Genero e Cidadania Pre Escolar

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    Guio de educao. Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    1.Enquadramento Terico

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

    Lisboa, CIG, 2009

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    Gnero e Cidadania

    ma leitura desatenta das estatsticas actuais relativas situao das mulheres e dos homens ocidentais faz

    crer que a igualdade entre homens e mulheres est praticamente conseguida. Porm, a aparente igualdade quantitativa em alguns sectores escamoteia a real

    desigualdade qualitativa: elas j so mais numerosas do que eles na escola, mas ensino misto e coeducao esto longe de ser conceitos sinnimos; no mundo profissional existem ainda disparidades salariais em muitos sectores de actividade, persistem os chamados tectos de vidro na ascenso profissional, as jovens mulheres recm -licenciadas tm mais dificuldade de acesso ao emprego do que os seus colegas do sexo masculino e o desemprego afecta- as mais. Para alm desta situao, o discurso sobre a conciliao entre a vida domstica e a carreira continua a existir associado essencialmente s mulheres que, na realidade (seja em termos das tarefas domsticas, ou do cuidado aos filhos e a familiares dependentes), so de uma forma geral as garantes da vida quotidiana das famlias, vendo a sua sade fsica e psicolgica posta em risco por esta real sobrecarga. Finalmente, as mulheres, se bem que agora mais presentes na vida pblica, continuam minoritrias em posies onde o poder importa e o estatuto socioeconmico fundamental. A actual Lei da Paridade (Lei Orgnica n 3/2006, de 21 de Agosto) poder alterar esta situao, mas, ainda assim, muito ser necessrio fazer para que elas se encontrem igualmente

    A diversidade de caractersticas dos homens e das mulheres constitui um manancial de recursos de tal maneira valioso que a trajectria de cada pessoa ao longo do seu ciclo de vida est continuamente em aberto, construindo-se em funo de uma multiplicidade de factores histricos e contextuais. Estas possibilidades de desenvolvimento e de aprendizagem tm sido, no entanto, historicamente restringidas, sempre com base na defesa de estereotipias arcaicas, conducentes a desigualdades e discriminaes, penalizadoras em maior escala para o sexo feminino.

    U

    Introduo

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    1.1.

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    representadas e todos os seus talentos sejam de igual forma valorizados.

    Embora as mulheres sejam, efectivamente, a face legitimamente mais visvel da batalha pela igualdade de direitos e oportunidades, indubitvel que um tratamento produtivo desta problemtica deve incluir tambm a conscincia do impacto que estas desigualdades acarretam para o sexo masculino. So disso bastante expressivos factos como: a maior taxa de abandono escolar dos rapazes, sobretudo no ensino secundrio; o nmero e gravidade dos acidentes de viao dos rapazes na adolescncia, associados a uma presso societal para uma forma de masculinidade hegemnica que tambm os constrange; e a falta de autonomia a nvel da realizao de tarefas domsticas, limitao essa subjacente s razes alegadas pelos homens para o casamento na sequncia de um primeiro divrcio ou viuvez, ou ainda deciso de alguns idosos (do sexo masculino) saudveis de passarem a viver em instituies quando ficam sozinhos. Pelo exposto, importa trabalhar no sentido da construo de um mundo onde homens e mulheres possam viver em igualdade, sem constrangimentos a todas as suas aspiraes e com garantias de oportunidades de exerccio dos seus mltiplos talentos1.

    A escola, para alm de ser um local de compreenso e de preparao de rapazes e raparigas para a vida, dever estar entre os principais agentes de mudana,

    contribuindo, juntamente com outros intrpretes sociais, para a construo da realidade, como escreveram Gisela Tarizzo e Diana Marchi (1999: 6). Por esse motivo, deve desempenhar o seu papel na eliminao das desigualdades entre homens e mulheres que continuam a prevalecer. Isto pode conseguir-se atravs de boas prticas de cidadania activa e democrtica, que possam ser aprendidas na escola a par dos contedos do currculo formal. Para o alcance dos objectivos que norteiam

    a efectiva realizao desta cidadania activa necessrio que a escola assuma tambm a responsabilidade de se tornar um local privilegiado de partilha, de cooperao e de educao para a participao. Uma escola democrtica uma organizao de liberdade, capaz de

    oferecer resistncia contra o autoritarismo, a opresso e todas as formas de discriminao baseadas no sexo, na classe, na raa/etnia, na orientao sexual, na religio, na cultura. uma escola que supera preconceitos e esteretipos. Uma cidadania activa numa sociedade cada vez mais plural implica a aceitao do valor da igualdade dos direitos e dos deveres para todos e todas, implica um compromisso genuno com a sociedade na sua diversidade, o respeito crtico pelas culturas, crenas, religies etc., e implica tambm abertura solidariedade pela diferena, rejeitando qualquer tipo de explorao racismo, sexismo enfim, recusando a discriminao sob qualquer forma.

    Apesar das mltiplas discriminaes

    1 Estas problemticas so aprofundadas, neste Guio, no captulo A transversalidade do gnero na interveno educativa.

    A Lei Orgnica n3/2006, de 21 de Agosto, designada por Lei da Paridade, estabelece que as listas para a Assembleia da Repblica, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais so compostas de modo a assegurar a representao mnima de 33% de cada um dos sexos.

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    existentes, vamos centrar- -nos neste guia nas questes da igualdade entre homens e mulheres e por isso na erradicao do sexismo, conceito que abrange todos os preconceitos e formas de discriminao exercidas contra um indivduo devido ao respectivo sexo. Temos bem presente que h uma multiplicidade de discriminaes que se podem cruzar e produzir formas de desigualdade particulares. No esquecemos, como advertiu Conceio Nogueira (2009), essas formas interseccionais de viver as mltiplas discriminaes (como acontece, por exemplo, no caso de jovens raparigas provenientes de classes desfavorecidas ou de etnias no dominantes); elas esto presentes ao longo deste trabalho, mesmo que nem sempre nomeadas. Apenas por razes de ordem prtica nos centraremos essencialmente na categoria de sexo (homens e mulheres) que tende a fomentar uma viso dos dois sexos como opostos.

    Esta diviso, assimtrica do ponto de vista simblico no entender de Lgia

    Amncio (1994), perpassa toda a sociedade e conduz emergncia de esteretipos, preconceitos e discriminaes que afectam prioritariamente as mulheres. Importa por isso clarificar conceitos, mapear argumentos e diferentes posicionamentos para que este fenmeno do sexismo possa ser pensado, repensado e, quando interrelacionado com outras categorias de pertena que acarretam tambm discriminaes, analisado na sua inerente complexidade.

    Este captulo constitui a parte introdutria de um Guio destinado promoo da igualdade de gnero no mbito de diferentes espaos educativos formais, com especial nfase no ensino pr-escolar e no terceiro ciclo do ensino bsico.

    Encontra-se dividido em sete seces articuladas entre si. Numa primeira seco feita uma tentativa de clarificao dos termos sexo e gnero, a que se segue uma reflexo sobre a importncia do gnero enquanto categoria social desde a primeira infncia. Logo em seguida, analisa-se sob o ponto de vista psicolgico a formao e consolidao da identidade de gnero nos primeiros anos de vida. O conhecimento dos esteretipos de gnero, por parte das crianas, e a adopo dos mesmos com a idade, so aspectos tratados na parte seguinte. O captulo termina com uma reflexo sobre o que a cidadania, sobre a relao entre gnero e cidadania e sobre as formas de praticar uma verdadeira educao para a cidadania.

    Mas a aplicao correcta do princpio da igualdade exige que se trate de modo igual o que igual e de modo diferente o que diferente. Desde que se verifiquem situaes de desigualdade partida, haver que corrigir essa desvantagem inicial atravs de aces positivas que, procurando anul-la, criem condies para uma real igualdade de oportunidades.eliane Vogel-Polsky, 1991: 5.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

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    De que falamos quando falamos de gnero?

    1.1.1.

    sexo de uma criana sem dvida um factor importante para o seu desenvolvimento. No por acaso que uma das primeiras perguntas

    que se faz s mes e aos pais quando uma criana acaba de nascer se menina ou menino. O prprio nome que se escolhe para o/a beb deixa antever o seu sexo e a presena de um beb ou de uma criana em relao qual se desconhece o sexo suscita sentimentos de desconforto naqueles que a rodeiam. Ainda que nos primeiros meses de vida as crianas de ambos os sexos tenham caractersticas fsicas semelhantes, a me e o pai comeam logo a construir o gnero do/a beb: do-lhe um nome, vestem-no/a de cores diferentes e criam um espao fsico de tal forma distintivo que fcil para um/a observador/a externo/a adivinhar se o/a beb em questo do sexo masculino ou do sexo feminino. Assim sendo, podemos afirmar que o sexo, para alm de ser um factor biolgico, tambm um factor social e cultural, uma vez que as pessoas tendem a reagir de maneira diferente perante uma criana do sexo masculino ou do sexo feminino. Reaces essas diferentes no s ao nvel de aspectos concretos, como a oferta de brinquedos, mas tambm ao nvel da formao de expectativas de desempenho, da expresso de elogios e encorajamentos, do estabelecimento de interaces verbais e no-verbais e da linguagem utilizada.

    Esta caracterizao (que podemos apelidar de quase automtica) dos homens e das

    mulheres em termos pessoais e sociais, a partir do conhecimento da sua categoria biolgica de pertena, abriu caminho a raciocnios simplistas de explicao dos comportamentos individuais, crena na estabilidade dos atributos individuais e ideia de que seria normal que os seres masculinos tivessem certas caractersticas psicolgicas e os seres femininos evidenciassem outras, distintas. Para alm desta viso dicotmica no ter qualquer fundamento cientfico sendo por isso de toda

    Acredita-se que os brinquedos oferecidos s meninas (conjuntos de panelas e tachos, bonecas e bonecos, electrodomsticos em miniatura, estojos de cabeleireira, kits de maquilhagem, etc.), uma vez que tm uma finalidade habitualmente prevista, fomentam nelas uma menor criatividade do que os brinquedos oferecidos aos rapazes (pistas de carros, legos, construes, bolas, transportes em miniatura, etc.). Os segundos, pelo facto de no terem uma utilidade to pr--definida, tendem a ser mais fomentadores da criatividade e inclusive de uma maior ocupao do espao circundante. esta desigualdade na estimulao cognitiva despoletada pelos brinquedos poder reflectir-se, mais tarde, de forma diferente em ambos os sexos, em aspectos to diversos como a capacidade de resoluo de problemas, a apetncia para enfrentar desafios, a auto-confiana para a explorao autnoma do espao, etc.Jeanne Block, 1984.

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    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    a convenincia examinar e reflectir em torno da origem das eventuais diferenas entre homens e mulheres a discusso desta problemtica ganha ainda maior relevncia se pensarmos que a diferena

    no tem sido sinnimo de diversidade, mas sim de desigualdade, de hierarquia e de posse dissemelhante de poder e de estatuto social. Neste enquadramento, e tendo presentes os objectivos

    que norteiam este Guio, parece-nos extremamente pertinente e til, para uma actuao pedaggica que contrarie preconceitos e discriminaes, a distino entre sexo e gnero.

    Um catlogo intitulado Festa dos brinquedos, difundido por um hipermercado no perodo de Natal (1999), apresenta os artigos organizados em vrios captulos, entre os quais analismos dois que correspondem s seguintes designaes: Menina (12 pginas) Rapaz (14 pginas).Passando ao lado das questes lingusticas (meninas vs. rapaz), apresentamos a seguir a lista dos brinquedos includos em cada um desses dois itens (...).Um brinquedo no um objecto neutro: um veculo de simulao e de aprendizagem da vida adulta, encaminha os comportamentos e as prticas sociais e culturais, define lugares na comunidade e na famlia. Nesta ptica, que informao nos transmite o catlogo do hipermercado?

    Feminino Maculino

    Brinquedo n de vezes Brinquedo n de vezes

    Boneca beb 24 Motorizada 3

    Banheira para beb 3 Figuras espaciais 2

    Alcofa para beb 5 Nave espacial 1

    Cadeira para beb 1 Robots 5

    Carro para beb 6 Heris de BD e cinema 21

    Casa das bonecas 2 Avio de guerra 2

    Baloio para boneca 1 Viaturas de heris 2

    Boneca adulta - tipo Barbie 10 Hidrojet 1

    Casa da boneca 5 Submarino 1

    Automveis para boneca adulta 2 Porta avies 1

    Boneco adulto - Ken 1 Pista de carros 4

    Parque infantil para boneca 2 Garagem 5

    Escola e enfermaria 1 Conjunto de carrinhos 3

    Consultrio de pediatra 1 Jeep 1

    Castelo encantado/palcio 4 Helicptero 2

    Acessrios de toilette 3 Carro teleguiado 24

    Cozinha / equipamento de cozinha 5 Gruas 2

    Supermercado/produtos 2 Comboio elctrico 2

    Bonecos Disney 2

    Maleta de teatro 1

    Secretria 1

    Patins 2

    Permite-nos detectar dois perfis distintos: um encaminha as crianas para a maternidade, para as tarefas domsticas e para a esttica do corpo; outro aponta claramente para a tecnologia, incluindo alguns elementos de violncia ou, pelo menos, de conflituosidade.isabel Margarida Andr, 1999: 98-99.

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    No sentido de clarificar a ideia de que as diferenas observadas entre os sexos no se justificam simplesmente pela pertena da pessoa a uma categoria biolgica presente nascena, mas que resultam sobretudo de construes culturais, Ann Oakley props, em 1972, que se efectuasse a distino entre os termos sexo e gnero, distino essa que passou a servir de referncia para as Cincias Sociais. Em seu entender, o sexo com que nascemos diz respeito s caractersticas anatmicas e fisiolgicas que legitimam a diferenciao, em termos biolgicos, entre masculino e feminino. Por seu turno, o gnero que desenvolvemos envolve os atributos psicolgicos e as aquisies culturais que o homem e a mulher vo incorporando, ao longo do processo de formao da sua identidade, e que tendem a estar associados aos conceitos de masculinidade e de feminilidade. Assim, o termo sexo pertence ao domnio da biologia e o conceito de gnero inscreve-se no domnio da cultura e remete para a construo de significados sociais. Para alm das diferenas genticas entre os sexos espera-se, na maior parte das sociedades, que os homens e as mulheres se comportem de uma maneira diferente e assumam papis distintos. Ainda na linha do pensamento da autora atrs citada, convm ter presente que os conceitos de feminilidade e de masculinidade diferem em funo de especificidades culturais, o que significa que variam no espao e no tempo, apresentando definies distintas de poca para poca e, num mesmo perodo histrico,

    de regio para regio e so ainda sujeitos a readaptaes de acordo com outras variveis, como a classe social, a idade, a etnia e a religio.

    O estudo da importncia do gnero para a compreenso da vida individual de homens e de mulheres tem despertado a ateno de cientistas com origens tericas diversas que, fazendo uso de abordagens e metodologias distintas, trouxeram para a discusso desta problemtica argumentos de extrema relevncia, ainda que nem sempre facilmente conciliveis entre si. Este facto tem tornado ainda mais profcuo o debate e contribuiu indubitavelmente para a compreenso da natureza socialmente construda do gnero, a qual legitimou todo um sistema de relaes sociais de dominao e de subordinao pautadas, ao longo da histria, por desigualdades de poder tanto ao nvel material como simblico, como escreveu a historiadora Joan Scott (1986).

    o termo sexo usado para distinguir os indivduos com base na sua pertena a uma das categorias biolgicas: sexo feminino e sexo masculino.

    o termo gnero usado para descrever inferncias e significaes atribudas aos indivduos a partir do conhecimento da sua categoria sexual de pertena. Trata-se, neste caso, da construo de categorias sociais decorrentes das diferenas anatmicas e fisiolgicas

    Que significa ser homem do ponto de vista social? a pergunta to complexa quanto aparentemente ingnua. Para a largussima maioria das pessoas, para o nvel a que nas cincias Sociais chamamos senso comum, ser homem fundamentalmente duas coisas: no ser mulher, e ter um corpo que apresenta rgos genitais masculinos. A complexidade encontra-se precisamente na ingenuidade agora sim , de remeter para caracteres fsicos do corpo uma questo de identidade pessoal e social. Isto porque ser homem, no dia-a- -dia, na interaco social, nas construes ideolgicas, nunca se reduz aos caracteres sexuais, mas sim a um conjunto de atributos morais de comportamento, socialmente sancionados e constantemente reavaliados, negociados, relembrados. Em suma, em constante processo de construo.Miguel Vale de almeida, 1995: 127-128.

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    J em 1949 Simone de Beauvoir falava desta legitimao da construo de diferenas sociais com base nas diferenas sexuais, ao defender que o ser humano do sexo feminino no nasce mulher, mas sim torna-se mulher pela incorporao de modos de ser, de papis, de posturas e de discursos condizentes com o modelo de feminilidade dominante na cultura a que pertence. O mesmo poder dizer-se a propsito da aprendizagem do que ser homem por parte dos seres humanos que nascem do sexo masculino, os quais tendem a ser socializados de acordo com as caractersticas distintivas da masculinidade culturalmente preponderante da sua gerao.

    As investigaes, sobretudo de natureza psicolgica e sociolgica, dedicadas descoberta de diferenas/semelhanas entre homens e mulheres, nem sempre tm conduzido a concluses coincidentes e h quem tenda a destacar sobretudo as diferenas entre os indivduos a chamada perspectiva do enviesamento alfa enquanto outros/as se inclinam a

    evidenciar principalmente as semelhanas a chamada perspectiva do enviesamento beta2. De facto, apesar de numerosos trabalhos conclurem pela inexistncia de diferenas sexuais em domnios como, por exemplo, o cognitivo3, outros apontam para a existncia de diferenas entre homens e mulheres, sobretudo ao nvel da personalidade na vida adulta, quando se pede s pessoas que se auto-decrevam4 de acordo com determinadas caractersticas. Certos traos como independncia, competitividade, agressividade e dominncia continuam a ser associados a homens, reunidos sob a designao de instrumentalidade masculina; a sensibilidade, a emocionalidade, a gentileza, a empatia e a tendncia para o estabelecimento de relaes continuam a estar associadas s mulheres, sob a designao de expressividade feminina.

    Quer se d destaque s eventuais diferenas encontradas entre os sexos, quer se valorize a perspectiva que defende serem mais as semelhanas, o que importante realar que as caractersticas observadas

    nos homens e nas mulheres desenvolvem-se em sintonia com uma multiplicidade de influncias que so inerentes ao processo de socializao e que comeam logo a partir do momento em que se toma conhecimento do sexo da criana, ou seja, mesmo antes do nascimento.

    Estudos efectuados com mulheres grvidas e descritos por Carole Beal (1994) permitiram concluir que existe uma tendncia, por parte das futuras mes, para percepcionarem de maneira diferente os movimentos fetais, em funo do conhecimento do sexo do beb. No caso de estarem espera de um rapaz, as mulheres em anlise tendiam a descrever os movimentos fetais como vigorosos, verdadeiros tremores de terra e calmos, mas fortes. Caso a criana em desenvolvimento fosse do sexo feminino, as mes inclinavam--se a descrev-las

    2 Para a compreenso desta distino, recomenda-se a consulta do artigo de Rachel T. Hare-Mustin e Jeanne Marecek (1988).3 Ver, a este propsito, as revises de estudos especficos que foram efectuadas por Janet Hyde (1981) e por esta autora e seus colegas (1990).4 A reviso de estudos publicada por Alain Feingold (1994) e a investigao de doutoramento de Cristina Vieira (2003; 2006) retratam claramente estas distines que possvel observar entre homens e mulheres, no que concerne s suas auto- -descries individuais.

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    como apresentando movimentos muito suaves, no excessivamente activos, e vivos, mas no muito enrgicos.

    Alm disso, as diferenas observadas dentro de cada grupo formado com base na categoria sexual (grupo das pessoas do sexo masculino e das pessoas do sexo feminino) so mais numerosas do que as diferenas entre esses mesmos dois grupos5, pelo que as categorias mulher e homem no podero continuar a ser vistas como homogneas nem como passveis de traduzir modelos ideais e exclusivos (de um grupo ou de outro) de conduta. Para espelhar a diversidade de formas de ser e de estar, os termos devero inclusive ser formulados no plural mulheres e homens , no esquecendo (se o objectivo for a compreenso das singularidades individuais) o seu necessrio cruzamento com outras categorias pessoais e sociais de anlise, algumas delas atrs mencionadas.

    Por esta razo, e seguindo o pensamento de Conceio Nogueira (2001), no pode continuar a acreditar-se que diferenas de natureza

    esttica, bipolar e categorial se situam dentro dos indivduos e que os sexos so opostos5. A continuar-se com esta falsa dicotomia, dividindo as caractersticas e as actividades em masculino e feminino, estar-se- a transpor para a compreenso do humano um sistema de oposies homlogas, como escreveu Miguel Vale de Almeida (1995), como alto/ baixo,

    5 Ver o trabalho de Hugh Lyntton e David Romney (1991).

    clarificao crucial em virtude das suas implicaes educativas e da ser necessrio desconstruir toda a lgica determinista usada para prescrever a homens e mulheres atributos, competncias e interesses decorrentes da diferenciao biolgica.

    No campo da psicologia, e no mbito de uma tentativa

    Sensivelmente a meio do sc. XX, e partindo de uma anlise dos comportamentos das pessoas adultas (da cultura ocidental) especialmente dos pais e das mes na famlia e em pequenos grupos, os socilogos Talcott Parsons e Robert Bales (1955) defenderam que a mulher estava mais predisposta ao estabelecimento de interaces sociais e manuteno dos laos e da harmonia familiares. Era, por isso, sobretudo expressiva, deixando o homem livre para o desempenho dos papis instrumentais. Entre os comportamentos mais tpicos dos indivduos do sexo masculino encontravam-se, por exemplo, a orientao para o alcance de metas e o estabelecimento de relaes entre a famlia e o mundo exterior. Tal distino deu origem ao aparecimento de duas categorias de atributos da personalidade, que viriam a seu utilizadas em outras reas para classificar e distinguir os homens das mulheres, fazendo

    corresponder directamente (e perigosamente) a distino biolgica a diferenas psicolgicas: instrumentalidade masculina e expressividade feminina.

    sobre/sob, fazendo crer que a diferena estaria na natureza dos seres e no num processo de aprendizagem e de apropriao diferencial de normas e valores. Esta

    de compreenso do comportamento dos homens e das mulheres ao longo do ciclo de vida, uma das vises mais consensuais do conceito de gnero foi influenciada

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    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    pelos trabalhos de Janet Spence (1985; 1993), que o considera de natureza multidimensional e o explica recorrendo aos princpios do desenvolvimento humano. Quer isto dizer que ao falarmos de gnero nos referimos a um conjunto de componentes, que incluem, para citar apenas algumas, a identidade de gnero, a orientao sexual, os papis de gnero, as caractersticas da personalidade, as competncias pessoais e os interesses.

    No entender da autora atrs citada, os aspectos que contribuem para a diferenciao de cada factor integrante do gnero possuem histrias de desenvolvimento idiossincrticas sempre distintas de pessoa para pessoa e so influenciados por uma multiplicidade de variveis no necessariamente relacionadas com o gnero. Para alm disso, durante os diferentes perodos da vida de cada sujeito, os factores que integram o gnero podem apresentar graus e tipos de associao variados entre si. O comportamento exibido (por homens e mulheres) resulta da interaco complexa das suas diversas componentes de gnero. Por este motivo, possvel observar uma considervel variabilidade intra-sexo e entre o sexo feminino e o masculino quanto constelao de caractersticas congruentes com o gnero que cada pessoa susceptvel de manifestar nas diferentes situaes que tiver de enfrentar. ainda fundamental salientar, como referiram Susan Egan e David Perry (2001), que a consistncia com que os homens e as mulheres apresentam comportamentos tpicos de gnero, em diferentes dimenses (por exemplo: papis de gnero, orientao sexual), poder ser apenas modesta.Mas esta viso psicolgica do gnero constitui simplesmente um dos mltiplos contributos que diferentes reas do saber tm trazido para o debate, havendo

    A minha definio de gnero tem duas partes e vrias alneas. esto interligadas mas so analiticamente distintas. O cerne da definio reside numa relao completa entre duas proposies: gnero um elemento constitutivo das relaes sociais baseadas nas diferenas visveis de sexo e gnero uma forma primria de nos referirmos a relaes de poder. () Enquanto elemento constitutivo das relaes sociais baseadas nas diferenas sexuais, gnero engloba quatro elementos intimamente ligados: primeiro, os smbolos disponveis numa determinada cultura que evocam mltiplas (e frequentemente contraditrias) representaes por exemplo, Eva e Maria como smbolos de mulher na tradio crist ocidental. () Segundo, conceitos normativos que avanam interpretaes dos sentidos dos smbolos, que tentam limitar e conter as suas possibilidades metafricas. Estes conceitos so expressos pelas doutrinas religiosas, educativas, cientficas, legais e polticas e mantm tipicamente a forma de oposies binrias fixas, que estabelecem de maneira categrica e inequvoca os significados de homem e mulher, masculino e feminino. () O terceiro aspecto (...) inclu[i] no s os laos de parentesco como tambm (...) o mercado de trabalho (), o sistema educativo () e o sistema poltico (). O quarto aspecto do gnero a identidade subjectiva. A primeira parte da minha definio de gnero contm, portanto, estas quatro vertentes e nenhuma delas funciona independentemente de qualquer das outras. contudo elas no funcionam em simultneo, como se uma fosse simplesmente o reflexo das outras. () O que me proponho tornar clara e objectiva a forma como devemos analisar a influncia do gnero nas relaes sociais e institucionais uma vez que esta anlise no , na maior parte dos casos, feita de forma precisa e sistemtica. Uma teoria sobre gnero portanto desenvolvida na minha segunda formulao: gnero uma forma primria de demonstrao das relaes de poder. Ou, melhor dizendo, o gnero o primeiro domnio com o qual ou atravs do qual o poder se articula.Joan Scott, 2008: 66-67 (adaptado)

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    constrangimentos e expectativas podem ser condicionados a tomar decises distintas relativamente ao seu repertrio de opes. Desta forma, ao agirem em aparente conformidade com o que esperado para as pessoas do seu sexo, acabam por reafirmar

    7 Para um desenvolvimento suplementar deste assunto, ver os trabalhos de Judith Butler (1990; 2002; 2006).8 Segundo Chris Beasley (1999), trata-se de uma viso influenciada pelo chamado construcionismo social, o qual apareceu como resposta alternativa epistemologia positivista, que defendia a existncia de uma verdade fundamental na explicao de todos os fenmenos, a qual era possvel apurar atravs da razo. Contrariando esta posio, para os construcionistas sociais so defensveis, como escreveram Sara Davies e Mary Gergen (1997), os seguintes pressupostos: 1) O conhecimento socialmente construdo; 2) No existe uma verso nica da verdade; 3) Os significados so constitudos atravs do discurso; 4) Os indivduos so vistos como passveis de expresses mltiplas.

    A tendncia do pensamento de senso comum para uniformizar a caracterizao das diferentes componentes de gnero de uma pessoa, a partir do conhecimento de apenas uma delas. Na sequncia de estudos efectuados por Key Deaux e Melissa Kite (1993), foi observado que uma crena corrente que as mulheres com uma orientao homossexual apresentam caractersticas tpicas dos homens e que os homens com uma orientao homossexual tendem a exibir comportamentos ditos femininos, o que no corresponde realidade nem traduz a diversidade de caractersticas de uma pessoa, independentemente da sua categoria sexual.

    Na tentativa de contrariar prticas errneas e discriminatrias para ambos os sexos, o compromisso bsico de todas as feministas, em diferentes domnios do conhecimento, tem sido a luta pela permanente erradicao das desigualdades de gnero, tentando acabar com os enviesamentos que prejudicam as mulheres, mas tambm os homens.

    outras perspectivas feministas (mais crticas e aparentemente opostas quelas) que defendem o seu relativismo e a sua natureza situacional.

    Hoje em dia a perspectiva feminista mais crtica e mais prxima das perspectivas ps-modernas recusa a possibilidade de discursos universalizantes e generalizveis acerca do gnero. Esta perspectiva desafia o carcter natural da diferena de gnero, sustentando que todas as caractersticas sociais significativas so activamente criadas e no so nem biologicamente inerentes, nem permanentemente socializadas ou estruturalmente predeterminadas. Segundo este ponto de vista, o gnero no apenas algo que a sociedade impe aos indivduos. Mulheres e homens escolhem certas opes comportamentais e ignoram outras e, ao faz--lo, elas e eles fazem o gnero. Pode dizer--se fazer o gnero, isto , comportar-se de maneira que, seja qual for a situao, sejam quais forem os actores, o comportamento dos homens e das mulheres seja visto, em cada contexto, como adequado s expectativas de gnero socialmente delineadas para cada um dos sexos. Nesta sequncia, acredita-se que o gnero performativo7.

    Este entendimento8 sobre o que o gnero ajuda a reconciliar os resultados empricos, de que mulheres e homens so mais similares que diferentes na maioria dos traos e competncias, com a percepo comum de que parecem comportar-se de forma diferente. Com efeito, mulheres e homens ainda que tenham as mesmas competncias, ao enfrentarem diferentes circunstncias,

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    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    Deste modo, podemos afirmar que o reconhecimento de que o gnero resulta de uma construo social que nos permite compreender como a discriminao continua, apesar de todo o trabalho de cientistas feministas os/as quais, minimizando ou maximizando as diferenas, esperavam contribuir para a eliminao das desigualdades de gnero na sociedade, tanto nos espaos pblicos como no domnio privado.

    Longe de afirmar que as estruturas de dominao so a-histricas, tentarei estabelecer que so um produto de um trabalho incessante (portanto histrico) de reproduo para que contribuem agentes singulares () e instituies, famlias, igreja, escola, estado.Pierre Bourdieu, 1999: 30.

    os arranjos baseados nas categorias sexuais como sendo naturais, fundamentais e imutveis, legitimando consequentemente a ordem social.

    Poder-se- ia ento imaginar que a simples mudana na forma como homens e mulheres fazem o gnero poderia ser o caminho para a transformao. No entanto, importante ter em ateno que os constrangimentos institucionais, a hierarquia social e as relaes sociais de poder limitam a capacidade de aco dos indivduos.

    A categoria analtica de gnero tornou-se mais presente em Portugal nos anos 90 [do sc. XX], tendo como n fulcral os aspectos relacionais da construo social do feminino (e do masculino). Tornou-se numa palavra passe-partout, nomeadamente na sua emigrao e traduo em contextos institucionais cuja utilizao nessa traduo institucionalizada muitas vezes indevida, por escamotear a crtica que essa categoria analtica implica, podendo-se faz-la despolitizar a luta das mulheres.Teresa Joaquim, 2004: 89.

    o fundamental na diferenciao entre o masculino e o feminino no so os atributos que, aparentemente, os distinguem () mas sim o facto dos contedos que definem a masculinidade estarem confundidos com outras categorias supra-ordenadas, como a de pessoa adulta, enquanto os significados femininos definem apenas um corpo sexuado. neste processo de construo social que o simbolismo masculino se constitui como referente universal relativamente ao feminino que permanece marcado pela categoria sexual.Lgia amncio, 2002: 59.

    Passados cerca de quarenta anos desde que o gnero foi identificado como uma categoria de anlise, sabe-se que muito est por conseguir no que diz respeito igualdade entre homens e mulheres e s assimetrias de poder material e simblico da recorrentes nas diversas esferas da vida. Com base em ideias sem qualquer suporte cientfico, a famlia e todos os restantes agentes de socializao continuam a educar de maneira diferente o rapaz e a rapariga para o desempenho dos mais variados papis ao longo da vida, como se a diferenciao biolgica determinasse as caractersticas pessoais, as oportunidades de desenvolvimento e os percursos de vida de uns e de outras.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

    Lisboa, CIG, 2009

    Da que seja imperativo falar de gnero quando se quer promover uma cidadania activa. Na realidade, o gnero deve ser encarado como um dos princpios organizadores da construo do percurso individual de cada cidad ou cidado, na formao das respectivas competncias para o exerccio pleno da cidadania. Em qualquer sociedade, as crenas associadas ao gnero tendem a constituir, para ambos os sexos, normas muitas vezes silenciosas condicionantes da formao de valores e de atitudes, com influncia directa na auto e hetero avaliaes das variadas expresses comportamentais e nos desafios que uns e outras acreditam serem capazes de enfrentar com sucesso.

    Incorpormos, sob a forma de esquemas inconscientes de percepo e de avaliao, as estruturas histricas da ordem masculina; arriscamo-nos portanto a recorrer, para pensar a dominao masculina, a modos de pensamento que so eles prprios produtos da dominao.Pierre Bourdieu, 1999: 30.

    A investigao em torno das diferentes problemticas do gnero, impulsionada, como se disse atrs, pelo pensamento e movimentos feministas, e produzida com maior intensidade desde as dcadas finais do sculo XX, chamou a ateno para a complexidade cultural dos esteretipos de gnero, para o carcter imbricado das ideias associadas masculinidade e feminilidade e para as arbitrariedades advindas da promoo e manuteno de um raciocnio dicotmico, conformista e alicerado em estereotipias. Estudos portugueses desenvolvidos, sensivelmente desde essa altura, tambm j colocaram em evidncia, por exemplo, o papel dos recursos pedaggicos utilizados em

    As investigaes tm mostrado que o ensino misto no se substanciou em prticas educativas conducentes transformao das relaes sociais de gnero no processo de socializao e de construo da identidade de raparigas e de rapazes. Constata-se a persistncia de esteretipos de gnero, seja nos materiais pedaggicos, seja nas interaces no espao escolar, que sustentam um imaginrio social que representa assimetricamente as identidades feminina e masculina e reproduz expectativas diferenciadas para raparigas e rapazes no que respeita s vrias dimenses da sua vida presente e futura.Teresa Pinto, 2007: 142.

    contextos formais de ensino na manuteno de uma ideologia de gnero adoptada pelo colectivo e assumida como inquestionvel, ainda que naturalize hierarquias de poder e legitime situaes de desigualdade entre homens e mulheres. Correndo-se o risco de deixar de fora deste elenco muitas pesquisas importantes de cientistas portuguesas/es empenhadas/os no estudo das questes de gnero e da sua ligao ao que se passa na escola, citem-se, por exemplo, os trabalhos sobre os esteretipos de gnero nos Manuais Escolares, adoptados oficialmente no ensino bsico, de Eugnio Brando (1979), Ivone Leal (1979), Maria Isabel Barreno (1985), Jos Paulo Fonseca (1994), Fernanda Henriques e Teresa Joaquim (1995), Maria de Jesus Martelo (1999) e Anabela Correia e Maria Alda Ramos (2002); a investigao de Teresa Alvarez Nunes (2007) sobre as representaes de cidadania associadas ao masculino e ao feminino nos Manuais de Histria e no software educativo utilizados no ensino secundrio; o trabalho de Lusa Saavedra (2005) sobre a aprendizagem

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    promovida pelo currculo e pela organizao escolar do que ser rapaz ou ser rapariga; a pesquisa de Laura Fonseca (2001) sobre as subjectividades na educao das raparigas; e o trabalho de Teresa Pinto (2008) sobre a associao (historicamente construda) do ensino industrial ao sexo masculino.

    No que concerne ao que se passa no nvel pr- escolar, uma investigao recente de Fernanda Rocha (2009) mostrou que os/ as educadores/ as de infncia so tambm propensos/as ao uso de estereotipias de

    gnero, quer na organizao dos espaos didcticos, quer nas interpretaes que fazem do comportamento dos pais e das mes. No que diz respeito fraca representao das raparigas em profisses no tradicionalmente femininas, um trabalho realizado por Lusa Saavedra (1997) deixa antever grandes dificuldades a mdio prazo na alterao dos esteretipos de gnero associados s profisses, pois esta mudana parece exigir uma modificao ideolgica das representaes associadas posio social do grupo feminino face ao grupo masculino.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

    Lisboa, CIG, 2009

    O gnero como categoria social

    1.1.2.

    gnero uma das primeiras categorias que a criana aprende, facto que exerce uma influncia marcante na organizao do

    seu mundo social e na forma como se avalia a si prpria e como percepciona as pessoas que a rodeiam. Para corresponder s normas sociais, e como parte integrante do processo de socializao, a criana aprende a comportar- -se de acordo com os modelos dominantes de masculinidade e de feminilidade. Este processo movido por uma complexa interaco entre os factores individuais e contextuais, neles incluindo a relao com o pai e a me, os(as) amigos/ as, os/as educadores/as/professores/as e outras pessoas significativas.

    Algumas investigaes no domnio da psicologia tm mostrado que as crianas iniciam o processo de desenvolvimento respeitante ao gnero (e a categorizao de si e dos outros da decorrente) muito antes de tomarem conscincia do seu sexo, ou seja, dos seus rgos genitais9. Janet Spence (1985) defende mesmo que o ncleo central da identidade de gnero comea a consolidar-se, em crianas de ambos os sexos, ainda numa fase pr--verbal do desenvolvimento, ou seja, antes

    O de a criana ter capacidade de expressar por palavras o seu pensamento. Todavia, ao longo dos anos subsequentes so mltiplas as influncias que podem ocorrer susceptveis de afectar quer o desenvolvimento posterior das vrias componentes do gnero, quer as suas manifestaes situacionais. Por esse motivo, numa situao particular uma rapariga pode exibir um comportamento habitualmente mais comum nos rapazes e vice-versa.

    A anlise da composio sexual dos grupos de crianas formados por iniciativa prpria em situaes ldicas fornece dados que destacam a importncia do gnero enquanto categoria social, especialmente durante a primeira dcada de vida. Sobrepondo-se a outras caractersticas individuais como a etnia ou a raa, o sexo surge como um dos principais critrios na escolha de um/a potencial companheiro/a de brincadeiras, por parte da criana10. Assim, por exemplo, um rapaz branco de quatro anos brinca mais prontamente com um rapaz negro do que com uma rapariga branca da mesma idade.

    importante referir que durante a infncia a distino entre os sexos remete para a prevalncia, no pensamento da criana, de duas

    9 Ver, a este respeito, os trabalhos de Diana Poulin-Dubois e colegas (1994), de Teresa Alrio Trigueiros e outros/as autores/as (1999) e de Ana da Silva e e outros/as autores/as (1999), tendo estes dois ltimos livros sido publicados pela Comisso para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, no mbito dos Cadernos Coeducao.10 Ver os estudos citados por Carole Beal (1994) que se debruaram sobre este comportamento sexista das crianas.

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    categorias bsicas (binrias): a dos homens e a das mulheres, categorias essas directamente ligadas a um processo prvio de categorizao social que teve como fundamento as diferenas fsicas aparentes entre os sexos.

    Uma segunda distino assente na primeira, porm, de contornos mais indefinidos a que resulta da aplicao dos conceitos de masculino e de feminino. Na realidade, um indivduo pode ser mais ou menos masculino, mas no pode ser mais ou menos homem, como escreveu Eleanor Maccoby (1988). Esta segunda dicotomia reveste-se de uma importncia menor na compreenso do comportamento social da criana, at porque faz apelo a determinadas capacidades cognitivas mais abstractas, que ela ainda no possui.

    O interesse cientfico pela compreenso do fenmeno da preferncia explcita das crianas pelo estabelecimento de interaces com outras do mesmo sexo deu origem ao desenvolvimento de numerosas investigaes11. Entre outras concluses dignas de relevncia, foi observado que a predisposio das crianas para a segregao sexual:

    a) um processo grupal, pois no depende das caractersticas particulares exibidas por cada criana ou do seu grau de tipificao de gnero;

    b) Ocorre em ambos os sexos, mas tende a aparecer mais cedo nas raparigas;

    c) Tende a ser tanto mais intensa quanto maior for o nmero de crianas do mesmo sexo e da mesma idade disponveis para participar nas

    brincadeiras;

    d) maior em situaes no estruturadas por adultos, como o caso dos refeitrios escolares, do que em contextos mais formais, como sejam as salas de aula;

    e) No tem a ver com juzos de valor sobre o maior ou menor poder social detido pela criana, em virtude da sua pertena a um ou a outro sexo, ou de papis especficos de gnero por ela desempenhados;

    f) uma tendncia que parece comear por volta dos dois anos de idade, continuar durante a fase pr-escolar e intensificar-se nos anos seguintes da infncia, entre os 6 e os 11 anos;

    g) um fenmeno que se manifesta de forma equivalente em estudos realizados em diferentes culturas.

    Para explicar a segregao dos sexos observada na infncia, Carole Beal (1994) apresenta duas ordens de razes. Em primeiro lugar, afirma que as crianas preferem brincar com outras do mesmo sexo em virtude da semelhana mtua, ao nvel dos estilos de interaco. Em segundo lugar, fala da necessidade individual de desenvolvimento da identidade de gnero que conduz as crianas a procurar contactar, preferencialmente, com outras parecidas consigo, isto , outras que correspondam aos modelos aprendidos do que ser rapaz ou ser rapariga. Como escreveu Beverly Fagot (1985), para que a criana inicie o desenvolvimento de algumas regras associadas ao gnero basta aprender a designar a categoria sexual a que pertence. Tambm a este respeito,

    11 Consultar, por exemplo, Eleanor Maccoby (1998) para uma viso abrangente dos resultados destes estudos.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

    Lisboa, CIG, 2009

    Eleanor Maccoby (1988) defendeu que as crianas escolhem brincar com outras do mesmo sexo porque o processo cognitivo de categorizao social, por elas efectuado, de tal maneira forte que a sua opo, a este nvel, deve ser encarada como parte integrante da formao da identidade de gnero.

    A medida em que determinada pessoa se mostra em conformidade com os papis de gnero que lhe so socialmente prescritos, em virtude de ter nascido do sexo masculino ou feminino, o que se designa por tipificao de gnero.

    De forma mais sinttica, Sandra Bem (1981) defende que tal conceito traduz o processo, atravs do qual a sociedade converte as noes de macho e de fmea em masculino e feminino.

    As diversas pesquisas sobre a importncia do gnero no desenvolvimento da criana, embora nem sempre tenham conduzido a concluses plenamente coincidentes, parecem no entanto reunir consenso quanto a dois aspectos particulares. A manifestao de comportamentos tpicos de gnero durante os primeiros anos de vida tende a preceder (1) o desenvolvimento de uma compreenso sofisticada sobre o gnero, ou seja, sobre os modelos de masculinidade e de feminilidade culturalmente dominantes12 e (2) a consolidao da identidade de gnero13. Como veremos a seguir, este ltimo aspecto algo que se estende no tempo, sobretudo ao longo dos primeiros sete anos de vida. O grau de complexidade das explicaes apresentadas pelas crianas para os comportamentos de gnero e para a avaliao dos mesmos em si e nas outras pessoas depende directamente do desenvolvimento das capacidades intelectuais, as quais se tornam progressivamente mais complexas com a idade em ambos os sexos.

    12 Ver Diana Poulin-Dubois, Lisa A. Serbin e Alison Derbyshire (1994).13 Ver Valerie Edwards e Janet T. Spence (1987).

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    A formao da identidade de gnero

    F oram vrias as posies tericas desenvolvidas durante o sc. XX que tentaram esclarecer o processo de formao da

    identidade de gnero. Com o intuito de dar uma certa organizao terica e conceptual s mesmas Susan Freedman (1993) rene-as em duas classes distintas. A primeira (onde inclui, por exemplo, as ideias psicanalticas e evolucionistas) agrega teorias que tentam explicar as possveis causas das diferenas entre os sexos. Trata-se de saber por que que os sexos podem apresentar diferenas. A segunda categoria agrupa as teorias (como as da aprendizagem social, teorias cognitivo--desenvolvimentistas e teorias da interaco social) que abordam os processos conducentes observao das diferenas entre homens e mulheres. Neste caso, a preocupao dos(as) respectivos/as autores/as gira em torno de como que os sexos enveredam por formas distintas de comportamento.

    Como se disse anteriormente, a coexistncia de diferentes perspectivas e o recurso a metodologias de anlise distintas sobre o gnero e as suas implicaes para a organizao da vida pessoal e social das mulheres e dos homens tornam difcil a tarefa de apresentar princpios explicativos e modelos que renam unanimidade entre as e os especialistas e que espelhem a riqueza e complexidade das abordagens.

    Sendo este Guio destinado principalmente ao

    ensino pr-escolar e ao terceiro ciclo do ensino bsico, e abrangendo, portanto, quer crianas muito novas (a partir dos trs anos de idade), quer adolescentes, optmos por apresentar nesta seco do captulo uma viso psicolgica sobre a formao da identidade de gnero, que a perspectiva como intrinsecamente ligada ao desenvolvimento humano em outros domnios (cognitivo, emocional e social). Esta opo no significa, contudo, que outras abordagens mais crticas e reflexivas como aquelas que so influenciadas pelo construccionismo social ou

    Partindo de estudos realizados com crianas e adolescentes, Susan Egan e David Perry (2001) apresentaram uma possvel definio de identidade de gnero com recurso a quatro proposies tericas. No seu entender, a identidade de gnero abrange:

    (a) A tomada de conscincia individual da pertena do sujeito a uma das categorias de gnero;

    (b) A sensao de compatibilidade com um dos grupos formados a partir da categorizao anterior ();

    (c) O sentir-se pressionado/a a estar em conformidade com a ideologia de gnero;

    (d) O desenvolvimento de atitudes para com os grupos de gnero (p. 451).

    1.1.3.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

    Lisboa, CIG, 2009

    pelos feminismos radicais, cuja anlise tende a centrar--se na compreenso das mltiplas determinantes dos comportamentos dos homens e das mulheres na vida adulta sejam vistas como menos interessantes ou com menor valor heurstico. Apenas por uma questo prtica no sero aqui referenciadas.

    Na psicologia, a perspectiva cognitivo-desenvolvimentista onde merece especial destaque o pioneirismo do pensamento de Lawrence Kolhberg (1966) reconhece criana um papel activo na construo da sua identidade de gnero e a impossibilidade de dissociar este processo do prprio desenvolvimento das capacidades intelectuais. Considerando o ciclo de vida, e salientando a importncia da interaco social entre as crianas de ambos os sexos destacada por Key Bussey e Albert Bandura (1999), pode afirmar-se que a primeira etapa do processo de desenvolvimento das diferentes dimenses do gnero consiste na formao da identidade de gnero. Ao observar o mundo das pessoas adultas, para as crianas so muito mais aparentes as diferenas exteriores (de vesturio, de

    corte de cabelo, de tamanho e forma do corpo) do que as diferenas relativas aos rgos genitais. partindo da constatao destas distines entre pessoas adultas que a criana se inclui num dos grupos (isto , se classifica como do sexo masculino ou do sexo feminino) e comea, inevitavelmente, a fazer avaliaes da realidade.

    Para Kolhberg, as ideias da criana acerca dos papis dos homens e das mulheres so determinantes para a exibio de comportamentos consonantes com os modelos dominantes de masculinidade e de feminilidade; e a motivao para a aprendizagem desses mesmos papis resulta da sua necessidade individual de se identificarem com um dos grupos. Por esse motivo, acredita que durante o processo de formao da identidade de gnero a criana capaz de compreender o gnero, em vez de, simplesmente, imitar o comportamento daqueles que so do mesmo sexo que o seu. Assim, a progressiva compreenso que a criana evidencia acerca do que o gnero est intrinsecamente ligada ao seu desenvolvimento cognitivo14, isto , ao seu nvel

    de compreenso geral do mundo em que vive e do seu papel no mesmo.

    Neste enquadramento, por volta dos dois/trs anos a criana est apta a designar correctamente o seu gnero. Todavia, a formao da identidade de gnero, que se estende, como se disse, aproximadamente dos 2 aos 7 anos de idade, um processo que acompanha a transio para o perodo das operaes concretas15 e durante o qual a criana capaz de comear a compreender determinadas categorias sociais como o caso do gnero.

    As ideias de Lawrence Kolhberg (1966) a respeito do papel da motivao no desenvolvimento do gnero reuniram grande consenso na comunidade cientfica. Na sua opinio, para que a criana se sinta motivada a valorizar os outros do mesmo sexo e inicie o processo de ensaio/imitao dos comportamentos, tem de estar assegurada a estabilidade do seu gnero; ou seja, tem de ter conscincia de que ainda que algumas caractersticas externas ou o prprio comportamento, exibido em situaes particulares, venham a sofrer modificaes, o sexo

    14 Ver os trabalhos de Jeanne Brooks-Gunn e Wendy Matthews (1979).15 Em virtude da salincia do gnero na organizao da vida individual, Diana Ruble e Carol Martin (1998) defendem que a conservao da categoria sexual pode ser considerada uma das primeiras manifestaes de pensamento operatrio por parte da criana.

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    e a identidade de gnero do indivduo so invariveis.

    Pelo facto de no ser capaz de alcanar, antes de determinada idade, a permanncia do objecto (noo piagetiana segundo a qual existe constncia nas caractersticas fsicas dos objectos) no de prever que com trs anos apenas a criana consiga, por exemplo, desenvolver uma identidade de gnero permanente. Ilustremos esta afirmao com uma referncia aos trabalhos de Jean Piaget (1932) sobre a compreenso da conservao: pode aplicar-se ao modo como as crianas compreendem o gnero a explicao para a incapacidade das crianas, at determinada idade, de acreditarem que o nmero de objectos numa torre se mantm, ainda que a disposio fsica dos mesmos se altere. Enquanto no atingem aquilo a que Kolhberg (1966) chamou estabilidade de gnero, as crianas tendem a pensar que, tal como mudam de corte de cabelo ou de vesturio, as pessoas podem mudar de sexo, ou podem pertencer a um ou a outro grupo de gnero. Segundo este nvel de pensamento infantil, como escreveu Margaret Matlin (1996), uma mulher pode tornar-se homem se cortar o cabelo muito curto e um homem pode tornar-se mulher se decidir usar uma mala de mo (p. 99).

    medida que vo compreendendo, dos 2 aos 7 anos aproximadamente, a imutabilidade do facto de serem do sexo masculino ou do feminino isto , medida que vo consolidando a estabilidade do gnero as crianas sentem--se motivadas a procurar informao sobre os comportamentos considerados adequados ao seu sexo, pela observao dos outros na

    famlia, na escola, na comunicao social, que funcionam como modelos. Nesta sequncia, a criana imita os modelos do mesmo sexo que o seu e exibe, preferencialmente, comportamentos tpicos de gnero, j que esses mesmos desempenhos so considerados os mais adequados (e os mais aprovados pelas outras pessoas) e esto em consonncia com o seu auto-conceito, enquanto rapaz ou rapariga, e com a sua identidade de gnero em formao. Na linha do pensamento kolhbergiano, a vontade da criana de agir em conformidade com as normas adequadas ao seu sexo precede o prprio comportamento, em virtude da sua compreenso da realidade. Ela envereda pela adopo de comportamentos tpicos de gnero, movida pela sua necessidade de coerncia interna e de desenvolvimento de uma slida auto-estima.

    Todo o processo de categorizao cognitiva que parece, ento, ser indispensvel, numa primeira fase, para a progressiva consolidao da identidade de gnero nos primeiros anos de vida da criana abre, no entanto, caminho apropriao de normas comportamentais rgidas, ou de estereotipias, as quais podero ter uma influncia perversa na autenticidade da trajectria de desenvolvimento individual, subsequente, dos rapazes e das raparigas. Torna-se, por isso, fundamental o desenvolvimento de uma actuao pedaggica adequada e concertada entre as vrias fontes de influncia, como seja a escola, a famlia, os media que corrija as mensagens estereotipadas sobre o gnero que a criana vai aprendendo e solidificando nas suas redes cognitivas de informao.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

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    Esteretipos de gnero

    1.1.4.

    O

    16 Para uma compreenso alargada sobre o poder dos esteretipos de gnero no comportamento dos homens e das mulheres, ver os trabalhos de Madeline Heilman (2001) e de Conceio Nogueira e Lusa Saavedra (2007).

    s esteretipos constituem conjuntos bem organizados de crenas acerca das caractersticas

    das pessoas que pertencem a um grupo particular. Se bem que a tendncia seja para encarar os esteretipos como expedientes negativos de percepo das outras pessoas, dada a facilidade com que, a partir deles, se envereda por juzos discriminatrios, pode ser- -lhes atribudo, no entanto, um papel positivo no modo como o indivduo lida com a multiplicidade de estmulos com que confrontado no dia--a-dia. Daqui ser possvel asseverar que os esteretipos assumem, para o ser humano, uma funo adaptativa, na medida em que lhe permitem a organizao da complexidade do comportamento em categorias operacionais, facilmente manejveis. No obstante, tambm verdade que os esteretipos podem ser bastante prejudiciais, em virtude do risco de consubstanciarem uma leitura distorcida e redutora da realidade, porque facilmente legitimam categorizaes irreflectidamente generalizveis, na sua maioria mais negativas do que positivas.

    De facto, com base nos esteretipos, todos os membros de um dado grupo social tendem a ser avaliados da mesma maneira, como se os indivduos pertencessem a categorias internamente homogneas. Deste ajuizamento resulta, como bvio, uma clara omisso da variabilidade que possvel observar no seio

    de cada grupo especfico. Da que seja baixo o poder preditivo destas crenas generalizadas, correndo-se o risco de se efectuarem julgamentos inadequados sobre uma pessoa particular, a partir dos esteretipos que se sabe servirem para caracterizar o grupo a que ela pertence. Acresce o facto de se apresentarem, com frequncia, de tal maneira consolidados nos esquemas mentais das pessoas, que a sua propenso a alteraes reduzida, mesmo na presena de informao contrria, como advertiu John Santrock (1998).

    No caso particular do gnero, os esteretipos a ele associados tm a ver com as crenas amplamente partilhadas pela sociedade sobre o que significa ser homem ou ser mulher. Mais do que qualquer outro tipo de esteretipos, os de gnero apresentam, como nos disse Susan Basow (1992), um forte poder normativo, na medida em que assumem no apenas uma funo descritiva das supostas caractersticas dos homens e das mulheres, mas tambm consubstanciam uma viso prescritiva, se bem que no uniforme, dos comportamentos (papis de gnero) que ambos os sexos devero exibir, porque veiculam, ainda que implicitamente, normas de conduta16. Se bem que os esteretipos de gnero possam apresentar alguma correspondncia com as caractersticas e comportamentos que os homens e as mulheres exibem no dia-a-dia, a excessiva generalizao que lhes inerente e o seu

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    carcter quase inquestionvel mascaram, como afirmou Janet Spence (1999), a considervel sobreposio da variabilidade comportamental relativa a cada um dos grupos (p. 281).

    esperado de cada um dos sexos, eles encerram em si, tambm, uma avaliao daquilo que o homem e a mulher no devero exibir, quer em termos fsicos, quer a nvel psicolgico. De um modo geral, os indivduos que se afastam das vises dominantes de masculinidade (o homem choramingas, por exemplo) e de feminilidade (a mulher agressiva, por exemplo) costumam ser alvo de julgamentos negativos por parte dos outros. Neste mbito, de realar que tende a ser o homem quem sofre mais punies sociais, da famlia, dos pares, etc., caso se desvie das

    17 Ver, a este propsito, a obra de Susan Golombock e Robyn Fivush (1994).18 Ver o livro de Antnio Neto e outros/as autores/as (1999), sobre esteretipos de gnero, que foi publicado no mbito dos Cadernos Coeducao.

    Referindo-se concretamente ao carcter excludente do termo masculinidade hegemnica que pretende traduzir o modelo dominante do que ser homem na nossa sociedade , constantemente lembrada na msica e nos ditados populares (ou ainda nas sries televisivas actuais para crianas e adolescentes), Miguel Vale de Almeida alerta para o facto de a maioria dos homens ficar de fora: no caso dos homens, a diviso crucial entre masculinidade hegemnica e vrias masculinidades subordinadas (). Daqui segue-se que as masculinidades so construdas no s pelas relaes de poder mas tambm pela sua interrelao com a diviso do trabalho e com os padres de ligao emocional. Por isso, na empiria, se verifica que a forma culturalmente exaltada de masculinidade s corresponde s caractersticas de um pequeno nmero de homens.Miguel Vale de almeida, 1995: 150.

    normas comportamentais consideradas adequadas para o seu sexo. Em virtude desta maior coaco social que sentida pelas pessoas do sexo masculino, autoras como Susan Basow (1992) defendem no ser de estranhar a persistente preocupao de alguns homens em dar provas da sua masculinidade.

    Os estudos desenvolvidos sobre os esteretipos de gnero tm chamado a ateno para o seu carcter no unitrio17 e para a constante adaptao dos mesmos s mudanas sociais18. No mesmo sentido,

    A propsito das consequn- cias dos supostos desvios aos modelos dominantes de feminilidade e de masculinidade, veja-se o que se passa, por exemplo, nos primeiros anos da infncia e ainda na idade correspondente ao 1 ciclo de escolaridade bsica. Uma rapariga que considerada maria-rapaz costuma ser melhor aceite pela famlia e pelas outras pessoas e tende a ter um estatuto superior no seu grupo de pares do que um rapaz que exibe comportamentos ditos femininos. Alis, para estes so indizveis as expresses populares para os caracterizar porque, de facto, a feminilidade socialmente desvalorizada.

    Mas, se os esteretipos estabelecem aquilo que

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

    Lisboa, CIG, 2009

    a investigao histrica tem evidenciado que os esteretipos tm variado ao longo do tempo e, em cada poca, de uma regio para outra19. Esta necessidade de adaptao conduziu ao aparecimento e refinamento (ou mesmo reformulao) de subtipos particulares de esteretipos de gnero, tanto relativos aos homens como s mulheres. No entanto, parece consensual a ideia de que a distino entre os subtipos de esteretipos relativos mulher mais clara e rene maior acordo entre os indivduos do que os subtipos referentes ao homem. Apesar da relativa estabilidade com que se apresentam (e utilizam) nas sociedades contemporneas as classificaes diferenciadoras mais gerais, ligadas s categorias homem e mulher, pesquisas particulares20 dedicadas ao exame dos possveis subtipos destas, tm mostrado a importncia de outros factores no seu aparecimento, como a raa, a idade, a religio, o

    nvel sociocultural ou mesmo a orientao sexual.

    Numa tentativa de mostrar que os esteretipos de gnero so complexos e que tendem a apresentar, por isso, mais subdivises que outros esteretipos, Susan Basow (1986) afirmou que possvel identificar naqueles pelo menos quatro subtipos, no necessariamente correlacionados entre si:

    Esteretipos relativos aos traos ou atributos de personalidade (por exemplo, independncia versus docilidade);

    Esteretipos relativos aos papis desempenhados (por exemplo, chefe de famlia versus cuidadora dos filhos);

    Esteretipos relativos s actividades profissionais prosseguidas (por

    exemplo, camionista versus recepcionista);

    Esteretipos relativos s caractersticas fsicas (por exemplo, ombros largos e corpo musculoso versus formas corporais arredondadas e harmoniosas).

    Na linha do pensamento de Kay Deaux e Laurie Lewis (1984), destes vrios subtipos de esteretipos de gnero, aqueles que parecem exercer mais poder sobre o comportamento, na medida em que despoletam com maior intensidade a actuao das crenas associadas ao gnero, so os esteretipos relativos s caractersticas fsicas21. E o problema das ideias erradas e discriminatrias, a este nvel, coloca-se ainda com mais premncia, se atendermos ao facto de ser a aparncia fsica o corpo o aspecto mais difcil de mudar, de todos os que se relacionam com o gnero22.

    19 Refiram-se, a ttulo de exemplo, os trabalhos de Michelle Perrot (1998), Joan W. Scott (1994), Maria Victoria Lopez-Cordon Cortezo (2006), Annette F. Timm e Joshua A. Sanborn (2007). 20 Entre estas investigaes encontram-se as de Susan Basow (1992), de Kay Deaux e Melissa Kite (1993) e de Kay Deaux (1995).21 Numa pesquisa conduzida por Kay Deaux e Laurie Lewis (1984) com crianas e adolescentes verificou-se que as pessoas descritas como tendo uma voz mais grossa e ombros mais largos eram percepcionadas como possuindo mais caractersticas masculinas e como mais capazes de desempenhar papis tpicos dos homens, do que as pessoas que se sabia possurem uma voz mais aguda ou uma constituio fsica mais franzina. Diversas investigaes subsequentes (ver a reviso de Kay Deaux e Marianne LaFrance, publicada em 1998, onde possvel tomar conhecimento destas pesquisas) vieram oferecer suporte emprico a esta convico de que na avaliao dos indivduos as caractersticas fsicas parecem assumir um predomnio sobre todas as outras informaes relativas ao gnero. Foi observado, por exemplo, que, sobretudo entre os homens, a altura destes estava positivamente correlacionada com as avaliaes de outros sujeitos acerca do seu estatuto profissional ou mesmo da sua adequao pessoal, enquanto membros do sexo masculino. 22 Ver a este propsito o captulo Corpo, gnero, movimento e educao deste Guio.

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    Para alm dos esteretipos relacionados com a aparncia corporal, outros relativos s caractersticas de personalidade, aos papis desempenhados e s ocupaes profissionais preferidas por cada um dos sexos tendem, igualmente, a persistir nas imagens que so traadas do homem e da mulher. Ainda que tenha vindo a sofrer variaes em funo dos contextos socioculturais, a dicotomia atrs referida expressividade feminina versus instrumentalidade masculina parece continuar a ser usada para manter uma certa ordem social e para distinguir os seres que nasceram do sexo feminino daqueles que nasceram do sexo masculino.

    Uma sntese muito geral das principais concluses dos estudos efectuados, sobretudo ao longo das ltimas dcadas do sc. XX, quer em Portugal23, quer a nvel transnacional24, pe em destaque a grande coincidncia de resultados quanto forma como costumam ser descritos o homem e a mulher, por pessoas de diferentes idades em momentos distintos. De um modo geral, os homens tendem a ser vistos como sendo mais fortes, activos, competitivos e agressivos do que as mulheres, tendo ainda maiores necessidades de realizao, de dominao e de autonomia do que elas. As mulheres, por seu turno, surgem caracterizadas como necessitando, sobretudo, de estabelecer ligaes afectivas com as outras pessoas, como sendo mais carinhosas e aptas a prestar cuidados, como possuindo uma auto-estima mais baixa e como sendo mais propensas a prestar auxlio em situaes difceis.

    No estudo realizado em Portugal por Lgia Amncio (1994), foi verificado ainda que os esteretipos masculinos mostraram englobar um maior nmero de caractersticas do que os femininos e evidenciaram mais aspectos

    23 Consultar, por exemplo, o livro de Lgia Amncio (1994) ou o artigo de Flix Neto (1990).24 Merecem especial destaque, neste mbito, o trabalho, pioneiro na Europa, de Anne-Marie Rocheblave-Spenl (1964) e a investigao transnacional de John Williams e Deborah Best (1990).

    positivos do que estes. Alm disso, os traos avaliados como positivos nas mulheres envolviam, sobretudo, o seu relacionamento com os outros, como o ser afectuosa, meiga, ou sensvel, caractersticas estas que

    Se a nica informao disponvel acerca de um indivduo do sexo masculino a de que ele tem uma constituio fsica algo delicada e franzina, a tendncia das pessoas ser para predizer que esse sujeito possui, com alguma probabilidade, traos estereotipadamente femininos, que desempenha uma profisso mais comum nas mulheres e que, talvez, seja homossexual.Susan Basow, 1986: 6.

    os papis sociais de gnero apresentam, no plano normativo, a mesma assimetria veiculada pelos esteretipos de masculinidade e de feminilidade, a nvel dos contedos. enquanto os traos definidos como masculinos se traduzem em competncias, associando-se directamente esfera do trabalho e do domnio sobre os outros e sobre as situaes, os contedos que caracterizam o feminino correspondem a sentimentos e restringem-se esfera do relacionamento social e afectivo. isto conduz a uma distino na definio das reas de interveno dos dois sexos: o masculino, definindo-se a partir da multiplicidade de competncias e de funes, integra, como prprias, esferas de interveno diversificadas que abrangem a multiplicidade e complexidade social do espao pblico, enquanto o feminino, centrado em funes especficas, configurado no mbito restrito do privado e do familiar.Teresa alvarez nunes, 2007: 43-44.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

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    habitualmente integram a viso estereotipada de feminilidade. Nos homens eram mais valorizados aspectos como o ser audacioso, independente ou empreendedor, os quais caracterizam a viso estereotipada de masculinidade. Tanto num caso como no outro, o conceito de sexismo volta a ser importante para compreender as respostas dos/as participantes, pois segundo Peter Glick e Susan Fiske (1996) o que est em

    causa uma maior hostilidade para com as pessoas do sexo feminino.

    A variao do conhecimento dos esteretipos com a idade tem posto em evidncia uma correlao positiva entre ambas as variveis, sobretudo ao longo das duas primeiras dcadas de vida25, em virtude da complexidade cognitiva crescente das crianas e dos adolescentes. de referir que a fora desta associao tende a ser equivalente nos

    rapazes e nas raparigas, ainda que as crianas entre os 8 e os 11 anos de idade mostrem em geral conhecer um maior nmero de esteretipos relativos mulher do que relativos ao homem, como mostrou a pesquisa de Flix Neto (1997). Mas, torna-se aqui imperioso fazer a distino entre o conhecimento dos esteretipos e a flexibilidade cognitiva com que so aplicadas tais crenas, quer nas descries que os rapazes e as raparigas fazem de si prprios/as, quer na maneira como avaliam as outras pessoas. A este propsito, as pesquisas tm mostrado que o simples conhecimento dos esteretipos no motiva necessariamente as crianas a exibirem comportamentos consonantes com eles, como concluram Key Bussey e Albert Bandura (1999).

    Na sequncia dos trabalhos de Lawrence Kolhberg (1966) citados no ponto anterior, foi mesmo esboada uma relao curvilnea entre a rigidez com que so aplicados os esteretipos e a idade das crianas estudadas. Tal concluso veio a ser fortalecida mais tarde com os resultados de uma meta-anlise26 sobre

    Embora certas ideias tradicionais, a propsito dos atributos e dos papis mais convenientes para as pessoas do sexo feminino tenham vindo a sofrer uma relativa modificao com o passar do tempo, outras crenas tm surgido no seu lugar, facto que autoriza a falar em velhas e em novas formas de sexismo. de acordo com Janet Swim e colaboradores (1995), tais formas de sexismo podem distinguir-se, a nvel conceptual, da seguinte maneira:

    O sexismo antigo caracteriza-se pela defesa dos papis de gnero tradicionais, pelo tratamento diferencial do homem e da mulher e pela adopo dos esteretipos que traduzem a crena na menor competncia da mulher, em relao ao homem.

    O sexismo moderno envolve a rejeio dos esteretipos tradicionais, que desvalorizam a mulher, e a crena de que a discriminao com base no sexo j no constitui um problema. alm disso, os indivduos que manifestam atitudes deste tipo tendem a considerar que os meios de comunicao social, e os prprios governos, costumam dedicar mais ateno mulher do que aquela que lhe devida, e inclinam-se a sentir uma certa averso pelas mulheres que exercem algum tipo de activismo poltico, em defesa dos seus direitos.cristina Vieira, 2003: 167.

    26 Vejam-se, a este respeito, por exemplo, as investigaes levadas a cabo por Flix Neto (1990; 1997) e por Deborah Best e John Williams (1990) e a reviso terica de estudos efectuada por Diane Ruble e Carol Martin (1998).27 Como pode ler-se em Cristina Vieira (2004), uma meta-anlise consiste num procedimento quantitativo de reviso de investigaes originais que se dedicaram ao estudo da mesma hiptese, no mbito do qual se recorre a indicadores estatsticos, como a magnitude do efeito (neste caso, o tamanho das diferenas entre os sexos), para a apresentao das concluses.

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    o tema que foi levada a efeito por Margaret Signorella e colaboradores/as (1993). As crianas muito pequenas so relativamente flexveis na utilizao dos esteretipos, pois entendem o gnero como uma categoria muito abrangente, onde podem ser includas diversas actividades e papis correlacionados entre si, como defendeu Aletha Huston (1983). Mas, a partir dos 3 at cerca dos 7 ou 8 anos de idade, com a progressiva aquisio da estabilidade do gnero, d-se um incremento das percepes estereotipadas acerca das caractersticas dos homens e das mulheres. Nesta faixa etria, as crianas no s conhecem quais so os esteretipos culturalmente

    aplicados aos homens e s mulheres, como tambm acreditam na veracidade de tais ideias27. Todavia, por esta altura, j so capazes de perceber que as actividades e os comportamentos prescritos pelos esteretipos de gnero no so cruciais para que um indivduo possa ser considerado do sexo masculino ou feminino. Isto , uma mulher pode desempenhar uma profisso mais comum nos homens, pode no saber cozinhar ou pode ainda gostar de desporto automvel e no por isso que se sentir menos mulher.

    Para Eleanor Maccoby (1998), embora seja possvel que a criana continue a aprender alguns esteretipos ou tenda

    27 Veja-se a obra de Susan Golombock e Robyn Fivush (1994) para uma compreenso mais alargada do modo como as crianas aprendem e utilizam os esteretipos de gnero.28 Consultar Diane Ruble e Carol Martin (1998).

    Segundo algumas investigaes descritas por Diane Ruble e Carol Martin (1998), entre os 3 e os 6 anos as crianas tendem a efectuar descries mais estereotipadas de si e dos outros, do que os adultos. Elas acreditam, no entanto, que os esteretipos se aplicam mais aos rapazes e raparigas da sua idade do que s pessoas mais crescidas. Embora as raparigas e os rapazes aprendam primeiro os esteretipos associados aos indivduos do mesmo sexo que o seu, por volta dos 8 ou 9 anos, a maioria delas j consegue compreender quais as expectativas da cultura em que vivem, a respeito dos papis e responsabilidades atribudas ao homem e mulher, como concluiu Eleanor Maccoby (1998).

    a refinar certos aspectos daqueles que j conhece, o ponto mximo do processo de estereotipia tende a ser atingido, em ambos os sexos, por volta dos 7 anos de idade. Parece, pois, que at entrada para a escola, a rigidez da adopo dos esteretipos tende a aumentar, sendo o perodo dos 5 aos 8 anos de idade considerado o mais sexista do ciclo de vida. Esta tendncia sofre, no entanto, um decrscimo nos anos subsequentes. De facto, na fase intermdia da infncia sensivelmente dos 8 aos 11 anos que corresponde ao estdio das operaes concretas, as crianas mostram-se cada vez mais propensas a encarar de forma flexvel a diversidade de papis, de actividades e de caractersticas da personalidade que cada um dos sexos susceptvel de exibir em diferentes situaes.

    O problema da flexibilidade com que utilizado o conhecimento estereotipado relacionado com o gnero, durante a adolescncia, tem levado os/as investigadores/ as a encontrar resultados nem sempre coincidentes. Por um lado, certas investigaes28 j evidenciaram que, em virtude das presses sociais para a assumpo progressiva de

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

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    responsabilidades enquanto membros de um ou de outro sexo, os/as adolescentes mais velhos/as parecem mostrar-se mais sensveis s crenas estereotipadas sobre os homens e as mulheres, ocorrendo, por isso, durante a fase final da adolescncia, uma relativa perda de flexibilidade cognitiva a esse nvel. Outros estudos tm, no entanto, concludo pela continuao da menor rigidez na utilizao dos esteretipos, mesmo durante os anos equivalentes ao ensino secundrio. Os autores de um trabalho que utilizou formas diferentes de medir a flexibilidade com que crianas e adolescentes de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os 8 e os 18 anos, se descreviam e avaliavam as outras pessoas, em funo dos modelos dominantes de masculinidade e de feminilidade, chegaram concluso de que, em ambos os casos, era evidenciada uma relao positiva com a idade29. Assim, desde os anos intermdios da infncia at ao final do ensino secundrio parecia ocorrer uma aceitao crescente da possibilidade de os prprios indivduos, ou as outras pessoas, poderem vir a desempenhar actividades no tpicas do seu sexo.

    A flexibilidade com que so utilizados os esteretipos parece, no entanto, variar com o sexo. Diversos estudos, descritos por Aletha Huston (1983), que envolveram amostras de crianas, concluem todos que quando foram encontradas diferenas entre os sexos, os rapazes revelaram possuir vises mais estereotipadas das caractersticas individuais

    29 Consultar, a este respeito, o trabalho de Phyllis Katz e Keith Ksansnak (1994).

    em funo do gnero do que as raparigas. Tambm Margaret Signorella e colaboradores/ as (1993), verificaram, na meta-anlise a que j fizemos meno, que as crianas, medida que se tornam mais conscientes dos esteretipos de gnero, acreditam cada vez menos (especialmente as raparigas) que esses esteretipos deveriam existir. Na extensa reviso narrativa que efectuaram de estudos publicados nos anos posteriores ao trabalho de Aletha Huston (1983), as investigadoras Diane Ruble e Carol Martin (1998) corroboraram novamente a maior tendncia dos rapazes para se revelarem menos flexveis do que as raparigas na aceitao e utilizao dos esteretipos.

    A tendncia das pessoas para enveredarem pelo uso dos esteretipos no seu funcionamento pessoal e social parece traduzir o recurso a uma certa viso ingnua de organizao do mundo, assente sobretudo num conjunto de teorias implcitas do comportamento, relacionado no s com a categoria sexual de pertena, mas tambm com a raa, a classe social e a etnia, para falar apenas em alguns dos factores que costumam abrir caminho a raciocnios simplistas desta natureza. O problema reside no facto destas lentes (turvas) conduzirem a uma viso limitada do mundo e acarretarem consequncias negativas para a pessoa (seja ela do sexo masculino ou feminino), tanto a nvel individual como colectivo, na vivncia de uma cidadania plena e na edificao de uma sociedade verdadeiramente democrtica e plural, onde coexiste singularidade e diversidade.

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    De que falamos quando falamos em cidadania?

    O termo cidadania no mbito da sua aplicao ao ensino e educao comeou a ser expresso corrente nos ltimos anos. No entanto,

    surgiu sem uma clara apresentao dos seus mltiplos significados. Por isso, importante questionarmo-nos sobre o que realmente a cidadania. Na realidade, este conceito problemtico, ambguo, e a histria tem mostrado que ao longo dos tempos lhe esto associadas diferentes concepes, que vo sendo retomadas, reformuladas ou mesmo criticadas enquanto outras novas vo surgindo. A cidadania um estado no qual (ou com o qual) a pessoa (ou o/a cidado/) tem os direitos e/ou obrigaes associados pertena a uma comunidade alargada, especialmente a um Estado.

    Uma referncia chave na literatura sobre cidadania Thomas Marshall (1893-1981), um professor de sociologia na Universidade de Londres, considerado um clssico no estudo do tema. Numa srie de conferncias realizadas na Universidade de Cambridge nos anos 50 do sculo XX conceptualizou a cidadania como um tipo especfico de estatuto legal de identidade oficial; juntamente, desenvolveu a noo de membro pleno de uma comunidade soberana que se auto-governa. Nos seus termos, a cidadania um estatuto conferido queles e quelas que so membros plenos de uma determinada comunidade. Tal como um estatuto legal, a cidadania confere o direito a ter direitos. A sua teoria de cidadania assenta num

    conjunto de trs tipos de direitos os direitos civis, direitos polticos e direitos sociais. Aqueles e aquelas que possuem o estatuto de cidados ou cidads so no que respeita aos direitos e responsabilidades a esse estatuto associados iguais. aspirao dos cidados e cidads implementar a plena igualdade, lutando pela progressiva concesso de direitos que aumente o nmero de pessoas a quem conferido o estatuto de cidadania.

    A preocupao de Thomas Marshall (1964) relativamente cidadania implicava procurar formas de (re)conciliar a democracia poltica formal com a continuidade da diviso da sociedade capitalista em classes sociais. A resposta que avanou para esta reconciliao residia na hiptese de existncia e promoo do chamado Welfare State Estado de Bem- Estar Social ou Estado-Providncia. Marshall argumentava que o Estado-Providncia poderia limitar os impactos negativos das diferenas de classe nas oportunidades de vida de todas as pessoas, ao mesmo tempo que permitia um comprometimento delas prprias com o sistema.

    Apesar de Thomas Marshall conceber a possibilidade de expanso dos direitos de cidadania atravs do conflito no seio da sociedade civil, o desenvolvimento histrico no deve ser entendido como um processo linear e evolutivo, segundo o qual se d uma acumulao de direitos que passam a ser aceites como garantidos. Pelo contrrio, os

    1.1.5.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

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    direitos alcanados devem ser defendidos e exercidos continuamente, o que implica a importncia no s da obteno do poder, como tambm o seu contnuo exerccio.

    O trabalho deste autor tem gerado muito debate. Para Ruth Lister (1997), uma das principais razes para o carcter controverso desta teoria de cidadania reside na forma como pode funcionar, simultaneamente, como mecanismo inclusivo e excludente. Esta classificao pode ser muito proveitosa para se mostrar, por exemplo, como se caracteriza a histria das mulheres como no-cidados. As mulheres casadas inglesas no fim do sculo XIX no teriam atingido ainda o primeiro estdio preconizado por Thomas Marshall podendo considerar-se pessoas a viver num sistema feudal. O mesmo se pode dizer das portuguesas, para quem s muito mais tarde (muitas conquistas so posteriores ao 25 de Abril de 1974) o estatuto de igualdade foi formalmente estabelecido na lei, e consubstanciado na Constituio Portuguesa de 1976. Assim, as crticas fundamentais a este modelo

    Thomas Marshall desenvolveu um esquema classificatrio

    e histrico. Identificou na cidadania trs elementos

    (estdios) conceptuais e historicamente distintos, construdos de forma encadeada e que fazem parte de um desenvolvimento tambm ele sequencial. De acordo com o autor, o primeiro estdio na cidadania a cidadania civil: os direitos inerentes so os direitos fundamentais liberdade individual liberdade da pessoa, liberdade de expresso, pensamento e f, o direito propriedade e o direito justia. J que os indivduos que possuem estes direitos civis bsicos existem perante a lei, trata-se de uma espcie de personalidade legal. Um segundo estdio a cidadania poltica: os indivduos tm direito a participar no exerccio do poder poltico como membros de um corpo investido de poder poltico. Este estdio representa o reconhecimento bsico e formal, dado pelas instituies legais e polticas, do indivduo como um membro igual entre iguais na sua comunidade, como algum que tem o direito (e as obrigaes relacionadas) de tomar decises (por exemplo, votar) sobre a comunidade. Finalmente fala do terceiro estdio no desenvolvimento da cidadania liberal que ter ocorrido durante o sculo XX: a cidadania social. A cidadania social envolve o acesso individual independente aos bens sociais bsicos providenciados pela comunidade como um todo a todos os seus membros. Assim, o acesso disponibilizado aos benefcios de bem-estar social cuidados mdicos e a toda a gama de programas de bem-estar, desde a educao habitao o elemento que Thomas Marshall identifica

    como cidadania social. Estas formas sociais de cidadania foram institucionalizadas na forma do Estado-Providncia. A batalha pelos direitos sociais fundamentais ainda hoje uma realidade, continuando a ser ainda uma aspirao e no, conforme o referido autor preconizava, o fim da

    histria do conceito de cidadania.

    30 As feministas criticam fortemente esta teoria j que nesta evoluo histrica dos direitos de cidadania no revem os direitos das mulheres. O facto de a teoria assumir que desde a sua implementao estes direitos foram universais i.e., abrangeram todas as pessoas ainda aumenta mais o argumento crtico. Como possvel pensar em todas as pessoas se metade da populao (as mulheres) estava excluda da cidadania poltica?

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    enquadramento terico | Gnero e cidadania

    por: Cristina Vieira (coord.), Conceio Nogueira e Teresa Cludia Tavares

    provem da sua lgica evolucionista que no inclui nem explica a histria da maioria de indivduos as mulheres30 ao assumir que no incio do sculo XIX a cidadania, na forma de direitos civis, se tornou universal, Thomas Marshall atira para as margens da universalidade a histria da cidadania das mulheres. Como sublinha Helena Arajo (1998), as mulheres foram excludas da esfera pblica, relativa ao Estado e economia, mas foram includas como subordinadas, confinando-se a sua aco esfera domstica, com nfase para o exerccio do dever da maternidade.Veremos adiante como no campo dos estudos de gnero os debates se tm centrado essencialmente volta do mecanismo excludente da cidadania e da questo entre a igualdade e a diferena.

    Depois da Segunda Guerra Mundial, o liberalismo social tem sido a teoria

    dominante sobre a cidadania nas democracias liberais ocidentais. Esta teoria assume um estatuto de igualdade e de cidadania plena para todos os adultos nascidos dentro do territrio de um Estado pr-existente. Parte do princpio que de um ponto de vista meramente terico e no que diz respeito vida pblica todos os membros das sociedades (ocidentais) tm um estatuto igual e possuem iguais direitos. Nos termos da tradio liberal, a cidadania definida primeiramente como um conjunto de direitos individuais, com funes diferentes, sendo que uma das suas funes mais frequentemente valorizada diz respeito autonomia individual. Ou seja: de acordo com esta teoria, os direitos so encarados sobretudo na sua vertente de possibilitadores e auxiliadores do espao para o desenvolvimento individual. O desenvolvimento pessoal, por sua vez, permite

    a promoo dos interesses e potencial individuais; permite a existncia e promoo da liberdade, isto , da existncia de seres auto-suficientes e libertos da interferncia de outros indivduos ou da comunidade. Desta perspectiva de direitos naturais e individuais, nasce a ideologia do individualismo, essencialmente abstracto, mas fundamentalmente em oposio comunidade, que assumida como potencial ameaa para essas mesmas liberdades individuais.

    Este individualismo abstracto desenvolvido pela lgica liberal depois do sculo XVIII, e continuamente exacerbado at aos dias de hoje, pode provavelmente explicar as ambivalncias da teoria da cidadania liberal face s noes de responsabilidades sociais e de direitos sociais. Assim, a nfase liberal na autonomia individual implica uma desconfiana bsica relativa noo e ideia de comunidade. O receio que a comunidade possa implicar constrangimentos aos interesses e desenvolvimentos pessoais tem dado origem a um afastamento progressivo de uma lgica colectivista de interesses comuns e partilhados.

    Na prtica, esta teoria no evita nem a persistncia da desigualdade, nem o aumento da excluso social, nem a crescente complexificao e

    (...) a exigncia mais premente dos povos europeus so os direitos cvicos e sociais que do forma a uma verdadeira cidadania democrtica. (...) O objectivo de introduzir os direitos sociais nos Tratados da unio europeia visa elevar o social, fazendo com que este deixe de ser uma mera correco ou simples ajustamento das contingncias da economia para ascender ao nvel que deve ocupar: o de uma categoria de pensamento, de poltica e de aco vinculada vida e ao direito que todos tm a levar uma vida digna de ser vivida.Maria de Lourdes Pintasilgo, 1992:18.

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    Guio de educao. Gnero e cidadania Pr-Escolar

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    dificuldade de resoluo dos problemas que as sociedades enfrentam. No presente, colocam-se seriamente em causa as perspectivas liberais sobre igualdade, liberdade, direitos ou representao poltica. A sociedade est cada vez mais complexa e perspectivas limitad