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Copyright s> 2005 b) Princeton University Press Título original On Bullshn: Capa e projeto grafico Victor Burton Díagramação Fernanda Garcia Preparação Lenv Cordeiro Revisão Marisa Rocha Motta Maria Isabel Sampaio Newlands [2005] Todos os direitos desta edição reservados a Editora Intrínseca Ltda. Rua Visconde de Pirajá 407 704 22410-003- Ipanema Rio dc Janeiro - RI Telefone: (21) 3204 9205 Fax: (21) 25)2-4913 www intrínseca com br Parajoan, de verdade SOBRE FALAR MERDA Um dos traços mais notáveis de nos- sa cultura é que se fale tanta merda. Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com sua parte. Mas tendemos a não perceber essa situação. A maioria das pessoas confia muito em sua capacidade de reconhe- cer quando se está falando merda e de evitar se envolver. Assim, o fenômeno nunca des- pertou preocupações especiais nem induziu uma investigação sistemática. Por causa disso, não temos uma idéia cla- ra do que é falar merda, da razão para que se tale tanta ou para que serve. E nos falta tam- bém uma avaliação conscienciosa do que is- so significa para nós. Em outras palavras, não dispomos de uma teoria. Proponho iniciar o desenvolvimento de uma compreensão teóri- ca do que significa falar merda, oferecendo al- gumas análises experimentais e exploratórias.

FRANKFURT, Harry. Sobre Falar Merda2

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Copyright s> 2005 b) Princeton University PressTítulo originalOn Bullshn:Capa e projeto graficoVictor BurtonDíagramaçãoFernanda GarciaPreparaçãoLenv CordeiroRevisãoMarisa Rocha MottaMaria Isabel Sampaio Newlands[2005]Todos os direitos desta edição reservados aEditora Intrínseca Ltda.Rua Visconde de Pirajá 407 704

22410-003- IpanemaRio dc Janeiro - RITelefone: (21) 3204 9205Fax: (21) 25)2-4913www intrínseca com br

Parajoan, de verdadeSOBRE FALARMERDAUm dos traços mais notáveis de nos-sa cultura é que se fale tanta merda.Todos sabem disso. Cada um de nóscontribui com sua parte. Mas tendemos a nãoperceber essa situação. A maioria das pessoasconfia muito em sua capacidade de reconhe-cer quando se está falando merda e de evitarse envolver. Assim, o fenômeno nunca des-pertou preocupações especiais nem induziuuma investigação sistemática.

Por causa disso, não temos uma idéia cla-ra do que é falar merda, da razão para que setale tanta ou para que serve. E nos falta tam-bém uma avaliação conscienciosa do que is-so significa para nós. Em outras palavras, nãodispomos de uma teoria. Proponho iniciar odesenvolvimento de uma compreensão teóri-ca do que significa falar merda, oferecendo al-gumas análises experimentais e exploratórias.Não vou considerar seus usos e abusos retó-ricos. Meu objetivo e apenas fornecer umadescrição aproximada do que e falar merda edo que não e - ou (em outros termos) arti-cular, de uma forma mais ou menos resumi-da, a estrutura desse conceito.

Qualquer sugestão sobre as condiçõeslogicamente necessarias e suficientes paraconstituir o ato de falar merda está destina-

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da a ser arbitrária. Por um lado, a expressãofalar merda é empregada livremente — comoum termo ofensivo genérico, sem um signi-ficado literal muito específico. Por outro, ofenômeno é tão vasto e amorfo que nenhumaanálise concisa e perspicaz de seu conceitoconsegue deixar de ser procustiana. Entre-tanto, deve ser possível dizer algo de útil,mesmo sem muita probabilidade de que se-ja conclusivo. Ate as questões mais básicas eIOpreliminares sobre o que é falar merda nãoapenas permanecem sem resposta comonem sequer são perguntadas.

Ate onde sei, pouquíssimos trabalhosforam desenvolvidos sobre o assunto. Nãoempreendi um levantamento sobre sua lite -ratura, em grande parte porque não saberiacomo fazê-lo. É certo que ha um lugar mui-to óbvio para se dar uma olhada — o OxfordEnglísh Díctíonary. O OED tem um verbete pa-ra falação de merda, nos volumes suplementa-res, e também outros para vários usos perti-nentes defalação e de outros termos relacio-nados. Farei considerações sobre algunsdesses verbetes no devido momento. Nãoconsultei dicionários de outras línguas quenão o inglês, porque não conheço as pala-vras paraf ilação de merda ou falação em qual-quer outro idioma. Outra fonte importanteé o título do ensaio The Prevalenee ofHumbug[A predominância da imposturaJ, de Max Black.1

Não estou seguro quanto à proximidade designificado entre a palavra impostura e a ex-pressão Jatar merda. E claro que essas palavrasnão são completa e livremente intercambiá-veis; são com certeza usadas de formas dife-rentes. Porem, essa diferença parece ter, notodo, mais a ver com questões de boas ma-neiras, e com alguns outros parâmetros re-tóricos, do que com as formas estritamenteliterais de significado nas quais estou inte-ressado. E mais educado, e menos pesado,dizer "impostura" do que "merda". No casodesta discussão, vou supor que não há ne-nhuma outra diferença importante entre osdois termos.1 Max Black, The Prevalenee ofHumbug (Itliaca: Cornell UniversityPress, 1985).

Black sugere uma serie de sinônimos pa-ra impostura, como os seguintes; embuste, de-turpação, lengalenga, conversa fiada, lorota, tapea-

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ção e charlataníce. Essa lista singular de equi-valentes não é muito útil. Entretanto, Blackenfrenta mais diretamente o problema deestabelecer o conceito do que é impostura eoferece a seguinte definição formal:IMPOSTURA: embuste enganador próximo damentira, em especial por meio de palavra ou atopretensioso, em relação aos proprios pensamen-tos, sentimentos ou atimdes.2

Uma formulação bastante similar poderiaser plausivelmente oferecida para enunciaras características essenciais de falar merda.2 íbid.. p. 143.Como uma preliminar para o desenvolvi-mento de uma descrição independente des-sas características, vou comentar os várioselementos da definição de Black.

Embuste enganador: Isso pode soar pleonas-tico. Sem dúvida, o que Black tem em men-te é que a impostura pretende ou tencionanecessariamente enganar, que seu embustenão é algo inadvertido. Em outras palavras,trata-se de uma coisa deliberada. Assim, se,por uma questão de necessidade conceituai,a intenção de enganar é uma característicainvariavel da impostura, então a qualidadede ser impostura depende, ao menos emparte, do estado de espírito de seu perpetra-dor. Esse estado de espírito não pode, por-tanto, ser idêntico a qualquer propriedadeseja inerente ou relacionai - do discursopor meio do qual a impostura é perpetrada.Sob esse aspecto, a propriedade de ser im-postura e semelhante a da mentira, que nãoe idêntica nem à falsidade nem a nenhumadas outras propriedades contidas na afirma-ção do mentiroso, mas que requer que ele afaça num determinado estado de espíritoa saber, com a intenção de enganar.

Unia questão adicional é se há algumacaracterística essencial à impostura ou àmentira que não dependa das intenções e dascrenças da pessoa responsável por ambas, ouse, pelo contrario, e possível que algum tipode afirmação se torne — uma vez que o fa-lante se encontre num determinado estadode espírito — um veículo para a imposturaou a mentira. Em certas descrições do atode mentir, não existe mentira nenhuma amenos que uma declaração falsa seja feita;em outras, o indivíduo pode estar mentindo

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mesmo que sua afirmação seja verdadeira,contanto que ele acredite que a mesma é in-verídica e que pretenda, ao fazê-la, enganar.E sobre criar imposturas e falar merda5 Podealguma espécie de afirmação ser qualificadacomo impostura ou merda, desde que (porassim dizer) o estado de espírito do falanteseja o correto, ou o enunciado deve tambémter características próprias?

Próxima da mentira: Tem de ser parte doargumento dizer que a impostura encontra-se "próxima da mentira", que, embora ten-do algumas de suas características eminen-tes, há outras que lhe faltam. Contudo, issonão pode constituir-se no todo do argu-mento. Afinal de contas, qualquer uso dalinguagem, sem exceção, revela não todosmas alguns dos traços característicos damentira — nem que seja ao menos o aspectode ser um uso da linguagem. Entretanto, se-ria certamente incorreto descrever qual-quer uso da linguagem como próximo damentira. A expressão de Black evoca a no-ção de algum tipo de contínuo, em que amentira se situa num certo segmento en-quanto a impostura está localizada exclusi-vamente em posições anteriores. Que con-tínuo poderia ser esse, ao longo do qual aimpostura so fosse encontrada antes damentira? Ambas são formas de embuste.Num primeiro olhar, não fica claro como adiferença entre essas variedades de embus-te poderia ser interpretada como uma dife-rença de grau.

FM especial por meio de palavra ou ato pretensioso:Existem dois pontos a serem observadosaqui. Primeiro, Black identifica a imposturanão apenas como uma categoria do discurso,mas da ação também; ela pode dar-se tantopor palavras quanto por atos. Segundo, seuuso do qualificativo "em especial" indica queBlack não considera a pretensão como ca-racterística essencial, ou totalmente indis-pensável, da impostura. Sem dúvida, muitasimposturas são pretensiosas. Além do mais,no que concerne a falar merda, "pretensãode merda" encontra-se muito próximo deser um lugar-comum. Contudo, inclino-mea pensar que, quando a merda é pretensiosa,isso acontece porque a pretensão é mais ummotivo que um elemento constitutivo desua essência. O fato de uma pessoa compor-

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tar-se pretensiosamente não é, parece-me,parte do que é exigido para tornar seu dis-curso uma ocorrência de falar merda. Isso e oque justifica, muitas vezes, a enunciarão des-se discurso. Todavia, não se deve presumir•iiiiiaiiuniBiiiiMiiiique falar merda tenha sempre e necessaria-mente a pretensão corno motivo.

Embuste (...) em relação aos próprios pensamen-tos, sentimentos ou atitudes: Essa cláusula de que operpetrador da impostura está criando umadeturpação de si levanta algumas questõesmuito centrais. Para começar, toda vez queuma pessoa deturpa de moto próprio qualquercoisa, ela está inevitavelmente deturpando opróprio estado de espírito. E possível parauma pessoa deturpar apenas este último -por exemplo, fingindo experimentar umdesejo ou um sentimento que na verdadenão tem. Mas suponhamos que o indivíduo,seja ao contar uma mentira ou de outra for-ma qualquer, deturpe alguma outra coisa.Nesse caso, ele está necessariamente detur-pando duas coisas: o que está dizendo ouseja, o estado de coisas que é o tópico ou oreferente do seu discurso — e, ao fazer isso,não pode impedir-se de deturpar o próprioespírito também. Assim, alguém que mentesobre quanto dinheiro tem 110 bolso ao mes-mo tempo dá essa informação e transmite aidéia de acreditar nela. Se a mentira funcio-na, a vítima é então duas vezes enganada, aoacreditar falsamente 110 conteúdo do bolsodo mentiroso e no que vai em sua mente.

Ora, não e provável que Black deseje queo referente da impostura seja, em todos oscasos, o estado de espírito do falante. Nãohá uma razão particular, afinal de contas, pa-ra que a impostura não seja a respeito de ou-tras coisas. E provável que Black queira di-zer que ela não se propõe basicamente a darao seu público uma idéia falsa do estado decoisas do tópico, seja qual for, mas que suaintenção principal é, antes, oferecer a essepúblico uma falsa impressão do que se passano espirito do falante. Na medida em que setrata de uma impostura, criar essa impressãoé seu propósito e objetivo essencial.

Entender Black ao longo dessas linhassugere uma hipótese que explica sua caracte-rização da impostura como "próxima damentira". Se minto a respeito de quanto di-

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nheiro tenho, então não estou fazendo umaafirmação explicita com relação às minhascrenças. Portanto, pode-se com alguma cre-dibilidade afirmar que, embora ao mentir euesteja deturpando o que se passa em minhacabeça, essa deturpação diferente daquelasobre a quantia em meu bolso — não é exa-tamente uma mentira. Pois não estou propa-lando por aí qualquer afirmação sobre o quese passa em minha cabeça. Nem a afirmaçãoque faço — por exemplo, "tenho vinte dólaresno bolso" implica qualquer declaraçãoque me atribua uma crença. Por outro lado. éinquestionável que, ao fazer a afirmação, for-neço uma boa base para se fazerem certosjulgamentos sobre o que acredito. Em parti-cular, ofereço um fundamento razoável paraque se suponha que eu creio ter vinte dóla-res no bolso. Já que essa suposição é por hi-pótese falsa, ao mentir, estou enganando osoutros com relação ao que se passa em meuespírito, mesmo que não esteja na verdadementindo sobre isso. Visto sob esse aspecto,não parece artificial ou impróprio conside-rar que estou deturpando minhas crenças deuma forma que é "próxima da mentira".

E fácil pensar em situações familiarespelas quais a descrição de Black sobre a im-postura parece confirmar-se sem problemas.Imagine um orador do Quatro de (ulho quediscursa bombasticamente sobre "nossogrande e abençoado país, cujos fundadores,sob orientação divina, criaram um novo co-meço para a humanidade". E com certezaurna impostura. Como a descrição de Blacksugere, o orador não está mentindo. Ele soestaria fazendo isso se tivesse a intenção deprovocar na platéia crenças que considerassefalsas, a respeito de questões como se nossopaís é grande, se é abençoado, se os fundado-res receberam orientação divina e se o queeles fizeram foi de fato criar um novo come-ço para a humanidade. Contudo, o oradornão se importa na verdade com o que a pla-téia pensa sobre os fundadores ou sobre opapel da divindade na historia de nosso paísou algo equivalente. O que motiva seu dis-curso não é o interesse no que qualquer umpensa sobre essas questões.

O que torna o discurso do Quatro deJulho uma impostura não é que o oradorconsidere suas afirmações falsas. Pelo con-

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trário, como sugere a descrição de Black, oorador pretende que essas afirmações trans-mitam uma certa impressão dele. Ele nãoestá tentando enganar ninguém sobre a his-tória americana. A opinião das pessoas so-bre ele é que o preocupa. Ele quer ser consi-derado um patriota, alguém com idéias esentimentos profundos sobre as origens e amissão de nosso país, alguém que aprecia aimportância da religião, que é sensível agrandeza de nossa história, cujo orgulhodessa história combina com a humildadeperante Deus, e assim por diante

A descrição que Black faz da imposturaparece, assim, adaptar-se confortável mentea certos paradigmas. Entretanto, não creioque apreenda de modo adequado ou comprecisão o caráter essencial do falar merda.Como ele diz sobre a impostura, é corretoafirmar que falar merda encontra-se próxi-mo da mentira e que aqueles que falam es-tão, de certo modo, deturpando-se. Contu-do, a descrição feita por Black desses doisaspectos encontra-se significativamentelonge da verdade. Tentarei fazer agora, ana-lisando um material biográfico referente aLudwig Wittgenstein, uma avaliação preli-minar, porem de foco mais preciso, das ca-racterísticas fundamentais do falar merda.

Wittgenstein disse uma vez que o frag-mento de verso a seguir, de Longfellow, po-deria servir-lhe de mote:33 Isso e relatado por Norman Malcolm cm sua introdução a Re-ccllcctions ofWittgenstein. R. Rhees (org.), (Oxford: Oxford University Press. 1984). p. XIII

Nos tempos antigos da arteOs construtores com todo cuidado trabalhavamCada minúscula e invisível parte,Pois os deuses em todo lugar se encontravam.O significado dessas linhas é claro. An ti -

gamente, os profissionais não se poupavamtrabalho. Labutavam com atenção e tinhamcuidado com os menores aspectos de sua lida.Todas as partes do produto eram considera-das, e cada uma delas projetada e feita paraser tal como deveria. Esses profissionais nãorelaxavam em sua zelosa autodisciplina,mesmo em relação àqueles detalhes de suaocupação que não eram comumente visí-veis. Embora ninguém tosse reparar se elesnão estivessem precisamente corretos, os ar-

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tífices seriam incomodados por suas cons-ciências. Dessa forma, não se varria nadapara baixo do tapete. Ou, pode-se tambémdizer, não se fazia merda.

E fácil produzir artigos feitos sem cuida-do, de qualidade inferior, que revelam seme-lhanças, até certo ponto, com o falar merda.Mas de que modo? Será essa semelhança a deque falar merda sempre ocorre de maneiradescuidada ou comodista, de que jamais éuma enunciação elegante, que em sua ex-pressão nunca há aquele delicado e atenciosodesvelo com os detalhes ao qual Longfellowalude? Será o falador de merda, pela próprianatureza, um idiota desmiolado? Será o seuproduto necessariamente sujo ou grosseiro?A palavra merda com certeza sugere isso. Oexcremento não é de modo algum projetadoou elaborado; é apenas emitido ou descarre-gado. Pode ter uma forma mais ou menoscoesa ou não, mas não é decerto trabalhado.

A noção de se falar merda com cuidado -so apuro envolve, assim, um certo esforçointerior. Uma atenção ponderada aos deta -lhes requer disciplina e objetividade. Elaacarreta a aceitação de padrões e limites queproíbem a tolerância com impulsos e capri-chos. E essa abnegação, em relação a falarmerda, que nos parece inadequada. Ela nãoestá, entretanto, fora de questão. A área dapropaganda e das relações publicas e, hojeem dia, a intimamente ligada área da políti-ca estão repletas de exemplos tão consuma-dos de falar merda que podem servir comoos paradigmas mais inquestionáveis e clássi-cos do conceito. E, nessas áreas, existem pro-fissionais extremamente sofisticados que —com o auxilio de técnicas avançadas e requi-sitadas de pesquisa de mercado, de levanta-mentos da opinião pública, de testes psico-lógicos e por aí afora — se dedicam de formaincansável a usar cada palavra e imagem queproduzem da maneira mais correta.

Entretanto, há algo mais a se dizer so-bre isso. Embora o falador de merda se con-duza da forma mais estudada e conscien-ciosa possível, continua sendo verdade queestá tentando levar alguma coisa. Há comcerteza em seu trabalho, como no do profis-sional relapso, um tipo de relaxamento queresiste ou engana as exigências de uma dis-ciplina desinteressada e austera. O modo

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pertinente de relaxamento não pode sercomparado, evidentemente, à simples ne-gligência ou desatenção com os detalhes.Tentarei no momento oportuno localizarisso com mais exatidão.

Wittgenstein dedicou grande parte de suasenergias filosóficas a identificar e combater oque via como formas insidiosamente noci-vas de "contra-senso". Ao que tudo indica,ele era assim na vida pessoal também. Isso édemonstrado num caso relatado por FaniaPascal, que o conheceu em Cambridge nadécada de 1930:Fiz uma operação para retirar as amígdalas e es-tava na Casa de Enfermagem Evelyn, sentindo-me triste. Wittgenstein fez-me uma visita. Euresmunguei: "Sinto-me como um cachorro atro-pelado." Ele ficou contrariado: "Você não sabecomo um cachorro atropelado se sente.

Ora, quem sabe o que aconteceu na ver-dade? Parece extraordinário, quase inacre-ditável, que alguém possa fazer objeções a*t Fania Pascal, "Wittgenstein: A Personal Mcmoir." in Rhees. Re-collections, p 28- 29.sério ao que Pascal relata ter dito. Essa ca-racterização de seus sentimentos — tão ino-centemente próxima ã expressão mais quecorriqueira "cachorro doente" — não é pro-vocativa o bastante para despertar uma rea-ção tão vivida ou intensa como a contrarie-dade. Se a comparação de Pascal e ofensiva,então que usos figurativos ou alusivos dalíngua não o seriam?

Talvez isso não tenha de fato ocorrido daforma como Pascal diz. Pode ser que Witt-genstein estivesse tentando fazer uma pe-quena piada, e esta não tenha funcionado. Eleestaria apenas fingindo repreender Pascal, sópelo prazer de uma hipérbole; e ela com-preendeu seu tom e intenção de forma erra-da, achando que Wittgenstein ficou contra-riado com sua observação, quando na verda-de ele só estava tentando reanimá-la comlima critica ou brincadeira jocosamente exa-gerada. Nesse caso, o incidente não é nem umpouco incrível ou estranho.

Mas, se Pascal não conseguiu reconhecerque Wittgenstein estava apenas provocan-do, talvez então a possibilidade de que eleestivesse falando sério não fosse tão fora depropósito. Ela o conhecia e sabia o que es-perar dele; sabia como ele a fazia sentir-se.

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O modo de entender ou não a observaçãodele tinha, assim, grandes probabilidades denão ser de todo incompatível com sua opi-nião de como ele era. Podemos ate suporque, mesmo se seu relato do incidente nãofor absolutamente fiel à intenção de Witt-genstein, ele é fiel o bastante à idéia de Pas-cal sobre Wittgenstein a ponto de ter feitosentido para ela. Para os propósitos destadiscussão, aceitarei o relato de Pascal literal-mente, supondo que, quando se tratou deusar uma linguagem alusiva ou figurativa,Wittgenstein foi na verdade tão despropo-sitado como ela o descreve.

Então, o que o Wittgenstein do relatodela considera tão censurável? Vamos suporque ele esteja correto sobre os fatos: ou seja,Pascal não sabe de fato como um cachorroatropelado se sente. Mesmo assim, quandodiz o que pensa, ela claramente não estámentindo. Mentiria se, ao fazer sua afirmação,estivesse na verdade passando muito bem.Pois, por menos que ela soubesse sobre a vi-da dos cachorros, deveria com certeza estarclaro para Pascal que, quando eles são atro-pelados, não se sentem bem. Assim, se elaestivesse de fato passando bem, teria sidouma mentira afirmar que se sentia como umcachorro atropelado.

O Wittgenstein de Pascal pretende acusa-la não de mentir, mas de outro tipo de de-turpação. Ela caracteriza seu sentimento co-mo "a sensação de um cachorro atropelado".Ela não está na verdade familiarizada com osentimento ao qual essa frase se refere. Natu-ralmente que a frase está longe cie significarpara ela um contra-senso absoluto; Pascalnão está falando disparates. O que diz temuma conotação inteligível, que ela com cer-teza entende. Além disso, Pascal de fato sabealguma coisa sobre a natureza da sensação aque a frase se refere: sabe ao menos que elaé indesejável e desagradavel, uma sensaçãoruim. O problema com sua afirmação é queela pretende transmitir algo mais que o sim-ples não estar bem. Sua caracterização dosentimento e muito específica; e excessiva-mente particular. O que ela experimenta nãoé uma sensação ruim qualquer, mas, deacordo com seu relato, o tipo inconfundívelde sensação ruim que um cachorro temquando é atropelado. Para o Wittgenstein

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da história de Pascal, a julgar por sua res-posta, isso e falar merda.

Ora, supondo-se que Wittgenstein con-sidera, de fato, que a caracterização de Pas-cal sobre como se sente é um exemplo de fa-lar merda, por que isso o impressiona dessaforma? A resposta, acredito eu, c que elepercebe uma falta de preocupação, digamosassim, com a verdade no discurso de Pascal.Sua afirmação não esta ligada à iniciativa dedescrever a realidade. Ela nem sequer pensaque sabe. a não ser de uma maneira muito va-ga, como um cachorro atropelado se sente.Sua descrição desse sentimento é, portanto,algo que ela está simplesmente inventando.Pascal cria isso do nada; ou, se o ouviu de al -guém, repete-o de forma displicente e sema menor consideração pelas coisas comorealmente são.

E por essa displicência que o Wittgens-tein de Pascal a censura. O que o deixa con-trariado é o fato de ela nem sequer se preo -cupar se sua afirmação está ou não correta.Existe uma grande probabilidade, é claro,de que ela esteja dizendo o que diz apenascomo um esforço desajeitado para falarcom vivacidade, ou de parecer jovial e bem-humorada; e não ha dúvida de que a reaçãode Wittgenstein do modo como ela vê —e absurdamente intolerante. Seja como for,seu significado parece claro. Ele reage comose percebesse que Pascal fala sem pensar,sem dedicar uma atenção conscienciosa aosfatos pertinentes. Sua afirmação não vem"elaborada com todo o esmero". Ela a enun-cia sem nem sequer preocupar-se em levarem conta sua exatidão.

A circunstância que aborrece Wittgens-tein não é que Pascal tenha errado em suadescrição de como se sente. Nem que elatenha cometido esse erro por descuido. Seudesleixo, ou falta de cuidado, não foi terpermitido que ura erro escapasse em suafala por causa de urn lapso negligente,inadvertido ou momentâneo da atençãoque dedicava a entender as coisas da ma-neira certa. Pelo contrário, a questão é que,até onde Wittgenstein pode perceber.Pascal oferece a descrição de um certo es-tado de coisas sem se submeter às restri-ções que a tentativa de fornecer uma repre-

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sentação precisa da realidade impõe. Seuerro não é que ela não tenha conseguidoentender as coisas, mas que nem ao menostentasse fazê-lo.

Isso e importante para Wittgensteinporque, justificadamente ou não, ele tomao que Pascal diz a sério, como uma declara-ção que pretende dar uma descrição infor-mativa de como ela se sente. Ele a vê envol-vida numa atividade para a qual a distinçãoentre verdadeiro e falso é crucial e, no en-tanto, como se não se importasse se o quediz é verdadeiro ou falso. E nesse sentidoque a afirmação de Pascal não está ligada auma preocupação com a verdade: ela não seimporta com o valor de verdade do que diz.E por isso que não pode ser observada comose estivesse mentindo; porque ela não pre-sume conhecer a verdade e, portanto, nãopode estar difundindo por querer uma pro-posição que supõe ser falsa: Sua afirmaçãonão está baseada nem na crença de que everdadeira, como uma mentira deve estar,nem de que não é verdadeira. E essa falta depreocupação com a verdade — essa indife-rença em relação ao modo como as coisasrealmente são — que considero a essênciado falar merda.

Farei agora algumas considerações (mui-to seletivas) sobre certos itens, no Oxford En-glísh Díctíonary, que são pertinentes ao esclare-cimento da expressão Jatar merda. O OED de-finefalação como "uma conversa ou discussãoinformal". A característica desse tipo de dis-cussão informal que constitui uma falação é,segundo me parece, algo assim: embora aconversa possa ser intensa e significativa, elanão é de certa forma "para valer".

Os tópicos característicos de uma fala-ção têm a ver com aspectos da vida bastantepessoais e carregados de emoção — comoreligião, política ou sexo. Em geral, as pes-soas relutam em falar muito abertamentesobre esses assuntos quando supõem quepodem ser levadas a sério. O que costumaacontecer numa falação é os participantesmanifestarem várias idéias e atitudes, a fimde ver como é ouvir a si mesmos falandoessas coisas e descobrir como os outros rea-gem, sem que se presuma que estejam com-prometidos com o que dizem: numa falaçãotodos entendem que as afirmações feitas

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pelas pessoas não revelam necessariamentesuas crenças ou sentimentos verdadeirosO principal é possibilitar um alto nível defranqueza e uma abordagem experimentalou algo aventureira dos assuntos em ques-tão. Portanto, providências são tomadaspara que se goze de uma certa irresponsa-bilidade, de forma a encorajar as pessoas acomunicarem o que vai em suas mentes,sem muita ansiedade quanto a serem co-bradas por isso.

Cada um dos participantes de uma fala-ção se fia, em outras palavras, num reconhe-cimento geral de que aquilo que ele expres-sou ou disse não é para ser entendido comosendo o que pensa de verdade ou acreditade coração. O propósito da conversa não étransmitir crenças. Assim, as costumeirashipóteses sobre a relação entre o que as pes-soas dizem e aquilo em que acreditam fi-cam eliminadas. As afirmações proferidasnuma falação são diferentes de falar merdaporque não há a pretensão de que essa rela-ção esteja sendo mantida. Elas se asseme-lham a falar merda em razão de não serem,de forma alguma, restringidas por umapreocupação com a verdade. Essa similari-dade entre falação e falar merda e tambémsugerida pela expressão metendo o malho, quese refere a um tipo de conversa que tambémcaracteriza as falações e na qual o termo ma-lho é, muito provavelmente, um substitutomais higiênico para merda.

Um tema semelhante é discernível numuso britânico de falação, no qual, de acordocom o OED, o termo refere-se a "tarefas oucerimoniais de rotina desnecessários; disci-plina excessiva ou 'cuspir e polir"; forma-lidades". O dicionário fornece os seguintesexemplos deste uso:O pelotão (.. ) sentiu-se molestado com todaaquela falação que ecoava pela estação (i. Gleed.Aríse to Conquer, vi, 51,1942); Eles nos removendoa guarda, nos marchando em Imha reta sob seusolhos, toda aquela falação (A. Baron, Human Kínd.XXIV. 178, 1953); a maçada e a "falação" ria vidade um membro do parlamento (Economíst, 8 defevereiro, 470 471,1958).

Aqui o termo falação se refere eviden-temente a tarefas imiteis, visto que não têmmuito a ver com a intenção básica ou com opropósito que justifica o empreendimento

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que as requer. Cuspir e polir e formalidadesnão contribuem, é de se supor, para os "ver-dadeiros" propósitos de militares ou de fun-cionários do governo, apesar de serem coisasimpostas por órgãos ou agentes que preten-dem conscienciosamente dedicar-se a essespropósitos. Portanto, as "tarefas ou cerimo-niais de rotina desnecessários" que consti-tuem a falação não têm ligação com os moti-vos legitimadores da atividade na qual se in-trometem, da mesma forma que as coisas di-tas pelas pessoas numa falação não estão liga-das a suas convicções estabelecidas, nem a fa-lação a uma preocupação com a verdade.

O termo falação é também empregado,num uso muito mais disseminado e familiar,como um equivalente pouco menos vulgar defalar merda. No verbete para falação com essesentido, o OED sugere o seguinte como defi-nitivo: "conversa ou escrita trivial, insinceraou falsa; contra-senso." Assim, não parece ca-racterístico da falação que ela deva ser neces-sariamente carente de significado ou semimportância; de forma que "contra-senso" e"trivial", além de sua imprecisão, parecem es-tar na pista errada. O foco sobre "insincera"ou "falsa" é melhor, mas precisa ser aguçado.''5 Deve se notar que inclusão da insinceridade entre suas condições essenciais implica que a falação não pode se < >riginar inadvertidamente; pois não parece possível ser inadvertidamente insincero.O verbete em questão também fornece asduas seguintes definições:1914, Notas Dialetais, IV, 162: Falação, conversasem propósito; "papo furado."1932, Suplemento Literário, Times, 8 de dezem-bro, 933 3. " Falação" é o termo de gíria para umacombinação de blefe, bravata, "papo furado" e oque se costuma chamar no Exército de "zomban-do da tropa".

"Sem propósito" e apropriado, masmuito amplo em seu alcance e algo impre-ciso. Engloba digressões e irrelevànciasinocentes, que não são invariavelmenteexemplos de falação; alem disso, dizer quea falação é sem propósito não deixa claroque propósito se pretende. A referência,em ambas as definições, a "papo furado"é mais útil.

Quando caracterizamos uma conversacomo papo furado, queremos dizer que oque sai da boca do falante e apenas isso.Mero vapor. A fala é vazia, sem substância

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ou conteúdo. O uso da linguagem não con-tribui, portanto, para o propósito ao quaJpretende servir. Nenhuma informação amais é comunicada, como se o falante tives-se apenas exalado. A propósito, há certassemelhanças entre papo furado e excre-mento que fazem papo furado parecer umequivalente especialmente apropriado defalar merda. Da mesma forma que papo fura-do e uma fala que foi esvaziada de todoconteúdo informativo, excremento é maté -ria da qual foram removidos todos os nu-trientes. Ele pode ser visto como o cadáverdos nutrientes, o que resta quando os ele-mentos vitais da comida foram exauridos.Desse ponto de vista, o excremento é umarepresentação da morte que geramos e, naverdade, que não podemos impedir de ge-rar no processo de manutenção de nossa vi-da. Talvez seja por tornarmos a morte tãoíntima que consideramos o excrementorepugnante. De qualquer forma, ele nãoserve mais ao propósito da manutenção doque o papo furado ao da comunicação.

Consideremos agora essas linhas do Can-to LX XI v, de Pound, que o OED cita em seuverbete para falar merda.

F.i, Snag, o que tem na Bíblia?CAuais são os livros da Bíblia?Diz, não fala merda pra MIM.Isso e uma avaliação dos fatos. A pessoa

interpelada é evidentemente vista comotendo, de alguma forma, afirmado conhecera Bíblia ou interessar-se por ela. O falantesuspeita que isso eram apenas palavras va-zias e exige que a declaração seja apoiadapor fatos. Ele não vai aceitar uma mera des-crição; ele insiste em ver a coisa em si. Ouseja, não quer um blefe. A ligação entre fa-lar merda e blefar é declarada explicitamen -te na definição com a qual as linhas dePound estão associadas:

Falar besteira; (...) também, blefar para conseguiráscoisas falando besteira.De fato, parece que falar merda envolve

algum tipo de blefe. Encontra-se, certamen-te, mais próximo de blefar que de contaruma mentira. Mas o que se deduz de sua na-tureza pelo fato de ter mais semelhanças comaquele do que com este? Qual é a diferençarelevante aqui entre o blefe e a mentira?

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Mentir e blefar são formas de embusteou de logro. Assim, o conceito mais funda-mental que caracteriza uma mentira 6 o defalsidade: o mentiroso é, em essência, al-guém que divulga de propósito urna falsida-de. O blefe, também, transmite uma coisafalsa. Entretanto, de forma diferente damentira pura e simples, ele é mais um casode tapeação que de falsidade. Isso é o que otorna próximo do falar merda. Pois a essên-cia de falar merda não e algofalso, mas adul-terado. De forma a avaliar essa distinção,deve-se reconhecer que um embuste ouuma adulteração não precisam ser, de mo-do algum (a parte a autenticidade em si),inferiores à coisa verdadeira. Aquilo quenão é genuíno não precisa ser defeituosopor causa disso. Pode ser, apesar de tudo,uma cópia exata. O problema de uma imi-tação não é a aparência, mas o modo comofoi feita. Isso aponta para um aspecto similare fundamental da natureza intrínseca de fa-lar merda: embora se origine sem preocupa-ção com a verdade, não precisa ser algo fal-so. O falador de merda está camuflando ascoisas. Porém, isso não significa que ele asentenda erradamente.

No romance Dírty Story, de Eric Ambler,um personagem chamado Arthur AbdelSimpson lembra-se do conselho recebidodo pai quando criança:Embora tivesse apenas sete anos quando meupai foi morto, ainda me lembro muito bem delee de algumas coisas que costumava dizer (... )Uma das primeiras lições que ele me ensinou foi:"Nunca conte uma mentira se você pode conseguir as coisasfalando merda

Isso supõe não apenas que há uma dife-rença importante entre mentir e falar mer-da, mas que este é preferível àquele. Ora, oSimpson pai não julgava, certamente, que fa-lar merda fosse superior a mentir em termosmorais. Nem é provável que considerassementir sempre menos eficaz que falar merda,na obtenção dos propósitos para os quais al-gum desses dois expedientes fosse emprega-do. Afinal de contas, uma mentira elaboradacom inteligência pode fazer seu trabalho6 E. Amblcr, Dírty Story (1967). I, 111. 25. A citação é ment tonadano mesmo verbete do OI i> que contem a passagem de Pound. Aproximidade da relação entre falar merda e blefar torna se tia

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grante. parece- me, no paralelismo das expressões: "falar merdapara conseguir as coisas' e "blefar para conseguir as coisas."com absoluto sucesso. Talvez Simpson jul-gasse ser mais fácil obter êxito falando mer-da do que mentindo. Ou então pensasseque, embora o risco de ser pego seja mais oumenos o mesmo nos dois casos, as conse-qüências do flagrante pudessem ser menosseveras para o falador de merda do que parao mentiroso. Na verdade, as pessoas tendemde fato a ser mais tolerantes com a falação demerda do que com a mentira, talvez porquesejamos menos propensos a tomar aquelacomo uma afronta pessoal. É possível quetentemos nos distanciar da falação de mer-da, porém somos mais inclinados a dar-lheas costas com um simples encolher de om-bros, com impaciência e irritação, do quecom o sentimento de ultraje ou de indigna-ção que a mentira quase sempre inspira. Oproblema de se compreender por que nossaatitude em relação a falar merda é, em geral,mais generosa do que em relação a mentir émuito importante, o que deixarei como umexercício para o leitor.

A comparação pertinente não está, to-davia, entre contar uma mentira e originaruma ocorrência específica de falar merda.O Simpson pai vê "conseguir as coisas fa-lando merda" como alternativa a contaruma mentira. Isso não envolve apenas origi -nar uma ocorrência de falar merda; envolveum programa de produção de merda em todoe qualquer âmbito que as circunstânciaspossam requerer. Essa talvez seja uma expli-cação para sua preferência. Contar umamentira é um ato com enfoque muito preci-so, projetado para inserir uma determinadafalsidade num ponto específico de um con-junto ou de um sistema de convicções, a fimde evitar as conseqüências de se ter aqueleponto ocupado pela verdade. Isso requerum grau de perícia no qual o contador damentira se submete a constrangimentosobjetivos, impostos por aquilo que ele temcomo sendo a verdade. O mentiroso é in-condicionalmente afetado pelos valores deverdade. Para inventar uma mentira qual-quer, ele tem de pensar que conhece a ver-dade e, a fim de inventar uma mentira efi-caz, precisa elaborar sua falsidade sob aorientação daquela verdade.

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Por outro lado, a pessoa que tenta con-seguir as coisas falando merda goza de mui-to mais liberdade. Seu enfoque e panorâ-mico em vez de particular. Ela não se limitaa inserir determinada falsidade num pontoespecífico e, dessa forma, não se vê restrin-gida pelas verdades que rodeiam esse pontoou que o atravessam. Ela está preparada,tanto quanto é preciso, para camuflar ocontexto também. Essa liberdade em rela-ção às restrições a que o mentiroso tem dese submeter não significa necessariamenteque sua tarefa seja mais fácil que a dele.Porem, a forma de criatividade na qual sefia e menos analítica e refletida do queaquela mobilizada na mentira; e mais ex-tensa e independente, com oportunidadesmais amplas para a improvisação, a nuance eo jogo imaginativo. Isso é menos uma ques-tão de habilidade que de arte. Daí o concei-to familiar do "artista de merda". Minhaopinião é que a recomendação oferecidapelo pai de Arthur Simpson reflete o fatode que ele se sentia muito mais atraído poressa forma de criatividade, sem levar emconta seu relativo mérito ou efetividade,do que pelas exigências mais austeras e ri-gorosas cia mentira.

O que o falar merda deturpa, essencial-mente, não é o estado de coisas ao qual se re-fere - que a mentira deturpa por ser falso- nem as crenças do falante em relação a es-se estado de coisas. Uma vez que falar mer-da não envolve falsidade, difere das mentirasem seu intento deturpador. O falador demerda pode não nos enganar, ou nem aomenos querer fazê-lo, sobre os fatos ou suainterpretação deles. E sobre sua intençãoque ele tenta necessariamente nos enganar.Sua única característica distintiva é que, decerta forma, ele deturpa seu objetivo.

Esse é o ponto crucial da distinção entreele e o mentiroso. Ambos representam a simesmos de modo falso, como se tentassemcomunicar a verdade. O sucesso de cada umdependo de eles nos enganarem a respeitodisso. O fato ocultado pelo mentiroso é suatentativa de nos afastar de uma apreensãocorreta da realidade; nós não podemos sa-ber sobre seu desejo de que acreditemosnuma coisa que ele supõe falsa. O fato que ofalador de merda oculta sobre si, por outro

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lado, e que o valor de verdade de suas afir-mações não tem um interesse fundamentalpara ele; o que não devemos descobrir é quesua intenção não é relatar a verdade nemocultá-la. Isso não significa que seu discursoseja anarquicamente impulsivo, mas que omotivo a orientá-lo e controlá-lo está pou-co interessado em saber como são de fato ascoisas que ele fala.

E impossível para alguém mentir a me-nos que julgue conhecer a verdade. Falarmerda não requer essa convicção. Umapessoa que mente esta reagindo a verdadee tem, ate certo ponto, respeito por ela.Quando um homem honesto fala, diz ape-nas o que acredita ser a verdade; enquanto,para o mentiroso, e indispensável que eleconsidere suas afirmações falsas. Entre-tanto, no caso do falador de merda, essascoisas não contam: ele não está nem do la-do do verdadeiro nem do falso. Seu enfo-que não é sobre os fatos, como o do ho-mem honesto e do mentiroso, a não serque sirvam a seu interesse de se safar como que diz. Ele não se importa se as coisasque fala descrevem a realidade correta-mente. Apenas as escolhe ou inventa parasatisfazer seu proposito.

Em seu ensaio De Mendacio [Sobre a mentira], santo Agostinho distingue oito tiposde mentira, classificadas de acordo com aintenção ou justificativa com que e contada.Mentiras de sete tipos são ditas apenas por-que se supõe que sejam meios indispensá-veis para algum fim que não a mera inven-ção de falsas convicções. Em outras palavras,não é a falsidade em si que atrai o mentiro-so para elas. Uma vez que são ditas somen-te em virtude de sua suposta necessidadecom relação a um objetivo que não é o logro,santo Agostinho as considera como ditascontra a vontade: o que a pessoa deseja defato não é contar a mentira, mas conse-guir seu objetivo. Não se trata, em suaopinião, de mentiras reais, e aqueles queas dizem não são mentirosos, no sentidomais estrito da palavra. E a categoria res-tante a que contém o que ele identificacomo "a mentira contada apenas peloprazer de mentir e enganar, ou seja, a ver-dadeira mentira"/ As mentiras dessa cate-goria não têm outro objetivo a não ser a

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propagação da falsidade. Elas são ditas sim-plesmente por dizer isto é, por puroamor ao logro:Há uma distinção entre a pessoa que conta umamentira e o mentiroso. Aquela mente contra avontade, enquanto este ama a mentira e passa otempo desfrutando seu prazer (... ) compraz-senela. exultando com a própria falsidade.®

O que Agostinho chama de "mentiroso"e de "verdadeira mentira" é algo raro e ex-' "De Mendacio' [Lytng], ín Treatíseson VarwusSubjects, In FathersoftheChurch, RJ Deferrari (org.), vol. k> (Nova York: Fathers of theChurch lOÇ-i). p. 100, Santo Agostinho sustenta que contar umamentira desse tipo e um pecado menos serio do que faze-lo emI ir - das categorias e mais serio que conta ía nas outras quatro.8 M „ p. 71) 6 Otraordinário. Todos mentem por vezes, mashá muito poucas pessoas para quem ocorre-ria com freqüência (ou mesmo sempre)mentir exclusivamente por amor à falsidadeou ao logro.

Para a maioria dos indivíduos, o fato deuma afirmação ser falsa já constitui em siuma razão, por mais fraca e facilmente supcrável que seja, para não ser feita. No casodo mentiroso genuíno de santo Agostinho,essa é uma razão a favor de se fazê-la. Parao falador de merda, não é algo a favor nemcontra. Tanto ao mentir quanto ao falar averdade, as pessoas são guiadas por suascrenças a respeito de como as coisas são.Isso as orienta quando tentam descrever omundo de forma correta ou descrevê-loenganosamente. Por essa razão, mentir in-capacita uma pessoa a dizer a verdade damesma forma que falar merda tende a fazer.Por um excesso de satisfação nesta ultima ati-vidade, que envolve fazer afirmações sem sepreocupar com nada, exceto com aquilo queconvém a alguém dizer, o hábito normal de seatinar com a realidade das coisas pode ate-nuar-se ou até perder-se. Tanto quem mentequanto quem fala a verdade atuam em camposopostos do mesmo jogo, por assim dizer. Cadaum reage aos fatos como os entende, emboraa reação de um seja guiada pela autoridade daverdade, enquanto a reação do outro desafiaessa autoridade e se recusa a satisfazer suasexigências. O falador de merda as ignora co-mo um todo. Ele não rejeita a autoridade daverdade, como faz o mentiroso, e opõe-se aela; simplesmente, não lhe dá a menor aten-

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ção. Em virtude disso, falar merda é um ini-migo muito pior da verdade do que mentir.

Aquele que se preocupa em relatar ouocultar fatos supõe, de alguma forma, quealguns deles são distintos e reconhecíveis.O interesse em dizer a verdade ou emmentir pressupõe que existe uma diferen-ça entre entender as coisas de forma erra-da e de forma certa, e que pelo menos àsvezes é possível perceber essa diferença.Quem pára de acreditar na possibilidadede identificar certas afirmações como ver-dadeiras e outras como falsas tem apenasduas opções. A primeira seria abrir mão dedizer a verdade e de enganar. Isso signifi-caria abster-se de proferir qualquer afir-mação sobre os latos. A segunda opção seriacontinuar fazendo afirmações que preten-dessem descrever o modo como as coisassão, mas isso não seria outra coisa senãofalar merda.

Por que se fala tanta merda? É claro queé impossível saber se hoje se fala relativa-mente mais merda que no passado. Há maiscomunicação de todo tipo em nossa épocado que já houve antes, mas a parte que eqüi-vale a falar merda pode não ter aumentado.Sem pressupor que sua incidência seja maioragora, vou mencionar algumas considera-ções que ajudam a justificar o fato de que is-so seja algo tão notável nos dias de hoje.

E inevitável falar merda toda vez que ascircunstâncias exijam de alguém falar semsaber o que está dizendo. Assim, a produ-ção de merda é estimulada sempre que asobrigações ou oportunidades que uma pes-soa tem de se manifestar sobre algum tópi -co excederem seu conhecimento dos fatospertinentes. Essa discrepância é comum navida publica, em que os indivíduos são comfreqüência impelidos — seja pelas própriasinclinações ou por exigência de outrema falar sobre questões em que são até certoponto ignorantes. Exemplos intimamenterelacionados se originam de uma convic-ção generalizada de que é dever do cida-dão. numa democracia, ter opiniões sobretudo ou, pelo menos, tudo aquilo que digarespeito à condução das questões de seupais. A falta de um nexo significativo entreas opiniões de uma pessoa e sua apreensãoda realidade vai tornar-se ainda mais grave,

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é desnecessário dizer, para alguém queacredite ser seu dever, como agente moralconsciencioso, avaliar acontecimentos econdições de todas as partes do mundo.

A atual proliferação do ato de falar mer-da tem também raízes muito profundas emvárias formas de ceticismo, que negam o fatode que possamos ter acesso confiável a umarealidade objetiva e rejeitam, portanto, apossibilidade de sabermos como as coisas naverdade são. Essas doutrinas "ante-realistas"minam a validade de todo esforço desinte -ressado para se determinar o que é verda-deiro e o que é falso, e até a falta de inteligibilidade da noção de investigação objetiva.Uma das reações a essa perda de confiançatem sido o afastamento da disciplina reque-rida pelo ideal da correção em direção a umtipo de disciplina completamente diferente,que é imposto pela perseguição a um idealalternativo de sinceridade. Em vez de buscarchegar primeiramente a representaçõesprecisas do mundo comum, o indivíduo sevolta para a tentativa de oferecer represen-tações honestas de si. Convencida de que arealidade não tem nenhuma natureza ine-rente, que ela pudesse ter esperanças deidentificar com a verdade sobre as coisas, apessoa dedica-se a ser fiel à sua natureza. Ecomo se percebesse que, uma vez que não fazsentido tentar ser fiel aos fatos, deve, em vezdisso, esforçar-se para ser fiel a si mesma.

Porém é absurdo imaginar que somosdeterminados e daí suscetíveis a descriçõescorretas e incorretas, embora supondo quea atribuição de determinação a tudo o maistenha sido exposta como um erro. Comoseres conscientes, existimos apenas em res-posta a outras coisas e não podemos conhe-cer a nós mesmos, de modo algum, sem co-nhecê-las. Além disso, não existe nada nateoria, e certamente nada na prática, quesustente a opinião singular de que a verdadesobre si é mais fácil de saber. Os fatos a nos-so respeito não são particularmente sólidose resistentes contra uma dissolução cética.Nossa natureza é, na verdade, enganosamen-te sem substância — muito menos estável einerente que a natureza das outras coisas. E,já que o caso é esse, sinceridade nada mais edo que falar merda.SOBRE O AUTOR

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Harry G. Frankfurt, renomado filósofo moral, é pro-fessor emérito de filosofia na Princeton University.Entre seus livros, incluem-se The Reasons of Love(Princeton), Necessíty, Volítion, and Love e The Importanceofwhat We Care About.4,