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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck http://slidepdf.com/reader/full/georges-duby-a-idade-media-na-franca-de-hugo-capeto-a-joana-d-arck 1/51 ' ) .J ( , li , . . ~ .: . . ;] ' L ' (. Georges Duby A Idade _ Média na França (987-1460) De Hugo Capeta a Joana d Arc .. ol~  ~ OJ ? Tradução: C LÓ VI S MAR QU ES \. , I J I I 0/ 9 / ' .  r ~ · . ~ Revi s ão t éc ni ca e a pr es enta çã o: VÂNIA FRÓES Coo r de na do ra da Pó s-graduação em História da UFF Jorge Zah ar Editor Rio de J aneiro

Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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A Idade_M édia na F rança

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De Hugo Capeta a Joana d Arc

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CLÓVIS MARQUES \ .

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Revisão técnica e apresentação:

VÂNIA FRÓES

Coordenadora da Pós-graduação

em His tória da UFF

Jorge Zahar Editor

Rio de Janeiro

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Tradução de: Le Moyen Âge,

Bibliografia:

ISBN 85-7110-244-9

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: 1

Sumário

~,

I

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

7

Prefácio . . . , , , , , , , , , . . . . . . . . . . . . . . .

li

Primeira Parte

A Herança

I

o

Império ......................

21

1 1 .

O povo franco. . . .

· ..............

29

III.

Os príncipes. . . . . ·

..............

39

IV.

Tempo de distúrbios

· ..............

48

Segunda Parte

O Senhorio

V. ,. A aldeia   ......................

59

VI.

O castelo

......................

69

VII.

A Igreja .......................

100

VIII. O rei senhor. . , , ,. . . . . . . . . . . . . . . .

12 3

Terceira Parte

Os Germens da Nação e do Estado

IX.

O grande progresso . . . . . . . . . . . . . . .

15 7

X.

Luís VII . .. .. .. ..............

181

Titulo original:

Le MoyenÁge

De Hugues Capet

à

Jeanne d Arc (987-1460)

Tra~~0.1U1tori7..Qda da

primeira edição

francesa,

publi eada :em 198TpórlIachêft',,',

dêParis,

França,

na

série

 Histoire

de France .

.;j~

Copyr ightO 1987, Hache tt e

Copyright < D 1992 da edição em l íngua por tugues ,:

Jorge Zahar Editor LIda.

rua México 31 sobre lo ja

20031 Rio de Janei ro ,

RJ

Todos os dire itos reservados.

A

r eprodução não autor iz ada des ta publi ca ção, no todo

ou em par te , c onst itui v io la ção do copyr ight . (Le i 5 .988)

Edição para o Bra si l.

Editoraçã o el et rô ni ca: De lt a Li ne Cornpo si çõ es Uda.

Impre ss ão: Tavares e Trí st ão Ltda.

ISBN: 2-01-016606-x (ed. orig.)

ISBN: 85-7110-244-9

(JZE,RJ)

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CIP·Brasil. Catalogação-ua-fonte

Sindi ca to Naciona l dos Edi tores de Livros, RJ

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Duby, Georges ,.

D88i A I da de Mé di a n a F rança ( 987- 1460 ): d eRugo

Capeto a Joana d 'A rc/George s Duby; t ra dução, C ló-

vis Marques ; r evis ão técnica e apres enta ção, Vânia

Fróes. - Rio d e J aneiro: Jorge Zahar Ed., 1 992.

l. França - História - Idade Média, 987-

1460. I . Título.

I 92-0611 ~ ~ - =~:'~;924)

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160

a idade média na frança

c 12 i4, ele espaihou torres redondas por todas as suas possessões. São de-

zoito as que conhecemos, todas semelhantes e in spiradas no modelo da to rre do

Louvre - cuja qua lidade arqui te tõnica acaba de ser revelada pelas escavações que

lhe desvendaram o envasamento, int acto, mumif icado desde o século XVI pelo

enchimento do fosso. O preço de cada construção dessas variou entre mil e

duzentas e duas mil l ibras, o sufi ciente para pagar mil infantes durante um mês e

meio, doi s meses. Semelhante inves timento absorveu mui to mais do que o lucro

anual de todo o domínio real antes das grandes anexações. Simultaneamente,

e rguiam-se muralhas urbanas , primeiro em Par is ,já em 1190, depois em Sens,

Compiêgne, Melun ; é verdade, cabe assinalar, que nesses casos os encargos

recaíam sobre as burguesias.

No mesmo r itmo que o aparelho da defesa , aperfei çoou-se também, é c la ro ,

o do ataque. Para tentar abalar as muralhas e nelas abrir brechas, os pr íncipes

dispunham desapadores mais bem equipados, mais bem orientados;e de máquinas

de arrojar pedras, alçapões, capazes de arremessar, com violência sempre maior,

projé te is s empre mais pesados . A mecânica estabeleceu-se solidamente ent re as

técnicas militares , cabendo notar que mais uma vez, aqu i, o s homens da guerra

tiv er am o que ap render com os da Igreja. Mas foi no ter reno rel ig ioso, pela glóri a

de Deus, que as formas de talhar e a justa r as pedras, de t raça r um plano, de medir

as pressões, obt iveram seus primeiros progres sos: todo o equi líbrio do coro de

Saint-Denis , consagrado em 1140, repousa na aplicação racional dos princípios da

geometria e da ari tmética, cujo estudo ia bastante avançado nas escolas catedrais

viz inhas. C lassi fi cando os caminhos do saber , Hugo de Sa int- Vic tor, em Paris,

julgou de bom alvitre adicionar às artes liberais as artes mecânicas . A eficácia

dos pesados engenhos que eram arrastados aos so lavancos atr ás dos bandos de

cavaleiros derivava diretamente da experiência dos construtores forçados a impro-

visa r guindastes para e rguer sempre mais a lto as abóbadas das naves e absides.

Entretanto, para conceber as máquinas de assédio, para manejá-Ias , para calcular

os ângulos de arremesso, e ram necessár ios espec ial is ta s, mestres . E eles não

eram encontrados na cavalaria, mas na população das cidades em crescimento, nas

qua is o â ie liê avizinhava o claustro-

Do povo, mas jâ agora de seus escalões mais baixos, saiam outros técnicos,

os do massacre, artesãos necessários da guerra úti l. Château-Gai ll ard e ra impene-

trável. Mas foi tomado. Não pelo choque de cargas de cavalar ia , mas pela astúcia

desses mercenários pagos por Fil ipe Augusto, e que haviam penetrado como ratos

pelo fos so das la tr inas . O bruta l surgimento de novas e imora is manei ras de atacar

o adversário escandalizou o século XI I - sobr etudo com a difusão de uma arma

ofensiva cuja uti lização exclui a coragem, pois age à dis tância c atinge insidiosa-

mente, como a epidemia; sem que a vítima possa prever o golpe, resistir ao

agressor, nem mesmo identificá-Ia ou percebê-lo. Também aqui intervinha a

mecânica: a balestra é um arco cujo tiro é ajustado por um conjunto de engrena-

gens, tendo sua força e seu alcance multiplicados; espécie de balista leve e

manuseável que não ar remessa pedras, mas dardos, e tão vigorosa mente que eles

furam as couraças mais espessas. A balestra é capaz de matar o s cavaleiros e os

-mais bem protegidos, os príncipes. Ricar do Coração de Leão, rei da Ing laterra, foi

o grande progresso

16t

ferido e mais tarde abatido por uma saraivada de balestra. A autoridade eclesiástica

tentou proibir o uso dessa máquina mor tí fe ra assim que apareceu. Organizando a

cruzada , Urbano 11proibiu que fos se uti li zada contra c ri st ãos, mas em vão. Em

1139, o concílio geral de Latrão lançou o anátema, igualmente sem sucesso, contra

os que uti lizavam balestreiros. Depois de 1150, tais [nstmrnentos disseminaram-se

por toda parte, ass im como os terríveis especialistas em seu manejo, operários que

vend iam a quem melhor pagasse seus talentos na arte de. aba ter as monta ri as de

longe ede romper as lorigas.

Operá rios da guer ra moderna , es ses cottereaux ou brabant inos - assim

chamados porque. vinham dos condados pobres e selvagens; das fronteir as de

Pland res, da Provença, das mon tanhas dos Pireneus - também trabalhavam em

equipe, arregirr ientados por um patrão que t ra tava diret amente com os emprega-

dores. A route, bando de combatentes a pé, armados de facas, lanças, croques e

balestras, assemelhava-se à mil íc ia formada pelos homens das comunas, quando

era lançado o gri to de aler ta ; assemelhava-se mais ainda aos comboios armados

a té os dentes formados pelos mercadores na es tação das fei ras, unidos por jura-

mento para as aventuras do comércio de longo curso . Ela e ra seguida por carroças,

e por mulheres. E , na rea lidade, não se dispersava após a ação. Formação perma-

nente, contínuava a vagar , devastadora, v ivendo naregião quando não mais est ava

a soldo. Recém-chegada ao tea tro dos combates e destinada a não mais deixá-lo,

e la semeava o ter ror. Conspurcados pelo sangue que derramavam, pelo dinheiro

que ganhavam, pela luxúr ia de que eram considerados mais adoradores que os

outros, sacrí legos, bebendo em cálices pilhados em lugares santos, esses soldados,

desencaminhados recrutados na nata da marginalidade, da miséria e da bastardia,

acompanhados dos c lé rigos a li ci ados porque tampouco e les podiam dispensar as

preces, pareciam uma dessas pestes lançadas por Deus irado, e das quais era

preciso a todo custo l ivrar aTerra. Em 1179, um novo concílio, em Latrão, exortava

a seu extermínio, confundidos que eram com OS heréticos. Mas como seria

poss ível , quando se t inha os meios para pagar sem~·serviços, dispensar os bandos

errantes, se era preci so defender uma pátria ? Pois eles eram indispensáveis a

quem precisava fazer frente ao inimigo, tomar castelos ou mesmo contrabalançar

a excessiva p resença da cavalaria. Em 1163, Luís VII e Frederico Barba-Ruiva

reuniram-se na f ronte ira de seu reino para debater a paz no mundo; compromete-

ram-se a não mais empregar mercenários entre Par is, o Reno e os Alpes. Mas o

mu i piedoso rei da França não prometeu privar -se desses auxiliares a oeste, junto

ao perigo.Cada vez mais, por s inal , os prínc ipes utilizavam de outras formas a força

da gente do povo. No fim do século, certos Msargentos - cuja coragem era

altamente celebrada - serviam montados, às vezes equipados com uma balestra.

Como então distinguir, não fosse por esse detalhe, tais cavaleiros de baixa extração

dos que pretendiam, em virtude do sangue que lhes corria nas veias, reservar-se o

direito e a honra de combater a cavalo? Foi precisamente para afirmar essa

distinção que se desenvolveu o ritual de vestir a armadura. A abertura aos setores

populares da prática das armas, em suas formas mais eficazes, rompia o privi légio

maior da cavalaria, levando-a a fechar-se ainda mais em seus títulos e no conjunto

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a i dade média na f ranç a

o desenvolvimento da circulação monetár ia aprofunda cada vez mais o fosso _

já bastante pronunciado, aos olhos de Galbertde Bruges - que separa os campo-

neses dos burgueses. A partir de 1180, ele isola duas sociedades completamente

d iferentes , aumentando em cada uma delas o poder dos que ganham sobre os que

perdem. No campo, a necessidade de conseguir dinheiro para pagar as taxas e

multas, comprar sementes, renovar o arr endamento do gado , comprar orações e

comemorar condignamente às festas, segundo os ritos impostos, obriga os

menos hábeis e os sem sorte a pedir emprestado ao padre , ao guarda florestal,

a vizinhos que sabem produzir melhor e t ra tar com os cor re to res.

É

assim que

se dissemina o endividamento, que deixa a maior parte do campesinato na

dependência cada vez mais acentuada de uma pequena ari stocracia rús tica . Uma

defasagem semelhante mas muito maior entre r icos e pobres vai-se manifestar,

no século XII, nas aglomerações urbanas onde ganha velocidade OJl].()v- mento

da roda da for tuna.

Uma das novidades mais perturbadoras dessa época foi o surgimento da

indigência nos arredores das cidades, entre os migrantes.

É

verdade que a expe-

riência da miséria não era nova. Mas a desgraça chegava em ondas, em crises,

t razida pela fome, pelo

mal des ardents,

epidemia regularmente registrada nas

crônicas da época. Eram f lagelos passageiros que convidavam ã peni tência . A

essas mortalidades episódicas era fácil que se resignasse aquela gente acostumada

não só

à

incrível crueldade dos guerreiros, ã atrocidade dos suplícios, mas a ver

morrerem um quarto das crianças antes dechegarem aos cinco anos, e outro quarto

antes da puberdade. Quanto ao desequ ihbrio ent re os despossu ídos e os bem-pro-

vidos , era então atenuado pela so lidariedade fami liar e pelo próprio senhorio,

naturalmente fornecedor do alimento, obrigado.a abrir os celeiros para aliviar a

privação. Os ricos eram forçados à caridade, praticada ritualmente, maquinalmen-

te. No decorrer do século XII , tais gestos começam amudar. Aos deCarIos, o Bom,

descritos por Galbert, opõem-se, na geração seguinte, os do conde deChampagne,

que já não se conten ta com ges tos s imbólicos ; e le manda vender, para distr ibuir o

prodUtO entre os miseráveis, a ourivesar ia que ornamentava sua mesa, envia pelas

ruas e praças servidores especializados, ~esmoleiros encarregados de se informar

das necessidades mais' prementes e distr ibuir recursos. É de então que data a

fundação, em todas as cidades, <jas santas casas, dos hospícios em que uma

confraria dedica-se ao 'serviço dos Indigentes.

Esses ~onfrades são homens ricos, e se envergonham de sua excessiva

r iqueza, tendo ouvido o Evangelho e desejando l ivrar-se do pecado do dinhei ro.

Na hierarquia dos vícios, o orgulho vem em primeiro lugar , mas a avareza não fica

muito atrás. Desde o fim doséculo XI, a busca de uma pobreza verdadeira lançara

os clérigos mais inquietos na vanguarda da espiritualidade, rumo aos eremitérios

em plena floresta e àsaven turas da pregação itinerante; suscitara igualmente, em

reação ao fausto de Cluny, a contestação da ordem de Cister: sc o conde de

Champagne despo jou-se de seu luxo, foi porque o comoveram as exortações de

seu amigo Bernardo de Clairvaux. Depois de 1170,afinna-se e se propaga no

patric iado urbano a convicção de que, pa ra entrar no Reino do Céu, é preciso

renunciar aos bens deste mundo, vive r como pobre entre os pobres. Foi ela que

o grande progresso

165

 

levou o rico mercador lionês Pedro Valdês a vender tudo que possuía para sair em

pregação, exortando em nome de Cr isto a que segu issem seu exemplo. Um novo

poder, de ordem espiritual, instala-se assim no meio do povo, opoder dos  homens

bons que optaram por viver como viviam os discípulos deJesus. Eles são ouvidos,

mas os padres os denunciam, po is o monopólio da prédica Ihes pertence; osque o

usurpam são, como os brabantinos, heréticos. Logo os pobres de Lyon ser iam

condenados, perseguidos. Ser ia necessário que se manifestasse, vinte anos mais

tarde, a grandeza

d'alma

do papa Inocência I1 I, ant igo estudante em Paris e auto r

de um ensaio sobre a pobreza voluntária, para que fossem integrados à ortodoxia

Domingos, Francisco de Assis e os fervorosos discípulos que os seguiam. É bem

verdade que a heresia, a verdadeira, vinha ganhando terreno com rapidez. A

heresia minava o poder dos prelados, acusando-os de sub tra ír em o dinheiro dos

pobres. Sua ressurgência e sua rápida e incoercível expansão procediam dire ta-

mente da penetração do-ínstrumento-menetãrío e da perturbação que ele propagava

nas consciências.

A maioria dos homens que lidavam com o dinheiro nas c idades e jovens

aglomerações quÇ,se avolumavam nas encruzilhadas do comércio - cambistas,

negociantes , possessores do solo urbano que especulavam com loteamentos ,

empregadores que se prevaleciam da fraqueza dos imigrantes em busca do ganha

pilo - dedicavam apenas uma pequena parte a obras de car idade. O resto, tratavam

de acumular, e os príncipes f avoreciam seu enr iquecimento, con tando com eles

. para os grandes sacos demoedas, aspesadas part idas de d inheiro que de uma hora

para outra podiam ser-lhes indispensáveis. A eles é que concediam as franquias ,

confiando-Ihes a tarefa de coletar o dinheirodas taxas nas camadas inferiores da,

popu lação urbana. Cem anos depo is , Fil ipe de Beaumanoi r observaria que os

ricos de têm a administração dos burgos, e assim descarregam as despesas na

comunidade dos pobres . Era já o que acontecia no fim doséculo XII . Pressionados'

contra a barreira do mundo dos privilegiados, no qual não se usa as mãos para

trabalhar , esses plebeus r iquíssimos que são alvo d~zombaria nas trovas tentavam

penetrar nele, Imi tavam canhest ramente as maneiras de viver dos homens de boa

cepa, os bem-nascidos, os fidalgos .

É

verdade que também a antiga aristocracia

militar extraía lucros da expansão agrícola. Não através dos foros habituais, cuja

taxa mant inha-se inalter ada, e ainda por cima era paga agora em dinhei ros, que,

circulando cada vez mais depressa, perdiam seu valor . Em compensação, rendiam

cada vez mais ,as antecipações apl icadas di re tamente sobre a produção rural , a

exploração dos moinhos e fornos , ass im como a coleta de uma parte da produção

dos vinhedos recém-plantados, das novas lavouras, das crias anuais do rebanho.

As transações com esse vinho, o trigo e os tosôes assim obtidos não eram feitas

pelos próprios senhores, que para isso se socorriam habitualmente de intermediá-

rios, os colonos. Estes entregavam-Ihes nas mãos muito mais dinheiro que haviam

ganho seus pais, muito mais do que jamais haviam visto seus avós.

E, no entanto, ainda era muito pouco. Era preciso sempre mais para

conseguir armas modernas, substituir os cavalos de combate extenuados ou

perd idos, part ir em cruzada, pagar os r esgates , os atrasados das rendas pias ou

simplesmente para mostrar-se bem paramcntado nas cortes onde a cavalaria

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166

a i da de mé di a n a frança

ostentava todo O seu luxo. Ela vivia, portanto; em funçãodo dinheiro. Um dos

indícios da penúria é o aparecimento nos documentos, ao se aproximar o

século XII, e logo a súbita difusão de duas palavras equivalentes:  escudeiro

e donzel . Elas designavam o aprendiz que ainda não recebera suas armas.

Eram a partir de então os títulos usados, para garantir a qualidade de seu

sangue, pelos filhos homens dos cavaleiros; cada vez ma is numerosos, ele s

envelheciam à espera de sua oportunidade,' pois os pa is, sem dinheiro, não

podiam metê-Ios solenemente em armadura.

Acuados por compromissos, também os fidalgos, como os camponeses sem

sorte, se endividavam. E só com dif iculdade encontravam quem lhes emprestasse

ent re os pares. Precisavam assim tomar emprést imo aos burgueses que despreza-

vam; ou, p ior a inda, a judeus que não sedeixavam tolher pelos entraves impostos,

com muita dificuldade, aos cristãos, e praticavam a usura, sendo por isso

od iados. Sem mais ter para onde se vo ltar, os cavaleiros vendiam oque podiam.

Em prime iro lugar, sua homenagem. Contra pagamento em dinheiro, reintegra-

vam ao feudo, palmo a palmo, os bens que possuíam em alódio. Assim foi que,

a partir de 1180, feudalizou-se rapidamente o patrimônio cavaleiresco. Ou

então, 'buscavam um patrão que os 7conservasse , que os tomasse a penhor,

concedendo-lhes 'um feudo de bolsa , uma renda em dinhei ro que deixaria de

ser paga uina vez que o senhor não mais lhes merecesse a fidelidade. Entravam,

ass iin, para o serviço de out ros . Al ienavam-se. Desse modo, a difusão desse

valor fluido que é a moeda fez com que se aprisionassem numa rede cada vez

mais cer rada de obrigações aqueles homens que cem anos antes representavam

o que havia de mais tumul tuadamente independente na cavalaria. Essa difusão

atenuava de out ra maneira a turbulência rnilitar. A herança predial perd ia sua

importância. Era menor a preocupação de preservar-lhe a coesão, proibindo à

maioria dos rapazes de tomarem esposa legítima. Os filhos mais moços que não

entravam para a Igreja podiam fundar sua própria casa. As linhagens se

dispersaram, enraizando-se agora em bases terr enas mais rest ri tas, o que per-

mitiu ao nodcrnr incinesco controlã- las.melhor, E, sohr~uJÔo, foi reabsorvida

a juventude , ~ massa de guerr ei ros sol te iros da qual emanavam as lufadas

mais fo rtes de desordem. É assim que se explica em boa parte a paz que se

instala no interior dos Estados no século XIII.

Esses Estados beneficiaram-Se ainda de uma reacomodação dospoderes

no interior da classe dominante, o que ampliou a defa sagem entre os graus de

sua hierarquia. Um inventário da ajuda militar 'com que Filipe Augusto

podia contar, elaborado entre 1203 e 1206 pelos escreventes de sua chance-

laria, dividia os guerreiros em quatro camadas: a dos duques ecoudes, a dos

barões (título que, disseminando-se no século XII, designa homens tão

poderosos quanto muitos condes, mas que não herdaram as grandes honras

carolíngias), a dos castelãos e a dos vavasseu rs - ou seja, todo o resto:

cavaleiros, escudeiros, donzé is. Na realidade, a distância principal não se

*

Vassal os d e um vas sal o. (N.T.)

o g rande p rogresso 167

estabelecia mais entre o quarto e o terceiro escalões, como antes, mas entre

o terceiro e o segundo. Desmantelara-se a castelania.

Em 1200, as velhas fortalezas perderam seu valor estratégico. Seu senhor é incapaz

de recusar-lhe o ace sso ao duque, ao conde, ao barão. Por outro lado, o pode r de

comandar e punir a população disseminada entre a torre e todos os terrenos

fragmentou-se, sendo agora exercido naquele mesmo contexto cujo for talecimento

no sécu lo XII já demons tramos: a paróquia. Em algumas paróquias , esse poder

permanece nas mãos do senhor do castelo. Nas demais, é exercido por um homem

que, mesmo sendo cavale iro, também se int itula senhor, e cuja casa , cercada de

fossos, tende a confundir-se, face aos meios modernos de ataque, com os antigos

castelos. Estes esvaziaram-se das equipes domésticas de cavalar ia que aterror iza-

vam o campesinato pouco depois do ano mil. Os chefes dessas for talezas ainda

congregam sob sua bandeira os cavaleiros do distr ito, recebendo sua homenagem,

mas não ganham muito mais dinheiro que eles, nem Ihes ficam rnuto a dever em

matéria deendividamento. O~lIvanço das técnicas mi li tares e a d ifusão da moeda

contribuíram para nivelá-I os aos vavasseurs.

Os documentos disponíveis são demasiado raros e lacôn icos para demonstrar

c laramente como as convocações para o serv iço mil itar que anteriormente eram

proclamadas da torr e acabavam por se dispersar na segunda metade do século XII .

Vá rios fatores entraram em ação. O direito feudal tomou-se suficientemente

rigoroso para acabar com a resistência dos senhores a amputar a senhoria: eles

concordaram afinal em cedê-Ia em parte, soh forma de feudos, aos cavale iros do

castelo que exigiam alguma colocação, a seus filhos caçulas, que queriam casar- -

se. Contribuiu também,e de maneira decis iva , o r et ra imento da comunidade de

habitantes. Um retraimento a que afinal se adaptou a distr ibuição dos poderes. No

momento em que a Igreja - pelas disposições tomadas em1215 no quarto concílio

de Latrão , para melhor ext irpar os r esqu íc ios do ;paganismo e rceneaminhar os

desvios heréticos - fundava sobre a célula paroquial fortalccida o apare lho de

propaganda e vigilância, base de sua dominação dasalmas, pareceu normal que se

organizasse a justiça, a polícia e a manutenção da ordem c ivil no contexto da

paróquia. Coube aosenhor da aldeia cobrar derramas, receber multas, assegurar

a guarda dos caminhos, das colheitas e pastagens, impor o respeito aos cos tu -

mes, fixar o calendário do trabalho agrícola . Na base do sistema de controle,

sua função principal foi contribuir para a inserção da atividade rural na

economia de mercado. Acima dele, a função propriamente política cabia aos

barões, condes e duques, cujo papel era pó r f im às vinganças par ticulares

- no pov(), pela coerção, a aplicação severa de castigos exemplares; na

cavala ria, pela arbitragem.

Os barões eram efetivamente os senhores da paz, e isso num vasto território,

pois se haviam mostrado mais prudentes na gestão das sucessões. Tomemos o caso

dos Coucy, cujo baronato se edificara nos interstícios de antigos principados.

Part indo para a Terra San ta em 1190 , Raul I t ra ta de preservar-lhe a un idade: em

seu testamento, lega ao primogénito as

tr ês

fortalezas que lhe constituem a

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168

a idade média na frança

essência; os dois filhos mais moços também recebem sua parte, que se limitava a

alguns senhorios de aldeia, a serem recebidos do irmão em feudo lígio; se

morrerem sem deixar filhos, elas retomarão ao primogênito. Tais disposições eram

a regra na camada superior da aristocracia, e impediam que a árvore genealógica

se ramificasse. Seu tronco permanecia ereto, mas podia cair de um só golpe. A

tendência, nesse meio, não era para a dissociação, a fragmentação dos patrimônios,

mas para sua atração recíproca.

Na extensa área alcançada por seu poder repressivo, os barões governavam

o fluxo do povoamento, recebiam os ~hóspedes , autor izavam o arroteamento,

criavam vilas novas. Foram eles os primeiros beneficiátiosdo crescimento derno-

gráfico. Mas a atividade de arroteamento lhes interessava menos que as povoações

e seus mercados, as estradas, os rios e os grandes pedágios. DaI é que vinha, de

fa to, a moeda que permitia comprar a homenagem e os serviços dos pequenos

senhores e fidalgotes provincianos, pagar o pessoaLn.ecessário ã-afirmação-de sua

soberania, os escreventes, os sargentos e marechais cujas patrulhas regulares e

rápidas in tervenções nos núcleos de desordem garant iam a segurança públ ica.

Graças ao dinheiro, tomara-se possível estender a proteção a centenas de

paróquias . Mas graças, também, aO,progresso das comunicações. As extensões

solitárias que lhes serviam de obstáculo, maciços florestais e pântanos, já

estavam esquadrinhados pela colonização. A const rução de pontes e aterros , o

uso de cavalos melhore s e ma is bem atrelados, a disseminação de ferrarias e

postos de remonta ttansformaram radicalmente as técnicas de circulação e

t ransporte ao longo do século

XII,

sobretudo no Nor te da França.

À

morte de

Fil ipe Augusio, a lcançavam-se l imites que não ser iam superados até o sécu lo

XVIII, em matéria de velocidade, ou até o início do século XX, em matéria de

tonelagem. ,

De tal modo que em 1200 o baronato e o condado menor já se haviam tomado

por demais acanhados. Em meio à generalizada abe rtura dos caminhos, a paz

pública e o esforço de expansão dependiam de um poderio mais amplamente

estabelecido. O dos príncipes. Cabia a eles, antes de mak.nada,-contro ar as forças

naturais. 'Cada um dos cantões do vale do Loire não ter ia podido por sisó proteger

seus terrenos das cheias dorio: era preciso que uma autor idade superior, a do conde

de Anjou, coordenasse a cons trução de d iques; e fo i sob a or ientação do conde de

Flandres que se empreendeu a reqmquista colet iva dos espaços invadidos pelo

mar. Só os príncipes podiam proteger os mercadores est rangeiros que levavam

suas cargas às grandes f ei ras. Foi g rande a desorien tação desses negociantes

quando souberam em Flandres, em 1127, que já não havia um conde em condições

de tomá-Ios sob sua guarda. Só os príncipes eram capazes de remediar, nas

extensões cada vez maiores cobertas pelos itinerários comerciais, a desorganiza-

ção das medidas, e particularmente' dessa medida primordial que é a moeda. Numa

época de debi lidade das trocas, quando as peças de baixo quilate serviam, sobre-

tudo, para o cerimonial do poder, para os gestos simbólicos de generosidade pelos

quais sé manifestava a autoridade, d isseminaram-se _ ass im como os lugares do

pode r - os ateliês aonde se levava a prata para cunhar alguns dinheiros quando

se precisava deles. Timbrados com uma cruz, como os asi los colocados sob a paz

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o grande progresso

169

de Deus, esses objetos pertenciam ao domínio do sagrado, pois sustentavam a

ordem das coisas. Mas o valor das peças era diversificado ao infinito por essa

dispersão, pela arbi tr ariedade dos chefes de que dependia a moedagem, e ainda

pelas aparas, a erosão que mal começava a circulação ia adelgaçando ainda

essas peças já miúdas. O papel do cambista, instalado em seu banco perto do

mercado , cons is tia em aoval iá-Ias, pesá-Ias, calcu lar equ ivalências. Do bom

príncipe, o que o comércio reanimado esperava era que proporcionasse espécies

confiáveis, estáveis e aceitas ao longo dos grandes i tinerários mercantes . Como

circulava sempre mais depressa e mais longe, a moeda propiciava o fortaleci-

mento das vastas formações políticas. Foi ela o mais forte sustentáculo dessa

tendência. .

E ,de fato, os príncipes enchiam-se delas em cada uma das etapas emque era

mais alto seu valor. Para começar, na própria fon te , t ra tando de emi ti r a melhor

moeda, aque se imporia e seria disputada, eda qual jase apoderavam em boa parte

no própr io local da cunhagem. Em seguida, ins ta lando preceptores nos pontos

obrigatórios de confluência , onde se reuniam os filetes dispersos do tráfico.

'Quando Filipe Augusto apoderou-se em 1191-1192 do Artois, em nome de seu

filho, começou por capturar as for talezas, mas logo se atiraria sobre o grande posto

de pedágio de Bapaume, que controlava, na saída da floresta de Arrouaise, a

intensa circulação ent re Flandres e a bacia pari siense; tratou, em seguida, de

ajustar-lhe as tar ifas. Os príncipes controlavam as cidades mais for tes, e as feiras

sob sua tutela atr aíam mult idões de negociantes . Se no século XII os senhores

de Montpell ier ampliaram irr esi st ivelmente seu poderio, foi por ter em trans-

formado o porto de Laues, perto da simples manse onde o conde de Mauguio

instalar a seu ances tra l, numa das principais encruzilhadas do comércio medi -

terrâneo. Os negociantes vindos de longe, os lombardos , os judeus que

emprestavam, todos ameaçados porque se sabia que o dinheiro se acumulava

em sua alforja, nada podiam recusar ao pr íncipe, seu guard ião. Bastava suspei-

tarem de que ele precisava desembolsa r grandes somas para que tomassem a

----TIrlciativa de oferecê-Ias, entregando-as ao mais leve 'gesto, a qualquer prenúncio

depogrom.

Desse modo, o numerár io, que escasseava em toda parte, afluía para as casas

principescas. E não só em dinheiros e soldos , mas em marcos de prata e em l ib ras

Ficavam assim essas casas em posição privilegiada, acima dos cavaleiros, caste-

lãos, condes e dos próprios duques , todos - comojá observava por vol ta de 1130

o abade de Cluny, Pedro, o Venerável; cheio de amargura - a tr aídos pelo-cheiro

. do dinheiro . Ávidos, logo, dóceis. Em 1179, escrevia Richard Fils Neal, à frente

do tesouro e encar regado de cont ro lar o numerário r ecolhido por Henrique Plan-

tageneta: O dinheiro é necessário não só na guerra como na paz. Na paz, serve

para acar idade dos príncipes [observemos que a moral obrigava em primeiro lugar

a sacrificá-Io, distribuindo-o aos clérigos e monges cujas preces atraíam para o

Estado os favores divinos, utilizando-o para ornamentar os santuár ios, construir

as catedrais : num dos tímpanos de Notre-Dame de Paris, a figura do rei Luís VII

tem na mão esta igre ja que, com suas doações, a judou a reconst rui r para a g lór ia

de Deus , e , portanto, para o lucro e a prosperidade imediatos de seu povo]. Na paz,

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a i da de média na frança

o dinheiro

é

gasto para fortificar os  Castelos, para pagar os soldados c em muitas

outras ocasiões que dependem da natureza das pessoas pagas para a defesa do

reino. Richard fala com clareza. O aumento da circulação monetária permitiu que

os príncipes, contratando companhias de mercenários, erguendo fortalezas inex-

pugnáveis, dominassem os barões, os pares de seu reino , tornando-se senhores

do jogo político.

Invoco aqui o testemunho não mais de um cronista, mas de um romancista, no

sentido exato da palavra , a lguém que esc revia em romance, 1 1 língua literária das

cortes: trata-se de Wace, funcionãrio lei tor de Henrique Plantageneta, rei da

Inglaterr a, mas antes de tudo pr íncipe no r eino da França, conde de Anjou, duque

dos no rmandos e, em nome de sua mulher, Leonor, duque da Aquitânia. O Roman

de Rou - ou seja, de Rollon - conta a his tória dos primeiros chefes normandos,

baseando-se especialmente na nar ra tiva 'redigida cem anos antes pelo monge

Guilherme de Jumiêges. Wace traduz, mas também renova e acrescenta anedotas.

De duas delas, valho-me aqui para extrair uma imagem exemplar do príncipe.

Numa delas, vemos Ricardo I trancado há alguns d ias na torre de Rouen. Que

estaria fazendo ali? Em nome de que tatefa indispensáve l s e estaria assim privando

por tanto tempo dos prazeres do ar l ivre , das emboscadas e da caça? Dedicava-se,

com seus prebostes, à contagem de seus pagamentos e derramas . Mais adiante,

surge o conde Rober to , cognominado o Magní fi co . Vemo-lo a receber presentes

e também cobrando taxas, mais preci samente o relevo impos to aos novos feuda-

tários (na época em que Wace escreve, este direito senhorial a que os f1amengos

em 1128 ainda res ist iam tanto proporc iona aogrande príncipe enormes somas de

dinheiro: logo F ilipe Augus to somar ia c inco mil marcos, por Flandres , e João sem

Terra, pOI seus feudos, v inte mil). De modo que sc imagina Roberto, na narrativa,

recebendo o que na realidade Henrique Plantageneta recebia. Ele retém comidas

e bebidas, para alimentar e alegrar com abundância sua casa e seus hóspedes.

Como bom cavaleiro, nada guarda do resto. Trata logo dedi st ribuir o que dá prazer

ã vida, cavalos, vasos preciosos, amoeda --'-e t ambém asmulheres, mas disso não

se dá conta aqui; as viúvas, asórfãs, as herdei ras r icas e ram, no entanto, o presente

que mais desejavam, dapart e do rei Henrique, aqueles que lhehaviam servido com

lealdade; e ram o presente que ele prometia, para ser ainda mais bem servido, e que

acabava por p roporcionar, distribuindo-as judiciosamente. Eis a moral dessa

historinha. A moeda que recebe de todas as par tes e r incões, o príncipe não deve

guardá-Ia em seus cofres, mas distribuí-Ia: ela irriga o corpo do Estado,vivifica-o,

alimentando o amor dos súditos. Exatamente como a virtude da caritas, da

amizade, da doação de s i mesmo, da benevolência recíproca, o dinheiro, circulan-

do, garante a coesão da ordem social.

Wace descreve três doações do conde. Uma doação em dinheiro, para

começar, ao cavaleiro que tem ~trás de s i, no momento em que avança em direção

ao altar para dar uma esmola. Este cavaleiro nada tem, despossuído, como são

em geral os cavaleiros. Apodera-se sem hesitação do dinheiro que recebe, ofere-

cendo-o  li Deus. O segundo presente vai para o clérigo: um belo objeto de

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ourivesaria, tão precioso' que o presenteado morre de alegria - sufocado, na

realidade, por excesso de cobiça. Foi punido: como ao cavaleiro, não convém ao

homem da Igreja apegar-se às riquezas do mundo. Enfim, Roberto dá ao plebeu.

Não se trata, na realidade, de qualquer um, mas de um mestre, especialista na arte

de forjar o metal, de fabricar bons facões. Nesse espetáculo alegórico, ele repre-

. senta os armeiros que fornecem ao príncipe os instrumentos de sua superioridade

militar. Este homem depoucas posses, aldeão rústico, é o único dos três que guarda

consigo o presente. E,de fato, o poder o autoriza a enriquecer, para taxá-lo. O

ensinamento do Roman de Rou é político. Os três personagens que apresenta,

hierarquicamente dispostos, encarnam as três categorias sociais que constituem a

corte do príncipe, sustentáculo do Estado.

Na mesma época, João de Salisbury conclui Policraticus, tratado erudito

de exposição em latim da primeiríssima reflexão sobre o poder civil. João

pertence

à

Igreja. Por enquanto, no en tanto, serve a este poder na Inglaterra,

junto ao arcebispo Tomás Becket , chanceler, e mais uma vez sob a proteção de

Henrique Plantageneta, que se apóia, na Normandia, na organização adminis-

trativa mais aperfeiçoada possível. João estudou em Paris, e acabará bispo de

Chartres. No momento,questiona-se·sobre o Estado. Descreve-o como um

corpo do qual os guerreiros são as mãos, os camponeses, os pés, e o príncipe,

a cabeça. No co ração, agitado, palpitando aos solavancos e do qual vem a

força, o sangue (ele não diz, mas o sangue é o d inheiro), o autor situa o

 senado , a cor te.

João de Salisbury enxergou longe. No Estado, a co rte constituía o órgão

central. Para ela convergiam as artérias que veiculavam os dinheiros, para ela

precipitavam-se os homens novos que se haviam elevado graças ao crescimento

e que procuravam elevar-se ainda mais - os ganhadores  em suma. Neste

espaço fechado, tão afastado do populacho quanto ascasas fortes dos fidalgotes

mai s insignificantes, a sociedade cortês não era homogênea, e o príncipe, chefe

dessa casa, cuidava para que não se tornasse, homogênea, justamente para

preserv.ar a.ordem de que estava encarregado; cuidava para que, em sua corte,

como na de Deus, no Paraíso, as hierarquias permanecessem bem marcadas,

alimentando a rivalidade entre os diversos  estados . Como demonstra a

narrativa de Waee, cada um desses estados tinha sua moral. Eram ordens , em

número de três;

No nível mais baixo estão os homens de negócio que ganham dinheiro,

aqueles que;;André, capelão de F ilipe Augusto, denomina -plebeus . São novos-

ricos, rudes e incultos, desprezados: são os mais úteis ao poder, os mais

perigosos.. os que sobem mais depressa, e os outros advertem o senhor contra

esses maus conselheiros, a q ue não deve dar ouvidos. Ele os ouve, mas se exime

de reprimir o desprezo deque são objeto. Usa-os para melhor controlá-Ios. Face

a esses ricos, a inveja mais forte vem naturalmente dos homens devorados pelo

desejo do dinheiro. Estes ganharam nas armas. O príncipe testou sua coragem

nos torneios que organiza. Sob seu olhar, eles enfrentam na corte outros

aventureiros, que também ganharam, mas na escola: são os escreventes. Tão

úteis

quanto os financistas. Pois o príncipe necessita de gente capaz de elaborar

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a idade média na frança

as sentenças, cuidar-do s reg istros, avaliar a qualquer momento os homens que é

preciso empregar. Agentes de uma última mudança, pela qual se fortalecem as

est ru turas do Estado, os escribas permeiam de maior rigor intelectual o exercício

do poder.

A Igreja era o conservatório de um sistema de gove rno e administração

baseado na escrita; e a reforma da insti tuição eclesiást ica repousara na restauração

desse sis tema, numa volta a formas antigas corrompidas pela usura da his tória -.:.

num Renascimento. Este Renascimento desabrocha no século XII, notadamente

nas práticas judiciárias. Cotejando textos, tratando de resolver suas contradições

pelo método dito escolástico - pois foi forjado nas escolas episcopais, pela

 distinção , o questíonamento , o jogo de argumentos pró e contra -, os

reformadores haviam edificado rac iona lmente um monumento jur íd ico, o direi to

çanônico, ao qual se recorria para julgar os homens da Igreja, mas também os

leigos, a propósi to do que dizia respeito ao sagrado em seucomportametuo;,e c-ste

campo tendia a se ampliar'descomedidamente, pois, de acordo com os clérigos, o

casamento e toda sexualidade, assim como os juramentos (ese jurava a propósito

de tudo) estão submet idos à le i d ivina.

Onipresente, a j urisdição eclesiástica amp liava a pr ãtica da inquisitio, da

investigação racionalmente conduzida e desembocando num relatór io escrito.

Ela substituía as incertezas dos costumes o rais pelo rigo r de uma lei escrita, os

depoimentos pelas provas escri tas. Par a p rovar a culpa das esposas , permanen-

temente acusadas, sempre suspeitas de adultério, Yves, bispo de Chartres,

eminente canonis ta, exortava já no fim dos écu lo XI a que não mais se aplicasse

a ordália do ferro em brasa, rec orr endo-se em vez dis so a depoimentos regis-

trados por e scr ito . Essas fo rmas de julgar aperfeiçoaram-se ao mesmo tempo

em que melhorava o recrutamento do clero catedral e era reforçado o poder de

controle conferido aos bispos para a manutenção da paz de Deus. Cônegos

especializaram-se na administração da justiça.de cr istandade . Assim, no

decorrer do século XII, organizaram-se pouco a pouco nas dioceses os

tr ibunai s de ofi ci al idade. O concílio de Latrão de 1215 determinou que

fossem registradas suas sentenças. No mesmo sentido, insti tuíram-se proce-

dimentos de recurso.

A Igreja propunha o modelo, um aparelho judiciário art iculado, rigoroso,

eficiente. Os leigos, inclusive os <ijle detinham o mais f orte poder tempo ral (à

exceção do rei, que, pela sagração, pertencia na realidade à ordem episcopal , e dos

primeiríssimos príncipes, que se pretendiam iguais a ele, como

o

duque de

Aquitânia ), e ram i1e trados. Para eles, os pergaminhos que lhes punham sob os

olhos, cobertos de sinais exprimindo uma linguagem que não compreendiam, e ram

objetos quase mágicos - e que por isso mesmo inspiravam-Ihes respeito. Por esse

motivo é que o recurso à escrita manteve-se por longo tempo e logo foi retomado,

nas assembléias onde os condes dis tribuíam a justiça. No Sul da Gália, a interrup-

ção é mu ito br eve. Na Catalunha, apenas por uma geração: na corte do conde de

Barcelona, deixou-se na década de' 1020 de recorrer à velha lei de Toledo; as

disputas entre os cavaleiros e ram resolvidas em batalha ouduelo; mas já na década

de 1050 voltou-se a considerar os textos, novos textos. A interrupção tampouco

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o grande progresso

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durou muito na Mâconnais. Até por volta de 1020-1030, no campo, os párocos de

a ldeia e ram sol ic it ados a redigir con tratos de venda ou aco rdos de casamento em

fragmentos de pergaminho, retomando os termos de formulários dos mais antigos,

e naturalmente balbuc iando um lat im distoreido; mas se tais atos eram guardados

em cofres, e ra para lê- los em presença dos juizes em caso de necessidade. E j á em

1070-1080 o conde de Mâcon d istribui a ju stiça aco lita do por um jurisperitus,

especialista em direi to, um escrevente cuja colaboração julga indispensável. Desde

essa época, na Provença e um pouco mais tarde naNarbonnaise, os restos do direito

civil , do direi to romano, er am reunidos por mes tres nas causas , que tratavam de

classificã-los, improv isando o aparato já ago ra considerado necessário àqueles

cuja função era manter a ordem na parte profana dos negócios do mundo.

. Nas ant igas regiões francas, a justiça leiga deixou por mais tempo de se

apoiar em.textos esc ri tos. Mas também acabari a por retorná-los. Já no primeiro

ter ço do século XII , o duque dos normandos - incumbido de conter a int rusão das

perturbações, da

inquietoüo,

no corpo soc ia l toda vez que um inquieto solicitas-

sesua proteção - contratava escreventes queprocediam in loco a  reconhecimen-

tos , colhendo depoimentos e conduzindo a investigação segundo o receituário da

inquisição eclesiást ica. Alguns anos mais tarde, verifica-se a penetração das

prátic as dos jur istas meridionais. Retomando em 1155 de uma peregrinação a

Santi ago de Compos te la , o rei Luí s VII a traves sara o Sul do reino, hospedando-se

em Montpellier. Em 1170 , aparece em sua corte um  mestre , um jurisperitus. E

em Paris, p eran te os estudantes das ar tes, um mestre - que seria talvez o mesmo

- comentava então este direi to novo, o direi to c ivil, dis tinto do direi to canônico.

Entre 1180 e 1220, as jurisdições leigas f oram organizadas segundo o

modelo das ofi ci al idades . Nelas, promoveram-se processos, do requerimento à

inves tigação e ao recurso , e os a tos produzidos peIos pleiteantes eram garantidos

peIaautoridade de um signo abstrato, o selo.

É

dessa época que data, nas províncias

do Norte, a brusca difusão da chumbagem, paralela

ã

expansão do tabel iona to nas

províncias d9_Sul. Todo aquele que qui sesse proteger seu direito ou ter cer teza de

que um acordo seria cumprido tinha de desembolsar dinheiro, pagar um escriba

que f ixava pela esc ri ta aspa lavras do contrato , pagar a autoridade que autenticava

este ato, pagar, mais tarde, o advogado que o utilizaria' para defender sua causa.

Assim nasceu e se afirmou de uma hora para outra um novo poder, e um poder

lucr ativo: o dos homens da lei. .

então, na Provença como na Champagne e em Flandres, as palavras

, .escritas para servir em ju stiça não eram mais palavras latinas, mas as da l íngua

comum. E o costume também começava a se fixar através da escrita. Em 1199,

segundo toda probabil idade, um escrevente do senescal da Normandia, um desses

especialistas que proliferavam junto aos tribunais, incumbiu-se de escrever o que

sabia dos usos e costumes. Não passava, ainda , de um aide-memoire. Vinte e cinco

anos depois, juntou-se um adendo a este núcleo p rimitivo. Três ancien coutumier

de

Normandie,

e dessa vez o transcritor conhecia bem o direito romano. Por toda

parte, em Paris, na Touraine, foram sendo elaborados da mesma maneira, nas

décadas de 1210 e 1220 , o seJementos de um direito consuetudinário, objeto -

como o direito romano, como o direito civil - de reflexões, ajustes e glosas. A

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174 • idade méd ia n a f ra nça

cristalização, a uniformização das regras jur ídicas tomara-se indispensável, como

a do ins trumento monetário. A serviço de um príncipe responsável pela paz num

território cada vez mas vasto, o pessoal que pululava nas cortes de justiça _

dispersas, mas ligadas umas àsoutras pelos procedimentos de recurso - precisava

escorar-se num corpo de costumes homogêneo.

Paralalelamente à difusão da escrita, prosseguira a difusão do cálculo. Mas

nesse caso os caminhos não haviam sido abertos pelos homens da Igreja. Durante

muito tempo, os números, carregados de significado místico, serviram, sobretudo

nos claustros, de apoio à meditação e aos exercícios espir ituais. Aos olhos de Suger

- que apesar disso mostrou-se tão orgulhoso da maneira como administrara a s

coisas temporais em Saint -Denis, a lém de ter s ido responsável por inovações

arqui te tônicas necessariamente baseadas no uso do esquadro , do compasso e em

harmonias matemáticas -, aqu ilo que A. Murray denomina a emergência de uma

mental idade ari tmét ica ainda não era muito percep tível-na década de 1140.

Quando o abade compõe a biografia de Luís VI, todos os números superiores a

cem que utiliza são aproxima tivos e simbólicos. Acima de dez, só uma vez e le

fornece um número exa to. Tra tava-se, é claro, de uma história , obra de um

gênero literár io no qual não parecia necessário, e podia mesmo parecer absurdo,

enumerar com precisão. Contar era coisa vu lgar, coisa de criados , plebeus, dos

prebostes encarregados de receber taxas e foros no campo.

Na realidade, uma nova maneira de usar os números e calcular, mais prática,

disseminou-se na Igreja no meado do século XII, dada a necessidade de uma boa

gestão das coisas temporais. Em 1155, investigadores foram enviados aos domí-

nios pelo abade de Cluny, para fazer o inventário preciso dos recursos e estabele-

cer-Ihes a soma. O mosteiro estava coberto de dívidas; para sanear suas f inanças,

era urgente avaliar seus recursos correntes.

É

mais que evidente, aqui, a relação

.ent re a minuciosa enumeração do que o senhor pode esperar de suas terr as e seus

homens e as dificuldades da te souraria, a impossibilidade de fazer frente às

despesas comuns - as que se impunham pela necessidade de levar adiante

- - - -emprei tãdas de'construção iniciadas numa época em que-o dinheiro corria menos

depressa e na qual tudo custava menos caro . Não resta dúvida: fo i a inf il tr ação

perturbadora da moeda' no coração de todos os órgãos de poder que obrigou a

contar com exatidão, sobretudo as moedas.

Tarefa dif ícil: o sistema monêtár io (doze dinheiros equivalem a um soldo;

v inte so ldos, a uma l ib ra) era complexo ; os algari smos usados , romanos , não se

prestavam ao cálculo escri to ; era mais fáci l adicionar e sub tra ir manipulando

marcas - por exemplo, deslocando tentos pelas casas de um tabuleiro. Nesse caso,

os letrados perdiam sua vantagem, os homens da Igreja mostravam-se menos

hábeis que os mercadores, e mesmo os cavalei ros, já que estes praticavam o jogo

de xadrez . Desse modo, o desenvolvimento da contab il idade foi tão precoce nos

burgos e cas te los quanto nos estabelecimentos religiosos. Por volta de 1170,

Guilherme, o Marechal , que t re inava.urna equ ipe de guerr ei ros de torneio em

torneio pelos bosques e planícies da França, quis que ficassem registrados oslucros

da aventura, tendo previamente integrado ao bando um servidor especializado,

encarregado de manter a contabilidade exata do butim. Esse homem vinha da

o grande progresso

175

cozinha do jovem rei Henrique, onde aprendera a calcular manipulando o dinheiro

para as compras de prov isão. Tratava-se , no entanto, de um escrevente: e le devia

saber escrever, pois dele se esperava que inscrevesse num rolo °balanço de lucros

e perdas estabelecido após cada refrega. Na aceleração da circulação monetár ia,

passara-se da mesa, do tabuleiro, ao registro. É desses mesmos anos que datam os

mais antigos vestígios de uma contabilidade regular , provenientes de principados

administrados com firmeza, da Normandia, da Catalunha, do condado deFlandres:

foi lá, por exemplo, que se reuniram em 1187, num livro chamado Gros Brief,

todos os

brevia,

os sumaries apresentados pelos quarenta recebedores condais que

se haviam empenhado em conve rter em dinhe iros, soldos e libras o valor das

arrecadações ln

natura.

Af irma-se que a cor te de França demorou a adotar essas práticas. Mas seria

mesmo? Não devemos esquecer o incidente bem conhecido: em 1194, o rei Filipe,

em guerra contra seu mais temível r ival, Ricardó'Ceração de Leão , e derro tado em

Fréteval, na Nonnandia, fo i obr igado, na fuga, a abandonar todas as bagagens, e

especialmente sua câmara , seu tesouro, tudo que tinha em moeda, mas também,

segundo sabemos pelas crôn icas, os pergaminhos onde estavam inscri tos seus

direitos. É possível que deles constasse uma contabilidade. Nunca saberemos. Mas

admitamos que o atraso foi real. Por um lado, ele é explicável: segundo T.Bisson,

o principado capeto era tão r ico, o dinheiro-chegava em tal abundância às mãos do

rei, que não era tão grande a preocupação de; -onta-lo. Por outro lado, esse atraso

logo ser ia recuperado, durante o reinado de

í rl ipe

Augusto. Em 1190, o rei par tia

para a Terra Santa, deixando para t rás uma parte de sua corte. Decidiu portanto

que, durante sua longa ausência , todas as r ecei tas em dinhei ro ser iam levadas a

Pari s. Essa t ransf erência obr igava os prebos tes dos domínios a prestar con tas

per iodicamente e os responsáveis pelo tesouro a manter tais contas em registro. A

medida era prov isória, mas quatro anos depois o episódio de Fréteval revelaria o

perigo de expor os instrumentos de um sistema fisclalatento aos r iscos das viagens.

A concentra ção e a fixação tornaram-se definitivas, forçando à criação de um

sistema contabil tanto mais necessário porque na época se estendia descomedida-

.mente a senhoria real e aumentavam seus rendimentos em numerár io: a anexação

do Vermandois e do Ar tois, inicialmente, e mais tarde a conquista da Normandia

e do Anjou, con jugadas ao desenvolvimento nessas regiões do povoamento e da

atividade mercan ti l, aumentaram os rendimentos da coroa em 80% entre 1180 e

1203, e novamente, naquele momento - e de uma só vez - em mais 80%. Os

rústicos métodos de controle sufic ientes enquanto a extensão do domínio era

estável e l imi tada mostr avam-se agora ineficazes; novos métodos , e melhores ,

foram aplicados, inspirados, após a conquista da Nonnandia, nos procedimentos

sof isticados usados havia décadas pelos agentes ducais.

E por sinal não se t ra tava apenas de veri ficar, mas também de prever. O rei

queria saber com que podia contar. E exigia, portanto, que seus parentes e

próximos contassem. Promoveram-se investigações para fazer o levantamento dos

recursos cujo balanço periód ico se impunha. A intenção era estimar , avaliar .

Ass im fo i estabeleci da em 1194 e revista em 1204 a avafiação dos sargentos , a

enumeração das carretas e homens armados que deviam ser fornecidos por oitenta

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178

a ódade média na frança

de sua senhoria, espremida entre do is principados fortes, Balduíno permanecera

illiteratus, mas se esforçava pcr atingir a sapientia, pois bem sabia que com isso

mantinha-se no znesmo nível que O'Spríncipes, seus r ivai s. Recebia ccm generosi-

dade, portamo, ossãbios de passagem, retendo-os por algum tempo junto a si, para

que O' iniciassem na ciência d iv ina; vangloriava-se de ser capaz, corno simples

ouvinte, de alcançar a virtude mística dos textos sagrados e desempenhar

honrosamente sua par te nos exercícios da disputa  - sentindo-se no auge da

glória quando porventura perguntassem, ouvindo-o discorrer, corno podia saber

as letras sem nunca tê-Ias aprendido . Enchia seu quarto de livros, e retribuía

generosarriente O'Stradutores, em seu deseje de ouvir, numa linguagem que com-

preendesse, a lei tura do Cântico dos cânticos, de santo Agostinho, da Vida de santo

Antônio O'udos tratados em que se resumia O'que então era conhecido da física.

De sua parte, Arnoul, que representava nos torneios a glória da família, ainda

não.

ti nh~ qualquer

CC:H3tC  o a

escrita: para

Seu

simples

prazer  para entre

ter-se nos raros interhidios de sua

agitaç ão

militar, pedia que lhe fossem

contadas as histó rias que O'Scavaleiros de seu bando guardavam na memória,

os feitos dos cruzados, os de Carlos Magno e do rei Artur, e ainda os dos

ancestrais. Aventuras e oralidade. ;

Na realidade, esperava-se do  jovem  cavaleiro que soubes se fazer uso

perfeito apenas da palavra.

É

C que demonstra uma outra anedota, protagonizada

por Godofredo Plantageneta: quando foirecebido na véspera do casamento por

seu futuro sogro, O'duque Henrique da Normandia, este

O '

submeteu a um teste de

linguagem. O poder era conquistado e preservado, de Iato, pela coragem e O '

destemor em combate, mas também pelas dis cussões, o bom conselho, O'confronto

de opiniões convenientemente expressas. De longa data, portanto, a memória e a

arte de raciocinar vinham sendo afiadas na aristocracia leiga, aO'saber das inter-

mináveis audiências em que se tratava de determinar O'direi to deste O'Udaquele,

com base no costume, Na realidade, foi muito lentamente, ao longo de todo o

século XII, que se operou essa espécie de osrnose entre a cultura das escolase a

das ass emb liias _gnt -t :re rf s)

Ct j2

cU)r: : :: nci~ se rá,

na

época de Filipe Augusto, a

adoção das atitudes da academia  pela  cavalaria ,

Já na Canção de Rolando, junto ao herói que encarna a virtude da força,

surge um papel secundário, é verdade, mas necessãrio: o de Olivier, encarnando a

outra virtude cardeal, a prudência, Desde 1090, multiplicam-se O'Scasos de meni-

nos que, mesmo não pertencendo à a lta nobreza nem es tando destinados ao estado

eclesiástico, recebem ensino de preceptores na casa paterna ou são enviados às

escolas, aprendendo a ler e a compreender um pouco de lat im; começa então a

surgir, no vocabulário do elogio, O ' qualificativo prudens. O termo dissemina-se,

logo superando O'Soutros epítetos - fortis, STrelllll/s - :  que dão ênfase ao desternor

ffs ico, Pela prudência, O'homem identifica cs caminhos que levam a Deus. Ela

permite-lhe também controlar os impulsos afctivos, agir com lucidez, à luz de sua

inteligência. Ela convém, parecendo

cõnv ir

cada vez mais, aos bravos, aos homens

que, tendo recebido de Deus O'glãdio, estão incumbidos de manter sua ordem neste

mundo p~la força e se encontram permanentemente sob ameaça de se deixarem

levar pela violência. Já vimos como se difundiu no meado do século

xm

O'termo

; I í

, .

'

I,

o g rande progresso

179

rprudhomme , Segundo Joinville, são Luís oconsiderava tão saboroso que bastava

pronunciá-lo par a ficar com a boca cheia d'água. Ele designava O'cavaleiro

perfeito, no qual convivem, equilibradas, a força corporal e a razão. Um século

antes, a prudência, anteparo contra os excessos , j á se estabelecera em posição

preeminente entre as qualidades que situavam os homens da corte acima dcs

 plebeus , dos rudes.

Esse sistema de valores que os contemporâneos de Luís VII e de Filipe

Augusto denominavam cortesia pode ter suas formas iniciais identificadas -

segundo propõe hoje S . Jaeger - no fim do século X na corre dos imperadores

otonianos, em sua capela. O modelo mais uma vez teria sido forjado entre os

eclesiásticos associados ao poder dos príncipes; também aqui seria um modelo de

natureza  renascentista'', visando O' retorno aos princípios e costumes de uma

época de ouro; derivaria de uma rcleitura dos autores clássicos comO' Cícero e

Sêneca, convidando O'homem bem formado à afabilidade, ao autocontrole. Seja

como for, é certo que esse sistema de valores encorpou-se e se desenvolveu

decisivamente na França do século XII, no auge de um novo Renascimento, e que

seu princípio básico é a idéia de  amizade . Acima de tudo, a cortesia.é comedi-

monto. Ela reprime as lufadas de agressividade, de desejo incontrolável, da parte

. carnal do ser, do sensível, cuja ma n ife sta çã o pode destruir a co ncó rdia e que deve

ser controlada pelo in telecto. As regras desse sistema const ituí ram um instrumento

político para O'Spríncipes que estimulavam então a circulação de seu dinheiro. A

cortesia também contribuiu, e muito, para O' fortalecimento do Estado. De tal

maneira que qua lquer reflexão sobre a progressiva racionalização dO'poder deve

levar em consideração essa forma de sociabilidade que só é conhecida, então,

através de expressões literár ias, O'amor que as pessoas da época denominavam

.  fino , refinado, e que hoje qualificamos de cortês - não sem razão, pois ele

diferenciava da vulgaridade plebéia.

O amor cortês é um jogo, como o tomei\?, mas um jogo estritamente

regulamentado, com prescrições muito semelhantes às dO'direito matrimonial. Já

no século XI, a igreja da reforma, empenhada em -govcrnar a sexualidade para

impor a ordem ao gênero humano, impusera aos leigos o casamento que p roibia

aos clérigos, e construiu um ediflcio jurídico extremamente sólido, definindo a boa

conduta conjugal. Pouco tempo depois seria estabelecido no coração dos princi-

pados temporais um

c ó dig o

análogo e complementar, destinado à parte preponde-

rante da cavalaria que não estava enquadrada

n o

contexto matrimO'nial - a enorme

massa de machos que eram man tidos em celibato, corno os clérigos, pela estratégia

das linhagens. A regulamentação tinha o objetivo de ref rear a turbulência da

 juventude , conter um dos fatores dessa .turbulência, O'apetite sexual. O amor

cortês é exercício de prudência proposto aos jovens desejosos de aumentar seu

valor, e também às damas, que deviam mostrar-se, não afetadamente pudicas, mas

prudentes. O amor cortôs induz a dominar pelo espírito as intcmperanças do corpo,

a exaltar O' prazer retardando-lhe a sati sfação. Tendendo a reduzir a agressividade

entre os sexos, a estabelecer ent re eles algo semelhante à amizade davassalagcm,

o amor cortês consiste antes de tudo em conquistar O' amor de seu senhor,

cortejando sua mulher conforme as regras do j ogo. Instrumento de rcgulação social

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)

 

182

a idade média na frança

do-a. Ninguém saberá jamais se seu tio,o conde de Antióquia, seduziu-a efetiva-

men te na Terra Santa e a possuiu, como dizia um boato espalhado com rapidez.

Mas cabe imaginar no mínimo que esse homem, chefe da l inhagem aquitânia,

virou-lhe a cabeça, convencendo-a a reconquistar a liberdade, para poder despo-

sá-Ia. Fo i o que conseguiu, sem dificuldade: oscostumes do Sul da França eram

na ocasião tão diferentes dos do Norte que a esposa sentia-se muito mal no lar

conjugal, cheia de ec lesi ás ti cos aus te ros que f icavam chocados com sua ma-

nei ra de viver. Mas cabe perguntar seser ia mesmo o caso de a tr ibuir intenções

políticas, por trás da decisão de se divorciar, a essa mulher já madura, e que se

tornaria em seguida , como todas asoutras nessa época, s imples objeto nas mãos

brutais de seu jovem segundo marido, que não se cansou de avi lt á- Ia . Luí s VII

é acusado de havê-Ia deixado par ti r, como se se t ratasse de grave erro. Esque-

ce-se o óbvio: para começar, que o rei - não obstante o papa, empenhado na

volta da viagem a Jerusalém em reforça r a unidade do casa l ~ ace itou em 1152

que os bispos desfizessem solenemente o vínculo matrimonial , pois razões

serifss imas o levavam a agir assim. Ele estava envelhecendo. E Leonor só lhe

dava filhas. O futu ro da dinastia estava em jogo. Em tais circunstâncias, era

comum que os senhores se livrassem da mulher, p ara tomar ou tra de melhor

fecundidade. .

Além disso, e supondo que Luís VII tivesse mantido o casamento, o certo é

que na época os meios de governar à distância não eram suficientemente desen-

volvidos, nem os costumes sucessórios'f lexíve is o bastante para que se pudes se

anexar a Aqui tânia sem demora ao domínio real. Ela ieria ido para um dos filhos

do casal, e no caso de uma filha para um genro cuja fidel idade à co roa não seria

necessariamente maior que a de Henrique Plantageneta: quando este, mais bem-

sucedido que outros pretendentes que não conseguiram desposar Leonor, apode-

rou-se enflm dadivorciada, estava na realidade, comoseupa i, e depoi s de havê-lo

recusado por longo tempo, prestando homenagem ao Cape t o pela Normandia.

Finalmente, essa separação permitiu a Luí s VII tomar mulher na casa de Cham-

pagne, riv al da de Anjou, concluindo uma aliança daqual acasa deFrança extrairia

h~ca cu 2veis vautagens. Do caso dó divórcio, portanto, lembremos apenas que a

rainha, insaciável, queixava-se de ter-se casado em primeiras núpcias com um

monge - segundo relatam os c ronistas . Aíestá o principal , cabendo congratular

Luís VII pela escolha que fez, sera dúvida involuntariamente, levado por seu

temperamento e pela educação que lhe dera o pai: a decisão, fundamental para a

evo lução dopoder na França , de enraizar ainda mais_profundamente a monarquia

na instituição eclesiástica.

Sob o soberano anterior, a realeza enraizara-se sobretudo entre

'OS

monges,

em Saint-Denis. Foi onde permaneceu po r algum tempo. O abade Suger foi o

verdadeiro tutor do novo r ei; este, três anos após seu casamento e a morte de seu

pai, presidia a consagração docoro recém-cc>I1slruído,no meio de llumerosos

prelados. Assim consolidou-se eS&1 ideologia da realeza que 8(0 inspi rava n05

escritos de

Dênis,

o Aeropagit.a. Ela se apoiou ainda mais soiidarnenu, em textos

recém-escritos no mosteiro. Refiro-me naturalmente a esse modelo do bom mo-

narca que é a biograf ia de Luís VI. E também

à Histoire du roi Charles et de

J

luísvií

t83

Rotand; atribuída aohispo Turpin, ea umdiploma falso que. taia si&J,fiiimlm.ado,or

Carlos Magno. Esses documentos falsos, cuja autenticidade não'er,a.c.~Ild'a por

ninguém, pre tendiam dis seminar a c rença de que Carlos Magm:o,oferecera sua

coroa a são Dênis e depositara noaltar quat ro moedas de ouro 

-ímplicande;a:

seus

sucessores que fizessem o mesmo todo ano, que oferecessem esse5i'lllilatoo.esantes

inclinando a cabeça e se prosternando . Atendendo a esse pedido, o,Capeto

do

século. XII por um lado se valia de tais gestos para afirmar-se como o herdeiro'

direto do imperador lendário; por outro, aceitando essa espécie de molde, torna-

va-se uma espéc ie de servo de são' Dênis, mas também garantia para si mesmo,

corno delegado do poder que Carlos Magno conferia a seu patrono, o.dorrrfnio de

toda  a terra que sechamava Gália e que agora se chama França  -, pois, segundo

especifica o texto, ela é franca, l ivre de qualquer servidão proveniente de outros

povos . Por essas palavras inventadas, assegurava-se a franquia de todo o reino -

um reino que não se limitava mais

à

velha Francônia.Jdentificando-se com toda a

Gália, pois a fronteira que o limitava a leste ainda não havia sido traçada em vida

de .Carlos Magno. Além d isso , como esses escritos afirmavam também que o

imperador fizera da abadia de Saint-Denis a  cabeça de todas as ig rejas do reino ,

o rei -:- por seu ato de obediência ao santo cujos direitos estava' encarregado de

exercer na Terra, envergando-lhe a auriflama que diziam ser a própria bandeira de

Carlos Magno, milagrosamente conservada - podia ambicionar o controle do

episcopado.

Acontece que havia algumas décadas se acentuava o recuo do monasticismo

à

moda antiga; cuja devoção de Luís VII foi-se desviando aos poucos, para se voltar

para a outra família beneditina que agora tomava a frente, com suas abstinências

e sua renúncia à pompa: aordem de Cister. Como seu avô Filipe I, o único outro

a tomar igual dec is ão em sua l inhagem, ele decidiu não ser sepultado perto do

túmulo de são Dênis, op tando por repousar na abadia que fundara, e que era

cisterciense. Os cistercienses serviam aos bispos. Pois o rei teve a inteligência de

servi-Ios, também. As regras instituídas pelos.reforrhadores em matéria de eleição

episcopal foram fielmente aplicadas. O rei só intervinha agora para dar a conhecer

o candidato que pre fe ri a e investir o eleitodoselementos.temporais de sua igreja .. '

Esse respeito e a devoção que evidenciava valeram-lhe a afeição do corpo episco-

pal, força de primeiríssima importância. A sorte da dinastia foi precisamente ser

representada, no momento mais favorável, por um homem que era objeto de

zombaria nas assembléias cavalcirescas, acusado de preocupar-se demais com a

t i rurg ia.

, Ele também sabia receber debraços abertos todosos prelados exteriores que,

refugiados no reino, davam prosseguimento ao combate contra soberanos menos

hábeis quando se tratava de tirar partido de seu poder sobre a Igreja: Tomás Bccket,

expulso de Canterbury, o papa Alexandre, expulso de Roma. Apoiando-se nesses

exilados, Luís VI I ficava em melhor posição para fazer frente, a oeste e a leste,

aos dois príncipes cujo poderio podia sufocar o seu - Hcnrique Plantagencta, rei

da Inglaterra, eF rederico Barba-Ruiva, rei da Alemanha. Este último, escorando-

se em juristas de Bolonha enos preceitos recuperados do direito romano,prelcnclia

reduzir a franquia gaulesa proclamada em Saint-Denis, sob o argumento da

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184

• idade média na França

superioridade imperial. Carlos Magno agora era ele;fezcom que fosse canonizado,

mantendo uma dieta em Besançon, no reino daBorgonha, envergando solenemente

nacatedral de Arles a coroa dos reis daProvença, financiando àsmargens doSaona

bandos ameaçadores de brabantinos. Luís VII resistia Como podia; se Frederico

concedia uma bula de ouro ao arcebispo de Lyon, ele dava outra ao bispo de

Mende. E em 1162, quando se d ir ig ia a Saint-Jean-de-Losne, na frontei ra dos

quatro rios, com a intenção de tratar diretamente com seu arrogante e temível rival,

tinha em mãos o trunfo mais sólido, aquela mesma submissão frente à Igreja que

lhe conquistara a amizade do verdadeiro papa, cujas pretensões à dominação

universal iam de encontro às do imperador. No ano seguinte, o papa insta lava a

cúria romana em Sens e atr ibuía a Luís, do alto de sua autoridade, a rosa deouro

 pela qual r ei nam os reis e a justiça'.'.

Nem tudo fora tão bem para Luís VIl noinic io. Em 1147, ele i ns is tir a - em

vão.s-cpara-que fosse reconhecido como arcebispo deBourges umclér igo desua

capela, seu chanceler , em oposição aoelei to dos cônegos; desprezando as leis do

casamento cujo respeito a Igreja pregava, exortara seu senescal, Raul de Verman-

dois, a repudiar a mulher, para uni-lo

à

i rmã da rainha, no interesse de sua ca sa .

Acontece que a irmã de Raul era a ,sobrinha do conde de Champagne. Como os

condes de Plandres e Anjou, este príncipe sustentava sua própria política, refor-

çando de maneira perfeitamente autônoma o Estado que dirigia e ao qual incomo-

dava a expansão capet íngi a; assim é que ajudara o arcebispo de Reims e seu

capítulo a destruir a comuna que o rei instituíra dois anos antes na cidade para nela

firmar pé, graças

à

amizade dos burgueses. Defendendo a honra de sua linhagem,

Thibaut de Champagne levantou-se contra seu senhor, encorajado pela palavra

veemente de seu amigo cisterciense Bernardo. O rei reagiu duramente, empreen-

dendo uma guerra vitoriosa. Só que, violando a paz de Deus, incendiara desgraça-

damente a igreja de Vitry, com amult idão depobres que nela se haviam abrigado.

Sacrilégio. Com as mãos suj as , o ung ido do Senhor revelou-se por um momento

corno um  tirano  cujos adversários tinham razão de clamar: traindo o juramento

da sagração, ele rompera a aliança com seu povo.

Mas tudo mudara quando Lirís VH, naturalmente com a intenção de se lavar

de seu pecado, dec id iu ir em socorro dos estabelecimentos d'além-mar, que

começavam a se curvar à pressão do islamismo. Na corte de Natal que reuniu em

Bourges em

1145,

ele fizera a pro~essa de tomar a cruz: chefiaria pessoalmente

uma segunda expedição geral. Nenhum rei participara até en tão de uma cruzada.

Pois o rei da França tomaria a f ren te desta, cuja necessidade era pregada por são

Bernardo em V

éze la y .

Ele comandaria o exército doCristo rumo àsmiragens, pela

salvação da cristandade. Para preparar a grande aventura, os b ispos e condes

reuniram-se em torno dele, como outrora ao .redor de Car los Magno ; a corte

real recuperou de uma hora .para outra o brilho que perdera desde a época de

Roberto, o Piedoso. Na ausência do rei, seu bem - ou seja, todo o reino -

ficaria sob a proteção de Deus, segundo as garanti as o ferecidas aos peregrinos

de Jerusalém. Durante os dois anos da viagem, a missão da regência foi

assumida por são Dênis, vale dizer, o abade Suger. E não pelos grandes oficiais

da casa capetíngia. Estes ficavam reduzidos a funç õe s meramente honoríficas.

luis vii

185

Isso permitia, para realçar a inda mais a glória do soberano, confiar os ofícios

domésti cos aos maio re s p ríncipes . O que não deixava de apresentar r iscos: é

possível que o conde de Anjou,Godofredo Plantageneta, que ambicionava o cargo

de senescal, tenha-se valido dele - é pelo menos o que dizia aber tamen te -

para violar a jovem rainha no quarto real. Mas , em

1179,

quando seu neto,

Henrique, o Jovem, servia o rei à mesa, cortando as ca rnes, nada mais fazia

senão figuração nas cerimônias do poder. Este estava agora , de fato, nas mãos

dos ~fainiliares , dos ~conselhciros , de clérigos e cavalei ros tão leais à coroa

quan to os bons amigos de que se cercara Lu ís VI. Em meio ao progresso das

t écn ica s admin is tr at ivas , e les se most ravam cada vez ma is capazes de se

encarregar dos negócios no dia-a-dia, sem estardalhaço. Esses homens fidelís-

simos, já envelhecendo, dariam um pouco mais tarde a ajuda de sua eficaz

experiência ao jovem Fili pe Augusto.

. 'No Oriente, os exércitos francos fracassaram. Asmulheres que acompanha-

vam os cruzados - Luís VII dera o mau exemplo - t ra íam-nos. Deus recusava-

Ihes a vitória. Mas quando o rei da França retomou, atravessando Roma, onde o

papa o recebeu como um filho, estava engrandecido pelo sacrifíci o que oferecera

com o corpo e seus sofrimentos. Logo, deixando de viver incestuosamente, ele

seria inteiramente purificado. E, além disso, pela primeira vez um capeto se

mostr ara for te l onge de ca sa . Out ras peregrinações - à Grande Chartreuse, a

Santiago de Compostela _ conduziriam-no novamente para além das fronteiras

do reino. Ao sabor dessas viagens de devoção, os súditos puderam ver, ouvir e

tocar o rei, em províncias onde ele não aparecia havia séculos. Acumulando graças

pelo próprio excesso de suas devoções, seu poder tutelar era reconhecido no

imenso território cuja unidade, graças.à intercessão de são Dênis, era sacralizada

pelos favores divinos.

Roberto,' abade do monte Saint-Michel , r epete: a Normandia pertence ao

reino da França;

 Já

não' é apenas a Francônia qpe é vosso reino, embora o título

real a mencione especificamente. Também a Borgonha é vossa : é o que escreve

li Luís VII, em 116.6,.0abade deCluny, Eudes, cujo antecessor, Pedro, o Venerável,

afi rmava poucos anos antes que essa região estava  sem rei . Eudes acrescenta:

 Considerei todo o vosso reino como um corpo intei ro ... Nesses anos, o capeto

toma como símbolo as f1ores-de-l is. São douradas sobre fundo azul, como as

constelações na capa dos cardeais, imagem da ordem cósmica de que o imperador

Henrique Il revestia sua pessoa no limiar do século XI. Com esse signo

heráldico, o soberano pretendi a deixar claro que se es tabelecia na junção do

terrestre e do celeste, que ocupava, acima de todos os mortais, o lugar reivin-

d icado 100 anos an tes pelos abades do monasticismo então tr iunfan te. Quanto

à coroa, cada um de seus florões, segundo d issera Suger, representava um

feudo; figuravam, assim, a reunião de todas as províncias do reino. Quando o

rei, no auge das hierarquias descritas por Dénis, o Areopagita, colocava esse

objeto na cabeça, nas cortes solenes, estava afirmando seu dever demanter toda

a França em paz.

Esta paz geral foi instaurada por Luis VII por dez anos em Soissons, em

junho de 1155,  a pedido dos homens da Igreja e a conselho de seus barões, para

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reprimir O ardor dos mau s. e conter 11 vioiência dos que pilham . Os arcebispos de

Reíms e Sens, s eus sufraganres, os abades dos grandes mosteiros: (oelos:estavam

lá. Juraram a paz um após o outro, sendo seguidos pelo duque de Borgonha, o

conde de Flandr es, o de Champagne, o de Never s e Soissons, e todo o baronato

presente. O própr io rei jurou: Bm pleno conci lio, e diante de todos , pelo verbo

rea l, dy; semos que mante remos inviolave lmentees ta paz , e que , segundo nosso

poder, faremos. justiça a todos que v iolarem esta o rdem . Tr atava-se de uma

conju ração muito semelhante às que se hav iam tramado no ano mil nas assem-

bléias reunidas junto aos rel icários. Tratava- se da paz de Deus. Mas a tar efa de

preservar essa paz já não era confiada aos bispos, diocese por diocese. Era o

re i, sagr ado como eles, v igário de Deus, que dev ia fazer- se o guardião dela,

pelo conjunto do reino. .

Nos últimos anos do-r einado , ele empenhou todo o seu zelo e o que lhe restava de

forças no esforço de fazê- Ia reina r em toda par te . E o conseguiu. Em 1166 e em

J J 71, o bispo de Mâcon e o abade de Cluny reco rrer am a ele. Estavam sendo

impor tunados por bandos de sa lt eadores, a soldo de maus senhores. Da abadia de

Vézelay, que out rora protegera contra o conde de Nevers, o 'rei apressou-se a ir em

seu socorro. Bastou que suas t ropas se aproximassem para que tudo ent rasse nos

eixos. No p reâmbu lo das cartas de concó rdia lid as nas sessões que p residia,

explicava-se o r ei: Viemos po rque a terra da Borgonha ficou muito tempo , pela

ausência dos r eis, sem o freio de uma d ir eção justa. Os que tinham nesta região

a lguma força podiam atacar uns aos out ros, opr imir os f racos, devas ta r os bens da

Igreja.  Já não o podem, po is o rei está p resente. Po r causa de tan ta maldade,

movido pelo zelo de Deus, ent ramos com o exérc ito na Borgonha para conduzi r

as vinganças, para reformar a paz e a região. Depois dessas expedições, um altar-

foi esculpido para a igreja de Avenas-en-Beaujolais. Nele, vemos aefígie do Cristo

g lo rificado em meio aos apósto los, e do ou tro lado do monumen to , em perfeita

s imetria e como se fosse seu reflexo exato projetado no mundo visível ..a effgie do

rex pacificus. Em sua mão protetora, ele traz a imagem da igrejinha: Mas é na

verdade a imagem de toda a Igreja, da qua l é membro pela sagração, mas também,

em posição dominante, protetor supremo nessa parte da Terra que lhe foi confiada

por Deus. O rei da França já não

é,

como Car los Magno, um novo David ; é um

novo Melquisedeque, que era ao meimo tempo rei de Salem e padre; prefigurando

o Cri sto, ofe rece ra ao Senhor o sacr if íc io do pão e do vinho, Luís VII , o piedosí s-

simo, espéc ie de monge , também se pre tendia ao mesmo tempo rei e padre , como

só o papa, desde Leão IX, pre tendera a té então.

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De vo lta da oper ação de pacificação que chefiara em 1166 nos limites

extremos de seu reino, Deus recompensou.n generosamente, decidindo-se a con-

ceder-lhe a graça há tanto tempo pedida/Nasceu-lhe um filho, que recebeu o nome

de seu antepassado, Filipe. Mais tarde, um sonho premonitório seria atribuído a

Luís VU. Ele teria visto este menino dado por Deus , outro Melquisedcque,

 tendo na mão um cálice de ouro cheio de sangue humano, que oferecia a todos

o s prínci pes do reino, e todos bebiam com ele , Para festejar o acontecimento, um

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monge de Saint-Germain-des-Prés redigiu a His to ir e du t rês glorieux roi Louis,

dando prosseguimento à obra que Suger inici ara em Saint-Denis . Ele descreve a

espera ansiosa , o nasc imento , o bat ismo, a explosão de a legr ia em Pari s, c idade já

então capit al , para onde afluíam de todas as par tes os c lé rigos em busca do saber,

Não se conhece o papel representado pelo rei na reunião em sua cidade dos

melhores mes tres em ciênc ia sagrada . Mas cabe perguntar se terá sido por acaso

que decidiram estabelecer-se perto da residência real e não em Laon, por exemplo,

onde eram conservados os livros utilizados pelos pensadores reunidos por

Carlos, o Calvo, em seu palácio de Comp iêgne, Sabe- se ao menos que com suas

oferendas Luís VII contribuiu para a reforma da catedral em Paris. Indo de

encontro à posição de Pedro, o Cantor, e dos defensores da austeridade, que

condenavam o orgulho e o gasto do dinheiro dos pobres em construções de

prest íg io , e le apoiava o bispo Maurício de Sul ly , est imulando-o a reconstruir

.completamente Notre-Dame.

É

em seu reinado que começa, de fato, a floração de catedrais construídas segundo

os princ ípios de uma estét ica que denominamos góti ca , mas que para os contem-

porâneos era a obra de origem francesa . Opus francigenum: esta expressão

situàva com toda preci são o lugar onde se originava a nova manei ra de const ru ir

os prédios sagrados: nocoração da velha Francônia, Saint-Denis-en-France. Suger

encarregara-se de estabelecer- lh e o modelo : como Deus é luz; segundo são João e

o Areópagita, a igreja deve ser tran slúcida, demonstrando por suas ro sáceas e

janelas a lt as que toda a cri ação, ass im como essa expansão que é a graça , der ivam

da ir radiação do amor divino; como Deus encarnou, convém dispor na fachada ,

sobre a ent rada e vol tado para o povo, como em permanente prédica , um conjunto

de imagens p roclamando que o Deus feito homem é um irmão e que o homem deve

conduzi r sua vida ouvindo Sua palavra. O exemplo foi s eguido, depoi s de 1140,

pelo s bispos da província capetíngia, que r ecorr eram às equipes de artesão s

. empregadas por Suger: o ateliê de escultor es tr anspor tou- se par a Chartres para

deco rar a fachada real, o ateliê dos vid raceiros veio a Paris o rnamentar com um

vitral a antiga igreja de Notre-Dame. A par ti r deentão, os cante iros de obras mais

ativos não eram os das basíl icas monásticas, mas os das catedrais .

Essa t rans fe rênc ia é a manifest ação de uma t ripla mudança na dis tr ibuição

dos poderes. Exprime, em primeiro lugar, a conclusão da refo rma da Igreja,

subordinando dec ididamente o monasticismo ao' episcopado mas também uma

evolução mais profunda pela qua l os r itos organizados em função das rel íquias

milag rosas eram substituídos insensivelmente por um cristianismo vivido na

observânc ia de uma moral cujos preceitos deviam ser ensinados a cada f ie l. Este

ensino cab ia ao clero, e para começar ao bispo. A catedral devia disserninã-lo,

difundir a representação visual do saber que era elaborado na esco la. Por outro

lado, t al transferência resulta d iretamente do novo poder das cidades, sobre o qual

pesavam as senhorias do bispo e do capítulo da catedral. Ambas exploravam seu

enriquecimento, valendo-se da pro speridade urbana principalmente para recons-

tr uir a igreja mãe, e com tanto rigor que a burguesia às vezes resistia, Fo i o que

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sucedeu em Reims, onde a revolta obrigou à suspensão temporária da obra. Mas

.os muros e campanários que dominavam a aglomeração de caseb res também

celebravam a fo rça e a glória da cidade. Os negoc iantes das fei ras que se subme-

t iam à proteção episcopa l rec lamavam, por orgulho, mas pagavam. Mas exigiam

que as doações fossem personalizadas, que ficasse bem regist rado que tal corpo-

ração oferecera tal vidraça. Esses pequenos s inai s de apropri ação que hoje identi-

ficamos demonstram que o povo citadino associou-se à obra doc lero, dessa forma

consa~rando, para purgar-se do pecado do lucro , uma boa par te do dinhe iro mal

ganho que suas dil igentes atividades drenavam dos campos vizinhos.

Fina lmente, os edifícios que começaram a ornamentar suntuosamen te o

domínio capetfngio refletem um renascimento da monarquia. Desde o estabeleci-

mento das catedrais nas cidades fundadas por Roma naGália, após a crist ianização

do Império, todos os atributos do poder públi co se haviam concentrado nesses

monumentos. De uma-forma-sublimada: pela retidão de suas paredes. e muros de

pedra, pelas torres que a transformavam em cidadela inexpugnável, pelo pórtico

que, â semelhança da porta das cidades, abria para um espaço mais rigorosamente

ordenado, a catedral - que se apresentava como prenúnc io da Je rusa lém celeste

- representava o modelo do Estado em sua perfeição intemporal. Pois no meado

do século XII, dentre todos os Estados que se f ortaleciam, er a oque Luís tinha sob

seu controle o que mais se aproximava desse modelo. Desde seu retorno da Terra

Santa, onde visitara devotadamente todos os santuários que conservavam traços

da vida de Jesus, o rei das flores-de-lis sentava-se em seu trono em meio aos bispos.

Na abside de cada uma das cated rais de seu reino, todos sentiam-se tentados a

confundir o trono episcopal com o seu.

Além disso, as virtudes de que fora impregnado pela unção da sagração

destinavam-no a tomar a frente do t raba lho dos construtores. Um século e meio

antes, o bispo de Laon lembrara ao rei de França:  Recorda-te da grande glória de

que tecobriu o rei dos reis. E il l sua clemência, ele te concedeu um dom mais precioso

que todos os outros ... Estás destinado a conhecer aJerusalém celes te com suas pedras,

seus muros, suas.portas, toda a sua arq~itetura ... Único-entre os prfncipes a ser dotado

de tal visão, o soberano devia colaborar, por sua generosidade, com a obra de

renovação contínua dos edifícios episcopais. Luiz VII conscientizou-se disso. As

duzentas lib ras de prata que ofereceu ao bispo de Paris serviram para cobrir o coro

de Notre-Dame com uma abóbada

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alta que qualquer outra até então construí-

da. Essa obra ele pôde ver concluída. Mas não assistiu, em ll80, à consagração

solene do aitar-mor pelo enviado do papa. Na abadia de Barbeaux, os cistercienses

velavam seu' derradeiro sono. Junto a seu corpo haviam sido dispostas, pela

primeira vez, as insígnias que elevavam.o.soberanoacima de todos os homens: a

coroa, o cetro e o sinete que ele mandara aplicar nos decretos de paz geral. E pelo

menos a cerimônia foi presidida pelo filho com que Deus o recompensara, pela

manei ra justa e escrupulosa como se desincumbiria de suas f unções reais.

Então mais que nunca, sonhava-se com a unidade nos mais altos escalões da Igreja.

Enquanto o bispo de Roma, por seus legados, enviava sua palavra até os confins

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da cristandade latina, enquanto os abades, vindos de todos os mosteiros cistercien-

ses espalhados às centenas de uma ponta a outra da Europa, reuniam-se todo ano

em capítulo geral na casa-mãe para tratar das questões da ordem e compart ilha r

sua experiência espiritual, os clérigos - os melhores dentre os qua is haviam

estudado lado a lado em Paris - oravam para que o povo de Deus fosse enfim

reunido sob um mesmo poder. A salvação da Terra Santa o exigia: em Jerusalém

reinava um adolescente leproso; por toda parte Saladin tentava sublevar os infiéis,

exortando-os à jihad; era de se temer que viesse um dia a se apoderar do túmulo

do Cristo. Er a urgente que os príncipes - cuja efígie exprimia toda a força no

sinete, mas uma força tumultuada que podia gerar desordem, se não fosse disci-

plinada pela sabedoria - fossem postos sob con tr ole dos reis, que aparecem em

seus sinetes sentados majestosamente na estabi lidade da paz ce lest ial. Opondo-se

aos princ ipados, a Igreja apoiava as monarquias. Queria que fossem poderosas,

sob a autoridade unificadora do sucessor de são Pedro.

Estedefrontava-se duramente com o rei da Alemanha, tentando conter suas

ambições açambarcadoras; hesitava em se reconciliar com o rei da Inglaterra,

excomungado por ter chegado um dia, em sua vontade cega de servir à Igreja, a

mandar assassinar o primado, em pleno altar da catedral de Canterbury. Os favores

pontificais voltavam-se em conseqüência para o chefe do povo eleito, o rei dos

francos, dócil e já agora implantado em sólidas bases, na exuberante riqueza da

Ile-de-France e naquela cidade que era então, depois da Grécia e de Roma, ao cabo

de lenta translação,o cen tro da mais alta cultur a. Nela, o monarca usava o

imperium para a paz e a justiça. Reforçado, o vínculo feudal unia os al tos senhores

do reino cada vez mais estreitamente a s ua pessoa. Já não pareceria quimérico vê-Io

assistido - como Jesus, como o Carlos Magno das epopéias -, para melhor

cumprir sua missão de concórdia, por doze acólito s, iguais entre eles sob sua

proteção: os pares da coroa. Tal papel já' era exercido pelos seis bispos

inves tidos do poder condal nas cidades do Nordeste. Cabia esperar que logo se

juntariam a eles, nessa posição deferente, seis príncipes leigos, três duques (de

Borgonha, da Ãquitânia e da Normanáiã)e três condes (de. Flandres, Champag-

ne e Toulouse).· .

Mas a realidade opunha-se a esse sonho. A França continuava sendo um

agregado de formas polít icas concorrentes. Éverdade que o poder real infiltrava-se

pelos interstícios desse tecido áspero. Em troca daguarda efica z que estendia sobre

esse bispado ou aque le mos teiro, o soberano conquis tava o direi to de participar do

poder em dete rminada senhoria; prevalecia-se, então, desses contratos de autori-

zação para inst ala r s eus prebostes em certos pontos afastados do

velho

domínio

dos cape tos. Mas eram estes apenas os marcos iniciais de uma extensão

problemática e difícil. Ela ia de encontro a Estados que se fortaleciam parale-

lamente ao fortalecimento do Estado monárquico, como ele escorados no

dinhe iro, no aperfeiçoamento das técnicas administrativas e na uti lização dos

direitos dos feudos.'

De todos os vassalos do eapeto, o mais

temível

era o plantageneta. Henrique,

para começar, era rei, na Inglaterra. Mas se esquece muitas vezes que ele se

considerava acima de tudo conde de Anjou. É e ;1 Anjou, na região que seus

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ancestrais haviam dominado, que e le repousa na abadia de Fontevrault , per to da

esposa, Leonor, e do filho, Ricardo Coração de Leão. É l á, ent re Chinon, Loches

e Angers, que se plantaram as raizes de todo poder que Henrique - graças a seu

vigor e a uma série de acasos felizes - estendia na época de Lu ís VII por quase

metade do reino da França. Ele mesmo estava convencido disso, o que f ica mais

que comprovado pela imagem de seu pai que gos tava de contemp lar (o conde

Godofredo majestosamente figurado na p laca de esmalte que decora o túmulo do

falecidp na catedral de Mans) e pela biografia escrita em Tour s na década de 1180,

outro monumento da memó r i a dinástica. O herói desse panegírico é mostrado

triunf~ndo nas armas, logo depois de receber a armadura e casar. Mas não, vale

notar , t riunfando na guerra, e sim num torneio , organizado na praia, no s confins

normandos e bretões , ante o monte Saint-Miche l, De um lado aequipe da Bretanha,

do out ro , a da Normandia, que não era dirigida pessoalmente pelo duque, mas por

seus tr~s sobrinhos, os condes de Morta in, F1andres e Rlois .'Gcdofredo.decidiu

'juntar-se ao campo bretão. Mostrá-Io logo 'de saída a tomar partido pela

Bretanha, a Bretanha do rei Artur, era algo que satisf ar ia seu filho - e mais

adiante veremos melhor por quê. O confronto, indeci so , deu lugar a um

combate co rpo a co rpo. Os normandos escolheram como campeão um saxão,

um ing lês, um cavaleiro g igantesco. Godofredodesorientou-o e, como um novo

David, decapitou o m onstro. Triunfo simbólico. Ele fornecia com isso a p rova

incontestável da superioridade angevina: vitorioso, o conde de Anjou já tinha

em seu leito a esposa da' qual seu filho herdaria a Normandia; sua vitória

prefigurava a que esse mesmo filho conquistaria sobre Estêvão de Blois, e a

submissão da Inglaterra.

Em 1151, de fato, Henrique, sucedendo a seu pai, tomara posse dos direi tos

de sua mãe sobre o ducado nonnando; no ano seguinte, tornou-se duque da

Aquit ânia , em nome desua esposa ; sagrado rei da Inglaterra em 1154, introduziu-

se na Bre tanha a través deseu f ilho Godofredo. Espantosa t ra jetóri a de êxi tos. Mas

é preciso lembrar que tudo isso que assim foi reunido nutria quinzena de anos sob

o poder de.Henr ique, isso que os historiado res às vezes denominam império

plantageneta nunca foium Estado, mas uma coleção de Estados. Cada um conser-

vava sua própr ia cor te , s eu pelotão de administradores. Para mostrar que os tinha

,a todos sob seu poder, o príncipe precisava es ta r constantemente a percorrê-los. A

imagem que dele têm os contemporâ~eos é deuma permanente agitação. Éo caso

de Pedro de Blois , s eu tabelião: Da manhã

à

noite, ele está sempre de pé, e muito

embora suas tíb ias estejam gravemente feridas, cobertas de contusões po r cau sa

dos repetidos golpes que dá nos cavalos recalci trantes, e le nunca está sentado

[como convém aos reis], exccto a cavalo ou à mesa. Num só dia, se necessário,

é capaz de percorrer quatro ou cinco léguas.  A ssim foi que ele se esgotou ao

longo da vida no exercício de seu poderio disseminado, Sempre ausente, um

senescal ocupava seu lugar nesta ou naquela inst itui ção política à frente da.qual

se encontrava, É verdade que quase todas evidenciavam estr uturas bastante

f irmes. Para começar , a Normandia : as viagens dos juizes mantinham-na numa

paz semelhante à que o monge Raul de Cluny admirava no meado do século

XI; seus recur sos er am explorados por prebostes estri tamente vigiados; lá a

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trama das obr igações feudais era mais cerrada que em qualquer outra parte.

A falha estava no Sul, na Aquitânia, sempre indócil , insubmissa.

Para suprimir as rebeliões, o poder ducal apoiava-se nas c idades, na medida

do possível. E em especial em La Rochelle, recém-fundada e solidamente fortifi -

cada, sem demora opulenta: v indas dos mares do Nor te , pesadas embarcações

chegavam em comboio para carregar-se de v inho em seu po rto; a amplitude desse

tráf ico pode ser avaliada pelo lastro que deixavam, pelos amontoados de cascalho

que a inda hoje são encontrados nos baixios. Na esperança de dominar o baronato

aquitânio como controlava o da Inglaterra e o da Normand ia, o duque também

tentava implanta r os r igores do direito feudal do Sul do Loi re . Mas era cont ra ri ar

muito acintosamente os hábitos. A feudalização forçada suscitou infinitas revoltas,

reprimidas pelo terror por algum tempo, mas sempre ressurgindo. Outra fraqueza:

Henrique t inha f ilhos, e mui tos mesmo. Já na adolescência e les exigiam sua par te

da herança.

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pedaço de Estado - e sobretudo, é claro, na parte que vinha da

mãe, a Aquitânia. Leonor os apoiava, e atr ás deles congregava-se todo o descon-

tentamento, toda a avidez; o própr io rei da França, por direi to seu prote tor, j á que

. era o senhor de seu pai , não se eximia de explorar-lhes a insubmissão. Face ao rei,

Henrique Plantageneta via-se prisione iro da homenagem que presta ra : não podia

dar a seu s próp rios feudatários o exemplo da Ielonia. Morreu afl ito e ínconforma-

do, vendo-se traído pelo filho - Ricardo - que julgara mais fiel. Acontecesse o

que 'acontecesse, a constelação depr incipados que por acaso reuni ra sob seu poder

pessoal estava fadada a se d issociar. Não devemos dar crédito aos mapas que se

pretendeu estabelecer da França feudal, Neles , os domínios franceses de Henrique

II da Ingla te rra são extensíssimos, parecendo esmagar com seu peso o domínio

real. A ameaça que se erigia contra ele a oeste er a grave, mas menos do que parece.

Uma outr a reunião de condados também comprimia duramente a senhor ia

capetfngia, para leste e para sul: no início do reinado de Luis VII, Thibau t era ao

mesmo tempo - como seu antepassado Eudes -. conde de Meaux e de Troyes,

conde de Blois, de Chartres e de Châteaudun ; também ele teria podido reivindicar

a Nonnand ia e a Inglaterra como herança do chef e de sua mãe; perm itira que seu

irmão Estêvão exigisse e obtivesse a sucessão. Mas aosobrevir sua morte em 1152

_ e já vimos o peso e o efeito que os acontec imentos famil ia res t inham então na

his tóri a pol ítica - foram dec isivos os cos tumes quç tornavam efêmeras tais

aglomerações de homenagens, a obrigação consuetudinária a partilhar igualmente

a herança entre o s filhos do f alecido. Thibaut tinha dois: o segundo recebeu Blois ,

e o mais velho, o Estado mais sólido, a Champagne. Esta começava a to rnar-se

extremamente r ica graças ao progresso dos arroteamentos em Brie e sobretudo ao

sucesso das feiras deTroyes, Provins , Lagny e Bar-sur-Aube. Havia cer ca de v in te

anos vinha sendo lentamente organizado um si stema de proteção e garanti as que

afastav.a os negociantes de longo curso das ant iqüís simas feiras episcopais de

Reims e Châlons, atraindo-os para Prov ins ou Lagny, cidades próximas da encru-

zilhada parisiense, então em pleno crescimento. Preparava-se assim a espantosa

prosperidade das r euniões comerciais da Champagne, que no século XIII se

tornariam o principal ponto de encontro entre os negociantes do Norte e o s do Sul;

já aí, elas se haviam organizado em ciclos regulares, enquanto se estendia a

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a idade média na f rança

, jurisdição das guardas estabe\ccidas pelos condes, e os comerciantes italianos e

provençais que as f reqüentavam consti tu íam associações de defesa mútua . Mas

também na Champagne o sustentáculo inicial da reconstrução do Estado foi o

direito feudal. O conde possuía um vas to domínio, adminis trado por uns vinte

prebostes, e quase metade das fortalezas; pouco a pouco, foi tomando conta das

outras, graças a obrigações de vassalagcm que seus agentes tratariam de regis trar

cuidadosamente na época de Fil ipe Augusto. Ele próprio prestava homenagem ao

rei de~rança , mas não por todo o principado. A homenagem era o que mobil izava

em parte outros senhores, particularmente orei da Alemanha; apegar-se ao Império

er a mais uma forma de fazer frente ao capeto. Ass im foi que; na década de 1160,

Henrique, o Liberal, arriscou -se a um jogo pessoal entre Luís VII e Frederico

Barba-Ruiva. Enquanto isso, os bispos esquivavam- se para o Champenois -

exce to o de Troyes, onde já se insinuava a inf luência rea l: e is , muito concreta-

mente,

i

que mais contr ibuía pata.a inferioridade das príncipes face à coroa,

,-, juntamente com o direito sucessório. Mas pelo menos o príncipe podia contar

com os monges e cônegos que, cada vez mais numerosos, oravam por sua

salvação e pelo êxito de suas armas nas colegiadas que se espalhavam por todo

o principado. Os melhores dentre esses c lé rigos a judavam-no em sua própria

casa a explorar sempre melhor suas prerrogativas .

Prestava-Ihes também outros serviços, ainda mais úte is para a a fi rmação de

seu prestígio. Atraídos por sua mulher, Mar ia - f ilha de Leonor, que presid iu em

seu lugar os diver timentos de cortesia e encomendou o Lancelot ao romancista -

Chréti en de Troyes - , e sses l et rados pol iam as expres sões da jovem cultura que

desabrochava no fim doséculo XII, a cultura cavaleiresca. A corte de Champagne

serviu-lhe como um dos centros de irradiação mais ativos.

E era , de fato , no ter reno cul tura l que os prínc ipes ence tavam então os combates

mais a rdorosos para af irmar uma-ident idade nac iona l de encontro ao domínio

,capetíngio. Era o.que fazia ao fomeçerem dinheiro para que os homens da Igreja

reconstruís sem os santuár ios. Em Anjou e Poi tou, na Borgonha, em Lyon, a

 maneira francesa era admirada e servia de inspiração, pois sedesejava que a luz

penetrasse nas catedrais e basíl icas , exatamente como fazia em Noyon,

La oú

ou

Paris . Mas os príncipes e prelados, senhores dessas obras , quiseram que os novos

edifícios manifestassem por claras lnflexões est il ís ticas a fidel idade às tradições

locais. Mais adiante, em direção a~ul, tais tradições foram suficientemente fortes

para conte r a expansão da estéti ca gót ica e impedi -Ia de reca\car as formas que

denominamos romanas, Cerca de um século depois , quando igrejas à f rancesa

foram construídas em Clermont d' Auvcrgne, Narbonnc e Saint-Maximin de Pro-

vence, foram vistas como um sinal de apropriação, a marca de uma potência

colonial, espécie de sinctc aplicado pelo capeto em províncias cuja resistência

afinal vencera, pela força das armas.

Entretanto, como as lembranças carolíngias e mais ainda sua inserção no

sagrado

é

que faziam a f orça da realeza, os príncipes riv ais - preocupados em

compensara ascendência da corte paris iense, austera e escorada no desenvolvi-

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luis vii

195

mente do pensamento cientí fi co , no latim das liturgias - quiseram que se disse-

minasse a seu redor a a legr ia profana , nas l inguagens da cava la ria . Desse modo é

que, já no inicio do século XII, Guilherme IX, conde de Poitou. e duque dos

aquit ânios, avô deLeonor - empenhado em fris ar as ingula ridade desua casa face

ao capeLo, e sobre tudo face aos chefes f rancos , os condes de Anjou, cujo poder

ameaçava mais diret amente o seu - , fez com que cantassem a seu redor , abordan-

do temas diferentes e numa l íngua diferente , poemas semelhantes aos que eram

compostos então em rimas lat inas extremamente refinadas pelos bispos e abades

das regiões do Loire. Para isso, recorrera

à

riqueza cultural do Limousin, que era,

dentre as regiões sob seu domín io, a menos permeável às influências do Norte.

Valendo-se do modelo dos tropos, vocalizes adaptadas às melodias gregorianas

pelos monges de Sa int-Mar ti al de Limoges, os t rovadores que mantinha em sua

corte, e que como ele eram cavaleiros, e talvez mesmo ele próprio - se é

verdadeiro que é o 'auto r das canções que mais tarde lhe seriam atribuídas -

compuseram no dialeto da r egião obras que celebram, contra as penitências de

Pontevrault,: o prazer proporcionado pelas mulheres e os valores da cortesia.

Através dos jogos do fino amor , no espaço de paz formado em p leno tumu lto

militar pelas assembléias cortesãs, o duque da Aquitânia esperava conter melhor

os guerreiros - com mais eficiência que a permitida pelos incertos compromissos

a que eram obrigados pela homenagem.

Henrique Plantageneta, que o sucedeu em sua homenagem, seguiu -lhe o

exemp lo . Deu acolhida aos poetas cortesãos, todos os poetas - os do Sul,

cavaleiros de Limoges, mas também os homens da Igreja cujo s talen tos par a a

escri ta começavam a elevaras dialetos aristocráticos de Anjoue da Normandia à

categoria de língua literária. Todos eles, dedicando seus poemasà rainha Leonor,

fingiam estar trahalhando para ela. Na realidade, era ao mar ido que se rviam e que

lhes dava de que viver. Os escreventes ledores elaboravam de maneira que lhe

agradasse a matéria de França , mas cantando nã\>as façanhas de CarIos Magno,

e sim asde Guilherme de Orange, o bom vassalo sem o qual o rei teria afundado

na própria -debilidade. Osfnais habilidosos exp lor avam os grandes textos da

Antigüidade clássica, transpondo para o romance  Estacio, a Eneida, o que era

conhecido da histór ia de

Tróía,

Mas sua preferência - e naturalmente a de seu

senhor - ia par a a matéria da Bretanha , as lendas tran smitidas pelo s bardos

provenientes das regiões célt icas, igualmente acolhidos pelo rei Henrique. Nos

confins nebulosos do espaço gigantesco que e le controlava com dif iculdade , a

Armórica, a Cornualha, o País de Gales e a Ir landa, última a ser conquistada,

formavam uma espécie de terra demistérios na qual a cavalaria podia projet ar seus

sonhos e dese jos de l iberdade. Encamavam-nos paladinos cujas aventuras mara-

vilhosas ecl ipsavam as dos bravos da época carolíngia. Esses heróis, cu ja fama

esperava o plantageneta repercutisse em sua pessoa, eram cavaleiros, e cavaleiros

errantes; vagando pelos perigos dos matagais, eles submetiam guerreiros masca-

rados, conquis tavam o amor das herdeiras em fabulosos castelos, e as fadas que

encontravam, banhando-se nuas junto às fontes, apanhavam-nos em seus fugazes

encantos; exaus tos e cober tos de glórias, eles retomavam à corte para refazer as

forças

e

sentar-se, todos iguais, à Távola Redonda,  que gira como o mundo , sob

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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a idade média na frança

a presidência do rei Artur. Deste, Henrique apresentava-se como herdeiro, contra

o rei da França, que se diz ia herde iro de Carlos Magno. No momento em que se

instalava no trono da Inglaterra, Henrique encarregou Wace, um de seus escreven-

tes, de retomar o que havia s ido esc ri to a respeito po r Godof redo de Morunouth e

lembrar que os bretões descendiam dos troianos, como os francos e os nonnandos ..

O angevino vencera os normandos e em seguida os saxões; contra est es , v ingava

Artur.lo rei c iv il izador cujo retorno era esperado pelos povos cel tas. Pretendia

estab«lecer-se em seu lugar. Para que ninguém duvidasse, para convencer de que

Artur não voltaria, mandou descobrir seu túmulo e o darainha Gueniêvre na abadia

galesa de Glas tonbury. Envol to nas lendas, e le desafiava orei de Paris com sua

glória mundana.

Desafiava-o sobretudo por ressaltar os valores da cavalar ia em det rimento

dos da academia, através dos poemas que para ele escr eviam. Exaltar a proeza

-cavaleiresca, à maneira bretã, mostrar-as

virtudes da cavaiaria a desabrocharem

em meio aos perigos da magia pagã e nas alegrias da cortesia era o mesmo que'

espicaçar o espír ito de independência face ao cape to e seus padres. Em 1159, João

de Salisbury - que na époc a serv ia ao r ei da Ing laterra na casa de seu chanceler

- demonstrara como a cavalaria organizada  pod ia ser incorporada ao Estado

pelo juramento mil ita r (cujo modelo na Roma ant iga era mos trado pelos histo-

riadores latinos redescobertos ) que obr igava ao serviço públi co , a proteger os

pobres da injust iça, a pac if icar o paí s e dar , se neces sá rio. o própr io sangue pelos

irmãos . Por volta de 1175, quando' o Plantageneta via-se enfraquecido pelas

rebeliões aquitânias e a repercussão além-Mancha da canonização de Tomás

Becket, Bento de Sainte-Mau re, de Tou rs, rimava por ordem sua uma

Estoire des

ducs de

Normandie, retomando a ob ra deWace, Bom servidor, preocupado em

sat isfazer seu senhor, ele reescreveu, a propósito.de Guilherme Longa Espada, o

diálogo outrora imaginado por Dudon de Saint-Quentin entr e este duque do século

X e o abade Mar tinho de Jumiêges, mostrando -os a debater a s estrutu ras da

sociedade cristã e os deveres imposto s a cada uma das tr ês categorias em.que

os homens são repar tidos pela-vontade. d-i-vina.-Bento-inverte para-começar a

posição dos in terlocu tores: o discur so que Dudon puser a na boc a do homem da

Igreja, respondendo às perguntas do leigo e expondo-lhe o que os servidores

de Deus sabem de seus desígnios, é agor a atr ibu ído ao p ríncipe. Que d iz ele?

Ex istem três ordens: cavaleiros, ;Clérigos e plebeus . Retoma-se, portanto, o

velho esquema das três funções. Mas não, a rigor, o que fo ra u tilizado por

Dudon : aquele que os bispos francos do ano mil haviam adiantado para tirar

a realeza de sua prost ração. Todavia , a f igura é radicalmente modificada.

Dessacralizada, -

Já não convinha situar o duque da Normandia, como seu fongínquo ancestral,

numa das três categorias func iona is. Era preciso

situ á-l o

à parte, acima, pois ele

pretendia dominar em sua casa os homens de diferentes condições que a integra-

vam, jogando com essas diferenças. Por out ro lado, não mais é Deus que fala por

intermédio daqueles que Ele impregna de sua sabedoria. É o príncipe, que no

entanto não é s agrado. Cabe-lhe dizer o direito, terrestre, susten tácu lo da paz social

nos territórios que governa. Cabe-lhe velar, em nome do bem comum, pela divisão

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exata das tarefas e a troca equânime dos serviços mútuos. Finalmente, os clérigos

já não ocupam o primeiro posto. Vêm atrás dos cavaleiros. Pois nestes é que

Henrique queria mostr ar que se apoiava, e não na Igreja, como o rei de França.

Para fazer f rente a es se r ival , e le queria mostrar-se dotado das virtudes e atributos

da cavalaria. Assim é que o mais poderoso dos barões de França constitui-se, no

último quartel do século XII, numa fase deci siva da evolução dos poderes públi cos,

no instigador dessa reviravolta que dava precedência aos homens da guerra sobre

os da oração. à proeza e ao p razer sob re a caridade e a penitência, ao poder profano

sobre o que emanava das l iturgias da sagração. Esse modelo logo ser ia propagado

pelos poetas em todas as cor tes do reino. Chrétien de Troyes, pas sando do serviço

do conde de Champagne ao de um ou tro impo rtante prínc ipe, F il ipe da Alsácia,

conde de Flandres, proclamava em alto e bom som em Perceval, dez anos depois

de Bento de Sainte-Maure: ~Amais alta ordem com a espada, feita e ordenada por

Deus,

é

a ordem da cavalaria. 

Reunidos em equipes maiores para os torneios, os cavaleiros se apresentavam

todos como sendo de uma região, de uma  pátria de que se orgulhavam. Os

invejosos que acusaram Guilherme, o Marechal, de prevar icar com a mulher de

seu senhor, membros do esquadrão que ele comandava como capitão, eram

nonnandos; não suportavam mais que um inglês lhes atirasse em rosto seus

sucessos e fanfarronadas. Para resis tir às pretensões unificadoras da realeza, os

príncipes do fim do século XII ainda podiam, portanto, recor re r a um sentimento

que podemos dizer nacional. -

Natio: es ta palavra la tina não aparece com freqüência nos esc ri tos da época.

Foi empregada nas escolas de Paris para designar os agrupamentos de ajuda

recíproca em que os clérigos, jovens e menos jovens, viam-se no meio de naturais

da mesma região, falando dialetos vizinhos. O termo é, no en tanto, encontrado

num elog io da Touraine composto na época de FiNpe Augusto; ele

é

empregado a

propósito-de Paris : esta cidade, afirma-se, situa-se acima de todas as outras  pelos

trabalhos de Marte e po rque domina as nações . Ta1v~z a palavra tenha saído com

natural idade da pena do cônego deTours, auto r desta mu i lúcida apresentação da

provínc ia de Tours , c iente como estava da existência dessas comunidades estu-

dantis na cap ita l do s estudos. Mas se ele a utiliza para falar de uma cidade que

considera a sede real , não estaria também querendo evocar a congregação dos

povos do reino sob a égide desse monarca que em 1155 tomara a frente de uma

conjuração de pai geral? Naque le mesmo ano, um out ro originá rio de Tours (se é

que não era o mesmo) redigia num lat im refinado um texto sobre 'O qual me deterei

um pouco, pois permite apreender a consciência que um dos povos da Gália tinha

de sua história e de sua identidade.

O destinatário desse escrito é mais uma vez Henrique, que acabava de ser

coroado rei da Inglaterra. Mas o autor não integrava seu círculo doméstico; servia

a pequenos órfãos, os filhos do sire de Amboise, que como bom vassalo combatera

bravamente pelo conde de Anjou, mas que, traído e vencido, acabara de morrer

cativo do conde de Blois. Graves ameaças pairavam sobre seus descendentes. Iriam

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a idade média na frança

os inimigos despojá-Ios da herança ancestra l? O senhor des se feudo, o plantage-

neta, t inha a obr igação de defendê- Ios a Lodocus to , e para convoca-lo a intervi r

com urgência um letrado de grande experiência, certamente um parente, foi

inst ru ído a rememorar -Ihe a his tóri a des sa pequena região subalt erna , int egrante

do principado de que Henrique era o chefe. Ele relatou os feitos dos valorosos

guerrei ros que protegeram a região ao longo dos tempos. Descreveu para o novo

rei a linhagem dos sires de Amboise , mostrando em que época e por qual

condej. seu própr io ancestr al, h aviam sido instalados nessa terr a, em razão de

seu mérito , e enfat izando o que vinculava estreitamente esta l inhagem à linhagem

angevina, assim como as obrigações recíprocas decorrentes dessa l igação secular.

O relato estabelece, por tanto, umparalelo ent re a his tóri a dos vassalos e a de seus

sucessivos senhores. F ri sa o valor que out rora t iveram, e que conservavam, para

os senhores do condado de Anjou , tanto o castelo quan to a comunidade reunida a

-sgu-r.edo . ~n u..'lG~ de citações- de--€íeero, o texto

é

antes de mais nada-uma

apologia da amizade na relação de vassalagem, que pelo bem do país associava

a

virtus,

a força dos condes,

à

fidelidade dos sires.

O auto r anôn imo decidiu ~começar brevemente pela situação do oppldum de

Amboise , Para isso, vale-se do que; encontrou nos l ivros de uma r iquí ss ima

biblioteca de Tours: a Vie de sa int Mar tin, Ratbode, as Gestes des Romains,

Godofr edo de Monmou th, uma ,his tóri a dos f rancos que fora uti li zada por Hugo

de Fleury. Mas também interpreta o que vê na região, os vestígios antigos, pedaços

de muros, ped ras escu lpidas e o s topônimos nelas insc ri tos, prolongando a lem-

brança de Roma. Na origem de toda a história .que esc reve , por tanto , e le s itua

Roma. Foi César , a firma , que dec idiu basear naque le t alude que dominava o Loi re

as operações de conqu ista que empreendia, no Oeste da Gália, contra Tours, Le

Mans, Angers, a Annórica. César é imaginado a edi fi ca r uma espéc ie de pre figu-

ração da pai sagem atual , uma ponte de madei ra , a lguns casebres para os serviça is

ao pé da col ina e o palác io , s emelhante aos dos prínc ipes doséculo XI: uma morada

const ru ída em madei ra , uma sala de pedra para a parada, uma tor re , e no a lto des ta ,

à guisa de bandeira, utIL1dQlo, a estétua do del.'-SMarte que mais tarde seria

destruída por são Martinho. Desse primeiro arranjo , confinado à época de ouro de

uma Antigüidade pagã e conquis tadora, nada ficou, segundo ele. Novos invasores

f izeram tábula rasa de Arnbo ise. Mas ao cabo desses desastr es o autor situa um

segundo herói fundador: é o mui li1x;ral e mui piedoso rei Artur (pois não era

necessá rio c air nas boas g raças de Henrique l I? ). Artur ent ra em cena quarenta e

se te anos depoi s da migração que ins ta lou o s bretões na península da Armórica.

Ele vem l iberar dojugo romano os povos da Gál ia que sé submetem alegremente

a sua proteção. Em combate corpo a corpo, mala o comandante das legiões diante

de Par is . Apodera -se então desta cidade, também aqui - como no texto anterior-

men te citado - reputada como capital. Nela é que comemora seu tr iunfo, nela é

coroado, nela reparte entre seus companheiros. toda a terra de que se tornou

possuidor pela força das armas. Entrega Angers e a Tou raine a seu senesca l _

mais um motivo de satisfação para o Plantageneta, que ambicionava este cargo de

impor tânc ia na-cone parisiense, E deve tê-lo deixado satisfeito igualmente o fato

de ver o rei dos francos em posição subordinada ao lado do rei Artur , s eu auxil ia r

luis

vii

L99

e sa télite. É verdade que também  amicíssimo - o que é mais que importante,

nesse elogio da amizade . Seja como for , fo ram os francos, depois da par tida dos

bretões, que deram prosseguimento à guerra de liber ação contr a o s romanos.

Levaram-na para os lados de Angers, des truindo a  casa dos romanos ; levaram-na

também para Amboise. Lá vivia uma mu lher que descendia , pelo pai , dos guerrei -

ros de Artur , mas que pelas mulheres era herdeira do primeiro proprietário romano,

uma viúva, devota de sãoMart inho. Depoi s da morte deseus doi s f ilhos, ela adotou

Clóvis, cedendo -lhe seus d ireitos, e assim foi que desde então e até Carlos, o

Calvo, o oppidium coube ao rei dos francos . É este, portanto, o lugar que cabe ao

povo franco, filho dos troianos, na memória co let iva, f rente aos romanos e aos

bretões.

Nessa a ltura da nar ra tiva é inser ida a genea logia desses reis, conduzindo dos

rnerovíngios e carolíngios aos capetos, aLuís VII, e concluindo com umjulgamen-

to sobr e a c ruzada que acabava de fracassar - pérfida alusão a Raimundo de.

Antióquia e a sua sobr inha Leonor, sobr e os quais o autor, hipocritamente,  se

proíbe de falar mais , poi s causa ram tanta a fl ição aos cristãos.  O funesto acon-

tecimento decorreu da habitual arrogância dos francos , acrescenta. Saibamos que

no Ambo ise do meado do século XI I os in imigos principais, o conde de Blois e

atrás dele o rei, pareciam mais francos que os outros, e francos desencaminhados.

Nesse resumo da h istó ria real, d e fato , uma clara ruptura é assinalada no fim do

reinado de Carlos, o Calvo: logo depois dele é que começou a decadência, afirina

o autor; Luís, o Indo lente , cedeu ante o s normandos. Até Carlos, o Calvo, os

francos foram admirávei s; s eus sucessores são dignos de desprezo. Ora, essa

ruptura é apresentada como efe ito direto do que chamamos hoje feudalização: nos

últimos anos do século IX, nesse território cujo destino é relatado no texto,

implantou -se a dinastia dos condes de An jou, que em seguida implantaria a dos

senhores de Ambo ise. Assim, é que se d ividiu a pátria franca : um feudo, um

subfeudo , uma sob reposição de poderes à qual ~orrespondeu uma espécie de

confusão da consciência nacional.

Note-se, ent re tanto, que a inda era mot ivo deorgulho ser f ranco em Amboise.

Toda vez que se fala de glória ou de alta cultu ra na ob ra que utilizo, faz-se

referência ao populus francorum, res is tindo com seu velar a todas as agressões. O

cônego de Tours -

Martinopolis,

a cidade de Martinho, primeiro patrono dos

francos e rivaf de são Dênis - mostra de passagem, em traços gerais, como a

.história d ivid iu a Gália entre as etnias. Distingue três povos, à part e os bre tões .

Escreve o erudito:  Os romanos, como' atestam os relatos, foram expulsos desse

reino pela vir tude dos godos , por um lado, e por outro, dos f rancos. Todos os nobres

deste reino originaram-se dos francos e e m seguida dos dácios e suevos que, após

a expulsão dos francos, apoderaram-se da Normandia e da maior parte das regiões

entre o Sena e o Loire. Depois devencerem e destruírem o r ei dos godos, os francos

permitiram, que muitos grandes de raça gótica, depois de estabelecerem com eles

a paz e a concórdia, dominassem na Aquitânia sob seu jugo e senhoria, e a eles se

misturaram pelos casamentos. Assim é que se afirma a primazia dos francos que

ocupam a Tou raine sobre os habitantes do Po itou: a fronteira encontra-se a poucas

léguas em direção ao Sul, marcada por uma linha de uimulos; eram segundo se

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diz ia , os marcos plantados por Childerico no limite dos dois povos. Mas os francos

afi rmam com igual força sua particularidade face aos outros francos encontrados

assim que se deixa Tours em dir eção a Orléans.

Os letrados das margens do Loire não haviam esquecido que Carlos, o Calvo,

fizera da Touraine e de Anjou um bastião contra os povos que o incomodavam,

contra os aquitânios, esses mes ti ços, por i sso mesmo traiçoe iros ecovardes, contra

os bretões e contra os recém-chegados, os pirat as , pagãos do Norte. Por isso,

povoara essas regiões com francos do melhor sangue: Quando buscava a origem

de sua l inhagem, o conde de Anjou voltava-se , por tanto, para Carlos, o Calvo: já

em 1096, ao ditar a seu tabelião sua própria memória ancestral, Fouque Rechin

recuava até esse Engelgério que foi o primeiro a receber es ta honra do rei dos

f rancos ; um bom, explicava, que não era da raça de F il ipe, o Ímpio, mas da raça

de Carlos, o Calvo , Quanto à genealogia condal incorporada à nar ra tiva que me

-orienta, acrescenta que esse primeiro feudatãr io forat ransplantadci do coração da

Francônía, da região do Orléanais, e que, por um feliz casamento, e não por

presente de seu senhor, tomara posse da tor re de pedra em Amboise. Entretanto,

o bom historiador que estabelece essa genealogia, ansioso por chegar ao século IX

e a Carlos, o Calvo, projeta duas gerações atrás a fundação da linhagem. Dá a

Engelgério um avô, e é ele um autóctone, descendente dos homens da Armórica

confinados nos brejos e matagais pela invasão bretã.

Carlos,

o Calvo, fizera desse

homem dos bosques seu guarda f lorest al , no ano em que expulsou os nonnandos

de

Angers ,

Ele teve um filho, um aventureiro - e toda vez que surge algum traço

da lembrança que os príncipes do f im do século XII, defendendo sua autonomia,

guardavam de seus antepassados , encontramos lá no fundo, nas brumas do imagi-

nário, a figura de um cavaleiro errante, desafiando a ideologia capet íngia. Esse

cavalei ro é mostrado a integrar-se aos bandos que o rei dos francos reunia contra

os nonnandos ; e le se ent rega ao rei, por ele é casado e estabelecido no Orléanais .

Através e graças a esse texto que se empenhava ernseduzi-lo, Henrique Plantage-

neta, conde de Anjou, podia sentir-se um franco, mas por migração, ligado por seu

•. mais antigoancestral à terra da -Armórica e investido do direi to de

submeter os

bretões.

Tornando-se senhores de um terri tório que segundo Fouque Rechin haviam

 arrancado às mãos pagãs e defendido contra os condes cristãos , os condes de

Anjou combaterem a partir de entãO;e v~lorosamente, em três frentes , sempre fiéis

ao rei dos francos. Mas também, e.pfecisamen te po r causa desse valo r; numa

posição de superioridade condescendente em relação a este, quando começou a

degenerar. É nessa posição que aparece Godofredo Grisegonelle, senescal, prote-

tor de seu senhor debilitado, como o Guilherme do Coroamenio de Luís . A essa

altura, casando-o com uma rica herdeira, como havia sido casado por seu senhor,

os condes de Anjou instalavam no castelo de Amboise o ancestral dos sires, um

franco, nativo também da boa região, a de Orléans.Cabe notar, no entanto, que ao

chegar ao limiar do século XI - e introduzindo em cena um quarto inimigo do

conde de Anjou, o conde de Blois - o autor dessa apologia não mais utiliza a

palavra gollus, senão para des ignar esse adversá rio. Perante ele constituíram-se

em comunidade nac iona l mais rest rit a os Andegavenses, os cavaleiros do princi-

 

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pado angevino, entre os quais a inda se destacava o pequeno grupo dos

Ambazien-

ses, aque les que o senhor dafort aleza de Amboise protegia e conduzia ao combate.

Podemos ver na maneir a como é contada a história desse cantão e de seus

senhores a expressão de um sentimento muito disseminado na França dessa época;

cabe também pensar que da mesma manei ra c ri st al izou-se por toda, parte, como

prolongamento da .dissocíação feuda l, a consc iênc ia depertencer a uma pátr ia que

por dever e honra todos deviam servir e pela qual os bons cavaleiro s deviam

derramar seu sangue, como diz ia João de Sa li sbury. Em certas regiões - no Sul

do reino, no Rouergue , no Gévaudan - , essa pát ri a ident if icava-se, s em dúvida,

com a diocese , no inte rior da qua l ent teteciam-se vigorosos elos de solidariedade

face às depredações dos bandos de soldados aventureiros, como herança das

inst itui ções pela paz de Deus. Em outros lugares, a pátria confundia-se com o

baronato, e sua raiz era a fortaleza principal a que estavam ligados os feudos, e

que era comandada pelo último rebento de uma longa linhagem de defensores.

Havia algo ao mesmo tempo de militar e de dinástico nesses embriões do senti-

mento nacional: eles-se esco ravam numa dupla memória, a memória das vitórias

obt idas, de agres sões rechaçadas a través dos tempos sob a mesma bandei ra hoje

brandida pelo senhor, ea memór ia de todos os homens que haviam passado essa

bande ira de pai para f ilho , de t io para sobrinho. Essa últ ima memória e ra cultivada

pelas narrativas genealógicas recitadas junto à sepultura dos antepassados.

No decorre r do século XII, c riou-se na a lt a ar is tocracia o hábito de reunir esses

túmulos, como os dos reis em Saint-Denis. Em 1096, Fouque Rechin confessava

não saber onde repousavam seus ancestrai s mais a fastados; quanto aos túmulos

dos mais próximos, ainda estavam dispersados. Ora, o fortalec imento das es trutu-

ras de Estado com base num modelo real, e portanto dinástico, propiciou um pouco

mais t arde o desenvolvimento de liturgias fúneb[es em to rno de panteões senho-

riais. Depois de 1119, estabeleceu-se na abadia de Saint-Ber tin a necrópole dos

condes de Pland res; depo is de 1133, foi a vez de'surgir a dos condes de Hainaut

na colegiada de Mons. Em 1157, pensando em seu p róprio sepultamento, o conde

de Champagne decid iu transfonnar o oratório de seu palácio em Troyes numa

colegiada consagrada a santo Estêvão, cujo nome havia sido adotado por vários de

seus parentes falecidos, espec ia lmente o mais glorioso de todos, que se tomara rei

da Inglaterra. Seus descendentes foram sepultados nesse lugar. Nas sepulturas dos

ancestrais ali reunidas, começaram a aparecer po r essa época uma sér ie de s inais

dest inados a perpe tuar a glóri a da casa . Até então, os túmulos e ram monumentos

de humildade. Em'Saint-Denis; Luís VI repousava sob uma simples laje. Mas na

laje que cobria os despojos de Godofredo Plantageneta foi depositada uma placa

de esmalte de co res vivas, mostrando o p ai do rei Henrique de pé, vivo, segurando

a espada da justiça. A viúva de Luís VII mandou ornar o túmulo de seu esposo

com uma decoração de ouro, prata e pedras preciosas; essa ornamentação suntuosa,

cujo brilho contrastava com a austeridade do prédio cislerciense que a abrigava,

transferia a pessoa do piedoso rei para os esplendores da Jerusalém celeste, em

plena concordância com a ideologia da realeza r ecém-desabrochada. Nessa época

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202

a idade média na frança

é

que aparecem as primeiras estátuas jacentes a exaltar os príncipes falecidos,

oferecendo à contemplação geral a imagem sublimada de seus corpos perecíveis;

imagem semelhante à dos santos, profe tas e reis do Antigo Testamento ostentada

no pór tico das catedrai s, só que deit ada, como est ivera o cadáver no lei to exibido

publicamente em pompa fúnebre , exa tamente como ele ropousava adormecido à

espera do Juízo Final. Assim é que se

podia

ver a efígie do conde Henrique,

. cognominado o Liberal e falecido em 1181, em Saint-Étienne de Troyes, através

das br~has abertas num sarcófago de prata e bronze dourado, tão esplendoroso

quanto o túmulo do rei de França, seu cunhado e seu sogro. Deitado sobre a

plataf rma deuma tumba elevada, via-se a efígie de seu sucessor, Tribaut, morto

vinte anos depoi s no momento em que se preparava, em postura real, para chefiar

a quar ta c ruzada rumo à Terra Santa ; a ef íg ie dir-se-ia suportada pela glória de sua

linhagem: nas faces laterais do sepulcro, onze estatuetas de prata representavam

os parentes próximos do falecido; ent re eles, t rês reis: o cunhado, de Navarra, o

antepassado, da França.'e o-tio-avô, da Inglaterra. Prestígio inconteste da institui-

ção real, que nunca chegou a ser posto em cheque pela feudalidade, nem mesmo

no auge de sua força dissolvente. Entretanto, se se cultivava tão cuidadosamente

a memória dos ancestrais coroados, ~r a par a melhor preservar os direitos das

dinastias principais face àquele que então ostentava a coroa.

Na segunda metade do século XII , f loresce na al ta aristocracia do Norte da

França uma abundante l iteratura familiar, de que hoje só restam vest íg ios. Tai s

escri tos relatavam o que não era dito pela imagística dos túmulos. Ultrapassando

os limites da memória, os eruditos, incumbidos de preservá-Ia, er ig indo no lat im

das liturgias e da ciência sagrada esses monumentos da lembrança, não hesitavam

em situar naorigem dal inhagem a f igura imaginár ia de um herói fundador, a figura

de um jovem aventureiro que, na época em que se inaugurava o processo de

feudalização, havia desposado a terra, apossando-se de uma mulher. Por esta

mulher é que viera ~osangue dos reis , sendo necessário provar que ele corr ia nas

veias do atual senhor. Na realidade, todas as l inhagens nobres do reino, ou quase,

reunidas pelas alianças matrimoniais numa vasta parentela, não obstante o tabu da.

incesto..podiarn vangloriar-se ~. a começarpe la linhagem dos Capeto - de ter

Carlos Magno entre seus ancestrais . O importante é que estejam reivindicando essa

ascendência precisamente nessa época, no momento em que se sentem ameaçadas

pela expansão da monarquia. ,.

Ba lduíno, conde de Hainaut, n iandou que se procuras se nas biblio tecas de

Saint-Denis, Troyes eC luny uma cópia-di' his tória de Carlos Magno atribuída ao

bispo Turpin. G. Spiege1 localizou seis traduções desse texto latino.relaboradas

entre 1200 e 1230, nas f ronteiras do .Império, para a condessa de Saint-Pol , i rmã

do conde Balduíno, para o grande justiceiro de Flandres, para o sire de Béthune,

para Renaud de Dammartin, conde de Boulogne. No prólogo dessas obras, Carlos

Magno, lido pelo pat rocinador como seu ancestral, aparece coberto de todas as

virtudes ela cavalaria, apresentando-as exemplarmente àqueles que lhe deploram

o declínio. E foi durante o século XII, enquanto se fortalecia o poderio capetíngio,

que os estudiosos a serviço dos príncipes começaram, para agradã-los, a lembrar

que Hugo Capeto usurpara a coroa, enquanto por toda parte, nas cortes, falava-se

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luis vii

203

da profecia de são Valério. A história surgira por volta de 1040 em Montreuil-sur-

Mer, aonde Hugo Capeto, então duque dos francos, trouxera a p edido do santo suas

rel íquias que se encontravam em Saint-Bertin. Para isso, Valério prometera-lhe

que se tornaria rei, e que a realeza permaneceria em sua descendência até a sétima

geração _ ou seja, para sempre, pois no simbolismo dos números, sete é o do

infinito. Os príncipes concorrentes, no entanto, começaram a contar atentamente

os anos e gerações. Order icus Vi tal is observara, na época de Luís VI, que quatro

reis já haviam reinado antes dele. Depois, como a lenda se transferisse do

personagem de Capeto ao de seu pai Hugo, o Grande, Luís VII foi designado como

o sétimo. Quando morreu,

ó

prazo portanto se esgotara, a usurpação teria fim e a

coroa voltaria a seus herde iros de direito, os descendentes de Carlos Magno. O

f ilho deixado pelo rei de França era o principal interessado. Ou então - o que

pode ter pensado por um momento o conde de Flandres, Filipe da Alsácia - teria

de ceder o lugar, ou apresentar-se como o novo Carlos Magno, o que certamente

passava pela cabeça de um outro carólida, Balduíno de Hainaut, seu sogro. No

relato que escreveu em 1196, André, monge da abadia de Marchiennes, da qual

era patrono Balduíno, exaltava-o por ter dado à dinastia um novo fôlego, conce-

dendo sua filha em casamento ao jovem rei Filipe.

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Filipe Augusto

'Est e Fi lipe , Fi lipe 11,para nós é F il ipe Augusto. O epí te to foi apl icado a seu nome,

ainda em v ida, por Rigo rd, um monge que veio do Su l do reino par a concluir na

abadia de Sain t-Denis, em 1196 , a h istór ia do novo reino que havia encetado.

Chamá-Io de augusto era iden tif icá-Io a César, mas sob retudo celebrá-lo por ter

amp liado o Estado - augebat rem publicam. Filipe acabava, de fato, de adicionar

o Vermandoi sao domínio rea l. Ainda o ampliaria muito mais, dobrando definit i-

vamente, antes-de morrer, todas as resis tências feudais .

Na fes ta de Todos-os-Santos de 1179, foi e le sagrado, com apenas qua torze

anos. Se~ pai não tivera outros filhos. Havia sete anos os homens da Igreja o

exortavam a associar o herdeiro ao trono. Finalmente ele se decidira, anunciando

aos bispos e barões reunidos em Paris que a sagração teria lugar no dia 15 de

agosto, fes ta da Assunção de Nossa Senhora . Durante uma caçada,

°

futuro rei

perdeu-se na f lorest a de Compiêgne; foi encontrado doi s dias depoi s, semimor to;

iria Deus tomar de volta o filho homem que finalmente concedera? Desorientado,

Luís VII lançou mão novamente do cajado de peregr ino e acor reu penitente ao'

sepulcro de Tomás Becket, suplicando aomártir que outrora defendera das violên-

  cias do Plantageneta que o recompensasse com a cur a de seu herdeiro . O santo

atendeu-o. Quanto a são Dêni s, concedeu a F il ipe uma graça suplementar : acome-

teu de paral isi a o seu pai , que de volt a da Ingla te rra vie ra ora r j unto a seu túmulo.

Luís VII ainda sob reviveu um ano, m ,s já er a um trapo.

F il ipe já e ra maior, s egundo o costume, mas único. Em sua idade , morri a-se

muito nas caçadas e exercícios militares~E/sobretudo ainda não se era maduro o

suf ic iente para esquivar -s e à inf luência dos mais velhos da parente la e daque les

que também faz iam par te dá famíl ia , pela homenagem que prestaram. Os grandes

p ríncipes que foram a Reims par a a cerimôn ia da unção - o conde de Plandres,

que levava a espada, o conde de Hainaut, o jovem Henrique, co-rei da Ingla-

terra, representando seu pai, cujos ricos presentes trazia, e ainda os quatro tios

de Champagne, irmãos da rainha mãe, protetor es do sob rinho : o arcebispo,

consagrador , o conde Henrique, o Liberal, o conde de Blois e de Chartres,

Thibau t, senescal de França, e o.conde Estêvão de Sancerre _ esperavam

manob rar o ado lescente, pelo bem de s ua própria casa. Com esse objetivo é que

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filipe augusto

205

o f lamengo, Filipe da Alsácia, que não tinha fi lhos, apressou-se a dar-lhe em

casamento sua sobrinha, Eli sabeth, r ompendo um pacto de esponsais fechado

anteriormente com a casa de Champagne.

Essa pol ít ica, no entanto , jogava osgrandes uns contra os out ros. E logo e les

se deram conta deque F ilipe não era de sede ixar conduzi r fac ilmente. Logo depoi s

de coroado, mostrara sua resolução apoderando-se dos castelos do dote de sua mãe.

Hábi l, j ogava os de Champagne contra o conde de F landres. Foi o que aconteceu

em 1184, quando convocou um concílio em Senlis par a romper, sob p retexto de

consangüinidade, a união matrimonial que não se consumara. Simples manobra de

intimidação, pois manteve consigo ajovem rainha. Ela seria úti l. Três anos depois,

dar-lhe-i a um herde iro indispensável. Em nome desse filho, após a morte de

Eli sabe th , e le tomou posse do r iquí ssimo casamento de que seu t io e sua t ia

haviam dotado a esposa - o Artois, o Vermandois, Amiens. Tendo com isso

••aumentado

.acoise.püblica ,

enfrentou os feudais contra ele coligados.

Contava com' dois trunfos. Em primeiro lugar ; preva lecia-se do recente

fortalecimento da moral cavaleiresca, cujo pilar cen tr al era a lealdade. Bom

cavalei ro , o velho rei Henrique P lantageneta mos trou-se lea l a seu jovem senhor,

recusando a colaboração de suas forças às dos príncipes empenhados numa

investida contra o capeto que com sua adesão sairia vencedora. Fil ipe podia contar

com a lealdade mu ito mais só lid a, indefectível, dos guerreiro s de sua casa. O

segundo e melhor apoio que lhe permitiu con tornar o s primeir os obstácu los foi

prec is amente a

 família ,

a casa que lhe era legada pelo pai, muito diferente

daque le bando dispara tado de fanfa rrões e hist riões que era a cor te do mar ido de

Leonor: alguns homens sólidos, hábeis, cujos filhos serviam depois deles , Roberto

Clemente, o Marechal, Gautier, o Camareiro. Fil ipe soube completarjudiciosa-

mente essa equipe, recrutando ao voltar dacruzada esses companheiros de combate

inimitáveis que foram Bartolomeu de Roye, cavaleiro do Vermandois, Guilherme

de Barres, Mateus de Montmorency; e jovens let rados recebidos em sua capela:

André, fo rmado na co rte de Champagne, Guilherme, v indo da Bretanha para

estudar nas escolas de Mantes e Paris , e finalmente o Irmão Guérin, o hospitaleiro,

  conselheiro especial do rei'Filipe no palácio real ein r azão de sua sabedo ria e de

seu incomparável dom de aconselhamento, que se ocupou dos negócios do rei e

das necessidades das igr ejas como se fosse o segundo junto ao rei . Para todos,

Filip e foi um bom padrinho, generoso, distribuindo as togas, d inheiro , pedras

pr ecio sas. Aos homens de armas dava os feudos confiscados nas prov íncias

conquis tadas e as r icas herde iras ; aos c lé rigos, as boas prebendas , ins ta lando os

que o haviam bem servido e os meninos de sua parente la. nas sedes epi scopai s -

Guérin em Senl is, o sobr inho de Bar toJomeu em Evreux, os f ilhos de Gauti er em

Noyon, Paris e Meaux, o de Rober to Clemen te em Senso Guerreando, o rando,

investigando, enumerando, regis trando ou verificando os orçamentos para a cons-

trução das torres e recintos urbanos, esses excelentes servidores sustentaram entre

1190 e 1200 a armadura mil it ar e administrativa que fez a força insuperável da

monarquia.

Para os contemporãneos que lhe fizeram o elog io, entretan to , essa fo rça

derivava principalmente da graça divina. Deus abençoou Fil ipe com seus favores

porque e le cumpr iu f ie lmente as promessas da sagração, Foi o que Rigord empe-

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a idade média na frança

si procuradores que, investidos de seus poderes, participariam desses tribunais e

 recitariam as questões de sua terra. Desses  bailios , homens que haviam,

recebido o arrendamento

(bail)

de seus direitos, nem a rainha nem o arcebispo

podiam tomá-Io senão cometessem erime de sangue. Ele os havia dis tribuído por

suas ter ras, d ist inguindo cada uma por seu nome - o que equivalia a reconhecer

a personalidade de cada região -, para aplicarem a ju stiça mensalmente em seu

nome, reconhecer o direi to de cada um, mas protegendo o seu, es tabe lecendo por

escr ko o que lhe cab ia nos rendimentos de justiça . Filipe preocupava-se com a

justiça, mas não esquecia o dinhe iro. Em cada senhor ia , os bai lios deviam encar -

regar os prebostes de estabelecer quatro homens de confiança.t' prudentes, l egít i-

mos e de bom renome ; as questões locai s não seri am t ra tadas sem seu aconse-

Ihamento. Em Paris , eles seriam seis, e o próprio rei osdesignava: eram burgueses ,

e os mais r icos negoc iantes, grandes cambist as, homens que sabiam conta r, se não

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Todo-ano-em Saint-Rémi,

nas festa s

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na-Assunção,  todes-os

seus rendimentos, foros e recei tas ext raordinári as ser iam levados a Par is , para o

lugar seguro que ele mandara fechar dentro de for tes muralhas.

Fi lipe chegou à S ír ia pela Sicí li a. De todos os rei s de França, e ra o primeiro

que tomava o caminho do mar. No Oriente, combateu valor osamen te - e perdeu

a saúde. Mas retomou. O mais rápido que pôde. Rápido demais, talvez: Jerusalém

não fora libertada. Joinville mostra como são Luis foi forçado a admitir que seu

avô fo ra criticado por essa precipitação. No fim de 1191, Filipe estava em

Saint-Denis, agradecendo ao mártir por ter velado pelo reino e por ele mesmo

dur an te a dura viagem, cujas vantagens no terreno temporal estava para extrair.

Não eram vantagens desprezíveis. A cruzada o l ivra ra de seus princ ipai s

rivais, e especialmente do mais p reocupan te por três anos. De fato, Ricardo

Coração de Leão permanecera além-mar, o único a f azê-lo dos três reis que se

haviam posto em marcha, como out rora os t rês magos rumo a Belém; quedou-se ,

glorioso, a combater cortesmente os muçulmanos, acumulando proezas arturianas.

No caminho de volta, seus inimigos a lemães o haviam capturado, ret endo-o por

longos meses e exicindo cada.vez.mais.para

SO)tAI

I  presa.de pri..meira.-PaP. .

justificar o seqüestro de um cruzado, alegavam as violências e perfídias cometidas

pelo Plantageneta na Terra Santa. A informação espalhou-se: começava-se a

per ceber, com desencan to , que a expedição a Jeru salém não er a para o s ricos

apenas uma questão de fé, mas sobretudode prazer e lucro. Filipe tratou de

espalhar a inda mais a not íc ia. Como se-entendera out rora com Ricardo contra

Henrique 11,seu pai , entendeu-se contra Ricardo com seu irmão mais moço, João,

sem terra e ávido por possuí-Ia, prometendo-lhe a Normandia, o Maine, Anjou, a

Aquitân ia, tudo . De sua parte, apoderava-se das fo rtalezas ao longo do Epte, nos

limites do domínio, e para começar da mais perigosa , Gisors. E tratando de agi r

com rap idez para se apoder ar do que pod ia, pois Ricardo retomaria.

O lucro era precário. Mas era durável, em compensação, o benefício que a

hecatornbe dos feudais rendia ao rei da França. Ele vol tara praticamente sozinho.

Dos grandes feudatários que o haviam acompanhado, quase todos caíram antes de

Saint-Jean-d' Acre, e .eram -es mais poderosos: os tr ês irmãos de Champagne, o

conde de F1andres, que não deixava herde iro, e cuja suces são era par te cobiçada

filipe augusto 209

pelo rei, que se escorava nos direitos herdados da falecida mulher. Revelou-se

então c la ramente em que eram fracos os Estados cuja reconst rução corre ra para-

lelamente à da monarquia. À frente dessas insti tuições polít icas era necessário um

guerreiro, e um guerreiro fis icamente capaz de manejar a espada. Também o reino

precisava de um homem assim à sua frente. Mas os princ ipados f icavam mui to

mais vuinerávei s quando as l inhagens eram bruscamente decapitadas, como o

fo ram pela terceira cruzada, pois eram feudos móveis da coroa e os costumes

que situavam o rei no ápice da pirâmide das homenagens ofereciam-lhe mil

recu rso s de in ter vir par a se apoder ar deles, ou pelo menos torná-los t empora-

riamente inofensivos. .

No advento de Filipe Augusto , o sistema ju rídico teo rizado po r Suger já estava

plenamente ins ta lado. Já o estava prat icamente em 1169, quando Henr ique P lan-

tageneta, procedendo à parti lha de seu patrimônio na assembléia de Montmirai l,

levou seus f ilhos Henr ique e Ricardo a co locar as mãos entre as de Filipe, um

menino de três anos e meio - o primeiro, pela Normandia e Anjou, o segundo,

pela Aquitânia. E po r outro lado, quem ainda se recusaria a admitir que o Capeto,

por ser rei, não precisava prestar homenagem a n inguém? Este princípio foi

aplicado em 1185, quando caíram nas mãos de Filipe Augusto, na cidade de

Amiens, poderes que cab iam ao bispo. Du rante o reinado, os especialistas em

d ireito que estavam a seu ser viço ajudaram-no a aper tar a malha em que se v iam

cativas as maio res senhor ias do reino. Quando p rocedia

à

investidura desses

principados, agora tratados como tenures  eles o aconselhavam a exigir o compro-

misso de fiadores do feudatário,jurando indenizar o soberano se o p ríncipe viesse

a negligenciar seu s deveres. Depois de 1202 , impôs-se entre os subvassalos,

quando prestavam juramento de f idelid ade a seu próprio senhor, o co stume de

reservar expressamente a fidelidade primordial d~vida ao suserano, o senhor rei.

Em 1209, perto da torre recém-construída de Villeneuve-sur-Yonnc, e a conselho

'do duque de Borgonha, do conde de Nevers e outros; grandes, o rei estabeleceu por

decreto que em caso depart ilha deum feudo Iígio cadabeneficiário não deveria prestar

homenagem por sua porção ao chefe da casa, mas diret amente ao senhor do feudo,

servindo-o. Os barões sabiam que podiam tirar partido de tais disposições, e se

apressaram a insti tuí-Ias de sua par te , mas t ratando de respeitá-Ias também.

Observemos, entretanto, que se o direi to feudal delineou-se com tanta

rapidez foi sobretudo porque o feudo se tomara a maneira nobre de possui r a t erra

e organizar as sucessões, e sua conces são, uma das modal idades jur íd icas que os

homens da lei passaram jl ríebater nos processos. Por mais que se exaltasse a

amizade da vassalagern ese colocasse a lealdade no alto de todas as virtudes a

serem exibidas pelo fidalgo, o fato é que jurar sua fé tendia a não passar mais de

uma formalidade cumpnda da boca para fora, já que era necessár io para entrar na

••. Dependência de um feudo em

re la ção

a outro. ou o f eudo a ela submetido. O mesmo que

mouvallce.

(N.T.)

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posse de um bem. Por essa razão é que já se admitia que as viúvas dotadas e as

herdeiras de feudos também deviam prestar homenagem, apesar de incapazes, por

se rem mulheres, de presta r o se rviço das a rmas . Este, de fato, tomava-se secundá-

rio. Éc la ro que o rei esperava que os homens que se haviam ajoelhado à sua f rente

viessem combater a seu lado. Ele ordenava aos escreventes de sua casa que

estabeleces sem a l ist a dos cavaleiros de que dependia a defesa de ta l burgo ou tal

castelo; as escritas a respeito dos feudos enumeravam cuidadosamente em seus

arquivos aqueles que, de cada reg ião , deviam vir juntar-se às hostes, a elas

integrando-se durante quarenta dias e a seus própr ios cus tos, ou então resga ta r

as prestações militares a que estavam obrigados pela

tenure.

Mas em suas

expedições públicas ou pr ivadas o r ei contava mais com a dedicação de seu s

amigos, de seus domésticos; e dos principados grandes ou pequenos sobre

os quais reforçava seu poder de senhor supremo esperava sobretudo lucros

-fmsnceiros (fomecídos pelos reliefs)

e vantagens políticas - ou os meios

de tir ar partido do estiolamento das linhagens.

De fato , o cos tume agora estabelec ia o senhor do feudo em pos ição preemi-

nente em relação à parentela do feudatário falecido, autorizando-o a exigir a guarda

das c ri anças menores , a receber por isso até sua maioridade, a casar como bem

entendesse asviúvas e órfãs . Foi uma prerrogativa que Fil ipe explorou plenamente,

por todos os lados, e desde o início de seu r eino. Um exemplo: em 1181, o conde

. de Nevers e Auxerre morre , deixando apenas uma f ilha ; durante t rês anos, o rei,

guardião da herdei ra, dei ta mão em todos os f rutos da senhor ia , e em seguida dá a

moça em casamento a seu primo de Courtenay ;quando ela env iúva, toma-a de

vo lta, entregando- a com os dois condados a Hervé de Donzy, naturalmen te

recebendo por i sso o

relief,

e a única mulher nasc ida des sa segunda união tampou-

eo é negligenciada pelo rei, que a r eserva par a seu próprio neto , arrancando de

Hervé a p romessa de jamais d ispo r dela sem consentimento rea l, se por a lgum

imprevisto esse contrato matrimonial não se conçretizasse, Em 1201, foi a vez de

a Champagne cair, por acidente familiar, sob a pesada tutela do rei senhor,

À

morte

de seu marido, a condessa Branca de Navarra, que só tinha uma filha, estava

grávida e a ponto de dar à luz . F ilipe a tropelou os fatos , aceitando receber a viúva

em sua homenagem, mas com acondição de que ela se comprometesse a não casar

denovo nem casar sua filha sem ouv ir sua opinião, e a colocar sob a guarda do rei

o filho que esperava. Baseando-se nesse acordo, ao qual se l igavam os principais

barões de Champagne, o Capeto pôs as mãos em duas fo rtalezas. Graças a uma

que ixa esc ri ta que Branca mandou ao papa em 1215, sabemos que o príncipe Luís,

f ilho mais velho do rei de França, querendo extrair-lhe dinhe iro, mandou um belo

dia que seus cavaleiros e sargentos invadissem a sala onde ela se encontrava à mesa

com o filho; retirando-se para o quarto das senhoras, ela conseguiu que os intrusos

fossem rechaçados pelos seus. O episódio mostra como era exercido o direito de

guarda. Por força desse direito, Filipe fez o que bem entendeu com as duas filhas

do conde de Flandres, morto no Oriente, e com a herdeira da Bretanha,

F inalmente, foi uti li zando o direi to do feudo que ele conseguiu destruir o

 império plantageneta. Ao voltar do cativeir o, Ricardo já não lhe estava ligado

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idade média na frança

. pela homenagem, tendo retirado sua con fiança no senhor traidor. Durante cinco

anos, opôs-se a ele na mais dura das guerras. Em setembro de 1198, envia a todos

os seus povos um boletim de vitória: é mais uma vez o texto escr ito como

inst rumento de propaganda pol ít ica, c ri ando o fato para em seguida explorá-Io e

ampliar sua repercussão. Diz ele: Esmaguei brutalmente o inimigo diante de

Gisors: a ponte sobre' o Epte caiu sob os pés dos cavaleiros de França em

debandada. O rei bebeu no rio; vinte de seus cavaleiros afogaram-se; minha lança

de~bou Mateus de Montmorency, Alain de Roucy e Fouque de Gu illeval; deles

fiz p,risioneiro s, junto com cem outro s combatentes; env io os nomes da maioria

deles; quan to aos que fo ram' c aptur ados por Mercad ier [um chefe de

routiers],

ainda não os conheço. Prisioneiros a rodo, duzentos cavalos capturados, dos quais

cento e quarenta armados em ferros.  Filipe Augusto não fora vencido em batalha;

Fréteval não passava de um t ropeço. Mas uma derrota fei a, cujas conseqüências

poderiam ter sido gravíssimas se. um outro aç dente nãQ.houvesse invertido a

situação

nã'primavera

seguinte: atingido por uma saraivada de balestras , Ricardo

morria sem deixar filho legít imo. Havia dois pretendentes a sua sucessão: o

sobrinho, filho de seu irmão mais velho, Artur, conde da Bretanha , e João, o i rmão

mais moço, que logo se apoderou da N ormandía e dá Inglaterra. Era tudo que Fil ipe

podia desejar, o momento de agir como seu avô Luís VI em Flandres, mas com

muito mais eficácia, pois o direito senhorial tornara-se mais c la ro . Ele acorreu a

Mans, tomou sob sua guarda o menino Artur, investiu-o do Maine e de Anjou..

levando-o consigo para Paris. Usando o menino como uma carta decisiva no jogo

cerrado que sustentava contra o t io , soltou-o no momento exato, tomando-lhe de

volta os dois grandes feudos para entregá-Ios a João sem Terra em troca de um

enorme relief, e concordando, como garantia da paz acertada, em unir seu filho a

Branca de Castela, sobrinha de seu novo fiel. O principal para ele era que o

Plantageneta retomasse a sua homenagem e que pudesse exercer sua autoridade

sob re ele por todos os meios que lhe eram oferecidos pelo costume feudal.

Alguns meses depois, justamente, dois príncipes doPoitou que eram vassalos

de J oão - Hugo, sire de Lusignan, e oconde da Marche, Sucessores dos potentados

indóceis que oduque da Aquitânia tentava

á

muito custo manterem sua fidelidade,

no início do século XI - desafiaram seu senhor: el e tomara para s i a herdeira que

um deles destinava ao filho, o que era traição. Foram então exigi r jus ti ça ao senhor

deste senhor, o rei da França. Semelhante lIpclo, subindo de baixo para cima na

escala das vassalagens, estava de' aco rdo com os novos hábito s. Filipe não se

eximiu de receber a queixa, convocando seu homem na corte de Paris para

estabelecer a paz. João não compareceu, alegando que só poderia cumprir o

serviço de vassalagem nas marchas da Normandia. Respondeu-se que ele estava

convocado oficialmente, como duque da Aquitânia, Ele persi st iu. A corte baixou

então sua sentença, em abril de 1202. Constatando que seu par recusava-se a

cumprir seu dever de conselheiro, os barões da França pronunciaram a   commi-

se  , confisco de todos os feudos em proveito do rei. Baseavam-se para isso em práticas

consuetudinárias. Acontecia que determinado senhor traído ameaçasse apossar-se

da terra e do castelo do infiel; mas era muito raroque s e arriscasse.a aplicara sentença

E de qualquer modo tal sanção nunca havia sido aplicada a um principado.

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filipe augusto

213

Era uma verdadeira revolução interpretar dessa maneira o direito, quanto às

prerrogativas do senhor. Filipe sentia-se forte o suficiente para baixar um tal

julgamento e mandã-lo executar. Valeu-se de novo de Artur, investindo-o solene-

mente da armadura e recebendo sua homenagem pela Bretanha, que com esse gesto

tornou-se um feudo móvel da coroa. Viria a investi-lo, quando deles se apoderasse,

da Aquitânia, que o novo cavaleiro herdava de sua avó, de Anjou e do Maine,que

vinham do avô. Mas não daNormandia. Esta província seria o preço do relief. Ele

a queria, e foi por ela que começou a conquista. Como João, queixando-se de

injustiça, recor resse ao papa, que pre tendia int rometer-se, Filipe mandou respon-

der - apo iado pelos bispos e barões - que se tratava de direito feudal, de uma

questão temporal que em nada d izia respeito à corte de Roma, e que lhe parecia

 injur ioso para a dignidade real submeter semelhante caso à arbitragem ponti-

fícia. Quando corr eu a in formação de que João sem Terra matara com as próprias

mãos seu sobrinho fei tó 'prisioneiro em Roueri, o rei de' França aproveitou para

tomar a inda mais. Ajudado pelos grandes da região abalada por esse crime,

apoderou-se de An jou e doMaine, mas deixando esses condados - cujo herdeiro

perdera seu direito por causa do crime - nas mãos do oficial, o senescal, que

substituía o senho r ausente à fren te da casa condal. Não se arriscou para além das

fronteiras da velha reg ião f ranca. Por demais afastado, e sobretudo estranho, o

Poitou era inapropriável. Mas ele manteve consigo Tour s e essa gr ande recompen-

sa que era o ducado da Normandia . Não mais haveria um senescal nessa p rovíncia.

Foram os bailios do rei que a administraram. Ela passou então a fazer parte do

domínio real, legitimamente anexada em virtude dos costumes, ou melhor, do

direito do feudo.

Mas o vassalo traidor não fo ra destruido. Em 1213, Filipe simulou dirigir-se

à

travessia do mar para per seguir na Inglaterra oirei João, excomungado por ter

..pressionado as ig rejas com demasiado zelo. Estava avançando com suas hostes

pela região flamenga. Foi então que seu adversário, distribuindo dinheiro farta-

mente, atiçou contra ele o conde de Boulogne e o de Flandres, além do imperador

Oto, rei da Alemanha. O primeiro, Renaud de Dammartin, era um velho amigo do

Capeto, que o fize ra cavalei ro com suas próprias mãos, mas era também um desses

ambiciosos que, promovidos rapidamente nas casas por favorecimento do senhor,

esqueciam a amizade para conduzir sua própria política; desde que desposara a

.herdeira de Boulogne, repudiando a prima do rei, ele retomara as pretensões de

seus antecessores condes, senhores do grande porto da Mancha, orgulhosos de

.descenderem de Carlos Magno e de ter Godofredo de Bul hâo entre seus parentes;

Renaud traiu, e o amor que lhededicava Filipe transformou-se 'em ódio mort.al; em

1211, a corte de Franç a decidira uma nova

commise,

a da for te senhoria de Mortain,

que o rei concedera a Renaud ao se apoderar da Normandia; no ano seguinte,

Renaud fez-se homem lígio do rei da Inglaterra. Quanto ao conde de Flandres,

Ferrando de Portugal, não se conformava de ter sido obrigado a pagar um tão

grande relief çat« retomar o grande feudo do chefe de sua mulher; a população da

região compartilhava esse rancor, e ele podia contar com sua ajuda; tratava,

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a idade média na frança

portanto, de servir mal a seu senhor, tão mal quanto podia sem correr o risco de

ser punido; quando o rei penetrou no condado, ele se passou para o campo

adversário. F inalmente, o imperador Oto de Brunswick dependia inteiramente de

João sem Terra, seu t io mate rno; havia qua tro anos fora também excomungado por

sua polí ti ca it al iana, que ia de encontro aos interesses da Santa Sé, e o papa

Inocêncio III fizera e leger e coroar contra ele o jovem Frederico de Hohenstaufen

como rei da Alemanha; Oto via, portanto, no

 muí

cristão rei de França,

suste~táculo natural do papado, seu rival mais perigoso. Coalizão. Ela atacaria

Filip6 Augusto pelo Nor te, enquanto, pelo Sul, João sem Terra empreenderia a

reconquista de sua herança. 

Em fevereiro de 1214, João desembarcou em La RochelIe. Avançou

tomando Angers a 17 de junho, e em seguida iniciou o assédio a um castelo

vizinho, Roche-aux-Moines. O rei de França incumbi ra seu f ilho, Luís , conde

de Artois, de r~tj.r--nessa--parte, cGHrtodos as cavaleiros a rregimentados na

parte merid ional do domínio. Ele, por sua vez, mantinha-se em Flandres, com

os cavaleiros do Norte. Lá, devastava e estragava a te rra de seu vas sa lo inf iel.

Mas seus barões aconselharam-nó a não enfrentar o inimigo, e ele se retirou de

Tournai em direção a Lille, em situação difícil. A 2 de julho, o rei da

Inglaterra levantou o cerco e inopinadamente bateu em retirada, ao se

aproximar Luís com a cavalar ia f ranca. A 27, Filipe obteve em Bouvines

uma .v i tória impressionante, que os historiadores franceses considerariam

fundamental, com razão.

O acontecimento é narrado num relatório escrito imediatamente por Guilherme, o

Brctão, o capelão do rei, que durante a batalha se mantivera junto a seu senhor.

Apresento a segu ir oque devemos levarem conta desse relato, escrito naturalmente

com a intenção de glorificar a -coroa.

Bouvines fo i uma verdadeira batalha, um desses raros combates encetados

de acordo com todos os-ritos, para. decidir definitivamente um conflito político,

Nas duas extremidades do terrenoescolhido para as cargas de cavalaria, alinha-

ram-se frente a frente três desses corpos que muito apropriadamente eramdeno-

minados batalhas. No centro de cada disposit ivo colocaram-se os dois reis, o da

França e o da Alemanha, cada qual ostentando os símbolos de seu poder: de um

lado, a aur iflama e o estandarte das flores-de-Iis, emblemas sagrados ; de outro _

para além do espaço semelhante àquele que, no início da partida de xadrez, .separa

as brancas das negras -, emblemas mu ito diferentes, pro fanos, ar rogantes e como

que diabólicos: uma carroça, réplica do caroccio que os milaneses do ano mil

arrastavam em circunstâncias semelhantes, e', sobre ele, um estandarte em forma

de dragão, com a águia imperial.

Filipe estava chegando aos cinqüenta anos. Com essa idade, na época, o

senhor, cansado, retirava-se do jogo mil itar. Pois ele não hesitou em expor seu

corpo ao risco. Veio cercado dos homens de sua casa, unidos, todos francos,

franceses. Do outro lado, em compensação, urna série de conjurações perversas

impede que nações diversas se constituam num conjunto coerente.

 

filipe augusto

2L5

Filipe não queria entrar em combate: um cristão não tenta seu Deus' o dia

27 de julho de 1214 era um domingo: no dia do Senhor , um cr istão não t'az,~o das

armas. Mas foi forçado a fazê-lo pela malícia dos inimigos.

. Toda batalha é uma cerimônia quase religiosa. O rei de França desempenhou

perfeitamente seu papel; do is clérigos postavam-se a seu lado, cantando incessan-

temente os salmos de David, no auge darefrega. No silêncio que antecedeu o início

da batalha, ele voltou-se para o Senhor, implorando sua bênção, e em seguida,

estendendo as mãos sobre o povo a joelhado, abençoou-o. Em rigoroso respeito ao

ritual, falou-lhes então. Aqueles que à nossa frente se encontram, disse, são os

prepostos do Maligno; anátema sobre o imperador por ter pretendido destruir a

Santa Ig reja; os guerreiros que o acompanhavam, acrescenta Guilherme, o Bretão,

são soldados que venderam seu serviço por dinheiro, d inheiro resultante da

pilhagem dos pobres e dos padres - esses mesmos pobres e padres de que Filipe

era o efici ente protetor, Além disso, usavam-se no campo adversário armas cuja

utilização é rejeitada pelo bom cavaleiro, longos facões que penetram pelas

fissuras da armadura. Estava claro que os adversários vinham para matar. Sem fé

nem lei. Um deles dispunha-se inclusive a dar combate ao própr io i rmão, renegan-

do a mais estreita de todas as amizades. E muitos foram os que atacaram o homem

a que estavam ligados por uma homenagem ligia. A velha condessa de Flandres,

cujo comércio com o demônio era bem conhecido, ajudou-os com seus sortilégios

e prometeu-Ihes a vitória. Tudo era podridão em torno do rei da Alemanha, ao

passo que junto ao rei de F ra nça estavam os clérigos respeitosos da autoridade

pontifícia, os cavaleiros leais, os bons sargentos da região de Soissons, responsá-

veis por proezas extraordinárias, e o povo valoroso das milícias comunais - ao

qual, simbolicamente, era confiada a guarda da auriflama,

Os adversários do Capeto haviam jurado dividir ent re eles seus domínios,

não sem antes trucidá-Ia. Com esse objetivo, o conde de F landres avançou até

chegar a tocar no rei; detiveram-no, no último momento, o horror c o medo

desse c rime inexpiável , a tentar contra a v ida de sê u senhor natural, ainda por cima

colocado sob a especial p roteção de Deus pela un ção da sa g ra ção, como os bispos,

como Tomás Becket. ,

Filipe quase foi eliminado. Penetrando no coração de sua

maisnie,

inimigos

armados de croques atiraram-no aos pés do próprio cavalo. Mas seus melhores

companheiros, os que formavam o núc leo da família , p rotegeram-no com seus

corpos, colocando-o novamente na montaria, e foi nesse momento, em meio à

poeira levantada, que a sorte mudou. Deus havia apontado o derr otado. Era o mau

rei, que porpouco não recebeu o xeque-mate. O golpe que lhe assestou um dos

mais valorosos cavaleiro s da França resvalou sobre a loriga, matando o cavalo; o

imperador-saltou sobre. outra montaria e fugiu a toda velocidade; nunca mais

voltaria a ser visto. Abandonara em campo de batalha sua carroça estropiada e a

águia de asas quebradas. O rei não se dignou a apoderar-se desses símbolos do

poder universal. Como bom e submisso filho, mandou levá-l os ao anti-rei Frede-

r ico, ou seja, ao papa.

Verdadeira carnificina entre os peões: os brabantinos pagos pelo conde de

Boulogne foram dizimados: eram heréticos, mereciam. Muito poucos morreram

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a idade média na frança

preguiçosos, que só existe para devorar os grãos e vive na ociosidade, ressequin-

do-se à sombra, em lugar desses inúteis . Contra os príncipes que não gostam dos

padres, contra os predicadores desviados que fornecem pre textos a sua cobiça e

excitam o populacho, contra todos os fermentos da subversão, o rei de França

apresentava-se como defensor daordem estabelecida, defensor da Igreja de sólidas

bases tempora is sobre a qua l repousa a monarquia sagrada. A vitór ia que Deus lhe

concede selou a aliança entre o trono e o altar.

A

Philippide

não se detém na descrição da passagem dos vencedo res pelos

campos. Tampouco refere-se aos ceifeiros que insultam os príncipes fei tos prisio-

neiros. Tudo se concentra no t riunfo , comemorado na c idade capit al como eram

celebrados outrora os dos imperadores - Guilherme evoca especialmente Vespa-

siano, Tito, para que não se esqueça que o Capeto foi, como eles, o ter ror do povo

judaico. Mas o triun fo do r ei dos f rancos é de bem outro alcance . Pois os f rancos

- - . . \

, levam a mélhor sobre os romanos;' I1bertaram a Gàlia de seu jugo, e foi da Grécia

que o alto saber transferiu-se para as escolas parisienses. Mais que um novo César,

Filipe é um novo Alexandre, herói cujas façanhas vinham de ser contadas por

Gautier de Châtillon, tabelião do arcebispo de Reims. De Paris aos confins do

reino, enorme co rpo ..que tem por coração a cor te do soberano, dissemina-se a

alegria da vitó ria pelas cidades, aldeias e burgos , núcleos da circulação mone-

tária que já agora, dominando o mundo dos castelos e povoados, constituem os

mecanismos pelos qua is se dissemina um poder pol ít ico centralizado.  Uma única

vitória gera, ass im, mil t riunfos. Ela congrega a grande nação na comunhão do

Estado e sob seu poder .

Unanimidade nessa festa oferecida a seu Fil ipe pela França agradecida.

O sangue derramado no campo de Bouvines pur if icou todos os filhos da Gália ,

como a água de um novo batismo, conduzindo -os de volta à inocência dos

primeiros dias da Cr iação. À inocência e à igualdade. A cerimônia triunfal abole

por certo tempo, entre eles, toda dis tinção de condição, de fortuna, de profissão .

O cavaleiro, o burguês e o próprio camponês parecem igualmente radiantes ,

banhados na luz que  os homens da igreja recebem diretamente de Deus, e que é

necessariamente refletida em direção ao p~vo leigo pelo corpo do rei, revestido

graças a essa vitória de um esplendor suplementar.

Homens de oração, homens d e armas, homens das cidades, homens do

campo: a

Philippide

distingue quatro·categoriassociais. Mas Guilherme, o Bretão,

pretendendo que seu poema revele as estruturas doEstado, cuida para que a última

dessas categorias seja situada em seu devido lugar, inferior e exterior. O camponês

é o único que se mos tra estupefa to ante a glóri a que sobre ele desce. Tem o

atrevimento de  julgar-se elevado à altura dos maiores reis . Pensando tolamente

que a vestimenta festiva que envcrga por algumas horas vai tirá-Io da rusticidade,

da incultura, da submissão , do trabalho, que é o que lhe cabe, imaginando que' 'por

u sar uma outra roupa seu aspecto vai-se tornar o de um outro , ele esquece que

os rústicos não passam dos pés do Estado, e que

só são

admitidos permanentemente

na alegria da corte real os três outros estados, as três ordens. De fato, o poder

monárquico apossou-se, após Bouvines, do tema sobre o qual os príncipes rivais

haviam construido outrora a ideologia cavaleiresca, precisamente para enfrentá-Io.

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filipc augusto

219

Apoiando-se nas três elites - o clero, a nobreza e o terceir o estado -, o rei mui

cristão instalou-se durante séculos acima da nação reunida, cuidando dela como

umpai e esperando devoção f il ia l de cada um de seus súditos. Depois de Bouvines,

 podia-se perguntar se o rei amava seu povo mais que o povo amava seu rei.

Estabelecera-se entre os dois, a esse respeito, uma espécie de emulação amorosa.

Não se podia saber qual dos dois era mais caro ao outro, em qual dos dois era o

amor mais ardoroso, de tal modo era tema a afeição que os unia um ao ou tro po r

vínculos perfeitamente puros .

Podemos aqui encerrar um dos períodos da lentíssima história das estruturas com

um acontecimento específico, uma data precisa, para variar. Na noite de 27 de

julho de 1~14,.chegou a seu termo uma evolução que se manifestava há séculos.

A batalha resolvera tudo.  Jamais desde então houve esse que ousasse entrar em

guerra com o rei Fil ipe, mas ele viveu desde então em grande paz, e toda a terra

viveu em grande paz porumlongo momento.  São anotações de um historiador

anônimo a serviço dos sires de

Béthune.

Ele enxergava longe. Depois de Bouvines,

o rei da França pôde sentar-se tranqüilamente em seu trono e não mais mexer-se,

como convinha a a lguém de sua idade. Se fosse preciso cavalgar, seu filho o faria

em seu lugar. Dócil? A pergunta procede. Naquela época, as relações entre

senhores quedemoravam a mor rer e seus herdeiros eram em geral muito tensas.

Muitos depoimentos levaram-nos a concluir que o príncipe Luís, senhor do Artois

herdado da mãe, conduzia sua própria política, e sua mulher, Branca de Castela,

inquieta, autoritária, certamente atiçava tais ambições de autonomia. O fato deque

Fi lipe não tenha mandado sagrar seu filho mais velho quando ainda vivia, pela

primeira vez na linhagem capetíngia, nada prova. Seu pai só se decidira a compar-

tilhar com ele a dignidade real no últ imo momento, quando já começava a sentir-se

incapaz. Tarnpouco devemos concluir que após a itória ele se tenha sentido mais

seguro que seus antecessores quanto ao fu tu ro da dinastia. Em todas as linhagens,

a associação do herdeiro era circunstancial. E talvez Filipe Augusto considerasse

melho r não coroar um sucessor designado que se engajava - sem que ele mesmo

se engajasse, - em aventuras incertas como a conquista da Inglaterra em 1216,

apesar da excomunhâo lançada contra ele, e mais tarde, com a bênção do papa, na

cruzada contra os albigenses. '

Pelo menos cuidara de inculcar no rapaz a moral que o habilitaria a exercer

o ofício real. Para Luís, um escrevente parisicnse, Gilles, compôs um retr ato do

príncipe que lhe foi entregue em 1200, ao completar treze anos. Nessa obra, o

Karolinus, é Carlos Magno que most ra ao adolescente o exemplo das quatro

virtudes cardeais, a força, a justiça, a prudência e a temperança. Filipe permitiu

que se dissesse que seria bom que seu sucessor fosse menos arrebatado que ele,

evitando ter duas mulheres ao mesmo tempo. Numa pá gin a do manuscrito, um

quadro genealógico situa os reis modernos da França . São os Capetos, ornados

da flor-de-lis, e seus nomes estão escritos com tinta vermelha a partir de Roberto,

 mui piedoso e mui letrado . Notemos que nada se diz da ascendência carolíngia

do príncipe Luís. Não parecia necessário insistir no fato de que sua mãe e sua avó

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220

a idad e m éd ia na frança

 

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haviam enriquecido a linhagem com um suplemento do sangue de Carlos Magno.

Pois nem o autor do Karolinus nem ninguém mais duv idava que ele fosse seu

herde iro legít imo, como seu ancest ral Rober to , como seu pai. Já em 1204, uma

bula do papa Inocêncio proclamava: Todos sabem que o rei da França descende

da raça de Carlos Magno. E dois anos antes, sob o con trole do Irmão Guérin,

Estêvão de Gallardon in scr evera a p rofecia de são Valério num dos r eg istro s da

chancelaria real. Não era preci so temer qua lquer contest ação. O f ilho de F il ipe

Augus to envergari a a coroa e tomar ia em mãos todo o domínio , ampliado por seu

pai para estupefação geral. A todas as boas sortes que Filip e Augusto tiv er a,

somava-se mais esta: não tivera um irmão com quem fosse 'obrigado a partilhar.

Podia legar tudo a seu filho primogénito. O costume certamente o forçaria a deixar

um dos g randes feudos conquistados, talvez a Normand ia, ao segundo , Filip e

Hurepel , s e não t ives se este nascido de uma esposa secundária. Um filho legitima-

do,é verdade, por graça do papa, mas a inda ass im-semibastardo aos olhos de todos,

podendo reivindicar apenas migalhas da herança paterna. '

Em setembro de 1222, Fil ipe sentiu-se mal. Para salvação de sua alma, tratou

de despojar-se de suas r iquezas . Deu aos cavalei ros que combati am na Terra Santa

e aos pobres de Paris os dinheiros de sua caixa, a Saint-Denís, uma cruz, um

rel icár io e as jóias de seu tesouro. Algumas t igelas de pra ta , três dezenas de taças, '

um saco de moedas de ouro bizantinas , pedras preciosas, mas muito poucas,

recebidas de presente dos parentes, de sua mãe, dos prelados, de Gauti er , o

Camareiro: o inventário fei to por Guérin em 1206 evidencia que a corte capetíngia

ainda recusava o fausto. O r ei viveu até o verão seguinte. Estava em Pacy-sur-Eure

quando percebeu que ia morrer. Quis então voltar a Par is, onde se realizava um

concí lio preparatório de nova cruzada. Mas morreu a caminho, em Mantes. Nas

Grandes chroniques de France, lemos seu elogio fúnebre, tal qual ele teria

desejado : Ele aumentou e multiplicou marav ilhosamente o reino de França [o

.voca bulário ainda confunde domínio e reino]; apoiou e guardou maravi lhosamente

a senhoria e o direito e a nobreza da coroa de França ... Foi sempre o escudo da

Santa Ig reja contra toda adversidade. -Defendeu c guardou a ig reja de Saint-Denis

de França sob re todas as outras como sua pró~ria câmara, em especial privi légio

de amor, e mui tas vezes most rou por suas obras a grande afeição que sempre teve

pelos már ti res e sua igreja. Foi zeloso e amoroso da fé c ri st ã desde os primeiros

dias de sua juventude; tomou o sinal-da-cruz no qual Nosso Senho r fo i cruci-

ficado e o conduziu em seus ombros para libertar o sepulcro e em seguida

suportou dificuldades e trabalho por Nosso Senhor ; além-mar, partiu à frente

de grandes hostes contra os inimigos da cruz e trabalhou com lealdade e

integridade até que a cidade de Acre fosse tomada ... Foi generoso com as

esmolas em diversos lugares .

O corpo do falecido, revestido da dalmática, como no dia de sua sagração,

coberto de um tecido de ouro, coroado, o cetro na mão, foi conduzido através de

Paris em d ir eção à necrópole real. Lá, foi recebido por uma multidão de bispos e

arcebispos. O filho de Luís VII voltava ao coração da instituição eclesiás ti ca , para

- a li instalar-se pela eternidade. Milagres haviam brotado no percurso. Também ele

era considerado santo. Seja como for, se firmara definitivamente a monarquia

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filipe augusto

221

francesa, fora naturalmente pela força das armas, por sua habilidade em jogar com

o direi to feuda l, mas antes demais nada por ter cumpr ido f ielmente , como se afirma

na crônica , s eus deveres de rei c ri st ianíssimo.

Sob o reinado de F il ipe Augusto, as catedrais da França passavam definiti-

vamente aser o emblema maior do poder real, graças aos novos sinais dispostos

em suas fachadas. Desenvolvem-se então doi s t emas , ambos surgidos da meditação

dos doutores sobre a encarnação de Deus. Meio século an tes , preocupado em

expr essar a humanidade do Cristo , Suger fo ra o primeiro a colocar no por tal da

basfl ica de Saint-Denis estátuas figurando os ancestrais de Jesus. Eram reis, como

afirma o Evangelho. Reis dos judeus. Mas o fato é que diante desses personagens

coroa dós ninguém deixava de pensar antes de mais nada na instituição real. Esta

representação. foi ampliada pelos homens que conceberam a nova fachada de

Notre-Dame de Par is no início do século XIII. T iveram a idéia de ilust ra r a t eoria

'dós reis de Judá numa galeria acima dos três pórticos, na base das torres, As

estátuas foram esculpidas muito depois de 1223, quando afinal foi concret izado o

projeto'. Suas .cabeças foram encontradas recentemente, pois em 1793 também

haviam .sido decapit adas pelos revoluc ionários . Até mesmo esse ges to a testa a

força do símbolo: os vândalo s quer iam acabar com a monarquia, e investiram

contra essas imagens que durante séculos , em pleno coração da cidade real, haviam

celebrado os r eis, os reis vivos, os r eis de Fr ança, no frontisp ício de um edifício

que por suas pedras mac iças, s eu aspec to de for taleza, era por si só uma manifes -

t ação de poder io . As estátuas des ignavam este poder io como sendo o do monarca.

 

I

A segunda imagem é mais sutil , e t ambém mais r ica, resumindo os f rutos de toda

uma ref lexão sobre o poder. É a imagem da Coroação da Virgem. Esculpida pela

primeira vez em 1190, noportal dacatedra l de Senli s, e la reapareceu cerca de t rint a

anos depoi s em Not re -Dame dePari s, no t ímp anq do portal norte da fachada. Para

o do sul , acabavam dereut il izar um relevo que datava deuns cinqüenta anos antes.

também ele mostr a a Virgem, sentada com o Menino, para o qual seu corpo serve

como uma espécie de trono. De ambos os lados dessa figu ra central, dois persona-

gens dão ao conjunto seu s igni fi cado pol ít ico: o rei e o bispo, associados num

mesmo plano . Mas não iguais. Luís VII, ajoelhado, encontra-se à esquerda. À

direita, do lado melhor, o bispo, de pé, o domina. O que assim vemos encenado

f ace ao povo é o sucesso dos refo rmador es eclesi ás ticos que haviam garantido a

super ioridade do espir itua l sobre o temporal, que se haviam empenhado - e foi

bem es te o caso durante o reinado deLuís VII - em subordinar a realeza

à

Igreja.

As figuras do por ta l nor te proclamam algo muito diferente. A Virgem não

mais se encontra no centro. Sentada no mesmo banco, ela está à direita do Cristo.

Ligeiramente acima dela, coroado, ele se prepara para depositar-lhe na fronte uma

coroa. Mais uma vez, o signo principal é esse emblema, essa imagem da realeza

deque os Cape to se ornavam nas audiências solenes. É verdade que a coroa é aqui

atribuída a Jesus, a Maria, fora do tempo, após a morte e a Assunção da Virgem

ao Paraíso. Mas o fato de que se representasse o Cristo como um rei exaltava a

dignidade real, tomando-a divina e rea lçando o prestígio daquele que passava pelo

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222

a idade média na frança

representante de Deus na terra. Observe-se ainda que o que vemos é um homem

já coroado, e uma mulher que o vai ser por esse homem. Esta cena significa a

predominância do mascu lino sobre o feminino, e que todo poder de mulher deriva

do poder exercido por um. homem, sendo dele uma delegação subal te rna. Ora ,

quando essa imagem foi esculpida , os eruditos pensavam e os pregadores diziam

ao povo de fiéis que nesse casal a Vir gem Maria representa a Igreja. No pórtico

da catedra l, por tanto, a imagem exa lt ava o poder da Igreja, t ambém ela coroada .

Mas deixava c la ro que esse poder é subordinado. O poder superior pertence àquele

que dec ide, que faz o ges to , que age . AoCris to . AoCristo rei. Ao rei, seu delegado

neste mundo.

. A difusão des sa idéia no raiar. do século XlII, n a reg ião real e nas proximi-

dades da univers idade onde se formavam os artesãos da ideologia monárquica,

evidencia o retomo às estruturas ca rolíngias. Aqui embaixo, o rei é o senhor do

poder supremo, que recebe de Cristo. Sob ele e~.ontra-se a sociedade das três

ordens.

Elé

domina, e in par ticular, a mais alta delas, a ordem eclesiástica. Os

bispos são os delegados de seu poder; ele os investe deste poder para que

ornamentem sua catedral. Mas em seu nome. E essas figuras também recordam

que é ele a partir de agora que dirige a,obra, como

é

o defensor da verdade ira fé

quando toma a frente de seus cavaleiros para uma cruzada contra os descrentes ou

os heréticos.

 

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Sul

Na realidade, nem todos os filhos da Gália obedeciam a Fil ipe Augusto. É

verdade que as anexações que promoveu haviam propiciado a união, em torno de

Paris e da coroa, da antiga região dos f rancos , do ducado dos rober tianos, e por

suas p rerrogativas de senho r o rei também controlava com pu lso firme a Cham-

pagne. Da região da Borgonha.- por sinal há muito amputada de Sens, do

Auxerrois e do Nivernais - ele não pensava em se apoderar: o duque era seu

primo, vassalo fidelíss imo que combatera como um leão em Bouvines . Igualmente

haviam combatido sob a auriflama guerreiros provenientes das regiões doImpério,

o conde de Bar, homem jovem mas velho na coragem , vár ios cavaleiros

lorenos , ent re osqua is Géra rd La Truie, que lutou na batalha central l ado a lado

com Filip e. No Sul da Borgonha, o poder capetíng io aumen tava passo a passo,

insensivelmente empurrando para leste a velha fronteira do reino. 'Já nos combates

em Auvergne o sire de Beaujeu havia acompanhado Lu ís VI. Luís VII estendera

sua proteção aos bispados das montanhas, implantando às margens do Saona os

postos avançados do domínio rea l. Ora, as correntes-de ci rculação intensificam-se

ect JS-idcrave lmen-te -nessas paragens desde que o:;--marinheiros -de··G ênov a e Pi sa

l iber ta ram a Tir reniana dos sa rracenos. Os negócios comerciai s prosperavam em

Saint-GiIles, Montpellier, Arles e logo também em Marselha. Já prosperavam

igualmente em Lyon. Quando Fi lipe e R ica rdo tomaram a c ruz, o Ródano e o mar

haviam-se tor nado o melhor caminho para a Terra Santa.

A sudoeste, em compensação, a expansão damonarquia continuava bloquea-

da pelo poder que ainda restava ao Plantageneta, e sobretudo pela impermeabili-

dade da velha região dos godos . Não se pode dizer que aba ta lha deBouvines tenha'

repercutido para além do Loi re . F il ipe não tomara quase nada do Po itou. E aliás

não quisera, lúcido, aventurar-se t ão longe, desgastar suas forças para exigir

fidelidades incertas de guerreiros que desprezava. Nunca lhe passou pela cabeça

a idéia de anexar a Aquitãnia: seu pai não pudera conservá-Ia, e tratara de livrar-se

dela; o próprio Henrique 11 perdera seu tempo ali; lá também é que Ricardo

Coração de Leão perdera a vida. Solicitado a partir rumo ao grande Sul para arrasar

a heresia, dever que lhe era imposto pela promessa da sagração, o rei fizera ouvidos

moucos. Sua única iniciativa f oi autorizar o p ríncipe Lu ís a tentar a aventura nessas

22 3

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224 a idade média na frança

terras distantes, gesto pelo qualé felicitado nas Grandes chroniques de France:

 Depois de ver-se algo enfr aquecido e envelhecido , e le não poupou seu filho,

mandando-o por duas vezes ao Albigeois, à f rente de grandes hostes, para dest ru ir

a bougrerle dos homens da região. Filipe não podia imaginar que essas expedi-

ções contra os bougres, os cátaros, prenunciavam a extensão de seu domínio até

as margens mediterrâneas.

A propós ito da Gália meridional, é bom acabar de vez com três idéias ainda

correntes mas falsas : essas províncias não foram objeto de um empreendimento

deliberado de conquista colonial da parte do rei dos francos; não tinham uma

unidade, nem polí tica nem cul tura l; a r el igião cátara contaminava na época toda a

cristandade, não se encontrando nesse país autóctone.

Ninguém tinha dúvida de que Deus incumbia os soberanos sagrados em

Reims de manter a todo cus to a paze averdadeira f éaté a f ronteira de outros reinos,

os de Navarra e Aragão. No início do século XIV, os pastores heréticos de

- Montaillou sabiam mui to bem por onde passiva esse l imi te , e consideravam-se

súditos do rei das flores-de- lis que armava a Inquisição contra eles. Aquém desses

limi tes, que ninguém pensava em alterar, o Midi , o Sul , dividia-se em múl tiplas

regiões, cada uma consciente de sua identidade; estava dividido entre nações que

não falavam o mesmo dialeto. Déssa divers idade l ingü íst ica saír a, é claro, a

linguagem dos poemas admiráveis e que eram devidamente admirados, mas não

só em Orange ou Toulouse: os t rovadores eram igualmente aplaud idos em Caen,

como logo ser iam em Florença e Nápoles. Não é menos certo que essa fala de corte

con tribu iu, quando a classe dominante teve de fazer f rente aos ataques e à rapina

dos guerreiros doNorte, para cimentar a união para a resistência, alimentando mais

tarde a nostalgia de uma liberdade perdida. Despertado pela agressão , esse sen ti -

mento nacional ocupa um lugar próprio entre os fatores entrelaçados da evolução

política.

. Como no Norte, essa evolução conduzira durante o século XII ao for taleci-

mento dos amplos poderes territoriais. Ele já não pode ser acompanhado com tanta

. facilidade, por falta de boas.crênicas: o.l.ugaLda-hi tória na prorluçãgJiterária-em

restrito nessas regiões de alta cultura, principalmente jurídica e poét ica. Verifica-

se, no entanto, que o poder principesco for talecia-se.Não por se escorar no sistema

feudal ao estilo franco: segundo as tradições locais, que osPlantagenctas abalaram

mas não conseguiram elimina r, ;;as relações entre os homens e entre a s terras

repousavam em cont ra tos acertados l iv remente, e feudo era o nome dado ao lucro

extraído de um bem qualquer por todo aquele, fosse nobre ou não, que dele

houvesse recebido o uso-temporário através desses acordos. Duas circunstâncias

orientavam de forma original o desenvolvimento do jogo polí tico nessa parte da

Gália. Era ela primeiramente - e o seria até o fim da Idade Média - a terra de

eleição dos bandos de routiers, os soldados que percorriam desordenadamente os

caminhos. A especial virulência dos grupos de mercenários nessas paragens

decorria em primeiro lugar do fato de que suas terras montanhosas e ingratas

Bougres: nome dado a cer tos heréticos. (N. T.)

o sul

225

produziam grande cóp ia de rapazes cujos únicos recursos eram sua robustez e sua

capac idade de lutar; quase sempre nasc idos em casas cavaleirescas, eles eram

forçados pela bastardia e a pobreza dos patrimônios retalhados em divisões

sucessórias a saí rem em busca da melhor sorte; só podiam imaginar encontrá-Ia

através das armas, e formavam companhias para oferecer seus serviços a quem

quisesse contratá-los. Mas se os príncipes logo se aventuraram a contra tar, para

atingir seus objetivos, esses grupos de aragoneses ,  riavarreses ou bascos

- como as populações denominavam tais guerreiros selvagens que as aterror iza-

vam, e cuja l íngua não compreend iam - certamente era também porque há muito

tempo a moeda circulava mais generosamente nas províncias meridionais. Remeto

aos aide-memoire que já comentei, exibidos antes do meado do século XI, no

Poitou e na Narbonnaise, nas assembléias nas quais as disputas principescas eram

arbi tradas, e que dão conta de mi lhares desoldos . O dinheiro era ali envo lvido em

opéràçõesde grande envergadura , tanto quanto na Inglater ra , outra região em que

se manifestou precocemente o fenômeno do mercenari smo. No sécu lo XII, os

especialistas dessas transações f inancei ras, o riginários das mais d iversas proce-

dênc ia s, eram chamados de cahorsins (originários de Cahors). Escolhera-se o

nome de uma cidade em pleno florescimento. Pode-se explicar a proliferação dos

routiers no Sul do reino pela proximidade de montanhas pobres e cidades onde se

acumulava o dinheiro .

Eis entâo o segundo fator : a solidez das estruturas urbanas. Aqui, o poder

político enraizava-se nas instituições municipais. Baseava-se nas velhas cidades

de origem romana, mas também nas aglomerações secundárias que os textos locais

denominam sistema de castrum, não designando com isso meras torres, mas densas

reuniões de casas de pedra , de grande valor est ra tégico. Como nas sucessões os

direitos senhoriais eram partilhados equilibradamente entre todos os rapazes e

moças, e como aos nobres não repugnava a prática de emprést imo e do negócio , o

poder pertencia, nos

 castels

como nas cidades, a um grupo numeroso de

associados quê oossuíam em comum a senhoria; dominando as casas menos r icas,

mas deliberando com os chefes sobre esses oustaus, esses co-senhores tomavam

juntos a decisão de delegar a gestâo dos negócios a magistrados. Assim é que a

. autoridade era repart ida ent re cavale iros e cidadãos . Os pr imeiros tinham a

primazia, mas não esmagavam os segundos com sua arrogância , como na região

f ranca: os burgueses combatiam com eles para defender o in teresse colet ivo.

Igualmente familiarizados com a escrita, igualmente hábeis no debate, cavaleiros

e cidadãos compartilhavam a mesma cultura baseada na cortezia, uma cultura profana

e mais vigorosa que a ecle siástica. Disso dão testemunho os poemas políticos, os

sirventes,os tensósdeixados pelos trovadores. Os nobres e osoutros tinham consciên-

cia de formar um corpo ordenado que dominava a d esordem da região da p lanície .

Fosse em Toulouse ou no menor dos castelos, eles esforçavam-se juntos por

sujeitar o campo circundante aopoder urbano, pelas armas e p elo dinheiro.

É

claro que as cidades levavam a melhor sobre as

castra,

por sua riqueza e

pela superioridade militar que deviam a suas muralhas, às ruínas antigas transfor-

madas em for ta lezas, e também porque nelas residia um bispo, responsável pela

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22 6

a idade média na fraaça

paz de Deus em toda a extensão da dioeese. Esse velho sistema de segurança

coleliva:se havia apedeiçoado no decorre r do Século XII no Vivarais , em Gévau-

dan,

Veby

e Rouergue .. Para apoiar a ob ra de pacif icação , os bispos reuniam

. periodicamente a população, cob rando dos barões e guerreiro s a p romessa de não

pilhar, exigindo preces do clero e moeda dos mercadores. Deliberações, discus-

sões 

Pl'(1)C'eSSOS

mst ruídospor legist as. E também coletas, reunindo o dinhe iro da

  pup.de  pat' 8 a paz da geI Ik:comum. Em caso de alerta, oscava le iros e todos os

  homcJilS d a terra , sob os estandar tes das confrar ias, l ançavam-se unânimes

contra 'os agentes per turbadores , e sobretudo os

routiers.

Os príncipes deviam

contar comessas I'Grtes organizações c itadinas, convocar seus representantes às

assembléias qm presidiam, asscelã-Ios a suas decisões. A reconstrução do Estado

apoíea-se

aooessariamente nas cidades ..

A OlmOOl1'8nCiade mês  'Õ1osde desenvolv\mento polít ico complicava esse

'processo. Um deles encontrava-se no Poi tou, demas iado ao Nor te . Conduzida

pelos Pil'wtagenetas à mane ir .a f ranca e com poderosos recursos, a empre it ada de

união ia deencQDtro, pa r J l () Leste, às insubordinações dos montanheses; teve mais

êxito nas pr~s madumas, embota tropeçando, para além de Bordeaux, no

red\Gl);gascm; ffirJl'C8'SSGuredOlldamenteiante de Toulouse. Antiga capital dos reis

godos,  JJ01IIikmselJalO:seJg<lillRdoólo, o que ocupava a posição central. Seus condes,

também de origem f .rJanea,aspiravam l i soberania sobre asdioceses de Pér igueux,

Cahcrs, A,'gen,

A abi R < OIl la,

<e.a inda sobre a Narbonnai se , as c idades for tes de

Septiliwmia 

SO b re

Sa;1nl~Gines, encruzilhada dos negociantes do mar; para além

do R ó c  b m :Q , riles ha'V~am retomado uma parte dos direitos dos marqueses da

Provença,

t{ )) ipresUgioda dinastia derivava da lembrança de Raimundo,o ancestral

incuIl'iboo

p - e m

papa de chefi ar a primeira cruzada. É verdade que no tempo de

FilipeA~g,ustG1:l):(l:c.mmeàeToulouse, da parentela do rei de França, reconhecia-se

comci>8~1W'41Ssa\\ID..Mas:a·enorme distância o autorizava - e nis so era único ent re

os prl1 rcipes feudais - a não comparecer à sagração, às audiências solenes, a

sequer :fingir_ que .servia. Mesmo nessa independência, entretanto, ele tinha de

enfrentar 'úma ilorceita lentativã

hêge mõni ê a,

procedente da pe-rit:er ia, como a

primeira. ·.eescorada num reino. Era o reino de Aragão. O rei Pedro 11 era conde

de Barcelona. Seu irmão controlava o condado de Provença, onde se proced ia a

uma vi,g(jJJtf)S8retomada do controle.do poder segundo o modelocatal ão , ou seja,

exp lorando ao mesmo tempo o dir eito feudal e a lei romana. Ele próprio posava

de paladino da cruz na península Ibérica, combatendo os mouros ao lado do rei de

Castela e logoobtendo sobre e les, em 1212, em Las Navasde Tolosa , uma vitóri a

não menos bri lhante nem dec is iva que a de Bouvir ies. Desde então, espra iava sua

influência para além dos Pireneus. O visconde de Béam, os condes de Bigorre ,

Foix e Comminges, assim como Trencavel, visconde de Béziers e Carcassonne,

prestavam-lhe 'homenagem. Em 1204, desposou a f ilha do sire de Montpellier, que

era bígamo, como o rei da França, e o papa, para agradar a Pedro de Aragão, fez

de sua mulher - recusando-se a legi timar os i rmãos dela - a herdeira dessa

fortíssima .senhoria. Descobrimos nesse ponto um quarto parceiro no grande jogo

político; e -descobrimos que, exatamente como no jogo do Norte da Gália, o

religioso mis turava-se ao profano. Mas de maneira d if erente.

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o sul

22 7

De fato, nessa região onde se haviam realizado as primeiras assembléias da

paz de Deus, as relações de poder haviam por um lado sofrido mais profunda

modificação em virtude da reforma gregoriana. A depuração da alta Igreja rompera

a unidade da sociedade dominante, brutalmente subtraindo as sés episcopais ao

controle das grandes l inhagens. Por outro lado, o papa não era apenas um hóspede,

como na região capetingia : e le est ava em casa. O condado de Mauguio era feudo

da Santa Sé . Em 1204, o papa Inocênc io I II conseguiu que Pedro de Aragão fos se

a Roma, que oferecesse seu reino no altar de são Pedro e o tomasse de volta

como

tenure

feudal do sumo pon tíf ice, depois de prestar-lhe homenagem.

Sendo também uma monarquia , a Igreja romana igualmente se for tal ec ia, e por

meios equivalentes, que , no entanto , usava com maior constância e enxergando

mais longe. Sem rei durante muito tempo, o Sul da Gália servia de eficiente

tr ampolim par a sua expansão. Ao contrário do que acontecia no Nor te, portan-

to, o espir itual e o tempora l não agiam aqui em estreita

conivência,

Disputavam

o poder um com o outro. Essas inclinações confl it ivas favoreciam ati tudes

rel ig iosas globa lmente condenadas pela autor idade eclesi ás tica, que as consi-

derava heréticas.

Desde o inicio do século XII, enquanto, paralelamente 80 progres so geral, as

consciências individuais libertavam-se pouco a pouco do conformismo e da

obediência cega, enquanto os dou tos meditavam mais atentamente as palavras do

Novo Testamento e os leigos aprox imavam-se dos tex tos sag rados, os desvios

herético s brotavam por toda parte e de formas as mais d iversas. Não podemos

dist ingui- Ias bem umas das outras porque só as conhecemos a través daque les que

as combateram. O ardor do combate tornava-os cegos, impedindo-os de separar

com lucidez o joio do trigo. E por sua vez os adeptos das seitas perseguidas,

submet.idos a quest ionamento, calavam-se ou davam respostas evasivas. Sabe-se

pelo menos que em sua maiori a os homens e mulheres obrigados a se esconderem

para. escapar da repressão , mu ito s dos quais seriam capturados e queimados,

asp ir avam a um cristian ismo livre dos rituais e da ganga carnal que mantém

prisioneiro o espírito. Reapareciam exigências cuja força se havia manifestado de

uma hora para outra na região franca, logo depois do ano mil: a recusa da

intermediaçâo dos padres e das pompas litúrgicas, a convicção de que o homem

não tem o direito de invocar seu Criador como testemunha a través do juramen-

to, de que a sexualidade não pode ser abençoada, a repugnância a imaginar

Deus encarnado num co rpode sangue. Tais exigências pouco diferiam das que

eram feitas pelos reformadores da Igreja. O próprio sucesso da reforma as havia

reavivado, portanto. Na vanguarda do movimento, alguns franco-atiradores

indóceis voltaram a formulá-Ias no início do século XII: foi o caso do monge

Henrique de Lausanne ou de Pedro de Bruys, que pregava a través da Provença

e da Septimania queimando os crucifixos.

Mas a maioria dos que sonhavam com uma Igreja melhor não se aventurava

tão longe. O que os movia, sobretudo, era o horror ao dinheiro. Fossem clérigos

ou leigos, despojavam-se das riquezas, o que levava a denunciar a dos prelados,

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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228

a idade média na franca

assim como o poder excessivo dos escribas, fariseus e publicanos. Era essa a

atitude dos discípulos de Ped ro Valdês,

oevaudois.

A austeridade da vida que

levavam ressaltava ainda mais os erros de todos os homens da Igreja que encara-

vam sua função antes de tudo como uma profi ssão maquinalmente executada - e

lucrativa. O povo admirava e ouvia esses homens bons , encantado com a

exortação a prá ti cas menos formais , a gestos redentores mai s simples. O discurso

que lhe era apresentado não o desconcertava. Era um discurso construído sobre

temas semelhantes aos temas desenvolvidos pelos pregadores submet idos à auto-

ridade dos bispos; empregava as mesmas palavras , as mesmas imagens , dando

como exemplo as mesmas f iguras , e para começar a do Salvador. Assim é que se

formavam por toda parte pequenos grupos de devoção que de forma alguma

pretendiam separar-se da Igreja, demonstrando, pelo contrário, que esta podia

renovar-se de dentro para fora, voltando à pureza de suas origens. O p roblema é

que', reprimidos pelas

for çãs

estabeleci das que incomodavam, eles eram levados a

enrijecer sua posição, proclamando que se deve obedecer antes a Deus que aos

homens e mergulhando na clandestinidade, em rebeldia.

É

verdade que também se infi lt ravam crenças diferentes. Evervin de Stein-

feld já as iden tifica em Co lônia em

í

143. Vinham elas do Oriente. E os contem-

porâneos não se enganaram, denominando  bougres ;ou búlgaros, os que se

deixavam levar por essas crenças -ou ainda cãtaros , palavra grega. Efetiva-

mente maniqueístas, elas sustentavam, além da transmigr ação das almas, a exis-

tência de um segundo deus, o do mal e da matéria, também ele criador e defron-

tando-se com o deus bom num combate de desfecho incerto. Eram, portantq,

crenças estranhas ao cr is tiani smo. Mas foram acei tas, poi s seus propagadores

usavam o mesmo vocabulár io e asmesmas alegorias que os padres. Elas formaram

a armadura - na verdade bastante frouxa - de uma nova rel igião, que, a darmos

crédito às a tas de duvidosa autenticidade de um concílio realizado em .1169 em

Saint Feliú de Lauraguais, pretendia constituir-se em verdadeira Igreja, com seus

sac ramentos, sua hierarquia, seus próp rios bispos e dioceses. No fim do século,

duas formações heréticas 'defrontavam-se, portanto, comaortodoxia, Alain de

Lil le não as confunde: de um lado estão os vaudois, do outro, os cátaros, e no Sul

da Gáli a aqueles atacavam decididamente estes, na defesa do cristianismo. Nas

c idades do Norte do reino, a heresia não se mostrava menos ativa. Já em 1135 era

motivo de preocupação. Passado Jmeado do século, começava-se a perceber na

região renana, na Lorena, na França, que ela constituía sério perigo para as

estruturas eclesiásticas. Em 1153 , o papa Eugênio III exortava o bispo de Arras

à

vigilância. Dez anos depois, Luís VII voltava-se preocupado para Alexandre Ill.

O bispo de Nevers e o bispo de Auxerre tratavam de neutralizar os líderes e seus

adeptos. Instituiu-se todo um sistema inquisirorial dos mais eficientes: identifica-

dos os focos de corrupção, as fogueiras purificaram as províncias francas. Tais

medidas demoraram a ser aplicadas no Sul, embora nele as pestilências encontras-

sem terreno muito mais favorável.

Como no Norte, elas se difundiam a partir das grandes cidades, onde aqueles

que manejavam o dinheiro, convencidos de que a usura é um pecado grave,

mostravam-se mais sensíveis à pregação da pobreza. Toulouse, Albi, Colônia e

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.229

Lyon, onde renasciam os negócios, foram os principais focos da heresia vaudoise.

É

possível também que a alta burguesia tenha dado ouvidos aos cátaros , pois eles

a tranqüilizavam. Os pregadores consideravam a moeda tão desprez ível que não

recusavam os dinhe iros que lhes e ram oferecidos, chegando mesmo a emprestá-

los . Seja como for, convenciam aque les que não pre tendiam viver como perfei-

tos de que podiam, ao aproximar-se a morte, l impar-se de seus pecados simples-

mente através do rito do consolamentum, da imposição de mãos. No campo, a

penetração da her esia certamen te foi favorec ida pelo novo fervor com que os

homens da Igreja exigiam o dízimo. Nas regiões francas e borgonhesas, no próprio

Norte da Aquitânia, r egiões nas quais as prescrições caro líng ias haviam sido

estritamente aplicadas, essa cobrança sobre os f rutos da ter ra e ra mal-tolerada pelo

campesinato;nos tumultos que volta e meia o sacudiam, sua raiva voltava-se

em primeiro lugar contra os celeir os onde os monges e cônegos acumulavam o

produto desse imposto. Sua cobrança, entretanto, era legitimada por hábitos

imemoriais. O mesmo não acontecia no Sul do reino e na Provença, onde o

dízimo provavelmente nunca havia sido cobrado. O que não impediu o clero

de exigir sua  restituição após o meado do século XII, quando se ativava o

comércio de produtos agrícolas e montantes cada vez maiores de dinheiro eram

canalizados para a .reconstrução e a decoração dos edifícios de culto. Para

justificar essa punção, o s p relados não se referiam ao costume nem aos precei-

tos do Antigo Tes tamento, mas ao direito romano. Para eles, o dízimo era um

sinal do imperium, da dominação universa l pre tendida pela Igreja romana. A

forte resistência encontrada por tai s exigências foi evidentemente considerada

herética.

Mas se a heresia demonstrou tanta força nas províncias meridionais , sendo

com tanta dificuldade extirpada, é que as relações de poder, as estruturas sociais

e a cultura laica predispunham melhor à aceitação das doutrinas propagadas pelos

bonshommes, como eram chamados os heréticos, ,ea protegê-los da repressão. O

primeiro fator era a f ra tura mais profunda entre os-dois campos em que se dividia

a classe dominante. Tudo que pudesse diminuir o poder temporal dos eclesiásticos

era apoiado pelos barões e cavaleiros, seus rivais. Não resta dúvida de que os

bispos e legados do papa viam nos senhores leigos, e com razão, os mantenedores

da bougrerie. Ela florescia com natura lidade nos oustaus da cavalaria e do

patriciado: neles os pregadores eram bem-recebidos; durante as refeições em

comum, ensinavam que o casamen to não pode ser um sacramento, que não são

necessários padres, mui to menos aqueles cu ja av idez tendia a diminuir ainda mais os

magros recursos da família. Doque diziam, eram asmulheres asmaisa tentas ouvintes:

as formas da devoção heré ti ca não as relegavam a uma posição marginal, como as da

ortodoxia; também elas podiam ser perfeitas , impor as mãos, transmit ir o Espírito.

Não estou 'convencido de que a condição feminina tenha sido menos oprimida no Sul

que no Norte . Seria necessário conferir, levar mai s longe as investigações. Seja

como for, não res ta dúvida de que mulheres contribuíram para propagar práticas

religiosas que as retiravam da submissão em que asmantinha a Igreja estabelecida.

É preciso levar em conta também a solidariedade que unia todas as casas agiu ti-

nadas no castrum: partindo das mais ricas, a perversão facilmente contaminava as

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230

a idade média na frança

vizinhas. Mais que as cidades, foram os castelos, blocos compactos, que se

transformaram no Su l em n inhos da heresia. Os o rgan izadores da contra-ofensiva

catól ica não demoraram a percebê-Io, pas sando a t ra tá-Ios como tais .

Refe ri -me há pouco à vit al idade de uma cul tura profana autônoma nessas

reg iões. Era uma cultu ra da discussão livr e e púb lic a. Acostumado a debater

questões de dir eito ; o povo das aldeias e castelos debatia livre e publicamente

questões de rel ig ião. O sagrado não estava assim tão c la ramente separado do c ivil.

Como outras questões munic ipai s, e ra a lgo pas síve l de se r pos to em discussão.

Reunido na praça , o povo ouvia os defensores do caminho reto e os dodesvio , cada

qua l expondo seus argumentos, exa tamente como ouvia os t rovadores de tendên-

cias opostas em questões de política. Sob a presidência da comunidade dos

senhores, os l eigos a rbit ravam. O croni st a Gui lherme de Puylaurens descreveu

longamen te um desses debates, realizado em 1207 no castrum de Montreal-en-

.Carcassêa Diante dos perfeitos, do catarismo, lá se encontravaolegado do papa

Pedro de Castelnau. Discutiu-se durante vários dias por escri to perante árbitros ,

cavalei ros e burgueses; as par tes ent regaram os escritos aos leigos, que haviam

sido investidos do poder de concluir ; é verdade que estes, prudentes (estávamos

às vésperas da cruzada) não quiseram deliberar e se separaram sem concluir o

caso . Vale regis trar o recurso ao livre raciocínio, a autoridade entregue a homens

que não estavam destin ados pelo sacr amen to da ordem a decidir sobre coisas

sagradas. Pode-se aqu i ava liar bem até que pon to chegara nessa região , no in ício

do século XII I, a desa fe ição pela ins ti tu ição eclesiástica.

Mas o fato é que e la se enr ij ecera ante o per igo. Quando este se tornou claro

na segunda metade do século XII , a Igreja não demorou a conclui r que era preciso

agi r nas c idades , poi s os camponeses mantinham-se mudos, continuando a conci-

l ia r as forças invis ívei s com ges tos e palavras, com ritos presididos pelos párocos

mas também, com os r itos c landest inos , e t idos como mais e fi cazes, das supers-

tições' , inexpugnáveis. A Igreja organizou sua defesa através da imagem. No

amplo teat ro const ituído pela fachada da igreja abacial de Saint-Gil le s, a grande

esculturamonumenta l se rvia por vol ta de 1170 para proclamar diante do povo, no

tom majestoso dos arcos de t riunfo ' deixados pela Roma ant iga, a e ri ca rr iação do

Cristo, a Redenção, o valor do sacramento da Eucaristia e da Cruz, a força dos

apóstolos e de seus sucessores, os bispos. A Igreja organizou sua defesa também

através da palavra. Era necessário CJl .pulsaro erro com o arrazoado oral, como nos

tribuna is. A v itó ria dependia de maio r hab ilid ade na retórica e na

dialé t icà.

As

escolas episcopais começaram a melhor preparar-se para ta is combates, mediante

o rei te rado exerc íc io da disputa . F () ram necessár ias duas gerações para a fi ar as

a rmas e a justar a mira.

, Os mais puros f oram os p rimeiro s a ser em lançados contra a heresia meri-

dional. Eram os monges cis tercienses , que por sua vez julgavam-se  perfeitos'

a

sua maneira. Mas todos sabiam perfeitamente que esses adeptos da pobreza

compravam terras pelomelhor preço e exigiam com aspereza os dízimos. Conven-

cidos de sua superioridade, fracassaram. E, no entanto, na desorientação que se

segu iu às v iagens de prédica de Henrique de Lausanne, viera dar sua contribuição

o o rado r mais céleb re, são Bemardo. Ele pregara nas cidades p rincipais, em

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231

Toulouse, em Albi, de onde o populacho acabava de expul sa r o legado, debaixo

de chacota. Cometeu o erro de apresentar-se com excessiva arrogância, pronun-

c iando palavras incapazes de tocar seu auditór io . Nada conseguiu . E os abades de

sua ordem que davam prosseguimento à luta bem que sear ri scaram até o coração

da infecção, nos cas te los, mas tampouco conseguiram alguma coi sa . Eram neces-

sá rios apóstolos muito diferentes. Foram eles os cônegos, mai s bem preparados

para discorrer , e que optaram por se dir ig ir aos contestadores como os discípulos

de Jesus, a pé, sem acompanhantes, em total despojamento. Uma equipe de

castelhanos, int roduzida na região pelo bispo de asma, foi a primeira, sendo

seguida em E lne pelo cap ítulo da catedral. Pobres e let rados, esses novos prega-

dores conseguir am aos poucos a adesão dos vaudols. Reun idos em Pamiers no

palácio do conde de Foix , eles for am mteiramente convencidos e confundidos,

ass im como a maior par te da população do castrum, principalmente os pobres. Até

mesmo aquele que fo ra in str uído juiz do debate, e que se mostrara favorável aos

vaudois, renunciou à her esia e ofer eceu sua pessoa e seus bens ao bispo de Osma:

a partir daquele dia, combateria com coragem a superstição herética . Exatamente

como fez Durando de Osca, que se tomou o mais ardente adversário dos catares

no interior de.uma comun idade de pob res católicos . Essa r eviravolta na ofen-

siva revelou-se decisiva. Juntamente com a formação da ordem dos dominicanos,

ela prenunciava uma renovação completa do cri st iani smo, e a inda , a través do

juramento popular, do exemplo da renúncia e da racionalização do aparelho

dogmático, a plena derrota do catarismo.

Ao mesmo tempo em que procurava convencer, a Igreja instalava os instrumentos

da repressão. Os tran sv iados r omp iam a paz pública, vale d izer, a paz de Deus. A

questão da fé, o negocium fidei, confundia-se, portanto, com o negocium pacis,

li '

questão da paz . Os bispos foram convocados a lutàr contra a heres ia com os meios

que utilizavam contra os saqueadores: o anatema.e o apoio das milícias armadas.

A ação das ins ti tu ições de paz t radicionai s foi reforçada pelos princípios do direito

rorriano. Os papas do fim do sécu lo XII conheciam-nos'bern, pois haviam estudado

em Bolonha. Recorre ram, por tanto, a prescrições rigorosas. Considerados culpa-

dos de lesa -majest ade, osque se levantavam contra as l ei sda Igreja foram passíveis

do cas tigo merec ido por este c rime, a mor te e o confisco .•. Assim como a lei civil

pune com a morte e a espoliação oscriminosos culpados de lesa-majestade ... assim

também a Igreja afasta do Cristo e despoja aqueles que, errando na fé, atacam Deus

ou seu Filho em detrimen to mais g rave da majestade divina:' Assim justificava

Inocênc io I fl as medidas que edit ava.

A ação repressiva desenrolou-se em três etapas . Em 1163, em Tours, um

concíl io delim itou seu campo : as p rovíncias meridionais do reino. Quatorze anos

depois, o conde de Toulouse, Raimundo V, lançava um grito de alerta. Numa car ta

ao abade de Cister, mostrava como a heresia disseminava-se abertamente em seus

domínios; lúcido, explicava que aqueles que lhe dão acolhida pensam estar

prestando homenagem a Deus , e que, portanto, el a penet ra fac ilmente nas

famílias, logo jogando as mulheres contra o marido ou o 'pai; ela já conquis tou,

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232

a idade média na frança

acrescenta, uma parte do clero; os santuarios estão desertos; 4 'os sacramentos -da

Igreja de nada valem . Ele evocava também o pior, a inf il tração do dua li smo -

a doutrina cátara. E reconhecia que caberia a ele, o príncipe, • 'vingador e minis tro

da có lera de Deus , esmagar o in imigo da fé verdadeir a. Mas confessava-se

impotente e ped ia a ajuda de seu senho r, o rei da Fr ança. Uma missão chefiada

pelo abade de Clairvaux constatou os fatos. E informou ao concílio geral

reunido em Lat rão em 1179, cujos par tic ipantes pediram ação imediata contra

os tran sv iados e os routiers, igualmente. Já não bastava o anátema solenemente

lançado. Também o braço secular dever ia aba te r-s e sobre os maus. Os prínc ipes

e os cavaleiros, aconselhados pelos bispos, tomariam armas. Durante sua emprei-

t ada mil it ar , gozar iam das imunidades concedidas aos peregrinos da Terra Santa.

A remis são dos pecados era prometida aos que tombassem em combate, como aos

cruzados. Todos os out ros receber iam a indulgência por doi s anos de penitênc ia.

Estavam autorizados a se apossar dos bens dos infiéis e a reduzi-Ias à servidão.

Aqueles que se reeusassem a combate r seriam excomungados. J á e ra uma verda-

dei ra c ruzada , s em que se reconhecesse, mas conduzida diocese a diocese, no

contexto tradic iona l das inic ia tivas em nome da paz de Deus.

Mas verificou-se em Montpellier - cujos sires mal podiam esperar o

momento de entrar em combate com o vizinho, o Trencavel - que não era possível

contar com os guerreiros locais: estavam de pacto com a heresia. Tentou-se, como

na I tá li a, encontrar apoio nas instituições municipais, comprometer os cônsules

das .cidades, mediante juramento , no combate às más doutr inas. Mas os bispos

mostravam-se r eticen tes, e o s consulados, demasiado jovens para se l ibertarem de

sua tutela. Foi então que o novo papa, Inocêncio

m ,

decidiu destitui r os pre lados

hesitantes de Béziers , Narbonne e Toulouse, Excomungou Raimundo VI, homem

pestilento que, cercado de seus routiers, recusava-se a pôr f im a suas guerras

privadas e a acertar com os rivais a paz necessária à ação comum, com isso

contribuindo para a disseminação da heresia. Acusava-o de fazer mau uso da razão

de que fora dotado por Deus, de utilizá-Ia contra Deus e contra a Igreja geral

(o que er a a mesma coisa), pois o homem razoável que ouve a razão só pode ter

em men te.. a-unidadé4a .- greja, -Onde-sç encontra  Espírito. Para o papa, estava-em

causa agora o destino de toda a Igreja, e o caso das províncias meridionais

interessava a toda a c ristandade. Em 1204, e novamente em 1205 e 1207, Inocência

1 1 1 pressionou Filip e Augusto a inter vir com suas hastes. Oferecia-lhe o que o

concí lio de Lat rão oferecera aos senhêres da região: juntar a s eu domín io as terras

confisca das aos barões perversos. Sobreve io então a surpresa , emjanei ro de 1208:

o regado Pedr ó de Castelnau foi assas sinado em Saint-Gilles; o papa não teve

dúvida de que o conde Raimundo era o in stigador do cr ime; ele e seus cúmplices

seriam, portanto, despojados de suas ter ras para que habitantes catól icos nelas

tomem o lugar dos heréticos eliminados . Solução radical: extermínio a ferro e

fogo dos maus, e repovoamento com os bons da região devastada.

Os bons eram naturalmente os francos. O rei recusou-se a apoiar o desvio da

instituição da cruzada para províncias submetidas

à

coroa, uma inversão que pela

osul

233

primeira vez empregava plenamente os cavaleiros do Cristo no combate ao mal,

no próprio interior do povo cristão. Em sua resposta, Filipe Augusto começou a

queixar-se de Raimundo VI, cunhado de João sem Ter ra. Não r ecebemos qual-

quer a juda dele nem deseus homens, embora tenha recebido denós um dos maiores

baronatos do reino. Defendendo, no entanto, suas prerrogativas de senhor feudal,

e le respondia como jur is ta ao espec ia li sta em direi to que era o sumo pontíf ice:

 Quanto aofa to de expordes a terra do conde àqueles que dela pretendem apossar-se,

fomos informados por homens letrados e não letrados deque não tendes o direito de

assim agir se não o houveres condenado como herét ico [Raimundo VI fora efetiva-

mente condenado como cúmpl ice dos bougres, e não como bougre ele mesmo].

.Se ele o for, devereis avisar-nos e .determinar que exponhamos sua ter ra , pois é de

nós que e la depende . Ora, o fato é que não o fizestes ..; 

A cruzada foi organizada sem ele. Entretanto, os prelados que tomaram o

caminho do Ródano em junho de 1209, assim como os barões, o duque de

Borgonha , os condes de Nevers, Saint-Pol e Bar eram todos francos ou borgonhe-

ses, e a questão da fé era assim mais uma vez tomada sob a responsabilidade dos

monges c is te rcienses, acolitados por um pequeno grupo de cavaleiros da Íle-de-

France, obcecados com o ideal dacruzada. Alguns anos antes , est es haviam partido

dispos tos a libertar Jerusalém, e quando a exped ição de que par ticipavam foi

desviada em 1202 de acordo com o interes se de Vcneza, quando foram solicitados

a conquist ar Zadar (cidade cri st ã da Dalmácia) em lugar da Palestina;persistiram

sozinhos na mis são que haviam abraçado, a de libertar o tümu lo do Cristo, tristes

e amargurados por não serem seguidos. Esse pequeno núcleo inabalável era

conduzido por Simão, senhor de Montfort-I' Amaury, vas sa lo do rei de França, o

mais pu ro po r sua cast idade, perseverando a té o f im, l igado ao serviço de Deus ,

era ele acompanhado pelos homens de sua linhagem e de sua maisnie, e a inda por

seus amigos , osc ist erci enses da abadia de Vaux-de-Cernay, vizinha de suas terras.

Eles se empenhavam a fundo nessa nova peregrinação, sem pensar em saquear ou

conquistar. Sentiam-se obrigados a repar ar, por sua dedicação obstinada à causa

.

\

de Deus, os desvios da quarta cruzada. ..

Ao se aproximarem, Raimundo de Toulouse atendeu aos r eclamos, apresen-

tando-se nu diante da basíl ica de Saint-Gilles para receber os açoites da penitência.

Absolvido, foijunta r-se aoexérci to dos f rancos. Com cssaaliança, só faltava tomar

a senho ria dos Trencavel. Esta logo seria conquistada. Antes de Carcassonne,

Béziers caiu a 22 de julho. Ainda está v iva a lembrança dos herét icos massacrados,

misturados aos que não o eram, sendo Deus convidado a reconhecer os seus;

lembrança também das mulheres e crianças queimadas na catedral, que rachou

ao meio por causa do fogo . As atrocidades foram atribuídas aos  vadios,

sujeitos ... sem nada nos pés, de camisa e calções, armados com maças e nada

mais , chefes dos routiers e suas manadas, cujos serviços os cavaleiros de Deus

haviam contratado. O visconde morreu, no cárce re, a 10 de novembro. Teve direito

a funerais ostensivos: era importante que todo mundo soubesse que morrera o

senhor das c idades conquistadas. Suas terras foram oferecidas ao duque de Bar-

ganha e ao conde de Nevers, os quais, cumprida sua promessa e exortados neste

sentido, recusaram. Uma comissão constituída de dois bispos, quatro cavaleiros e

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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a idade médio na

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rança

c legado do-papa-entregou tudo a Simão de Montfort, que permanecera com uns

trinta cavaleiros apenas; mas eram amigos f ié is, incumbidos de depurar a região

da peste herética.

Por toda par te e les a viam a zombar do a lto dos muros dos castelos . Tra ta ram

então de logo submete r es ses lugares, Minerva , Termas , Lavaur, l impando-os e

  plan tando a cruz do Cristo no alto da torre em sinal de vitó ria (mais alto que o

estandarte de Simão, pois o Cristo é que fo rçara os maus a se refugiarem em seu

covil) , que imando alegr emente dezenas, centenas de perfeitos - e com eles os

senhores da região: os c ruzados não duvidavam um ins tante sequer de que fossem

também culpados de heresia militante. Foi um trabalho duro. Mas os conquis tado-

res da fé util izavam bons brabantinos e for tes máquinas de assédio . Um burguês

de Montpell ie r encar regava-se de reuni r o dinhe iro neces sá rio. Depois, a par tir do

verão de 1210, v ier am reforços, movidos po r promessas de indulgência, mas

também pelo puro desejo de servir a Deus. Partindo da França; da Aquitânia,

. tia Gasconha, a pregação mob ilizava b ispos, barões e cavaleiros. Mobil .izava

também - especialmente na

Renânia

e na região de

Li êge ,

onde mostrou-se

extremamente eficaz - homens sem posses que chegavam a pé, exaltados, e

entre eles mui tos margina is de intenções duvidosas. Crescia a convicção de que

seriam os pobres, por ordenação dó céu , aqueles que venceriam o mal, e

i sso no exa to momento em que , na região f ranca, os  meninos , os esquecidos

do crescimento agrícola, Iormavam bandos, partindo sem saber para onde,

liderados po r iluminados esfarrapados, sonhando' com a terra sem mal das

utopias milenaristas.

Em 1210, Raimundo VI foi novamente atingido. Seus domínios c poderes

régios.est avam expos tos. Simão tomou-os, e seu irmão Gui , os do conde de Foix,

igualmente excomungado. O abade deCister, legado, foi feito arcebispo de

Narbonne, e o abade de Vaux-de-Cernay, bispo de Carcassonne. No inverno de

1212, em Pamiers, prelados e clér igos, cavaleiros e burgueses reuniram-se em

grande número num . 'parlamento  semelhante aos concílios pela paz de Deus,

 para impor o reinado dos bons costumes , para var re r o l ixo herét ico, implantar

bens hábitos,

para -gar antir

O

culto

ría-religíão cristã

c , no  domínio

temporal, a ..

s egurança e a paz . Foram então promulgados estatutos minuc iosamente prepa-

rados por doze jurados, doi s bispos, um templár io , um hospi ta lár io , qua tro guer-

rei ros vindos da França, qua tro cavale iros e doi s burgueses da região: Haviam

sido escolhidos f rancos e autóctones para tirar a descon fiança de todos os cor a-

ções.

Através dessas disposições, foram introduzidos, com vistas à parti lha das

sucessões nobres e plebéias, os usos de Paris, e em especial a est ri ta manei ra de

servir os Icudos

à

maneira franca. Durante dez anos, ficava proibido às herdeiras

de castelo s casar sem au to rização do chefe dos cruzados da região; mas elas

podiam livremente tomar por marido cavaleiros do Norte. Assim foi que se

permitiu aos francos tomar o lugar da aristocracia do Sul através da cópula

legítima, como previra o autor da

Geste des seigneurs d  Amboise

ao dirigir seu

olhar para o passado merovíngio.

Mas tudo estava em processo de mudança no tabuleiro polít ico. Mais uma

vez preocupado antes de tudo com o des tino daTerra Santa, o papa trabalhava pela

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osul

235

reconciliação, voltando-se para seu vassalo, o rei de Aragão. Coberto de glór ia por

sua vitória sobre os muçulmanos da Espanha, Pedro 11foi a Toulouse. Os cônsules

da c idade e os condes prest aram-lhe homenagem, ass im como o jovem filho deste

último, unido à filha do rei por um acordo de esponsais. Este tomava sob sua

guarda, junto com o condado, a seu genro, que não estava envolvido com a heresi a

e que por compromisso real assumido perante Inocêncio III ser ia instruído na

verdade ira fé. A reviravolt a de Roma e esses compromis sos de vassalagem amea-

çavam os direi tos do rei da França. Para defendé-Ios , Fil ipe Augusto autorizou seu

filho a entrar em cruzada. Mas a 13de se tembro de 1213, diante de Muret - como

no ano segu in te nos campos de Bouvines -, Deus favoreceu aqueles que por Ele

combatiam. Numer icamente infer iores , S imão de Montfor t e os seus - devida-

mente purificados pela eonfissão e as missas, além de abençoados com um

fragmento da verdadeira Cruz - venceram em batalha o rei de Aragão, os condes

de Toulouse , Foix e Comminges , os burgueses e a rt esãos de Toulouse. Conspur-

cado, pois havia passado a noi te anter ior com uma mulher, mais duramente punido

do que seri a o imperador Oto, Pedro 11foi mor to em combate.

FoÍ na primavera de 1215 que o prínc ipe Lui s desincumbiu-se do compro-

mis so que assumira. Montfor t veio a seu encontro. Os doi s entraram juntos em

Mompell íer, Narbonne e finalmente em Toulouse. Passados os quarenta dias de

campanha a 'que estava obr igado pelos votos da cruzada, Luís ouviu o legado e

par tiu. Vie ra como os out ros, como peregrino, e não como conquis tador. Desde

Mure t, seu pai contava com Simão, homem de confiança , para defender no Sul os

interes ses da coroa . Quanto ao papa, sustentava queas terras dos herét icos haviam

s ido confis ca das em nome de são Pedro; seu des tino se ri a dec idido pelo concílio

geral que se' reuniria em Latrão. Inocêncio III desejava que fossem res ti tu ídas ao

filho de Raimundo VI, como feudo da Santa Sé. Os prelados não concordaram. A

herança de Toulouse foipartilhada. O que se encontrava em terras do Império ficou

sob a guarda da Ig reja, para ser entregue a Raimundo, o sétimo, quando fosse

maior. eYse se mostrasse digno de perdão . O rctsto - do Ródano ao Porto ,

vale dizer , aos Pireneus - foi conf iado a Simão de Mon tf ort, para que recebesse

essas senhorias de quem tinhaódireito de concedê-Ias . Apressou-se a p restar

homenagem ao rei de França em nome delas.

Ele julgava então que ser ia capaz de controlar Toulouse a partir do Château

Narbonnai s, onde se ins ta la ra . Toulouse era incontrolavel. Não herética, mas

ligada a seu senhor natural , como toda a região, que não suportava os estrangeiros

vindos do Nor te. Toulouse expulsou Simão, ab rindo suas portas para o jovem

Raimundo. Em l218, Montfort, que sit iava a grande cidade, foi aba tido por uma

máquina de arrojar pedras. No ano seguinte, Luís de França partiu para nova

quarentena, massacrou de passagem os habitantes de Marmande, surgiu diante das

muralhas de Toulouse e partiu de volta: como em sua primeira viagem, não vinha

para conquistar. Filipe Augusto recusara-se a se apossar dos direitos que lhe eram

oferecidos por Amauri, filho de Simão. Mas quando este , desanimado, chegou a

Paris em 1224, acompanhado dos sessenta cavaleiros que lhe restavam e renovan-

do sua oferta, o filho de Filipe, já agora rei, aceitou. Luís VIII acabava de se

apoderar dos feudos de que a corte dos barões havia despojado João sem Terra

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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236

a idade média na frança

 vinte e dois anos antes. Com a maior facilidade , apossava-se de La Rochelle, da

Saintonge, do Limousin e do Périgord, Seus cavaleiros foram mesmo atéSaint-Émi-

lion, na Guiena. Com asmãos livres, desejoso de dobrar os cátaros, que sabia estarem

ainda a pregar abertamente, empenhado também em impor o reconhecimen to de

seus direitos soberanos sobre o Sul da Gáli a, e le tomou pela te rce ira vez a f rente

de uma cruzada  con tra Raimundo VII , excomungado. Durante cinco anos o

papa permitiria que recebesse um décimo dos rendimentos do clero da França,

garantindo a segurança do reino contra o rei da Inglaterra.

A expedição pelo Sul f oi um passeio , como a que seu pai e seu avô haviam

comandado no Mâconna is. Os nobres da Narbonnaise apres sa ram-se a colocar as

mãos nas do rei, que caminhava pela margem esquerda do Ródano, em terras

imperiais , não hesitando em brandir por ali a espada da just iça. Mas ele seria detido

por um obstáculo inesperado: Avignon. Para lá do rio, aumentara a força das

grandes comunidades u rbanas, Barganhando.seu.apolo.ao.conde de TmU011Se,elas

. haviam obtido novos privilégios. Sua política à italiana transformara-as em peque-

nos Estados resistentes. Os cavaleiros e patrícios que acabavam de afastar os

profiss ionais das magistraturas haviam-se entendido com Luís VII I: ele estava

au to rizado a penetrar no recinto murado com uma pequena escolta, enquanto o

exército atravessasse a ponte. Mas ao ver os cruzados a cidade ficou com medo,

t emendo o mesmo destino que Bézicrs. Fechou-se. Ferido em sua hon ra, conven-

c ido de que semelhante resi stência tinha a ver com os herét icos, obr igado pelo

juramento que prestara a castigar as cidades rebeldes, o rei da França sitiou-a

du rante três meses sob um céu plúmbeo e em meio a nuvens de inoscas que

propagavam ter ríveis cólicas. Finalmente, quebrou as defesas, impediu que seus

homens saqueassem, contentou-se com seis mil marcos de prata e com promessas

e prosseguiu em sua empreitada. Ao retomar em novembro de 1226, entretanto,

morreria de disenteria em Auvergne. A darmos crédito a Guilherme de Puylaurens,

F il ipe, s eu pai, previ ra que este homem frágil não resistiria aos miasmas naquelas

terras ensolaradas.

Um guerreiro destemido - osire de Beaujeu, que permaneceu.na região -

continuou a lutar pela f ê. Ra imunão VIl acabou por se entender com Branca de

Castela, viúva e regente . Na Sexta-Feira San ta de 1229, em Notre-Dame de Paris ,

acompanhado por seus amigos, como ele condenados, submeteu-se a uma cerimô-

nia de expiação. Deserdado po r mjlit ância herét ica, e le se confessava destituído

de todos os direitos que haviam sido exercidos po r seus ancestrais. Mas ficava

estabelecido que , t endo s ido lavado do pecado pela penitência do conde, o rei da

França , na qualidade de patronus

ecc/esiae,

confiar-lhe-ia a tí tulo de concessão

feudal, e para que nelas se mostrasse bom defensor da Igreja , as dioceses de

Toulouse, Agen, Rodez c Cahors, mas p reservando, além das senhorias de Tren-

caveI, todo o resto dos bens que a linhagem rairnundina havia possuído aquém do

Ródano: Beauca ire, Niines e Saint-Gilles,

Os ritos observados e as cláusulas dessa paz evidenciam como o religioso e

o político se articulavam estreitamente nessa época. O rei de quinze anos que

recebe a h omenagem é o braço de Deus na Terra. Deus dispõe. E o que Ele quer é

que sejam afinal neutralizados Seus inimigos, tornados ainda mais arrogan tes pela

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237

resistência de uma nação aos invasores. O Capeto e seu vassalo empenharam-se

em providenciar para que em todas as reg iões submetidas a seu poder o combate

do bem contra o mal fosse levado a bom termo. Em nossa juventude, no limiar

d~ nosso reinado , proclamava Luís IX numa ordenação promulgada para a

di'& ésede' Nimes,  pela honra de Deus, que nos deu a mais alta honra na Terra,

faremos com que a Igreja de Deus, por tanto tempo inquieta, seja honrada e

conduzida à . fé ... que os excomungados se jam reconci liados de acordo com o

direito canõnico, e que se se mostrarem insubmissos sejam ao fim de um ano

trazidos à força à unidade da Igreja. Em Paris , o conde de Toulouse prometera

agi r da mesma forma. Expulsaria de suas terras os maus fiéis e seus simpatizantes,

não poupando nem seus vassalos , nem seus paren tes e amigos. Ordenaria a seus

bailios que buscassem os hereges por toda par te, oferecendo a quem ajudasse a

encontrar algum deles o prêmio de uma renda de dois marcos de pra ta durante os

dois primeir os anos, e em seguida deum marco, perpetuamente, e a mesma coisa

para cada herege, se capturar vários  . A Igreja recobraria seu antigo poder,

receberia tranqüilamente d ízimos e pr imícias, construindo em s inal de vitór ia, à

maneira da França, catedrai s cujas tor res alt as e ornamentos celebra ri am o esma-

gamento das doutrinas perniciosas. Raimundo VII dava quatro mil marcos para a

fundação em Toulouse, mas uma vez à maneira da França, de um centro de estudos:

qua tro mest res em teologia, dois mestres em direito canônico, seis mes tres em artes

liberais e dois gramáticos viriam das escolas parisienses para formar umbom clero

no bom saber. Foi aperfeiçoada;enlim, a m áquina repressiva.

Em 1184, os bispos haviam sido convocados a percorrer sua diocese para

julgar

in loco

os transviados notórios. Em 1199' c 1206, Inocêncio III exortara-os

a não mais confiar apenas nas informações que corri am, mas t ra tarem de se

informar, de investigar. Em 1229, em Toulouse, umconc ílio provincial determinou

como efetuar essa busca com maior e fi ci ência.  Que em cada paróquia sejam

des ignados um padre e três leigos para dar busca diligente aos heréticos, vasculhar

uma a uma as casas e adegas suspeitas, procurar a té nos redutos improvisados nos

telhados c em todos os esconderijos. Se forem encontrados- hereges ou crentes,

partidários, receptadores ou defensores de hereges, t ratarão de tomar todas as

precauções para que não fujam e os denunciarão com toda pressa ao arcebispo ou

ao bispo,' ao senhor da região ou a seu bailio.  Caberá ao poder eclesiástico

julgá-los de acordo com os r itos. Os que voltarem espontaneamente à verdadeira

fé usarão duas cruzes em lugar alto e bem visíve l, de cor diferente da de sua

roupa, uma à direita, outra

à

esquerda, que, no entanto, não bastarão para jus ti fi-

ca-los se não houver também um certificado de reconciliação fornecido peJo

bispo ... Que a essas pessoas não sejam confiados encargos públicos, e que não

sejam admitidas nos atos legais.  Quanto aos outros, insubmissos, '·para se

penitenciarem, serão emparedados , ou seja, atirados na masmorra. Todos os

católicos, homens de mais de quatorze anos, mulheres de mais de doze, jurarão

.'denunciar lealmente os hereges , devendo, para não se tornarem suspeitos,

confessar-se e comungar t rês vezes por ano.  Que os leigo s não tenham consigo

nenhum livro das Escrituras, exceto o Saltério e o ofício divino; e que não os

tenham em língua vulgar. Em 1233, a ··inquisição da perversidade herética  foi

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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238

a idade média na frança

confiada aos Irmãos Mendicantes, às novas companhias formadas na fermentação

religiosa que fazia f rente ao desafio herético, e com as quais o papa podia agora

contar: os discípulos de são Domingos e de são Francisco. Os inquisidores

executaram bem sua tarefa. Em Toulouse, de maio a ju lho de 1246, seu tr ibunal

condenou cen to e trin ta e quatro indivíduos a portar a cruz, v inte e oito à prisão

perpétua. Durante toda uma geração, e les haviam esbar rado na lei do si lênc io , na

solidariedade entre par entes e v izinhos fo rtalecida pelas humilhações da der -

rota, naque le mesmo sentimento nac iona l que obr igara os mest res par isi enses

estabelecidos na universidade de Tou louse a se retirarem. Po r longo tempo os

castelos haviam resistido com armas. A última violência foi o massacre, em

1242, de qua tro inqui sidores que passavam por Avignonnet. Dois anos depois,

Montségur, reduto dos assassinos, caía. A partir daí, o 111 aI seria rechaçado

len tamen te das cidades para os povoados da p lanície e cada vez mais alto nos

--vales. Sabe-se-que-aintl-a--resis-tia-no-raiar--do século AIV, entre o s camponeses

de Montaillou.

A paz firmada em Paris congregava Carcassonne, Baucaire e aregião vizinha

ao domínio rea l. As insti tuições do Estado capetíngio haviam-se tornado robustas

o bas tante, e o s ist ema de comunicações progredira o suf iciente para que já não

parecesse quimérico , em 1229, controlar essas paragens tão dis tantes a par ti r da

Íle-de-France, Os sober anos não as visitavam mais que antes. Entregavam seus

poderes aos senescais láestabelecidos por Simão de Montfort; eles resolviam tudo

em sua corte, semelhan te à corte real e fortemente munida, como ela, de

técnicos de justiça e finanças; Desse modo , a r esponsabilid ade pela opressão

recaía, aos o lhos da população, sobre o s que f alavam em nome do r ei. O rei por

sua vez encamava a eqüidade.

A

dist ância, apresentava-se como o recurso .

Dele podia-se esperar que acolhesse as queixas e con tivesse a bru talid ade de

seus agentes.

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A realeza íipropriara-;se-dessas~terras porque queria-par ti cipa r da luta pela extirpa-

ção da heresia eporque considerava necessário um ponto de apoio contra apossível

in fidelidade de Raimundo VII . Esses domínios também propo rcionavam uma

abertura para o mar , o que contava mui to: na casa do soberano, sonhava-se menos

com anexações do que com a cruzadi, a verdadeira, aquela que finalmente

lib ertaria Jeru salém. Em todo caso, ninguém pensara em apoderar-se de todo o

patrimônio dos condes de Toulouse, passado para as mãos de Deus em conseqüên-

cia da guerra santa. Livre para agir em nome deDeus, o poder capetíngio limitou-se

a dissociar o imenso principado e atrelar solidamente à coroa sua maior par te , sem

a preocupação de anexá-Ia. Das quatro d ioceses que lhe foram entregues como

feudo, Raimundo VII recebeu o de Toulouse apenas a título vitalício. Após sua

morte, ele passaria a sua filha, até então seu único filho legítimo, e. prometida

a um dos filhos de Luís VIII. Só os herdeiros a nascerem da união assim

projetada o sucederiam no feudo; Joana de Toulouse e seus descendentes

receberiam tudo que per tencera a seu s ancestrais se seu pai viesse a morre r sem

deixar f ilho homem.

o sul

239

Tinha ela oito anos. Antes que chegasse à idade de copular e procriar, foi

zelosamente guardada na corte de França. Em 1237, foi ent regue a um dos i rmãos

do rei , Alfonso. Ninguém podia prever que Raimundo VII não vol tar ia a casar , e

que Joana ser ia est ér il. Quando ela mor reu ao mesmo tempo que o marido, em

1271, vendo a nação toulous ina em dor , a l inhagem deque e la e ra o últ imo rebento

 era destruída e apagada da face da Terra , todas as regiões do Languedoc

retomaram

à

coroa. Por acaso. O Estado monárquico tomara-se capaz de absorvê-

I as. Ainda não o era quaren ta anos an tes, Não se poderia mesmo, desse modo,

concebê-Io senão como um agregado de princ pados au tônomos, lig ados pelo

contrato feudal e os vínculos muito mais fortes do parentesco ao domínio da

coroa, por sua vez suficientemente restrito e condensado para que o rei o

mantivesse sob o devido controle através de seus homens. Ninguém podia

p rever a anexação de Toulouse, menos ainda desejá-Ia em nome de um impe-

rialisíno~'-ainda aôsoiutamen te impensáveL Em 1229, o crescimento das insti-

tui çõesestat ai s a inda não chegara ao ponto de just if icar t ai s desígnios , ao passo

que em 1226 já ia avançado o suficiente para que Luís VII I, cujo filho mais

velho tinha apenas doze anos, con fiasse a regência à esposa. Ninguém contes-

tou sua decisão.

Nos sécu lo s XI e XII, ocorpo das mulheres nob res tinha grande valor político.

Elas pariam, traziam como contribuição para a casa do marido um sangue,

pretensões sobre um patrimônio; enviuvando, acontecia que seu f ilho lhes viesse

respeitosamente pedir conselho. Passivas, entretanto, serviam sobretudo para as

t rocas ent re l inhagens das qua is dependiam o des tino das senhorias, t anto quanto

das guerras. No f im do século XII , noauge domovimento de progresso que e levava

a condição feminina, em ritmo semelhante ao dos homens, já era comum ver-se

mu lheres p restarem homenagens na ausência de u~ marido ou pai , recebê-Ias

em nome de seu filho menor e, sob o controle do senhor guard ião, cuidar no

dia-a-dia dos-interesses deste. -Nasagração de Luís IX, alguns barões ausentes

foram representados por suas mulheres. Mas a inovação de que se beneficiou

Branca de Castela tinha menos a ver com a promoção da mulher que com a da

realeza.

Por tando a coroa , a rainha da França não era um objeto como osout ros. Sua

imagem correspondia à da Vir gem sen tada, no tímpano das catedra is , t endo nos

joelhos o Deus encarnado , enquanto fo sse criança. Além disso, o marido desta

mulher , no topo da pirâmide feuda l, só t inha como senhor o próprio Deus. Só Deus,

podia.portanto, tomar a guarda de seu filho caçula, delegando esta tarefa a um de

seus mais altos servidores. Desse modo, enquanto Fi lipe Augusto comandava a

cruzada, o arcebispo de Reims encarregara~se junto à rainha mãe da tutela do

príncipe Luís, cuja mãe morrera em 1190. Em 1226, a inda não tenninara uma outra

cruzada, no Albigeois. Coube aocardeal de Saint-Ange, legado do papa. tomar o

lugar de Deus ao lado de Branca de Castela. Nos primeiros anos, foi-lhe de grande

ajuda. Mas a juda a inda mais val iosa e mesmo essencial foi-lhe dada pelos clérigos

e cavaleiros que constituíam na casa real como que um só grupo de parentesco, no

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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240

a idade média na frança

qual as dignidades eclesiásticas eram transmitidas de tio para sobrinho, e de pai

para filho os ofícios dos diferentes  metiers da corte (só na posteridade de

Gauthier de Nemours , aliado aos Clemente e aos Comut, podemos contar , ao longo

de qua tro gerações, quat ro a rcebispos, dez bispos, dez cônegos de Not re -Dame ou

Saint-Martin de Tours , quatorze marechais ou camareiros). A reunião de todos

esses homens protegia a l inhagem real com uma couraça suficientemente dura para

sustê-Ia nos momentos de dificuldades. Era por s inal o caso. P reva lecendo-se da

minoridade, o baronato tentava romper as amarras com que era insensivelmente

mantido sob controle pela monarquia . Abr igada em Par is - onde os cavale iros

do domínio e os burgueses instalar am em lugar seguro o j ovem príncipe que os

barões rebeldes pretendiam captura r - . sua mãe resi stiu, cercada dos parentes

do mar ido e do sogro. Os bons servidores foram a mais segura defesa da fragilidade

feminina.

Para que não fosse perturbada atranqüil id~de do.reino, o.falecidnreiacertara

sua sucessão em 1225. Branca de Caste la não t inha apenas defei tos. Era de uma

inesgotáve l fecundidade . Dos f ilhos que pusera no mundo, cinco sobreviveram às

mortalidades da infância. O últ imo a nascer, Fil ipe Dagoberto, estava destinado

ao estado eclesiást ico. Seguindo os costumes mu ito bem estabelecidos em todos

os p rincipados do reino, e que só pelo acaso dos nascimen to s não hav iam sido

aplicados ao patrimônio capetíngio desde Fil ipe I, Luís VIII dividiu-o em quatro

partes. Ao primogênito coube, junta inente com a coroa e todo o ouro e prata que

fossem encontrados na torre do Louvre, o domínio dos ances trai s, os duques de

França , ampliado daNonnandia, que em hipótese a lguma devia ser dele separada.

Roberto, o caçula, herdou o que vinha da avó, o Artois, com a ressalva de que, se

morresse sem deixar filho, este f eudo r etomar ia ao r ei. Aquisições recentes. o

Anjou e o Maine foram para o terceiro filho (que morreu, cabendo esta parte. afinal,

ao sexto filho, Carlos, que foi póstumo); o Poitou e Auvergne couberam aoquarto,

Afonso, futuro mar ido deJoana de Toulouse. Ao chegarem â maioridade, os irmãos

foram sucessivamente tomando posse dolegado, desua porção que anos mais t arde

começari a a se r chamada de apanágio, em provimento da coroa de Prança , Esta

não era de forma alguma pre judicada por tal partilha, e disso ninguém duvidava.

Ligadas à coroa pelo contrato feudal, essas províncias distribuídas mantinham-se

estreitamente vinculadas a ela, exa tamente como os f ilhos da França , os únicos

que a partir de ago ra usavam em ~u brasão a f lor-de -I is , mantinham-se unidos

sob a autoridade do primogênito, ehefe incontest ado des sa famíli a austera que

desconhecia a f rivolidade. Vemos os irmãos de Luís IX dóceis, quando o rei,

para construir a abadia cisterciense de Royaumont, forçava-os a carregar as

pedras com ele. A anedota ref le te f ie lmente a rea lidade: perfeita, a coesão de

uma linhagem governada segundo os preceitos de uma moral pat ri arca l susten-

tou o crescimento da monarquia ao longo de todo o século XIII.

Na condução do Estado, Luís IX manteve-se respeitoso dessa moral e

deixou-se guiar.menos pelos princípios acanhados que lhe teriam sido inculcados

por sua mãe, segundo uma persistente idéia preconcebida, do que pelo exemplo

do avô, cuja memória venerava. Deu o último retoque no edif íc io ideológico cuja

construção havia sido apressada pela vitória de Bouvines, realçando o bri lho da

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o sul

241

realeza sagrada por sua conduta, para começar, por suas virtudes, uma santidade

bem menos duvidosa que aquela de que se pretendera ornar Filipe Augusto,

empenhando-se também em refo rçar por todos os lados os suportes s imbóli cos do

poder que detinha. Mostrando o exemplo da  prudhomie , reunindo plenamente

em sua pessoa os valores da devoção. da sabedor ia e do des temor, s abendo ler e

lendo constantemente a Bíblia em seu quarto, Luís IX promoveu o remanejamento

do

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do regulamen to das I itu rgias da sagração. En tr e a tripla promessa,

garantindo que o futuro rei mante ri a por livre a rbít rio a verdadeira paz , e a

unção [oram inseridos os ritos da investidura na armadura, para proclamar o

vínculo já agora indissolúvel entre a função rea l e a cavalar ia.

Em seguida , em 1240, Luís IX fez a aquisição de uma outra coroa, a que o

próprio Jesus portara, de espinhos, instalando-a pelos séculos dos séculos nocentro

de um relicário esplêndido. a Sainte-Chapelle. Gastou somas inimagináveis no

empenho de fixar em seu palácio, na cidade deParis, este s ímbolo maior do poderio

monárquico, cuja teoria era então elaborada pelos juristas. Um deles, João de

Blanot (que pode ser incluído entre os parvenus da ciência, então numerosos: seus

avós eram servos, e seu pai, pequeno preboste no Mâconnais, ganhara bastante

dinhe iro para mandã-lo estudar direito romano em Bolonha), afirmava que o rei

podia exigir serviço militar dos subvassalos cont ra a vontade de seu senhor direto,

pois estes são convocados, esc revia, pelo bem público , em nome da pátria

_ não da pequena pát ri a local, masda grande, identif icada ao reino. E para esse

borgonhês quê terminou como ofic ia l de Lyon, não se tratava do reino da França,

mas do reino da Gália  .

A grande enciclopédia do saber humano encomendada po r Luís IX a Vicente

de Beauvais , o dominicano que guardava seus l ivros, começa com uma histó ria do

mundo intei ro . mas princ ipalmente da dinas ti a, pois est a ocupa - e dis so ninguém

tinha dúvida=-- o centro do mundo. O autor mostra como se confirmaram as duas

predições combinadas, a de são Valério e a do retorno da coroa da França aos.

descendentes de Carlos Magno. A título de ilustração de afirmações que garantiam,

sob o olhar de Deus, os direitos. da posteridade de luí s VII I, Luís IX decidiu afinal

organizar a-necrópole real. Em Saint-Denis , onde o.abadcMateus de Vendôme

tentava reuni r num só manuscr ito todos os textos relatando os grandes feitos das

rei s de França, numa basíl ica inteiramente reoonstruída nas formas góticas e agora

inundada de luz, e rguiam-se qua tro a ltos uimulos cobertos de ornamentos: o de

Dagoberto, voltado para o sepulcro do mártir, o de Carlos, o Calvo, no meio do

coro (Dagoberto, Carlos: irmãos do rei t inham os nomes desse merovíngio e desse

carol íngio) , e a inda os de F ilipe Augusto e Luís VII I. Em 1267, as sepulturas dos

reis das duas primeiras raças - e Carlos Martel, que nunca Dortara a coroa,

também fazia parte do grupo - foram alinhadas no lado sul , e as sepulturas dos

çapetíngios, no lado norte. Diante dessa fileira dupla , como remate dessa tripla

linhagem, abria-se lugar para três corpos defuntos, o de Luís VIII, no centro, o de

seu pai e o de seu filho, que viria juntar-se aos antepassados, Semelhante disposi-

ção p retendia manifestar claramente, aos olhos de todos, este fato capital: verifi-

cara-se uma ruptura na história dos poderes, sob o reinado de Filipe Augusto. Tal

ruptura assinala o nascimento do Estado Francês.

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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o século XIII

Por mu-ito tempo os súditosdo rei da França 'sonharam em voltar ao tempo de

 monsenhor são Luís : era uma época vista como de ouro, na qua l e ram felizes.

Enganavam-se. Ela não fora poupada nem pela fome nem pelas epidemias, e -

como bem sabem os his toriadores - enquanto debilitava-se rapidamente e logo

cessava a corrente de crescimento cujo vigo r provocara a espantosa fecundidade

do sécu lo anterior, o número de proletários esmagados pelos ricos não parara de

aumentar nas cidades, nos burgos e no campo. Não devemos esquecer que as

últimas catedrais foram construídas em meio ao empobrecitnento das populações

menos favorecidas. Seu aspecto portentoso ilude. Como iludia, na época, o t1uxo

de moeda que chegava às cidades nas últimas ondas do progresso econômico,

cidades onde o p oder podia encontrar sem muito esforço aquilo de que precisava.

Nessa fac ilidade monetár ia , os mecanismos do Estado multiplicaram-se, ajustan-

do-se e enrijecendo-se, Assim como vemos, nas estruturas das igrejas construí das

no reinado de são Luís, en rijecer-se aos poucos em regras regulares e frias

aquilo que brota ra na espontaneidade da inovação, da mesma forma o co rpo

flexível dos co stumes fecha-se insensivelmente nos r igor ismos de uma ordena-

ção lógica.FNo momento 'em 'que 'mestre Alberto, o Grande, domin ieano,

ensinava em Paris que a natureza é razão , em que' mestre Boaventura,

franciscano, ensinava que a razão é imagem natural do Criador , Luís IX,

discutindo com o bispo de

Auxerje,

respondia com a razão às exigências da

Igreja, segundo nos relata

Joinvílle.

É verdade que sua primeira alegação

fora precisamente Deus. E a ordem primordial que deixara ao herdeiro fora

a de amar Deus, pois Deus mostra como agir com sabedoria e o amor a Deus

afasta do pecado mortal. Desse modo, a história 'do reinado é colocada sob

um duplo signo, o da razão e o do amor a Deus.

O rei baseava-se

110

amor de seus' feudatários, contando com ele para

controlar todo o reino e não hesitando em reduzir seu domínio direto com a

intenção deliberada de fortal ecer o baronato. Desejava que este se mostrasse sólido

e amplamente disseminado. E, de fato, reforçou-o. Para que o filho de João sem

Terra, Henrique III, rei da Inglaterra, se tornasse seu vassalo, para que viesse

prestar-lhe homenagem no jardim do palácio em dezembro de 1259, Luís IX

242

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o século xiii

243

decidiu devolver-lhe, como feudo por um  serviço conveniente , uma boa parte

das províncias do sudoeste, adquiridas por seu pai e por ele mesmo. Muitos de seus

companheiros de armas desaprovaram-no. Ele resistia, pois só pensava na' paz, e

sobretudo acreditava na eficácia de um sistema assim definido no Livre de justice

et de plaids: ~O rei não deve receber de ninguém ;  Duques, condes, v iscondes e

barões podem receber uns dos outros e tornar-se homens, exceto a dignidade' do

rei, contra quem de nada vale uma homenagem ;  Castelãos, subvassalos, cida-

dãos e plebeus estão submetidos àqueles que o rei tem como homens, e todos

encontram-se nas mãos do rei .

Se cito a reflexão de um homem da lei, é porque a extensão do poder

monárquico foi obra sobretudo de jur ist as a que o soberano retribuía. Em seu nome,

estavam eles incumbidos de controlar sua terra segundo os costumes da região .

Mas esses conselhos estavam  rnui destruidos e quase todos falidos , como Pedro

de Fontaines, bail io de Vennandois, d iz ia a F il ipe, herdeiro do reino, no Conseil

que para ele esc reveu . Desse modo, os juízes sentiam-se autorizados a decidir

segundo sua vontade de senlido ,já que a razão, que existe no homem como uma

fagulha da intel igência divina, permite, segundo Cícero, conhecer a lei, que

corresponde a nossa verdadei ra natureza, e agir  pela uti lidade comum . Assim,

eles forjavam pouco a pouco o costume da França , rejeitando no conjunto dos

usos conservados' na memória das comunidades aquilo que não Ihes parecia

 razoável ,

esclarecendo-se na consulta aos textos do direito canônico e do direito

civil. Esse novo  costume da França  reforçava as prerrogativas do soberano sobre

as tenures feudais, mas também sobre os alódios: já se começava a pensar que só

poderiam ser retomados como feudos do rei, e só dele.

O direito romano, ensinado nas escolas de Orléans, afirmava ser o Capeto

 imperador em seu reino , Um dos sinais mais evidentes de sua plena soberania

er a a moeda, declarada atributo real pelos legistas. Uma ordenação elaborada em

1263 pelo conselho de homens de negócios de Paris, Orléans, Sens, Provins e Laon

determinou, que a moeda do rei seria a única a cirbular em seu domínio e nos de

IrutQ..S;:ÜS barões.que.não.detizessem por herança o direito.de cunhagem, e:que seria

acei ta em toda par te. Três anos depoi s, os a teliês rea is emiti ram as grandes peças

de p rata valendo um so ldo tournoi  ; necessárias para os altos negócios, assim

como algumas peças de ouro, inspiradas no modelo das espécies bizantinas, mas

de valor puramente emblemático, proclamando o poderio imperial.

A soberania sobrepujava as senhorias. E também as permeava. A serviço de

um poder que lhes dava lucro e prestígio , os agentes do rei estendiam este poder

o mais que podiam, Espez inhavam o direi to das igrejas, certos de contarem, nesta

frente, com o apoio dos barões. Estes protestam em 1264 contra a  falsa humilda-

de desses  filhos de servos que, quando se tornam clérigos, julgam de acordo com

seu direito os homens livres e os feudos dos homens livres , lembrando que ·0

país não foi conquistado pela arrogância dos clérigos, mas pelo sangue dos

guerreiros . E quando o bispo de Lodêve queixava-se por volta de 1255 de estar

*

Tournoi:

moeda cunhada em Tours. (N. T.)

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244 a idade média na frança

vendo  o.senescal, o baílio, o viguier ; os juizes e outros oficiais da corte dó senhor

rei l ançar int imações, investigar os crimes e condenar , c obr ar pela for ça e pela

int imidação taxas i líci tas, requisi tar cavalgadas nos domínios eclesiást icos , os

barões por sua vez congratulavam-se por essa invasão do poder io lai co . Mas não

demorariam a se queixar: sua senhoria sofria intrusões equivalentes. Para descul-

par- se por não acompanhar numa nova cruzada o r ei Lu ís que tanto amava, o sire

de Jo inv ille declarou em 1267 que os sar gen tos do rei hav iam aproveitado sua

estada na Terra Santa para empobrecer sua população.

E , no entanto , Luí s IX sent ia-s e movido por uni c iúme de jus ti ça , conven-

c ido de que Deus permi ti ra sua sagração para que e le , novo Salomão, impuses se

po r toda par te a eqüidade. Na memória dos fr anceses, sentado sob o carva lho de

Vincennes, ele ordena que venham a ele os mais humildes e necessi tados dejustiça.

E ssa imagem ilu stra perf eitamen te a idéia que ele mesmo tinha da função r eal, e

que levou a corte a se organizar em torno de uma peça chave, o parlamento do

. senhor r.ei , 'lo ro de debates judieiários, Relegadõs ' â  câmara de contas , os

membros da casa encar regados de controlar as f inanças cediam lugar aos espec ia -

l is tas em direi to, aos mestres  do par lamento. Recebendo das mãos do pat rão, no

dia marcado, os mantos e I ibrés que Ihes serv iam de penhor da função , eles

cumpr iam com fervo r sua missão, móv idos igualmen te pelo amor d ivino e pela

convicção unânime de que julgar é um ato sagrado. Despachavam invest igadores,

cavaleiros e c lé rigos, junto aos bai lios que passavam a residi r nas sedes de seus

t ribuna is . Se as sentenças e ram por inadver tênc ia emi tidas abert amente contra

o costume da região , cabia ao rei, que se encarrega de guardar e fazer

respe it ar esses cos tumes , cor rigi r os maus julgamentos . Essas inves tigações

acostumaram as 'populações a se voltar para o Parlamento de Paris, cujos

 d ito s ou sentenç as passar am em 1254 a se r cu idadosamen te r egistrados no

pergaminho.

Em respei to e cumpr imento às promessas da sagração, no entanto , o rei qui s

mais. Em 1245, no momento em que se preparava de corpo e alma para uma

expedição

à

Terra Santa , determinou uma inqui si ção. Não que est ivesse preocu-

pado em

és t imular

a caça aos hereges: sabia que estava sendo convenientemente

levada a efe ito. O que pre tendia e ra reformar o governo do reino, reprimi r por toda

parte, até os conf ins do long ínquo Languedoc, os abusos daqueles que admi-

n istr avam em seu nome a ju stiçasexpulsando os prevaricadores. Ora, não foi

ao s homens de s eu

hôtel

que ele confiou a inves tigação, mas a homens de Deus,

aos dominicanos e f ranc is canos cujos confrades e ram incumbidos de procura r

os cátaros para deles purificar a Terra. No espírito de Luís IX. de fato, a

depur ação do pessoal jud iciário era

 questão

de fé , exatamente como a luta

contra os albigcnses.

Ele tomara a cruz em 1244, aos trinta anos e após recuperar-se de uma

doença, inspirado por uma visão que tivera em estado de coma. Calculou-se que

investiu na santa empreitada um milhão de libras, o quádruplo dos rend imentos

.* Viguier: denorilinação de certos juizes ou prebostes no Sul da França. (N. T.)

o sécu 1 0 xili

245

anuais do Estado; as cidades forneceram um quarto, e a Igreja, quase todo o resto.

A 12 de junho de 1248, em Saint-Denis, o rei lançou mão do cajado e do alforje

dos pereg rino s, ergueu a au riflama, d irigiu -se a No tre-Dame e depois, os pés

descalços, a Santo Antônio, e partiu para o mar. Estreitamente unidos, seus irmãos

o seguiam. Saint -Gil le s, por to assoreado, não pôde ser usado. O embarque teve

lugar em Aigues-Mortes , preparado com essa finalidade precípua na extremidade

do domínio rea l. A bela aventur a no de lta do Nilo , todas as pr ivações so frid as, a

hecatombe de Mansurã , a captura do soberano, o resga te que teve de ser pago aos

infiéis. --;- tudo i sso deve se r l ido em Joinvil le , admirável t es temunha. Ao retomar

seis anos depois, o cruzado estava irreconhecível. O fracasso, a longa permanência

nos Lugares Santos ainda acessíveis, o sermão sobre a justiça que ouviu do

f ranciscano Hugo de Barjo ls logo depo is de desembar car em

Hyêres

haviam-no

 convert ido , na acepção do termo, modif icando sua vontade . Pelo res to da vida

ele continuaria-um .pen i ten te. 7 \ té então, seus favores - como os de sua mãe, que

construía Maubuisson, Ly s e Chaalis - estavam reservados, sobretudo, aos

cistercienses.

Em Royaumon t, um quar to er a r ese rvado para ele, dando para a igreja. A

par ti r de então, viveu cercado de I rmãos Mendicantes , que o orientavam em suas

leituras e nas práticas piedosas. Estas não diferiam em relação aos comuns.

Simplesmente ele as exagerava, acumulando a seu redor o s r elicários que nas

grandes fest as gos tava de car regar nos ombros. Antes dele, todos os reis haviam

acolhido pobres em seus castelos; poi s e le a limentava mui to mais - cento e vinte

diariamente na res idência, t reze na sala, t rês a sua mesa. E sobre tudo, empenha-

va-se como são Franc is co, na imi tação do Cri sto sof redor, pobremente ves tido,

recusando os ornamentos de que gostava de se enfei ta r na a legr ia da juventude ,

deixando de rir. Cuidando pessoalmente dos leprosos, er a com radica l ar do r que

cumpria as missões reais .

Foi como see le qui sesse apl icar a seu povo, para fortalecê-lo, para preparã-lo

para retomar em melhores condições a luta coJtra o Islã, as macerações que

impunha a seu próprio-corpo. As ordenações que promu lgou nos dez últimos anos

de vida são instrumentos de penitência destinados a neutral izar a maldade que até

então o r ei julgava não ter combatido com suficien te v igo r, o queo privara da.graça

divina dur ante a cruzada. For am med idas que tomou pelo bem comum , para a

utilidade dos súdito s , mas sob retudo para abater o pecado , para moldar pelo

melhor o estado do reino . Mais uma vez, reforma . Enquanto na univers idade de

Paris cer tos pensado res en sinavam que o mundo ia mudar, entrar numa terceira

er a, a er a do Espírito , após a do Pai e a do Filho, que conduziria toda a humanidade

à pureza exemplif icada pelos monges - e fixavam a data dessa mutação : estava

muito próxima -, o.empenho do r ei da França voltava-se todo para essa purifica-

ção, baixando proibições aná logas às que os prelados e príncipes reunidos em torno

.do s cof res haviam pre tendido baixar, dois séculos e meio antes, à e spera do fim

dos tempos.

Em contraponto a toda a evolução política que tentei acompanhar, descobri

a cada momento as ressonâncias do movimento pela paz de Deus. No reinado de

Luís IX, ele como que ressuscitou. Movido pelo zelo divino, o soberano quis forçar

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'idade média na frança

o reino a lavar-se de seus pecados. Ele estava conspurcado pelo sangue inutilmente

derramado. Assim foi que o rei, tratando de dar o exemplo em seu domínio para

que fosse segu ido em outras r egiões, e preocupado em reduzir o perigo de perder

vida ou membro e em impedi r a efusão de sangue, suprimiu o duelo judiciár io,

 acabou com asbata lhas, eno lugar da batalha colocou provas de tes temunha e de

carta . Ele ainda sonhava em abolir para sempre as  guerras , as vinganças

privadas. O que, naturalmente, era impossíve l. Mas pelo menos pediu a seus

homens que se esforçassem, dando garantias aos adversários, por suspender as

hostilidades durante qua renta dias, para que a raiva tivesse tempo de ceder e os

protagonistas, nesse período de trégua, aceitassem decidir sua s divergências em

discussões. O reino também estava conspurcado pelo d inhei ro . Teria s ido neces-

sário que o deixassem de lado todos os homens que se locupletavam em seu

manuseio, os lombardos, os cahorsinos, os judeus. O rei determinou que fossem

expulsos, o que tampouco era possível. O reino estava conspurcado ainda pela

frivolidade, a fórnicação, as b lasfêmias. Foramptoibidos os jogos de azar, fecha-

ram-se as mulheres de vida fácil num bairro das cidades, sendo declarados

passíveis de duros cas tigos aqueles que ousassem dizer más palavras ,  jurar por

algum dos membros de Deus, de Nossa Senhora ou dos santos . Medidas igual-

mente inaplicãveis. .

Incapaz de instaurar o paraíso em suas terras, Luís IX partiu em sua busca.

Para estupor de sua casa , empenhou-se em cruzada uma segunda vez e morreu

diante de

Túnis,

mártir da fé. Unânime, seu povo considerava-o san to havia muito

tempo. Atendendo. a uma exigência pública, a Igreja reconheceu oficialmente a

santidade do rei da França. Diz uma das tes temunhas do processo de canonização:

 Não só ele cuidara dia e noi te , no governo do reino, da proteção dos corpos e das

coisas corporais, como cabe à função real. .. como também, mais preocupado do

que se pode imaginar com a salvação das almas, de tal modo cuidara delas . .. que

exercera o sacerdócio à maneira de um rei, e à maneira de um padre, a realeza. 

Re x et sacerdos na perfeição. O próprio papa afirmava: são Luís começara por

governar-se a si mesmo, reprimindo os movimentos da sensualidade com suas

faeuldades'de razão, para em seguida governar seus súd itos com a instauração da

just iça e da eqü idade. Pelo exercíc io de sua razão, pelo fervor de seu amor aDeus,

são Luís aumentou tan to quanto Fil ipe Augus to o poderio capetíngio; e como as

relações de parentesco estavam nocentro das estruturas pol ít icas , sua elevação

.e levou um grau, nah ierarquia dos méri tos, toda a l inhagem das flores-de-lis, todos

os homens de seu sangue, toda a sua posteridade. Seu i rmão Carlosde Anjou, rei

da Sicíl ia , afi rmava: os out ros i rmãos , Roberto de Artois.i.Afonso de Poitiers,

mortos durante a cruzada ou em conseqüência dela, também' mereciam a palma do

martírio. Seu filho, Bernardo de Clermont, mudou seu título: dizia-se  filho do rei

da França ; pois passou a chamar-se  filho de monsenhor são Luís , cuja santidade

definitivamente santificou a monarquia francesa .

Rem 1270;

li

morte de são Luís, que se toma mais clara a teadência que lentamente

minava a base de todas as coisas e modificava a idéia que os homens da época

o século xi ii

247

tinham do mundo. Descobriam-no muito mais vasto e sobretudo mais diverso,

menos firme em suas bases doque supunham, Os negociantes de Veneza, em busca

dos produtos car íssimos e rar íssimos, os tecidos, peles e especiarias que a festa

aristocrática já não podia dispensar, os Irmãos Mendicantes pagos pelo rei da

França para levar a palavra do Cristo além das terras islamizadas avançavam pelas

rotas da seda até as portas da China, exploradores de um novo mundo ~ e será

que as narrativas maravilhosas desses aventurei ros foram realmente menos incô-

modas que as dos descobridores das Américas, do is séculos e meio depois? Na

mesma época, igualmente inquietos e maravi lhados, os eruditos descobriam os

livros de Aristóteles que ainda não estavam traduzidos, sua Metafisiea, seu

comentário por Averróis, toda a majestade de um edifício conceitual cujas estru-

turas perfeitamente ajustadas apresentavam-se como irredutível contradição dos

dogmas cristãos. E enquanto se aproximavam de Cracóvia as hordas mongóis que

podiam ser lidas como os povos de Goge Magog, precursores do Ant icri sto, nas

casas principescas de conforto'e'larguêzà-de recursos propiciados pelo aperfeiçoa-

mento do sistema fiscal a sociedade cortês descobria, espantada, que nas extremi-

dades da Terra existiam civilizações policiadas, governadas por soberanos sapien-

t ís simos, e que, no entanto, nada sabiam ainda do Evangelho . Ela questionava-se,

lúcida, quanto aos fracassos da cruzada, considerando - como Ioinvi lle - que

eram culpados depecado mortal QS maus conselheiros que haviam levado são Luís

a part ir mais uma vez em armas contra os descrentes. Era preciso compenetrar-se

disso: dessa maneira não seria possível submetê-los, Não seria mais interessante

tentar afastá - los do erro através da palavra persuasiva e do exemplo virtuoso, como

fizera Francisco de Assis? Como ser ia possível con tinuar acredi tando que o povo

cristão estava instalado no centro do universo, sendo levado pelo movimento da

história, sem desvios, a ocupã-lo inteiro e sozinho? Aos poucos tomava-se eviden-

te a instabilidade de uma ordem que se julgara imutável, assim como a relatividade

de um destino colet ivo cuja t rajetória parecera até então t raçada segundo uma linha

necessária. .. \

Pilar dessa ordem e guia -desse destino, a' instituição eclesiástica estava

-diretamenfê ameaçada. Desencantadas, as consciências começavam a duvidar.

Seria possível obter a salvação simplesmente assistindo, mudo, aos ofícios liuir-

gicos, atrás da galer ia entre a nave e o coro que agora isolava o clero do povo no

interior das basílicas? O fiel não se aprox imaria mais de Deus por sua devoção

íntima, pela oração secreta e, imitando a caridade exempl if icada pelo rei, através

do atendimentoaos indigentes que se juntavam à por ta dos palácios? Preservado

da danação pelas boas obras e os elãs do misticismo, por que haveria o cristão, nos

intervalos dos exerc ícios de devoção, e

que a natureza é boa, de resistir à

tentação de deixar que seu corpo desabrochasse, naturalmente, alegremente? Por

que não se entregar as alegrias da vida? Fraturava-se assim insensivelmente um

sistema de valores construido durante três séculos com base na coerência entre o

saber e a moral.

Insensivelmente também se desviavam as correntes de prosperidade que até

então haviam favorecido as regiões francesas, enriquecendo-as mais que as outras,

disseminando por todo o Ocidente, até Chipre e a Moréia, a ciência de suas escolas,

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248

a

idade média na

França

as técnicas de seus arqui te tos e

o s

-dialetos de 'seus cavaleiros. Culminando na

predominância absoluta da troca, do comércio e da moeda, o progresso da econo-

mia européia pouco a pouco privava aF rança das boas obras de sua longa primazia,

transferindo-a à Itál ia dos navegadores e banqueiros. Os homens de negócios

da Lombardia e da Toscana, que havia gerações passavam necessariamente

pelo Norte da França para i r ao encontro dos de F landres, da Inglaterra ou da

Renânia, começavam já a mudar de rota: providenciavam-se pis tas através dos

Alpes centrais, barcos de grande tonelagem uniam o Mediter râneo ao mar do

Norte.

As cidades da França ainda não sofriam as conseq üênc ias desse deslocamen-

to dos itinerários mercantes, pois nelas se concentrava todo o vigor da economia.

Graças ao desenvolvimento doc rédito, aumentou sua dominação sobre o campo,

ao passo que seu patriciado, graças ao controle do comércio a longa d istância de

matérias-primas e produtos manufaturados, aumentava seu domínio sobze..as

associações de artesãos e révendédores. Em Lyon.por exemplo, o p oder municipal

estava nas mãos de dezo ito famílias estreitamente unidas. Em Reims, umas

cinqüenta l inhagens burguesas, controlando o comércio de tecidos e emprestando

dinheiros por toda par te, supervisionavam todos os métiers, os  pequenos e os

 grandes , que por sua vez suportavam quase todo o peso dos impostos. Reims

- tinha então cerca de vinte mil habitantes. Paris, dez vezes mais. A cidade do rei,

. de longe a mais populosa da cristandade latina , e ra t ambém seu mercado mais

movimentado, pois nela se haviam estabelecido as casas mais ricas e gastado-

raso Lá os lombardos de Asti e Plaisance haviam instalado seus bancos. A

amplitude das transações nas feiras de Champagne, cuja atividade culminava

nesses anos, faz esquecer que Paris desempenhava um papel equivalente nos

acertos financeiros. Iso ladas por suas muralhas, as cidades alimentavam no

reino a ilusão da fer ti li dade e da felicidade, e os pobres da planície se agarra-

vam 'a esta miragem.

Fora dos muros, a radical mudança daconjuntura tornava-se então manifesta.

Os investimentos burgueses voltavam-se sobretudo para a vit icultura, a c ri ação c

a exploração florestal. As pastagens, portanto, valorizavam-se, os bosques rendiam

cada vez mais - em cer tas regiões, valiam o dobro das terras de lavou ra. Em

conseqüência, tinha fim o arroteamento. Em sentido inverso, os campos de nutri-

ção às margens das cidades recuavam diante dos vinhedos, e nas proximidades dos

terrenos baldios retiravam-se dos solos ingrato s nos quais haviam sido confinados

por certo período, e cujo rendimento caía a zero . Ret ração nas ant igas terras, e,

portanto, excedente populacional, e já um começo de escassez. Nos campos da

P icardia , só um déc imo dos camponeses t inha do que viver - e n ão raro, aliás,

com mais conforto que muitos fidalgotes seus vizinhos. Outro décimo nada t inha

e precisava mendigar o pão de cada dia. Quanto aos outros lares, que cultivavam

menos de três hectares, s6 conseguiam sobreviver vendendo seu trabalho, empre-

gando-se os homens nas grandes fazendas, as mulheres fiando para os empreiteiros

urbanos. Em 1270, a população deixou de crescer, efeito da miséria: subalimenta-

das, as crianças morrem em maior número, e os adultos, mai s cedo; e sobretudo

diminuem os nascimentos, pois as mulheres são menos férteis - e talvez também

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o século xiii

249

porque os casamentos se dêem mais tarde, Assim

é

que se interrompeu, à morte

de Luís IX, o movimento profundo que desde a alta Idade Média sustentava o

progresso geral na França.

Em meio ao florescimento do culto a são Luís, a realeza capetíngia chega ao

apogeu de s ua fo rça e de seu prestígio no reinado de Fil ipe IV, dito o Belo, Beleza

do rei , beleza do reino. Ele era então mais populoso que nunca, mais populoso que

jamais seria até o reinado de Luís XV. O Estado, onipresente e precisando de

dinheiro, tratava agora derecensear os lares passíveis de taxação, e em conseqüên-

cia o his tori ador pode adiantar alguns números sem correr risco de erros muito

graves. Havia certamente de vinte a vinte e t rês milhões de habitantes no território

atualmente ocupado pela França. E já se encetara o processo que levaria a França

a tomar sua forme.hexagonal. Recuo no Sul: o rei renunciara, além-Pireneus, à

soberania sobre as regiões catalãs. Expansão a leste, para os lados de Toul, Verdun,

no Barrois, e o primado das flores-de-lis afirmava-se desde a Champagne, na

Lorena, que se livrava do controle imperial, como a Provença, cujos condes eram

agora os descendentes de Carlos de Anjou, irmão de são Luís. O rei de França

instalava seus homens em Lyon; o senhor do ducado de Borgonha vivia em Paris,

e sua filha desposava um dos filhos de Filipe, o Belo; a cor te da França pagava

uma renda ao conde de Sabóia, ao delf im de Viennois, e este logo venderia ao rei

todos os seus direitos e seu título,já agora usado pelo herdeiro presuntivo da coroa.

Para lá dos Alpes, a férti l Itália oferecia-se às ambições dos príncipes da l inhagem

real; um deles reinava em Nápoles, sonhando em reconquistar a Sicília, e outros a

e la chegavam em busca de aventura.

Senhor do mais vas to e poderoso Estado do Ocidente, o rei da França não

se interessava em adquirir a dignidade imperial. Na realidade, ele detinha o

império .. Como sucessor incon testado de Carlos Magno, podia, scgundo os

juris tas, dominar a Igreja em seu reino, devendo aliás assegurar sua proteção.

O papado passava.insensivelmente a submeter-se a seu patronato. Adquirira-se

o hábito de reunir os grandes concí lios ecumênicos não mais em Roma, mas

às margens do Ródano, de acesso mais fácil para os prelados provenientes

de toda' a cristandade. 'Os cardeais franceses eram numerosos na cúria

pontíficia.

Em 1261, na culminância de uma extraordinária ascensão, o filho de um

artesão de Troyes, graduado pelas escolas parisienses e agora capelão do papa,

subira ao trono desão Pedro. Apressara-se então a conferir a púrpura a seus antigos

colegas de estudos. Constituíra-se ass im no colégio cardinalício um for te partido

de homens preocupados com os desejos do Capeto, muitos dos quais sentiam-se

pouco à vontade além-montes. Em 1306, promoveram a eleição de um papa

aquitânio. Clemente V quis aproximar-se do concílio, então em Viena. Trocou

Roma pelo condado Venaissin, domínio dos antigos condes de Toulouse deserda-

dos, e do qual se apoderara a Santa Sé. O papa instalou seus serviços em Avignon

e logo instalou-se também ele na cidade. Seus sucessores lá permaneceram. Na

outra margem do rio, erguia-se a torre construída por Filipe, o Belo, protetora mas

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250

a idade média na trança

também dominadora, testemunho da inegável autoridade que o poder real exercia

sobre a autoridade pontifícia.

o Estado ainda se confunde nessa época com a casa do rei. Filipe, o Belo,

comporta-se primeiro que tudo como chefe de linhagem, constantemente cercado

pelos parentes mais próximos. Reza diariamente por seus parentes mortos, por são

Luís, a cujo lado direito decidiu dormir seu últ imo sono. Ao aproximar-se a morte,

ele exorta seu herdeiro a seguir em primeiro lugar os conselhos de seus tios. A

 família de que é o chefe desenvolveu-se, e muito: congrega hoje várias centenas

de pessoas repartidas entre serviços especializa dos, diversos quartos que acom-

panham a pessoa real em seus incessantes deslocamentos. Fil ipe está sempre

viajando, par a fazer a guerr a onde for necessár io , em peregr inações ao monte

. Saint-Michel ou

à

Notre-Damede Bolonha, ret iro~ em Maubuisson'ou Poissy, para

as intermináveis expedições decaça que tanto o apa ixonam. Assim é que a corte 

separou-se do   hôtet  , a residência, estabelecendo-se no velho palácio da cidade

que cresce. Os arquivos, j á agora bem organizados e atualizados, permitem-nos

ver muito mais claramente que nas gerações anteriores como funcionava o órgão

central do poder e os homens que nele atuavam. Alguns, encarregados de manusear

os dinhe iros, e ram estrangeiros, lornbardos , como Bichc e Mouche de San

Giminiano, que t inham seu  banco em Paris. Mas o grande negóc io continuava

sendo a just iça , confi ada aos c lér igos e cavalei ros do rei; estes eram denominados

 cavaleiros da le i e usavam duas armas , a espada que haviam recebido no dia da

invest idura na armadura e o saber jur íd ico adqui rido nas escolas. Uns e out ros,

pessoa lmente ligados ao soberano pela homenagem e a fidelidade, estavam-no

também pelo ju ramen to especial de guardar com toda lealdade o corpo de seu

senhor, seus membros, sua honra, seu segredo. Fiéis: não se tem notícia de que o

rei tenha banido algum deles um dia. Eles lhe pertenciam, pensavam e agiam para

ele, gratificados por sua generosidade.

De sua equipe-participavamu:.i  legistas - Guilherme de Nogaret é o mais

famoso - , v indos dasprovínc ias mer idiona is recém-incorporadas ao domínio . O

ensino que hav iam recebido em Toulouse ou Montpcllier impregnava-os dos

prece itos do direi to romano; ao s quais recorriam tantos juízes, advogados e

procuradores em Rouergue , QuercJ e nos três senescala tos do Languedoc , para

baixar sentenças ou defender as causas de seus c li entes, Eles usavam este direito

no interesse de seu senhor. Mas não devemos exagera r a impor tância da lei civil 

na afirmação da superioridade capetíngia no interior do reino. Aos olhos dos

servidores do palácio, esta repousava no que res tava de feudal no poder, e que era

essencial. O feudo continuava sendo o sus tentáculo primordial da força armada,

pois dessa tenure é que dependiam o t re inamento e o equipamento dos homens

da guerra, e cra através do encadeamento dos vínculos de vassalagcm que todos

os habitantes do reino viam-se obrigados a obediência e serviço para com a

pessoa real.

É esse efetivamente o ponto de vista de Filipe de Beaumanoir, bailio de

Beauvaisis, que po r volta de 1280 lançou sobre os costumes da região o olhar do

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o século xiii

251

técnico. Ele continua vendo, a sustentar o todo, o alicerce fundamen tal da ordem

tempora l cuja ins tal ação most re i no século XI: a senhoria. Explica que todos os

 súditos , sejam fidalgos ou não, encontram-se sob a j ustiça de um senho r, do qual

dependem, pelo bem comum, a p roteção dos órfãos, o polici amento dos grandes

caminhos, a manutenção das boas medidas, Como, ent re tanto, toda just iça lai ca

é recebida do rei como feudoou subfeudo , toda senhoria está integrada ao sis tema

feudal, e aquele que a detém presta em seu nome homenagem a um senhor superior,

que po r sua vez é às vezes o rei, mas com mais freqüência um sire que r ecebe em

baronato . Este, guardião das igrejas , incumbido de arregimentar os contingentes

das hostes , autor izado a modif icar os costumes por ~es tabe lec imento , é quem

detém de fato a soberania. Dela, é co-possuidor, ao lado do rei , como os cavaleiros

do castelo eram co-possuidores do bando, com o senho r da fortaleza, nos

primeiros tempos do feudalismo . A permanência do sistema, nesse pon to, não

....déixa de chamar a atenção: o reino da França é por demais vasto; como outrora

as castelan ias, deve ser administr ado em condomínio. De fato, os barões são

todos homens do rei, seus amigos, como os cavaleiro s eram amigos outrora do

castelão, e devem servi-Io. O sistema feudal situa o rei no escalão supremo.

Nenhum barão pode estabelecer contra ele, ao passo que o rei é autorizado a

ordenar para todo o reino em tempo de guerra, no tempo em que se temer a

guer ra e em tempo de necessidade ( o que lhe permite, sobretudo, cobrar

subsídios), e mesmo em tempo de paz, desde que seja por mui grande conse-

lho , razoavelmente .

 Teria sido possível assenta r uma monarquia das mais for tes exclusivamente

em Beaumanoir (J.Strayer). A lei civil serviu apenas para reforçar os costumes.

Bastava apli cá -los es tr it amente , t ra tando de orienta r sua evolução no sent ido

desejado, com pequenos estímulos. Era o caso dos apanágios: o costume afirmou,

com força cada vez maior, que só se desvinculavam do reino po r algum tempo,

para que os fi lhos da França t ivessem como ,\iver decentemente. E, sobretudo,

bastava dar livre curso - para além dos limites da própria senhoria do rei, que

cobria doisferços do reino - à d iligência dos funcionár ios encarregados de aplicar

os cos tumes. As populações não se cansavam de denunciar sua voracidade.

É

bem

verdade que, para administ ra r com efic iênc ia , e ra neces sá rio um número cada vez

maior deles. Mas os senesca is, jui zes e bai lios não eram em absoluto cor ruptos .

Eles não provinham, como diz iam, das c lasses baixas. Ent re tanto , como deviam

sustentar-se. e pagar aos sargentos que os ajudavam com os criminosos e

devedores do tesouro, aproveitavam qualquer oportunidade de estender o

alcance de sua ju risdição em meio às sob reposições das diferentes ju stiças,

fazendo recuar as da Igreja, na verdade igua lmente onipresentes , e as dos

feudatários. Estes acabaram por reagir: uni ram-se restabelecendo a velha soli-

dariedade regional, e conseguiram, após a morte de Filipe, o Belo, que sé

voltasse atrás por algum tempo.

Os historiado res se têm inte rrogado quanto à par ti cipação desse rei nos

negócios. É ele o primeiro a respeito doqual se pergunta o que teria em mente nos

momentos em que não orava nem caçava, o que decidiu realmente.

É

que, com a

máquina praticamente funcionando sozinha, os mecanismos do Estado se haviam

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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252

a idade média na frança

aperfeiçoado, e esse soberano - letrado, que ouvia em francês a leitura de Boécio

- confiava em seus se rviços , e exceto quando em combate , mantinha-se volunta -

riamente

à

distância da ação, considerando, com o bom conhecedor de Aristóteles

que era Pierre

l~U

Bois, que não convém ao príncipe rebaixar-se às quest iúnculas .

O belo F il ipe raramente abr ia a boca. Ouçamos aqueles que o conheceram deper to :

 Ele só sabia olhar as pes soas nos olhos sem falar . Uma coi sa é cer ta: viveu em

devoção a são Lu ís, e empenhou-se em imitá-Io. Durante a vida desejou chef ia r

uma cruzada e talvez morrer nela. Envelhecendo na viuvez, infligia-se macerações

cada

vez

mais duras . Seu avô já apert ara o controle da igreja gali cana , protes-

t ando em 1247 perante o papa, no concí lio de Lyon, por seu direi to de explorá -Ia

sem submeter-se a controle algum em troca de sua proteção. Fil ipe empenhou todas

as suas forças no sentido de protegê-Ia. O desejo premente de pureza para si

mesmo, os seus, seu povo e a Igreja inteira, o senthnento de ser em seu reino o

' vigáriotel por l doCristo -R,d,-a aguda consciência de-receber,geu poder

diret amente de Deus, e dedever - como mandou o dominicano João dePar is dizer

- mandar excomungar o papa se este v iesse a escandalizar a Ig reja, d epondo-o

por sua conta - todas essas convicções expl icam asmedidas tomadas emseu nome

contra as pre tensões de Bonifác io VIIJ, inc lusive a bofetada de Anagni. O rei da

França estava convenc ido da indignidade do pontíf ice. Igualmente estava cer to da

culpa dos templários, baseando-se em suas confissões. Se os mandou para a

fogue ira, não foi para apodera r-se das r iquezas da Ordem do Templo: mirando-se

no exemplo de seus ancestrais, mais empenhados que quaisquer outros príncipes

em expu lsar a heresia e outro s erro s , ele sentia-se ob rigado a depu rar a Igreja

des se escânda lo . Pelos mesmos mot ivos , em seu reinado começa nos t ribuna is a

caça às bruxas. Deus impõe àsvezes c ruéis t arefas àqueles que arma com o gládio

da justiça.

Incumbe-os igualmente de dobr ar os orgulhos. E o rgu lhosos não f altavam

no reino. Durante os t rinta anos de seu reinado, F il ipe, o Belo, preci sou constan-

temente mobil izar suas hostes nas extremidades de suas terras, para enfrenta r duas

potências adversas, conjugadas COlllil.SC havlam-conjugado às vésperas de Bouvi-

nes , A sudoes te , t eve de reprimi r a arrogância do mais poderoso de seus vassalos,

o rei do s ingleses, que ser via mal e sobr etudo resistia

à

i nvasão dos agentes do

poder capet ínglo, cujas insidiosas int rusões cor roíam pouco a pouco os direi tos

que recebera da coroa na Gasconha; no Agenais, em Saintonge: por motivo de

t rai ção, esses feudos eram tomados e rest ituídos após negoc iações e barganha,

no tavelmente reduzido s. No Norte, a rebelião foi de uma violência que espan-

tou. os conselheiros do rei. Eles julgavam poder tirar dinheir o das g randes

cidades de Flandres como tiravam das cidades do domínio, cor ri f acilid ade,

deixando ao patriciado a missão de cob rar dos comuns. Era ignorar o príncipe

da região, assim como sua linhagem, que resistiu quando o condado foi confis-

cado e ocupado. E, sobretudo, era ignorar a tenacidade dos enormes agrupa-

mentos de artesãos têxteis, cansados da dominação dos homens de negócios,

loucos para defender a honra de sua nação, e ainda por cima ext remameute

selvagens. Os profissionais-flamengos descobriram sua força de uma hora para

outra. Diante de Courtrai, a 11 de julho de 1303 , ar riscando tudo e armados de

o século xiii

253

facas, como os

routiers,

os tecelãos de Bruges ousaram enfrentar os eavaleiros

da esporas de ouro, que esperavam esmagar com algumas invest idas a audácia

daqueles campônios. Pois eles dego laram toda a nob reza da França , atirada ao

lodo dos fossos . Mais de duzentos mor tos, ent re e les Rober to de Artois e o conde

de Saint-Pol , Novo escândalo. No ano seguinte, Fil ipe, o Belo, foi vingar a afronta.

Com enorme d if iculdade, der rubado de seu cavalo , como Filipe Augustoem

Bouvines, reerguendo-se, finalmente vencendo, a golpes de machado. Mas incapaz

de dobra r os rebeldes, de conte r uma região já completamente est ranha à cultura

da França, por sua l íngua e seus cos tumes, desde que o conde , forçado a negoc ia r,

cedera à coroa Lille, Douai e Béthune. O exército real precisou constantemente

voltar a aterrorizar Flandres.

Ora, o exército, a cavalaria, pesada e leve, devorava dinheiro, pois era

preciso substituir o que mais rapidamente se desgastava, as montarias , e sobretudo

porque o rei - mal-aconse lhado , segundo Pierr e du Bo is - passara a fo rnecer

garanti as aos condes, barões, cavalei ros e escudei ros que , obr igados ao serviço

de armas, deveriam combater a suas própr ias custas, desse modo cumpr indo as

obr igações de seu feudo . O Estado preci sou obter dinhe iros a todo custo, o que o

estimulou, escorando-se no direi to soberano, a l ivrar -s e rapidamente do s ist ema

feudal.

Para cobrir as despesas que continuavam sendo consideradas ocasionais, mas

cujo peso cada vez maior j á se tomara permanente, o Estado pas sou a recor re r com

regularidade à imensa riqueza da Igreja da França, acostumada a pagar os dízimos,

taxas cobr adas em princípio com o ob jetivo, obstinadamente persegu ido, de

preparar a cruzada. Mas os homens do rei quer iam exp lo rar essa riqueza mais

livremente, sem o empecilho do direito, exig ido pela Santa Sé, de autor izar tais

ret iradas . Qui se ram, sobretudo, extorqui r mai s dos súdi tos , e não só a través da

a juda de vas sa lagem, Recorreu-se generosamente ao direi to rea l de ignorar por

ordenação as regras consuetudinarias v'em tempo de guerra  e pelo bem

comum . Desse modo é que foi estabelecidp

O'

imposto, esta novidade. Às

apalpadelas. Foram sendo exper imentadas suces sivamente todas as manei ras

possíveis de tomar dinheir o, e sempr e sem müÜo êx ito, dada a incapacidade de

est imar os recursos de que podia dispor a extorsão. Descobr iu-se com surpresa

que naquele país tão p róspero o numerár io era escasso. Tentou-se pelo menos-

impedir que ele escapasse do reino: a fronteira com a Itália - ou seja, com os

grandes bancos - tornou-se o que nunca havia sido, uma barreira de postos de

controle.

Restavam as espécies propriamente, que eram coisas reais. Cabia ao sobera

no dec idir que tal peça, com tal s igno, valer ia mai s ou menos dinhe iros ou soldos

Ele t inha o direi to de mudar esses signos , de decre ta r que este ou aquele não mais

teria curso, emitindo um outro, extraindo lucros da cunhagem. Mas isso implicava

perturbar um sistema extremamente frágil, pois a moeda de ouro valia agora o

dobro da de prata e o valor dos metais preciosos variava constantemente. O Estado

atrapalhou-se com a tarefa impossível de controlar o instrumento monetário para

atender a suas necessidades. E ao romper a estabil idade das medidas, sem desejá-lo

efetivamente, ficou parecendo imoral, pecador. Foi obrigado adesculpar-se, reagindo

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7/23/2019 Georges Duby - A Idade Média Na França de Hugo Capeto a Joana D Arck

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