo: anjo e
demônio do romantismo, que recupera e organiza informações biográficas
disponíveis, e estabelece conexões entre elas e passagens de obras. O livro
retoma temas básicos da fortuna crítica - a suposta genialidade do autor, suas
influências estrangeiras, o mal do século, o interesse pela morte39.
Um estudo fundamental sobre Álvares de Azevedo é o ensaio Amor e
medo , de Mário de Andrade, publicado em 1935. O método de leitura é
basicamente biográfico; o crítico avalia a “sinceridade” dos poetas românticos,
e examina relações entre a formação familiar de Álvares de Azevedo e seu
modo de representar afetos. Ele defende que, em sua produção, há uma fobia
do amor sexual, vinculada à sua convivência com a mãe e a irmã, que propicia
uma relação incomum com a feminilidade40.
Além da corrente biográfica, outra linha recorrente de leitura se vincula à
literatura comparada: trata-se do levantamento de influências. A obra de
Azevedo é tomada então como reelaboração de um modelo estético
qualificado do romantismo europeu. Freqüentemente, a reflexão comparatista
está associada à biográfica, como nos casos de Magalhães Jr. e Hildon Rocha.
A perspectiva comparatista, ocupada em rastrear origens do imaginário
38 Idem, p.125.39 ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: anjo e demônio do romantismo. Rio de Janeiro: José Olympio;São Paulo: SEC, 1982.40 ANDRADE, Mário de. Amor e medo. In: ____. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins,1974.
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romântico presente na produção, posiciona Azevedo no circuito das relações
entre autores de diferentes países e estima seus interesses como leitor 41.
Um crítico importante nessa linha é Ronald de Carvalho, que elabora uma
caracterização da Lira dos vinte anos pautada em uma série de autores
europeus: Byron, Musset, Shelley, Leopardi, Heine42. Seu trabalho motivou a
polêmica, estimulando Vera Pacheco Jordão a discutir em que medida, de fato,
Álvares de Azevedo é um byroniano, reclamando que esse conceito
“popularizou-se tanto que passou a constituir um chavão”43. Fausto Cunha
também registrou a presença de Byron e Musset em Azevedo, mas defende
que sua relação com o segundo é dúbia: “enquanto poeta, Azevedo é um eco
da estética de Musset; enquanto crítico, é um adversário dessa mesma
estética”44.
Nos anos 50, a fortuna crítica de Álvares de Azevedo se amplia com
estudos de Brito Broca, Eugênio Gomes e Antônio Cândido. O interesse de
Broca pela vida literária no período romântico o levou a redigir vários artigos
sobre o escritor, comentando sua leitura de Byron, suas representações da
41 Em certos casos, essa perspectiva restringe a atenção às especificidades do autor, o que se observasobretudo em textos panorâmicos. Conforme, por exemplo: CITELLI, Adilson. Romantismo. São Paulo:Ática, 1986. p.58.42 CARVALHO, Ronald de. Álvares de Azevedo (1831-1852) e a poesia da dúvida. In: ____. Pequenahistória da literatura brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1955. p.224-5.43 JORDÃO, Vera P. Maneco, o byroniano. In: ____. Maneco, o byroniano. Rio de Janeiro: MEC, s.d.p.3. Por exemplo, encontramos a expressão “byroniano Álvares de Azevedo” em CASTELLO, JoséAderaldo. Apresentação. In: ___, org. Textos que interessam à história do romantismo . São Paulo:Conselho Estadual de Cultura, 1960. v.1. p.9.44 CUNHA, Fausto. Álvares de Azevedo ou a contradição criadora. In: ___. O romantismo no Brasil. DeCastro Alves a Sousândrade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971. p.115.
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tristeza, suas fontes e sua recepção45. Neste último, afirma preferir a poesia do
escritor à sua prosa46, entrando em acordo com Machado de Assis.
Tanto Eugênio Gomes como Antonio Candido estão mais preocupados com
as características da produção textual de Álvares de Azevedo do que em
organizar dados biográficos ou apontar influências estrangeiras. O primeiro
publicou um estudo sobre o individualismo romântico, incluído na coleção A
literatura no Brasil , de Afrânio Coutinho, e os artigos Álvares de Azevedo,
Álvares de Azevedo e o ópio da leitura e Machado de Assis e Álvares de
Azevedo . Entre os tópicos que desenvolve em sua compreensão do poeta,
estão: a freqüência esporádica de apresentação de marcas da realidade
nacional em seus textos; as diferenças entre a produção poética e a
ensaística; o recurso da ironia; o comportamento de Azevedo como leitor;
analogias entre Macário e Memórias póstumas de Brás Cubas 47.
Antonio Candido, depois de dedicar a Azevedo um capítulo da Formação
da literatura brasileira , foi responsável por outros trabalhos que contribuíram
para a valorização do escritor. Interessou-se pelo humorismo, pelas
representações da mulher, e particularmente pelo tema do sonho e pelas
imagens da noite. Desenvolveu a leitura de Mário de Andrade, discutindo a
representação do medo de amar; e retomou a abordagem biográfica, ao eleger
45 BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. São Paulo: Polis / INL, 1979.46 Idem, p.320-1.47 GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. In: COUTINHO, Afrânio, org. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986. v.3. ____. Álvares de Azevedo. In: ___. Prata dacasa. Rio de Janeiro: A Noite, s.d. ____. Álvares de Azevedo e o ópio da leitura. In: ____. Visões erevisões. Rio de Janeiro: INL, 1958. ____. Machado de Assis e Álvares de Azevedo. In: ____. Machadode Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958.
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a adolescência como referência psicológica fundamental para compreender o
autor 48.
Uma das contribuições importantes do crítico está no emprego da categoria
“experiência-limite”, referente a elementos como o “incesto, a necrofilia, o
fratricídio, o canibalismo, a traição, o assassínio”, presentes na Noite na
taverna. De acordo com Candido, a experiência-limite mostra “os abismos
virtuais e as desarmonias da nossa natureza, assim como a fragilidade das
convenções” 49 . Com essa argumentação, o crítico supera o preconceito
imposto por Sílvio Romero e José Veríssimo, que compreendiam a imaginação
de Azevedo como doentia. Esse juízo supunha um padrão de normalidade de
pensamento e ação afastado das imagens criadas pelo escritor. Ao utilizar o
pronome “nossa”, Candido aponta para um conceito de condição humana que,
envolvendo o leitor e também ele mesmo, inclui entre as possibilidades do
comportamento humano as que estão representadas por Azevedo.
A reflexão estética sobre Álvares de Azevedo cresceu com os trabalhos de
Alfredo Bosi. Em sua História concisa da literatura brasileira , o crítico renova a
discussão das influências e caracteriza a produção do autor formal e
tematicamente. Além disso, situa Azevedo com relação à política brasileira do
século XIX. Em um estudo sobre as imagens do romantismo no Brasil, explica
48 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. ____. Apresentação. In: AZEVEDO,Álvares de. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 1994. ____. A educação pela noite. In: ____. Aeducação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. _____. Cavalgada ambígua. In: ____. Nasala de aula. São Paulo: Ática, 1986. ____ & CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literaturabrasileira: das origens ao realismo. São Paulo: DIFEL, 1985.49 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.17.
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sua produção com categorias filosóficas e examina a originalidade de seu
humor50.
Em trabalhos recentes de cunho acadêmico, outros críticos têm dado
continuidade aos questionamentos anteriormente levantados. Paulo Franchetti,
no estudo panorâmico A poesia romântica , discute a imagem de Álvares de
Azevedo instituída pela fortuna crítica. Recupera e valoriza José Veríssimo, e
opina que o cosmopolitismo do autor, que tanto interessou a leitores como
Ronald de Carvalho, é vantajoso por trazer coloquialismo à linguagem poética.
Ele acredita, recuperando Machado de Assis, e em sintonia com Bosi, que se
deva reconhecer a importância de seu humor, obscurecida por leituras
interessadas em outros pontos51. Alcides Villaça, em seu prefácio a uma
edição da Lira dos vinte anos , retoma uma série de pontos discutidos por
outros leitores, como a linguagem poética, a ironia, o interesse pela morte e,
em acordo com Franchetti, o humor e os elementos cotidianos52.
O escritor romântico tem sido objeto de estudos pautados em
fundamentações teóricas muito diversas. O comparatismo foi renovado por
Maria Alice de Oliveira Faria, em um livro que levanta semelhanças e
diferenças entre Álvares de Azevedo e Musset53. O livro de Angélica Soares
Ressonâncias veladas da lira propõe Heidegger como fundamento para
50 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op.cit. _____. Imagens do romantismo noBrasil. In: GUINSBURG, Jacó, org. O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.51 FRANCHETTI, Paulo. A poesia romântica. In: PIZARRO, Ana, org. América Latina: palavra,literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: Unicamp, 1994. v.2. Em especial p.200-1.52 VILLAÇA, Alcides. Na intimidade romântica. In: AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. SãoPaulo: FTD, 1994.53 FARIA, Maria Alice. Astarte e a espiral.Um confronto entre Álvares de Azevedo e Musset. São Paulo:CEC, 1970.
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compreender o intimismo na produção do autor54. Outras abordagens se
voltam para o conceito de fantástico55, o espaço urbano56 e a noção de pós-
moderno57.
Trabalhos de pós-graduação dedicados a Álvares de Azevedo nesta década
retomam pontos de leitura levantados pela fortuna crítica. Risos entre pares ,
de Vagner Camilo (1993), centra-se no poema Idéias íntimas , analisa sua
composição e examina a “binomia” de Azevedo à luz da teoria da mistura de
contrários, de Vitor Hugo. O sistema poético dual de Álvares de Azevedo , de
Cilaine Alves Cunha (1994), utiliza idéias de Schiller, entre outros, para
examinar também o dualismo, dedicando-se à análise das representações do
amor. Macário e Noite na taverna: um estudo de recepção literária , de Teruco
Spengler (1996), aponta para ligações entre o autor brasileiro e a literatura
alemã. O ponto em comum mais destacado entre os três trabalhos é o fato de
que neles encontramos reflexões a respeito do dualismo na produção do
escritor 58.
O dualismo e a melancolia, caracterizados por Benedito Nunes como
traços comuns no romantismo59, são aspectos constantemente retomados na
54 SOARES, Angélica. Ressonâncias veladas da lira. Álvares de Azevedo e o poema romântico-intimista.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.55 JEHA, Julius. Claudius Hermann: o fantástico em Álvares de Azevedo. O eixo e a roda. BeloHorizonte: UFMG, jun. 1983. v.1. n.1.56 CARONE, Modesto. Álvares de Azevedo: um poeta urbano. Remate de males. Campinas: Unicamp,1987. n.7.57 MOISÉS, Carlos Felipe. Álvares de Azevedo pós-moderno. Jornal da tarde. 9/12/89.58 CAMILO, Vagner. Risos entre pares. Poesia e comicidade no romantismo brasileiro. Campinas:Unicamp, 1993. Dissertação de mestrado. CUNHA, Cilaine. O sistema poético dual na obra de Álvaresde Azevedo. São Paulo: FFLCH-USP, 1994. Dissertação de mestrado. SPENGLER, Teruco. Macário e
Noite na taverna: uma leitura de recepção literária. Santa Maria: UFSM, 1996. Dissertação de mestrado.59 Conforme NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, Jacó, org. O romantismo. SãoPaulo: Perspectiva, 1978. p.52.
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fortuna crítica. Essa freqüência indica que o modo particular como o poeta os
elaborou merece atenção. Embora possam ser observadas variações de
abordagem nos trabalhos dos comentadores, por diferenças de método de
leitura, a constância é importante, e por isso cabe registrar, a seguir, as
menções a esses tópicos. Elas ajudaram a criar uma imagem do poeta como
uma figura ambígua e instável, causadora de certa estranheza.
Lygia Fagundes Telles redigiu uma crônica discutindo a imagem dúbia de
Álvares de Azevedo, entre a boemia e a pureza. Em certo ponto, incerta
quanto à precisão dos dados biográficos, lançou um desafio ao saber
acumulado sobre o poeta: “(...) nesse ponto, suspendo o juízo: o que a gente
sabe sobre o próximo? E sobre um próximo assim distante? A gente sabe tão
pouco (...)”. A romancista sugere que a figura de Azevedo seja essencialmente
enigmática 60. A mesma provocação surge, por outro caminho, em uma crônica
de Ana Cristina Cesar a respeito de sinceridade e fingimento. Ela parte de uma
idéia de Vicente Azevedo - nas cartas, o escritor é sincero; nos poemas, ele
finge. E conclui que o poeta romântico está à espera de quem tome seus
textos “como matéria-prima para outros escritos”61.
60 TELLES, Lygia Fagundes. To die, to sleep no more. In: _____. A disciplina do amor . Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1980. p.79.61 CESAR, Ana Cristina. O poeta é um fingidor. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 30/4/77.
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1.2. O dualismo
Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não temfim.Guimarães Rosa, O espelho
Em alguns dos estudos sobre Álvares de Azevedo, atentos para
especificidades de sua produção, na medida em que se impõe a necessidade
de uma percepção mais abrangente, e é procurada uma visão de conjunto de
seus escritos, recorre-se a expressões como paradoxo, ambigüidade,
contradição.
Eugênio Gomes vê em Álvares de Azevedo "dois lados antagônicos, o da
"saturnal" e o da "candura" 62. Brito Broca o considera “um exemplo de
ambivalência”63. É "paradoxo" o termo que Antonio Soares Amora emprega em
sua avaliação da relação entre lubricidade e idealismo na poesia de Azevedo
64. Sílvio Romero reconhece a presença de um dualismo na lírica de Azevedo,
descrevendo-o nos seguintes comentários.
“Às vezes é um lirismo idílico e todo confiante, maspuramente ideal; outras vezes é a amargura de quem nãoencontrou ainda um coração que o compreendesse, ou apintura de alguma cena lasciva. Outro dualismo dá-se nasopiniões, crenças e doutrinas do poeta.”65
“(...) dualismo de ideal e ironia, de sinceridade e sarcasmo,de pureza e grosseria que também se depara em seusversos. Esse dualismo de outra espécie era
62 GOMES, Eugênio. Álvares de Azevedo. op.cit.63 BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. op.cit. p.118.64 AMORA, Antonio Soares. O romantismo. São Paulo: Cultrix, 1993.65 ROMERO, Sílvio. Terceira fase do romantismo. op.cit. p.951.
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conscientemente praticado, era sistemático e tinha algumacousa de artificial.”66
Antonio Candido, em estudo célebre, Álvares de Azevedo, ou Ariel e
Caliban , qualificou a obra de Azevedo como adolescente, por identificar em
sua produção traços que atribui à psicologia adolescente: divisão,
ambigüidade, reunião de ternura e perversidade, e de idealização e
lubricidade. Definiu a personalidade literária de Azevedo como dotada de
"natureza contraditória" 67.
Joaquim Norberto de Sousa e Silva assim o descreveu:
“A dúvida embalava-o entre a crença e a descrença.Duvidava ora do que cria, ora do que descria. Era a luta docorpo e da alma, da vida e da morte, entre o céu e a terra(...)”68
Esses registros de paradoxo, ambigüidade, contradição, são autorizados
pelo próprio Álvares de Azevedo, que em seu prefácio à segunda parte da Lira
dos vinte anos , afirma:
"a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almasque moram nas cavernas de um cérebro pouco mais oumenos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalhade duas faces" 69.
A passagem encontra ecos em um trecho de Noite na taverna que define a
vida em termos paradoxais, como complexo de “crimes e virtudes”70, e no
modo de falar do personagem Macário, na peça de teatro do mesmo nome, em
que, diante da pergunta “E amaste muito?”, responde: “Sim e não. Sempre e
66 Idem, p.955.67 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.178-80.68 SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto de. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p.55.69 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.1. p.127.
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nunca.”71. Álvares de Azevedo, intencionalmente, ao longo de sua produção,
exercita a representação de um pensamento dúbio, apontando para a
concorrência de interesses, valores e sentimentos opostos.
Alcides Villaça, em seu comentário sobre a Lira dos vinte anos , defende a
idéia de que o livro se organiza de maneira dúplice, oscilando entre ternura e
sarcasmo, entre flores e roupa suja72. Veiga Miranda afirma que Álvares de
Azevedo transitava entre o cômico e o patético, sendo formada uma "mistura
de tintas". Miranda percebe em Azevedo a presença do "paradoxal" 73. Hildon
Rocha, por sua vez, declara que o autor “era variável e múltiplo”,
“contraditório”74, e "sempre alternava entre as reações e manifestações mais
contraditórias e antagônicas, padecendo as tensões de sua própria mobilidade,
de sua surpreendente instabilidade" 75. Para Vera Pacheco Jordão, em
Azevedo coexistem “duas personalidades”76. Antonio Carlos Secchin entende
que a antítese é uma figura fundamental na Noite na taverna 77. Os estudos
recentes de Vagner Camilo, Cilaine Alves Cunha e Teruco Arimoto Spengler,
valorizando a noção de “binomia”, também elaboram reflexões sobre dualismos
presentes na produção do autor78.
70 Idem. v.2. p.131.71 Idem. p.20.72 VILLAÇA, Alcides. Na intimidade romântica. op.cit. p.14.73 MIRANDA, Veiga. Álvares de Azevedo. op.cit. p.183.74 ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: anjo e demônio do romantismo. op.cit. p.59.75 Idem. p.82.76 JORDÃO, Vera Pacheco. Maneco, o byroniano. op.cit. p.3.77 SECCHIN, Antonio Carlos. Noite na taverna: a transgressão romântica. In: ___. Poesia e desordem:escritos sobre poesia e alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.178.78 Conforme CAMILO, Vagner. Risos entre pares. Poesia e comicidade no romantismo brasileiro. op.cit.p.26, 30, 34 e 42. CUNHA, Cilaine Alves. O sistema poético dual na obra de Álvares de Azevedo . op.cit.Em especial, p.89. SPENGLER, Teruco Arimoto. Macário e Noite na taverna: uma leitura de recepçãoliterária. op.cit. Em especial, p.100.
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A noção de dualismo, constantemente apontada em Álvares de Azevedo,
era fundamental também em Goethe.
Vivem-me duas almas, ah! no seio,Querem trilhar em tudo opostas sendas;Uma se agarra, com sensual enleioE órgãos de ferro, ao mundo e à matéria;A outra, soltando à força o térreo freio,De nobres manes busca a plaga etérea.79
A fala de Fausto descreve “duas almas”, uma voltada para o terreno, outra
para o etéreo. A divisão interna desnorteia o personagem, que procura uma luz
que o conduza. Essa problemática está em aliança com o dilema descrito porVitor Hugo, a respeito do homem cristão. O escritor francês, em sua reflexão
teórica sobre o amadurecimento da humanidade ao longo da história, explica
que, quando surge o cristianismo, o homem descobre sua duplicidade
essencial: “ele tem duas vidas que deve viver, uma passageira, a outra imortal;
uma da terra, a outra do céu (...) ele é duplo como o seu destino, que nele há
um animal e uma inteligência, uma alma e um corpo”80. A representação cristã
do homem, elaborada pelo poeta francês, corresponde ao dilema do
personagem de Goethe.
Em outra passagem de Fausto , Mefistófeles enuncia:
Traz prazer dor, dor prazer traz.81
A associação entre prazer e dor, cara a Wordsworth82 e Keats83, apreciada
por Macário84, aparece aqui como formulação demoníaca. Além das
79 GOETHE. Fausto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p.64.80 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988. p.21.
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manifestações de seus personagens, também o aforismo serve a Goethe para
enunciar a idéia de que “estupidamente contraditório é o ser humano”85.
Em Fausto, falar em “duas almas” diz respeito a uma dificuldade de
estabelecer critérios para decidir como governar a própria vida. No prefácio à
segunda parte da Lira , a imagem de “duas almas” expressa uma
indeterminação estética, responsável pelos contrastes internos do livro.
A oposição goetheana entre apego à matéria e ao etéreo existe em
Azevedo. Ela se apresenta como um confronto entre a realidade e o devaneio,
a precariedade e os ideais, em “uma oscilação entre ser e não-ser”86.
Considerando a Lira dos vinte anos em sua totalidade, a tensão entre
representações contrastantes, que motivou os críticos a empregarem
terminologias referentes a duplicidades para descrever a obra, é uma das
bases de sustentação de seu interesse.
81 GOETHE. Fausto. op.cit. p.136.82 WORDSWORTH, William. Prefácio às Baladas Líricas. In: LOBO, Luiza, org. Teorias poéticas doromantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. op.cit. p.178.83 KEATS. Ode à melancolia. In: GUIMARÃES, Fernando, org. Poesia romântica inglesa. Lisboa:Relógio d`água, 1992. p.69-70.84 O personagem diz, em uma passagem da peça de teatro: “Não é porventura essa comoção íntima denossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com tudo que é belo e doloroso?...”.AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.62.85 GOETHE. Máximas e reflexões. Lisboa: Guimarães, 1992. p.47.86 SCHELLING. A essência da liberdade humana. Petrópolis: Vozes, 1991. p.46.
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1.3. A melancolia sincera
Não, não seja a vida sempre assimComo um luar desesperadoA derramar melancolia em mimPoesia em mim
Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, Modinha
A identificação da presença de melancolia na lírica de Álvares de Azevedo
é antiga e remonta a Machado de Assis, em seu comentário sobre a Lira dos
vinte anos de 1866.
A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos aspoesias e os poemas humorísticos, o autor da Lira dos vinteanos raras vezes escreve uma página que não denuncie ainspiração melancólica, uma saudade indefinida, uma vagaaspiração. Os belos versos que deixou impressionamprofundamente; “Virgem morta”, “À minha mãe”,“Saudades”, são completas neste gênero. (...) Que poesia eque sentimento nessas melancólicas estrofes!” 87
O adjetivo “sincera” aponta para uma conexão profunda entre os sujeitos
líricos criados pelo poeta e sua própria condição pessoal. A idéia de uma
“essência melancólica” do autor foi sugerida por Joaquim Norberto de Sousa e
Silva e Brito Broca. Comentando sua formação, Norberto afirma que Azevedo
“tornou-se melancólico na mocidade”, atingido pela solidão88. Embora
reconheça seus momentos de “expansividade”, Broca afirma que em suas
87 ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. op.cit. p.893-4.88 SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto de. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p.39.
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cartas há uma “profunda melancolia” 89, e comenta, a respeito do modo de
representação do espaço em Macário , que “a melancolia de Álvares de
Azevedo, projetando-se na paisagem, tornava tudo cinzento e lúgubre”90.
Para Sílvio Romero, em Azevedo havia uma “melancolia inata”91. Em sua
História da literatura brasileira , define o poeta como “um melancólico (...) que
enfermou o espírito”, e propõe que a origem de sua melancolia não está em
“injustiças sofridas” ou “traição de amantes nem de amigos”, mas
essencialmente na “vacilação de suas idéias” 92.
Romero apresenta algumas citações de um crítico, Edmond Scherer, a
respeito da melancolia, com o propósito de definir seu ponto de vista a respeito
de Álvares de Azevedo. Para Scherer, a condição melancólica é caracterizada
por elementos como desequilíbrio, incompletude, nervosismo, delicadeza e
fragilidade. Após as citações, Romero afirma que as idéias de Scherer
“aplicam-se perfeitamente ao nosso poeta”93.
Ronald de Carvalho vê Azevedo como expressão exemplar do “mal do
século”, e assinala a presença da melancolia na Lira dos vinte anos 94 . Entre
os críticos de Azevedo, Antonio Candido se destaca pela constância com que
reconheceu a presença da melancolia em sua produção. Ele a aponta
89 BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. op.cit. p.118.90 Idem. p.207.91 ROMERO, Sílvio. p.950.92 Idem, p.952.93 Idem, p.958.94 CARVALHO, Ronald de. Álvares de Azevedo (1831-1852) e a poesia da dúvida. op.cit. p.224 e 226.
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genericamente95, e destaca o traço em alguns poemas - Idéias íntimas 96 ,
Lembrança de morrer 97 - e na Noite na taverna 98.
Em Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira , de Paulo Prado,
além de referências à melancolia no romantismo brasileiro, a Álvares de
Azevedo e à Noite na taverna, é apresentada a interpretação de que existiria
uma homologia entre a poética do período e a situação do país, agredido por
uma história de valores degradados - “melancolia do povo, melancolia dos
poetas”99. Parte do raciocínio foi reelaborada por Jamil Haddad, que situa
Azevedo numa São Paulo melancólica100.
Enquanto, por um lado, em Carvalho, a presença da melancolia em
Azevedo serve como argumento para integrá-lo aos moldes da literatura
européia, por outro, em Prado e Haddad, ela manifesta um mal-estar da
sociedade brasileira. A interpretação desse tópico não é o único aspecto em
que a crítica se divide com relação à brasilidade de Álvares de Azevedo.
Encontramos a compreensão de que “sua poesia não revela nenhuma
impregnação afetiva e enfática da realidade nacional ou do momento histórico
em que surgiu. Esporádicas ou meramente circunstanciais as manifestações
do instinto de nacionalidade que o arrebataram momentaneamente do
95 CANDIDO, Antonio. Cavalgada ambígua. op.cit. p.44. CANDIDO, Antonio. Apresentação. op.cit.p.15.96 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.190.97 CANDIDO, Antonio. Apresentação. op.cit. p.14.98 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.18.99 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio,1962. Conforme, especialmente, páginas 141-3 e 148-50.100 HADDAD, Jamil Amansur. Álvares de Azevedo, a maçonaria e a dança. São Paulo: CEC, 1960. p.79-80.
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subjetivismo lírico em que encontrava o clima ideal”101. Manoel Bonfim, por
sua vez, observa um vínculo profundo entre a produção de Azevedo e a “alma
do Brasil”102. Em uma de suas frases, além de defender o poeta, traça uma
conexão profunda entre ele e o país: “Os próprios exageros e erros de
ingenuidade, o Brasil reconhecerá como caracteres seus”103. Em um caminho
diferente do trilhado por Paulo Prado, Bonfim também pretende ver em
Azevedo marcas essenciais da nação.
Alguns estudos comparatistas levam a crer que, embora suscetível a
influências, e interessado em modelos europeus, Azevedo não se comportava
como reprodutor passivo. Tanto Maria Alice de Oliveira Faria, discutindo as
relações do poeta brasileiro com Musset, como Onédia Célia Barboza,
avaliando a leitura de Byron feita por Azevedo, apontam para a idéia de que
este tinha uma elaboração com características próprias de idéias, temas e
imagens extraídos dos autores europeus. No primeiro caso, por exemplo, a
autora explica que as representações da sexualidade, em Musset, têm traços
realistas, ao passo que em Azevedo têm acento onírico. O estudo de Barboza
revela que Azevedo se propôs a traduzir o poema Parisina de Byron e, ao fazê-
lo, através da seleção lexical e da disposição das imagens, “tornou-o muito
mais sombrio” 104.
101 GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. op.cit. p.746. Conforme também TORRES, AlexandrePinheiro. Álvares de Azevedo. In: ____, org. Antologia da poesia brasileira: do Padre Anchieta a JoãoCabral de Melo Neto. Porto: Chardron, Lello e Irmão, 1984. v.1. p.921-2.102 BONFIM, Manoel. Álvares de Azevedo. op.cit. p.309.103 Idem, p.304. A argumentação de Bonfim não desenvolve este ponto específico, de modo que os termosda homologia não ficam conceitualmente determinados.104 Conforme FARIA, Maria Alice de Oliveira. Astarte e a espiral. op.cit. Em especial, por exemplo,p.150. BARBOZA, Onédia Célia de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974.p.161-3.
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Álvares de Azevedo, ao assimilar propostas desses autores para o interior
da cultura brasileira, reforçou ligações entre as idéias estéticas nacionais e
estrangeiras. No entanto, além disso, interferiu na dinâmica interna do sistema
de idéias do país. O negativismo de Azevedo destoa, de acordo com Dante
Moreira Leite, de uma tendência de representação da “grandeza da natureza
tropical” no Brasil, levada à condição de estereótipo105. Em uma passagem de
Macário , comentada por Leite106, o personagem principal contesta a
representação positiva da natureza brasileira, afirmando que “tudo isto é
sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável na realidade!”107.
Para aceitar, em termos metodológicos, as idéias de Manoel Bonfim sobre
o poeta, seria preciso aceitar a premissa de que exista uma “alma brasileira”,
homogênea e bem caracterizada, uma unidade que represente a identidade
nacional em sua essência, a realidade em seu conjunto. Essa premissa é
inviável, e sua fragilidade fica mais exposta diante da importância assumida na
produção do país, em vários autores, de um “conceito agonístico de nação”,
que ressalta tensões e impasses, explicado por Alfredo Bosi 108.
Dentro dessa linha de raciocínio, para propor uma homologia entre a
estética de Azevedo e a realidade brasileira, uma mediação consistente seria
um texto de Augusto Meyer, que defende que, no romantismo, “o paradoxo era
uma conseqüência inevitável das condições de desterro cultural em que
105 LEITE, Dante Moreira. Romantismo: a independência e a formação de uma imagem positiva do Brasile dos brasileiros. In: ____. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1983. p.181.106 Idem, p.182.107 AZEVEDO, Álvares de. Obras Completas. op.cit. v.2. p.66.108 BOSI, Alfredo. O nacional e suas faces. In: V.V.A.A. Eurípedes Simões de Paula: in memoriam. São
Paulo: FFLCH-USP, 1983. Em especial, p.41 e 44.
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vivíamos”. A presença de elementos estrangeiros em nossa literatura foi
explicada por ele do seguinte modo.
“Tudo isto correspondia ao vazio brasileiro, à tenuidade da
nossa consciência nacional, sem lastro de tradiçõessedimentadas, capaz de alimentar a obra literáriaprescindindo do arrimo de influências peregrinas [ em umaterra em que ] tudo ainda é conjetural, problemático econjugado no futuro”109.
Os trabalhos de Faria e Barboza, ao apresentarem a relação ambivalente
de Azevedo com Musset e Byron, respectivamente, expondo que o poeta
brasileiro assimilava elementos mas não os reproduzia passivamente, sugerem
que o autor, mesmo vinculado aos modelos externos, guardava
especificidades. Essa ambivalência estaria relacionada ao “desterro cultural”
de que fala Meyer, resultante de contradições políticas e econômicas da
sociedade brasileira oitocentista.
Álvares de Azevedo não chegou a formular um conceito bem determinado
de nacionalismo, e não pretendeu assumir compromisso nesse sentido.
Elaborou uma reflexão, incipiente e metodologicamente imprecisa, a respeito
dos critérios de definição de nacionalidade em literatura. Dessa reflexão, cabe
resgatar um ponto.
Em uma passagem de Hispania , parte de seu estudo Literatura e
civilização em Portugal, o poeta escreve que acredita em uma necessária
integração entre língua e literatura - “sem língua à parte não há literatura à
109 MEYER, Augusto. Nota preliminar. In: ALENCAR, José de. Obras completas. Rio de Janeiro:Aguilar, 1958. v.2. p.22-4.
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parte”110. Esse argumento poderia funcionar como premissa da idéia de que as
literaturas portuguesa e brasileira constituiriam um único sistema. Não é bem
isso o que Azevedo pensa. O curso de seu raciocínio encaminha para dois
desdobramentos. O primeiro, polemizar a respeito da “brasilidade” de autores
como Santa Rita Durão, Alvarenga, Basílio da Gama e Tomás Antônio
Gonzaga. Diz ele: “os heróis do Uraguai e do Caramuru eram portugueses.
Não há nada nesses homens que reslumbre brasileirismo”111.
O conceito de “brasileirismo”, estritamente, não está definido. Isso permite
a Azevedo um segundo desdobramento: a possibilidade de assimilação para
nossa literatura de autores portugueses.
“(...) por causa de Durão, não podemos chamar Camõesnosso; por causa, por causa de quem?... (de Alvarenga?)nos resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos deBocage!”112
Nas páginas que dedica a Bocage, Azevedo ressalta, como qualidades, os
traços melancólicos do autor. Caracteriza-o como “bem infeliz”113, solitário,
jogado na ausência de luz, “sofrendo da dor no coração”114, marcado pela
saudade115, ébrio, incerto, desesperado116, dotado de “imaginação ardente”117,
autor de poesia “tão pura em sua melancolia”118. Ele acredita que em Bocage
“traduz-se uma era inteira. É o espelho onde passa com sua flutuação de luz e
sombra no roxo crepuscular de uma nação a hora turva em que tudo se agita
110 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.2. p. 339.111 Idem, p.341.112 Idem, p.340.113 Idem, p.385.114 Idem, p.377.115 Idem, p.383.116 Idem, p.379.117 Idem, p.381.
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lugubremente, como por um enterro ou um nascer doloroso (...) Portugal se
mergulhara no crepúsculo”119. A premissa da argumentação de Azevedo
consiste em que traços essenciais de um país podem ser encontrados em sua
literatura. O mal-estar da civilização portuguesa, suas frustrações, seu
“crepúsculo”, estariam traduzidos na melancolia de Bocage.
As idéias de Azevedo sugerem que Camões e Bocage mereçam ser
reconhecidos como “nossos”, isto é, como brasileiros, mais do que Alvarenga
ou Durão, e não como “estrangeiros”. Seus comentários sobre Camões são
mais curtos, e não autorizam especulações tanto quanto as idéias sobre
Bocage. Na medida em que a melancolia deste, acentuada insistentemente
por Azevedo, traduz o “crepúsculo” português, e se Bocage não merece ser
tratado como “estrangeiro”, temos um caminho aberto para a analogia.
Uma das razões de Álvares de Azevedo valorizar tanto esse poeta
português está em que nele encontra elementos de seus próprios interesses
estéticos, e de sua melancolia. Um desdobramento natural dessas afinidades
eletivas estaria em uma expectativa teórica, por parte de Azevedo, de que sua
produção traduzisse, de algum modo, a situação brasileira.
Não há dados textuais suficientes para afirmar, com segurança, que
Azevedo aplicaria esses pressupostos a si próprio, com uma consciência
minuciosa a respeito das implicações estético-políticas de sua produção.
Podemos apenas supor, a partir dos comentários sobre literatura portuguesa,
que, mesmo não discutindo diretamente, na maioria de seus textos, temas
118 Idem, p.382.119 Idem, p.387.
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cruciais da época, mesmo passando ao largo de questões como o escravismo
e a desigualdade social, acreditava que a melancolia de sua produção, tal
como a de Bocage, traduzisse, de algum modo, o mal-estar de sua sociedade.
Seus dualismos estariam, nesse sentido, ligados ao “paradoxo” descrito por
Augusto Meyer. Se aceitas essas premissas, a leitura que Azevedo sugeriria
de sua própria produção, através de sua compreensão do poeta português,
estaria associada a uma idéia cara ao romantismo alemão: o olhar mimetiza o
objeto; para apreender uma realidade contraditória, é necessário ter uma
atitude de percepção ambivalente 120. O dualismo e a melancolia de Azevedo
seriam, para essa perspectiva de leitura, historicamente motivados.
120 Conforme a teoria da ironia exposta em WELLEK, René. História da crítica moderna. São Paulo:EDUSP/Herder, 1967. v.2. p.13.
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2. A melancolia
And I miss youlike the deserts miss the rain
Tracey Thorn, Missing
2.1. Conceito de melancolia
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, comaquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, naverdade.Guimarães Rosa, A terceira margem do rio
2.1.1. Origens
A criação do conceito de melancolia é atribuída a Hipócrates, que a define,
em um aforismo, como um estado de tristeza e medo de longa duração121. Ele
se refere aos melancólicos afirmando que “seu estado mental é perturbado”122.
Essas formulações tiveram um desdobramento importante na obra de
Constantinus Africanus, autor árabe medieval estudado por Klibansky,
Panofsky e Saxl123 e Walter Benjamin124. No início de seu livro De melancholia ,
lê-se:
“Os acidentes que a partir dela [da melancolia] sucedem naalma parecem ser o medo e a tristeza. Ambos são péssimosporque confundem a alma.Com efeito, a definição de tristeza é a perda do muitointensamente amado.
121 Trata-se do Aforismo 23 do livro VI de seus Aforismos. “Se o medo e a tristeza duram muito tempo, talestado é próprio da melancolia”. Conforme PIGEAUD, Jackie. Présentation. op.cit. p.58. e CORDÁS,Táki Athanássios. Do mal-humorado ao mau humor. In: ____ et alii. Distimia. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1997. p.15.122 HIPÓCRATES, apud TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. Paris: PUF, 1979. p.24.123 KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.143-9.124 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.168-9.
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O medo é a suspeita de que algo ocasionará dano.”125
A noção de tristeza em Constantinus é desenvolvida como uma teoria da
perda. Melancólicos são, entre outros, os “que perderam seus filhos e amigos
mais queridos, ou algo precioso que não puderam restaurar”126. Como se
observa, o melancólico estaria numa espécie de ponto-chave tenso, a partir do
qual vê com sofrimento o passado, em razão das perdas, e se perturba com o
futuro, pelo medo de um possível dano.
A partir dessa base, Constantinus elabora uma série de reflexões de cunho
médico, para estabelecer relações de causa e efeito entre problemas físicos e
emocionais. O livro tem como propósito identificar as características essenciais
do comportamento melancólico, mas o autor relativiza sua própria
argumentação afirmando que qualquer melancolia é difícil de curar, e que nada
é pior do que uma mente perturbada127. De acordo com Constantinus, apoiado
em Rufus de Éfeso, “os acidentes melancólicos são incompreensíveis”128.
Tanto em Hipócrates como em Constantinus, a melancolia é apresentada
como uma doença129. Para o primeiro, a formação da melancolia, com a bile
negra, decorre de uma degradação do sangue130, de uma putrefação, que