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(01 F762
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u!t parai Lfttia vez qu;, so transform< j que podert:ios principle; .i varios olhares, fsuasmdagagoes \ierertcttis e semtrv
-•;-. Disponibili/.'os da teoria <:y'io e urn dewio cada unta >:vindiea J-J. '".;; aAnaihf fV 'discoDjo' i>ntro
(argentiniS Pedro Navai
ISBN 85-88638-08-8
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• A do corpc inspire tambem:<jlo 4,
; as si -.aiividades. Asr:itadas peios autores
; rtanto, no ambito dam o acrescimo de
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-.i.ilo 5. Foucault, o discurso iiterario e a•:ge!ica. as autoras buscam no
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« a le:t!jra do texto liierario e entre teoria doenunciado e manifesfagoes discursivas nao-
- everbo-vouais.
Os artigos reunidos neste livro sao resultadode cmco anos de discussao e de pesquisasque o Grupo de Estudos- em Analise doDiscurso de Araraquara GEADA vemreatizando em tomo das propos-Foucault. Nossa tarefa e situa-lo no campo
,:=tudos da tinguagem, com aconsequencia de fazer frenle a outras,
iivas que nao v^em nessa postura aconstiiui^ao do que se poderia chamar de
dos fatos tingiiisticos," '-nice Sargentini & Pedro Navarro-Barbosa)
FOUCAULTE OS DOMINIOS DA LINGUAGEM
DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Vanice Sargentini & Pedro Navarro-Barbosa(Org;
FOUCAULTE OS DOMINIOS DA LINGUAGEM
DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
claraluzEDITOR A
2004
DiagramagaoClaudia de Oliveira
Projeto Grafico e Elaborate de CapaDez e Dez Multimeios/Galeria Design
Impressao e acabamentoGrdfica Supremo.
Sistema Integradoe Bibliotecas/UFES
Ficha Catalografica elaborada pela Se?ao de Tratamento da lnforma$ao da Biblioteca"Prof. Achtlle Bassi"- Institute de Clencias Matematicas e de Computa^ao - ICMC/USP
F652 Foucault e os dominios da linguagem: discurso, poder,subjetividade / Vanice Sargentini, Pedro Navarro-Barbosa. - Sao Carlos : Claraluz, 2004.260 p. : 21 cm
ISBN 85-88638-08-8
1. Analise do discurso. 2. Teoria de Foucault. I. Sargentini,Vanice, org. II. Navarro-Barbosa, Pedro, org. III. Titulo.
2004
Editora ClaraluzRua Rafael dc A. Sampaio Vidal, 1217
CEP 13560-390 - Centra / Sao Carlos - SPFone/Fax: (16) 3374 8332
www.editoraclaraluz.com.br
Sumario
Apresentacao.
CAPITULO 1Foucault e a teoria do discursoO enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistasMaria do Rosario Valencise GregolinFormagao discursiva em Pecheux e Foucault:uma estranha paternidadeRoberto Leiser Baronas.Uma teoria do discurso num certo prefacioMaria de Fatima Cruvinel
23
45
63
CAPITULO 2Foucault, o discurso e a HistoriaA descontinuidade da Historia: a emergenciados sujeitos no arquivoVanice Maria Oliveira SargentiniO acontecimento discursive e a construcaoda identidade na HistoriaPedro Luis Navarro-Barbosa
77
97
CAPITULO 3Foucault, o discurso e o poderEntre vozes, carries e pedras: a lingua, o corpo e a cidadena construcao da subjetividade contemporaneaCarlos Piovezani Filho 133Articulacoes entre poder e discurso em Michel FoucaultFrancisco Paulo da Silva .159
CAPITULO 4Foucault, o discurso e as subjetividadesA disciplinaridade dos corpos: o sentido em revistaNilton MilanezWeblogs: a exposicao de subjetividades adolescentes
.183
Maria Regina Momesso de Oliveira. .201
CAPITULO 5Foucault, o discurso literario e a linguagemimageticaTeorias e alegorias da interpretacao: no theatrumde Michel FoucaultMarisa Martins Gama Khalil 217Foucault nas visibilidades enunciativasNadea Regina Caspar 231
FQUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEMi &ISCURSO, PODER. SUB3ETIVIDADE
APRESENTAgAO
Foucault, como o imaginamos? Essa retomada do titulo que
Maurice Blanchot1 da as suas reflexoes sobre o filosofo Francespoderia bem sintetizar aquilo que pretendemos oferecer aos leitores,
com a organiza9ao de um livro cujo objetivo e compreender aspectos
fundamentals do pensamento desse autor e articula-los a analisedo saber e do poder que se manifestam na materialidade discursiva.
A retomada desse enunciado-titulo, entretanto, ja opera umdeslocarnento: nao se trata aqui de registrar impress6es ou
suposi<,;6es sobre a vida de Michel Foucault, falecido em 1984.Imaginar pode sugerir um discurso fantasioso, inventive, portantodesprovido de rigor cientifico — n3o que tenha sido essa a intencaode Blanchot. Mas imaginar pode ser tornado no sentido de
relembrar, de recordar, o que faz remissao a outra obra sobre ofil6sofog.
Imaginar e recordar. Imaginar e recordar. A juncao dessasduas palavras pode conduzir a outra leitura, a de que estariamos
convidando o leitor a fazer uma volta no tempo para conhecer ohomem por tras de sua obra. Aventura prazerosa, ja empreendida
por seus biografos. Novamente, uma ressalva aqui se faz necessaria:
este livro nao se destina a perscrutar a vida de Foucault, suasidiossincrasias, seus afetos e desafetos, palavras e atitudes que
poderiam qualifica-lo de tal ou qual modo ou enquadra-lo em um
"LANCHOT, M. Foucault como o imagine. Tradu<;iio de Miguel S. Pereira e Ana L''aria. Lisbon: Relogio D'agua Editora, s/d.
, R. .1 Recordar Foucault: os textos do Cxjloquio Foucault. Sao Paulo Bi-asihenso,
FOUCAULT E OS DOMiHIOS^DA^LINGUAgEM^DISCURSO, POOER, jUBJETTVrDADE
determinado padrao psicossocial, corno se faze-lo fosse possivel erelevante. Tampouco, enumerar Lima serie de adjetivacOes que, dada
a sua importancia no cenario intelectual e politico frances dos anos60, poderia rotula-lo como, por exemplo, o filosofo da geraciio
francesa de 68, o historiador das descontinuidades, aquele que
prodamou a morte do homem, o filosofo das genealogias do poder
e das praticas de subjetivacao dos corpos, o pensador da pos-modernidade on, ainda, o defensor do sistema, titulo que oincomodava.
Sem diivida, e precise reconhecer a dificuldade de separar ohomem da obra, sobretudo quando se estii diante de um pensadorque aprofundou e provocou importantes modificacoes em conceitoscentrais da historiografia francesa.
Embora nosso objeto de estudo seja a teoria das condicSes deemerge'ncia dos saberes e dos dispositivos de exercicio do poder enao a pessoa que foi Foucault, essa elisSo n3o e de todo possivel,
pois a sensibilidade que ele demonstrou as experiencias diversas,as conjunturas e as atmosferas culturais nas quais esteve envolto1'1
deixam-se fazer presentes nas analises que realizou das estruturasque subjazem a constituicao dos discursos, dos mecanismoscoercitivos que pesam sobre quern fala, do exercicio do poder nas
sociedades disciplinadoras e da estetica da existencia, o que atestaurn pensamento inquietante e em constante ebulicSo.
Deixemos falar, pois, a obra. Oual foi a contribuicao de Foucaultpara as ciencias humanas? Nao e de hoje que muitos tentamresponder a essa pergunta. E cada vez que um novo comentdrio
surge, o discurso fundador desse autor se desloca, se transforma ese dispersa nas diversas interpretacoes. Unidade na dispersao e o
" ROJAS, C. A. A. Os annales e a historiografia francesa: trad
e JurHndi r Malerba. Maringa: Ediiem, '2000.
E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 11
nue podemos constatar nas inumeras pesquisas que se orientamnas nocoes e nos principios foucaultianos. Estudos que procuram
objetivar a obra do filosofo sob varios olhares. Estudiosos que falamde lugares distintos, em busca de resposta as suas indagacoes. EsSo tantas e diferentes, como podemos observar nos titulos de
conferencias e seminarios realizados no Brasil na passagem dos
vinte anos de sua morte.Disponibilizar a comunidade academica um livro que pretende
discutir alguns pontos da teoria desse filosofo, numa data tao
significativa, e para n6s motive de satisfagao e um desafto. Satisfa^ao,
porque temos a oportunidade de reunir nos capitulos que seguemresultados de cinco anos de discussao e de pesquisas que o Grupode Estudos em Analise do Discurso de Araraquara - GEADA -vem realizando em torno das propostas de Foucault1; desafio, pois,
em meio as ciencias que reclamam a presenca desse autor, nossatarefa e situa-lo no campo dos estudos da linguagern, com a
consequ^ncia de fazer frente a outras perspectivas que nao veemnessa postura a constitui9ao do que se poderia chamar de estudo
dos fatos linguisticos.O desafio, na verdade, e duplo, Primeiro, £ necessario que nos
situemos dentro dos estudos linguisticos e, ao mesmo tempo, foradeles, ou seja, o objeto de nossas reflexoes nao e a materialidade
linguistica, mas a constituicao dos discursos e a possibilidade deserem enunciados. No entanto, so e possivel fazer uma analise dos
4 Vinculacto a pos-jrradua^ao em Lingiiisticii da Univerwidade E.stadiinl Pauli.sta (Unesp),alem da presence obra, o GEADA publicou tambem os seguinte.s titulos: GREGOLIN, M.R- V (org.). Filigranas do discurso: as vozes Ja historia. Araraqiiara: FCL/LalwratorioEditorial/UN ESP; Sao Paulo: Cultura Academica Editora, "000. GREGOLIN, M. R- V,CRUVINEL, M. F., KHALIL, M. C. (org.). Analise do discurso: entornos dn sentido.Araraquara: FCL/Labiiratorio Edicorial/UNESP; Sao Paulo: Cultura Academica Editora,2001. GREGOLIN. M. R., BARONAS, R. L. (org.)- Analise do discurso: a-s materialidadesdo sentido. Sao Carlos: Editora Claraluz, '2QG<2. QREGOLIN, M. R. V (org.) Discurso eniidia: a tultura do espetaculo. Sao Carlos: Editora Claralu?,. 2003.
jj FOUCAULT E OS DOMJNIO5 DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDAPE
discursos porque eles tern uma existencia material, porque eles
con tern as regras da lingua, de um lado, e aquilo que foi efetivamentedito, de outro.
Segundo, e preciso marcar tambem nossa posisao no interior
mesmo da vertente francesa de Analise do Discurso praticada aqui
nesses tropicos. Essa posicSo, subjacente as reflexoes dos autores,
insere-se num projeto de analise discursiva que, desde os ultimostrabalhos de Michel Pecheuxr>, desloca-se de um althusserianismo
stricto sensu para as propostas de Foucault e da Nova Historia. As
discussoes aqui realizadas registram, portanto, uma mudanca deperspective teorica, que se afasta de determinadas noc.oes erigidasno interior do materialismo historico, tais como: ideologia, aparelhosideologicos, divisao e luta de classes, para se aproximar de uma
perspectiva que concebe o discurso como pratica discursiva e opoder como algo que nao e localizavel em um unico polo.
Nesse sentido, a proposta que se encontra formulada nodesenvolvimento de cada uma das reflexoes reunidas neste livro
tenciona por em pratica aquilo que reivindica J-J. Courtine6 aoanalisar os efeitos da alianca entre marxismo e linguistica para aAnalise do Discurso. Para esse autor, os projetos de pesquisaprecisam devolver ao discurso sua espessura hist6rica, isto e, asanalises que tomam o discurso como objeto devem considerar o
modo como historicamente efetua-se o cruzamento entre os regimesde praticas e as series enunciativas disperses e heterogeneas que oanalista seleciona.
Sabemos que o percurso hist6rico de constituicao do
•TECHEUX, M. O discurso; estimura ou acontecimento. Tradu9ao de Eni P. Orlandi, 2.ed., Campinas: Pontes, 1907.
COURTINE, J-J. O discurso inatingivet: marxismo e linguistica (1065-1985). In:CONRADO, V L. A. (org). Cademos de tradu^ao, n. 6. Traducao de Heloisa M. Rosario.Porto Alegre: Univer.sidade Federal do Rio Grande du Sul, ahr-jun, 1909, p. 5-18.
FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDflDE 13
dispositive teorico de interpretacao no qual se tornou a Analise do
piscurso registra um dialogo com Michel Foucault, marcado ora
por aceitacao, ora por uma necessidade de reelaboracao, ora por
recusa das nocoes e dos principios que ele elaborou7.
A entrada do filosofo nessa ciencia do discurso se fez de modo
restrito, quando as analises comecaram a denunciar a necessidade
de se olhar para o discurso nao mais como uma mSquina fechada ehomogenea. Nesse momento, segundo registros sobre o
desenvolvimento. da Analise do Discurso, a nocao de "formacao
discursiva", desenvolvida por Foucault em sua Arqueologia do saber,e redefmida por Michel Pechuexs, que o faz, no entanto, mantendoainda o vinculo com a nocao de ideologia. A presenca de Althusser
nos anos GO e 70 e muito forte.Em outros momentos, Foucault e negado, porque se acredita
que ele sustenta um discurso marxista paralelo!'. Segundo seuscriticos, Foucault mata a historia, uma vez que nao trabalha com
as nocoes de ideologia, de divisao e de luta de classes; soma-se aisso o fato de que ele, conforme Pecheux1", nao teria considerado,em suas analises das condicoes de possibilidade do discurso, a
categoria marxista da contradicao.Vale lembrar que, enquanto a Analise do Discurso reunia
esforcos para compreender os discursos politicosf com o objetivo deoferecer um instrumento para a sua leitura, Michel Foucault
enipenhava-se na tarefa de ouvir e de tirar do anonimato o recalcado
essa relate entre os dois filosofos, ver GREGOLIN, M.R. Foucault e Pecheux naanalise do discurso. Dialogos £? Duelos. Sao Carlos; Claraluz, 20O4.
Sobre o consenso de que a no9ao de "forma^ao discursiva" tenha sido tomada deernprestimo a Michel Foucault, ver aqui o testo dfc Roberto Leiser Baronas, no qual ele
!) lscute a "paternidade" dessa no^ao.LECOURT, D. Siir I'archeoloeie du savoir, a propos de M. Foucault. La Pensee, agosto
l970-X, M. Reim.ntons de Foucault a Spinoza. In: MALDIDIER, D. L'inquictude du
. Paris: Cendres, 1900.
14 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
da razao ocidental", inaugurando aquilo que, anos depois, tornou-se alvo de interesse dos pesquisadores: os discursos do cotidiano.
Poderfamos l is tar ainda outros exemplos dessa relagaoconflituosa e, ao mesmo tempo, de harmonia entre Michel Foucault
e a Analise do Discurso, mas deixemos essa missao aos autores. O
que nos cabe nessa apresentacao e enfatizar a necessidade de marcar
a posicao do filosofo no campo dos estudos do discurso; salientarque, vinte anos depois de sua morte, as suas propostas continuam
vivas e provocando inquietacoes.
A denominacao dos capf tu los deste l ivro evidencia a
aproximacao entre M. Foucault e os dominios da linguagem,
sobretudo no que tange a discurso, historia, poder e subjetividade.
No capitulo 1, intitulado Foucault e a teoria do discurso, os
autores abordam pontos fundamentals do pensamento de Foucault,
desenvolvidos na fase em que sua preocupagao estava voltada a
teoria do discurso e a explicitacao do metodo de analise.
Maria do Rosario Gregolin, em 0 enundado e o arqmvo: Foucault
(entre)mstas, presenteia-nos com um texto que mescla o sabor da
narracao ficticia de uma entrevista entre ela e Michel Foucault,
que teria ocorrido no verao de 1969, na calcada da Rive Guache,
com a compreensao de conceitos centrais desenvolvidos em A
Arqueologia do Saber. O torn ficcional do qual se serve a autora
poderia, em principio, impedir a emergencia de um discurso
comprometido com o fazer cientifico. A entrevista ficticia, entretanto,
emoldura e da um certo dinamismo a esse texto, pois, com esse
recurso, a autora deixa o discurso de Foucault falar de si mesmo, o
que nos desvenda um grande texto metalingiiistico. Nesse sentido,
o texto expoe sua heterogeneidade, sendo marcado ora por aspas,ora por italico, num exercicio linguistico-discursivo constants para
11 FOUCAULT, M. Hist6ria da Loucura. Sao Paulo: Per spec tiva, 1SI78.
FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA UNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 15
deixar que o pensamento do filosofo se sobressaia a voz da autora
cuja interpretacao, presente na formulagao das perguntas, destina-
se a tracar um "programa de leitura" que oferece ao leitor elementos
para compreender as tr£s nog5es pilares que sustentam o metodo
arqueologico: enunciado, formacao discursiva e arquivo.Formafdo discursiva em Pecheux e Foucault: uma estranha
patermdade, de Roberto Leiser Baronas, apresenta uma discussao
circunstanciada sobre o conceito de formacao discursiva, resgatando
os contextos nos quais tal sintagma surge ou sofre reconfiguracoes.
O autor evidencia que a nogao de formagao discursiva tern
"paternidade partilhada" e apresenta a relevancia de se repensar
esse conceito em sua complexidade, considerando tanto o genero
como o posicionamento ideologico como "elementos essenciais no
fornecimento das condicoes que possibilitam a irrupcao das
discursividades". Nesse sentido o texto expoe a atualidade e a
produtividade desse conceito para as teorias do discurso.Em Uma teoria do discurso num certo prefdcio, Maria de Fatima
Cruvinel busca elementos para compreender a teoria do discurso
esbogada no prefacio de As palavras e as coisas. O texto de Cruvinele, antes de tudo, um convite ao leitor para se deixar conduzir pelo
"discurso diferente" de Foucault, um discurso apaixonante e, ao
mesmo, provocante, pois "perturba todas as familiaridades do
pensamento" da "epoca (seculo 20) e lugar (Ocidente)" em que se
encontrava o filosofo. De inicio, a autora alerta-nos sobre as
especificidades desse prefacio, um texto "nada facil", que usa a escrita
de Jorge Luis Borges como "isca" para seduzir o leitor a aceitar a
tarefa que Ihe e proposta no texto que antecede a obra, a saber: oestudo da emergencia e da ruptura do saber em periodos historicos
especificos da civilizacao ocidental.O capitulo 2, Foucault, o discurso e a Historia, contempt
tambem, aspectos da arqucologia do discurso, mas o foco, iies
16 FOUCAULT E OS POMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDAOE
momento, sao os pontos de contato entre discurso e historia, numa
perspective que considera a Historia como descontinuidade e odiscurso como acontecimento.
Vanice Maria Oliveira Sargentini, com o texto A descontiinudade
da Historia: a emergenaa dos sujeltos no arqmvo, faz uma reflexao
sobre aspectos teoricos que permitem tracar um dialogo entre a
arqueologia dos discursos empreendida por Foucault e o dispositive
de interpretacao erigido pela Analise do Discurso. Essa tarefa e
realizada de um lugar discursive determinado, que consiste na
retomada de estudos realizados tanto por lingiiistas quanto por
historiadores que veem a necessidade de estabelecer uma relagao
entre "linguistica e hisuJria", Essa retomada, entretanto, e feita
tambem de um lugar de fala especifico: o estudo da linguagem
atravessado por uma perspective discursiva, o que justifica a busca
por pontos de contato entre as propostas de Michel Pecheux e de
Michel Foucault. Essas reflexoes possibilitam a autora realizar uma
segunda tarefa: analisar o modo como o sujeito £ visto no interior
dos estudos do discurso e, com isso, '''apontar a emergencia do sujeitono arquivo".
Com o proposito de abordar a construcao da identidade na
produgao discursiva da midia impressa sobre o V Centenario do
Descobrimento do Brasil, Pedro Luis Navarro-Barbosa, em O
acontechnento discursive e a construfdo da identidade na Historia, situa
sens estudos a partir das nocoes foucaultianas de historia e de
acontecimento discursive. Conduz-nos a elucidative apresentacao
das conduces de aparicao desses conceitos, encaminhando-nos a
reflexoes sobre o sujeito do discurso, visto como uma "plurahdade
de posicoes e uma descontinuidade de funcoes". O autor desenvolve
a a n a l i s e da produgao de iden t idade nac ional no d iscurso
jornalistico, considerando a dispersao de emmciados Jmageticos e
verbais que atualizam temas em confronto sobre o aniversario de
FOLfCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 17
500 anos do Brasil.
O fio condutor em torno do qual apresentam-se as reflexoes
realizadas no capitulo 3, Foucault, o discurso e o poder, aponta
para a fase genealogica das investigacoes de Foucault, na qual o
autor volta seu olhar para a relagao entre poder, saber e as diversas
fbrmas de sujeicao do corpo na sociedade moderna.
A a r t i cu lacao entre discurso, poder e a producao de
subjetividades do tempo presente e explorada no artigo Entre.
-oozes, carries e pe.dras: a lingua, o corpo e. a adade na constru$ao da
subjetimdade contemporanea, de Carlos Piovezani Filho. O autor
observa o controle das representacoes e dos usos da lingua e do
corpo na midia, bem como das formas de circulacao no espaco
urbano. Para tal parte do texto de M. Pecheux — Dehmitafdes,
inversoes e deslocamentos — e observa como entre o z>er e o di%?,r
estao presentes os projetos urbanos e as politicas linguisticas
das sociedades ocidentais. Apoiando-se na nogao de sociedade
de controle, proposta por Foucault, recupera como se dao as
relagoes entre as edificacoes urbanas e o controle dos usos
lingiusticos e dos embelezamentos do corpo no f ina l do seculo
passado e inicio deste. Em conclusao, aponta para a "ubiqiiidade
midiatica de nossa sociedade de controle", que engendra modelos
de conduta p a r a o compor tamento l inguagei ro , para a
apresentagao corporal e para a ocupagao da cidade.
Francisco Paulo da Silva, partindo do principio segundo o
qual a descricao do funcionamento discursivo solicita a procura de
"algo a mais" que a simples representacao entre palavras e coisas,
examina o modo como se efetuam as Articulafdes entre poder e discurso
em Michel Foucaidt. O objetivo do autor e, portanto, "rastrear" nas
propostas do filosofo o conceito de poder, a relacao entre saber e
poder, os efeitos de poder, a sua atuacao sobre o sujeito e os modos
de materializagao dessa relacao no discurso. As formulagoes
18 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE
enunciativas analisadas por Silva oferecem-lhe condicoes para a
compreensao das estrategias de subjetivacao empregadas para
produzir uma subjetividade capaz de "funcionar socialmente no
dominio da ordem que se deseja estabelecer".
A tecnologia politica do corpo inspira tambem as discussoes
real izadas no qua r to capitulo, Foucault, o discurso e as
subjetividades. As analises apresentadas pelos autores inscrevem-
se, portanto, no ambito da genealogia do poder, com o acrescimo de
uma proposta que visa articular a nocao de pratica de subjetivacao
com a producao discursiva da identidade.
Centrando-se em questoes relativas ao sujeito, Nil ton Milanez,
em A disciplinaridade dos corpos; o sentido em remsta, explora a analise
de um texto verbal e nao-verbal, presente em uma revista,
compreendida como um suporte que encerra dispositivos de
consti tuicao de ident idades . O autor pauta-se nos estudos
foucaultianos que apontam o sujeito como uma fabrica9ao historica
e, portanto, vulneravel ao mecanismo da disciplinaridade e do
controle. Observa, pela analise, que a disciplinaridade dos corpos
transfer ma em objetos as pessoas, monitorando-as a partir de"tecnicas de si".
Weblogs: a exposicao de suhjetimdades adolescentes, de Maria Regina
Monies so de Ol ivei ra , e um texto que procura a n a l i s a r
os"ciberdiarios" - paginas pessoais nas quais internautas na faixa-
etaria entre 14 e 21 anos registram suas experiencias afetivas, suas
musicas p refer idas, suas frustracoes entre outros assuntos do
cotidiano - com base no conceito foucaultiano de "tecnicas de si". 0
depoimento de "blogueiros" e as experiencias que a autora encontra
narradas nos ivfevdes tin ados a esse uso permitem que ela veja nessas
paginas pessoais uma pratica discursiva de busca e de construcao
de identidades, uma vez que acabam por se constituir em "uma
tecnica de si" para os adolescentes "blogueiros".
POUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUASEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 19
No quinto e ultimo capitulo, Foucault, o discurso literario e
a linguagem imagetica, as autoras buscam no pensamento do
filosofo Frances aspectos te6rico-metodologicos que permitem tracar
um paralelo entre dispositivo de interpretacao e a leitura do texto
literario e entre teoria do enunciado e manifestacoes discursivas
nao-verbais e verbo-visuais..
A questao da interpretacao esta no centro das reflexoes
realizadas no texto Teorias e alegorias da interpre.tafao: no theatrum
de Michel Foucault, de Marisa Martins Gama Khalil, que focaliza o
discurso literario na sua fun^ao primeira, que e a de ser um "espa90
instigador de leituras e de interpretagoes". Essa natureza do fazer
literario permite que Khalil estabeleca um dialogo entre Michel
Foucault e um numero delimitado de literatos universais — Miguel
de Cervantes, Italo Calvino, Jorge Luis Borges, Henry James,
Guimaraes Rosa, Fernando Pessoa e Camoes -, o qual nos conduz
por um percurso anali t ico que desvenda nao "uma teoria da
interpretagao, mas a sugestao de uma rede de apontamentos
plausiveis para uma interpretacao da interpretacao".
Em Foucault nas visibt.hda.des enuna.at7.vas, Nadea Regina Caspar"
apresenta como questionamento a possibilidade de aplicar a teoria
arqueologica em outras materialidades discursivas que nao somente
a verbal. Para isso, a autora explora os conceitos de enunciado, de
acontecimento e de visibilidades enunciativas, com o objetivo de
evidenciar que a proposta do metodo arqueologico revela-se tambem
interessante para a analise de textos imageticos e de textos que
conjugam palavra, som e imagem, como e que o caso da linguagem
cinematografica.
Foucault alerta-nos que as margem de urn livrojamais sao nitidas
rtem ri.goromme.nte determmadas: alem do titulo, das pnmeiras linhas e
do ponto final, alf.m de sua coufigurafdo niterna e, da forma que Ihe da
®itto?iomia, elf. estd preso em um sistern'a de remissoes a outros Irvros,
20 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
outros textos, outrasfrases: no em uma rede1*. Assim, todo livro - e este
nao poderia ser diferente - e, ao mesmo tempo, espaco de reuniao e
dispersao. Conscientes dessa teia na qual todo texto se plasma e da
qua) tlra sen sentido, convidamos nossos leitores a habitarem as
proximas paginas, completando-as ou recompondo-as com sua
leitura.
Vanice Sargentim e Pedro Navarro-Barbosa
Capitulo 1
Foucault e a teoria do discurso
rOUCAULT, M A arqueologia do saber Rio <!e .FanL-iro Furense Universitaria,p.26.
FQLJCAUIT E OS DOMINIp_S_DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDflDE 23
O enunciado e o arquivo: Foucault (entre )vistas13
Maria do Rosai-jo Valencise Gregotin*
I Ha um conceito que e fundamental para o seu metodo
• arqueologico: o enunciado. Tanto que ele ocupa todo o terceiro
capitulo de A Arqueologia do Saber1*. A sua defmicao se faz por
oposicoes a outros conceitos (frase, proposi£ao, speech acts) e pela
analise da relacao entre enunciado e lingua. For que o enunciado
ocupa esse lugar central no seu metodo? Qual e o seu conceito de
enunciado?
A discussao sobre o enunciado ocupa todo capitulo III da
Arqueologia do Saber, cujo titulo e, justamente, O enunciado e o arquivo.
Como o proprio nome diz, quis mostrar a relacao de dependencia e
de hierarquia entre essas duas nocdes - a mais ampla (arquivo) e a
mais molecular (enunciado} do metodo que estou propondo. Todo
o capitulo se articula a partir de duas questoes, derivadas da minha
reflexao sobre o que eu investiguei nos meus trabalhos anteriores15:
Naquele verao de 1900. quando Pans esteve clara como ntinca, eu podena te-!c>encontrado. A cal^ada da Rive Gauche fei-vilhava dt; transeuntes absortos demais na vida.Estariamos sentados num daqueles cates cm que pululam pessoas lendo jornal. Enquancoconversavamos, sobre a mesa, pousada, estaria a primeira editito da Arqueotogia da Saber(os livi-os sao passaros que voarn e dc repente pinisam sua fuia plumagem sobre as nossasmaos) e ele interrompia a fala, de quatido em quando, para .sorver lentos goles de cKa.* Prafessora da Univei'sidade Estadual Paulista, Araraquara, SP. Coordenadora do GrupoJe Estudos de Analise do Discurso de Araraquara (GEADA).14 FOUCAULT, M. (lyey). A Arqueologia do Saber. Trad. bras. Luis Felipe Baeta Neves.Rn> de Janeiro: Forense Universitaria. 1986'.''' No momento de^ta entrevista, em 1969, ana da publicafao de A Arqueologia do Saber,Foucault ja havia publicado A Historia da Loucura (19B^), O Nascimentu da Clinica (19G3) e•^i palavran e ax Coisas ( I96f i ) A Arqueolugia e um momento te6rico-inetodo!6gico, deleiiexao solire esses traballiot; antenores.
24 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DI5CUR5O, PODER, SUB3ETIVIDADE
"o que e o enunciado?" e "como a teoria do enunciado pode se ajustar
a analise das formacoes discursivas?". A elas vou tentar responder,
nesse capitulo III, seguindo certos passos: primeiro, definindo o
que entendo por "enunciado"; logo a seguir, destacando as
caracten'sticas da "funcao enunciativa"; depois, teorizando a
"descricao dos enunciados"; para, entao, a partir da exposicao das
caracteristicas do enunciado (raridade, exterioridade, aciunulo),
chegar a desenvolver a articulacao entre os conceitos principals
que tenho manipulado em meus trabalhos - "enunciado" / "formacao
discursiva" / "arquivo". Como pode ver, o enunciado {ou, como
espero ter deixado claro, a.Jimcdo enunciativa} e a unidade elementar
do discurso. Em sen modo de ser singular (nem inteiramente lingiiistico,
nem exdusivamente material) o enunciado e indispensdvel para que se
possa dizer se hd ou ndo frase, proposicao, ato de hnguagem. [...J ele ndo
e, em si mestno, uma unidade, mas s'mi uma funpao que, cruza um dominio
de estruturas e de unidades possiveis e que faz com que aparecam, com
conteudos concretes, no tempo e no espa$o. {1986, p. 98-99). Se o descrevo
a partir de oposicoes com outras unidades — frase, proposicao, atos
de Hnguagem - e para marcar as diferencas e para acentuar que os
estudos lingiiisticos sempre deixaram o enunciado como um resto,
um elemento residual e, portanto, pressuposto, mas nao analisado.
Se voce seguir minha exposicao, ate certo ponto didatica, nesse
capitulo III , podera ver que o enunciado se distingue desses tres
conceitos porque:
a) ao contrario da proposi9ao, o enunciado esta no piano do
discurso e, por isso, nao pode ser submetido as provas de
verdadeiro/falso. Por isso, diferentemente da proposicao logica, para
os enunciados nao ha formulacoes equivalentes (por exemplo,
"ninguem ouviu" e diferente de "e verdade que ninguem ouviu"
quando os encontramos em um romance. Trata-se de uma mesma
FOUCAULT E OS DQMINIQS DA HNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 25
estrutura proposicional, mas com caracteres enunciativos bastante
distintos);b) ao contrario da frase, o enunciado nao esta, necessariamente,
submetido a uma estrutura l inguist ica canonica {como, em
port ague's, sujeito-verbo-predicado), isto e, nao se encontra um
enunciado encontrando-se os constituintes da frase. Um quadro
classificatorio das especies botanicas e constituido de enunciados
que nao sao "frases"; uma arvore genealogica; um livro contabil; a
formula algebrica; um grafico, urna piramide... todos tern leis de
uso e regras de constru9ao que sao diferentes daquelas das frases.
Por isso, nao parece possivel defmir um enunciado pelos caracteres
gramaticais da frase {1986, p. 93);
c) o enunciado, parece, a primeira vista, mais proximo do que
se chama os speech acts (atos de Hnguagem). No entanto, diferentemente
das pesquisas pragmaticas da filosofia analitica inglesa, nSo
proponho procurar o ato material {falar e/ou escrever); ou a intencao
do individuo que esta realizando o ato (convencer; persuadir etc.)
ou o resultado obtido (se foi "feliz" ou nao). O que procure e descrever
a operacdo que foi efetuada, em sua emergencia — nao o que ocorreu antes,
em termos de mtenfao, ou o que ocorreu depots, em termos de "eficdcia" -
was sim o que se produziu pelo proprio fato de ter sido enunciado — e
precisamente neste enunciado (e nenhuin ontro) em circunstancias bem
determinadas (1986, p. 94).
Para defmir o enunciado, alem de mostrar suas diferencas com£sses conceitos {frase, proposi^ao, speech acts), tambem o correlaciono
com o conceito de lingua. Quero mostrar que lingua e enunciadonao estao no mesmo nivel de existencia. Dou como exemplo dessa
"lerenca as letras que estao numa mdqurna de escrever, que naoCOnstituem enunciados; no entanto, quando eu as disponho ern uma
Pagma - seguindo regras que vem do sistcma da lingua - tornam-ei-iunciado. A lingua e um sistema de construcao para enunciados
26 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
possiveis. No entanto, para a analise arqueologica nao interessa
esse campo de virtualidades das formas lingiiisticas, porque nao
basta qualquer reahzacao material de eleimntos lingiiisticos, ou qualquer
emergencia de signos no tempo e no espafo, para que mn enunciado aparefa
e passe a existir (1986, p. 98}. Porque o que torna uma frase, uma
proposi9ao, um ato de Imguagem em um enunciado e justamente a
funfdo enunaativa-. o fato de ele ser produzido por um sujeito, em
um lugar institucional, determinado por regras socio-historicas que
defmem e possibilitam que ele seja enunciado. Toda a discussao
sobre o conceito de enunciado e feita para precisar o objeto da
descricao arqueo!6gica: nao o enunciado atomico — com sen efeito de
sentido, sua origem, sens hmites e sua individualidade - mas sim o campo
de exercicio dafunfao enundativa e as condifdes segimdo as quais elafaz
aparecerem nnidades diversas (que podem ser, mas nao necessanamente,
de ordem gramatic.al ou logica] (1986, p. 122).
E essa funpao enunciativa que interessa a Arqueologia. Por
isso, desenvolvo-a no item 2 do capitulo III, momento em que discuto
o exercicio dessa funfao, suas condicoes, suas regras de controle, o
campo em que ela se realiza.
2 Entende-se, entao, que o enunciado e um conjunto de signos
• emfunfao enunciatwa. Portanto, ser um elemento do nivel
enunciativo e a primeira caracteristica do enunciado?
Sim, a primeira e a mais fundamental. Insisto nesse ponto,
porque ha Lima relacao muito especial entre o enunciado e o que ele
enuncia. Essa relacao e diferente daquela que existe entre outros
pares: entre o significante e o significado; entre o nome e o que ele
designa; entre a frase e seu sentido; entre a proposicao e o seu
referente. Entre o enunciado e o que ele enuncia nao ha apenas
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSQ, PODER, SUB3ETIVIDADE 27
relacao gramatical, logica ou semantics; ha uma relacao que envolve
os sujeitos, que passa pela his toria , que envolve a propria
materialidade do enunciado.
3 Exatamente esses serao os pontos discutidos a seguir. Voce
• poderia falar um pouco sobre a relacao entre o sujeito e o
enunciado?
O sujeito do enunciado nao pode ser reduzido aos elementos
gramaticais. Veja, por exemplo, que, em uma formulacao verbal,
mesmo quando nao aparece gramaticalmente a primeira pessoa,
ha sujeito. Do mesmo modo, a relacao do enunciado com o sujeito
que o enuncia nao e a mesma se um mesmo conjunto de signos
estiver em uma conversa ou em um romance (por exemplo, "deitei-
me cedo ontem" pode ser dito por um sujeito qualquer e pode
aparecer num livro de Proust como Em busca do tempo p&rdido). Para
que um enunciado exista e necessario assinalar-lhe um "autor" ou
uma iustancia produtorat!i. Mas esse "autor" nao e identico ao sujeito
do enunciado (em termos de natureza, status, funcao, identidade).
Existem romances nos quais ha varies sujeitos que enunciam. Isso
nao e caracteristica apenas dos textos romanescos - e uma
caracteristica geral, j& que o sujeito do enunciado nao e o rnesmo de
um enunciado a outro; essa fun9ao pode ser exercida por diferentes
sujeitos, isto e, um umco e mesmo indimduopode ocupar, alternadame.nte,,
em uma serie de enunciados> diferentes posi^oes e assumir o papel de
diferentes sujeitos (1986, p. 107). Num enunciado como "duas
quantidades iguais a uma terceira sao iguais entre si" a posi9ao de
sujeito e neutra, pois pode ser ocupada por qualquer enunciador.
Ja em "ja demonstramos que..." o sujeito e localizado em uma serie
lu Essa figiu-a discur-siva do "autor", Foucaulc tratarS em seu texto 0 qua sum autor? (1971).
28 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LJNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
enunciativa, fixado no interior de um dominio constituido por um
conjunto finito de enunciados ditos antes e que sao retomados - ha
a existencia previa de um conjunto de operacoes efetivas que talvez
nao tenham sido realizadas por um unico sujeito. Ao contrario, em
"chamo de reta a...", o sujeito do enunciado e o sujeito da operagao.
Toda essa discussao e muito interessante, pois o que torna uma
frase em um enunciado e o fato de podermos assinalar-lhe uma
posi^.ao de sujeito. Assim, descrever uma formulacao enquanto
enunciado consiste em determinar qual e a posicao que pode e deve
ocupar todo mdividuo para ser sen sujeito (1986, p. 109). Todas essas
questoes relacionadas ao sujeito do enunciado levaram-me a concluir
que nao e preciso, pois, conceber o sujeito do enunciado como identico ao
autor da formulacao, nem substancialmente, nemfuncionalmente. Ele nao
e causa, ongem ouponto departida dofendmeno de articulacao escrita ou
oral de. uma frase; nao e, tampouco, a inten$ao significativa que, invadindo
silenciosamente o terreno das palavras, as ordena com o corpo invisivel de
sua intuigao; nao e o niicleo constante, imovel e identico a si mesmo de uma
serie de operacoes que as enunciados, cada um por sua vez, viriam
manifestar na superftcie do discurso. E um lugar determinado e vaxio que
pode ser efehvamente ocupado por indimduos diferentes; m-as esse lugar
em. vex de ser defimdo de uma vez. por todas e de se manter umforme ao
longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia - ou melhor, e
varidvel o bastante para poder continuar identico a si mesmo, atraves de
vdrias frases, bem como para se modificar a cada uma (1986, p. 109).
4 Outra caracteristica do enunciado e o fato de que ele tern
• se-mpre margens povoadas de outros enunciados {1986, p. 112).
Ha uma relacao do enunciado com a serie de formulacoes com as
quais ele coexiste. Isso atesta sua historicidade. Do seu ponto de
vista, essa e mais uma diferenca entre frase, proposicao e o enunciado.
POUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 29
Ao contrario daquelas (que mesmo isoladas, amputadas de todos
os elementos a que podem remeter, continuam sendo frases e
proposicoes, sendo reconheciveis pelos seus elementos gramaticais
e logicos) o enunciado tern que ser correlacionado a um campo
subjacente. Derivada dessa ideia, que insere o enunciado no campo
da intertextualidade, pode-se pensar no papel da memoria na
producao dos sentidos?
Quando se trata do enunciado, o efeito de contexto so pode ser
determinado por uma rede verbal. As margens nao sao, tampouco,
identicas para todos os enunciados: o modo de presenga de outros
enunciados e diferente, quer se trate de um romance ou de uma
conversa rotineira, pois o halo psicologico de uma formulacao e
comandado de longepela disposicao do campo enunciativo (1986, p. 112).
Desse modo, o que chamo de "campo associativo" forma uma trama
complexa:
a) Ele e constituido pela serie das outras formula9oes, no
interior das quais o enunciado se inscreve;
b) Ele e constituido, tambem, pelo conjunto das formulacoes a
que o enunciado se refere (implicitamente ou nao) seja para repeti-
las, seja para modifica-las ou adapta-las; seja para se opor a elas,
seja para falar de cada uma delas. Por isso, todo enunciado liga-se a
uma memoria e, assim, nao ha enunciado que, de uma forma ou de
outra, nao reatualize outros enunciados (1986, p. 113);
c) Ele e constituido, ainda, pelo conjunto das formulacoes cuja
possibilidade ulterior e propiciada pelo enunciado e que podemv'ir depois dele como conseqiiencia, sua seqtiencia natural ou sua
replica;
d) Ele e cons t i t u ido , f i na lmen te , pelo conjunto das
coes cujo status e comparti lhado pelo enunciado em
30 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
questao, em relacao as quais se apagara ou tomara um ]ugar
(sera valorizado, conservado, sacralizado e oferecido como objeto\ ' ' J
possivel a um discurso future). For estar imerso nesse movimento
que institui sua enunciabilidade, pode-se diz&r, de modo geral, que
uma seqiiencia de elementos linguisticos so e enunciado se estiver imersa
em um campo enunciativo em que apareca como elemento singular
(1986, p. 113).
Com tudo isso, quero dizer que, desde sua raiz, o enunciado
se delineia em um campo enunciativo onde tern lugar e status, que
Ihe apresenta relacoes possiveis com o passado e que Ihe abre urn
mturo eventual. Imerso nessa rede verbal, ele so pode ser apanhado
em uma trama complexa de producao de sentidos e, por isso,
podemos concluir com uma caracteristica geral e determinante sobre
as relacoes entre o enunciado, o funcionamento enunciativo e a
memoria em uma sociedade: ndo hd enunciado em geral, livre, neutro e
independente; mas sempre um enunciadofazendo parts de uma serie ou de
um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apotando
e deles se disttngiundo: ele se tntegtu sempre em umjogo etmticiativo (1986,
p. 114).
5 Segundo sua proposta arqueologica, a quarta condicao para
• que uma seqiiencia de elementos linguisticos possa ser
considerada e analisada como um enunciado t§ a sua existencia
material. Sobre essa questao, o sen texto lanca uma pergunta:
poderiamos falar de enunciado se uma voz ndo o tivesse enunaado, se
uma superjicie ndo registrasse os seus sigiios, se ele ndo tivesse tornado
corpo em um elem.ento sensivel e se ndo tivesse de.ixa.do marca - apenas
aigims instantes — em uma memoria ou em um espafo? (1986, p. 115).
Do seu ponto de vista, do que se compoe essa materialidade doenunciado?
6
POUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 31
O enunciado e sempre apresentado em uma espessura material,
que o constitui. Ele e caracterizado por seu status material e sua
identidade e sensivel a uma modificacao desse status, dependendo
do genero de texto em que esta inserido. A materialidade e
constitutive do enunciado: ele precisa ter uma substancia, um
suporte, um lugar, uma data. Alem disso, e necessario que essa
materialidade possa ser manipulada pelos enunciadores e, por isso,
ha um regime de materialidade repetivel (1986, p. 117) defmida por
certas instituicoes, como a literatura, a ciericia, o juridico etc. Essa
repetibilidade material define antes possibilidades de reinscri9ao e
de transcricao (mas tambem limiares e l imites) do que
individualidades limitadas e pereciveis.
A identidade do enunciado esta submetida, tambem, aos limites
que Ihe sao impostos pelo lugar que ocupa entre outros enunciados.
"A terra e redonda" e um enunciado diferente antes e depois de
Copernico: apesar de o sentido das palavras nao ter mudado,
modificou-se a relac5o dessa afirmagao com outras proposicoes. O
mesmo conjunto de elementos verbais e inserido em um campo de
estabihzacdo que permite, apesar de todas as diferencas de enunciacao,
repeti-los em sua identidade e fazer surgir um novo enunciado (1986,
P- 119). Ao mesmo tempo, institui-se um campo de utilizacdo, que
permite a sua constancia, a manuten9ao de sua identidade atraves
dos acontecimentos singulares das enuncia9oes.
Isso significa que os enunciados agenciam a memoria,
constroem a historia, projetando-se do passado ao futuroP
Certamente. Ao inves de ser uma coisa dita de forma definilwa -
perdida no passado como a de.ci.mo de uma batalha, uma catdstrofe
a ou a morte de um rei - o enunciado, ao mesmo tempo em que
32 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSQ, POPER, SUBJETIVIDADE
surge em sua materialidade, aparece com, um status, entra em redes, se
coloca em campos de utilizacao, se oferece a transferencias e a modiftcacoes
possiveis, se Integra a operacoes e em estrategias onde sua identidade se
mantem oi/ se apaga. Assim, o enunciado arcula, serve, se esquwa, permits
ou impede a reahzacdo de, um desejo, e docil ou rebelde a interesses, entra
na ordem das contestacoes e das lutas, torna-se tema de apropriacdo ou derivahdade {1986, p. 121).
7 Quais sao, pois, as tarefas da descrigao dos enunciados?
A grande tarefa que se propoe na descri^ao dos enunciados ea de defmir as condi9oes nas quais se realizou o enunciado, conduces
que Ihe dao uma existencia especifica. Esta existencia faz o enunciado
aparecer em rela?ao com um dominio de objetos; como jogo de
posicoes possiveis para um sujeito; como elemento em um campo
de coexi.stencia; como materialidade repetivel. No entanto, acredito
que ainda nao desenvolvi uma teoria do enunciado: essa e uma tarefa
que deixo para o future, para que eu ou outros a fagam. For ora,
tomo apenas o cuidado de fazer algumas precisSes terminologicas,
fixando um vocabulario, ja que estou operando com conceitos sematribuir-lhes exatamente o significado que tern para os gramaticos,
para os logicos e para os lingiiistas. For exemplo, posso te dar um
pequeno glossario, so por precaucao17:
performance linguistics: todo conjunto de signos efetivamenteproduzidos em lingua natural {ou artificial);
POUCAULT E OS POMINIOS DA LINGUAGEM^DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 33
fyrtnulacao: ato individual {ou, a rigor, coletivo) que faz surgir,
em Lim material qualquer e segundo uma forma determinada, esse
p-rupo de signos; e um acontecimento demarcavel no espaco e tempo,relacionado a um autor e pode constituir um "ato de fala" (speech
ad};frase ou proposicao: unidades que a gramatica e a logica podem
reconhecer em um conjunto de signos;enunciado: chamaremos enunciado a modahdade de existencia propria
desse conjunto de signos: modalidade que Ihe permite ser algo diferente de
uma serie dt, tracos, algo diferente de uma sucessao de marcas em uma
substancia, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser
humano; modalidade que Ihepenmte estar em rela$ao com um dominio de
objetos, prescrever uma posifao dejinida a qualquer sujeito possivel, estar
situado entre outras performances ve.rbais, estar dotado, enfim, de uma
materialidade, repetivel (1986, p. 123);formacao discursiva: lei de serie, principle de dispersao e de
reparti9ao dos enunciados;discurso: conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo ststema de
formacao (discurso clinico, economico, da historia natural, etc.) {1986, p.124).
8 Apesar de afirmar que ainda nao desenvolveu uma teoria -
• no sentido forte do termo - acho que ja estao delineadas as
Hnhas-mestras do metodo arqueologico. Voce poderia pontuara%umas caracteristicas da natureza dessa descricao dos enunciados
esta em elaboracao?
Realmente, eu adverti que ainda nao e a hora de formularteoria. O que pretendo, por enquanto, e inostrar como se pode
Qrganixart semfalha, sem contradicao, sem nnposicao interna, um dominio
34 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
em que, estao em questao os enunciados, sen prmdpio de agtitpamentos, as
grandes unidades lustoricas que eles podem constituir e. os metodos que
permitem descreve-los (1986, p. 132). Acredito, no entanto, que alguns
tracos mais gerais da descrigao ja estao enunciados no capitulo III
da Arqueologia do Saber. Trata-se de uma descri^ao historica, mas
que nao pergunta pelo sentido secreto dos enunciados e sim o que
significa o fato de terem aparecido e nenhum outro em seu lugar na
evidencia da linguagem efetiva (1986, p. 126). Trata-se de uma
descrigao que se diferencia da Hermeneutica: a polissemia - que
autoriza a hermeneutica e a descoberta de um outro sentido — diz
respeito a frase e aos campos semanticos que ela utiliza. O enunciado
nao e assombrado pela presenca secreta do ndo-dito, das significacoes ocultas,
das repressoes; ao contrdrio, a maneira pe.la qual os elementos ocultos
fuucionam e podem ser restituidos depende da propna modalidade
enundativa: sabemos que o "ndo-dito", o "reprimido", nao e o mesmo -
nem em sua estrntura nem em seu efeito - quando se trata de um mundado
matemdtico e de um enunciado economico, quando se trata de uma
autobiografta on da narracdo de um sonho. (1986, p. 127)'s. Trata-se
de uma descricao que nao ere que o enunciado tenha uma clareza
total: as analises gramaticais, logicas etc. tomam o enunciado como
tao obvio, que nao os analisam. A tarefa da arqueologia e tentar
tornar visi'vel e analisavel essa transparencia tao proxima que
constitui o elemento de sua possibilidade. Nem oculto, nem visivel,
o nivel enunciativo estd no limite da linguagem (...) o subito
aparecimento de uma frase, o lampejo do sentido, o brusco indice da
designacdo, surgem sempre no dominio do exercido de uma
enundativa (1986, p. 130).
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEHi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 35
9 A segunda pergunta que se coloca, nesse capitulo III da
0 Arqueolog!.a, indaga sobre as relacoes entre o enunciado e as
formacoes discursivas. Mais clararnente, voc^ pretende pensar como
se relacionam o enunciado e as formapoes discursivas, no interior
do me"todo arqueologico...
Partindo do problema da descontmmdade no discurso e da
singularidade do enunciado, procure analisar certas formas de
grupamentos enigmaticos. Os principios de unificacao desses
grupamentos nao sao nem gramaticais, nem logicos e exigiram que
eu me voltasse para o problema do enunciado. Foi assim que eu
percebi que as dimensoes proprias do enunciado sao utilizadas na
demarcacao das formacoes discursivas. O que eu descrevi como
fonnafao discursiva constitui grupos de enunciados, isto e, conjunto
de performances verbals que estao ligadas no nivel dos enunciados.
Isso supoe que se possa defmir o regime geral a que obedecem seus
objetos, a forma de dispersao que reparte regularmente aquilo de
que fa lam, o sis tema de seus referenciais; que se defina o regime
geral ao qual obedecem os diferentes modos de enunciacao, a
distribuigao possivel das posicoes subjetivas e o sistema que os
define e prescreve. A defmigao de formacoes discursivas ocupa todo
o capitulo II da Arqueologia do Saber.
10 E dessa defini9ao, podemos deduzir o que voce entende
como "discurso" e "pratica discursiva"?
Em minhas obras anteriores, usei o conceito de discurso de
°rma muito flutuante, polissemica, entendendo-o ora como dominio
de todos os enunciados; ora como grupo individualizavel de
>; ora como pratica r eg ul amenta da de um certo numero
36 FOUCAULT E O5 DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
de enunciados. A partir de minhas reflexoes sobre as formacoes
discursivas, posso agora chamar de "discurso" a urn con-junto de
enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formacdo discursiva;
ele e constituido de wn nimie.ro limitado de enunciados, para os quais
podemos definir um conjunio de condicoes de existencia; e, deparle. aparte,
histonco — fragmento de lustona, nmdadc, e desconhnuidade na propria
historia, que coloca o problema de sens propnos limites, de sens cort.es, de
suas transformacoes, dos modos especificos de sua temporalidade (1986,
p. 135-36). Do inesmo modo, posso definir pratica discursiva como
um conjunto de regras anommas, histoncas, sempre determinadas no tempo
e no espaco, que definiram, em uma dada epoca e para mna determmada
area social, econ.om.ica, geogrdfica ou hngiiistica, as condifoes de exercicio
dajjmcdo ennnciatwa (1986, p.136).
n Ha, ainda, tres caracterist icas que a sua anal ise
• enunciativa leva em conta ao tratar dos enunciados: a
raridade, a exlerioridade e o acumulo. Voce pode nos indicar como
relacionar esses conceitos aos outros, ja defmidos nesta entrevista?
Ao contrario de uma certa analise do discurso, que trata do
sentido implicito, soberano e comunitario, a analise enunciativa que
eu proponho leva em conta um efeito de raridade. Para essa analise
do discurso tradicional, o discurso e, ao mesmo tempo, plenitude e
riqueza indefmida. A analise que eu proponho - dos enunciados e
das fbrmacoes discursivas - quer determinar o princfpio segundo o
qua! puderam aparecer os linicos conjuntos significantes que fbram
enunciados, busca estabelecer, portanto, uma lei de raridade (19SG,
p. 138). Disso decorre que se pressupoe que nem tudo e sempre
dito; por isso, estudam-se os enunciados no limite que os separa do
que nao esta dito, na instancia que os faz surgirem a exclusao de
POUCAULT E OS POMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIPAPE 37
todos os outros. Essas "exclusoes" nao sao o sentido secreto, mas a
evidencia de que o enunciado efetivamente realizado esta sempre
em sen lugar proprio. Ao mesmo tempo, essa raridade indica que
os enunciados nao tern uma transparencia infmita: nem tudo pode
ser dito num lugar qualquer por um sujeito qualqueri!>.
Proponho uma an&lise que busca determinar o "valor" dos
enunciados: sen lugar, sua capacidade de crrculacao e de troca, sua
possibdidade de transfortnacao; de aparece como um bem —finito, limitado,
desejavel, uhl - que tern suas regras de aparecimento e. tambem suas
condifdes de apropriacao e de utihzacao — e que coloca, por consegumte,
desde sua existencia a questao do poder20; que e objeto de uma lula, e de
uma luta politica (1986, p. 139). A ideia de raridade me auxilia na
tarefa de libertar a analise dos enunciados de Lima historicidade
que recorre ao psicologismo, as mentalidades, a teleologia, ao
histonco transcendental. Assim fazendo, minha investigagao
procura restituir os enunciados a sua dupersao, para considera-los
em sua descontmuidade, para apreender sua propria irrupcao no lugar
e no momento em que se produziratn; para reencontrar sua
incidencia de acontecimento (1986, p. 140). Dai, a ideia de
exterioridade: a analise busca reencontrar o exterior onde se repartem,
em sua relativa raridade, em sua vizinhanca lacunar, em sen espa9o
aberto, os acontecimentos enunciativos. Isso tern algumas
consequencias teoricas: a) o campo dos enunciados e entendido como
local de acontecimentos, de regularidades, de relacionamentos; b) o
dominio enunciativo nao torna como referencia nem um sujeito
^dividual, nem uma mentalidade coletiva, mas um campo anonimocuja configura^ao defina o lugar possivel dos sujeitos falantes; c) as
'iiscussao soln-<; us rnecamsmos de controle do discurKo e sua relai^ao coin o poder
M r^l° api'ofunclados por Foucault em A Ordem do Discurso (1971).
oucault ja anmnjia, na Arquevlugia, a centralidade que o estudo do poder ira aclquinr emas '"^flexoes, a partir dos estudos de Vigiar e Pumr (1975).
38 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
series sucessivas nao obedecem a temporalidade da consciencia: o
tempo dos discursos nao e a tradufao, em uma cronologia msivel, do tempo
obscu.ro do pensamento (1986, p. 141). A abordagem da raridade e da
exterioridade tern, ainda, uma conseqiiencia que afeta todo o
dispositive teorico-metodologico da analise: nao nos situamos no
nivel de um cogito, do pensamento, mas no conjunto das coisas ditas,
buscando as relafoes, as regularidades e ax transformafdes qne podem ai
ser observadas, o domimo do qual certasfiguras e certos entrecruzamentos
mdicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de
um autor. "Nao importa quern Jala", mas o que ele diz nao e dito de
qualquer lugar. E conszderado, necessariamente, no jogo de uma
exterioridade (1986, p. 1*1-42).
Sobre a 110530 de aaimulo, ela parece estar entrelacada a
essas ideias de raridade e de exterioridade... Parece-me
que, nela, encontramos o fio da temporalidade...
Acho que sim. A leitura, o traco, a decifrafao, a memoria
defmem o sistema que permite, usualmente, arrancar o discurso
passado de sua inercia e reencontrar, num momento, algo de sua
vivacidade perdida (1986, p. 142). Minha analise nao propoe
despertar textos de seu sono atual para reencontrar as marcas
legiveis em sua superficie. Pelo contrario, ela propoe segui-los ao
longo de seu sono, ou antes, levantar os iemas relacionados ao sono, ao
esquecimento — na es-pessura do tempo em que subsistem, se conservaram
onforam esquecidos. A remanencia dos enunciados - sua conservacao
- ocorre devido a um certo numero de suportes (como o livro, por
exemplo), certos tipos de instituicoes (e o caso das bibliotecas, que
tern, primordialmente, essa func.ao), certas modalidades estatutarias
(pense, por exemplo, no texto religiose, no jur id ico etc.). O
FOUCAULT E OS DOHJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 39
esquecimento e o grau zero da remanencia: os jogos da memoria e
<ja lembranca podem ai se desenrolar. Assim, remanencia,
aditividade e recorrencia sao tres fenomenos por meio dos quais se
node analisar a relagao entre os enunciados e a temporalidade. A
remanencia diz respeito a conservagao dos textos por meio de
dispositivos tecnicos (livro, biblioteca, instituicao etc.); pela
aditividade, os enunciados coexistem e se relacionam com outros,
de maneiras diferentes de acordo com sua natureza; quanto a
recorrencia, ela se refere ao fato de que todo enunciado compoe um
campo de elementos antecedentes, em rela$ao aos quais ele deve se
situar.
13 E e a analise de tudo isso que vai fazer aparecer a
positividade de um discurso?
Sim, e a isso que eu chamo - de bom grado - fapositividad&\
A positividade de um discurso caracteriza-lhe a unidade
atraves do tempo e muito alem das obras individuals, dos livros e
dos textos. Se ela nao revela quern estava com a verdade, pode
mostrar como os enunciados "falavam a mesma coisa", colocando-
se no "mesmo nivel", no "mesmo campo de batalha". Ela define um
espaco limitado de comunicagao (mais extenso, entretanto, do que
o jogo de influencias entre um autor e outro). Toda a massa de
textos que pertencem a uma mesma formagao discursiva (pouco
importa se os autores se conhecem ou nao, se percebem a trama
que os enreda) se comunica pela forma de positividade de seus
"' E ele acrescenta, num torn de ironica confidencia: E se substituir a busca das totahdades pelaanalise da. raridade, o tema dofundamento transcendental pela descrifao das relafdes de extenondade,a busca da origempelu analise dos acumuhs, e ser positivista, pois hem, eu sou posittvtsta feliis,ce>ncnrd<> fanlmmte (1986, p. 14-t).
40 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
discursos, A positividade desenvolve um campo em que podem ser
estabelecidas identidades formais, cont inuidades tematicas,
translates de conceitos, jogos polemicos. Assim, a positividade
desempenha o papel do que se podena chamar um a priori historico
(1986, p. 146): as condicoes de emergencia dos enunciados, a
lei de sua coexistencia com outros, a forma especifica de seu
modo de ser, os principios segundo os quais subsistem, se
transformam e desaparecem. O que chamo de a priori historico e
o conjunto das regras que caracterizam uma pratica discursiva
(1986, p. 147). Quanto a positividade, e o termo que venko
empregando, enfim, para designar a meada que venho tentando
desenrolar. (1986, p. 144).
"I /\ Acho que chegamos, enfim, ao conceito mais amplo de
-M~^T0 sua proposta de analise: acho que estamos tocando no
conceito de arquivo... A par t i r dele, pensando em termos
hierarquizado.s, podemos unir todos os conceitos - enunciado;
conJLinto de enunciados (discurso); formacoes discursivas; praticas
discursivas; a priori historico; positividade; arquivo. Posso pensarassim?
Acredito que sim, de uma certa maneira eu venho operando
por circulos concentricos. Veja o que eu escrevi em algumas
paginas22:
O dominio dos enunciados assim articulado por a priori historicos,assim caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido
-2 Pequena pausa. Abro meu exemplar da primeira edi^ao da Artjueohgta (i|iit± en acabarade comprar numa daquelas bvrarias do Qvartier Latin, e que ja estuva gas to de tan to metisdedoK deslizarem, na leitura, pela branca superficie de suas piginas) leio e transcrevo, naIntegra, o que me parece um achado.
FOUCAULT E OS DOMJNIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 41
por ibrmacoes discursivas distintas £../] 6 um volume complexo emque se diferenciam regioes lieterogeneas e em que se desenrolam,segundo regras especfficas, praticas que nao sti podem superpor. Aoinves de vermos alinharem-se, no grande livro mi'tico da liistoria,pa l av ra s que tradu/.em, em caracteres v is fve is , pensamentos
const!tuidos antes e em outro lugar, ternos nas praticas discursivassistemas que instauram os enunciados como acontecirnentos (tendo
siias condicoes e seu dominio de aparec imento) e coisas(compreendendt) sua possibilidade e seu campo de utili/.acao). Sao
todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisasde outro) que proponho chamar de arquivo. £...3 Trata-se do que fazcom que tantas coisas ditas por tantos homens, ha tantos milenios[^...3 tenham aparecido gracas a todo um jogo de relacoes quecaracterixam particularmente o nfvel discursive. £..7j O arquivo e, deinfcio, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimentodos enunciados como acontecimentos singulares. [../] e o que defineo sistema da enunciabilidade do enunciado-acontecimento. Q...J e osistema de seu funcionainento. Q..]] entre a tradiciio e o esquedmento,ele fax aparecerem as regras de uma prfttica que perrnite aos enunciadossubsistirem e, ao inesmo tempo, se modificarem regularmente. E o
sistema geral da formacao e da transformagao dos enunciados- r_...] Oar fMi ivn nao e descritivel em sua totalidade e incontomavel em sua
atualidade.
Uma questao geral: a denominagao de "arqueologia" para
essa analise - e, logicamente, ja sabendo das restricoes
que voce faz sobre alguns dos sentidos contidos na etimologia da
palavra, confer me aquela entrevista que acaba de ser publicada
no Magazine Litleraire-'3 ~ deriva desse conceito nuclear de
"arquivo"?
nua-se do Lex to "Michel Foucault expl ica .seu ul t imo livro". (Entreviini turn .1.1chier) Magazine Litt^raire a* 1909. |) ii^-a") Trad bras, em: Moua, M.B (Org}
ichel Foucaulr. Arqueologia das Cieiicias e Historia dos Sistemas de Pcnsaniento.l. Dt'to.1 & £,.(-,,;,,.,- {/) R,,, de Janeiro Foreu.se Llniver.sHiiria, aooo, p. 1'!•')-1 .W
42 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Talvez possamos pensar assim, se considerarmos que o
"arquivo" e o centre em torno do qual gravitam os outros conceitos
operatorios da minha analise. O arquivo forma o horizonte geral a
que pertencem a descngao das formafdes discursivas, a analise das
positimdades, a demarcagao do campo enunciativo. Por isso, o nome de
arqueologia aos estudos que venho empreendmdo. Como voce afirmou,
restrinjo o sentido de "arqueologia", pois ele nao deve mdtar a busca
da origem on a uma escavacdo geologica. Ele designa o tema geral de uma
descrifdo que mterroga o jd-dito no nivel de sua existencia: dafun^ao
enunaativa que nele se exerce, daformafdo discursiva a que pertence, do
sistema gerat de arquivo de que faz parte. A arqueologia descreve os
discursos como prdticas especificadas no demento do arquivo (1986, p.
151).
Para fmalizar: agora que ja delineou o "metodo
arqueologico" - e, de alguma forma, ja acertou as
contas com seus criticos - esta pensando em um novo trabalho,
certamente...
"Acertar contas" e uma expressao muito forte,
pr inc ipalmente porque tenho inumeros interlocutores e,
certamente, nao poderei nunca estar quite com todos. Ademais,
nunca pensei em escrever um livro que fosse o ultimo, que
interditasse as vozes futuras. Pelo contrario, escrevo para que
outros livros possam ser escritos e nao necessariamente por mini.
Quanto ao que estou escrevendo agora... Estou trabalhando o
texto de minha aula inaugural no College, de France: trata-se de
uma fala em que abordo os perigos que o discurso representa
para a nossa sociedade - nunca se falou tanto e nunca, na
historia do ocidente, se temeu tanto as palavras. Pretendo tratar
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 43
dos disposi t ivos de cont ro le da pa lavra , algo que tenho
denominado como "a ordem do discurso"*4. Tambem pretendo
avancar um pouco mais os principios da an&lise do discurso.
Um deles, e talvez o mais importante, estou denominando
"principio da inversao", porque proponho que, em vez de
enxergar a originalidade, a origem, a continuidade, e preciso
ver o jogo negative de um recorte e de uma rarefacao do discurso.
A ele, acrescenta-se a necessidade de atender ao "principio de
descont inuidade": porque os discursos sao rarefeitos nao
significa que para alem deles reine um grande discurso ilimitado,
contmuo e silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado;
sabendo disso, os discursos devem ser tratados como praticas
descontinuas, que se cruzam por vezes, mas tambem se ignoram
e se excluem. Ha, alem disso, o "principio de especificidade": o
discurso nao pode ser tornado como um jogo de significa9oes
previas; ao contrario, ele deve ser concebido como uma violencia
que fazemos as coisas, como uma pratica; e e nesta pratica que
os acontecimentos do discurso encontram o "principio de sua
regularidade". E seguindo o "principio da exterioridade", e
necessario nao se concentrar no niicleo interior e escondido do
discurso, mas, a partir do proprio discurso, de sua aparicao, de
sua r egu la r idade , passar as suas condicoes ex te rnas de
possibilidade, aquilo que da lugar a serie aleatoria desses
acontecimentos e fixa suas fronteiras (1996, p. 53). Como ve,
estou tomando alguns pontos da arqueologia e aprofundando-
°s. Quero, alem disso, tratar de uma figura que ficou poucoesbocada na Arqueologia do Saber: o autor. Quero escrever um
que procure problematizar a questao "o que e um autor?".
t-ssa aula inaugural sera publicada em: FOUCAULT, M (1971). A ordem do discurso.rad- bras, de Laura Fraga Sampaio. Sao P;uilo Loyola, 199(i
44 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Talvez para fechar um ciclo. Estou caminhando na direcao de
analises que focalizem as relacoes entre o saber e o poder...-"
Enfirn, o future... nao e ele apenas um pequeno lampejo, quaseinvisivel, num fim de tarde como e esse hoje — incontornavel em
sua atual idade, assim intervalar entre o que somos e o queimaginamos no devir?se
-* Esse cexto, que ruarca inn l i m i a r da passagem de Foucault para as retlexoos snbre odiscurso e (> poder, sera publicado em: FOUCAULT, M. (19G9). Qu'est-ce qu 'un auteii!'?.Ill: Bulletin dc la Societe FVancaise de Philosophic, n°3. Trad. port. Lisboa: Vega, 199-23(1 Levanta-se. Di/_ adeus Vejo sua s i lhueta e.sjrma caimnhar contra o sol que se poeientamente. Estou ainda na mesa do cafe e a cliiivena ]a fna, e.squecida na alvura da toalliaU m a . v i s a o de sonho sua ilcrura recortada contra a tarde, cammhaiido lentanii-nte s,e5^ . , .mi.stura aos trati>euntes Foi-se, desl^iln entre milliares de rnstos que cruxam a nevoa docotidiano Imerso nil bruma da histona, i leixa, indelevel, a inscn^ao de um lugar unde eupoderia te-lo (.-ncontrado e dai registrado em frap;eis palavru.s o que c!e tiio \rigorosame»teme dava
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 45
Forma^ao discursiva em Pecheux e Foucault:uma estranha paternidade27
Roberto Leiser Raronas *
ll accovplera.it /c chat avt-'t: le ckeval et I'art modern avec \£
socialism!: et que, si c'etait du donquicfiotttiitMi, il voidaii etre
un Don Qtiichotte, pares que le socialism* etait pour lui fere
de la hberle ut da pLustr et qud rejetait tout autfe socialisms.
Milan Kundera
Michel Foucault em Vigiar e Pumr, ao se reportar ao caraterheuristico do discurso nietzscheano, afirma que o unico sinal dereconhecimento que se pode ter com um pensamento como o deFriedrich Nietzsche e precisamente utdizd-lo, faze-lo ranger, gritar.Penso que essa pratica possa ser deslocada para trabalhos que sepropoem realizar um dialogo entre a Analise do Discurso deorientacao francesa e o arcabou9o teorico de Michel Foucault, porexemplo. Para tan to, e necessario, contudo, que se faca nao so o
Enncando um pu 111:0 com as palavras, ta^'ii 14111 trocadilho a partir da expn-'ssao deMichel Pecheux — estranlia i'amihat'idade - quando estu desenvolve com P;iul Henry oconceito dt pre-conMiriiido Sabe-se que ;i palavra uiema unheimhch designs aquiio que eafetadu pelo signo do familiar e do estrangeiro A ulassica tradu^ao da expressao de Freudpor "inqmetanCe estrangeindade'', Micliiit Pecheux sempre preferiu, em relacao a suainterpretacao do jire-constrtiido, nquela da "estranha familiaridade". Essa expi'essao tainbetiiaparece no textu de abertura do Coloquio Materialites Discur-sives, realizado na UniversidadeParis X - Nanterrc em 1980, no qual Michel Pecheux despediu-se, nao sein ierocidade, dateoi-ia do disturso" apresentadii como um "fantasma tuonco unilicador". Ele se dirige
aquelys que "trabalham no campo da lingiiistica, d:i liistona, da anah.fe do discurso e dapsicaiii'dise'', con\ ocando o teixe de suas questoes em tnrno do "triplo real d;i lingua, dahistona e do mc<inscn_'iue" "A estranha (arniliandade" das materialidades distursi\'as naose maniiesta no mii inento paradoxal em que os liistoriadores descohrem que o t ex to do.sarquivos nao k trarisparente aos seus ollios, no qual os hngiiistas se advertcm (JUL- todo o'•'steiha lingufitico guarda um resto assistematico irrepresentavel, em que o.s ani i l is tasvcni chocar-se sohre a religiao como um efeito de grupo consolidado com um .stiilidnlicjiiiogeneo l_ 'n ia \crsao ba.stante modificada deste texco ioi apresentada em forma deconiunica<;ao oral i n d i v i d u a l duraute a realizacao !>12" Seimnario do Grupo de Estudoikmgtiisticos dc> Sao Paulo - CJEL - em Campma.s/SP no dia .SO de julho de iiOO-l-
Professor da I 'niversidade do Estado de Mato firosso (UNEMAT).
46 FOUCAULT E OS DOMIN1OS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUSJETIVIDflDE
pensamento foucaultiano ranger, gritar, isto e, render o maximo,
mas a propria teoria do discurso proposta por Michel Pecheux e,
tambern, alguns dos conceitos desenvolvidos por Mikail Bakhtin.
Neste trabalho, certamente, nao darei conta dessa herculea tarefa;
apontarei apenas algumas indicaooes de uma perspectiva de analise
discursiva que procura retomar algo tanto do fio do discurso quanto
do interdiscurso.
Ao ler algumas das narrativas da escrita da analise do discurso
francesa e possi'vel constatar que urn de sens conceitos mais caros,
o de formacao discursiva, foi abandonado no infcio dos anos oitenta
na Franga. As razoes para a sua renuncia, apontadas por tais
narrativas, nern sempre muito claras, vao desde a alegacao de que
a formacao discursiva possui um carater eminenterriente
taxionornico ate a existencia de uma relagao conflituosa entre o
marxismo e Michel Foucault. Ha em rela^ao a narrativa do conceito
formacao discursiva nos termos de Guilhaumou (2003), "um eclipse
nao explicitado". Contudo, embora denegado pelo grupo de Michel
Pecheux na Franca e, apesar do es ta tuto desse conceito se
apresentar muitas vezes de maneira indefinida, ele permanece ainda
bastante operative nas pesquisas sobre o discurso, principalmente
no Brasil, Essas narrativas publicadas em frances e em portugues
asseveram que Michel Pecheux teria emprestado o sintagma —
formafao discursiva —da A Arqueologia do Saber, de Michel Foucault,
para, a luz do materialismo historico, reconfigura-lo, relacionando-
o com o conceito althusseriano de ideologia.
Neste texto, numa primeira hipotese de trabaIho*B, alem de
questionar esse posicionamento, asseverando que tal conceito tern
"B Como "bom ladrao de palavras", tomo de emprestimo essa expressao de Michel Fuucault
(1973), o (jut eu gostar/a. de dizer-lkes nesta-^ conferenaas sao caisas possivelmente inzratas, fatsas,
erroneas, qt/e apresmtarei a titulo de hipoteses de tmbalho; hipoteses lie traballw para um trabaUloJuturo. Pedma, portanto sua indulgencia e, mais do (jtie isto iua maldo.de.
cnUCAUlT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PQDER, SUBJETIVIDADE 47
pelo menos uma paternidade partilhada, procure numa segunda
hipotese inicialmente explicitar tal eclipse e, posteriormente,
evidenciar que, desde que reconfigurado*1' a partir do mirante do
dialogismo bakhtiniano, por exemplo, esse conceito pode ainda ser
bastante produtivo para a teoria do discurso. Para tanto, entrando
defmitivamente na ordem arriscada do discurso cientifico, trago de
inicio em forma de citagao uma nota de rodape que faz parte do
artigo Qs fundamentos teoncos da 'Anahse Automdtica do Discurso' de
Michel Pecheuj;, cujo autor e Paul Henry:
Existem muitos pontos de contato entre aquilo que Michel Foucault
elaborou no que se refere ao discur^o e aquilo que fez Michel Pecheux,
pe!o menos no nive! teorico (por exemplo, encontra-se em Foucault
uma nocao de "formacao discursiva" que tern alguns pontos em cornum
com nquela de Pecheux), e em particular no nfvel prStico (Foucault
nunca tentou elnborar um dispositive operacional de anSlise do
diKcurso) ... Pecheux partilhava com Foucault um interesse comum
pelt! liistoria das ciencias e das ideia.s que pode explicar por que ambus,
mais do que qualquer outro autor, ibcalixararn o discurso (HENRY,
1993, p. 38).
Parto entao dessa citacao para tentar precisar quais seriam
efetivamente os pontos de contato e de afastamento entre as nocoes
foucaultianas e de Michel Pecheux de formacao discursiva. Devo
dizer que nao sou o primeiro a empreender tal tarefa. Ha todo um
conjunto de estudiosos do discurso que anteriormente, com
competencia e mais legitimidade, se debru9aram sobre essa questao,
que lateralmente. Dentre esses pesquisadores, citaria pelo
dois: Denise Maldidier e Jean-Jacques Courtine, ambosllngiiistas franceses, que participaram ativamente do grupo de
*a p " •-•C-ssa articulatao tbi sugerida pela Profa. Maria do Rosano Gregolin durante uma aula
0 "rograma de P6s-Gradua^ao em Linguistica e Lingua Portuguesa da FCL/Unesp —Araraquara em 2000.
48 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA UNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Analise do Discurso, fundado por Michel Pecheux. A primeira ex-
professora da Universidade de Paris X, morta tragicamente em
1990 e o segundo, atualmente, e professor na Universidade de Paris
III - Sorbonne Nouvelle.
Maldidier em L'lnquietude du discours: textes choisis de Michel
Pecheuj:™, na apresentacao, intitulada (Re)Ler Michel Pecheux hoje,
historiciza o percurso de Michel Pecheux, dividindo-o em tres
grandes momentos: primeiro, o das grandes construcoes, no qual
Michel Pecheux, com base nos postulados althusserianos, construiu
todo um dispositivo teorico-analftico de analise automatica do
discurso que procura desconstruir as evidencias de LaPalice; depois,
aquele dos tateamentos, em que o filosofo Frances, com a crise do
marxismo e com a cegueira e a surdez dos sociolingiiistas marxistas,
reve muitos de sens posicionarnentos e se propoe a "quebrar o
estranho espelho da Analise do Discurso" e, por ultimo, o da
"desconstrucao domesticada", quando Pecheux, aproximando-se de
Foucault e de Lacan, tenta precisar os limites entre descri5ao e
interpretacao, vendo o discursive na sua estrutura e no seu
acontecimento. Como diz Denise Maldidier:
O projeto de Michel Pecheux nasceu na conjiintuni dos anos de [060,
sob o stgno da articulacao entre a lingtifstica, o materialismo historico
e a psicanalise. Ele, progressivamente, o amadureceu, explicitou,
retificou. Seu percurso encontra em uheio a virada da conjuntura
teoriua que se avoluma na Fran<;a a partir de 1975. Crftica da teoria e
das coertindas gtohalizante.s, desestal>ili7.acao da.s positividades, de
um lado. Retomo do sujeito, derivas na diregao do vivido e do individuo,
de outro. Deslizamc'iito da politica'para o espetactilo! Era a grande
quebra. Deixavanms o tempo da "luta de classes na teoria" para entrar
no do "debate". Nesse novo contexto, Michel Pecheux tentou, ate o
*" TraduvSo brasileira Eni P. Orlandi, Maldidier, Denise. A inquietafao do discurso: (Re)lei1
MSchd Pecheus hoje. Campinas, Pontes, 2003.
E OS DOHJN1OS DA LINGUASEM;: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDAPE 49
limite do possfvel, re-pensar tuJo o que o discurso, enquanto conceito
ligado a um dispositivo, destgnava para eie (MALDIDIER, l!>90;
2003, p. 1G).
Courtine, na re vista Langages n. 62, Alguns probkmas teoricos e
•tnetodologicos em Analise do Discurso: a proposito do discurso comunista
dirigido aos cristaos*1, no capital o II, intitulado "O conceito de
formacao discursiva", empreende uma discussSo teorica que objetiva
refletir sobre o uso que e feito do conceito de formafao discursiva
nos trabalhos de Michel Pecheux, tanto no nivel te6rico quanto no
das praticas de analise, bem como, mostrar as contribuicoes que a
no9ao foucaultiana de formacao discursiva poderia trazer no sentido
de eliminar o problema da homogeneidade na constituicao dos
corpora discursive em Analise do Discurso. Passaremos agora a um
exame da nocao de formacao discursiva em A arqiteologia do saber,
de Michel Foucault.
No escritos foucaultianos, a no9ao de formacao discursiva
aparece pela primeira vez em A arqueologia do saber, texto que,
posteriormente, nos Ditos e escntos, o proprio Foucault diz que teria
sido escrito como introducao de As palavras e as coisas e que depois
fora transformado num livro que tenta teorizar sobre a historia
das chamadas ciencias do homem. Contudo, nao numa historia
traditional, contmua na qual os seres humanos marcham em busca
de um telos, de um devir, mas numa historia descontinua que
descreve o momento mesmo de irrupcao dos acontecimentos
discursivos, tornando-os inteligiveis em termos de regras que os
governam e os regulam.
Agrade^o ao Prof. Sirio Possenti que gentilmetite nos ceden a sua tradu<;ao brasileira('e.sse ni'imero da Langages. Cahe aqui di^ei- tamliem que o proprio Michel Pecheux e i|uemPrefacia essa revista, com o texto O Estmnha Espeltiti.daAnali.ie du Di.icitiyo. Texto ewse iimda"ledity em portugue.s e por nos tradu/.ido provisoriamente.
SO FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE FQUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM: PISCUR5O, PODER, SUB3ETIVIDAPE SI
Na verdade A arqueologia do saber se constitui numa descricaobastante complexa e didatica do metodo arqueologico, uma teoriaque procura compreender o funcionamento dos discursos que
constituem as ciencias humanas, tomando-os nao mais como conjuntosde signos e elementos signiflcantes que remeteriam a determinadas
representac6es e conteudos, tal como pensavam os estruturalistas
tr ibutaries de Saussure, mas como um conjunto de praticasdiscursivas que instauram os objetos sobre os quais enunciam,circunscrevern os conceitos, legitimam os sujeitos enunciadores e fixamas estrategias serias que rareiam os atos discursivos.
Com o metodo arqueologico Michel Foucault busca descrevernao so as condicoes de possibilidade dos enunciados que formamas ciencias empiricas, mas as condicoes mesmo de existe'ncia dessesenunciados. Para tanto, segundo Foucault,
e precise renunciar a todo.s os temas - tradi^ao; inf luencia ;desenvolvimentoeevolugSo; mental idade ouespiritojtipos egeneros;livro e obra; ideia da on gem; ja-dito e nao dito -que tern por funcSogarantir a inf ini ta continuidade do discurso e sua secreta presenca MO
jogo de uma ausencia sempre reconduzida. E preciso estar prontopara acoiher cada momento do discurso em sua irrupcao deacontecimentos, nessa pontualidade e dispersao temporal, que Ihepermitc ser repetido, sabido, esquucido, transfbrmado... Nao remete-io a longinqua presenca da origeiri; e preciso trata-to nojogo da suainstancia (FOUCAULT, 19BR, p. 28).
Ao colocar ern suspense todas essas "sujeicoes antropologicas",e possivel descrever quais os atos discursivos que conquistaram
sua l iberdade condicionada, apos terem passado por uminterrogators numa especie de "polfcia discursiva", que se reativaa cada um dos discursos efetivamente ditos e que determine aquiloque pode e deve ser dito por um sujeito autorizado, com base nummetodo aceito, se inserindo dessa maneira no verdadeiro da epoca.
Nao se trata, todavia, de qualquer ato discursivo: enunciados docotidiano, por exemplo, mas de "atos discursivos serios", isto e,
enunciados3^ que manifestam uma incessante "vontade de verdade".Esses enunciados serios entao se relacionam com enunciados do
mesmo ou de outros tipos e sao condicionados por um conjunto de
regularidades internas, constituindo um sistema relativamente
autonomo, denominado de forma^ao discursiva.E e nesse sistema que internamente se produz um conjunto
de regras as quais definem a identidade e o sentido dos enunciadosque o constituem. Em outros termos, e a propria forma9ao
discursiva como uma lei de serie, principio de dispersao e derepartigSo dos enunciados que define as regularidades que validamos seus enunciados constituintes; por sua vez, tais regularidades
instauram os objetos sobre os quais elas falam, legitimam os sujeitospara falarem sobre esse objeto e definem os conceitos com os quaisoperarao e as diferentes estrategias que serao utilizadas para definir
um "campo de opcoes possiveis para reanimar os temas jaexistentes... permitir, com umjogo de conceitos determinados, jogar
diferentes partidas" (FOUCAULT, 1986, p. 45).Depois dessa breve apresentacao do conceito de formacao
discursiva em Foucault, discuto a emergencia desse conceito emPecheux. O conceito de forma?ao discursiva aparece pela primeiravez em Michel Pecheux no seu artigo A semdntica e o carte sanssureano:ttngua, linguagem e discurso33. Ao criticar os lingiiistas pos-
"ara Foucault o enunciado difcre-se tanto da f'rase, da propoM^ao quanto do ati» de iala,s ele e ;i unidiide elementar do discurso. "Em seu modo de ser smguhir (nern iiiteiramenteiJMistico, nem exciusivamente material) o enunciado e indis|iensav«l para que .se pos.sa
1 se ha ou nrlo Ji-ase, proposicao, ato de lineuairem (. ) ele nao e. em si mesmo, umallni I j f> f^ \ !atle> niiis Mini uma 11111930 que cruza um domimo de estruturas e. de unidades possiveisJs L
e ' com q«e apare^-am, com conteudos concretes, no tempo e no espafo (p. 98-9).. _ e^to produzido em cnlaboracao com Clamline Haro ih f e Paul Henry, publicadoMA\a lnu"te lla Rev ' ista Langages, niimero '24-, 1 9 7 1 Inedito em por tugues . I n
O1DIER, D. L'InquietudeduDiscoiirs.-textesdeMRliel Pecheux. Editions dnCenclres,'95)0, n i q « fiu T- , -i '33-53 I radu^ao provisona nos.sa.
52 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
saussureanos - estruturalistas e gerativistas - por terem de alguma
maneira trazido o modelo fonologico saussureano para o dominio
do sentido, produzindo uma especie de filosofonema que
caracterizaria toda a lingtiistica, Pecheux rnostra que, ao se pensar
as sistematicidades da lingua como um continuum de niveis, se esta
na verdade, recobrindo o corte saussureano entre langiie/parole. "O
elo que liga as significances de um texto as suas condicoes s6cio-
historicas, nao e secundario, mas constitutive das pr6prias
significasoes" {Pecheux, 1971, p. 147). Pecheux propoe entao uma
mtervenfdo epistemologica nas semanticas lingiiisticas. E precise
"mudar de terreno" e encarar uma nova problematica o discurso.
Esse conceito devera ser pensado a luz do materialismo historico.
E a partir dele que se pode fazer a localizacao de novos objetos,
colocando-os ern relacao corn a ideologia.
Nous avancerons, en nous appuyant sur uin grand nombre deremarques contenues dans- ce qu'oi\ appelle "les classiques du marxisme"que les formations ideologiques ainsi definiee.s comportent
necessairement, comme tine de leurs composants, une on plusiersformations discursives interreliees, qui determiner! t ce qui pent etdoit etre dit (articule sous la tonne d'uri harangue, d'um sermon,d'um pamphlet, d'um expose, d'un programme, etc.) a partir d'un
position donneedans conjocture donnee: le point essentiel ici est qu'ilne s'agit pas seulement de la nature de.s mots employes, rnais aussi (etsurtout) des constructions dans lequelles ce.s mots se combinent,dans la rnesure ou el les determinent la signification que prennent cesmots: comme nous 1'indiquions en commencant, les mots changent desens selon les positions tenues par ceux qui les emploint; on peutpreciser maintenant: les mots "changent de sens" en passant d'imeformation discursive & une outre (PECHEUX, ]j)7l , p. 148).
Entretanto, ao verificar o inventario intelectual de Michel
Pe'cheux e possivel constatar que o germen desse conceito aparecealguns anos antes de 1971, num outro texto de Pecheux, Lexis et
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUflGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 53
metalexis: iesprobtem.es des determinants^, escrito a quatro maos com
C. Fuchs. Na verdade, o esboco de tal conceito aparece em forma de
nota de fim no texto de A. Culioli, Notes sur la formahsation en
lingtiistique.
Le fonctionnement du langage a ses multiples niveaux interdit ladichotomic simplifkatricc' entre la langue (concue comme systenie
necessaire) et la parole (notion baprisant, sans 1'expliquer, la distanceentre cette nei:e,ssite du systeme et la fameuse'liberte dulocuteur') :
en fait il importe de reconnaitre que ces niveaux de fonctionnement
du langagc sont eux-rnemes soumis a des regies, mais queI'apprehension de ces regies echape (partiellement) an linguists, dansla rnesure ou de.s determinations non linguistiques d»ir exemple de.seffets institutionneis lies aux proprietes d'une formation sociale)entrent necessairement en jeu. I I ne s'agit nullemimt de remettre encause 1'idee selon laquelle 'la langue n'est pas une superstructure' (ansens marxiste de ce mot} mais d 'avancer que les formationsdiscursives sont, elles, fondamentalernent iiees aux superstructures,
a !a fois comme effets et comme causes. Une theorie de Teffet dediscours' ne peut ignorer ce point, quelle que soit par ailleurs lamaniere dont elle fbrmule son objet (sous !a tonne d'une 'pragniatiqiie'd'une 'rhetorique' on d'une 'strategic de la argumentation'}
(PECHEUX & FUCHS, 1!H>8, p. 32, grifos meus).
Chamo atencao para o fato de que o conceito/0rm.afao discursiva,
embora nao esteja desenvolvido, esta enunciado desde 1968, data
da publicacao do artigo de Culioli, Pecheux e Fuchs. O que me
possibilita asseverar que, pelo menos no sen processo de gestacao,esse conceito nao veio da A Arqueologia do Saber de Michel Foucault,cHJa primeira publicacao data de 1969. Embora as discussoes sobre
^ Arqueologia do Saber estivessem latentes entre a intelligentsia
francesa, mesmo antes de sua publicacao, penso que esse conceitotenha derivado do paradigma marxista fortuafao social, formafdo
~
"ULIOU. A. (org.). Cahiers pour 1'analyse, Editions du Seuil, n. 9, juiliet
54 FOUCAULT E 05 DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
ideologica e, a partir dai, formacao discursiva. Somente em 1977iM e
que Pecheux reordena o conceito foucaultiano de formacaodiscursiva a anilise das contradicoes de classe.
Acredito que Pecheux propoe mais urna considera9ao formal
dos processes discursivos tanto no interior dos discursos quanto
entre um discurso e outro, e menos uma consideracSo substantiva
de ideologias particulares e formacoes discursivas dentro de umaforma concreta, estabelecida. De acordo com essa defmicao, uma
formafao discursiva parece-me melhor compreendida como um jogo
de principios reguladores que formam a base de discursos efetivos,mas que permanecem separados deles. Essa formulacao sugere entaoque palavras, expressoes e proposicoes adquirem seus significadosa partir de determinadas formacoes discursivas nas quais saoproduzidas (os elementos lingiiisticos selecionados, como eles sao
combinados) e, assim o sentido se torna um efeito sobre um sujeitoativo, e nSo uma propriedade estavel. Novamente, uma expressao
ou proposi?ao nao possui sentido "proprio" perpetuamente imovel
e inerente a ela. Pecheux enfatiza o ponto resultante que produziu
a emergencia dessa "matriz de sentido", individuos sao entaointerpelados "como sujeitos falantes (como sujeitos de seu discurso)pelas formacfies discursivas nas quais representam dentro da
36 Em um texto ainda medito aqui no Brasil, Retnimtons de Fvucault a. Spmaza (1977), MichelPecheux exphcita a retotnada e reelabora^ao que fnz do conceito de formacao discursivade Michel Foucault: "isso nos conduz a pensar que toda formacao ideologica devenecessariamente ser analisada de um ponto de vista 'regional', e pode ser que isso expllqueque toda ideologia seja dividtda (nao identica a si mesma). b porque as fbrmacoes ideologicastern um carater regional que elas se referem as inesmas 'coisas' de modo diferente (Liberdade,Dens, a Justica etc), e e porque as forma9f>es ideologicas tern um carater de classe que elasse referem simultaneamente as mesmas 'coisas' (por exemplo, a Liberdade) sob modalidadescontraditdrias ligadas aos antagonismos de classes. Nessas condi9oes, parece que e namodalidade pela qual se designa (pela fala ou pela escrita) essas 'coisas1 cada vez 'identicas'e divididas que se especifica aquilo que se node, sem inconveniente.s, chamar de 'formacaodiscursiva', com a condieao de se entender bem que a perspectiva regional das fbrma.s de'reparticiio' e dos 'sistema.s de dispersao1 de Foucault se encontram assun reordenados aanalise das contradi^Ses de classe". (Tradu^ao provisona Maria do Rosano Gregolm).
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE 55
linguagem as formacoes ideologicas que os correspondent"
(P&CHEUX, 1975, p. I l l - 12). Tal concepcao obriga Michel
Pecheux a declarar que o sujeito e "suscetfvel de esquecer", ou seja,
esse sujeito interpreta mal ou absorve a "causa" ou determinaca'o
de seu discurso, pensando ao contrario ser seu criador, fonte e origem
do sentido. O entrelagamento de elementos de uma a outra fbrmaca'o
discursiva oposta e especificado como o efeito das imposi9oes das
lutas hegemonicas atravessando o campo social.E possivel entao asseverar que essa nocao tern uma
paternidade partilhada: inicialmente a de Pe'cheux em 1968 e depois
a de Foucault em 1969. No caso deste ultimo pensador, esse conceito,prolongando seu projeto inicial da episteme em As Palavras e asCoisas, oscila constantemente entre uma interpretacao em termosde regras e outra em termos de dispersao. Foucault parece obedecer
a duas injuncoes contraditorias: trabalhar sobre sistemas e, nomesmo processo, desfazer toda unidade ou trabalhar sobre as
regularidades da dispersao.Para Foucault a forma9ao discursiva e vista como um conjunto
de enunciados que nao se reduzem a objetos lingtiisticos, tal como as
proposicoes, atos de fala ou frases, mas submetidos a uma mesmaregularidade e dispersao na forma de uma ideologia, cigncia, teoria
etc. Dito de outro modo, para o fi!6sofo frances o que garante a unidadede um discurso clinico, por exemplo, nao e a sua linearidade formal —sintatica ou semlintica -, mas algo comparavel a uma diversidade demstancias enunciativas simultaneas (protocolos de experiencias,regulamentos administrativos, politicas de saude publica etc). MichelFoucault chama de ecart enunciativo a regra de formas&o (as
'Tiodalidades enunciativas) dos enunciados na sua heterogeneidade,na sua impossibilidade de se integrar a uma unica cadeia sintatica.
Ja em Pecheux o conceito, gestado no ventre do marxismo/althusserianismo, aparece como "aquilo que pode e deve ser dito
56 FOUCAULT E OS DOMINIOS OA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJET1VIDADE
{articulado sob a forma de um arenga de um sermao, de um panfleto,
de uma exposicao, de um programa etc) a partir de uma posicao
dada na conjuntura social" {Pecheux, 1975, p. 188). £ possivel
interpretar esse conceito, por meio dos exemplos dos generos textuais
entre parenteses, a partir de uma dupla leitura: em termos de genero
ou em termos de posicao. Parece-me que Pecheux, ao sublinhar
aquilo que pode e deve ser dito e se situar no espaco da luta de
classes, trazendo como exemplos de generos os que privilegiam
uma luta ideologica explicita, opta pela segunda interpretacao. A
questao dos generos mesmo indiciada, nao e discutida.
Embora fundamenta l para fugir de uma interpelacao
ideologica homogenea do sujeito e, tambem, de uma
gramaticalizagao do discurso, nos termos de Courtine (1999), essa
articulacao entre posicSo de um lado e genero de outro nao e feita
nem por Foucault nem por Pecheux. Enquanto este ultimo
exemplifica essa nocao a partir de discursos ideologicamente
marcados, privilegiando notadamente a luta polftica, Foucault a
exemplifica com discursos da historia das ciencias, verificando as
condigoes que poss ibi l i tam a i r rupgao e a legitimacao de
determinados discursos no verdadeiro de uma epoca. Como entao
pensar por um lado a irrupcao de discursividades distintas daquelas
as quais Foucault pensara, por exemplo as do cotidiano e, por outro,
a irrupcao dessas ultimas discursividades em uma sociedade na
qual a existencia de classes se relativiza ao extreme.
Em um artigo ainda inedito aqui no Brasil, Sonia Branca™assevera o seguinte:
La notion de formation discursive elaboree par M. Foucault pouraborder un ensemble de textes fixes par Pecriture et qui font 1'ob jet de
OUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIPADE 57
Texto apresentado em forma de comunica^ao oral no evento inti tulado Moti, Diamun,
deologic: dc /-'analyse dv ducoun, a celle de I'tdealogie les formation* ducitr.'iive.'i, Montpelher, 26-Id
'27 de abril de 20O2.
techniques de conservation .sophistiquees est rnoins un concept ouvrant.sur Line metbodolo^ie precise d'analyse de discours qu'une invitationfructueuse a se deprendre des categories de Phistoire des idees et aremettre en cause notamment les notions d'objft et de sujet du discours.
La notion dt j formation discursive elaboree par M. Pecheux (dans lecadre d'un projet d'analyse du discours appuye sur la hngnisticjue)pose des problemes mat sunnontables, notamment lorsque 3'analyste
ne travailie plus sur des ecrits doctrinaux ou administrates bienstabilises, ce qui entratne I'impossibilite de circonscrire quelque chosequ'on puisse appeler formation discursive. Dans cette deuxiemeconfiguration, i l reste de 1'idee premiere- la presence forte deI'interdiscours, la prise en compte du fait que le discours est enreaction, en reactivity aux discours qui le boi'dent, le travail consistanta traquer la pi'esence de Palterite au ccx*ur des enonces (BRANCA,
2003, p. 7).
A afirmacao de Branca sugere a necessidade de se repensar o
conceito de formacao discursiva, levando-se em consideracao, de
uma parte, a propria nocao de formacao discursiva em forma de
posicionamento subjetivo-ideologico e, de outra parte, o conceito
de genero do discurso de Bakhtin (1985). Essa articulacao proposta
por Branca permite que a constituicao-bordeamento exterior da
formacao discursiva nao seja reescrita somente em termos de uma
determinacao ideologica, mas tambem em termos de conteudo
tematico, estilo verbal e estrutura composicional. Dito de outro rnodo,
alem do posicionamento ideologico, os elementos que constituem o
genero possibilitam uma especie de trajeto de interpretacao para o
sujeito. Ademais, tal articulacao possibilitaria a compreensao de
discursividades que sao menos marcadas institucionalmente, por
exemplo, os discursos do cotidiano.
Jean-Michel Adam, ern seu livro Linguistique textuelle: des genres
de discours aux textes (1999), talvez tenha sido o primeiro autor
francofono a se preocupar com uma possivel articulacao entre
genero, interdiscurso e formacao disrursiva. Les discours se forment
58 FOUCAULT E OS DOHJNIOS PA LINGUAGEHi DISCURSO,^QPER^SUBJETIVIOADE
de maniere reglee a I'interieur de I'espace de regularise que constttue un
interdiscours. Ces regularites ne sont autres que les genres propres a une
formation sociodiscursive (ADAM, 1999, p. 86). A proposta de Adam,
ao articular tais conceitos e construir uma no?ao que nao seja passiva
de redii9ao nem ao genero e nem ao posicionamento, mas que se
constitua numa especie de tipo de discurso, de cartogralia discursiva,
cuja finalidade e regular as mais variadas produces discursivas.
Parece-me que Adam, ao pensar tal cartografia discursiva,
nao consegue evitar a taxionomia a priori dos discursos X,Y,Z que,
em ultima instancia, seriam a mesma coisa que formacoes
discursivas. Em outras palavras, a articulacao proposta por Adam
nao consegue fugir do forte matiz estrutural do conceito de formaca'o
discursiva, tal qual fora pensando por Pecheux e seu grupo no
final dos anos sessenta. Ao pensar nesse geo-referenciamento
discursivo, Adam ve ainda a produc^o de discursividades como
determinada por uma formacao sociodiscursiva, algo que, em ultima
analise, pode ser visto como uma relacao de causa e efeito, isto £, a
discursividade seria o reflexo da formacao sociodiscursiva.
Maingueneau (2003), em um texto tambem ainda inedito aqui
no Brasil, na mesma diregao de Branca, aponta para a necessidade
de se repensar o conceito de formacao discursiva. Segundo esse
autor, tal repensar forneceria ao trabalho dos analistas de discursos
delimitacoes mais claras entre uma forma95o discursiva e outra.
Ou seja, de alguma forma essa delimitacao seria garantida
empiricamente e nao ficaria apenas a criterio dos analistas:
Foucault aus.si bien que Pecheux ont cherche a preserve]1 a la fois lecaraetere topique de.s unites auxquelles a affaire Tanalyse du discourset leur "dispersion", leur "inconsistance"...La prohlematique dePecheux faisait ainsi coexister une vision du discours profondement"anal yd que" - d'inspi ration psychanalytique preeisement - qui rnettait
1'accent sitr tes processus de defacement, de condensation OIL la
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEH^DISCURSQ, PODER, SUB3ETIVIDADE 59
presence de I ' in terdiscours dans ie distours, et une vision
caitographique en termes de "position de classe", de "formation
ideologique". Dans un tout autre registre, Foucault lui aussi presentaitune vision double de la discursivite, consistante et inconsistante tout
a la f'ois: systeme de regies et dispersion. On pent en tirer une tecon:1'analyse du discours est travaillee par une fail le constitutive, qui
I'empeche de se fenner en un espace compact. II vaut mieux 1'assumer
{MAINGUENEAU, 2003, p. 15).
A proposta de Maingueneau, embora aparentemente caminhe
na mesma direcao de Branca, difere daquela, pois carrega consigo
uma forte preocupacao com uma delimitacao empirica entre
formacoes discursivas. Ou seja, no entendimento de Maingueneau
e preciso estabelecer linhas demarcatorias entre uma formacao e
outra. Contudo, esse mapeamento de formagoes discursivas nao
pode ficar exclusivamente a cargo do olhar dos analistas. £
necessaria a construcao de limites, fronteiras que definam claramente
os contornos das diferentes formacoes discursivas ou das unidades
de analise de discursos. Maingueneau propoe os conceitos de unidade
t6pica e de unidade nao t6pica. A primeira subdivide-se em unidades
dominiais (os discursos das ciencias sociais e humanas, por exemplo)
e em unidades transversas. Estas, como o pr6prio nome indica,
atravessam as primeiras: por exemplo, os generos discursivos usados
nos meios de comunicaca:o. As unidades dominiais subdividem-se
em "tipos" de discurso: o literario, o administrative, o publicitario,
por exemplo, e em posicionamentos que sao a condi9ao e o produto
da delimita9ao de um trabalho simbolico. As unidades transversas
subdividem-se em unidades de base lingiiistica e unidades de base
comunicacional, por exemplo, os discursos divulgados pelos mais
diversos suportes midiaticos. Ha ainda as unidades nao-topicas,
que no entendimento de Maingueneau sao constriudas
independentemente de fronteiras linguisticas ou comunicacionais.
Estas tamb£m se subdividem em duas. A primeira, como formaySo
60 FOUCAULT E OS DQHiNIOS_DA LINGUAGEH: DISCUR5O, PODER, SUBJETIVIDftpg
discursiva, trata-se de uma construct do proprio pesquisador: o
discurso racista, o discurso machista, o discurso feminista etc, e a
segunda, como percurso que se constitui num modo de olhar para
os discursos levando em considerafao aspectos de natureza formal,
tipos de metafora ou de discurso reportado que determinadodiscurso mobiliza, por exemplo.
Embora Maingueneau de uma boa arrumada na tipologizapiiodas discursividades produzidas atualmente, acredito, ainda, que oconceito de genero de Bakhtin da conta de abarca-las. Falta a esse
conceito compreender o posicionamento subjetivo do seu produtor.
Diante disso, tal como Branca, acredito que seja possivel pensarnuma articulatpao entre formaclo discursiva e o conceito de generodo discurso, visto que essa articula^ao possibilita mostrar que uma
formacao discursiva possui uma autonomia dependente tanto das
instituicoes a partir das quais os discursos sao produzidos quantodo genero, isto e, aquilo que pode e deve ser dito, sofre uma especie
de regulacao, de contrainte tanto do genero discursive quanto doposicionamento institucional dos sujeitos.
Com isso, nSo sem complexidade e esgotamento, penso queseria possivel reinterpretar esse conceito, deixando de ver de um
lado o gdnero como acessorio e o posicionamento como determinante,
mas ambos como elementos essenciais no fornecimento das condicoesque possibilitam a irrupc.ao das discursividades, inserindo-as numaordem do enunciavel.37 Acredito que tal articulac&o daria conta de
explicar, por exemplo, como um mesmo slogan ou discurso politicoinscrevem-se no verdadeiro de urna epoca em distintas
17 Corn base nas ideias de Foiicault da Arqueohgia do Saber, Jean-Jacques Courtine clianiiide ordem do enunciavel o conjunto de possibilidades que determina que alguns enunciados,embora sejam aeeitaveis de urn pontu de vista lingiifstico, nao o sao de urn pnnto de vistadiscursivo, vis to que nao se inseriram no verdadeiro de uma epoca. Niio quer isso diner quesomente alguns enunciados possuam vontade de verJade. Esse pnncipio e extensivo atod«s os enunciados indistiiUamente, A questao e que .somente alguns siii> aceitos,legitimados como verdadeiros.
ULT E OS POMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 61
administrates municipals ou estaduais dirigidas pelas mais
diversas posigOes ideologicas. Ou mesmo como as mais distintas
tendeTicias ideo!6gicas existentes no ocidente aderiram, a partir do
final dos anos oitenta ao mesmo discurso da empregabilidade,enunciando que nao se trata de haver ou nao postos de trabalho,
como diz Possenti (2004), mas de os postulantes estarem ou nao
preparados para ocupar tais postos.Ao propor uma reinterpretagao dialogica do conceito de
forma9ao discursiva, com base em Branca, penso ser possivelcomecar a devolver a Analise do Discurso a sua vocacao heuristica,
visto que essa reinterpretac. ao, antes de se constituir em uma unidadeestrutural de analise que atrela o sentido a ideologia, tipologizando,(de)limitando os discursos em de direita ou de esquerda, porexemplo, o que na pratica se constituiria numa especie de
reconfigurac.ao dos procedimentos harrisianos, se apresenta comouma categoria estrategica com vocacao interpretativa que permitecompreender as condigoes ideologicas, linguisticas, composicionaise tematicas que possibilitam a irrupgao das discursividades atuais.
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E OS DOMINIOS DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 63
Uma teoria do discurso num certo prefacioMaria de Fatima Cnivinel*
0 Iiomem saba (jvc ha na alma matizex mais descmicertantes,
mats inumeraveu, e mats anommos que as cores de u-m basque
ovtimal... Cre, no entanto, que esses mattzes, em todas as \uas
Jwtoes e ciiTiversoes, fiodem ser representados com precisao par
main de um mecaniamo arbitrano de grunhiduf e chiadiis. Cre
que mesmo de dcnlro de um corretor da Baha realmente saem
rtiidos que signijicam todox us mtsterios da memorm e iodas as
o-jrimtas da de^yo.
Chesterton, 1904.
O que e afinal um prefacio? Conforme Ferreira (s/d), prefacio
e "Texto ou advertencia, ordinariamente breve, que antecede umaobra escrita, e que serve para apresenta-la ao leitor". Antecede nadisposicao em que e colocado no livro, no ato de sua edicao, o que
nao quer dizer que anteceda no ato da escrita.Compagnon (1996), em seu estudo sobre o exercicio da
intertextualidade publicado sob o titulo "O trabalho da citacao",dedica um t6pico ao prefacio, ao qual intitula "O come9o do livro e
° fun da escrita". Considerando Descartes o autor da certidao de
nascimento do prefacio moderno - uma carta enderecada ao tradutorda versao francesa de Principles da Filosqfia, que se tornou o proprioPrefacio dessa edi9ao -, o teorico frances apresenta algumas de suas
caracteristicas. O mais interessante nesse estudo de Compagnon,contudo, sao as consideracoes:
E paradoxal que o prefacio, que se le primeiro quando se abre umlivro, e que fala por antecedencia, tenha sido escrito, seniprc,
pnjlessoi-a do Ontro de En.sino e Pesqmsa Apl icada ;i lidiica^ao da Univers ic lade
64 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
talvez. por ult imo.. . Estranlio de.stino do livro: de avanca, af inalde contas, peio comedo, inverts o sent ido do raminho; assim o,sprefadob das eclicoes sucessivas. . Mais que a ronclusao, o prefacioe um acabaini-nto (nao Lima f ina l idade) da escrita. . . Ele e a u l t i m apalavra e a seguinte... De.senlace de uma historic e l iberaefto deum fantasma, ainbos da escrita, de marca a entrada do l ivro em
um uni verso diferente, o da alienacSo. da publicacao, da circula<;ao:ele e despossessao, luto, separacao. Enfim, o prefado e a provade realidade do livro, uma prova i lusona - nao escrevo senile umsi mu I aero de prefacio - ma.s suficiente (COMPAGNON, 1996,p.87).
E continua o teorico apontando curiosidades sobre esse notavel
acrescimo que se antecipa ao livro que se vai ler: ele representa
Hteralmente um momento historico, pois so o prefacio pode ser
datado e localizado. E e necessario que ele exista, porque e precise
dar um fim a escrita, acidental ou conjuntural, mas sempre simulado.
O prefacio, conclui o autor, "condena a rnorte todos os sujeitos da
escrita ... [mas conjura-a^, quando confunde a origem e o comeco"
(COMPAGNON, 1996, p.89).
Retomando a pergunta inicial, agora mais especifica: conio se
afigura o prefacio que o proprio Foucault escreve para seu polemico
livro As palavras e as coisas? Um prefacio nada facil, tal como o livro
para o qual serve de apresentacao. Ai, ja, o "fulgor quase suspeito",
de que fala Eduardo Lourenco (s/d, p.Ill), um de sens prefaciadores;
o discurso vigoroso foucaultiano seduzindo o leitor para a intrigante
relafao entre as palavras e as coisas, convidando-o a conhecer sua
proposta de arqueologia das ciencias humanas. E e ninguem menos
que o escritor argentine Jorge Luis Borges, com sua palavra
especular e especulativa, no sentido da investigacao teorica, que
FoLicault usa como isca; isca para a cuidadosa empreitada que devera
o leitor ensaiar ja na leitura do Prefacio e posteriormente realizar
na leitura do livro. Menos que explicitar o que vem a ser o Prefacio
OUCAULT E OS DOMINIOS DA LIHGUAGEM: DISCURSO.J'ODER, SUBJETIVIPADE 65
em questao, a presente leitura deixa-se seduzir, mais que isso, agarra-
se a isca, propriamente um jogo vertiginoso, a fim de fisgar alguns
sen tides.'18
O Prefacio inicia-se com a seguinte declaracao: "Este livro
nasceu de um texto de Borges", do que se depreende a compreensao
de palavra como rnurmurio de tudo o que e pronunciado,
referendado por uma escrita, a de Borges, da qual se ouve a voz
solitana de um elernento submerso no turbilhaa, -mas e uma vox acossada
por uma pletora de vozes literarias que a precederam (BLOOM, 2001,
p.53). E o texto borgiano, a que se reporta Eoucault e ao qual concede
papel tao relevante, e "O idioma analftico de John Wilkins", ensaio
que compoe o livro Outras mquisifoes, de 1964.
Nesse ensaio - localizado nao sem antes uma busca minuciosa
e exasperadora, levando a suposicao de um embuste do ironico
filosofo -, Borges reclama a supressao que a 14a edicao da Enadopedia
Britanica faz do verbete sobre o ingles John Wilkins (1614-1672)39.
0 escritor argentine afirma que, dentre as varias curiosidades do
capelao de Carlos Luis e reitor de um dos colegios de Oxford, John
Wilkins, havia um agudo interesse sen pela criacao de uma
linguagem mundial. Em seu projeto de idioma universal, idealizado
em meados do seculo 17, cada palavra defme-se a si mesma,
Descartes ja havia proposto um idioma que abrangesse todos os
pensamentos humanos, mas e Wilkins quern realiza o intento.
Examinando essa proposta, o ensaista argentine aponta algumas
ambiguidades, deficiencias e redundancias que, segundo ele,reportam aquelas que um certo doutor Franz Kuhn "atribui a certa
enciclopedia chinesa intitulada Empono Celestial de Conheamentos
tm estudo sobre o discurso de Foucault, Ribeiro (19S.1), p 25) conllrma isso, afinniiiidoll|e u presen^a dc Borges, Velazquez e Cervantes nas auali.sei do filosoib trances serve in aL'<Juzir a atencao, a pouuiar o discurso. OK tres artistas sc-riam relercncias do mundo
Pan'co, e t.stt- c.stabelece no imaginSi-io trances uma relacao iliffi-ence cum as paixoes.:* '•'»'' edicao, a umca encotitrada, foi consultada L- o referido verbele nao eonsta uela.
66 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEH; DISCURSO, PODER, SUBOETIV1DADE
Benevolos"'*0. Borges afirma ter registrado as arbitrariedades de
Wilkins, do desconhecido enciclopedista chines e ainda de uma
pesquisa do Institute Bibliografico de Bruxelas, para concluir que
nao ha classificacao que nao seja arbitraria e conjetural, e isso
simplesmente porque desconhecemos o universo que habitamos.
Poder-se-ia ate pensar, sugere o ensaista, que nao ha universe no
sentido organico, unificador; ou, se houver, entao faltaria atingir o
"secrete dicionario de Deus". E Borges fmaliza seu texto citando o
escritor ingles Chesterton*1 em passagem, utilizada aqui como
epigrafe, que trata da crenca equivocada do homem no poder que a
linguagem tern de dizer e de abarcar o universo.
Mas no texto borgiano Foucault funda a origem do seu livro
especificamente pela provocacao do riso que perturba todas as
familiaridades do pensamento de sua epoca {seculo 20) e lugar
(Ocidente), abalando todas as superficies ordenadas e todos os pianos
que. tornam sensata para nos a prqfusdo dos seres, fazendo vacilar e
mqmetando, por mnito tempo, nossa prdtica milenar do Mesmo e do Outro.
Conforme Monegal (1980, p.42), Foucault cita Borges e Ihe atribui
a motivacao para a escrita do livro, associando o texto do escritor
argentine ao que e urn dos pontos importantes de As pala-vras e as
coisas: nossa pratica do Mesmo e do Outro. Ao rnesmo tempo em
que enuncia uma das chaves de seu estudo arqueologico, Foucault
toca num dos temas centrals da obra de Borges, a qual contem,
inclusive, um livro de poemas, o preferido do proprio autor,
10 Observe-se que o texto atribuido por Foucault a Borges e atribuido por Borges ao talDr. Franz Kuhn - ao que tudci indica uma criacaii borgiana — que, por sua vez, o atribui arefenda endclopedia chiiiesa a qual, inclusive, i n t i t u l a A labirindca escritura bor<Hanaoferece-nos um belo exemplo do recurso mise-en-abime (perspectiva infinite de texiosreferindo-se a outros textos) Recurso recorrente em sua obra e que d imens ionaincoiitestavelmente sua compreensao de tingiiagem e de representacao.
Gilbert Keith Cbersterton (1fi74-193G}. Depois de ter combatido o imperialismo ingles,a Alematiha lute ran ft e a c ivi l izacao indust r ia l , consagrou .sen bumor a romances deimpii-a^ao fantastka e a novelas iioliciais.
cnUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 67
intitulado El Outro, El Mismo, cuja publicacao data de 1964, dois
anos antes de Aspalavras e as coisas, Nao e sem proposito, portanto,
qae o filosofo frances nao so reconhece mas, mais que isso, declara a
ascendencia da palavra do poeta argentine sobre seu livro.
Sobre essa ser uma das chaves do livro de Foucault, Lourenco
(s/d, p.XIII) assevera que e a consideracao da Irrazao ou Desrazao
como nucleo da verdade da Razao que constitui o autentico "lugar
de nascimento" de Aspalavras e as coisas, e nao o hiperbolico humor da
classificacao aberrante do labirintico Borges. Lourenoo ve no horizonte
$As palavras e as coisas a presen9a implicita da Historia da loucura.
Para o filosofo portugues, a 'figitra' do Louco serve a Fomault como a do
'bom selvagem' servira a Rousseau, para por em relevo afalha original de
uma Cultura que enquanto Cultura humanistica se constitui emfnncao do
seu descobnmento ativo (LOURENgO, s/d, p. XIV-XV).42
Retornando ao Prefacio e ainda a Borges, nele temos a propria
palavra como labirinto. O escritor argentine reiteradamente toma
como objeto narrative a representacao em si, pondo em xeque a
cren9a ficcional do leitor, com a inclusao freqiiente de pessoas e de
locals da vida real em sua escritura. Paradoxalmente, uma
destruicao da literatura e recriacao de uma nova literatura. Nao e a
toa que sua obra e estudada na perspectiva de uma poetica da
leitura, a leitura como escritura43.
Quando se relere ao Outro. Foucault trata priiicipalmente dos exoluidos dos diversosc'1'npos do conhecimento, por exeinjilo, ON liotiiens de desrazao: loucos, desempregados,P0i'tadores de doeiicas incomuns Pensando nesses "Outros" tais como os descreve Foucault,1Tiposaivel impedir que min l iM triemoria ti-aga a tona duas figuras humanas Cjiie marcaram
'ninlia iniancia, duas personagt-ns da loucura renascentista de que fala Foucault: Vando e^"berla. OH primeira, tinbsi medo, a segunda provocava~me repugnancia. Ele, portadora s»iidrome de Down; ela, apetias de juizo "imperleilo", Je causa nunca pesquisada. Na
ll'!iha perspectiva pueri l <_• himtada de menina do interior, o medo das tiberdades dol^'iiien-o sempre a nos sol ic t tar um aperto de mao, e o m>jo do balom alaraujado emJUiberante desordeni sobre os laluos carnudos em permanente sorriso cavalai- e amarelado.p er' P'-T exemplo. o estudo BorgK.: itma poetic* da kilatu, de Emir Rodnguex Monegal, Sao
aui0: Perspectiva, HISO
68 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIV1DADE
Sao imagens recorrentes em sua obra: enciclopedia, biblioteca,
espelho.1 '* Disso, a compreensao de livro como urn labirinto e
equivalendo-se ao proprio universe. "Para Borges, o mundo e unia
ilusao, uma especula9ao, um labirinto, um espelbo que reflete outros
espelhos", considers o cn'tico Harold Bloom (2001, p. 53). Mesmo
em situacao de dicionario, configuradas em verbetes, as palavras
deixam escapar sentidos. Apresentam-se circunscritas, mas como
que em gavetas de fundo falso, por onde os sentidos fogem ao
controle da suposta objetividade desse tipo de discurso. Dai duas
dificuldades do leitor: ceder a tentacao de correr atras dos sentidos,
que nunca chegam a termo, ou dar por acabada sua leitura. Uma
palavra leva a outra, incessantemente, um livro leva a outro e mais
outro, uma estante leva a outra. A biblioteca, em sua materialidade
fisica ou imaginaria, sem sempre completamente reconhecivel nas
referencias bibliograficas, e o pr6prio labirinto. Aqui, essa imagem
tern em seu horizonte ainda o livro de papel; se pensamos no texto
eletronico, uma enciclopedia, por exemplo, com seus inumeros links,
nosso desejo etictcfopedtco e nossa compulsao por nos deixar enveredar
pelo labirinto, muito mais complexo em se tratando da
hipertextualidade, aumenta consideravelmente em proporcao. Que
navegador nunca tera se perdido ou deixado escapar sua pesquisa
original nas veredas que se bifurcam virtual e incessantemente?
No texto citado por Foucault ha tambem a referenda a uma
enciclopedia, uma obra a qual estamos habituados a imprimir
autoridade. Mas trata-se de uma enciclopedia cujo verbete
focalizado propoe uma classifica9ao (dos animais) que causa
estranheza; estranha nao pelo fantasmagorico ou insolito, mas pel a
E pertinents lembrar, aqm, a observafao de Ribeiro, em obra cilada, sobre o tascini" &e
Foui_;uill |ie!a literature; trata-se, segimdo esse estudioso da obra foucaul t iana, de m"amor pclas palavras, que podt^ ser caracterizado uomo uma "b ib l i o f i lm" "um amor 'borgiano - ;,s bibl i<jtecaK, ;i sens textot L|ii<j subvertem dala.s e enquadrainent<is".
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PQDER, SUBJETIVIDAPE 69
sua vizinhanca, instaurada pela enumeracao alfabetica, num espaco
\: O que transgride toda imagi.nac.aQ, todo pemamento possivel, e
serie alfabetica (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada
dessas categonas, conclui Foucault (1987, p. 6). Como se nao
bastasse essa referencia tao contundente a enciclopedia chinesa, o
autor reitera nao se tratar da extravagancia de encontros insolitos,
mas de um poder de encantamento da enumera^Jio, citando um
certo Eustenes"k<i:
Ja nao estou em jejum, diz Eustenes. Por todo o din de hoje estarao asalvo da m i n h a sal iva: Aspides, Anf i sbenas , A n e r u d u t o s ,AbedessimOes, Alartas, Amobatas, Apinaos, Alatrabas, Aractes,Asterios, Agcarates, Arges, Aranhas , Ascalabos, Atelabos,Ascalabotas, Aemoroides... (FOUCAULT, 1987, p. 6).
A relacao das coisas com as palavras que as nomeiam, eis
a questao. £ disso que Foucault quer falar: da linguagem como
o lugar de todas as possibilidades, do nao-)ugar da linguagem
tal como um espaco impensavel , enfim, uma l inguagem
arruinada. Assim como os animais da referida enciclopedia
chinesa so podem se encontrar na linguagem, todos os verities e
serpentes enumerados por Eustenes, apesar de seres de podridao
e viscosidade,
fervilham, como as silabas que os nomeiam, na saliva de Eustenes: e aS
que todos tern seu lugar... Era decerto improvavel que as hernorroidas,
as aranhas e as am6batas viessem um dta se mistiirar sob os dentes de
Eugenes: rnas, afina! de contas, nessa boca acolhedora e vora/., tinham
reahnente como se alojar e encontrar o palacio de sua coexistencia.
(FOUCAULT, 1.987, p. C).
"e'"si»iagem? Autorf Quern seria Eustenes? Sobre ele, a]»enas uma nebulosa pista: Havi -d ettstema que, conforrne vei'bete do Diccionario Encidopedicv Salvat, e termo da
"Cina e sig-mfica 'Tui\a organica normal"
70 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUflGEM: PISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
O impossivel, conclui Foucault, ndo e a vizinhan$a das coisas, e
o Ingar mesmo onde etas podenam amzinhar-se. E esse lugar e a
linguagem, que nomeia, possibi l i tando a existencia de tal
classificacao, mas ao mesmo tempo abre ao infmito. Linguagem
mascarada e, igualmente, denunciada por Borges no abecedario
utilizado para a enum.erac.ao, ou seja, na propria lingua, ja que nao
aponta o quadro esperado, aquele que utilizamos para nomear, falar,
pensar os objetos ou seres que tomamos para conhecer, os quais
normalmente dispomos, obedecendo a uma ordem, um lugar, um
espago, representados por um e, um em, um sobre. Um quadro sobre
o qua] se possa esquadrinhar os seres conforme uma disposicao,
uma reparticao em classes que resguarde suas semelhangas e suas
diferencas.
O riso provocado pelo texto borgiano e, contudo, um riso azedo,
inquieto, porque provocador da
suspeita de que ha desordem pior que aquela do 'incongruente' e daaproximac3o do que nSo convem", ou seja: "a desordem que fax cintilaros fragmentos de um grande numero de ordens possiveis na dimensao,sem lei nem geornetria, do heteroclito (FOUCAULT, 1987, p.7).
Na dimensao, portanto, do que se desvia do principio de
analogia. Um riso que incomoda porque, continua Foucault,
enquanto as Utopias consolam, as heterotopias inquietam, uma vez
que solapam a linguagem, trazendo a tona possibilidades de relacoes
impensaVeis entre as palavras e as coisas.'Mi
Mas Borges situa sua narrativa fora desse espaco (o Ocidente)
em que a ordem irnpera. Trata-se de uma enciclopedia chinesa, o
ou representa^So de qualquei- kigar on situa^iiopulft icas altamente aperiei^oadus, enquanto
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIPflDE 71
que assegura, digamos, uma certa verossimilhan$a, que nos alivia
do incomodo. Situa numa lingua em que a propria escrita nao
reproduz em hnhas horizontals o voo fugidio da voz. O que a
enciclopedia propoe conduz o leitor a uma outra possibilidade
de compreensao dos seres, a
um pensamento sem espaco, a palavras e categorias sem tempo nemlugar, mas que, em essencia, repousam sohre um espaco solene, todosobrecarregado dc figuras complexas, de caminhos emaranhados, delocals estranhos, de secretas passaj^ens e imprevistas cornunica^oes
(FOUCAULT, 1987, p.9).
Eis a ligao provinda de Borges: abrir as janelas do imaginario,
cavar no seu roteiro o inesperado, liberando-o dos habitos de uma
razao preguigosa, satisfeita com filiagoes e totalidades, enfim,
desconcertar os habitos de nossa razdo parafazer-nos pensar (RIBEIRO,
1985, p.34). E a partir dessa nova possibilidade, inicialmente
impensada, que Foucault lanca a grande questao de seu livro: grosso
modo: como se da a relagao entre as palavras e as coisas? E sua
estrategia e a interrogacao:
Em que "tabua", segundo qua! espaco de identidades, de similitudes,
de anaiogias, adquirimos o habito de distribuir tantas coisasdiferentes e parecidas'J Que coerencia ^ essa — que se ve logo naoser nem determinada por um encadeamento a priori e necessiirio,nem impos t s por c o n t e u d o s i m e d i a t a m e n t e s e n s f v e i s ?
(FOUCAULT, 1987, p. <>).
Tudo e orientado segundo uma Ordem, afirma o filosofo
trances; isso porque as leis que fundam uma cultura, ou seja, os
codigos aos quais se subordinam sua linguagem, seus esquemas
perceptivos, suas trocas, suas tecnicas, seus valores, a hierarquia de
suas praticas,t/mtm, logo de erttrada, para cada homem, as ordens empiricas
72 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
com as quais terd de lidar e uas quais se ha de encontrar. Por outro lado,
noutra extremidade do pensamento, ha os que justificam essa ordem:
por que, que leis a regem. E entre esses extremes - o do olhar
codificado (o dos codigos ordenadores) e o conhecimento reflexive
(as reflexoes sobre a ordem) -, ha o entremeio que libera a ordem no
sen ser mesmo Q...J a experiencia nua da ordem e de sen modos de ser
(FOUCAULT, 1987, p. 11).
E dessa experiencia que Aspalavras e as coisas tratara: desde o
seculo 16, observando a linguagem, tal como foi falada, os seres
naturals, tais como foram reunidos e percebidos, as trocas, tais como
foram praticadas, passando pelas instancias da gramatica, da
historia natural e do estudo das riquezas, ate chegar ao que se
chamou, na modernidade, filologia, biologia e economia polftica.
Uma abordagem, esclarece Foucault, que nao intenta a descricao
de uma evolucao desses campos de saberes, mas a descricao de suas
condicoes de possibilidades, trazendo a luz sua episteme, ou seja, o
solo origindrio a partir de que o conhecimento se tornou possivel, o a
priori lusl.6ri.co que permtte on veda deLc,rnuttadas c&iifiguracdes do saber
(ROUANET, 1971, p. 97). Por isso, trata-se nao de uma historia
mas de uma arqueologia - em sentido geral, a ciencia das formacoes
discursivas, que sao conjuntos de enunciados (segmentos de
discursos) definidos nao em sua materialidade de atomos mas por
sua forma de existencia, conforme Rouanet (1971, p.103).
E com essa abordagem que serao apontadas as
descontinuidades que marcaram a cultura ocidental: a renascentista,
a classica, a moderna. E e nesse percurso que Michel Foucault
concluira so poder haver ciencias humanas - psicologia, sociologia,
antropologia -, a partir do momento em que o homem, propriamente
dito, e tematizado como objeto e como sujeito do conhecimento, ou
seja, como objeto e fundamento ao mesmo tempo.
Se a abertura foi feita com Borges, bebendo em sua magniflca
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIPADE^ 73
fonte de conhecimentos ao tomar-lhe emprestada a citagao que faz
de Chesterton, suspende-se por hora a leitura do Prefacio, fechando
tambem com o ensaista argentine, em citacao que fax do filosofo
escoces David Hume:
O mundo talve/ seja o rudimentar esbo<;o de algum deus infant!)que o abandonou pel a metade, tmvergonhado dt sua execui;aodelicitnte; ou a obra deum deus subalterno, alvo de /.ombaria dosdeuses superiores; ou a confusa producao de uma d iv indadedecrepita e aposenlada, que jd inorreu. (HUME, 1779, apudBORGES, yooo).
Referencias bibliograficas
BLOOM, H. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
BORGES, J. L. Outras inquisicoes. In: Obras completas. v.2.
Sao Paulo: Globe, 2000.COMPAGNON, A. O trabalho de cita^ao. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1996.Diccionario Enciclopedico Salvat. Barcelona: Salvat Editores,
1955.
FERREIRA, A. B. H. Novo dicionario da lingua portuguesa.
Led. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia
das ciencias humanas. 4.ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 1987.LOURENQO, E. Michel Foucault ou o fim do Humanismo.
In: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Lisboa: Portugalia
Editora, s.d.MONEGAL, E. R. Borges: uma poetica da leitura. Sao Paulo:
Perspectiva, 1980.RIBEIRO, R. J. O discurso diferente. In: Recordar Foucault:
74 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
os textos do Coloquio Foucault. Sao Paulo: Brasiliense, 1985.ROUANET, S. P A gramatica do homicidio. In: O homem e o
discurso: a arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1971.
Capftulo 2
Foucault/ o discurso e a Historia
FOUCAULT E OS DOHJNIOS DA LINGUftGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDftOE 77
A descontinuidade da historia:
a emergencia dos sujeitos no arquivo.Vanice Maria Oliveira Sargentini
A histnria nao cessa de nuj enmnar — o discurso nau &
simplexmenle aifuilo que t.ruduz a.i tufas tin ox sistemtis de.
dommafao, mas aqiiiin f>or que, pelo c/ue XL' luta, o poder da
quai noi cfueremt/x apodemr.
Michel Foui-auU
Ao centrar-me na proposta deste livro de refletir sobre asarticulates entre os estudos de Michel Foucault e os dominios dalinguagem, observe! a necessidade de recuperar estudos iniciais
que exploram os pontos de contato e equivocos presentes na relacaoentre lingiustica e historia para, entao, situar as relagoes existentesentre discurso e historia. Para tra9ar esse percurso, conto com os
avangos propostos por pesquisadores que ancoraram os estudosatuais da Analise do Discurso, sobretudo, Michel P^cheux e MichelFoucault.
Entretanto, as variantes nesse campo sao mint as. A primeiratrata-se da impossibilidade, na atualidade, de se tomar a anatise do
discurso como uma teoria homogenea. Muitos sao os artigos(LANGAGES, 117, CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 200*)
que apontam para a diversidade desse campo de pesquisa. Outra
variante refere-se ao desenrolar, do ponto de vista teorico, dos estudosapresentados pelos autores que amparam e estruturam reflexoessobre o discurso. Michel Pecheux, em seas escritos publicadospostumamente, indica tres epocas, cujos pressupostos teoricos sofrernmodificacoes, fazendo-o rever suas conccpcoes sobre o sujeito e o
Prole.ssiira da Universidade Federal de Sao Cai'Ioi, SP (LIFSCar).
78 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA UNGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
discurso (PliCHEUX, 1990). De forma semelhante, Foucault,
tambem ao olhar retrospectivamente para suas obras, observa que
o desenvolvimento de seus estudos leva-o a crftica do sujeito, mas,para tal, passa por fases diversas como a arqueologica, a geneaI6gica
e as reflexoes sobre a etica e a estetica de si.
A mudan9a epistemologlca que se da no interior das ciencias
humanas, sobretudo em relacao £ historia cronologica e a lingiiisticaestruturalista, sustenta um novo modo de estudar o discurso e os
sentidos. Assim, neste artigo torna-se importante abordar aconcep9ao de descontinuidade da Hist6ria, questSo tao bemdiscutida por Foucault em A arqueologia do saber e que sustenta oconceito de arquivo tao caro a Analise do Discurso.
Seguindo o rumo de refletir sobre a critica do sujeito no interior
dos estudos do discurso, busco, ainda, urn modo de apontar aemergencia do sujeito no arquivo.
Assim, o prop6sito deste texto e indicar as articulacoes
construidas entre discurso e historia, recuperando reflexoes de
historiadores e de estudiosos do discurso. Conseqiientemente, torna-se tarefa indicar as relacoes na Analise do Discurso entre discurso,arquivo e historia e como tais conceitos orientam algumas reflexoessobre o sujeito.
A Analise do Discurso e a Historia
As redoes edificadas entre linguistica e historia e,posteriormente, entre discurso e historia emergem a partir do modeloestruturalista e da desestabilizacao desse modelo. A Linguistica,durante algum tempo, desfrutou do status de ciencia piloto, deparadigma das ciencias humanas, marginalizando outras ciencias,sobretudo a Historia, vista sob alguns olhares como prima pobre,
QUCAULT E OS OOMJNIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 79
pelo fato de voltar-se a diacronia, de considerar a ftincao de umajdeologia. O historiador, naquele momento, rende-se ao desejo da
ciencia formalizada e, segundo Robin,
O que o historiador pedt! ao lingiiista e muito circunscrito, e por issomesmo corre o risco de ser levado a serio. Ele nao the pede, <ie
maneira nenhuma, a funcao de urna ideologic, que .somente poderiaser elucidada pelo estabelecimento de uma relacao da ideologia a
fbrmagao social no sen con junto e ao papel que essa ideologiadesempenha quanto a reproducao das relacoes sociais... Para encontrar
a funcao de uma ideologia, e precise sair do texto, mudar de terrenoe pa.ssar da Linguistica a Historia. Mudar de terreno: o que quer dixerque, se a Lingiiistica descreve o texto, se diz precisarnente o queexiste no texto, SCLI aiTanjo interno, nao nos dA suy chave nem afuncao. Ela ordena a ideologia, mas o qne significa socialmente a
ideologia estii tbra de sen campo. O historiador nao solicita mai.s ummodelo a Lmgiii.stica. | ...] O que ele solicita ao lingtiista e qne oensine a ler o que estii no texto, e esta questSo e nienos ingenna do queparece a prime!ra vista. Ele ]he pede que o ajude a desbastar o texto e
a ordena-lo (ROBIN, 1977, p. 19).
Sabe-se, entretanto, que o dialogo posto dessa forma entre
linguistica e historia nao resiste quando se levantam questoes maiscomplexas ate entao ocultadas como os sentidos, o sujeito e as
condigoes socio-historicas deixadas de lado em uma 'exterioridade
linguistica'.Os sentidos construidos no interior de um texto, que antes
deveriam ser encontrados unicamente pela analise linguisticaestruturalista, passam a ser questionados pelos estudos semanticos,ja que nem a imanencia nem a logica dao conta dessa produ^ao de
sentidos. A compreensao do sujeito como neutro, transparente a siniesmo e livre de determinac.des sociologicas ('eu falo1) tambem naoresiste a entrada das reflexo'es marxistas ('fala-se') e freudianas('isto fala') nos estudos da linguage'm. Assim, a rela5ao entre
80 FOUCAULT E QS DOHINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADg
linguistica e historia desloca-se para um outro ni'vel:
Digamo-s, numa prirneira aproximacao, que o liistoriador nao tern que
lidar com o codigo, com a Imgua, on antes, tern que l tda r com eles,
mas como base, como materia-priina; sen objeto no en tan to, se ele ,se
considera liistoriador das manileslacocs, dos efeitos ideologicos, nao
e o sistema, o model o dt coinpctenna, a lingua, mas os fatos de fala
precisos, ficando entendido que con vein desembaracar o termo de
suns c:om>tricoes filosoficas precedt'ntemente evocadas - numa palavra,
dos discursos (ROBTN, 1977, p.25).
Nessa perspective, toma-se o discurso como objeto de estudoe nao exclusivamente a lingua. Aos historiadores interessa aarticulacao das praticas discursivas sobre as praticas nao
discursivas no interior de uma formacao social. Inclui-se, assim, aideologia no conceito de discurso, atendendo aos questionamentospostos no interior da linguistica, bem como se passa a levar emconsideracao a Historia no interior do estudo da lingua.
Os estudos pautados nesta articulacao Discurso e Historiasurgem com o nascimento da Analise do Discurso, baseada nostrabalhos de Pecheux. Para esse autor nao se tratava de alianga dedisciplinas, mas de pensar o discurso entre o real da lingua e o real
da historia. Quanto a categoria "discurso como objeto da historia",alguns estudos desenvolvem-se, sobretudo, a partir da publicacao
do livro Historia e Linguistica*", de Regine Robin e da ohm Langagese ideologies. Le discours comme objet de I'kistotre, organizada por
Guilhaumou, Maldidier, Prost e Robin (1974). Instala-se,desencadeada por esses estudiosos, a interseccao entre a analise dodiscurso e os historiadores preocupados com os estudos dasmanifestacoes e dos efeitos ideologicos. O Coloquio Historia e
" E.sta obra foi publicada em Pans em 1373 e ;i tradui^ao brasileira data de 1977.
FQUCAULT E OSJJOMJNIOS PA LINGUASEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 81
Lingilfstica realizado na Escola Normal Superior de Paris em 1983e, ainda, outro evento que indica a articulacao entre esses campos
de conhecirnento, bem como a obra Discours et Archive deGuilhaumou, Maldidier e Robin (1994), cujo objetivo e reunir uma
serie de trabalhos publicados entre 197G e 1990, "concretizandouma colaborac.ao exemplar entre uma lingiiista e dois historiadores
no campo in te rd isc ip l inar da Anal i se do Discurso"(GUILHAUMOU, MALDIDIER e ROBIN, 1994, p. 5).
As pesquisas desenvolvidas nesse campo do discurso e dahistoria trouxeram contributes extremamente relevantes para as
duas areas. Varies conceitos como arquivo, trajeto tematico eacontecimento discursivo sustentam nos anos seguintes o desenrolardos estudos que tomam o discurso como objeto da historia.
No Brasil varias pesquisas tern sido desenvolvidas por
pesquisadores nesse campo, dentre outras e possivel arrolar algumaspublicacoes como a traducao e organizacao de artigos sobre o temaem Gestos de Leitura: da historia no discurso (ORLANDI, 1994) e em
Pa-pel da Memona (ACHARD et al.,1999) e varies artigos emFiligranas do discurso: as vozes da historia (GREGOLIN, 2000).
E preciso considerar que para os estudos avancarem nessaarea nao se pode prescindir das reflexoes que Foucault (1986)
apresenta em A arqiteologia do saber, especialmente em rela9ao adescontinuidade e ao arquivo. Se Foucault revoluciona a historia,
como diz Paul Veyne (1998), tal movimento tambem lan^ainterferencias nos estudos do discurso, com os conceitos de discurso
e de formagao discursiva.Estudiosos da teoria do discurso e, por extensao, de uma teoria
das ideologias nao raras vezes questionam o posicionamentoideologico da teoria foucaultiana. Lecourt, (1970), Robin (1977) eMaldidier, Normand e Robin (1994), concordam com Foucault(1966) sobre a nao evidencia do dado'discursivo, sendo necessario
82 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIOADE
se perguntar o porque da ocorrencia de tal enunciado e nao outroem seu lugar, e sobre a nofSo de discurso como pratica. Entretanto,
criticam um certo numero de reducoes (alusao a historia, elisao dolinguistico e elisao do significance) e o carater muito geral ou
ambiguo de certos conceitos, como o de sujeito definido corno
'descontinuidade' e o de texto como 'espa^o de dissensoesmultiplas', ambas nogoes direcionando para a necessidade deuma arqueologia. Assim, Maldidier, Normand e Robin (1994?)
marcam pontos de recusa e de relevancia em relagao as reflexSesde Foucault (1986):
Portanto, nem ciencia nein (ilosofia, mas "discurso sobre os discursos","discurso diagnostics", nos tomamos a Arqueologia por aquilo que
ela da, is to e, nao teoria, mas "somente uma linha de ataque da analisedas performances verbais"; a este respeito, reteremos dela suasexigencias de desconstrucao e certos conceitos que, marcando o lugardos prohlemas mais que teorizando~os, podem ser pontos de partidana elaborat-So dt uma teoria do discurso.
Esses conceitos, que nos damos o direito de remanejar em funcao de
nosso pr6prio empreendimento s3o: o discurso - a pratiua discnrsiva- a fnrmagSo discursiva (MALDIDIER, NORMAND e ROBIN, 19!)4,p. ai).
Robin (1977) tambem marca sua posicao ideologica que a fazdistanciar-se de Foucault:
Nuim palavra, M. Foucault, no que diz respeito ao horizonteepistemologico da constituicao no campo da Histoi'ia do ohjetodiscursivo, nos tra/- uma jjrande contrjbui^ao quando declara guerraa Antropologia do sujeito, aocontinuismo ern Historia, tl Historia dasideias, a hermeneutica do sentido; quando coloca no nucleo de suaj'eflt-fxao a obsfssao das relacoes da pratica discursiva e das prflticasnao discursivas. Deixa-nos imj^otentes, encretanto, para refletirmossohre usta relacSo, pela elisao que fax. dos conceitos do materialismohistoi'ico, por seu discurso paralelo ao inarxismo, segund
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO. PODER, SUBJETIVIDADE 83
expressao de D. Lecourt. Deixa-nos impotentes para refletir sobre oobjeto discursivo pela elisao que fa/- tambem da estrutura lingiii'sticado discurso. De onde o lugar que Ihe e devido neste capitulo, centrale marginal ao mesmo tempo, ponto de apoio e de impasse, ao mesmotempo e no mesmo momento, aquilo a partir de que tentaremosconstruii' o objeto discursivo "series discursivas" e aquilo a partir deque sera neressario formular de novo o problema da insergao da
pratica discursiva no conjunto das praticas sociais (ROBIN, 1977, p.
Assim, as reflexoes de Foucault, ao mesmo tempo em que
interessavam aos estudos do discurso, eram questionadas porestudiosos dessa area. Apresentar-se como um fllosofo de esquerdana Franca, nos anos 60 e 70, tinha praticamente como pressupostoo apoio ao ideal marxista, porem para Foucault as lutas politicas
nao deveriam ser travadas tendo apenas como opositor as grandesinstituigoes capitalistas. Para o fllosofo, tais instituicoes sustentam-se pela existencia de aparelhos e de praticas que favorecem a
governabilidade, seja por estrategias ou taticas presences nas
relacoes de saber, de poder ou de producao de verdades.Nestas ultimas decadas (80, 90), havendo uma tendencia da
Analise do Discurso, sobretudo na Franca, em voltar-se paraquestoes situacionais e conversacionais, promoveu-se um
apagamento da dimensao da historia na Analise do Discurso.Considerando a sociedade inscrita neste novo seculo, - quando
a luta de classes modifica sua forma, desloca-se das relagoes de
enfrentamento entre classe proletaria e burguesa, para umchamamento de valoriza^ao e defesa das minorias'*8, - torna-se urncaminho pautar-se, para alem da Arqueologia do Saber, nos estudosfoucaultianos que buscam analisar e categorizar as formas de poder
** A aniilise de progrnmas de governo do pleito de/JOOy. aprest-nt;ida por mim no artig'o
"Identidade do Tralialhador no imaginano do povo' (no prelo), reJin\a ta! observa<,'a°
84 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
e os processes de subjetivagao.4i]
Pautados nessa reflexao, torna-se relevante, na seqiiencia,
retomar dois conceitos centrais apresentados por Foucault na
Arqueologia-. a questao da descontinuidade e a nocao de arquivo.
Assim, posteriormente, buscarei localizar com mais clareza em que
mementos de suas pesquisas desenvolvem-se os estudos sobre o
poder e o sujeito.
A descontinuidade da Historia
Foucault (1986) questiona na historia o estudo dos longos
periodos, os encadeamentos e seqiiencias necessarias entre os
acontecimentos. Opoe-se, portanto, a toda continuidade irrefletida:
Em suma, a hist6ria do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia,da literatura, parece mult ipl icar as niptunas e buscar todas asperturbacoes da continuidade, enquanto que a historia propriamente
dita, a historia pura e simplesmente, parece apagar, em benefkio dasestruturas fixas, a irrupcau dos acontecimentos (FOUCAULT, 1986,p. 6).
Tais reflexoes de Foucault sobre a descontinuidade encontram
campo fertil, particularmente, em importante corrente dos estudos
da historia, a Escola dos Annales. Para mais bem compreender as
relagoes entre discurso e hist6ria torna-se relevante que aqui se
retome o percurso da escola dos Annales f\\^Q, ao reconhecer a historia
como uma ciencia em construcao, recusa a historia positivista,
desestabilizando a historia historicizante hegemonica (DOSSE,
1992).
*' .UCourtine, nil Conterencia de Abcjrtura do 1" SEAD, em Porto Alegre, taz men^ao a
«ste chrei-ioiiarnento na Anahse do Discurso, do ponro de vista ideologico.
FOUCAULT E OS DOHJNIOS DA LINGUAGEM! DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDAPE 85
A escola dos Annales apresenta suas primeiras reflexoes ao
final da decada de 2O, fazendo oposigao sistematica a historiografia
dominante, rejeitando o capitalismo e o regime totalitario. Lucien
Febvre e Marc Bloch, representantes da primeira geragao dessa
nova escola, defendem uma intervengao ativa dos historiadores
perante os documentos e arquivos, considerando que o historiador,
ao organizar seu material de analise, devera compo-lo com
documentos em series inteligfveis integrados a um quadro teorico
formulado a partir de questoes a serem investigadas. Embora essa
geragao admirasse alguns aspectos das proposigoes marxistas,
preferiam manter-se distante do relate politico e eleger o homem
como o objeto da hist6ria.
Nas decadas seguintes, embora se mantivesse um
estruturalismo acentuado em alguns domlnios das Ciencias
Humanas, sendo em especial a lingiilstica vista como ciencia piloto,
Braudel, o nome interrnediario entre a primeira e terceira geragao,
leva a escola dos Annales a resistir ao estruturalismo, propondo
que "a historia e o homem e o resto. Tudo e historia, a terra, o
clima, os movimentos geologicos".50 Contribui, assim, em relagao a
primeira geragao, para a descentralizagao do homem no que tange
a escrita da historia. Esse historiador privilegia uma historia
naturalizada e, ao decompor a unidade temporal, permite o estudo
de objetos heterogeneos, abrindo caminho para os estudos de uma
'historia em migalhas'.
A escola dos Annales, em sua terceira geragao, da um novo
rumo ao estudo da historia, passando a reconhece-la no interior de
sua heterogeneidade e como uma fragmentacao do real. Nasce, assim,
a Nova Hist6ria, que considera as questoes sociais e culturais, que
levam o historiador a observar as relagoes de poder, ja que a difusao
™ F Braudel, Magazine litteratre, entrevista, novembro de 1984, p.2a
86 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
do dominio cu l t u r a l tern como mediadores grupos socials
possuidores de um discurso dominante e de poder.
Foucault (1986), no capitulo introdutdrio de A Arqueologia do
saber, exalta a importancia da mutacao epistemologica que se
processa na historia. Seus trabalhos anteriores (As palavras e as
coisas; A historia da loucura; O nasdmento da dinicd} sao um con junto
de estudos que questionam a forma de teorizagao do conhecimento
ou que aplicam a nocao de fragmentacao do saber em analises
historicas concretas, como o estudo sobre a loucura, a prisao ou a
sexual idade. Nesse contexto, cristaliza-se a nocao de
descontinuidade; o historiador deixa de buscar o reencontro com a
totalidade da historia e tambem aceita a irnpossibilidade de
reconstituir integralmente o sujeito a partir da historia. A reflexoes
foucaultianas exigem que se evite todas "as continuidades irrefletidas
pelas quais se organ izam, de antemao, os discursos que se pretende
analisar" (FOUCAULT, 1986, p. 27). Dessa forma, e precise
renunciar a crenca de que seja possivel chegar a irrupfao de um
acontecimento verdadeiro, pois jamais seria possivel ao homem dele
reapoderar-se integralmente - e, conseqiientemente, de si mesmo.
Nessa concepcao passa-se a tratar o acontecimento no jogo de sua
instancia, na pontualidade em que aparece e em sua dispersao
temporal.
Os estudos do discurso articulam-se, assim, a escrita da
historia, ja que em ambos observam-se as praticas discursivas; -
essas regularidades que ganham corpo seja em um conjunto tecnico,
em uma instituicao, cm formas de difusao. Elas estao submetidas a
um jogo de prescribes que determinam exclusoes e escolhas
(FOUCAULT, 1997).
Entretanto, para sustentar tal perspectiva de estudo, torna-se
precise recolher e organizar o material a ser analisado sob um novo
enfoque. Esse se refere a concepcao foucaultiana de arquivo, que em
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SLJBJETIVIDADE 87
seu bojo traz contribuicoes centrais para os estudos da Analise do
Discurso.
Arquivo
Esta longa citacao de Foucault introduzJra nossas discussoes
sobre o conceito de arquivo:
Nao entendo por esse termo (arquivo} a soma de todos os textos que
uma cultura guardou em seu poder, como docurnentos de seu proprio
passado, ou como testanunho de sua identidade mantida; nao entendo,
tampouco, as instituicoes que em determinada sociedade, permitem
registrar e conservar os discui'sos de que se quer ter lembranca e
manttr a l ivre disposicao. Trata-se antes, ao contrario, do qiie faz com
que tantas coisas ditas por tantos homens, ha tantos milenios, nao
teriham surgido apenas segundo as lets do pensamento, ou apena.s
segundo o jogo das circunstancias, que nao sejam simplesmente a
sinalizacao, no nfvel das performances verbais, do que se pode
desenrolar na ordem do espirito ou na or Jem das coisas; mas (|iie
tenham apareddo gramas a todo jogo de relates que caracteri/am
particnlarmente o rilvel discursivo; que em lugar de sereni tiguras
adventfcias e como que mseridas, um pouco ao acaso, em processos
mudos, na.s<;am segundo regularidades especiiicas: em siima, que se
ha coisas ditas - e somente estas - nao e precise perguntar sua ra/.So
imediata as coisas que af se encomrain ditas ou aos homens que as
disseram, mas ao sistema da discursividade, as possibiliJades e as
impossibili Jades enunciativas que ele conduz. O arquivo e, de infcio, a
lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento Jos
enundados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo e, tambem,
o que fa/, com que todas as coisas ditas na"ose acutnulem indefinidamente
em Lima massa amoria, nao se inscrevam, tampouco, em uma linearidade
seni riiptnra e nSo desaparecam ao simples acaso de acidentes externos,
mas <|iie .se agrnpem em figuras distintas, se componham umas com
as outras segundo relacOes nn'iltiplas Q...1 (FOUCAULT, 1980, p.
88 FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Foucault atribui ao conceito de arquivo o vinculo imediato aosistema da enunciabilidade, as regularidades especificas inscritas
nos textos. Porem, ele nao propoe uma analise aplainada dos textospara buscar as regularidades e as relacoes; ao contrario, considerao valor do arquivo nao em sua unificacao, mas na especificidade decada texto, na representatividade que este sinaliza no arquivo, ou,como afirma Marandin, partindo de Foucault:
O conjunto de enunciados constitui o arquivo de uma epoca. Esteconjunto nao 6 a cofecao de um espaco homogeneo (o espirito de umaepoca, itm estado de cultura ou de civilizacao) de tudo o que fbi dito, de
tudo o que .se diz, rnas um conjunto de regioes heterogeneas deenunciados produzidos por pra"ticas discursivas irredutfveis(MARANDIN, 1<J79, p. 48).
O conceito de arquivo proposto por Foucault (1986), assimcomo o de descontinuidade, reelabora a forma de organizagao doscorpora nos estudos da historia, que antes privilegiavam a formalinear e cronologica, o continuismo, a hermeneutica do sentido. Elege-se o metodo arqueologico de analise que se ocupa em descrever osdiscursos como praticas especificadas no elemento do arquivo.
Estendendo-se aos estudos do discurso em seu relacionamentocom a historia, a nogao de arquivo tambem e de relevanteimportancia. Fonte de reflexSes na tese de Courtine, publicada naLanguage, 62 (COURTINE, 1981), a concepcao sobre a constituicaodos corpora rompe com o postulado da homogeneidade. Inscreve-seo enunciado num conjunto de formulacoes - produzindo "um nonuma rede" para citar Foucault (1986, p. 26). Compreende-se,assim, o enunciado numa relacao horizontal em relacao a outrosenunciados no seio do intradiscurso e numa relacao vertical emrelacao a formulacoes que podem ser descobertas em outrasseqtidncias discursivas, no interdiscurso de uma formacao discursiva.
FOUCAULT E OS POMJHIOS DA LINGUAGEM! DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 89
Considerar como parte da constituicao do corpus, em Analise doDiscurso, essa rede de formulacoes, ou dominio associado
(FOUCAULT, 1986), exige trabalhar com um conceito de arquivono qual seja possivel flagrar o sistema da formagSo e datransformagao dos enunciados obtidos a partir de uma grandediversidade de textos, de um trajeto tematico, de um acontecimento
discursive.Guilhaumou, Maldidier e Robin (1994) apontam que
lingiiistas e historiadores, apos vinte anos de trabalho em Analisedo Discurso em contato corn a historia, sao chamados a refletirsobre a questao do corpus, suscitando uma abertura por meio da
nocao de arquivo.
O arquivo no interior do qual a analise do discurso classica recortavasens corpus tinha como origem series textuais impressas, ja" conhecidase analisadas pelos historiadores. Quando eventuaimente nosinteressavamos por sua materialidade, n6s a tomfivamos como uma
evidencia.Na ]>erspectiva atual, consideramos a complexidade do fato arqui vista.O arquivo nunca ^ dado a priori, e ern uma primeira leitura, seufuncionamento e opaco. Todo ai-quivo, principalmente manuscrito, eidentificado pela presenca de uma data, de um nome proprio, de uma
chancela institucional etc., ou ainda pelo lugar que ele ocupa em umaserie. Essa identificacao, puramente institucional, 6 para ti6sinsuficiente: ela diz pouco do funcionamento do arquivo. Nossa praticaatual de analise do discurso retoma as preocupacoes dos historiadoresde mentalidades, que na construcao de objetos como a morte, o medo,o amor, o profano e o sagrado, instalam pela confrontacao de seriesarquivistas, regimes multiplos de produ^ao, circulacSo e leitura detexto (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1.994, p. KM).
Considerando que a arqueologia e a sele9ao e descricao doarquivo, as relacGes que se estabelecem entre a analise do discursoe o metodo arqueo!6gico pautam-se na tomada das praticas
90 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
discursivas como objeto de estudo, sendo o enunciado consideradopara alem da realizacao lingCiistica. O metodo arqueologico focalizaas praticas discursivas que constituem o saber de uma epoca, apartir de enunciados efetivamente ditos e o funcionamento dos
discursos. Assim, o enunciado £ apreendido como discurso eacontecimento, produzindo sentido a partir das relacoes que
estabelece com outros enunciados e momentos enunciativos.
Nessa perspectiva, o discurso nao esta nunca livre de coergoes,e Foucault em A ordem do discurso (1996) apontara o rumo dometodo arqueologico:
O discurso, na rnedida em que e constitutive de um saber, 6 regidopor
coerfdes de miiltiplas ordens (Foucault, 1-971): coergoes externas que
excluem, na modalidade da loucura ou da vontade de verdade, os
discursos que poem ern funcionamento o poder e o desejo (1971, p.
10-23); coergoes internas que const!tuera a maneiva de ser dos
discursos, osquais exercem seus proprios control e (1971, p. 23) pelo
comentario, pelo sistema das disciplinas, pelas regidacOes institudonais
(1971, p. 38-47). E dessemodo que, em ultima instancia, a analise do
discurso renundara ao objeto arqueo!6gh:o para dirigir-se a uma
genealogia das f'ormas de eomportamenco, niio mais exclusivamente
discursivas, mas principalmente institucwnais epessoais(1371, p. G'2-
72) (COLLINOT, 2004, p.64).
Observa-se, portanto, que, no desenvolvimento de seus estudos,Foucault indica um novo direcionamento para o metodoarqueologico. E preciso reconhecer o discurso produzido no interior
de coerc5es. Assim, pauta-se em uma concepcao de discurso que searticula com a nogao de poder. No enfoque genealogico ressaltam-se as nocoes de poder e de saber relacionadas as praticas discursivas.
Ao proper o metodo genealogico, Foucault pretende descrevere avaliar as transformacoes discursivas. Para tal, torna-se precisodeixardecompreender o sujeitocomo ausente, ou entao compreende-
FQUCAULT E OS DOM IN IPS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 91
Jo fora de uma analftica finita. E sobre a forma como se observa
esse sujeito no interior dos estudos da Analise do Discurso que
procuro tratar a seguir.
A emerg^ncia dos sujeitos no arquivo
O arquivo passa a ser, entao, um lugar onde se torna possivel
pensar as praticas discursivas de uma sociedade. Cada arquivo eestabelecido a partir de uma organizacao propria, reunindo sentidos
advindos de uma diversidade maxima de textos tornados a partirde um tema, de um acontecimento ou de um trajeto tematico{GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1994). Assim, os enunciados eo arquivo tornam-se o suporte material dos estudos instalados nessa
articulacao entre o discurso e a hist6ria.A preocupacao, no interior da Analise do Discurso, em analisar
um arquivo que nao seja dado a priori, mas que considere, seguindoa concepcao gerada a partir da Nova Historia, as series, os diferentesmodos de produgao e leitura, conduz o analista a considerar um
papel ativo para o sujeito.Pesquisas publicadas no Brasil, no interior da Analise do
Discurso, apresentam reflexGes bem justificadas sobre essa
emergencia do sujeito. Destacam-se alguns trabalhos de Possenti
sobre o lugar do sujeito no arquivo:
A analist de dados como estes pode levar a conclusa.0 de que os
sujeitos sao hi.st6ricos e atuam, que a ideologia esta sempre presente,
mas nao & ;i unica realidade e tambem 6 hist6rica; que os sujeitos estSo
iri-emediavelmente dentro de fora do arquivo, quern sabe mesmo
arquivando, ciifnn, que a interacao existe e se caracteriza pelo jogotenso enti-e o que |a houve e o acontecimento circunstancial que ela &,
no qual os sujeitos tern urn papel que ultrapassa o dc- ser inn lugai'
imaginario (POSSENTI, iQfl f i , p. 45).
92 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Ou ainda sobre a recusa do assujeitamento ou do sujeito livre:
Queestes postulados nao sa\> a volta do .sujeito livre eoque eu queriagarantir com a autoridade de Foucault, mediante a citacao acima.Alias, penso que nao ba" mais perigo de regresso dosujeico livre, ateporque os unices que o deienderiain estSo hoje submetidos ao discursoda globalizacao... Atfi mesino Ducrot, que pode ser considerado um
te6rico do contrato entre falantes (portanto, supostamente um lingfiistade antes de Freud e de Marx) reconhece que so se fala se houverlugares previos (comuns) £../] a utili/acao da lingua exige que .sedisponha de topo!,.. (DUCROT, 1988), o que nao signifies que so sefala por lugares-comiins.
Ha um vfcio corrente que fax associar a recusa do assujeitamento aaceitaciio da liberdade e da conscienda total dos sujeitos. De minha
parte, Cenho combatido essa simplificac.a'o grosseira, especiaJmenceemPossent), 1995, 1996 e 199Gb (POSSENTI, 1998, p. 102).
Assim, recusar o assujeitamento nao e, de fato, retornar a um
sujeito livre. Seguindo o pensamento de Foucault sobre o sujeito,
considera-se que as relacoes do sujeito estabelecem-se entre os
dommios do saber, do poder e da etica. Tais domfnios permitem ao
sujeito avaliar como ele se constitui enquanto sujeito do seu saber,
enquanto sujeito que exerce ou sofre relasao de poder e enquanto
sujeito de sua propria acao. Por isso, o Foucault da fase arqueologica,
preocupado em reconstruir as regras do discurso, ve uma saida
pela genealogia que Ihe permite observar as interpretacoes a partir
de praticas de poder que atuam como jogos na constituicao dohomern.
Foucault, a partir de um enfoque genealogico, pauta-se em
uma concepcao de discurso que se articula com a no9ao de poder.
Compreende-se, assim, que ha poder no proprio discurso, cujo
funcionamento se da no interior das praticas discursivas. Em seus
estudos, o autor observa que esse poder nao e exercido apenas por
meio de enunciados interditos ou enunciados de carater repressive
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 93
e negative. Tal reflexao leva o filosofo a postular a noc5o de vontade
de verdade.
O importante, creio, e que a verdade nao existe fora do poder ou sempoder (n3o e -nao obstante um mito, de que seria necessario esclarecer
a hist6ria e as fun^Oes -a recompensa dos espfritos Hvres, o filho daslongas solidoes, o privil^gio daqueles que souberam se libertar). Averdade e deste mundo; ela e produzida nele gramas a multiplas coeri;6ese nele produx efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tern
seu regime de verdade, sua 'polftica geral' de verdade: isto e, os tiposde discurso que ela acolhe e fa/, funcionar como verdadeiros; osmecanismos e as instancias que permitem distinguir os enunciadosverdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
tecnicas e os procedimentos que sSo valorizados para a obten^ao daverdade; o estatuto daqueles que tern o encargo de di/,er o que funciona
como verdadeiro. (FOUCAULT, 1996}
O autor observa que a oposicao verdadeiro / falso no interior
de um discurso e regida pelo modo como a verdade circula, estando
envolvidos nesse processo quem pode dizer a verdade, a quem dize-
la e qual e o regime regulador de apari9ao de enunciados de uma
epoca {FOUCAULT, 1996). Dessaperspectiva e preciso compreender
o sujeito em um sentido politico, e nao como ausente ou finite, pois
se considera que os enunciados sao marcados como espaco de efeito
de poder.
O sujeito tern acesso a si a partir de saberes que sao
sustentados por tecnicas: o homem produz por meio de tecnicas de
producao, comunica-se por meio de tecnicas do sistema simbolico,
conduz o governo de si e dos outros por meio de tecnicas de relacoes
de poder e estabelece tecnicas para olhar para si mesmo.
Assim, finalizo a reflexao ora apresentada, propondo que se
olhe para o sujeito a partir da analise das tecnicas que edificam os
saberes. Considero que as reflexoes de Foucault sobre o sujeito sSo
94 FOUCAULT E QSDOMJNIOS DA UHGUAGEM; DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE
pertinentes para os estudos do discurso e da articulacao lingua e
hist6ria, ressaltando que a preocupacao central desse fi!6sofo nao
tern como objeto buscar a verdade do ser (e creio que esse tambem
nao e o objeto central dos estudos do discurso}, mas, sobretudo,
diagnosticar tecnicas, processos, forcas que movem a hist6ria,constroem os discurso e constituent os sujeitos.
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FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDAOE 97
O acontecimento discursive e a
construcao da identidade na HistdriaPedro Luis Navami-Barbosa*
A historia, genealogicamente fa.la?id<>, nao tern par fern
reencotitmr as raizes d<: nossa idettttdade, max, ao cvntriiriv, xe
ubstmar em dissipd-la; ela tiao pretende demarcar a terntunu
unico de onde n6s retimiaretnon; ela pretends fasee aparecer
todas as desc/mltnutdades que nvx atravessam.
Michel Fnucault
Em meio & ebuli^ao do paradigma estrutural que dominou
nos anos sessenta as ciencias humanas na Franga, Michel Foucault
surge e se firrna como um pensador que fez incursoes em varies
campos do conhecimento, pois abordou temas diversos, tais como:
as conduces de formagao dos discursos, as redes e dispositivos das
relacoes de poder e os procedimentos reguladores de expressSo da
sexualidade. A partir de seus estudos, Foucault abriu um leque
complexo de questoes envolvendo a constituicao dos saberes, a
loucura, o processo de subjetivagao, a prisao e a clinica. Disso resulta
a dificuldade de caracterizar esse fi!6sofo como um intelectual
representante de urna determinada "episteme", como atestam seus
criticos, dentre os quais Rojas (2000), que chama a atencao para a
multiplicidade de adjetivacoes que, segundo diferentes olhares,
definem Foucault como, por exemplo, um dos principals
representantes do estruturalismo trances, ou um pensador de direita
e antimarxista, ou ainda o filosofo da geracao francesa de 68.
Desse conjunto complexo e variado que representa o
pensamento critico de Foucault, £ possivel extrair interpretacDes
para um grande numero de problemas. Neste trabalho, proponho-me
*Professor da Universidade Estadnal de Maringa, PR .
98 FOUCAULT E OS OOHINIOS DA LINGUAGEH; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADg
a discutir dois aspectos centrals do pensamento desse filosofo Frances,
a saber: o conceito de historia que norteia as obras Historia da loucura,
As palavras e as coisas e A arqueologia do saber, e a nocao de
acontecimento discursivo. Falar de historia e de acontecimento
discursive implica considerar uma terceira nogao, a de sujeito do
discurso, tal como formulada por Foucault nas obras referendadas.
A partir disso, abordarei a construcao da identidade na
producao discursiva da midia impressa sobre o V Centenario do
Descobrimento do Brasil, considerando-se que nesse contexto ela
exerceu um papel analogo ao do discurso historico, na medida em
que promoveu uma escrita da historia do tempo presente.
Desde ja, registro minha divida para com os comentadores e
os criticos dos quais rne sirvo para nao entrar sozinho na ordem
fascinante, complexa e, por vezes, arriscada do pensamento
foucaultiano.
Michel Foucault e a desconstrucao da historia
O periodo compreendido entre os anos de 1964 a 1971 e
marcado pelo intense dialogo e pela confrontacao da obra de
Foucault com a historiografia francesa. Nesses anos, Foucault e
chamado para defmir de modo mais precise o seu perfil intelectual,
a se situar em relacao aos horizontes da filosofia, do estruturalismo
e da historiografia francesa. E nesse contexto que, segundo Rojas,
devem ser lidos os varies artigos, as muitas entrevistas e obras,
como A arqueologia do saber e o lancamento midiatico de As palavras
e as coisas.
Para se posicionar criticamente diante de um projeto positivista
de historia tradicional, Foucault define a diferenca entre historia
tradicional e historia nova. O trabalho da historia tradicional
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUACEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 99
concentra-se em "reconst i tu i r a forma de conjunto de uma
civilizacao, o principle - material ou espiritual - de uma sociedade,
a significacao comum a todos os fenomenos de um periodo, a lei
que explica sua coesao" (FOUCAULT, 1972, p. 17). O projeto dessa
historia e, pois, o de reconstituir o "rosto" de um deterrninado
periodo, supondo haver um sistema de redoes homogeneas, uma
rede de causalidade entre todos os acontecimentos de uma area
espaco-temporal. Para tanto, o metodo adotado pelo historiador
positivista consiste em tracar as l inhas de continuidade do
desenvolvimento de um pensamento, numa logica evolutiva.
A historia nova problematiza justamente esse espirito de
causalidade, ao privilegiar as series, os recortes, os limites, os
desniveis, os deslocamentos. Sua tarefa, portanto, e outra:
determinar que ibnna de relacao pode ser legitimainente descritaentre essas difurentes series, que sistema vertical el as sao suscetfveisde formar., qual e, de umas para outras, o jogo das correiacoes e dasdoininancias; de que ef'eito podem ser os deslocamento.s, astemporal] dades diferentes, as diversas pennanencias; em que con juntosdistintos certos elementos podem figurar si inultaneamente(FOUCAULT, I9?si, p. 18).
Foucault rejeita o contimu'srno presente na historia tradicional,
por considera-lo um refugio do antropocentrismo, um correlate
indispensavel ao sujeito, considerado originario de todo o devir e
senhor consciente de sua historia. Nessa historia continua "o tempo
e ai concebido em ternios de totalizagao e as revolucoes jamais
passam ai de tomadas de consciencia" (FOUCAULT, 1972, p. 21).
A tarefa desse tipo de historia resume-se, desse modo, a construir
uma historia global, explicativa e dotada de sentido, capaz de
restituir a continuidade complexa do devir historico.
A finalidade do filosofo, entret'anto, e outra. Trata-se de
100 FQUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIOADE
perseguir algo como uma historia geral, constituida de multiplescentres de estruturacao e de dispersao, de uma pluralidade desentidos. Desse modo, contra a concepcao de historia que sedesenvolve em uma continuidade l inear e simples, Foucault,
fundamentado em Bachelard, Canguilhem e Nietzsche, apresentauma genealogia cujo motor e a descontinuidade.
Consequentemente, o passado que essa historia complexa echeia de encruzilhadas encerra e aquele que aconteceu sobre a
"negacao e derrota de muitos outros passados virtuais, que"terminaram por ser deixados de lado, depois de sucumbir dentro
do conflito, diante dessa linha do presente/passado que resultoudominante e vitorioso" (ROJAS, 2000, p. 309).
A nova historia-genealogia rejeita a nocao de causalidadelinear, assim como a concepcao de tempo continue e unilinear, emfavor de uma historia que se pauta pelas multiplas causalidadesimbricadas e por uma teoria das diferentes temporalidadessociais.
Nas analises que Foucault empreende sobre as condi9oes de
emergencia dos saberes e dos objetos por eles instituidos a nocaode descontinuidade figura como um conceito operatorio com o qua!o autor faz surgir aos olhos dos historiadores do seu tempo uma
historia capaz de colocar em acao um "estruturalismo historicizado",por nao estar fechada em torno de um centro, mas, sim, defmidacomo espaco de uma dispersao.
Como bem salienta Dosse, para Foucault importa
C-..J abrir as estruturas para descontinuidades temporals, para asmudancas que regulam os deslocamentos nutn jogo incessante daspraticas discursivas. A dcsconstn.ica"o da disciplina historica £...]passa pel a rem'mcia a busca de continuidades e as tentativas de sinteseentre os elementos hetcrogeneos da realidade (DOSSE, '2001, p. 214-15).
fQUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM! DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 1O1
O projeto de uma historia geral requer que se coloque em
suspense um determinado numero de nogoes intencionais quesustentam o tema da continuidade. Elas cornpreendem a tradi9ao,a influencia, o desenvolvimento e a evolucao, a mentalidade on oespirito de uma epoca. Alem dessas nocoes, e necessario por em
suspenso as unidades do livro e da obra. Foucault dispara sua critica
contra essas nocoes e unidades por considera-las formas historicasde preservacao da consciencia e da continuidade. Para ele,
£ precise* repor em questao essas sintese acabadas, essesagrupamentos que, no mais das vexes, admite-se antes de qualquerexame, esses la^os cuja validade 6 reconhecida desde o inicio; e precisudesalojar essas forrnas e essas forcas obscuras pelas quais se tern ohabito de ligar entre si os discursos dos homens (FOUCAULT, 1972,
p. 32).
Da oposicao historia tradicional/historia nova, decorre a
discussao sobre o par documento/monumento. Segundo o queanalisa Foucault, a historia tradicional empenhava-se no trabalho
de memoriza9ao dos monumentos dos passados para transforma-los em documentos, procurando, com isso, encontrar relacoes decausalidade, de determinacao circular, de antagonismo ou de
expressao entre fatos ou acontecimentos datados. Porem, a essapratica historica que considera o documento como uma materiainerte, por meio do qual o discurso se empenha em reconstituiraquilo que os homens fizeram ou decidiram, ou em determinar o
que e passado e o que apenas deixa rastros, Foucault opoe outra,que faz do documento historico um monumento, por meio do qualo historiador pode cons tit uir series, defmindo-lhes seus elementose limites, descobrindo o tipo de relacao que Ihes sao especificas e alei que as rege. Alem desse trabalho, a analise do documentopossibilita descrever as relacoes entre as diferentes series, para
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constituir, assim, series de series ou "quadro".
Eis, portanto, o metodo serialista empregado pelo autor paraestudar em sua Historia da L,oiicura as condicoes de validade e de
possibilidade do saber psiquiatrico em relacao a loucura, tida comoum objeto tabu e um recalcado da razSo ocidental.
A arqueologia desse recalcado possibilita ao autor compreenderque a loucura nem sempre teve o mesmo estatuto, pois de objeto deexclusao passou a ser encarcerada nos hospitais. No Renascimento
a figura do louco era indissociavel da figura da razao; imanente arazao descobre-se a loucura. No periodo classico o pensamentorational, para se firmar e delimitar seus objetos, exclui o louco doterritorio nacional. E precise silenciar a loucura, encarcera-la paraque se de lugar ao mundo da Razao. Ja a partir do fim do seculoXVIII a loucura passa a ser objeto do saber medico. Assim, daindiferenca passa-se a especifica9ao da loucura.
Ao historicizar as praticas que instituiram a figura do loucocomo aquele que deve ser odiado ou apartado do convivio emsociedade, Foucault poe a niostra o sistema de exclusao e de divisaoinstituido nas sociedades cujo poder pode, atraves de um decretoadministrative, dividir a sociedade nao em bons e maus, mas emsensatos e insensatos.
Como analisa Blanchot (s/d), a partir dessa primeira obra,Foucault comeca a problematizar questoes como razao e desrazao,tradicionalmente pertencentes aos estudos filosoficos, a luz de uma
determinada perspectiva da hist6ria, que privilegia uma certadescontinuidade, ou seja, um pequeno acontecimento que pode fazera historia oscilar.
Assim, nessas rupturas do saber psiquiatrico em relacao aloucura, Foucault observa uma descontinuidade nas praticasdiscursivas, a qual induz a novas objetivacoes sobre a loucura. Comisso, ele apresenta uma histdria da constitui9ao dos saberes que
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 1O3
leva em conta o fato de um determinado objeto receber significa9desdiferentes conforme a epoca e as praticas em que ele ganhaexistencia. Nessa arqueologia que constroi sobre a loucura, Foucaultdetecta "as descontinuidades que fazem nossa cultura passada
parecer fundamentalmente outra, estrangeira para nos mesmos,
numa distancia restaurada" (DOSSE, 2001, p. 204.).
Dosse ve na historicizacao desse objeto uma ruptura com ahistoria do sujeito ocidental, por abrir caminho para uma nova
sensibilidade historica que, ao contrario de valorizar os her6is dahistoria ou glorificar os seus condenados, faz ressurgir do
esquecimento aquele que foi encerrado nos asilos e nos hospiciospela razao ocidental.
Nessa mesma direcao, Blanchot argumenta que o fato de
Foucault privilegiar o discurso nao significa que ele rejeita a historia.O que faz e procurar entrever nela descontinuidades, deslocamentos,mudanfas locais, atribuidas nao a vontade de um soberano, mas a
praticas sociais de homens anonimos que escrevem a historia. Essaopcao de Foucault representa uma recusa a ideia de que, subjacente
as transforrnacoes historicas, haveria "uma grande narrativasilenciosa, um rumor continuo, imenso e ilimitado que seria
necessario reprimir (ou recalcar), a maneira de um nao-dito
misterioso ou de um nao-pensado" (BLANCHOT, s/d, p. 33).O relativismo historico que emerge das analises sobre as
condicoes de possibilidade e de emergencia dos saberes leva aconclusao de que nao ha verdade para ser buscada nas divertsetapas constitutivas do saber, mas sirn discursos historicameite
detectaveis, que constroem verdades e possibilitam o exerci'cio dopoder. As sucessivas rupturas no saber levam o autor a declarar
sua incredulidade em relacao ao sentido, por constatar que iaao
existe um sentido dado a priori, mas sentidos que saonas praticas discursivas.
104 FOUCAULT E OS DOHJNIOS DA L1NGUAGEH; DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
A partir dos estudos de Foucault, funda-se uma praticahistorica, mais tarde rotulada de micro-historia, que direciona sua
atencao aos herois anonimos, aqueles que sao excluidos da historiatradicional. Uma modalidade de historia que deixa de olhar paraas grandes batalhas, as importantes lutar de monarcas, para se
voltar para os pequenos acontecimentos (a micro-historia), que fazem
a historia mudar seu curso (DE CERTEAU, 1994).
Embora fomente iniimeras criticas por parte daqueles quenao conseguem se desfazer do pensamento psicologizante, ometodo de Foucault e claro, pois, como sintetiza Kremer-Marietti
(1977), consiste em interpreter os documentos existentes ereformula-los para, entao, defmir um dominio imenso, que
comporta o conjunto de todos os enunciados efetivamente faladosou escritos em sua dispersao de acontecimentos e na instanciapropria a cada um.
Michel Foucault e o descentramento do sujeito na historia
A nocao de sujeito aparece claramente articulada com a nocaode historia desenvolvida nas obras referendadas. Na analise
arqueologica que empreende sobre as condicoes de possibilidadedos saberes, Foucault produz uma ruptura com a crenca segundo aqual a historia teria como ponto de partida e de chegada o sujeito
concebido como originario do devir historico.
A investida de Foucault contra o sujeito consciente de suahistoria insere-se em um projeto maior, em uma visada maisabrangente que encontra ecos na historia: o descentramento dohomem em As palavras e as coisas, obra em que o autor empenha-seem fazer a historia do nascimento e da morte do homem, mostrandoque, paradoxalmente, as ciencias humanas constiUiem-se como tal
oUCAULT E QS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 105
na medida em que essa morte e anunciada.Foucault vincula o desaparecimento da Figura do homem como
sujeito, agente e consciente de sua historia ao anuncio da morte depeus, realizado por Nietzsche:
£...] descobre-se entao que a morte de Deus e o ultimo homem estaovinculados: nao e o acaso o ultimo homem que anuncia ter matado
Deus, colocando assim sua iinguagem, sen pensamento, seu riso noespa<;o do Deus j& motto, mas tambem se apresentando como aquele
que matou Deus e cuja existencia envolve a hberdade e a decisao desteassassfnio? £...] o homem vai desaparecer. Mais que a morte de Deus£../] o que anuncia o pensamento deNietzcheeo fim de seu assassino(FOUCAULT, 2000, p. 534).
Nessa historia que empreende Foucault mostra que o homemsurge como uma cesura no saber, como uma invencao que nao chegaa ter dois seculos, e depois desaparece, fadado que esti a finitude.
Na episteme classica o homem como objeto e sujeito dopensamento, posicoes antevistas por Velasquez no quadro As
meninas, nao tern lugar, pois, nesse periodo, ele era visto comopotencia de vida, fecundidade do trabalho ou espessura historicada Iinguagem. Embora a gramatica geral, a historia natural ou aanalise das riquezas fossem maneiras de reconhecer o homem,
Foucault alerta para o fato de que nessas ciencias nao havia uma
consciencia epistemologica do homem como tal.Anulado na episteme classica, o homem reaparece na episteme
moderna, mas de modo ambi'guo, pois apenas se tern acesso a ele
pela vida, pelo trabalho e pela Iinguagem. Em outras palavras, s6 epossivel conhece-lo pelo o que ele e, produz e diz. Assim, a aparicaodo homem como rei da criacao ocorre quando a historia natural setorna biologia, a analise das riquezas, economia e a reflexao sobre a
se faz filologia. Nesses saberes o homem surge, ao mesmo
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tempo, como objeto para um saber e como sujeito que conhece.Entretanto, nem a filologia de Propp nem a teoria da economia
politica de Smith e Ricardo, tampouco a biologia de Lamarck eCuvier puderam preservar a condi£ao do homem de ser sujeito desua historia e figura soberana em relacSo a natureza. O sujeitovivo, falante e trabalhador esta fadado a finitude, que e prescrita napropria positividade desses saberes, pois "sabe-se que o homem efmito, como se conhecem a anatomia do cerebro, o mecanismo doscustos de produ5ao ou o sistema da conjugacao indo-europeia"(FOUCAULT, 2000, p. 432).
A recusa a um certo antropocentrismo dominante nahistoriografia se faz presente tambem em A arqueologia do saber.Uma concep?ao de historia centrada no sujeito e na crenca de queas mudancas ocorrem sob um tecido contmuo de relates impediriaFoucault de realizar uma descrigao "pura" dos enunciadosefetivamente ditos. Como salienta Blanchot (s/d), para tratar daspraticas discursivas que remetem somente para si pr6prias (suasregras de formacao, o sen ponto de fixacao e a sua emergencia),sem que, para tanto, seja necessario determinar um ponto de origemou, ainda, um autor, Foucault precisa descartar a cren£a naexistencia de um grande inconsciente coletivo - uma especie deprovidencia pre-discursiva -, que funcionaria como o alicerce detodo o discurso e de toda a historia.
Assim, a ideia que se tern sobre o homem e datavel, uma vezque sua aparicao se da num determinado momento, quando se tornaobjeto do saber. O homem passa a ser tambem alvo de um poder,nao de um poder centralizado num determinado aparelho ideologico,como reivindicam os adeptos do rnarxismo-althusseriano, mas depraticas, como a psiquiatria, a medicina, economia, ou a midia, objetodeste estudo. Nesse sentido, o individuo e, segundo os estudostoucaultianos, tecido nos enunciados cientificos, que, de um lado,
FQUCAULT E OS DOMJHIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 107
constituem campos especificos e, de outro, estabelecem-se "comopraticas descontmuas, que se cruzam, se avizinham as vezes, mastambem se ignoram ou se excluem" (FOUCAULT, 1995, p.2i).
A concepcao de sujeito com sendo uma construcaohistoricamente determinada pelas praticas discursivas vai deencontro, portanto, a pratica historica tradicional, que
e o correlato indispensavel & fimc.ao fundadora do .sujeito, agararuia de que tudo que Ihe escapou podei'a ser-lhe devolvido;£../] a promessa de que toda-s essas eoisa.s mantidas a umadistanciapeladiferenca.o sujei to podera um dia-sob a forma daconsciencia historica - delas se apropriar novamente, restaurarsen dominio sobre elas e encontrar o que .se pode bem chamar suamorada (FOUCAULT, 197«, p. 21).
E justamente desse sujeito constituinte que o autor ve anecessidade de se livrar, a fim de poder realizar suas analises sobrea constituicao do sujeito na trama historica da qual participa, bemcomo sobre os mecanismos e as estrategias empregados pelasdiversas prdticas discursivas para instituir e legitimar processesde subjetivacao.
A arqueologia do acontecimento discursive
Com suas analises, Foucault realiza uma desconstrucao dahistoria e anuncia o descentramento do homem, ao mostrar que aemergencia dos saberes nao obedece a uma logica continua eevolutiva, mas a uma descontinuidade. For correlato, a historiadescontinua exclui qualquer antropocentrismo, uma vez que asucessao das fases obedece a uma logica puramente discursiva, sem
referenda a um projeto teo!6gico ou a uma subjetividade
108 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUACEM; DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
fundadora. A nocao de discurso como acontecimento discursivo deveser compreendida no horizonte dessa historia descontinua e serialista
e tendo em vista o descentramento do homem.Um dos aspectos que marca a novidade da A arqneologia
do saber em relacao a As palavras e as coisas e a substituicao da
nocao de episteme pelo conceito de pratica discursiva, que
possibilita, conforme analisa Dosse (2001), a historicizacao doparadigma estrutural, por aproxima-lo do marxismo. Essa ruptura,
entretanto, nao significa que Foucault tenha abandonado o campodiscursivo. O que faz e contemplar o nivel das relacoes discursivas.
Concebido agora como pratica discursiva, o discurso torna-seo conceito central da investigagao arqueologica, que o localizaprecisamente entre a estrutura e o acontecimento, por conter, de
um lado, as regras da lingua e, de outro, aquilo que e efetivamentedito.
Considerar o discurso como acontecimento significa aborda-lo na sua irrupcao e no seu acaso, ou seja, despoja-lo de toda equalquer referenda a uma origem supostamente determinavel oua qualquer sistema de causalidade entre as palavras e as coisas.Como lembra Dosse, a rejeicao a nocao de origem tern respaldo na
filosofia proposta por Nietzsche, segundo a qual interpretar nao eo mesnio que buscar um suposto significado original, urna vez que
e o discurso que instaura a interpretacao.Eis, por tanto , mais um elemento que se acresce a
compreensao do que seja acontecimento discursivo, pois entendero discurso como acontecimento & aceitar que e ele que funda ainterpretacao, constroi uma verdade, da rosto as coisas. Por issoo discurso e objeto de disputa, em vista do poder que, por seuintermedio, se exerce.
Para realizar uma descricao pura dos discursos Foucault ve anecessidade de restituir ao discurso a sua neutralidade primeira, e
FOUCAULT E OS pO_MJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 109
o faz, como mencionado, pondo em suspense o que denomina "formasprevias de continuidade" - tradicao, influencia, desenvolvimento
ou espirito, tipos e generos, livro e obra, ideia de origem, ja-dito/
nao-dito - que impedem de considerar o discurso comoacontecimento, porque o vinculam a um sentido dado antes ou que
Ihe estaria oculto, garantindo, com isso, a infmita continuidade do
que os homens disseram. Uma vez postas em suspense essas nocoese unidades, o nietodo pode descrever os discursos como
acontecimentos discursivos, isto e, como seqiiencias que foram
efetivamente faladas ou escritas.Mas o que Foucault entende por acontecimento quando solicita
que os discursos sejam tratados como tal? Em A ordem do discurso oautor responde a essa indagacao, afirmando que acontecimento nao
e uma coisa, um objeto consistente, nao e substancia, acidente,qualidade ou processo. Nao e tambem da ordem dos corpos, masnem por isso deixa de ter uma materialidade, ja que £ justamente
na materialidade que ele tern efeito e lugar. O acontecimento naoapresenta uma unidade material, porque se produz nunia dispersao
material, Ele e feito de cesuras que dispersam o sujeito em umapluralidade de posicoes e de funcoes; e um corte ou recorte que serealiza livremente na realidade, um acumulo ou uma selecao de
elementos.Apoiando-se em Foucault, Veyne define o acontecimento
historico como algo que results de uma escrita determinada pelapratica historiografica, como podemos constatar pelo seguinte
excerto:
o acontecimento 'batalha de Waterloo', tat como um historiadorescrevera, (...) (' uma escolha daquilo que as testemunhas viram e umaescolha c r i t i ca (...) o h is tor iador separa, nas testemunhas edocumenco.s, o acontecimento tal cnmo ele o escolheu (VEYNE, 15)98,
P- *7)
110 FOUCAULT E OS DQMJNIOS DAj-INGUAGEM: DISCUR5O. PQDER, SUBJETIVIDADE
Para realizar sua descrigao pura dos acontecimentosdiscursivos, o fi!6sofo isola a unidade menor do discurso, a qual da
o nome de enunciado. Molecula menor de Lima formacao discursiva,o enunciado e defmido como sendo sempre um acontecimento que
nem a lingua nem o sentido poderiam esgotar por completo. O
enunciado e a unidade elementar do discurso, situada entre a lingua
como sistema de regras e o corpus como discurso efetivamentepronunciado.
Para Foucault, o enunciado deve ser descrito ou simplesmentereescrito em relagao apenas com as suas condi96es externas de
possibilidades, e considerando a sua raridade e singularidade. Essacondicao de ser raro advem, segundo Blanchot, do fato de "so poderser positive, sem cogito para que remeta, sem autor unico que oidentifique, livre de todo o contexto que ajudaria a situa-lo num
conjunto (de que extraisse o seu ou os seus diversos sentidos)"(BLANCHOT, s/d., p. 34).
A descricao que Foucault realiza nao se confunde com a analisesistemica da lingua cujo trabalho visa a inventariar o lexico ou ocampo semantico para chegar a significacao. A proposta da analisearqueo!6gica e justamente outra, a saber:
mostrar que 'os discursos', tais como podemos cornpreende-los, tai.scomo podemos te-Jos sob a forma de textos, nSo sao, como se poderiaesperar, um puro e simples entreiTuxamento de coisas e de palavras£...] gostaria de mostrar que o discurso nao e urna estreita superficiede contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma lingua, o
enredardeum lexico e de uma experiencia [..~\ (FOUCAULT, 197il,p. 64).
A descricao arqueo!6gica distingue-se tambem da analise darelacao entre enunciado e pensamento, que intenta encontrar nosdiscursos a atividade consciente do sujeito ialante, aquilo que
FOUCAULT E OS DOMJNIOS Dfl LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 111
supostamente ele desejou falar, ou o jogo inconsciente que veio a
lux a partir do que disse. A arqueologia propoe uma questao muito
diferente da analise linguistica ou da hist6ria do pensamento, que ea de interrogar as condicoes que propiciaram o aparecimento de
um determinado enunciado e nao outro em seu lugar. A descrigao
arqueologica nao tern como finalidade encontrar,
£...~i sob o que esta manifesto, a conversa seini-silenciosa de um outrodiscurso: deve-se mostrar por que nao poderia ser outro, em queexdui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionadoa eles, urn lugar que nenhum outro poderia ocupar (FOUCAULT,
1972, p. 39-40).
Mas para que uma sequencia de elementos linguisticos seja
considerada um enunciado e precise que tenha uma existenciamaterial, isto e, seja dotada de uma substancia, um suporte, umlugar e uma data. A materialidade do enunciado remete, portanto,as condicoes de possibilidade - um mesmo espa5o de distribuigao, aniesnia reparticao de singularidades, a niesma ordem de lugares e
locais e a mesma relacao com o meio instituido - que o tornam
repetivel.O regime da materialidade ao qual os enunciados obedecem e
da ordem da instituicao; portanto, e a relacao entre pratica discursiva
e institui9ao que responde pela materialidade do enunciado, o querequer que se considere o discurso nao como um conjunto de signos,
mas como uma pratica que abarca regras determinadas
historicamente. Assim, por se referir a um espaco, a um tempo dadoe a uma area social geografica, economica ou linguistica, as regrasenunciativas sao mais historicizadas. No entender de Dosse (2001),a materialidade permite ao metodo arqueologico sair de umaconcepcao fechada do discurso, porque situa a pratica discursivano interior das praticas nao discursivas.
112 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Como mencionado, a nogao de acontecimento possibilitaconsiderar o enunciado como aquilo que efetivamente foi formulado,
seja por um gesto de escritura, seja pela articulacao de uma palavra.Mas nao so isso, essa nocao coloca o enunciado no campo de uma
memoria, na materialidade dos manuscritos, dos livros ou de
qualquer especie de registro. Ainda mais: mesmo sendo unico como
acontecimento, o enunciado esta aberto a toda sorte de repeticao,transformacao ou reativagao. Por ultimo, o enunciado-acontecimentorelaciona-se com dominios vizinhos, ou seja, outros enunciados queo precedem ou o seguem.
Ern vista disso, o estatuto do acontecimento discursive podeser defmido como sendo as relacoes dos enunciados entre si, asrelacoes entre grupos de enunciados e as relacoes entre enunciadoou grupos de enunciados e acontecimentos de outra ordem.
O sujeito do acontecimento discursive
Para Foucault (1998), o poder esta em todo lugar, disseminadono interior das instituicoes criadas pelos homens. Por isso, ele naofala em ideologia determinando aquilo que o sujeito pode e devefalar, mas em sistemas de interdigao, em procedimentos que criam
um jogo de fronteiras, limites, supressoes que tentam controlar aproducao dos discursos na sociedade. Por meio desses mecanismos
coercitivos, as instituicoes conjuram o acaso do discurso, impondoregras para quern deseja entrar na sua ordem. A ordem do discursopode ser lida, por esse vies, como uma arqueologia dos procedimentos
de controle, de selecao, de organizacao e de redistribute dosdiscursos, bem como uma arqueologia dos procedimentos queiiistituem e significam o sujeito que fala.
Quern tern o direito de entrar na ordem do acontecimento
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIPADE 113
discursive? Foucault responde, afirmando que nao e qualquer sujeito
que pode sustentar um discurso. £ precise, antes, que Ihe sejareconhecido o direito de falar, que fale de um determinado lugarreconhecido pelas instituigoes, que possua um estatuto tal para
proferir discursos.Outro aspecto que define o sujeito do acontecimento discursive:
os sujeitos nao estao na origem de seus discursos, nem se manifestamcomo unidade na cadeia discursiva. Como exposto, o autor recusa
de sua genealogia o antropocentrismo, por considerar que o discursonao e fruto de um sujeito que pensa e sabe o que quer. E o discurso
que determina o que o sujeito deve falar, e ele que estipula asmodalidades enunciativas. Logo, o sujeito nao preexiste ao discurso,ele e uma construcao no discurso, sendo este um feixe de relacoes
que ira determinar o que dizer, quando e de que modo.O projeto de Foucault, nesse sentido, coloca o sujeito como
funcionario do discurso, corno sendo falado por ele. Sua genealogia
e uma "gramatica do homicidio" (ROUNET, 1971), uma vez queela se levanta contra o sujeito concebido como unidadeexcessivamente determinada. O sujeito, entretanto, nao desapareceucom as analises de Foucault. E preciso entender por homicidio o
desaparecimento de uma subjetividade fundadora, em prol de umsujeito que e pluralidade de posicoes e uma descontinuidade de
funcoes.O discurso da arqueologia recorta a regiao da linguagem para
interrogar o estatuto de quern enuncia. A pergunta formulada acimasobre quern tem o direito de entrar na ordem do acontecimento
discursive, segue outra: quern fala e no interior de que instituigoes.Foucault responde, por intermedio do exame das modalidadesenunciativas, que demarcam um campo de regularidades para asdiversas posicoes de subjetividade, fazendo surgir o sujeito do
discurso como uma dispersao.
114 FOUCAULT E OS DOHJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
Discurso jornalistico e os 5OO anos do Brasil: a descontinuidadeentre o enunciado e o arquivo
As comemora^oes ilustram um tipo de relacao entre o presente
e a historia, em que o primeiro configura-se corno uma eterna
reciclagem de configura9oes diversas do passado. Nos momentosde celebrafao dos acontecimentos historicos de uma nagao, porexemplo, a memoria recalca a historia, uma vez que nao haveria
uma "busca das origens para desenvolver as potencialidades dodevir, porem simples recorda9ao do universe dos signos do passadoque sobrevive no presente irnutavel" (DOSSE, 2001, p. 179). Assim,o que se comemora nessas ocasioes nao possui outros referentessenao os lugares de memoria, que, segundo Nora (1993), sao orefugio para o espirito de continuidade.
No caso brasileiro esse mecanismo parece ser a estrategiautilizada pelos mentores das comemorayoes oficiais dos 500 anospara sustentar e difundir um clima de festividades a nacao. Mas osdiscursos da midia impressa que construiram sentidos sobre as
comemorafoes pautaram-se tambern nessas mesmas estrategia, ou,para refutar esse clima de festividade, nao teriam acionado outras,como a de resgatar signos do passado nao para simples rememoracao
mas para buscar neles explicacao para o que nos constitui hojecomo brasileiros?
No entender de DaMatta (2000), as comemoracoes dodescobrimento podem ser vistas sob dois pontos de vista, um
uniforme e outro dinamico. A visao uniforme propoe uma reflexaocristalizadora do Brasil, sem arestas e sem contradi96es. Ja asegunda, por ser dialogica e carnavalizadora, possibilita umareflexao contraditoria e ambigua. Com base nessa anal ise ,podemos afirmar que a visao uniforme portou a bandeira doBrasil 500 anos, uma vez que se trata de uma reatualiza9ao do
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 115
"mito fundador""1 , e a dinamica sustentou a bandeira do Brasil
outros 500 cujo discurso propSe uma releitura da historiabrasileira pelo vies de um olhar diferente do passado, numa
atitude nao conformista.
Na midia impressa essas duas posic.6es discursivas
encontraram o lugar e a condi9ao para a sua materializa9aolingiiistica e imagetica. Num primeiro momento os discursos
construiram sentidos sobre a efemeride com base no discurso doBrasil 500 anos. Depois, ocorre uma ruptura nesse saber, e osdiscursos passam a assumir a posicao do Brasil outros 50(f-. Nessemovimento interpretative, qual o estatuto dos 500 anos, ou seja,qual o seu rosto e de que modo foi significado nessa pratica
discursiva?A escrita jornalistica referente ao acontecimento hist6rico,
politico e cultural que representou os 50O anos marca a passagemde uma pratica discursiva ufanista para uma pratica discursiva de
nega9&o e probi ematiz 3930 desse ufanismo. Pauta-se em uma escritade historia nao fechada em torno de um centre, mas como espa9o
de dispersao e de descontinuidade.Desse modo, os enunciados efetivamente escritos em sua
dispersao de acontecimento e na instancia de delimita9ao que Ihese propria — a midia impressa - nomeiam, recortam, descrevem e
articulam outros dominios, outros campos discursivos, que nao sereferem ao mesmo objeto 500 anos. Por essa linha de raciocinio,
toda vez que a midia abordou os 500 anos nao foi o mesmo objetoposto em questao, mas uma nova constru9&o discursiva dele.
Para a analise da produ9ao de identidades observada no discurso
51 Chiuii (2000) denomina "mito fundador" o acontecimento liistorico produzido paraexplicnr a ongem e dar um sentido ao momento fimdador de uma cultura ou de umanacao.61 Cf GREGOLIN, 2001, p. GO-98.
116 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVipAop
jornalistico, a nocao de arquivo, formulada por Foucault, e de surnaimportancia para entender o movimento descontmuo referido aciroa.
O arquivo e o objeto especifico da arqueologia, que e defmidopor Foucault como sendo
o que faz corn que tantas coisas ditas, por tantos homens, ha tamos
mtlgnios, nao tenham surgido apenas segundo as leis do pensamenti),
ou apenas segundo o jogo das circunstancias, £...]] mas que eias tenhamaparecido grac.as a todo um jogo de relates que car acted zamparticulannenteonivel discursive^...]] O arquivoe.de inicio, a lei do
que pode ser dito, o sisterna que rege o aparecimento dos enunciadoscomo a con teamen to? singulares (FOUCAULT, 1972, p. 160-61).
Kremer-Marietti (1977) sintetiza a nocao de arquivo, afirmandoque se refere as coisas que sao ditas cortadas das coisas que dizem edos homens que as dizem, substituidos no quadro do sistema dadiscursividade, com suas possibilidades e suas impossibilidadesenunciativas. Em sintese, a funcao do arquivo e a de definir o regime
de ennnciabilidade, formacao e transformacao daquilo que pode serdito ou escrito, fazendo surgir o eminciado-acontecimento.
Nossa sociedade dispoe de um arquivo sobre o que e serbrasileiro, negro, escravo, indio, sobre a nossa constituicao comocolonia e depois como nacao, sobre nossa natureza. Esse arquivo
forma aquilo que nossa sociedade pode dizer de si mesma. Nocontexto das comemoracoes os enunciados-acontecimentomaterializaram, de modo descontinuo, esse arquivo, via memoria.Essa materializacao, entretanto, nao se deu apenas pela simples
recitacao, mas tambem pela transfbrmacao e por deslocamentos,resultando na produgao de novos sentidos53. Em vista disso, a
53 Es.sa po?s'biiidade de os eruinciacios-acontecimento atual ixarem o arquivo n3o quersignifies!- qlle ° arquivo sej;i descntivel em sua totalidade. Oimo ensiiia Foucault (197^),e inipo.ssiv^ wescrever exaiistivamente o arquivo de Lima sociedade, de uma £pt>ca on, atemesmo. o 'l05so pr6pno arquivo, uma ve/. que e no interior dele que falamos.
eoUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEH! DISCURSO, PODER, SUBJETIVIOaDE 117
relacao entre enunciados ou grupos de enunciados e o acontecimento500 anos do Brasil permite a abordagem desses discursos comopratica discursiva, que faz surgir a significagao das coisas
efetivamente ditas.Como nao existe enunciado que nao suponha outros, a memoria
exerce um papel fundamental na rela9ao entre o enunciado e oarquivo, que pode ser pensada nos seguintes termos: em relacao aoarquivo, o enunciado e aquilo que surge com valor de acontecimento
em meio a um espaco colateral povoado por outros enunciados. Aesse espago colateral Foucault da o nome de "campo associado",que e formado pela serie das formula9oes em que o enunciado se
inscreve e pela serie das formulacoes que o enunciado repete,modifica, adapta, se opoe ou propicia a possibilidade ulterior (sua
conseqiiencia, sequencia natural ou replica).Partindo desse principle, os discursos sobre o aniversario da
nacao tern suas margens povoadas por outros enunciados e porsentidos itinerantes, que resultam do cruzamento entre praticasdiscursivas diversas. Como esses discursos nao partem de um unico,
mas de varios lugares enunciativos (o jornalista, o historiador, opolitico etc), a rede de formulacoes gerada pelo cruzamento dessas
diferentes posicoes enunciativas poe em cena a angustia da sociedadepara saber quern somos, quern e esse sujeko produzido pelasdiversas praticas historicamente instituidas. Esse acontecimentodiscursive instaura, pois, umconfronto entre posicoes enunciativas,a partir do qual e possivel entender, defmir, especificar, circun ser ever,
enfirn, construir um quadro sobre a(s) identidade(s) do Brasil e
dos brasileiros.Os enunciados-acontecimento colocam em movimento a
sincronizagao de temporalidades multiplas, sejam elas individuals,coletivas, economicas ou politicas. Os efeitos de sentido queproduzem, os desvios de interpreta^ao que instauram, em sfntese,
118 FOUCAULT E OS DOMJNIOS PA LINGUAGEM; JJISCURSQ, PODER, SUBJETIVIDADE
os diferentes dominios que os enunciados percorrem, recortam earticulam constituem narracoes multiplas que reformulam serncessar o acontecimento 500 anos.
Acontecimento discursivo-jornalistico e a producao deidentidade(s)
A questao da producao de identidade(s) no discurso da midia
impressa requer, antes, a consideracao de dois aspectos, um, mais
geral, relacionado a producao do acontecimento na praticajornalista, e outro, mais especifico, que diz respeito a escritajornalistica dos 500 anos.
A aceleracSo do presente hist6rico concorreu para o
estabelecimento de uma democrat!zagao da historia, que culmina
num fenomeno novo, o retorno do acontecimento cuja producao se
deve aos meios de comunicacao, que detem o rnonopolio da historia.
E por intermedio deles que o acontecimento se faz presente.
Como observa Nora, a imprensa, o radio, as imagens naofuncionam somente como meios dos quais os acontecimentos seriam
relativamente independentes "mas como a propria condicao de sua
existencia. A publicidade da forma a sua propria producao" (NORA,
1995, p.181). Desse modo, a sociedade assiste a historia do tempo
presente sendo construida no interior dos aparelhos de comunicacaode massa, sob a tirania do acontecimento.
Uma vez produzido no interior de uma pratica que se pauta
pelo emprego de estrategias de manipulacao do real e pelosensacionalismo, o acontecimento e, antes de tudo, produto de uma
montagem e de escolhas orientadas de imagens, que Ihe garantemo efeito de acontecencia, isto e, a impressao do vivido mais perto.
A producSo do acontecimento na midia obedece as regras da
fOUCAULT E OS POMINIOS DA LINGUAGEM! DISCURSO, PQDER, SUBJETIVIDADE 119
pratica jornalistica, como apresenta Chaparro (1998), ao definir o
acontecimento jornalistico como sendo aquele que
articula-se e de.senvolve-.se em fatos sucessivos, aos quais os objetivosde sucesso impoem que se agreguem atributos que os torn em
jomalisticamente interessante-s. Nes.se percursoocorrem falas, eventos,decis5es, conilitos, perguntas, ocorrendas previstas on inesperadas,com causas e feitos que tanto podern justificar a noticia, quanto areportagem, a entrevista ou o artigo - antes, durante ou depois da
eclosao do acontecimento na sociedade (CHAPARRO, 1998, p. 16-7).
O aporte dessa nocao para a discussao sobre a producao do
acontecimento discursive na midia pode ser pensado nos seguintes
termos: o processo que torna eventos em acontecimentos
jorrialisticos significativos e determinado pela ordem discursiva
midiatica que se impoe ao trabalho dos jornalistas, reporteres e
editores.Em relacao a constitui9ao do discurso da midia sobre o
Descobrimento, a sua unidade nao esta fundada na existencia de
um unico objeto, os 50O anos, na constituicao de um horizonte unico
de objetividade. Esse discurso, pelo contrario, manifesta os 500 anos
como um objeto multiplo e diverso, segundo o jogo de transfer ma 930
e ruptura, o jogo da descontinuidade que o faz outro para si mesmo.
A unidade dessa produpao discursiva nao esta no
reagrupamento em torno do objeto 500 anos. Nao se encontra
tambem na forma e no tipo de encadeamento dos enunciados ou no
sistema dos conceitos permanentes e coerentes, muito menos na
identidade e persistencia de temas. As hip6teses levantadas porFoucault e por ele mesmo criticadas apontam que seja dada
importancia nao ao objeto, nem ao estilo, nem aos conceitos, nem
aos temas, mas a propria dispersao.Con tudo, e possivel encontrar nessa dispersao uma
120 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
regularidade, que se verifica nos acontecimentos historicos a que
os textos se reportam, nos temas que sao novamente atualizados,na memoria historica acionada e na posicao que o sujeito ocupa notexto como jornalista-historiador.
Isso nos coloca diante da evidencia de nao se poder precisar a
construcao de uma identidade unica sobre o Brasil e sobre os
brasileiros, uma vez que o discurso da midia e multifacetado, isto e,para construir sen objeto, recorta outros dominios do saber pertencentes,
por exemplo, a sociologia, a antropologia e a historia. Desse modo,como a identidade desse discurso e ser dispersSo e descontinuidade, aidentidade que constr6i tambem nao foge a essa condicao.
Para falar de producao de identidade(s) na escrita historicada midia sobre os 50O anos, e precise assumir que ela se constituiem um espaco institucional para a irrupgao de acontecimentosdiscursivos, para as trans formacoes e para os deslocamentos daspraticas discursivas que, ao longo de nossa historia, procuraramdar um rosto ao Brasil e aos brasileiros.
Nessa producao, o processo identitario ocorre com base na
retomada de elernentos discursivos inseridos tanto na formacaodiscursiva do Brasil 500 anos quanto na formacao discursiva doBrasil outros 500. Alem disso, a midia propicia nos seus diversos
generos uma rede de discursos que instaura representacoes sobre oque e ser brasileiro, pela retomada de sentidos cristalizados em praticasdiscursivas produzidas em outro lugar e em determinados momentos
da hist6ria brasileira. A emergencia de novas representacoes para oconceito de brasilidade nutre-se, entao, do passado, ao retomar figurase acontecimentos que marcaram a historia do Brasil.
A nocao de memoria discursiva5h e muito importante para
•'"* Cotiibrme Pecheux (1999), a "meinoria discursiva" deve -SLT compreerulida como um
con jun to da trucos discursivos que auionam a memoria mitica, ;i meinoria social instntaem pruticH* e a memoria que o histonador fonstroi
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER. SUBJETIVIDADE 121
pensarmos a questao da produc&o de identidades. Como nao existeenunciado que apareca pela primeira vez, o processo de producao
de identidade decorre do fato de cada enunciado colocar em cena osujeito, por ele significado, e o interdiscurso, isto e, a memoria do
dizer. Essa possibilidade que a memoria tern de emergir emdeterminados momentos caracteriza a descontinuidade entre o
discurso e a historia. A identidade vai, pois, sendo construida apartir da memoria que emerge em determinados momentos, sempre
lembrando que em cada emergencia ha a producao de um novo
sentido, nunca o mesmo.Como essa mem6ria projeta-se na descontinuidade de uma
hist6ria, torna-se impossivel falar ern "origens", uma vez que essano9ao supoe o trabalho incessante de encontrar num passado quese ere coeso a explicacao para o que somos, nossa identidade perdida,mas supostamente reconstituida no esfbrco de uma lembranca. Tendoisso por principio, a identidade que e construida na praticadiscursiva da midia impressa resulta dessa memoria discursiva
descontinua e dispersa nos textos.A relacao sempre descontinua entre o discurso e a historia
implica considerar que a identidade nao e algo definitive e acabado.O que existem, na verdade, sao praticas de subjetivagao que
produzem identidades, por isso a identidade e um processo que
esta em constante mutacao.Para ilustrar a produ9ao de identidade(s) no discurso da midia
impressa tomo como objeto de analise tres dos quatro cadernos
especiais veiculados pelo jornal Folha de S.Paulo no mes de abril de200O, mais especificamente, faco menfao as imagens que compoemesses cadernos56. Parto de dois principles: o primeiro comungo com
is Tomo como parimetro as propostas de anal ise da relacTio entre tmagera. memoria eproduce de identidade reunidas por Feldman-Bianco e Leite (1998).
122 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIPADE
Feldman-Bianco (1998), para quern a imagem nao se limita apenasao simples registro e documenta9ao visual do "instantaneo da
experiencia", mas funciona, antes de tudo, como um suporte designificados cu l tu ra i s por ela engendrados; o segundo dizrespeito a (re)utilizacao da imagem na midia como resultado de
um trabalho de interpretagao do sujeito sobre o acontecimento naHistoria.
O caderno intitulado "O tabuleiro do Brasil 500" apresentaum levantamento historico das transformagoes ocorridas naalimentagao, como as influencias dos ciclos economicos, a
utilizacao da cachaca pelos diversos grupos socials e as presengasafricanas e indfgenas na dieta brasileira. "500 anos de teen no
Brasil" faz uma smtese historica da atuagao dos jovens naformacao da nacao, pelo enfoque de temas como trabalho, menorde rua, culto a beleza, musica popular brasileira. O cadernoenfatiza o papel de duas personalidades juvenis: o imperadorD.Pedro 2° e Zumbi. No caderno especial "Imagens do Brasil500", for am reunidas fotos, pinturas e gravuras de diferentes
epocas cuja p roducao ar t is t ica registra os movimentossociopoliticos e culturais do pais.
Nesses cadernos o processo de construcao das identidades
ocorre por meio da retomada de uma mem6ria arquivistica sobreas representagoes que o observador-descobridor fazia dos povosprimitives {a relacao entre o eu e o outro registrada pela otica/
lente do homem branco) e a representagao que o fotografo fez dosacontecimentos que marcaram momentos da historia brasileira.
Trata-se de um mecanismo de interpretacao dos documentosdo passado, que consistiu em selecionar e, depois, deslocar asimagens do seu contexto original. Assim, cada imagem parececonstituir uma unidade discursiva e fechada, a medida que imobilizaum determinado acontecimento, congela um fragmento do cotidiano
ppUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEMi PtSCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 123
e encerra uma representagao particular. Entretanto, a seqiienciaem que estao dispostas permite ao leitor/espectador fazer uma
comparagao entre elas, fixar mais o olhar numa imagem que noutra,construir sua leitura do conjunto a partir de um novo programa de
leitura proposto. Desse conjunto de enunciados disperses e
descontinuos emergem novos efeitos de sentido.Essas imagens, ora inseridas nos cadernos especiais, propoem,
por intermedio do processo de interpretacao acima descrito, um
novo sentido para o conceito de brasileiro no contexto das
comemoragoes dos 500 anos. E nesse sentido que os cadernos podemser considerados como verdadeiros acontecimentos discursivos, pelomotivo de construir uma nova identidade com base em elementosdo passado, nao pelo o que neles esta dito, mas pelo modo comoesse ja-dito neles retorna, o que faz ecoar a maxima de Foucault deque "o novo nao esta no que e dito, mas no acontecimento do seu
retorno" (1995, p.l3}-A ideia de que os negros desempenharam um importante papel
na forma9ao da cultura brasileira e algo recorrente no discurso damidia. Nos encartes especiais, umas das propostas de interpretacaopara o conceito de brasileiro fundamenta-se nessa "rede discursiva"
(GREGOLIN, 200l)5fi.Dentre as imagens e os textos que compoem os cadernos,
recorto um enunciado que aparece com uma certa regularidade: apresenca africana na economia, na cultura e na culinaria como
elemento da formagao da identidade cultural brasileira.Esse acontecimento discursivo irrompe nas diferentes
materialidades imageticas (fotografias, telas e desenhos) e nos textos.Desse conjunto, destaco a imagem abaixo, que foi veiculada no
*" Como analisa a autora, as redes discursivas possibilitam a emergencia dt- temas
figura.s do pas.sado na rneirifiria do presence.
124 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
caderno "Imagens do Brasil 500":
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 125
O dialogo entre o emmciado visual e o verbal permitevislutnbrar, ao mesmo tempo, tra9os individuals e semelhancasculturais que fazem a distin^ao do grupo de mulheres e homens
negros em relacSo a outros grupos socials. Os gestos e a vestimentautilizada funcionam como signos distintivos da alteridade e da
identidade cultural dos negros. Essa imagem e interpretada peloenunciador midiatico como simbolo da resistencia cultural negra ecomo pratica que identifica a religiosidade dessa cultura.
Para enfatizar essa resistencia, o enunciador vale-se de umaconstrucao concessiva, introduzida pelo conectivo apesar de.Discursivamente, a seqiiencia apesar da condifdo degradante daescravidao, intercalada pelas virgulas, aciona a memoria historica
sobre o drama da escravidao negra, que marcou o periodo colonialdo Brasil. Esse mecanismo produz o efeito de sentido de mostrar
que as marcas negativas deixadas pela escravidao nao impedirama pratica da cultura e da religiosidade africanas.
Outros enunciados podem ser recortados, tomando como
parametro os processes discursivos que resultam da oposicaopassado/presente, como podemos observar na comparacao entre o
enunciado-manchete e o enunciado-submanchete do caderno
"Tabuleiro do Brasil 500":
A comida do pai's, em cores, sabores e temperos
A cada gariada, o bra-sileiro come o re-sultado de inn longo processo
de combinacao de alimentos; saiba como essa bistoria aconteceu e
conhe<,:a as mudancas mais recentes do paladar nacional
e os enunciados que encetam a materia interna:
ADIETADOACClCARNegros trouxeram gosto por novos temperos e habilidades de
improvisar receitas misturando ingj-edientes europeus e indfgenas
Afficanos foram for^ados a reinventar sua ciilinaria
O discurso desses encartes se constr6i ancorado no cotidianodos africanos que viviam nas antigas casas-grandes dos engenhos.
Com base nesse saber, o discurso propoe uma compreensao sobre o
que constitui a identidade cultural do brasileiro.Esses enunciados produzem uma compreensao para aquilo que
constitui o habito alimentar a partir da oposicao passado "negros
trouxeram", "africanos foram" / presente "o brasileiro come". Forintermedio dessa oposicao, os enunciados acionam a memoria historicana qua! se inscrevem para construir urn novo sentido para o presente.
Esse dispositive torna-se bastante visivel na comparacao entreesses dois grupos de enunciados. O sujeito linguistico da formulafaoque se inscreve no presente da enu'ncia93o e introduzido pela
126 FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINCUAGEMi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
expressao referencial defmida "o brasileiro", que faz referenda atotalidade de individuos que se identificam por pertencer a culturabrasileira. No segundo grupo de enunciados o sujeito da formulaee identificado pela etnia a qual pertence - "negros", "africanos" -,
que constitui parte do todo expresso pela forma nominal "o
brasileiro". No piano discursivo, o apagamento do elemento etnico
no enunciado inscrito no presente aponta para a estrategia que odiscurso utiliza para construir uma identidade sobre o brasileiro, a
qual decorre, nesse caso, das influencias gastronomicas que herdoudos povos que o antecederam.
Outros enunciados apontam para a relagao entre presente/passado, como nos recortes seguintes retirados do caderno "500anos de teen no Brasil":
Como o jovem ajudou a fazer historia
Esse enunciado aparece em destaque no alto da pagina, comtipos grandes vazados em preto, ocupando toda a pagina. Abaixodele, duas fotografias retratam tres jovens escravos trabalhadores.Em seguida, um texto em tipos menores, do qual retiro o titulo,
Escravidao trouxe 3,5 milhoes de negros, e os seguintes excertos:
O trafko de escravos para o Brasil teve inicio no s£cuio 16. Entre
1550 e 1850, chegaram ao Brasil cerca de 3,5 milhoes de escravos
trazidos da Africa £...] A mistura da cultura afro com a dos povos
europeus e indfgenas que ja habitavarn o Brasil foi responsavel pela
ibrmacao da identidade brasileira. Miisica, idioma, culinaria, festas
populares, enfim, todas as mamiestacoes culturais do Brasil provemdessa mistura.
A narracao do jornalista-historiador desdobra-se em trestempos diferentes: o mais atual, que e contemporaneo do contexto
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LtNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 127
das comemoracoes, o mais recuado, que retoma fatos do passadodistante, e o da enunciacao, que emoldura os dois primeiros. A partir
disso, o enunciador midiatico constroi sua representacao sobre ainfluencia negra na formagao da identidade brasileira ancorado no
discurso da hist6ria (as referencias temporais e geograficas sao tragos
que caracterizam o discurso historico), que passa a funcionar como
um revestimento para o que enuncia.Esses tres tempos da narraclo jornah'stica absorvem e, ao
mesmo tempo, ecoam os acontecimentos culturais, politicos ehistoricos, as personalidades e personagem anonimos da historiabrasileira, de modo que a producao discursiva resultante do conjuntodisperse de imagens, retratos e fotografias se confunde com a
memoria enquadrada.Ha", desse modo, um cruzamento da narrativa historica,
fortemente marcada pela memoria, com a narrativa jornalistica.Esse cruzamento, que e selado pela investigacao/ interpretagSo dojornalista-historiador, funciona como um components textual-
organ izacional fundamental na construcao de identidades.A identidade nacional constroi-se a partir dessa dispersao de
enunciados imageticos e verbais que (re)atualizam temas, tais como:movimentos culturais, manifestacoes populares, diversidade racial
e cultural (a influencia africana e indigena), escravidao, trabalho
infantil , luta pela terra. Com isso, os cadernos oferecem umcontraposto ao fervor patri6tico hornogeneizante instaurado com
as comemora9oes oficiais.Ao retomar essa memoria discursiva, enquadrada tanto na
imagem quanto no texto, ao remontar esse arquivo composto defragmentos do cotidiano dos que nos antecederam, os cadernosespeciais procuraram propor uma compreensao de nossa identidade,pautando-se na diversidade e na heterogeneidade racial, comocomponentes da forma9ao social e cultural do povo brasileiro.
FOUCAULT
Nesses cadernos o resgate do passado e a memoria deacontecimentos historicos a ele vinculado parecem participar de
um dispositivo de producao de identidade cujo mecanismo consisteem propor uma compreensao daquilo em que nos tor names a luz
do que fomos, a luz do que se disse, como visto, sobre a participatedo negro na formagao da identidade nacional brasileira.
Contra a origem e o favor da descontinuidade, considerandoas formulates de Foucault, essa construcao de identidade nao e
um retorno a uma suposta origem; ela na"o se efetua na relacSopalavra/coisa. Essa construcao remete e envia a outras palavras,mais especificamente, a outros discursos sobre a figura do brasileiro.E nessa rede interdiscursiva que se veem constituidas identidades.
A memoria historica vinculada as imagens e aos enunciadosverbais que formam os cadernos especiais auxilia a compreender o
modo como a memoria de uma sociedade migra para os textos damidia, sendo reciclada e reutilizada como referenda de informacao.De modo mais abrangente, essa migracao possibilita compreendera maneira como as imagens do passado sao re-significadas pelapratica jornalistica que cria, a partir delas, um novo material verbo-visual, resultando desse movimento interpretative na historia umacontecimento discursive singular.
A uma producao discursiva oficial (a campanha do governo
federal e de determinados meios de comunicacao de massa), queprocurou construir uma identidade unica e identica sobre osbrasileiros, enraizada num continuo historico e evolutivo, opoe-se
outra, que buscou instaurar o diferente que nos constitui. A uma
escrita oficial cujo referente e uma identidade homogenea celebradapelos lugares de memoria, opoe-se out ra , cons t i tu ida pelabeterogeneidade de enunciados em sua dispersao de acontecimentosdiscursivos, que retomam, trans for mam, instituem, em sintese,interpretam a nossa historia, o nosso povo, a nossa identidade.
DOMJNIOS DA LINGUAGEH; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDAQp | R FQUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO. PODER, SUB3ET1VIDADE 129
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Capitulo 3
Foucault, o discurso e o poder
FQUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 133
Entre vozes, carnes e pedras: a lingua, o corpo e a cidade naconstrucao da subjetividade contemporanea
Carlos Piovezani Filho*
D'un mot, cha<j\m societe a ".son" corps, tout comme die a .ta
langut,C(mstituee par un systems pftu mi mains raffme de diotx
parmi un innombrable de possibihtes phonetiques, lexicalns e
.•ynttLrcques. Tel que tine latigue, ce corps est svumis a une
sestwn socials.o
Michel de Certeau
Uma cidade e amstruida por diferentes tipos de home/is; pessoas
igucris nao podemfaze-la existir.
Aristotelian
O espa9o que se preenche e se esvazia, o concrete que se erguee se dernole, o corpo que se modela e se disforma, as imagens que seproliferam e se rarefazem, e ainda o verbo que se multipHca, ecoa e
se emudece. Da Idade Media aos tempos (pos-)modernos; da "languede bois" para a "langue de vent": a historia, ao mesmo tempo, quasesem nenhuma mudanca e tao repleta delas. O "indizivel", o
"invisivel", o "impensado" e o "inexistente" de cada tempo-espa^o:condi^oes de possibilidade do dizer, da visao, do pensamento e da
existencia. E a partir dai que, com vistas a refletir sobre a producaode subjetividades do tempo presente, conforme os postulados de
Michel Foucault, na/pela midia e na/pela cidade, no que concerneao controle das representacoes e dos usos da lingua e do corpo, e,ainda, no que respeita ao preenchimento-movimento no espacourbano, pretendo aventar algumas hipoteses que tangenciam tantoo funcionamento de discursos quase omnipresentes nos veiculos
* Doutorantio tin Lingiiistica e Lingua Pormguesa na UNESP/FCL/Araraquara, SP-
134 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADe
midiaticos brasileiros da nossa contemporaneidade, quais sejam,
aqueles dos "bons conselhos", das "dicas", sobretudo, referentes ao
(bom) uso da lingua e a (boa) forma do corpo, quanto a ocupac.JIo
do e a circulagao no espago urbano. De fato, o escopo de meu trabalhoincide sobre a especificidade do fen6meno midiatico da difusao
maciga dos discursos do "bem falar" e do "bem escrever" e daqueles
da beleza, da boa-forma e do bem-estar do corpo, aos quaisrelacionarei alguns discursos/praticas urbanisticos (aqueles do
fechamento urbano: grades, muros, condominios fechados), com o
intuito de tracar um esboco do semelhante movimento de gestSo
social que contempla e descarta, que privilegia e segrega, quandose trata de lingua, de corpo e de cidade.
Saliento que a possibilidade de abranger as discursividades
desses tres dominios, quanto as suas representac5es e as suaspraticas, advem do fato de se poder concebe-los semiologicamente,com base nos escritos arqueologico-foucaultianos, no interior dosquais se pode vislumbrar uma teoria do discurso ou da linguagem,
entrever uma especie de semiologia historica*. Dai decorre que nestetrabalho o metodo e a teoria arqueologico-discursiva estejam t&o
implicitados quanto pulverizados e omnipresentes, uma vez que,por seu intermedio, torna-se possivel transcender o "a-" ou o "anti-"
historicismo proprio das semiologias estruturalistas.
Farei, tendo em vista meus objetivos, uma sintetica recensao,perpassada por comentarios e por aportes hist6ricos, de alguns
pontos de um prodigioso texto de Michel Pecheux, Delimitates,Jnversoes, Deslocamento, que aponta para a inerencia entre o ver e odizer, para o modo como se coadunam os projetos urbanos e aspoliticas lingiiisticas em algumas sociedades ocidentais. A partirda reflexao nele contida, que se estende das sociedades feudo-
"7 Cf: GREGOLIN,
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: PISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE 135
monarquicas ate os regimes autoritarios, com modo de produgao
socialista, do seculo XX, levanto, como ja disse, algumas conjecturas
sobre como se dao essas relacSes entre as edificacoes urbanas e o
controle dos usos lingiiisticos e dos embelezamentos do corpo, no
final do seculo passado e inicio deste, ou seja, na sodedade do controk.
Sao, aqui, fundamentals as referencias que trago de Michel Foucault,
principalmente suas elucubragoes acerca das passagens historicasdas sociedades de soberania para as de disciplinas e, dessas ultimas,
para as de controle.
Entre o visto e os sentidos: fronteiras, muros e normas
Ao tomar a Idade Media como ponto de partida, Pecheuxobserva uma rigorosa imobilidade nas relagoes sociaissa, sob aforma de nitidas fronteiras que separam nobres e plebeus; do lado
dos primeiros, os muros, os fossos, os castelos e o latim; dos ultimos,as cercas frageis, simbolicas, ou ate mesmo sua elisSo, as casas
simples e os falares vulgares. De modo reciproco e coextensivo, as
barreiras e demarcates vao da arquitetura para a lingua e dalingua para a arquitetura, conforme ratificam os seguintes excertos:
As ideologies f'eudais supunham a esistgnciamaterial de uma barreira
lingtiistica que separava aqueles que, por seu estatlo, eram os dnicos
suscetiveis de entender claramente o que tinham a se dizer, e a massa
de todos os outros, tidos como inaptos para se comunicar realmente
entre si, e a quern os primeiros so se endere^avam pela m
•" A inercia das rela^oes sociais ate a Idade Media assentava-se nn antigo principio"fiskilogico" hipocratico do calor do corpo: desde a Antigiiidade Classica, o ardor corporalera indice por meio do qual eram distintos cidadaos e escravos, gregos e barbaros, homense mulheres; nas Monarquias-feudais, n nobre ja nascia diiercnciado, seu sangue era azul eseu corpo era quente. Ver especial mente Came e Pedra: o corpo e a cidade wa civilixctfooocidental (^003), de Richard Sennett.
136 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADg E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 137
retorica da religiao e do poder (PECHEUX, 1990, p. 9-10).
As taticas de distanciamento por meio da construgao de urna barreiravisivel constituern uma das caracterfsticas principals do dispositivefeudal: Regis Debray evocou recentemente esle memento do seculo
XII em que a "arquitetura feudal eleva as muralhas, escava ainda maisos fossos — o poder supremo esta nos castelos. No seculo XIII, aarquitetura religiosa idealiza tribunas, estalas e coros separados, para
isoiar rneihor o ctero da multidao dos laicos. O corpo eclesiasticoreforca sua clausura no rnomento em que a apoteose teocratica d4 aIgrejao poder supremo" (Le. scribe, p. 23-4). Ointeressepara n6s estano que Debray acrescenta: "As necessidades da administratereestabelecem o uso da escrita. O latirn e restaurado como instrurnentode comunicagao "internacional", comum a Igreja e a chancelaria. Osreis e os principes serao os imicos, juntamente com os clericos, quepoderSo aprende-lo. As falas vernaculares se convertem em "Hnguasvulgares", que sao abandonadas ao povo —• maneira de demarcardirigentes e dirigidos" (ibid., p. 25). O latim seria assim a "lingua demadeira" da ideologia feudal, realizando ao mesmo tempo acomunicac.ao e a nao-comunicac.a'o (PECHEUX, 1990, p. 20-1).
Assim, instaura-se uma cisao do mundo feudal em doismundos, assegurada por visiveis delimitacoes arquiteturais e porexpresses limites linguisticos. Aiem disso, os dois mundos eramainda divididos pela diferenca dos corpos: a maior estatura do corpo
do nobre, frente ao corpo plebeu, era reforcada pelos trajesvolumosos, opulentos e suntuosos. Entretanto, essa partigao nao se
sustentava sem o fundamento advindo da necessaria presenca
(ausente) de um terceiro mundo invisivel, no qua! nao ha separacao,sendo "todos iguais perante Deus": "a ideologia religiosa, quedominava a formafao socio-historica, feudal e monarquica, consistiaessencialmente em administrar esta relacao com o 'alhures' que afunda; ela representava este 'alhures', tornando-o visivel atravesdas cerimonias e das festas — inscrevendo ai os discursos — quecolocavam em cena este corpo social unif icado, radioso,
rransfigLirado, que manifesta o "inexistente constitutive da sociedade
feudal" (PECHEUX, 1990, p. 10).Todavia, o divino dominante tende a ter sua predominSncia
rnitigada, visto que, nos crepusculos da Idade Media, o trespasse
do rex imago Dei — que vigorou praticamente durante todo
periodo medieval, cujo "fundamento ideologico ultimo deve(ria)
residir na passagem do politeismo antigo ao monoteismo" {Le Goff,2002, p. 396) e cujo desempenho real tangia, sobretudo, a umatrifuncionalidade (obedecer a Deus e servir a Igreja; assegurar a
iustica e a paz ao seu povo; e prover suas necessidades) — para orei absolutista deu-se subsidiado por uma primeira investida rumoa uma especie de dessacralizacao do poder59. Destarte, entre osseculos XII e XVI, a realeza passou a ser orientada por principiosracionais juridicos: "Se tende a tornar-se absolute, o rei devesubmeter-se a essas duas grandes inverses do seculo XII, a razSoe a natureza. O rei torna-se um 'senhor natural' e seu governodeve ser guiado pela razao. A realeza parece dessacralizar-se e passa-se de uma 'realeza centrada em Cristo' para 'uma lei e uma
humanidade centradas na realeza'". (LE GOFF, 2002, p. 412)Ademais, havia uma burguesia no meio do caminho:
simultaneamente a essa quase subtracao do carater religiose dopoder real, estabelecia-se a ascensao socio-economica burguesa,fazendo com que a lacuna existente ate entao entre ela e a nobreza(incluida, nesta ultima, a propria realeza) se abrandasse. Tais
aumentos de poder e, consequente, aproxirnacao da burguesia emrelacao a nobreza concorreram para uma passagem do conceito de
sff Syria [jossivel aludir, aqui, coin o intuito de atestar e de ilustrar essa passagem do poderdivmo para um poder absolutist;! humaii ixado, ao enfr;u|uec]rnento, deiii i i t ivamente
estatwlocido no seculo XVI, d;l.s te.ses de vie* teol&gico, como aquela contida na ja tardia
foiitica a-traida ,la Sagrada Escritvra, do bispo Jacques Bussiiet, e & ascendencia das concep^oes
contratunlistas, das quais o Lcviata. de Tlioma.s Hobbes, talvez -seja o e.spe.nme ma»s
138 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCUR5O, PODER, SUBJETIVIDAQE
courtoisie, que resumia a autoconsciencia aristocratica e o
comportamento socialmente aceitavel da nobreza da cavalaria-
feudalista, para aquele de civilite, do qual o "De dvilitate morum
puerilium", vindo a lume no seculo XVI (ano de 1530), de Erasmo,
e sobremaneira representativo: "No decorrer do seculo XVI, o uso
do conceito de courtoisie diminui lentamente na classe
{aristocratica) enquanto o de civilite torna-se mais comum e,
finalmente, assume preponderancia" (Elias, 1994, p. 83). A "civilite'
da nobreza pressupunha cuidados relacionados as boas maneiras
quanto aos usos junto a mesa e a cama, ao esmero com a higienizacao,
ao contato entre os sexos e a fala; no que tange a esse ultimo aspecto,
Norbert Elias cita o "Mots a la mode', de Callieres, que, na edicao de
1693, afirma: Voces sabem que o burguesfala de modo muito diferente de
nos. Por meio da observacao dessas normas de comportamento
cotidiano, de etiqueta e de boas maneiras, pretendia-se promover
ou corroborar uma nitida distincao entre a elite aristocratica
(inclusive a familia real e mais ainda o proprio rei) e os demais
estratos sociais mais ou menos alijados do poder politico
(principalmente a burguesia, estrato mais proximo da e, por isso
mesmo, mais ameacador a corte). Assim, o trabalho de Elias, £...]]
ve na retencdo, na continencia e no governo de si bem mais que uma questao
psicologica e sociologies. £trata-se antes de^ uma questao
fundamentalmente politica, Qde modo quej a ordem nas condutas
aparece ai nofundamento do governo dos outros. O governo de si e ai um
componente essential do poder, o mais seguro entrave a desordem politico,
o compkmento necessdrio a lei (HAROCHE, 1993, p. 53; grifos daautora).
A paulatina derrocada da nobreza e a crescente ascensiio da
burguesia podem ser observadas, de um modo complexificado, na
passagem, assinalada por Foucault (1999 e 2000), do "poder
soberano" para o "poder disciplinar", que comportava dois polos,
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LJNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 139
dois corpos: o individual, o corpo-mdquina (docil e produtivo),
controlado por uma andtomo-politica; e o coletivo, o corpo-especie (ser
vivo e suporte de processes biologicos), controlado por uma bio-
politica da populacao. Enquanto o primeiro, o soberano, baseava-se
no "sangue", no nascimento e era caracterizado pelo "direito de vida
e morte", ou seja, o "direito de causar a morte ou de deixar viver", o
ultimo, o disciplinar, consiste num poder que gera e gere a vida dos
corpos pessoal e social; sendo que seu aparentemente paradoxal
surgimento, em meio a ascensao das Luzes, promoveu-se mediante
a mobiliza9ao de instituicoes disciplinares, tais como: as escolas, as
familias, as fabricas, os hospitals, as prisoes, que se instalam,
sobretudo, a partir dos XVII e XVIII (FOUCAULT, 1999, p. 131).
Na sociedade disciplinar, "o individuo nao cessa de passar de urn
espa£O fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a familia,
depois a escola (Voce nao esta mais na sua familia'), depois a caserna
(Voce nao esta mais na escola'), depois a fabrica, de vez em quando
o hospital, eventualmente a prisao, que e meio de confinamento por
excelencia" (Deleuze, 2000, p. 219).
Essa epoca caracteriza-se, pois, pelas sofisticacoes das tecnicas
do poder que atuam sobre os corpos, de modo a "repartir dans I'espace,
ordonner dans le temps, composer dans I'espace-temps" (DELEUZE,
1986, p. 78), com vistas ao seu treinamento e a sua produgao
eficientes; nessa era, "viram-se aparecer tecnicas de poder que eram
essencialmente centradas no corpo, no corpo individual, por meio de
procedimentos pelos quais se assegurava a distnbuicao espacial dos corpos
individuals (sua separacdo, seu alinhamento, sua colocacdo em sene e em
mgilancia) e organizacao, em torno desses corpos individuals, de todo um
campo de visibilidade" (FOUCAULT, 2000, p. 288). Ademais, a Idade
Classica proporcionou, conforme ja dito, essa intensificacjio sobre a
normatizacao dos corpos, em razao da passagem do direito soberano
para o poder disciplinar. Dada essa valorizacao da vida pelo poder
140 FOUCAULT E OS DOMiNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
disciplinary quase nada que Ihe concerna pode escapar-lhe ao alcance
da minucia de seu olhar potente, sendo, por extensao, a morte, em
certa medida, o unico reduto capaz de evadir-se do seu encalco,
capaz de oferecer-lhe resist£ncia: aqui, "o biologico reflete-se nopolitico,
fazendo com que haja uma prolifera$ao de tecnologias -politicas que, a
partir de entao, vao investir sabre o corpo, a sai'tde, as maneiras de se
alimentar e de morar, as condifoes de vida, todo o espafo da existerwia"
(FOUCAULT, 1999, p. 134-35). Dai decorre que a passagem do
sangue e da lei (nobres ou aristocraticos) para o corpo e as normas
(burgueses) nao implicou a ausencia do controle, nem mesmo a sua
atenuacao, mas tao-somente um funcionamento de outra ordem, de
outra natureza, mais sutil, menos agressivo, mas, possivelmente,
mais eficaz: "enquanto pouco a pouco se vao desfazendo a ordem
do nascimento e a hierarquia do sangue, no espaco da linguagem
constroem-se praticas em que as redoes entre os homens vao
encontrar uma outra expressao, sem diivida mais profunda e mais
complexa" (COURTINE e HAROCHE, s.d., p. 2l)60.
Estabeleceram-se ai as condicoes de possibilidade para a
emergencia da Revolu9ao Francesa. Essa revolu9ao que deslocaria
o "terceiro mundo" feudal de uma imaterialidade divino-
60 Com a ascensao simultane-a e entrecnizada da "socieda.de discipknar' (FOUCAULT. 1999
e yOOO) e do "paradigma da expressao' £"processo pelo qua! (a partir do seculo XVI) a
linguayem vui poueo a pouco passar a ser a medida de todas as coisas, dar sentido aos
comportamentos, penetrar protundamente a interioridade subjetiva e tazer do corpu «
lugar expressive de uma vc>z int ima (COURTINE e HAROCHE, s.d., p. 27)3, ambos
sintetizando e assinaJando o crescents eiilraquecimento dos vulores aristocraticos, instaura-
se toncoinitanteinente mecanismos de controle da producaci (aqui, o corpo-produtivo) e
da expressao, agora cumprindo fuii^iies determmantes no estai)filecmienti> das rela^cies
Kociais, (aqui, o corpo-expressivo) Encjuanto a "anttocracia tende a aprcao.ro espirdt) brilhante,
mttnttaito, pohdfi, a grafa, a ostznlafaa, a e.rtbiffio de si [...-]; a burgitt'sa:, no que /J:e dm respeitti,
valoriKa a •virtude, a mtegridade, o esfur^o, a amtendade e as tjuahdiide!. moran" (COURTINE e
HAROCHE. s.d., p, 130), valoriza enfim os valores medios-. a poupanva, o domimo de si, amedida, a modestia. Dai decorre i> mces.sante controle sobre o corpo e sobre a lingua:
conforme a orienca^ao de Van mo n ere, em Uart de plaire dans la com/erratum (lt>88), "A frase
devi- ncr ornamsntada com as /lores da retonca, a corpo deve apresentar um parfe gracwso t o rust"tint tir abeito.", e tudo isso, sempre, sem exccsso e com modestia e medida precisas.
FOUCAULT E OS DOM I NIPS DA LINGUAGEM! DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 141
transcendental para sua efetiva concretizacao no piano terrestre
(nao mais no tempo mitico, mas no tempo historico), sob a forma
do desmoronamento das fronteiras espaciais (o anacronismo do
Palacio de Versailles), da anulacao das diferencas linguisticas (a
instauracao da Lingua Nacional) e do fim das assimetrias corporais
{o uso dos uniformes, segundo os preceitos revolucionarios de
Robespierre): o otimismo de Hegel e a derrisao de Marx01. A
igualdade formal vein junto com o surgimento do Estado Moderno
e a consolidacao de uma lingua nacional, fazendo com que ocorresse
uma mudanfa estrutural na forma das lutas ideologicas: nao mais o clwque
de dais mmidos, separados pela barreira das llnguas, mas um confronto
estrategico em um so mundo, no terreno de uma so lingua, tendendalmente
Una e Indivisivel, coma a Republica (PECHEUX, 1990, p. 11).
Organizou-se uma unificacao aparente, cujas subjacencias
apresentavarn uma nova divisao social, com a cobertura da unidade
formal do Direito herdeiro da politica burguesa.
Se na revolugao burguesa a 'questao linguistic a' chega
pohticameute a ordem do dia, tendo em vista a unificacao imaginaria
que passava necessariamente pela difusao e consolidacao de uma
lingua nacional, e porque a burguesia viu-se diante da injuncao de
proclamar um ideal de igualdade frente a lingua como condi9ao
B1 Na mais famosa passagem de sua obra A fenomenologia do Espirilv, Hegel concebe :i
Revolucau Francesa como o lim da historia liumana, uma vez que a pretensao motivadora
do processo historico, on seja, a luta pelo reconliecimento, encontra-se desde entao
realizada numa .sociedade caracteri'/,ada pelo reconhccimento miituo e universal: a elisao
das coiitradicoes entre "senhor/escravo". Os princfpio.s do cristianismo, da iiberdade e da
igualdade humana nao mais se realizariam num piano divmo-celestial, mas, dai'-se-iam no
aqui-agora mundano. Desse niodo. nao seriam mais netessarios, nem sequer possiveis, «s
ajustes as instituicoes socials Nao e, portanto, plausivel nenlnuna aheracao histonca
progressiva. A democracia Sibenil, que advem dessa revoluciU), substitui o nisensato desejo
de ser reramliucido como superior pelo prudente desejo de ser reconliecido como igual.Marx, por sua vez, via, medmnle a.s Elites do matu-naliNmo hiscor^o, „ Revolucfm Frantesa
como "« uco.iteciinento cristao p.>r extelencia", como o a]nigaiT>e>lto meramente fo rma l
das coiitradicoes e das lutas ik clai.se de uma dada'sociedade.
142 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
para o estabelecimento da liberdade cidada. Aparentemente,
derrubaram-se os muros, taparam-se os fossos, abandonaram-se
os castelos; contudo, a manuten^ao das desigualdades reais e
assegurada, dentre outros modos, pelo desnivelamento, ja antecipado
e denunciado por Rousseau62, estruturalmente reproduzido por
uma divisao no ensino de lingua e de gramatica:
Esta divisao e polftica. O jogo de palavras burgues sobre o termo
"liberdade" se mede pela distancia que separa os prqjetos escolares
revolutionaries jacobinos (em particular, em materia lingiHstica, os
de Condorcet), da realidadeem 1880. Mas o deslizamento existe j(i no
projeto jacobino: ao apresentar sintomaticamente como modelo a
Gramatica francesa de Lhomond, o ensino "completo" da I ingua francesa
se constitufa sobre o modelo do latim, reservando a experiencia do
bilingiiismo a classe dominante, e fbrneoendo as rnassas uma gramatica
simplificada e truncada, baseada na 16gica da frase simples {PECHEUX,1990, p. 21).
Ao inves do termino das assimetrias socio-economicas e das
lutas ideologicas, o que ocorre realmente e a instauracao de uma
nova barreira, invisivel, £que] ndo separa dois 'mundos'; ela atravessa
a sodedade como uma linha movel, sensivel as relacoes deforca, resistente
e eldstica, sendo que, de um e outro de sens lados, as mesmas palavras,
expressoes e enunciados de uma mesma lingua, ndo tern o mesmo 'sentido';
esta estrategia da diferenca sob a unidade formal culmina no discurso do
Direitoy que constitui assim a nova lingua de madeira da epoca
moderns, na medida em que ela representa, no interior da lingua, a
maneira politica de negar a politica (PF.CHEUX, 1990, p. 11). Assim,
se para os burgueses, na sua revolu^So, o objetivo era o de elidir as
fronteiras manifestas presentes no mundo feudal-monarquico, para
°'2 "Afirmo .ier uma lingua mcraviKada toda aquda cam a qual nan se consegu.e ser ouvido pelo povn
reunidti. E tmpoixivel <fue um povo perman^a livre e faltt uma tal lingua." (Rousseau, 1999, p.
FOUCAULT E OS DOHINIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 143
os revolucionarios socialistas do seculo XIX europeu, os propositos
consistiam na denuncia das igualdades meramente formais da
sociedade burguesa e na consequente politizasao do proletariado,
de modo que esse ultimo pudesse enxergar o irrealizado, o invisivel
de sua epoca, e enxergar-se, tornando-se visivel para si mesmo,
fazendo-se sujeito da historia: o mundo vai Qou, talvez, pudesse]
mudar de base (P^CHEUX, 1990, p. 12).No entanto, a subversao da base do modo deprodupao capitalista,
tal como a espe.ra.vam os revolucionarios da epoca de Marx, nao ocorreu;
o que teve inicio com Outubro 17, e que constitui hoje 'o mundo socialista',
se desenvolveu essencialmente na periferia do sistema capitalista
(P^CHEUX, 1990, p.13). £ possivel vislumbrar, na revolucao
socialista, alguns pontos afins entre sua politica administrativa e
linguistica e aquela adotada pela revolu5ao burguesa, quais sejam,
a constitui^ao de condicoes linguisticas necessarias ao exercicio do
novo poder do Estado, tendo em vista as complexas ramificacoes
geograficas e culturais, a organizacao de uma superintendencia
adequada a administra9ao do pals, e de urn exercito apto a proteger
sua independencia; alem dessas, a escolariza9ao, a alfabetizacao e a
difusao cultural da lingua nacional integraram o programa politico
dos movimentos revolucionarios socialistas.Feitas algumas ressalvas, que sustentam a impossibilidade
da identica repeticao, dada a descontinuidade da historia, ha, tanto
na Revolucao Francesa quanto na Revolugao Bolchevique, um
fracasso no que concerne a promocao da igualdade efetiva: uma
vez mais, talvez, surgisse a paradoxal tristeza-derrisoria de Marx.
O fato de que a revolucao de 1917 tenha sido realizada no interior
do mundo capitalista contribuiu decisivamente para a irrup9&o de
novas fronteiras, posto que o alhures realizado tomava a forma do
'reahzado alhures': a impossibilidade de concretizar o impensado, o
son ho rcvolucionario em escala mundial. Desse modo, surge, por
144 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA UINGUAGEM^DISCURSO, PODER, SUBJETIVIPADE
um lado, um limite exterior, que separa o interior do socialismo
restrito e o exterior abrangente do universe capitalista, que tem a
funcao de, sirnultaneamente, proteger contra a invasao e de prevenir
e evitar as fugas, e, por outro, emergem fronteiras internas, cujo
papel fundamental e a producao de efeitos hierarquizantes: um certo
retorno do sagrado feudal no. ordem social as hierarquias, as posicoes e
os protocolos organizam a visibilidade do corpo glorioso da Revohtfao
e asseguram a legitimidade do discurso oficial, tecido com referencias
aos textos fundadores e com fragmentos de memona coletiva, atrnves
dos quais o 'nos' do povo se. dirige a si mesmo [de modo que]] de um
lado e de outro desta fronteira, a mesma palavra, a mesmafrase ndo
tem, de, novo, o 'mesmo sentido' (PECHEUX, 1990, p. 14-5).
Novamente, o estabelecimento de um desnivel entre a massa,
de um lado, e a classe dirigente e a intelligentsia sovieticas, de
outro, materializado no confronto entre variantes lingiiisticas, mas
tambem, seguramente, na visibilidade do corpo politico e no modus
habitandts: esses ultimos (dirigentes, porta-vozes e intelligentsia], de
fato, nao moravani, tal como a primeira (massa/classe operaria),
em casas populares.
Entre lingua, corpo e movimento: controles midiaticos eurbanos
Se de Certeau diz que chaque societe a 'son corps, Deleuze, por
seu turno, afirma que a cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se
fazer corresponder um tipo de mdquina (2OOO, p. 216); maquinas de
engrenagens, simples on dinamicas, maquinas a vapor e energeticas,
maquinas ciberneticas e computadores estao respectiva ou, ao
menos, preponde rantemente para as sociedades de soberania, de
disciplina e de controle. O seculo XX e, a fortiori, o XXI tem, por
isso, "sua" lingua, "sens" corpos, "suas" maquinas, ''sua" arquitetura.
FOUCAULT E OS OOMINIOS DA LINGUAGEH; DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 145
AS formas do complexo de relaQoes de forca que hoje prevalecem
tendem mais a abertura do controle continuo e permanente que ao
fechamento descontinuo das instituicoes disciplinares: O que esta
sendo implantado, as cegas, sao novos tipos de sanfdes, de educacdo, de
tratamento. Os hospitais abertos, atendimentos a domicilio, etc.
{DELEUZE, 2000, p. 216). No que diz respeito a educagao, e
possivel facilmente observar que sua promocao e cada vez menos
um conjunto de acoes realizadas em um meio fechado, distinto do
ambiente professional; instaura-se a exigencia da formacao
continuada tanto para o operario-aluno quanto para o executivo-
universitario, visto que nurna sociedade de controle nunca se
termina nada. Mais especiflcamente, a educacao (politica) linguistica
parece ter aderido ao modelo pragmaticamente eficaz do "toda hora
e hora/todo lugar e lugar de/para aprender", tendo como efeito
reverse e perverso — de modo analogo ao que ocorre com a formula
"Tudo e politico", que se apresenta onde talvez quase nada mais o
seja de fato — uma consideravel deslegitimacao do ensino formal e
serio; possivelmente mais uma das facetas do encolhimento do (e
do descredito para corn) o dominio politico-publico.
Ao se focalizar as praticas corporals, linguageiras e
urbanisticas da sociedade contemporanea, surgem suas aparentes
condicoes, posto que, aquem das reflexoes sobre as relacSes de poder,
o que se tem e abertura, sob a forma da libertacao do corpo, e nao
mais seu disciplinamento, da liberacao da fala, e nao mais sua
interdicao, e da autonomia da ocupacao e do movimento no espaco,
e nao mais sua restricao. Nesse sentido, a hist6ria caracterizaria a
atualidade pela suposta inexistencia de distincoes, separacoes e
segregacoes instauradas pelo poder, pela liberdade propria a uma
epoca pos-vitoriana, desde o inicio do seculo XX, pos levantes
feministas e de outras minorias, pos Maio de 68, desde a segunda
metade desse seculo, e, especialmente no Brasil, pos abertura politica,
146 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER. SUB3ET1VIDADE
que se seguiu a derrocada da Ditadura Militar, a partir do final
dos anos 70: direito a livre expressao, direito ao proprio corpo.
Ocorre que nao se trata, de fato, da efetivacao do ideario democraticoe igualitarista, mas, antes, de uma passagem, de um deslizamento,visto que se pode vislumbrar na atuacao do poder (pos-) moderno
um largo deslocamento que vai do controle-repressao, pr6prio da
sociedade disciplinar, para aquele do controle-estimulafao, dassociedades de controle, no qua! se observa a efitiencia da formulaFique nu ... mas seja magro, bonito, bronzeado! (FOUCAULT,1985, 14-7}63; essa formula poderia ser, sem maiores problemas,
arrastada para o ambito linguistico, na medida em que se sucedemas injuncoes ao dizer, a fruicao dos direitos da liberdade deexpressao, e se manifestar na forma do seguinte imperative: "Todospodem/devem falar... mas nao de qualquer jeito!" (sob a pena denao serem ouvidos, ou de terem suas falas circunscritas, sem apromocao de maiores ecos, ou estigmatizadas). Desse mode, ofechamento, a saturacao e a cisao dentro/fora, dos quais falam EniOrlandi e Pedro de Souza (s.d.), coadunam-se quase queindefectivelmente com as politicas do corpo e da lingua da sociedadebrasileira hodierna, visto ser ele mais um dos meios constituidos
com vistas a segregacao e ao alijamento daqueles que nao atendema um e nao se enquadram num padrao normalizante/normatizante.
For absorver em boa medida um conjunto de representatives acercado que seja "a" lingua portuguesa, ou o seu bom uso, do que seja "o"
corpo, ou a sua forma esteticamente viavel, uma consideravel parcela
63 Fato que nao implies a atenuafiio efetiva das coe^oeK e da inspe^ao das condutas.
Talvez, Ibsse mais acei'tado salientar, Inclusive, um certo e consideravel relbnpo dos coiitroles,
tendo em vista, por exemplo, que "o momenta namxicu da cultura do corpo not Estadvs Umdos
curresfronde, naa a um laisser-nller hedonnta, mm, a um refbryo dtsciplijiar, a uma intenstficaf&v
dos contrttles. Ele nao carrtsponde a uma dmpersao da heranfa puritana, mas antes a uma
repuritanizafSo dos comportamentos, cujus mgnvs, de modo mai.i mi -mena* explicit*},muttiplicam-M hoje" (COURTINE, ifly,^, p 105).
FOUCAULT E OS DOMINIQS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 147
dos sujeitos de nossa sociedade veem nas especificidades de seus corposa feiura, e nas particularidades de sua variante linguistica, a incorrecao,inscrevendo-se numa exterioridade, num "do lado de fora", de modosemelhante ao que acontece com a inacessibilidade e com exclusao
promovidas por meio das grades, da altura dos muros, das cercas
eletricas e, sobretudo, dos condominios fechados, que sintetizam os
casos mais emblematicos do distanciamento, da "clausura" voluntaria,da segregacao, do nao-acesso ou, mais radicalmente, da impossibilidade
de habitar, da frustracao do desejo de ter um "canto".E preciso sublinhar que, no que se refere a estimulacao e a
aparicao midiatica do corpo nu ou quase desnudo, nao se trata,com efeito, de uma inversao dos ou de uma ruptura com osparadigmas classico-platonico e judaico-cristao, segundo os quaisna dicotomia Corpo/Alma, valoriza-se demasiadamente a segundaem detrimento do primeiro. Antes, trata-se de uma certapermanencia historica da valorizacao do piano ideal, visto que, demodo analogo ao que ocorre na cultura do body-building dos EstadosUnidos, na qual os musculos, num puritanismo ostentatorio, escondemo sexo, conforme o postulou Courtine (1995), as asperezas repulsivasda carne real sao obliteradas frente a omnipresenga midiatica, seja
nos videos, seja nas paginas, dos corpos de luz e de papel.A producao e a cristalizacao dessas represent ac5es do corpo e
da lingua tern se tornado cada vez mais intensas e eficientes, gracasa forca da midia, que, pelo fato de consistir atualmente numa das
mais fundamentais instancias de constituicao de representagoesimaginarias, objetiva e naturaliza o mundo, constroi e propaga umaserie de "verdades". Coextensivas do encolhimento/enfraquecimento
da politica e da pedagogia stricto sensu, dao-se a politiza<jao e a
°* Ver PIOVEZANl FILHO, C. Politicu midiatixada e midia politizada: tronteiras n i t iga i i snu pas-modern idade In: GREGOLIN, M R. V Discurso e midia: a aikura do <±spetaculo.
Sao Carlos/SP: Ciaraluz. 2003
148 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUflGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIV1DADE
pedagogizacao da midia: uma vez que a sociedade do controle se
caracteriza pela abertura e continuidade das instituicoes, observa-
se o aumento da atuacao midiatica que, para alem da transmissao
de informacoes e do entretenimento, pretende supostarnente exercer
papeis pollticos e pedagogicos. E se a forma$ao permanente tende
a substituir a escola, e o controle continuo substitui o exame (DELEUZE,
2000, p. 221), a midia brasileira tern aspirado a preencher os vazios
deixados pela derrocada do ensino traditional; em suma, a esfera
midiatica cumpre {ou pretende cumprir) a funcao da escola sem,
entretanto, abdicar de procedimentos congeneres daqueles
utilizados pelos aparelhos escolares. Dai decorre o fato de a midia
brasileira, com efeito, estar desenvolvendo um trabalho de controle
sobre as praticas linguageiras e corporals, por meio das quais os
Individuos tornam-se sujeitos, erigindo balizas rigidas {o corpo
malhado e a manifestacao lingiiistica na norma-padrao do
portugues) no interior de instancias suficientemente reguladas e
necessariamente maleaveis (estruturas passiveis de jogo). Nao se
trata, contudo, no que tange especificamente a lingua, de assim
proceder, objetivando "homogeneizar 'o' portugues brasileiro",
pondo em risco nossa diversidade lingiiistica (a existencia e a
manutencao da variedade sao condicoes de possibilidade para a
eleicao e a consagracao de apenas uma das variantes: amiiide, aquela
mais interessante socio-economicamente); o que ocorre, de fato, e a
criacao de uma necessidade, e a veiculacao de uma publicidade e,
ainda, a construsao de uma serie de praticas exclusivistas e
separatistas de subjetivacao.
Cabe, ainda, nao desconsiderar outro aspecto bastante presente
nos procedimentos midiaticos, qual seja, aquele de acordo com o
qual os discursos que constroem representacoes sobre os corpos e
sobre a lingua nao provem somente das esferas e dos sujeitos
especia l izados; ai, em detrimento, em alguma medida, da
FOUCAULT E OS DOHINIOS DA LJNGUAGEM: DISCURSO, PODER. SUB3ETIVIDAPE 149
competencia do especialista, institui-se o que De Certeau designa
por abuso de saber. E assim que se da o movimento que permite o
pronunciamento/controle das condutas corporal (dietetica) e
lingiiistica (gramatiqueira) dos peritos que intervem 'em nome' —
mas fora — de. sua expenenaa particular (DE CERTEAU, 200O, p.
66), mediante a conversao da competencia em autoridade: No limite,
quanto maior a autoridade do perito, menor a sua competencia (DE
CERTEAU, 2000, p. 66). Nao sem razao, irrompem na rnidia os
multiples "conselhos", as "valiosas" indica^oes, as "inestimaveis"
sugestoes que concernem principalmente ao corpo, mas, tambern, a
lingua: as dicas de beleza e saude da Adriane Galisteu e a dieta da
Deborah Secco; os alvitres gramatiqueiros do Pedro Bial aos
participantes do Big Brother Brasil e as deliberacoes "linguisticas"
do Serginho Groisman, seja no Altos Horns, no A$ao ou no Aid Brasil!
Aqiti tern educafdo. Certamente, os especialistas (os medicos e os
Fisiologistas, para o corpo, com consideravel freqiiencia, os
gramaticos, esporadicamente, e os lingiiistas, quase nunca) nao estao
ausentes; eles sao interpelados com vistas a ratificar as dicas ja
dadas, a emitir suas opinioes e a apresentar as novidades sobre
beleza e saude; entretanto, a ressonancia dos comentarios dos
"peritos", cuja iniciagao a ordem midiatica foi bem sucedida e cuja
competencia abrangente (quase ilimitada) advem de sua celebridade,
de sua circulacao entre os ricos, chiques e famosos, e
inquestionavelmente mais difusa e abundante. Como se o fato de
ser celebre e prestigiado, numa dimensao alheia a producao cientifica,
e/ou de gozar de uma forma fisica privilegiada (sendo que essa
ultima condicao, por vezes, e garantia para a aquisicao da primeira),
segundo os modelos midiaticos contemporaneos, assegurasse o
saber, a legitimidade e a autoridade dos juizos tecidos acerca dos
uses do corpo e da lingua. Ademais esses pretensos saberes,
legitimidades e autoridades nao sao pesados nem carrancudos, antes
150 FQUCAULT E os DOHINIOS PA LINGUAGEH; PISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
tern a leveza de uma regiao de dizer aparentemente folgaza" e
despretensiosa, na qual, de fato, impoe-se uma ordem do discurso
rigida e amplamente controlada, ainda que sob a forma das leves e
homeopaticas doses de sugestoes sobre a boa forma e o bem falar.
Uma vez mais a politica (ai, singela e delicada, mas
contundentemente sentida e eficaz) no corpo e na lingua.
Especificamente, no tocante a lingua, e, de modo ainda mais
precise, aos preludios historicos dos discursos e praticas que
controlam ou, ao menos, intentam controlar seus usos, a presenca
da politica e evidente, sobretudo no que diz respeito a relacao basilar
entre a institui9ao de uma lingua oficial e os fundamentos da
unificacao de um estado nacional. Diante de uma possfvel
correspondencia entre as realidades francesa - motivada por uma
das prestimosas indicacQes do texto de Pecheux (1990) - e brasileira,
poder-se-ia sustentar que a instituicao das Hnguas nacionais
subsidiou-se mais em decisoes eminentemente politicas que em
arbitrios propriamente lingiiisticos; e isso tanto na Fran9a como
no Brasil. Todavia, enquanto la, em funcao do fato de que a
impossibilidade de um compromisso com a monarquia empurrou a burgiiesia
para uma ahanfa popular (P^CHEUX, 1990, p. 11), bem como pela
propria razao de essa mesma burguesia falar frances, os falares
vulgares, a lingua francesa largamente uti l izada, foram
contemplados, malgrado a instauracao da langue de bois do Direito
e da PoKtica burguesas; no Brasil, o estabelecimento da lingua
portuguesa como Lingua Nacional oficial, com o decreto de Fombal,
no ano de 1759, em detrimento da Lingua Geral, amplamente usada
aqui naqueles tempos, e de varias linguas indigenas, essas ultimas
com a desvantagem, conforme a concep9ao das culturas letradas,
de serem agrafas, produziu o surgimento de um modelo, baseado
na norma-padrao do portugues europeu, para toda producao
lingilistica engendrada em terras brasileiras. Possivelmente, tenha
FOUCAULT E OS DOHINIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 151
derivado dai a serie de discursos que, insistentemente e para alem
dos espacos de ensino tradicionais e supostamente competentes,
como e o caso das atuais restricoes e dicas midia"ticas sobre a lingua
portuguesa, sentenciam normativa e valorativamente as praticas
linguageiras. E, ao pensar a relacao da lingua com o corpo e com o
espa90 urbano, poder-se-ia aventar que, se o controle da primeira
vem pela norma-padrao, o do segundo, vem pelo padrao estetico
dominante, e o do terceiro, vem, dentre outros modos, pelas
barragens e fronteiras da cidade; tres formas de controle eficientes,
porem nao absolutamente hegemonicas: ha, ainda, um "real da
lingua" (MILNER), um "real do corpo" e um "real da cidade"
(ORLANDI, 1999), visto que o "real" e o impossivel (de se dar e de
se abranger na totalidade: talvez, um pouco/um muito de Nietzsche
e Saussure em Lacan), ou, antes, a possibilidade e a propriedade
intrinseca do "um" de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar
discursivamente de sen sentido para derivar para um outro; enfim, toda
manifestacao linguistica, corporal ou citadina esta/£ crivada por
uma serie de pantos de deriva possiveis (PECHEUX, 1997, p. 53),
ainda que haja os cerceamentos dado pelas regularidades da lingua,
pela naturalizacao do corpo e pela elisao do espaco.
Entre o fim e o comedo, o dentro e o fora:controles e resistencias
e reapoes,
E com base em duas maximas freqiientemente reiteradas nas
mais diversas disciplinas situadas no interior do macro-campo das
ciencias humanas, quais sejam, Le corps est le premier et leplus naturel
instrument de I'homme (de Marcel Mauss, em 1934) e E na e pela
linguagem que o homem se constitui como sujeito (de Emile Benveniste,em 1958), que come9O a tra9ar o fim (provis6rio) das reflexoes por
152 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAgEM: DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE
mim aqui delineadas. Tomo-as por subsidio pelo fato de que elas
sinalizam para o investimento do corpo ("o primeiro e o mais natural
instrumento do homem") e da lingua (o sistema semiotico, por
excelencia, no vasto campo da linguagem) na constituicao historica
da propria "humanidade" do homem, de sua subjetividade e de sua
cidadania. Acredito que se possa afirmar, a partir das consideracoes
de Mauss e de Benveniste, atravessadas pelo vies historico-discursivo,
que o corpo e a l ingua sao materialidades simbolicas,
sobredeterminadas por demandas imaginarias, por meio das quais
sao processados modos de subjetivafao proprios da configuracao
especifica de uma sociedade na historia, de modo que a subjetividade
se construa/seja construida com e no corpo, com e na linguagem;
mas, tambem, com e no espago fnunca vazio de sentidos) da cidade.
Tendo em vista a necessidade (nao aprioristica, baseada num
idealismo transcendental, mas, historica, contradit6ria e
descontinua) de uma lingua, de um corpo e de um espago para a
constituicao da subjetividade, e que, orientado pelas referencias
sobre as quais me apoiei, concebi a possibilidade de tracar alguns
esbogos rudimentares que apontam para os controles que
perpassam a lingua, o corpo e a cidade: liames entre dizer(-se),
mostrar(-se) e construir(-se).
Pretendi, por meio de sumaria incursao historica, que
sublinha a ubiquidade midiatica de nossa sociedade de controle,
levantar algumas hipoteses de trabalho e considerar alguns
procedimentos mediante os quais sao engendrados, tanto pelas
representacoes da midia quanto pela organizacao do espago
urbano, modelos de conduta para o comportamento linguageiro,
para a apresentacao corporal e para a ocupacao citadina/o
movimento cidadao. O sujeito (pos)moderno constitui-se, por
um lado, no jogo midia t ico entre a vis ibi l idade radiante/
impetuosa da beleza e a dissimulacao constrangida/recalcada
FOUCAULT E OS POHINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIPADE 153
da feiura, entre a correcao eloquente/exuberante do "bem falar"
e a imperfeicao emudecedora/intimidante do "falar errado"; e,
por outro, na cisao urbana do "dentro" {da protec&o, da
seguranca, da inclusao/deferencia) e do "fora" (da ameaca, do
risco, da excecao/elisao). E, nesse sentido, que creio haver, no
tempo presente, uma certa correspondencia entre o alijamento
do corpo "feio", do dizer "cacofonico" e o contato/conflito urbano,
tornado violencia, por meio do engendramento dos muros, das
grades e dos condominios fechados; contudo, a correspondencia
aqui vislumbrada pode parecer simples demais para dar conta
da generalidade do fenomeno, fdcil demais para exprimir sua
complexidade. Por isso, frente ao surgimento dos fenomenos
contemporaneos, parece-me necessario considerar sua dimensao
historica e sua natureza composita, constituidas tanto por
permanencias parciais quanto por irrupcoes singulares, de modo
a nao conceber os acontecimentos como rupturas
permanentemente ineditas, nem neles vislumbrar a continuidade
inabalada da historia, numafilia pela repetigao e pela teleologia.
Pode-se, entao, contemplar a especificidade dos atuais enlaces
entre o corpo e a lingua, no interior da ubiqiiidade midiitica,
articulados com as injungoes empreendidas pelo espaco
(absolutarnente, projetado/preenchido) urbano na constituicao dos
sentidos e dos sujeitos da cidade, presentificados na const^ncia de
suas acoes sobre o conjunto de acoes possiveis dos sujeitos e dos
sentidos em constituicao. Todavia, nSo se deve desconsiderar os
fundamentos historicos dessa emergencia, a memoria dessa
atualidade; visto que, novamente parafraseando De Certeau, cada
sociedade tern seu corpo, sua lingua e seu espaco, e possivel avancar
dizendo que, no minimo, desde a Antiguidade Classica ja havia
uma certa conivencia entre essas tres dimensoes, uma certa episteme
e um certo diagrama (ambos, no,sentido foucauHiano) que
154 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO. PODER,
organizaria essas tres ordens: na Grecia Antiga, o cidadao grego
orientava-se pelo e para o sophrosyne, ideal de prudencia e
moderacao do corpo, mas tambem da lingua, expunha seu corpo e
seus templos, enquanto o barbaro, era aquele que nao falava grego
e que cobria seu corpo com peles. Em Roma, a distincSo entre
arx, urbs e burgo, que, respectiva e aproximadamente, estao para
0 castelo (no cimo da cidade), a cidade e o suburbio; os dogmas
de Adriano, de Cicero e de Seneca (Meocntas optima est e Omnis
in modo est virtus] incidiam sobre as prat icas corporals e
linguageiras; e Vitriivio estabeleceu a planta de suas construcoes
com base no modelo do homem romano. Na Fran9a, durante a
Idade Media, os muros, fossos e castelos, o corpo sumptuoso da
nobreza e o latim separam e segregam; e, ainda, na Franga,
mas a do seculo XVI, as boas maneiras, que abrangiam desde
os modos de portar-se a mesa att§ aqueles do "bem falar", da
sociedade dos costumes, da civilite. Na sociedade das disciplinas
e do paradigma da expressao, entre os seculos XVI e XIX, a
1 n ten si fi cacao dos con t roles da p rodu t iv idade e da
expressividade, ate as regras de conduta hi-techs (cibern^ticas,
informaticas, digitals, televisivas etc.) dos nossos dias.
Com vistas a finalizar minhas consideracoes, proponho, sempre
numa perspectiva historica, que, diante dos exercicios de poder da
sociedade de controle, seja no que concerne a lingua, ao corpo ou a
cidade, nos orientemos pelo principio da diferenQa e pelo postulado
da liberdade, ambos foucaultianos, de acordo com os quais as
maiores e mais dificeis lutas do tempo presente sao aquelas que
consistem na permanente inquietacao filosofica de saber "Quern
somos nos?", empreendida pioneiramente por Kant; ou, antes, na
recusa do que somos, do que nos fizeram ser ou do que querem que
sejamos: Talvez, o mais evidente dos problemas filosojicos seja a questao
do tempo presente e daquilo que somos neste exato momenta. Talvez, o
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 155
objetivo hoje em dia nao seja descobrir o que somos, mas recusar o que
somos. Temos que imaginar e construir o que poderiamos ser...
(FOUCAULT, 1995, p. 239).
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fQUCAULT E OS DOMJNIOS PA UNGUAGEM: DISCURSQ, PQDER, SUBJETIVIDADE 159
Articula^oes entre poder e discurso em Michel FoucaultFrancisco Paulo da Silva'
Ja nos advertia Foucault sobre os riscos de entrarmos na ordem
do discurso, pela ligacao que ele mantem com o desejo e o poder.
Ordem que afasta o discurso de uma relacao de transparencia entreas palavras e as coisas e o coloca na condicao de acontedmenta, isto e,como emergencia historica determinada pelas praticas discursivas
e pelo conjunto de regras que regem essas praticas. Descrever ofuncionamento discursive exige, a partir desse estudioso, procurardar conta desse algo a mais que faz com que o discurso nao sejaconfundido com um signo ou com jogos de representagoes entre
palavras e coisas, mas determinado (e nisso n&o ha nada de negativo)pelo poder.
Neste texto, esperamos apenas que nossa maneira de dizer
sobre a relacao entre o poder e o discurso na 6tica de Foucaultpossa nos livrar de desajeitamentos de interpretacao, deslizes
teoricos, falseamentos. Nosso trabalho sera rastrear nasconfiguracoes dos escritos foucaultianos o conceito de poder e suaarticulacSo com o conceito de discurso. Por conseguinte, discutir
maneiras de como essa articulacao pode ser trabalhada na analisedo discurso para o enfrentamento nas analises de seu objetivo. Eisnossa tarefa a partir de agora. Alguma apostaP De inicio uma paranos ajudar nesse percurso, nos rastros da epistemologia de Foucault,
nos riscos de nossa empreitada: buscar Foucault na AD nos obrigaa pensar na sua visao sobre o poder e, como desdobramento, narelacSo saber-poder para, no ambito dessa relacao, enxergarmos as39068 sobre/do sujeito. Na esteira dessa formulacao, outro modo de
* Docence da Univei'sidade do E.stado dn Rio Grande do Nortt; - UERN
160 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
faze-la: £ na relacao saber-poder que podemos chegar aos efeitos de
podei; como de age sobre o sujeito, como esse responde a seus efeitos,
como essa relacao se apresenta no discurso.
A tematica do poder em Foucault esta presente nos dois processes
de construcao de sua obra: na arqueologia o poder aparece na discussao
sobre a relagao saber/poder e sobre a verdade cientifica na qual
Foucault se posiciona, afirmando que aquilo que e tornado como
verdadeiro numa epoca esta ligado ao sistema de poder. Ou seja, a
validacao do conhecimento cientlfico e uma questao de poder. O poder
e quern determina os enunciados como verdadeiros on falsos em uma
epoca. Foucault busca na fase arqueologica libertar o saber dessaproblematica. Na fase genealogica a enfase recai sobre as praticas de
poder e seus efeitos na construcao da subjetividade. O poder passa a
ser analisado a partir das suas praticas, das tecnologias de produgSo
de poder desenvolvidas pelas sociedades. Nao mais o poder
circunscrito ao Estado ou aos seus aparelhos, nao mais analisa-lo
na consideracSo das lutas de classes, mas explicar seu funcionamento
comparando-o a uma rede que se estende ao corpo social, produzindo
seus efeitos. O poder nao mais localizavel, mas multidirecional,
espalhado como micro-poderes - graos de poderes na mesa do social.
Nossa leitura de Foucault objetiva uma explicitagao de suas
contribuigoes sobre o poder e algumas rotas que sua visao do poder
pode nos oferecer para enriquecermos nossas analises dos discursos
atuais, sobretudo no novo cenario social, marcado pelo aparecimento
de novas praticas de poder e, consequentemente, pelo surgimento
de novas subjetividades.
Poder e discurso na fase arqueologica
O saber e tema de interesse na fase arqueologica. Foucault
FOUCAULT E OS DOHINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 161
investiga como o saber foi se constituindo e as condigoes de
possibilidade de seu aparecimento. Importava conhecer, no espago
do saber, o gesto que inaugurou o surgimento de determinados
objetos e os tornou pensaveis ao conhecimento. Na explicagao do
metodo arqueo!6gicot o conceito de enunciado como unidade do
discurso e inserido, cabendo ao arque61ogo investigar seu
funcionamento para compreender a formagao discursiva que
possibilitou o aparecimento de certos enunciados e nao outros na
constituigSo do saber de uma epoca.
O conceito de formagao discursiva possibilitou a Foucault
analisar como o saber vai se constituindo a partir das praticas
discursivas, como elas engendram os saberes e como cada formagao
discursiva constroi os objetos de que fala. A tarefa, entao, e descrever
essas formagoes discursivas. A elas chegamos pelos enunciados que
compoem o discurso de uma epoca. O enunciado e concebido comoa unidade do discurso e, sendo assim, tanto um como outro traduz
em sua ocorrencia a nogao de poder.Foucault toma o enunciado como acontecimento discursive e,
desse modo, o arqueologo elege como seu material o discurso e os
objetos que determinados discursos, em cada epoca, podem dispor ou
apresentar, isto e, como um objeto se torna inteligivel e como alguem pode
apropriar-se de certos objetos para falar deles (ARAUJO, 2001, p. 55).
A ideia e a de que os objetos nao pre-existem ao saber, eles existem
como acontecimentos, como aquilo que uma epoca pode dizer devido
a certos arranjos entre o discurso e as condigoes n3o-discursivas.
Tais arranjos determinam as relagoes circunscritas nos discursos
e, por sua vez, as condigoes historicas para que aparega um objeto
de discurso:
As relates discursivas, como .se ve, nao sSo internas ao discurso: naoligam, entre si, os conceitos ou as pahivras; nao estabelecem entre asfrases ou proposicoes uma arquitetura dedutiva ou retfinca. Mas nao
162 FOUCAULT E OS OOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PQDER, SUB3ETIVIDADE
s3o, entretanto, relacoes exteriores ao discurso, que o Hmitariam ouIhe imporiam certas formas ou o forcariam em certas cireunstandas,a enunciar certas coisas. Elas estao, de alguma maneira, no limite do
discurso: oferecem-lhe objetos de que ele pode falar, on antes, {poisessa Lmagem de oferta supoe que os objetos sejam formados de umlado e o discurso do outro), deterrninam o ieixe de relacoes que odiscurso deve efetuar para tala de tais on quais objetos, para poder
aborda-los, nornea-Ios, analisa-los, classiiiuA-los, explica-los, etc. Essasrelates nao caracterizam a Imgua que o discurso utiliza, riSo ascircunstancias em que eles se desenvolve, mas o proprio discursoenquanto pratica. (FOUCAULT, '2000, p. 52-.f).
Foucault tenta libertar o discurso das analises puramente
lingiiisticas ou do jogo logico do falso e do verdadeiro que trata o
discurso como uma proposicSo. O que interessa e trata-lo como
pratica que determina a historicidade dos enunciados. For isso, ao
descrever o enunciado como unidade desse discurso, argumenta
que nao se deve confundi-lo com uma proposicao ou como algo
dotado de uma grama ticalidade. O discurso e um acontecimento e
para analisa-lo e necessario libertar-se das smteses apressadas, das
continuidades homogeneas65. A analise do campo discursivo tem
sua diferenca:
trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade desua situa9ao; de determinar as condicoes de sua existencia, de fixarseiis limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlates comoutros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outrasformas de enunciacao exciui. N3o se busca, sob o que esta manifesto,a conversa semi-silenciosa de uin outro discurso: deve mostrar por
05 As unnlades opressivas a que se ref'ere Foucault dizem respeito as no^oes de iradi^ao,in f luenc i i i , desenvolvimento, evnlu^ao, mentalidade, que pressupoem uma conscienciacoletiva e utn;i causalidade que tecena ccmtinuamente a historia. Ni> lujjar disso, busca-seuma lustona que reconhete a emergenci:i dos iatos, escan<;oes, difereni,'as. trans tor tna^oes.Tal ^ ' l ^ 5 < ) imfilica uma kistoria dmersa datjuela kistoria global com movimento diatitico desupers fao tic contradifdes e final redentor (ARAUJO, 2O01, p. 58).
FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUflGEMi DISCURSQ, PODER. SUB3ETIVIDADE 163
que nao poderia ser outro, como exciui qualquer outro, como ocupa,no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outropoderia ocupar. A questao pertinence a uma tal analise poderia serassim formulada: que singular existencia e esta que vem i tona no quese diz e em nenhuma outra parte? (FOUCAULT, '2000, p. 31-2).
O que se pretende suspendendo as unidades opressivas que
impedem de se enxergar o enunciado como acontecimento e admitir
que ele surge como irrupfdo historica, observar que ele constitui
uma emergencia: um enunciado e sempre um acontecimento que nem a
lingua nem o sentzdo podem esgotar inteiramente. (FOUCAULT, 2000,
p. 32). Mas isolar a instancia do acontecimento enunciativo da
lingua e do pensamento, tal qual faz o arqueologo, e para dar conta
de outros tipos de relacoes: relac.6es entre os enunciados, entre
enunciados ougrupos de enunciados e acontecimento s de uma ordem
inteiramente diferente. Afmal, somente tratando o enunciado como
acontecimento se pode descrever nele e fora dele, jogos de relates
{FOUCAULT, 2000, p. 33).
Mas, como nao e possivel dar conta de todas as relacoes entre
enunciados, Foucault escolheu um dominio em que essas relacoes
sao numerosas, densas e relativamente faceis de descrever: as ciencias
do homem. A questao sera responder o que da unidade a urn
conjunto de enunciados. Para isso, parte da analise do funcionamento
discursivo dos enunciados em tres dommios do conhecimento: a
medicina, a grama tic a e a economia politica, na tentativa de
encontrar um elemento que daria unidade aos enunciados de um
mesmo campo. A analise empreendida mostrou que a unidade entre
os enunciados se funda nao em um dominio de objetos cheio, fechado,
continuo, geograficamente bem recortado, em um tipo defmido e
normativo de enunciagao, na permanencia de uma tematica, mas
em series lacunares e emaranhadas de objetos, jogos de diferencas,
de desvios, de substitutes, de transformacSes, funcoes heterogeneas
164 FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: PISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
para poderem se ligar em uma figura Ulrica, conceitos que diferem
em estrutura e em regras de utilizacSo, que se ignoram ou se
excluem uns ao outros e que n9o podem entrar na unidade de umaarquitetura logica, possibilidades estrategicas diversas que
permitem a ativacao de temas incompativeis, ou ainda, a introdu9iio
de um mesmo tema em conjuntos diferentes (FOUCAULT, 2000,
p.4-2-3). Dai, a descrigao dos enunciados, do que Ihes dao unidaderecair na dispersao que Ihes constituem, como principio que
individualiza um discurso. Dai, a ideia de descrever os sistemas dedispersao que regem os emmciados.
Constatada a heterogeneidade como caracteristica constitutivados enunciados, a questao sera responder o que Ihes da unidade, oque possibilita reuni-los como pertencentes ao mesmo campo, ao
mesmo dominio de objetos, o que, afinal, e responsavel por umaregularidade que os reuniria em meio a suas disperses. Essa questaoencaminha Foucault a formular o conceito deformafdo discursiva:
No case em ([lie se puder descrever, entre um certo numero de
enunciados, semelhante dispersao e no caso em que entre os objetos,os tipos de enundacao, o conceito, as escolhas tematicas, se puderdefinir Lima regularidade (uma ordem, correlates, posicoes efimcionamentos, transformacoes), diremos, por convencao, que setrata de uma forma$ao discursiva. (FOUCAULT, 2000, p. 43)
Cada campo discursive desenvolve maneiras particulars defbrmacSo de seus objetos disperses. O que assegura essa formacaoe um conjunto de relacSes estabelecidas entre instancias deemergencia, de delimitacao e de especiflcacao. Assim, quanto aos
seus objetos uma formacSo discursiva se define:
Se se puder estabelecer um conjunto semelhante; se se puder mostrarcomo qualquer objeto do discurso em questao af encontra sen lugar esua lei de aparecimento; se se puder mostrar que elepode dar origem,
FOUCAULT E OS DOHirilOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 165
simultanea ou sucessivamentc, a objetos que .se excluem sem que elepr6prio tenha que se modificar.(FOUCAULT, 2000, p. 50).
Para analisar a formacao dos saberes, considerando esse
conceito de formacao discursiva, Foucault introduz as regras de
formacao como as condicoes a que estlo submetidos os elementosde uma reparti9ao discursiva, de um campo do saber (objetos,
modalidade de enunciacao, conceitos, escolhas tematicas). As regras
de formacao contribuem para operacionalizar o conceito deformacao discursiva e instituem as condicoes de existencia (mas
tambem de coexist^ncia, de manuten^ao de modificafao e dedesaparecimento) em uma dada repartifao discursiva. O que esta
em jogo no solo do saber, com a introducao do conceito de formacao
discursiva, e libertar-se das unidades de analises instituidas pelaepistemologia e pela historia da ideias (obra, influencias, origem,
autores), para que possa ser estabelecido o solo em que a analise se
detenha nas praticas discursivas. Isso significa realizar umdeslocamento no modus opemndi das ciencias humanas:
O que, ate entao, velava pela segurancadohistonador e o acompanhavaate o crepusculo (o destino da racionalidade e da teologia das ciencias,o longo trabalho contfnuo do pensador atraves do tempo, o despertare o progresso da consciencia, sua perpetua retomada por si mesma, omovimento inacabado, mas ininterrupto das totali/.acoes, o retorno auma origem senipre aberta e, fmalmente, a temiitica historico-transcendetal), tudo isso nao corre o risco de desaparecer, liberando
a analise um espaco bi'anco, indiferente, sem interioridade nempi-ome.ssa? (FOUCAULT, 2000, p. 4fi).
Poderiamos nos perguntar a respeito das consequencias de seanalisar o discurso nak> no jogo de rela9oes de continuidade, origem,
totalizac.ao, mas naquilo que o caracteriza como pratica. Se assimprocedermos, seremos levados a nos deparar corn um conjunto de
166 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA UNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
regras imanentes a uma dada pratica discursiva, regras que a
definem em sua especificidade. Tais praticas, com suas regras
proprias, estabelecem as relacoes necessarias para se falar dos
objetos, para que certos objetos aparesam. Elas tambem
condicionam a delimitacao, analise e especificacSo dos objetos.
For isso, nao se -pode falar de qualquer coisa em qualquer epoca
(FOUCAULT, 2000, p. 51).
Ao estabelecerern as condicSes para que se possa falar de certos
objetos, as praticas discursivas deixam entrever as relacoes que
constituem o discurso. Fazem isso sem recorrencia a uma
interioridade ou a uma exterioridade. As relacoes discursivas sao
defmidas no pr6prio discurso, no seu limite. Isso significa que essas
relacGes permitem que se enxergue o discurso sem que tenhamos
de recorrer a um referente para interpreta-lo, ou a sintese, ou a
funfao unificaiite de um sujeito, mas na descontinuidade que rege
sua dispersSo, na descontinuidade dos pianos de onde fala, isto e,
nas diversas posicoes que pode ocupar ou receber quando entra na
ordem do discurso. As relagoes discursivas apresentam o discurso
naquilo mesmo que o define: a especificidade de uma pratica
discursiva. For tudo isso, a pratica discursiva ainda pode ser definida
por ser um campo de regularidade para diversas posic5es de
subjetividade. Como conseqiiencia desses elementos que
caracterizam a pratica discursiva, Foucault vai juntando elementos
que participam da conceituacSo de discurso:
O discurso, assim concebido, nao £ a manifestacao majestosamentedesenvolvida de um sujeito que pensa, que conhece e que sabe o que
diz: e, ao contrario, um conjunto em que podem ser determinadas adispersao do sujeito e sua descontinuidade em relacao a si mesmo. £um espaco de exterioridade em que se desenvolve uma rede de 1 ugaresdistill tos (...}, nao e nem pelo recurso a um sujeito transcendetal nem
pelo recurso a uma siibjetividade psicologica que se define o regimede suas enunciates. (FOUCAULT, 2000, p. 61-62)
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LJNGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 167
Considerado na esfera das formafoes discursivas, o discurso e
constituldo por um conjunto de seqiiencias de signos que se encontra
no nivel do enunciado e nao por um conjunto de performances
verbais. Nesse sentido, o discurso tem modalidades particulares de
existencia, defmidas pela formacao discursiva, considerada como
sendo o principio de dispersao e de reparti^ao, nao das formulac5es,
das frases ou das proposicoes, mas dos enunciados. Seguindo esse
raciocinio, Foucault precisa o termo discurso como, conjunto de
enunciados que se apdia em um mesmo sistema defortnacao; e assim que se
pode falar do discurso clmico, do discurso economico, do discurso da historia
natural, do discurso psiquidtrico. (FOUCAULT, 2000, p. 124).
A analise do enunciado, como realizada em A Arqueologia do
Saber, mostra-nos que um enunciado pertence a uma formagao
discursiva, assim como uma frase pertence a um texto e uma
proposigao a um conjunto dedutivo. Para Foucault, enquanto as
regularidades de uma frase e de uma proposicHo sao defmidas pelas
leis de uma lingua ou por uma logica, respectivamente, a
regularidade dos enunciados & definida pela pr6pria formagao
discursiva. Essa conclusao permite que ele chegue a uma definipao
plena de discurso:
Chamaremos de discursos um conjunto de enunciados, na medida emque se apoiem na mesma formacao discursiva; ele nao forma umaunidade retorica ou formal indefinidamente repetivel e cujoaparecimento e utilizacao poderiamos assimilar (e explicar, se for ocaso) na hist6ria; £ constituldo de um numero limitado de enunciadospara os quais podemos definir um conjunto de condicoes de existencia.
O discurso, assim entendido, nao e uma forma ideal e intemporal queteria, alem do mais, uma hist6ria; o problerna nao consiste em sabercomo e porque ele pode emergir e tomar corpo, num determinauoponco do tempo; e, de parte a parte, historico - fragmento de historm;unidade e descontinuidade na pr6pria historia, que coloca o problemade sens proprios limites, de sens coi'tes, de suas transformacoes, dosmodos especfficos de sua temporalidade, e nao de .seu surgimeneo
168 FOUCAUIT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE
abmplo em rneio as cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 200O, p.
O vinculo existente entre formacoes discursivas e enunciadoscontribui para mais bem se definir a nocao de pratica discursiva.
Para Foucault, essa nao pode ser confundida com urna opera9aoexpressiva pela qual um individuo formula uma ideia, um desejo,
uma imagern, nem com a atividade racional que pode ser acionadaem um sistema de inferencia, nem com a "competencia" de um sujeito
falante quando constroi frases gramaticais. E, nessa distincao, expoeo conceito de pratica discursiva:
tun conj unto de regras anonimas, hist oricas, sempre determinadas notempo e no espaco, que deiiniriam, em uma dada epoca e para umadeterminada area social, econornica, geografica ou lingiifstica, ascondi^Oes de exercfcio da funsao enunciativa. {FOUCAULT, 2000, p.136).
Se tais praticas limitam o surgimento dos enunciados, e preciseconsiderar, no ambito das formacoes discursivas, o efeito de raridade
dos enunciados. Tal raridade permite entrever que aquilo que edito exclui outros dizeres, que o enunciado tern uma existencia quese mostra na dependencia de uma formagao discursiva. E nessesentido que para Foucault a analise das formaco'es discursivas se
volta para essa raridade, tenta deter minar-lhe o sistema singular e,ao mesmo tempo, da conta do fato de poder existir interpretacao.
Nesse raciocinio, interpretar um enunciado seria uma maneira dereagir a pobreza enunciativa e de compensa-la pela multiplicacaodo sentido. Se assim e, analisar uma fbrmacao discursiva seria pesaro valor dos enunciados. Esse valor nao seria defmido por suaverdade, nao seria avaliado pela presenca de um conteiido secreto,mas caracterizaria o lugar deles, sua capacidade de transformacao
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 169
e de troca, sua possibilidade de transforma9ao, nao apenas daeconomia dos discursos, mas da administragao, em geral dos recursos
raros. Somente desse modo e que o discurso deixaria de representaro que e para atitude exegetica: tesouro inesgotavel de onde se podetirar sempre novas riquezas, e a cada vez imprevisiveis; providencia
que sempre falou antecipadamente e que faz com que se ouca, quandose sabe escutar, oraculos retrospectives. A respeito do discurso, valeconsiderar:
ele aparece como um bem - finito, limitado, desejavel, util - que ternsuas regras de aparecimento e de circulacao; um bem que coloca, povconseguinte, desde sua existencia ( e nao simplesmente em suas"aplicagoes praticas"), a questao do poder; um bem que e, por natureza,o objeto de uma luta e de urna luta polftica. (FOUCAULT, SJOOO, p.139).
A sociedade e a ordem do discurso
A aula inaugural de Foucault no College de France marca ummomento de transicao da fase arqueologica para a fase genealogica.
Se na primeira nao esta explicito o modo como as praticasdiscursivas estao ligadas a outras praticas (nao-discursivas), na
segunda Foucault realiza essas ligacoes. A aula parte da hipotesede que a sociedade dispoe de meios para controlar a producao dosdiscursos, sendo a funcao deles conjurar seus poderes e perigos. Aideia e a de que ha restricoes no ato de falar, que sao tanto internasquanto externas. Ha uma politica de silenciamento daquilo queoferece perigo, que transgride a norma. Nem tudo pode ser dito, e oque ameaca a ordem deve ser proibido. Atuam aqui procedimentosde exclusSo que incidem sobre o objeto como tabu, sobre o ritualda circunstancia, sobre o direito individual ou exclusive do sujeito
170 FOUCAULT E OS POMINIOS DA LTNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
que fala em regiSes como a sexualidade e a politica, por exemplo.
Ha tambem procedimentos de separacao e de rejeicSo que se
estabelecem entre razao e loucura em um certo periodo da historia
ocidental. Tais procedimentos impedem que o discurso dos loucos
possa circular como o dos outros, seja desconsiderado, nao acolhido
como verdadeiro ou visto como sendo dotado de poderes misticos.
A oposicao do verdadeiro e do falso e, tambem, outra manifestacao
da exclusao, uma vez que uma vontade de verdade dita a natureza
cientifica dos discursos. Nessa lista de procedimentos de controle
estao incluidos tambem aqueles elementos que demarcam as
fronteiras dos discursos, impondo regras a sua circulac5o (o
comentario, o autor e as disciplinas).
Essas constatacoes marcam o inicio de uma preocupagao em
mostrar como o poder se exerce e como ele se apresenta na espessura
do discurso. Com esses procedimentos controlando os discursos,
haveremos de conceber que ndo se tern o direito de dizer tudo, que nao
se podefalar de tudo em qualquer circunstancia, que qualquer um, enfim,
nao podefalar de qualquer coisa (FOUCAULT, 1999, p. 9). Para
Foucault, as regiSes onde as proibicoes sao mais visiveis, onde o
poder, portanto, mais atua, compreendem a sexualidade e a politica:
Por mais que o discurso seja aparenteinente bem pouca coisa, asinterdicOes que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligacaocorn o desejo e com o poder. Nisso n3o ha nada de espantoso, vistoque o discurso - como a psicanalise nos mostrou - nao e simplesmenteaquilo que manifesta (ou oculta} o desejo; e visto que - isto a hist6ria
nao cessa de nos ensinar - o discurso nao e simplesmente aquilo quetraduz as lutas ou os sistemas de (FOUCAULT, 1996, p. 10).
Com a aula inaugural, comecamos a conhecer um Foucault
obstinado em desenvolver uma mecanica do poder. De todos esses
procedimentos, a vontade de verdade possibilita que enxerguemos
FOUCAULT E OS DQMINIOS DA LTNGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 171
melhor as incursoes do poder sobre o saber, uma vez que nessa
aula Foucault ainda esta muito preocupado em explicar como o
saber foi se constituindo sob os signos do poder, como esse elege
saberes em detrimento da exclusao de outros. Sobre a vontade de
verdade na otica de Foucault, assim se posiciona Pinho:
Esse termo, utilizado por Nietzsche para denunciar uma atitude de
depreciacao ou enfraquecimento da vida - do que 6 terreno, mundane,transit6rio - assume na aula inaugural dois significados precisos. 1°:o mundo "nao £ ciimplice de nosso conhecimento", ou seja, conhecerrepresenta antes de tudo um ato de violencia em relacSo as coisas. 2":
a verdade, que ate ent5o representava a riqueza do pensamen to, a viade acesso ao universal, o inesgotavel reino da fecundidade, passa a serconcebida como uma "prodigiosa maquina" destinada a excluir.
(PTNHO, 1998, p. 184 -5).
Essa e a tonica que caracteriza a genealogia - a ideia
nietzscheana de que, por tras de todo saber, de todo conhecimento,
o que esta em jogo e a luta pelo poder. Mas se na fase de transicao
ela esta apenas esbogada, sera precise esperar por Vigiar epunir e A
vontade de saber para que uma mecanica do exercicio do poder seja
explicitada. Com a genealogia Foucault passa a analisar o modo
como a pratica discursiva se liga a outras praticas, o modo como o
poder se exerce no discurso.
A genealogia e o exercicio do poder no discurso
Defendendo que o poder politico nao esta ausente do saber,
mas e tramado por ele, a genealogia foucaultiana procurara
investigar como acontece em nossa sociedade uma historia politica
do conhecimento. As obras posteriores a Aula Inaugural seguirSo
uma busca de explicasao para a mecanica do poder, mostrando
172 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LJNGUAGEM: DISCURSO, PODER, 5UBJETIVIDADE
como ele se exerce, como produz seus efeitos, fabricando individuos
doceis, inscrevendo subjetividades. Vigiar e punir marca-se nessa
trama das acoes do poder sobre o saber. Ao investigar a prisao,
Foucault conclui que ela nao devia ser vista somente como lugar
de castigo, mas, desde a sua fundacao, esteve ligada a um projeto
socia] de trans for macao dos individuos. Recorrendo-se ao poder
disciplinar e" possivel explicar o mecanismo de funcionamento do
poder sobre os individuos. Desse modo a disciplina atuante na
instituicSo carceraria, mas nao s6 nela, e considerada uma tecnica
utilizada pelas sociedades modernas para adestrar os individuos e
para torna-los produtivos. Ela incide sobre os corpos dos individuos,
exercendo sobre eles uma coercao, mantendo-os ao nivel da mecanica.
Na leitura de Machado (1979), a disciplina e um instrumento de
poder que trabalha os corpos dos homens, manipula seus elementos,
produz seu comportamento, fabricando um tipo de honiem
necessario ao funcionamento e a manutencao da sociedade
industrial, capitalista. E e assim, quando trabalhado pelo sistema
politico de dominacao, caracteristico do poder disciplinar, que o
corpo se torna forca de trabalho<ici.
Visto desse modo, o individuo e uma producao do poder, ou
seja, o poder, na concepcao foucaultiana, e formador de uma verdade
sobre o sujeito. Assim, o individuo e uma fabricacao do poder e o
elemento que torna possivel um conhecimento sobre ele:
c'° E. importante compreender cjue a genenloj^ia nao se inspire no mocfelo econcimico,como no marxismo, em <[Ue o luncionairiento do poder se da na relacao entre uma mfra-estrutu ni e a.s superestruturas ideologicamente determinadas por nmii clas.se dominants.Assim, a ibrca de trabalho nao passa a Kef vista como Lima rnercadoria explorada por essaclas.se tjiie discern o poder para manter es.sa exploracao. Na concepcao fbucailtSana o podernao se iletine na luta de classes e o Estado nao e tornado como aparellio de reproclucao daexploravao de mna classe solire a outra. Aiinal, em sens estudos, o puder nao e localijisivele nao e um objeto que se po.ssui. Ele e tuj^ar de luta, rela iio de forca. Ele se exerce e sei-li.sptita, C) poder fuiicmna como uma rede tjut se espallia na estrutura social com suasmicro e poderosas acoes, cjue estao em toda parte da estrutura social.
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 173
A ag3o sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulacao docomportamento, a nonnalixacao do prazcr, a interpreta<;ao do discursocom o objetivo de separar , comparar , d i s t r i b u i r , ava l ia r ,hierarquixar, tudo isso taz com (|ue apareca pela primeira vez nahistoria esta figura singular, individualizada - o homem- comoprodi.ic.ao do poder. Mas tambem, e ao mesmo tempo, como objetode saber. Das tecnicas d isc ip l inares , t jue silo tecnicas deindividuali/acao, nasce inn tipo especifico de saber: as cieiicias humanas.{MACHADO, 1979, p. XX).
Mas como a 3930 da disciplina nao atua somente no ambito
das prisoes, estando presente tambem nas instituicoes de ensino,
nos hospitals, nas fiibricas etc., as suas tecnicas (distribuicao espacial,
controle do tempo, aprendizagem progressiva, maximizagao das
habilidades), quando aplicadas aos corpos, possibilitam a
formulacao de saberes sobre o honiem na sociedade moderna. Assim
as afSes do poder na"o sao negativas, mas positivas, pois, como o
proprio Foucault afirma, faz parte das disciplinas nao so produzirem
discursos sobre si pr6prias, mas tambem serem exercidas pela
normalizacao discursiva. E desse modo, por exemplo, que o
surgimento da palavra homossexual no seculo XIX delineia uma
especie e introduz uma ordem, enquadrando os individuos e seus
comportamentos, o que nos leva a perceber que a disciplina atua
tambem na producao linguageira"7. Afmal, as disciplinas tern o sen
discurso £...] As disciplinas veicularao um discurso que sera o da regra,
[...] da norma (FOUCAULT, 1979, p. 189). Do ponto de vista
simbolico, ao eleger uma palavra, a disciplina configura um
mapeamento, saberes e verdades sobre uma especie, por exemplo.
mguag.
esclarecedora.
174 FOUCAULT E OS POMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
As acOes do poder disciplinar tambem atuam sobre os corpos
no ponto em que esses expoem seus desejos - nas regiSes da
sexualidade. Esse £ o tema de A vontade de saber. Foucault considera
que nos seculos XVIII e XIX houve uma grande proliferacao de
discursos sobre o sexo em varies campos do saber, mas essa
insistencia em falar sobre o sexo deve ser vista como estrategia do
poder para controlar os individuos e mapear seus comportamentos. Osexo passou a ser alvo de apao do poder e campo de construct de
verdades sobre os individuos. Se antes se falava de sexo noconfessionario, agora a Psicanalise propicia falar dele nos moldes em
que a sociedade valoriza - no campo cientifico, lugar de producao deverdades valorizadas. O falar sobre sexo funciona como dispositivedisciplinar que propicia conhecer a interioridade dos individuos e
classifica seus comportamentos em "normal" ou "desviante". Assim,
essa profusao discursiva sobre o sexo nao esgota a luta contra arepressao, servindo para enquadrar o comportamento dos sujeitos.
No desenvolvimento de suas reflexOes sobre a relacao saber/poder, Foucault chega a analise de uma "racionalidade estatal" que
pretende nao mais controlar os corpos, mas a vida, a especie, araca. Trata-se do bio-poder cuja atencao se volta para fenomenosde cunho biologico - natalidade, saude publica, habitacao, etc, eque leva o Estado a controlar e regular a vida da populacao. Aqui
e o lugar onde a disciplina alcana seu apice como dispositivo,instalando a sociedade de controle cuja natureza e bio-politica.Essas estrategias politicas que atuam sobre individuos e populacao
produzem discursos, confirmando a tese de Foucault de que nao hasaber que nao se ligue as estrategias do poder. A esse respeito,Pinho pondera que,
a partir da ideia de que os discursos estao associados a urn componente
politico, pode-se concluir que, dentro de uma perspective geneal6gica,
isto £, para alem do.s mecanismos repressivos, o que £ dito envolve
1
FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIPADE 175
relates de forca, eficacias estrategia, taticas poKticas. Fax parte do
oftcio do genealogista a tarefa de revelar o regime politico inerente ao
jogo enunciativo (PINHO, 1.99H, p. 188).
Do funcionamento da disciplina e do controle - do projeto do
Estado a exposicao midiatica
Como ficou dito, o trabalho de Foucault foi o de analisar a
produ9ao do discurso como efeito do poder. Em sua otica, o poder
produz saber, nao havendo saber que nao se constitua nas tramasdo poder. Mas, como afirma em uma de suas entrevistas, se ele
chegou ao poder foi para entender o sujeito. Dito de outro modo,sua preocupacao foi entender as estrategias de subjetivacao do poder,
ja que esse 6 construtor de uma verdade sobre o sujeito e tambem
ordenador de um "perfil ideal" de sujeito que Ihe seja 6til. A ultimafase dos escritos de Foucault e marcada pela compreensao da
subjetividade como producao de modos de existencia e de estilos
de vida. Tudo isso e possivel de ser analisado quando lanfamosum olhar para os efeitos de poder sobre os sujeitos, quando esselanca mao de seus dispositivos e de suas tecnicas de subjetiv^ao.
Analisaremos esses efeitos no processo de Iegisla9ao do Estado
brasileiro e sua divulga9ao na mfdia. Estado e midia seraoanalisados em suas estrategias especificas de fabricacao desubjetividades. Tomamos como texto para analise a reportagem
publicada na revista Superinteressante, edicao 201 de Junho de 2004,intitulada "Armas - o que fazer com elas", que trata do Estatuto doDesarmamento proposto pelo governo como um dos mecanismospara conter a onda de violencia que assola o pais. A reportagem^ _t
pode ser justificada pela necessidade de fornecer aos leitores da
revista esclarecimentos sobre o referido Estatuto, uma vez que ogoverno propOe um plebiscite para '2005, por meio do qual os
176 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
brasileiros deverao decidir sobre os rumos da legislacao que
regulamentara o comercio de armas no Brasil. Da reportagem
selecionamos a seguinte passagem, para depois discutirmos as
estrategias do jogo enunciativo que ela institui:
(...) A nova lei tem alvo muito chtro: banir as armas tie fogo. Ou pelomenus, reduv.ir o numero de armas em circuJacao. Pela sua logica,
quanto menos rev61veres nas maos da populacao, mats chances de ataxa de homicidios cair. Atiialmente, segundo estimativas (poucoconfiSveis) da Polfcia Federal, existem cerca de 20 milhOes de armasespalhadas pafs afora e somente 7 milhfies tem registro. O objetivo do
Estado, poitanto, e tarefa dificil - proibir o que ja e clandestino.Mesmo os mais entusiasmados com a mudanca na legislacao admitem
que nao sera possfvel observar um efeito imediato na violencia. Mas alongo prazo, defendem, o resultado sera sensivel.O Estatuto do Desarmamento ataca em varias frentes. A maioria dasmedidas mira no cidadao comum para acertar nos criminosos. A quemais eausou polemiea jfi esta em vigor e diz respeito ao porte dearmas. Sair por af com um rev61ver, inesmo que ele jamais deixe sen
bolso, virou crime. (...)Mais tres pontos da nova lei merecem destaque. O primeiro e o
aumento das exigencias para se comprar uma anna. Agora, ocomprador precisa ser inaior de 25, possuir ficha limpa na policia,
fazer curso de tiro e passar por teste psico!6gico. (...) A segundamedida e a legalixacao de armas clandestinas. Quern possui uma arma
sem registro e quer entrar na linha para nao virar criminoso tem queprocurar a polk:ia e preencher os mesmos requisitos de quern compra
um revolver novo. O iiltimo ponto e o endiirecimento contra o comercioilegal de armamentos. O contrabando de armas passou a serconsiderado trafico, com pena de ate 12 anos de prisSo.(Superinteressante, edicao 20O1, junho de 2004).
Se olharmos para esse discurso tentando enxergar nele as acoes
do Estado no que tange ao exercicio do poder, este sera flagrado
cumprindo a funcao de administrar o campo social, logo, pondo em
pratica o exercicio do poder disciplinar. Em seu gesto, o Estado
FOUCAULT E OS POHJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO^PODER, SUB3ETIVIDADE 177
opera tentando disciplinar/educar a populacao, por intermedio do
Estatuto do Desarmamento, que opera como dispositivo disciplinar.
Com isso, o que se objetiva e a producao de uma subjetividade com
condicoes de funcionar socialmente no dominio da ordem que se
deseja estabelecer — individuos prontos para conter a violencia,
obedecendo as leis irlstituidas como parte do programa do Governo
em sua politica contra o aumento dos casos de violencia social.
Ademais, na esteira de Foucault, observamos no gesto do Estado
que toda disciplina encerra um projeto de controle que nao tern
outro modo de se circunscrever a nao ser pelo discurso - seu objeto
de produ5ao de saber. Com o Estatuo, perfila-se um sujeito da n&o-
violencia, desafeto ao crime, garantidor da ordem social.
Do ponto de vista da revista Superinteressante a reportagem
objetiva infor mar/educar seus leitores para saberem se portar diante
do plebiscite sobre o desarmamento. A pol£mica sobre se o cidadao
deve ou nao portar arma e introduzida com a demonstracao de
argumentos tanto dos que defendem o porte quanto daqueles que
se colocam contra ele. Essa estrategia procura encobrir a
tendenciosidade da revista e construir um perfil de imparcialidade
diante da infbrmacao. Mas, ao trazer para suas paginas a questao
do desarmamento proposto pelo Governo, expoe o fato em sua
visibilidade. Gomes (2003, p.75) defende que trazer d visibilidade e,
simplesmente, mostrar o mundo do ponto em que ele deve ser visto e esse
ponto, por si mesmojd e disciplinar: a educacao da visdo pela determinagao
do visivel. Para essa autora e desse modo que a midia funciona como
dispositivos disciplinares, pois ao preparar a cena, ela produz um
maquiamento, ainda que metaforico, para que possamos entrar emcena e conviver com o cenario que nos e colocado. A autora acrescenta
que a no9ao de maquiamento como superfluo funciona no sentido
de encobrimento dessa fabricaciao, porque o pensamos comodescartavel, quando ele e absolutamente imprpfirindivelpara a cena,
178 FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUBJETlVIDADg
o cenario e o espetlculo, ja que, como condisao de pertencimento {avisibilidade pertence ao espetaculo e o espetaculo atrela-se a cena),
e ele que nos abre para o mundo como admitido ou admissive!. Omaquiamento precisa, portanto, ser visto em sua face pragmatica:uma estrategia disciplinar. Ainda segundo Gomes:
£ por conta da visibilidade que as mfdias assumem um papel crucial
como disciplina e controle, portanto, como promotoras/mantenedoras
de escalas de valores, como vigilantes. Temos que pensa-las em seu
duplo papel: aquele pelo qua! expoern a todo o momento os conflitos e
tambem aquele pelo qual defendem a esfera de equilfbrio ein que esses
conflitos se diluiriam. Enquanto mostram, as mfdias disciplinam pela
maneira de mostrar, enquanto mostra eJa controla pelo proprio mostrar.
£ em rela£<lo a disciplina que se diz que se nao passou pelas mfdias nao
ha poder de reivindicacao; e em relacSo a controle que se diz que se
nao passou pelas mfdias nSo existem. {GOMES, 2003, p. 77).
Considerando os processos instalados na produ9ao do jogoenunciativo que se instaura por meio da reportagem, haveremosde considerar que o que se objetiva e a regula9ao da vida seja porparte do Estado, seja por parte da midia. Tal regulacao funciona
pela disciplina que tern como condigao o controle. Instaura-se obio-poder de que nos fala Foucault, produzindo saberes sobre avida e regulando-a. O efeito £ a produfao de indivfduos, ousubjetividades que se inscrevam na ordem do poder. Por tais
processos, estabelece-se a verdade e a verdade e sempre uma reta
em direc^o ao poder. Ademais, a disciplina, atuando na producaode sujeitos uteis e obedientes a von tad e do poder, comprova suapositividade, dado que seus efeitos sao produtivos. Como nao haoutro niodo do poder manifestar seus efeitos, e pelo discurso quedevemos enxergar sua atuacao, quando poe em funcionamento suasmicro-formas, seus dispositivos que se mater ia l izam nadiscursividade.
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 179
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FOUCAUUT E OS DOMINIOS DA LJNGUAGEM: PISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 183
A disciplinaridade dos corpos: o sentido em revistaNikon Milanez'
Eu gosto dos que iem/urne e
Morrem de vaniade e, do.i uue
Secam de desejy dos que ardem
Adriana Calcajihoto
A estetica da existencia, como nos e dada a entender por
Foucault (1984), guiara a perspectiva de um estudo engendrado
na estetizacao do sujeito, encarado como forma a ser elaborada,
trabalhada e constituida segundo criterios de estilo, por meio
de tecnologias de saber, de poder e de si. Como nos mostrou o
filosofo, cada um de nos, enquanto sujeito, £ o resultado de uma
fabricacao que se da no interior do espaco delimitado pelos tres
eixos da ontologia do presente: os eixos do ser-saber, do ser-
poder e do ser-si. Sao os dispositivos e suas tecnicas de fabricacao
— dentre as quais a disciplinaridade e um forte exemplo - que
instituem o que chamamos de sujeito. Nesse sentido, cada um
faz nao o que quer, mas aquilo que pode, aquilo que Ihe cabe na
posicSo de sujeito que ele ocupa numa determinada sociedade.
Part indo das propostas de Foucaul t , analiso os tipos de
individualidade e de coletividade permitidas numa epoca e lugar,
que supoem relacoes com tipos particulares de governo e de
autocont ro le , alem de processes de conhecimento e de
autoconhecimento.
O jogo proporcionado entre o dito e o nao-dito dentro de
uma formaca'o discursiva, esse toujours la, marca a subjetivasao
de nossa const i tuicgo enquanto lei tores e homens
* Doutorando em Linguistics e Lingua Portuguesa na UNESP/FCL/Araraquara. SP.
184 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: PISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
contemporaneos. E, entao, possivel destacar tres balizas noprocesso de subjetivacao: a) um ser-saber, determinado pelasduas formas que assumem o visivel e o enunciado num momentomarcado; b) o ser-poder, determinado nas relacoes de forca,variaveis de acordo com a epoca; c) o ser-si, determinado peloprocesso de subjetivacao.
Aplicando esses tres conceitos a investigate do processode leitura, a entendemos como uma atividade controlada, umamidia com instrumentos de controle do discurso, que produz oque Foucault denomina saber assujeitado, isto e:
uma gama de conteiidos histdricos sepultados, uma serie de
saberes desqualificados como saberes conceituais, mascarados
ein sisternatizaffies formais, permitindo a descoberta da clivagem
dessas sistematizagoes funcionais maquiada pela hist6ria, de onde
surgern tambem reviravoltas do saber (FOUCAULT, 2000 a, p.
n).
A leitura e, portanto, ao mesmo tempo, espaco de controlee lugar de possibilidade de criacao de novos sentidos. Emovimento que pode constituir um lugar para a subjetividadedo leitor. E precise acreditar que sempre havera uma brechapela qual poderemos tocar a nos mesmos... um lugar para asubjetividade do leitor, olhando pelo buraco da fechadura? Umintrigante coquetel de inquietude, insatisfacao e controle que nossubjetiva e marca em nossos corpos como ferro em brasa08 (DECERTEAU, 2000) as letras da nossa contemporaneidade.
HB De Certeau (2CXJO), em lnveni;u.o do Cottclia.no, nos falara das leis que regem os corpos eos determmam, deixanclo marca.s como ferro em brasa. irnprimintlo ;i lei do 'outro' nodiscurso.
FOUCAULTJ: OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 185
Midia e Identidade
Na sociedade contemporanea, a midia pode ser entendidacomo um poderoso dispositive de producao de identidades(GREGOLIN, 2004). Aceitando essa a f i rmat iva , venhoinvestigando estruturas e acontecimentos que emergem darevista, tomando-a como suporte de leitura e tendo como efeitoa producao de subjetividades a medida que apresenta estilos deexistencia dfspares.
Entendo esse suporte - a revista -, portanto, como umdispositive de constituicao de identidades, porque ela serve arecria5ao de uma identidade que caracteriza uma experienciada alteridade para os leitores. For meio da rela9ao do leitor comum outro, ele vive a experiencia da contemporaneidade,inscrevendo-se num campo de saberes e codigos preestabelecidosque o atravessam e constituem sua percepcao da "realidade".
Sobe ao palco, entao, a midia, com seus instrumentos decontrole do discurso, tao mais materials quanto a necessidadede arquitetar um corpo em ruinas, a beira da desintegracao,talvez necessaria. A midia parece ocupar lugares, muitas vezes,previamente defmidos, exercendo o saber de seu controle,deixando-nos de maos atadas, olhando-nos na solidao, aindaque ela possibilite vias incomensuraveis e descontinuas notrajeto percorrido pelo sujeito-leitor durante seu caminhar pela
revista.
Historia e Cotidiano
Ao continuar flanando olhos e percepcoes nas pagmas docotidiano esbocado pela revista, tomo distanciamento em relagao
186 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LIMCUAGEHi DISCURSQ, PODER, SUB3ETIVIPADE
a ela, a fim de analisar te6rica e praticamente o contexto ao
qua! ela esta associada, isto e, no encontro de uma atualidade
com uma mem6ria (PfiCHEUX, 1997). Dessa forma, a hist6ria
de um cotidiano pode se mostrar na realizagao de um conjunto
de regras e de normas que se apoiam em instituigoes religiosas,
judiciarias, pedagogicas e medicas, despindo corpos e condutas
ao mostrar as mudan9as nos habitos e nos comportamentos,
por meio dos quais os individuos revestem os sentidos e valores
de seus deveres, prazeres, sentimentos, sensacoes e sonhos.
Na realizacao da experiencia do homem contemporaneo
com o seu corpo, somos Jevados a nos reconhecermos como
sujeitos de uma sexualidade que compreende campos vastos e
diversos, articulando-se num sistema de regras e coercoes. Ao
referir-me a experiencia, remeto a Foucault (1984-), que a toma
como correlacao, numa cultura, entre campos de saber, tipos de
normatividade e formas de subjetividade. Dessa maneira, inclui-se
o homem contemporaneo num campo historico constituido por
tres eixos: o da formacao dos saberes a que se refere, o dos
sistemas de poder que regulam sua pratica e o das formas pelas
quais os individuos podem e devem se reconhecer como sujeitos.
Desse interim, brota, por tanto , uma disciplina com
discursos proprios para a pratica do exercicio do poder, criando
aparelhos de saber, de poderes e de campos diversos do
conhecimento. O discurso disciplinar e alheio ao da lei, pois as
disciplinas abrem caminhos para o curso da regra, defmindo-se
no codigo da normalizagao, atualmente vinculado ao saber
cientifico. Foucault diz:
quero di/.er combinar-se, mas reduzir-se, ou intercambiar-se, ouenfrentar-se perpetuarnente a mecanica da disciplina e o princfpiodo direito. O desenvolvimento da medicina, a medicalizacao geraldo comportamento, das condutas, dos discursos, dos desejos,
FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 187
etc., se dao na t'rente onde vein encontrar-se os dois lencoisheterogeneos da disciplina e da soberania (FOUCAULT,
Entendo que algumas praticas, veiculadas na revista, sao
dispositivos por meio dos quais os individuos sao levados a
prestar atencao a eles proprios, procurando desde sempre se
decifrarem, reconhecendo-se como sujeito de desejo ao estabelecer
de si para si uma relacao que propicia descobrir, no desejo, o
que seria a verdade de seu ser, mesmo que natural ou decaido.
Para isso, e preciso pensar como vivenciamos nossos desejos a
partir de nossos corpos, interrogando as multiplas relacoes,
estrategias e tecnicas que articulam os exercicios dos poderes
que fluem do correr dos olhos quando voltados a revista ou do
movimentar-se dos corpos quando percorrendo espacos pisaveis
pelos pes, que delineiam as formas e modalidades das relagoes
estabelecidas consigo mesmo, constituindo e se reconhecendo
como sujeito nesse flanar pelo rnundo impresso de letras,
utensilios, moveis, muros, pedras. Assim, pode-se entender os
jogos de verdade, jogos entre o verdadeiro e o falso, por meio
dos quais o homem se constitui historicamente na realizacao de
sua experiencia, no tocante a relacao de si para si - um exercicio
de si - como tambem na consti tuicao do sujeito, que se
organizara em torno de uma hermeneutica de si.
Para tanto, tomo como exemplo a revista Tudo, que se
constitui de textos que buscam o estabelecimento de regras,
dando ora opinioes, ora conselhos de um comportamento
conveniente aos modelos presentes. Nessa ordem do discurso,
os textos sao, eles pr6prios, objetos de uma pratica, na medida
em que foram feitos para serem lidos, meditados, tocados com
os olhos, sentidos pelos dedos, postos a prova do tempo para,
no final, constituirem a armadura da .conduta cotidiana. rarece-
188 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEH; DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
me, portanto, que os textos na revista permitem-nos questionar
sobre nossa conduta, velando por ela, formando-a e, tambem,
conformando-se com ela.
O tabu da morte. Morrer para sempre: um leitor-vampiro?
Focalizarei, nesta parte, o encarte veiculado na revista
semanal Tudo, edigao n° 28, do dia 10 de agosto de 2001. A
materia em destaque traz um "especial" sobre rejuvenescimento,
que tratara da insatisfafao na ausencia da inteireza de um eu,
que se busca na sua reformulacao, mesmo que isso custe a apagar-
se nas relacoes de saber e de poder que envolvem o sujeito
foucaultiano.
A reportagem ocupa as paginas centrais da revista e
destaca-se na sua materialidade das demais, porque foi produzida
num papel mais grosso e resistente do que o restante da revista.
Talvez ja se pressupusesse uma niaior manipulacao dessas paginas
ou estejamos mesmo diante de um mecanismo de coercSo sobre o
leitor, deixando transparecer, por meio de uma imposicao na textura
e grossura do material, a necessidade de se vincular aquelas paginas,
inscrevendo-se forcosamente o leitor como sujeito de desejo,
vivenciando seu cotidiano naquele tema que iria ao encontro das
angustias que marcam o medo da inadequacao do homem ao tempo
moderno. Alem disso, a maior durabilidade do material tambem
engendra o sentido de "durar mais", metaforizando tambem a
ideia de como viver mais tempo, compreendendo uma leitura
discursiva, epitetos para uma vida eterna, corporificado na frase-
titulo da reportagem, SEMPRE JOVEM.
O encarte apresenta-se como uma edicao especial, na qual
bo rbu lham sen t idos imedia tos . O adverbio 'sempre',
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 189
determinando o substantive 'jovem', da-nos o torn para comecar.
O estado de ser jovem e apreendido como permanencia, visto a
freqiiencia que a modela, criando um sentido que ultrapassa
uma mera gestao de vida - que poderiamos depreender
simbolicamente dessa experiencia que e a juventude - para nos
acordar (corn um beijo de principe) de uma eternidade imediata,
no sentido baudrillardiano60, cuja visao implica uma resolucSo
encarada de maneira pura e simples a respeito da morte que
toca essa vontade da coletividade, que seria marcadamente
crista. Nesse sentido, as relacoes que possam ecoar como
comentdrio71' na escritura biblica, por meio de uma paixao da
vida e da morte, encapuza nossas cabecas por uma economia
politica de salvacao pessoal. O imediatismo torna-se um
paradoxo para o corpo que se deseja eterno, no entanto, nao
contraditorio, pelo fato mesmo de ser a materializacao do efemero
e, por isso, necessitar de uma mdquina da salvacao, numa protecao
contra a morte, a t i tude que e assumida pela revis ta e
disponibilizada em suas seqiiencias descontinuas. Assim, o que
nos parece falar da vida, nao deixa de falar incessantemente da
morte em acao. Talvez uma heranca sartreana doje suis ce queje
nc. suis pas? Ou seria ainda a retomada de uma morte a la
americana11, o definhar nos hospitals longe dos seus e da vida
cotidiana? De qualquer forma, no desenrolar dos medos e precise
trazer Foucault (SOOOa), dizendo-nos que tabu maior que o sexo
e ainda o da morte, cuja esfera imaginaria, acaba criando uma
mstitmfdo da morte no interior da revista.
Parece que vemos a morte como um interdito, um fluxo
w Of Rauclnllard, A traca simbolicx t- a -morie, 1996.70 Refiro-me ao prticedimento interno de coiitrole do discurso, discutido poi ouc'(2OOOb) em A urdein do discurst!.'' T6|)ico discutido pur Darn ton, em 0 beijo de Lamuureltc ( l f )95) .
190 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: PI5CURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
tao contra-corrente do nosso acelerado e intense modelo de vida,
que deveria ser banida, exilada; porem, nessa impossibilidade
fala-se e exalta-se o seu contraponto, como um vestido novo e
bonito num manequim deteriorado em uma loja decadente. (Um
simulacro?) Tais pressupostos mostram, assim, uma das maiores
inquietacoes do homem moderno, a negacao da morte. Nesse
sentido, parece que nos confrontamos com questoes referentes
simultaneamente ao corpo e a vida, ou seja, falam ao mesmo
tempo do polo do corpo e do polo da populafdo. Ha, portanto, um
apagamento do luto que, segundo De Certeau (2000), e o prefo
a pagar para alcanfar a eternidade em nossa existencm mediante a
rejeifdo da morte, sendo a morte privada de ocupar o seu espa$o
no tempo que a delimita. A necessidade de manter-se sempre
jovem, vincula por meio do seu oposto, que e o eterno, a exaltacao
do efemero, marcando a passagem de nossos corpos na midiapela vida.
Controlar o envelhecimento
Detenhamo-nos na materialidade lingiiistica que funciona
como subtftulo, logo abaixo da imagem que guia o percurso do
nosso olhar que se iniciou com o titulo, sob a atencao-tensao de
um fundo amarelo, jogando-nos para um relaxamento no azul
na piscina da foto, dando-nos ao olhar a frase O QUEENVELHECE, sobre a qual refletiremos.
Depois de discursivamente apresentar o apagamento da
morte no titulo, esbo^a-se um aceno sobre o verdadeiro cerne
da questao. No entanto, a forma com que a revista nos apresenta
essa discussao se da a meia-luz a maneira de Blanche Dubois. O
desejo e de se abolir a morte, numa fantasia de ideal infinito, no
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINCUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 191
qual o envelhecimento e a escassez absoluta do tempo, a vida e
tida como acumulasao e a morte como vencimento a ser evitado.
"O que envelhece" abre-nos as portas para a descricjio de quais
seriam os 'males' que impediriam a vida sem desgaste. Nao
obstante, fica claro e contextual izado porque se deve ( i )
Controlar o envelhecimento, [que] (2) esta em suas maos,
seguindo-se a ordem interna e automatizada de leitura do texto.
Podemos encarar essa afirmacao em dois mementos diferentes.
Partamos do numero (l).Controlar a morte bio!6gica possui um carater objetivo e
pontual, 6 um fate da ciencia moderna e da nossa cultura
(Baudrillard, 1996), mas alicia o sujeito no seu desejo de uma
fonte mftica que parece ser objeto da revista. Em contrapartida,
nossa ideia de morte e regida por um sistema de representacoes
calcado na maquina e no funcionamento; isso faz com que a
morte equivalha a um deficit, que precisa ser pago com os limites
que desprezamos. Isso parece se justificar logo no primeiro
paragrafo do texto da reportagem, no qual se le: (a) envelhecer
ndo signified sofrer perdas sucessivas. (b) Com as descobertas sobre os
verdadeiros mimigos dajuventude e as for mas para o combate-los, e
possivel ter saude, prazer, vitalidade e beleza por muitos e muitos
anos. Num primeiro memento, o texto, por meio de sua afirma^ao
(a), parece negar essa questao biologica relativa ao corpo. No
entanto, num segundo momento, (b), atrela-se a primeira
proposicao como causa da segunda, reenviando-nos ao ponto
do qual partimos, a objetividade e pontual idade da morte
biologica.Assim, o corpo pode ser ativo ou nao, e e em volt a dele que
ronda a morte em todas as esquinas, e ele o ponto precise de um
tempo e de um lugar especifico. Biologicamente, come5amos amorrer no momento em que nascemos. Positivismo de um
192 FOUCAUIT E OS DOMINIOS DA IINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDftpE
pensamento evolucionista, morte e corpo cumprem o papel de
se neutralizarem uma ao outro, uma vez que, dessa maneira,
supoe-se a dualidade corpo-alma, responsavel de certa forma
pela pr6pria morte, objetivando o corpo como residue, um objeto
putrefato para o qual a vinganca sera a morte. Trata-se da
cartesiana e crista questSo que se quer mudar. Mas, de uma
forma ou de outra, e somente no piano do simbolico que podemos
colocar a indeterminacao e o indizivel desse discurso.
Enfrenta-se, portanto, a rejeisao da morte como algo natural.
Falo daquela morte que acontece ao final da vida, num processo
de acumula9ao, em que a ciencia e a tecnica exercem um jogo
estrategicamente quantitative, que, mediante a simplificafao
simbolica da morte, suscita o prolongamento da vida por vias
biomedicas. Na continuacao do texto da revista, da-se ainda
outro exemplo que corrobora essas assercoes: Ficar velho e um
processo natural, sim, mas depende de voce saber aproveitar o que a
ciencia e a medicina estetica proporcionam para chegar Id inteiro.
Colocada, assim, sob a juris diciio da ciencia - aproveitar o
que a ciencia e a medicina estetica proporcionam -, pretende-se
exterminar a morte, fazendo com que ela torne-se inumana,
irracional, como se ainda nao tivesse sido docilizada, adestrada
ao nosso bel prazer. Nesse sentido, a morte natural nao significa
a aceitacao de uma morte que estaria na ordem das coisas e, por
isso, estabelece um contrato social que permeia a sociedade das
ciencias e das tecnicas, parecendo que a sociedade seria aresponsavel pela morte de cada individuo.
Nas nossas maos, o enunciado.
Falavamos, entretanto, do papel da ciencia, mas o discurso
FQUCAULT E OS DOHINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIPADE 193
depreendido tern na sua fonte a revista, que intercarubia os papeiscom a medicina, assumindo para si, numa vulgarizacao daciencia, o que devia ser empreendido pela area medica. A revistajoga para n6s, leitores, o poder e o saber dessa area deconhecimento, colocando-o, pretensamente, em nossas maos.
O texto analisado, dessa maneira, ensina o que prejudica a
manutenc.ao da juventude (quern sao seus inimigos) e a manter-
se vivo - no limite, e isso que se propoe com o mito da eterna
juventude - e" um problema nosso, do leitor, "esta em suas
maos"... Nessa direcao, e claro que o que fica para o leitor e
justamente o impossfvel, fato que o mantem na condicao de
"buscador" de algo que o garanta - movimento que torna o
processo por si s6 infindavel. E, nesse contexto, £ precise destacar
que, no falsete da voz que fala, as armas para esse combate sao
manipuladas pela medicina.Nesse ambito, e precise olhar o discurso medico sob as
condicoes que propiciaram essa serie de signos, uma vez que
essa veia nao 6 um simples traco, mantendo relacao com um
dominio de objetos (perito, clinica, revista, leitor, morte,
eternidade), que nao e o resultado de uma acao ou de uma
opera£ao individual, mas um jogo de posicoes possiveis para
esse sujeito medico, num campo de coexistencia com uma
materialidade repetivel. Nao se intenta, paradoxalmente,
descobrir, por detras de performances linguisticas, um elemento
oculto ou simplesmente escondido, porque esse enunciado nao e
imediatamente visivel, mesmo estando inteiramente claro como
no texto analisado, ainda que fosse dificil de elucida-lo. O
enunciado e, ao inesmo tempo, nao •visivel e nao oculto.O nao oculto provem das proprias modalidades ae
existencia do conjunto de signos que produziram esse discurso
sobre o corpo. £ precise ter claro que a analise enunciativa re e
194 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, POPER, SUB3ETIVIDADE
se somente a coisas ditas, as frases que foram alguma vez
realmente pronunciadas ou escritas, como o texto dessa pagina
da revista no qual nos detemos agora, isto e, elementossignificantes que sao tracados ou articulados. Dessa forma, esse
enunciado torna-se singular e se oferece a uma observacSo, auma leitura, com suas possibilidades de vastissimos usos ou
transformac5es possiveis. Isso faz com que esse tipo de analisesobre a qual me debrugo seja eminentemente historica aoinvestigar de que modo esses enunciados passam a existir, qualseria o significado do fato de sua manifestaciio, quais seus rastrosou mesmo a possivel permanencia para a sua reutilizagao.
Quero dizer que, tomando como base o conceito deenunciado de Foucault, esse discurso oculto sobre a morte nSopode ser considerado como resultado cumulativo ou cristalizadode outros enunciados flutuantes e articulados entre si.
Meus inimigos nao-invisiveis
Numa conversao do olhar, experimenta-se oreconhecimento e a gonsideragSo dos limites e caracteres doenunciado que nao e" oculto, nem visivel. A possibilidade,portanto, dessa quase-invisibilidade do que "ha"', apaga-senaquilo mesmo que pode ser dito, - "ha tal ou tal coisa" -, alemda estrutura significante da linguagem remeter sempre a outracoisa, porque a linguagem £ povoada pelo outro, pelo ausente,pelo distante. E, ent5o, aqui que se insere e que 'ha' umapreocupagao etica, um objeto de preocupaca"o moral a respeitodas atividades e prazeres a ele relacionados, tal vez interdicoesque compreendam transgressoes consideradas um grande erro:o imbecil que quando ao se Ihe mostrar a lua olha para o dedo,
FOUCAULT E OS DOMJNIOS PA LJNGUAGEH: DISCURSQ, PODER, SUBJETIVIDADE 195
certamente, nao problematizaria o que ele e e o mundo no qual
ele vive.Na proposicao Veja quern sao seus grandes inimigos, que
se produziu visando estabelecer coesao com a frase anterior, -
"Controlar o envelhecimento esta em suas maos" - dar-nos-a aconhecer os limites - que em desuso — abalam a estrutura de
nossa maquinaria corporal. Mas por que tais meandros parecem-nos constituir problemas tao agudos?
Um medo, o medo.
O envelhecimento £ colocado como uma doenga, talvez seequiparado aos postulados dos gregos antigos, para os quais "osjovens com uma perda de semen carregam em todos os habitos docorpo a marca da caducidade e da velhice" (FOUCAULT, 1984).Tal postura poderia nos levar para uma via de paralisia,enfraquecendo um principio regenerador e da propria fonte da vida?Estabelecer inimigos contra os quais se deve lutar arremessa-nos auma sociedade nociva, preocupada com a extingao da especie,clamando ironicamente uma voz ecologica e exigindo socorrosurgentes. Repito que a necessidade da medicina, ao usar a revistacomo recurso pedagogico, estaria mesmo falando do esgotamentoprogressive do organismo, que constitui a heranca 'naturalista' e'cientifica' do pensamento medico do seculo XIX, tradicao quecolocava o frazer no campo da morte e do ma I.
A revista incorpora mesclas da medicina e da pedagogia,propondo um esquema de comportamento a partir de um modelode conduta visivelmente valorizado. Didaticamente, o texto coloca-nos quais os fatores que envelhecem e que, por isso, precisam sercontrolados: num momento, isso e jogado para um fator externo,
196 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LJNGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
como aforfa do sol, em outro se refere a causas 'internas' como o
stress e o Vicio' do cigarro, tocando em questoes como auto-controlee auto governabilidade. Engrossando a lista das intemperangas, osedentarismo coloca-nos nas exigencies do homem em movimentoe flexivel, de um corpo que precisa produzir, num mundo que nao
para. Ate mesmo as disfuncoes que 'se formam naturalmente no
organismo', como os radicals livres, precisam ser combatidas. Nofinal, ao completarmos a leitura do texto nesta pagina, podemos
depreender que o corpo se da como um fim para a vida, para a
qual, contraditoriamente, o corpo e o limite (na sua morte).Indubitavel e ainda a marca visivel do dominio que a revista exercesobre o "si", determinando a busca de uma temperanca para que ocorpo nao se extinga, deixando antigos metodos como os que seligavam a pastoral, para hoje em dia colocar-nos face-a-face com as
coacoes vividas pelo sujeito, nada menos que um poder economicoconstitutive e moral.
Nesse percurso, parece-me agora ficar claro a necessidadede atualizacao e de reutilizacao do corpo, no que dira respeito
as suas incursoes em proteses, aplicacoes que rejuvenescem,enfim uma economia mitica revificadora, ou seja, a repugnancia
e renuncia das rnarcas de um corpo envelhecido.
Cria-se, portanto, um perfil-tipo para o uso do corpo, nadamais que uma imagem que sera disseminada, copiada, adaptada,cujo investimento intemperantemente desconhecemos seu ponto dechegada. De qualquer forma, o que precisa ser frisado e que o homemfoi exercitando-se para ser um heroi virtuoso do seu corpo e, sobretudo,
ao colocar-se tal modelo de abste?ifdo~*, nao estd se submetendo a
74 FoLicault (1984) refere-se ao her6i virtuoso como aqucle que e. capaz de se desviar dopraxer, cuja mumi-ia era capaz de dar acesso a uma expenencia ^spiritual da vei'datle e doamor, exclui»do-se a alividadc sexual- figura familiar ao cristianismo. marcando, assim, odomfnio qiie se podia exercer sobre si prop no
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proibi9oes e interdigoes essenciais, mas elabora e estiliza uma
atividade que exercita poder e pratica de Hberdade, relacionando-se, assim, com maneiras especfficas de se tratar a vida num feixe de
experiencias que compreende o corpo e sua extensao no que se referea saude, evidenciando ojogo da vida e da morte. A questao sobre a
qual me lancei e a dessa experiencia cotidiana do corpo que se
converte na rarefa9ao, moderacao, austeridade e conformacao comeste tipo de conduta moral.
A revista e seus bio-corpos
A revista suscita a constituifao de corpos modelares e de
objetos desejaveis, uma verdadeira maquina imperial, sobre a qual
pensamos a maneira e as for9as que produzem tanto a realidade
social quanto as suas subjetividades. Foucault (1998) chamara
esse processo de biopoder, relacoes que envolvem o direito de
vida e de morte quando atrelados aos poderes juridicos das
soberanias, os quais se promulgavam o direito de 'causar a morte'
ou 'deixar viver'. No entanto, esse velho direito foi substituido
por um poder de 'causar a vida' ou 'devolver a morte'. O poder
exercer-se-a, portanto, por meio de procedimentos que
caracterizam tanto a disciplina quanto a mecanica de processes
biologicos, controlando a qualidade e a duragao da vida em nossa
sociedade.
Nesses entornos de transicoes historicas da sociedade
disciplinar para a sociedade de controle passa-se da utilizacao
de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os
costumes para o exercicio de um poder que organiza n3o somente
o cerebro em sisternas de comunica9ao e redes de informa9ao,
mas tambem os corpos em atividades monitoradas para o bem-
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estar. For isso, nessa passagem da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle, urn novo paradigma de poder e reahzado, o
qual e definido pelas tecnologias que reconhecem a sociedade como o
reino do biopoder (HARDT & NEGRI, 2001).
Cria-se, assim, um jogo em que o poder se estende e envolve
a producao e reproduce de vida. A disciplinaridade dos corpos
como meio anatomo-politico do corpo humano desenha-o como
maquina, individual na sua reutilizacao, mas social no que
concerne a sua seriacao, despersonalizando-o, ao tratar de uma
biopolitica da populagao.
Assim, a disciplina transforma em objetos as pessoas
humanas e, tomando de emprestimo a comparagao de Paul Veyne
(1998) ao discorrer sobre a gladiatura, torna-nos vedettes de um
filme porno. Da mesma maneira que a disciplina na lei do gladio
produzia cadavares ambulantes, promovendo a morte ludica
numa recusa de 'eus', colocando em evidencia a gestao da vida,
a disciplina sem sangue a respeito dos corpos na revista parece
se conciliar com esse tipo de producao de vida. Ainda mais que
produc&o de vida, a revista estaria dentro de um paradigma de
reproducao da vida, atitude de (re)constituicao do ser; apesar
das inflexSes discipl inares e das prescricoes as quais se
submetem, ha sujeitos que podem se deslocar livremente dentro
desses limites. Agora nao mais vedettes, mas uma construcao
pop art, no que ela tern de reutilizavel nos deslocamentos que
percorre, apresentando-se ao mesmo tempo como representacSo
e singularizacao de uma realidade particular na qual, nos,
sujeitos, movimentamos nossos corpos e contornos coloridos ou
em branco e preto seja na impressao em tintas de uma pagina,
seja no ir e vir cotidiano do passear pelas horas nos nossos dias
ilimitados (MILANEZ, 2001) e minimos.
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 199
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FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM! DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDflDE 201
Weblogs: a exposi^ao de subjetividades adolescentesMaria Regina Momesso de Oliveira*
Os "ciberdiarios", paginas pessoais, weblogs, ou, simplesmente,
blogs, como sao conhecidos, constituem-se em uma ferramenta digital
que propicia um espac.o na Internet para que seus usuarios autilizem como uma forma de expressao aberta, de tematica livre e
de atualizacao frequente. Tornaram-se um espa£O garantido deexpressao publica, servindo de album de fotografia, agenda virtual,
exposiclo de ideias, fa-clube, jornal on-line, diario pessoal, cadernode divulgacao de services, de pesquisa, de artigos etc.
O termo weblog & derivado da uniSo das palavras inglesas
web (rede, teia, tecido, palavra tambem utilizada para designar o
ambiente da Internet) e log (diario de bordo). Sen formato esemelhante a uma webpage, com a diferenca da agilidade e da
facilidade de registrar e atualizar informacoes. NSo e necessario terconhecimento de programa9ao em HTML, uma vez que existem
sites que disponibilizam o service — muitos deles gratuitos — cominstru^oes faceis sobre a criacao e a alimenta9ao dos programas.
Esse recurso tecnologico tornou-se bem conhecido entre
adolescentes, que o utilizam para publicar paginas pessoais, comoos tradicionais diarios. As tematicas sSo as mais variadas, mas quasetodas versam sobre o cotidiano dos adolescentes. Sao auto-narrativase auto-tematizac,oes sobre os amores, as musicas preferidas, osesportes, as frustragoes do dia-a-dia, as diividas internas e esternas
do "eu", as crises, exposigao pessoal em busca de reconhecimento,enfim sentimentos, sensa9oes e modos de pensar, que sao registrados
sob a forma de relates do cotidiano.
* Professoi-a d:i Univer.siJade Sagrado Cora^ao (USC) e do Colegin Tt-cniL-o Industrial(UNESP) de Buuru, SP.
202 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM! DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDflpE
Alem do texto escrito, o 6/og-permite a insercao de links, fotos,
ilustracoes e sons. O "ciberdiario" constitui um espaco em que se
entrela^am varias linguagens. Esse sincretismo do discurso e uraade suas principals caracteristicas, ou seja, um campo de
interdiscursividades e de intertextualidades em todos os sentidos.
As opinioes sobre a utilizapao desse tipo de recurso sao
divergentes entre estudiosos e especialistas de areas como aEducacao, a Psicologia, a Lingiiistica, entre outras. Muitos acreditam
que a liberdade de publica9ao de informacoes em um diario virtual
pode ser perigosa, pelo simples fato de o "blogueiro" registrar o
que quiser, mesmo que nao seja a "verdade". Dessa forma, o individuopoderia criar um mundo a parte, e realidade e fantasia poderiamconfundir-se, deixando-o na ilusao de estar inserido dentro da
sociedade, ou melhor, de um grupo social.No entanto, ha pessoas que pensam diferente, entendem o
diario virtual como uma forma de terapia individual ou grupal,
um instrumento em que o individuo descarregaria pela escrita tudoque o incomodasse ou que sentisse necessidade de dividir com outras
pessoas. Alem disso, o blog poderia ser usado como instrumento devazao a individualidade das pessoas, pois permite a exposicao de
ideias e sentimentos, sem se importar com a privacidade. Esserecurso ainda poderia servir como meio de divulgaca"o e de
autopromo9ao do usuario, ou mesmo para a aprova9ao dos modosde ser do individuo que quer usar o recurso como forma de inclusaonuma sociedade globalizada.
O foco de nossa reflexao est£ nos adolescentes, faixa-etariaentre 14 e 21 anos, pois esse publico £ relevante na "blogosfera".Segundo os numeros divulgados em outubro passado pela PerseusDevelopment Corp., uma empresa que cria softwares para pesquisason-line, a estimativa e a de que havera 10 milhoes de blogs no mundoate o final de 20O4, e a grande maioria dos seus autores sao
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIPADE
adolescentes ejovens adiutos.73
A adolescencia, segundo Erikson (1972), e fase da chamada
crise de identidade, marcada por transforma9oes fisiologicas; uma
confusao que desencadeara um processo de identificacoes com
pessoas, grupos e ideologias que se tornarao uma especie de
identidade provis6ria ou coletiva, ate que a crise em questao seja
resolvida e uma identidade autonoma seja construida. Para tal
construcSo, o adolescente parte em busca de processes deidentificacao, para encontrar outros "iguais" e formar sen grupo.Nessa busca, a necessidade de dividir angustias e padronizar suas
atitudes e ideias faz do grupo um lugar privilegiado, pois nele hauma uniformidade de cornportamentos, pensamentos e habitos, que
definimos como o espirito gregario da adolescencia.
Partimos, entao, da premissa de que os blogs sao utilizados
para essa busca de construcao de identidade e, conseqiientemente,funcionam como uma "tecnica de si" para os adolescentes blogueiros.
Por meio da escrita sobre si mesmos, esses adolescentes procuramencontrar seu pares e compreender o que s&o. Nesse sentido, seus relates
e a leitura dos comentarios epost(s) de outros podem iniciar a elabora9aode um saber sobre sua intimidade, sobre outras pessoas e sobre suas
realidades. A constru9ao desse "conhece-te a ti mesmo" constitui-se em"jogos da verdade", que sao colocados como tecnicas especificas que
o homem utiliza para se compreender melhor. Os discursos produzidos,marcados na subjetividade, trazem a tona conteudos que, nem sempre,sao objeto do dialogo entre os jovens, portanto iniciam ou sugerem
descobertas de si ou da alteridade, constituindo aquilo que Foucault
entende como mnc5es das "tecnicas de si":
" NUSSBAUM, Emily. Meu estimado blog. Disponfvel em: <http : / /u l t i t n o s e g u n d o . i g . c o i n . b r / i i i a t e r i a 3 / n y t i m e s / 1 4 T 9 0 0 1 - 1 4 7 9 5 0 0 / 1 4 7 9 2 0 9 /
147!)209_I.xml>. Acesso em: 30 mar. UOCM-. Este blog 6 responsavel por trazer mat^rias
do inrna l The New Turk Times.
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as tecnicas de si permitem ao.s individuos efetuareni, sozinhos OLI com
a ajuda de outros, urn certo niimero de operates sobre sens corpos
e suas almas, sens pensamentos, suas condutas, .sens niodos de ser; de
transformarem-se a fim de atender a um certo estado de f elicidade, depureza, de sabedoria, de perfeicao OLI de imortalidade (FOUCAULT,p. 7K3-813).
Esse conceito foucaultiano corrobora a opiniao de alguns dosadolescentes que participaram de nossa pesquisa exploratoria sobre
blags'*. Os objetivos de fazer determinadas a^oes para atingir
estados de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeic.ao ou deimortalidade sao ressaltados na maioria das respostas. Quando
dizem nao gostar de ter blogs, afirmam preferir entrar e navegarpelos blogsde colegas, idolos etc., mas todos com a mesma fmalidade:
buscar tais estados, como se pode observar nos excertos abaixo:
En tenho bJog porque gosto de escrever o que penso. Muitas vezes,nao digo oralmente o que escrevo e ate por isso escrevo, pois talvexalguem leia e talve/. nao; e se nao, muitas vexes n3o importa, pois tirei
algo que e.stava engasgado na minha garganta.
£..] eles {o.s blogs e fotologs) me fazem ficar mais fell?., eonhecida,alem de ser niuito divertido.
Eu nao tenho blog, mas visito alguns tjue acho interessantes, como ode amigos, musicas ou poemas. Escrever sobre o que eu f iz , o que
penso e quern conheco para pe.s.soas do mundo inteiro nao me anima.As pessoas mais chegadas a mini, metis amigos, ja sabem oque fix; e oque estou fazendo, nao precisam acessar um site para saber sobremini.
' A en<|Liete foi reatizada n;i iiltima seni;in;i de juiilm/'JOO't, em quatro s j i l i i s de au la(media de -10 aEunos por cla.s.fe) de alutio.s do seyunclo ano do Ensmo Medio, faixa-^tariaentre 16' e '20 ano.s. As perguntas tram: Quni .sna opiniau sobre Blogs P Cite a.s i]iie voceinaiN go.sta e por i|iie.
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, POOER, SUBJETIVIDADE 205
Eu, em pai'ticiilar, nao tenho blog, mas gosto muito de visitor os dasminhas amigas, comentar as charges, os poemas, e um passatcttipo
muito divertido e intevessante. O motive de nao ter um btog e porque
nao tenho Internet.
Ao observarmos os discursos dos adolescentes, e notoria a
necessidade de interaipao e de contato, que € a maxima do mundoglobalizado e da sociedade pos-moderna. Afinal, conforme a posi^ao
discursiva assumida pelos "blogueiros", aqueles que nao estao"plugados" e ligados na Internet sao os excluidos do mundo digital
globalizado e considerados pela maioria como "desatualizados",ficando, assim, a margem da tao falada sociedade do conhecimento
e da informacao.Nessa sociedade da informagao, do conhecimento, do
capitalismo e do consumismo, s3o estabelecidas certas ordensdiscursivas, cada qual com suas especiflcidades entre os grupos, as
quais asseguram a exposicao de si, em forma de marketing pessoalpara que o sujeito se torne celebridade, destaque entre sens pares, o
que evidencia uma especie de venda da representacao de si mesmo.Podemos citar varios exemplos de incentive dessa pratica, entre
elas a que mais se destaca sSo os reality shows na TV e os webcams
na Internet.Os reality shozvs sao uma especie de receituario do que fazer
para ser moderno, atual, desencaiiado, comunicativo e vencedor.
Mostram praticas de persuasao e de manipulac.ao, ou seja, usam da
retorica publicitaria, em que o "eu" deixa de ser singular e passa aser uma representacao de praticas discursivas vigentes. Os blogsaparentemente reforcam o discurso da importancia da aparencia
para a conquista do poder e do saber.Nas falas citadas acima, percebe-se claramente nas auto-
narrativizagoes que o zvebblog funciona como uma tecnica de si, em
206 FOUCAULT E OS DOMJNIOS PA LJNGUflGEH: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
que alguns dos adolescentes buscam elementos de identificasaoatraves de conteudos, valores e discursos que perpassam pelo mundo
digital da Internet. Mesmo aqueles que nao tern ou nao querem terum blog sentem necessidade de ver, ler os blogs de outros para julgar
e, ate" mesmo, administrar seus proprios conflitos, a partir da
interacao digital da escrita de si ou da leitura do "eu" de outros.
Essa construcao da identidade realiza-se num espaco queproporciona o surgimento de varias possibilidades de subjetivaclo.
Evidencia a problema'tica da pos-modernidade em relacao a questao:
a crise de identidade. O mundo globalizado, por meio das novastecnologias, oferece o saber e o poder e, ao mesmo tempo, as tecnicas
persuasivas para consegui-los. Num local em que varias culturas evalores coexistem, acaba por mistura-los, e a distincao dasingularidade de cada um acaba por se confundir, gerando a cultura
homogeneizadora e, conseqiientemente, uma serie de conflitos quese revelam numa luta identitaria constante em busca do "eu"singular.
Emergem identidades culturais nao fixas por toda parte, que
procuram seus recursos em culturas diversas, em diferentes tradicOesculturais; ou seja, a multiplicidade, a transicao e o mundo de Alicesao as grandes metaforas de nosso tempo, como afirma Hall:
£..r| a globaliza^ao tern, sim, o efeito de contestar e deslocar as
identidade-S centradas e 'fechada.s' de Lima cultura national. Ela tern
um efeito plurali/,ante sobre as identidades, produzindo uma variedade
de possibilidades e novas posifOes de identificagao, e toroando as
identidades mai.s posirionais, mais polfticas, mais plurai.s e diversas;
menos fixas, unificadas ou trans-histfiricas (HALL, 2002, p. 87).
O ambiente da Internet £ o espaco dessas multiplas culturas,desses multiples "eus", que se entrecruzam e redimensionam aquestao do que e ser pos-moderno. O sujeito multiplica-se, e sempre
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA UNGUAGEMi DISCURSO, PODER, 5UB3ETIVIDADE 207
um duplo ou multiple e, ao mesmo tempo, descentrado, nSo tendo
mais certeza de sua singularidade. Isso tudo provoca efeitos sobreas identidades, tornando-as pluralizantes e quase sempre confusas.
Hall (2002) discute a questao da identidade em duas
dimensdes: uma dirigida pelo conceito de homogeneidade, em que
a globalizacao incumbe-se de torna-la uma mistura equilibrada, e
outra norteada por grupos de resistencia, nos quais certos elementostradicionais resistem. A discussao de Hall em parte dialoga com avisSo defendida pela psicanalise e adotada pela Analise do Discurso
de linha francesa, a qual concebe o sujeito como um ser heterogeneo,
cindido, atravessado pelo inconsciente, habitado por desejosrecalcados que irrompem via simbolico, pela linguagem onirica ou
verbal.Dessa forma, podemos pensar que o sujeito, ao buscar sua
singularidade, sua essencia, depara-se com lacunas, desvios, ou seja,com a incompletude do ser. Isso tudo provoca a busca de sua voz
singular e das vozes de outros, de sua presenca e da presenca deoutros, um processo constante de idas e de voltas para encontrar a
completude, a unicidade. O ser p6s-moderno tern essa incompletuderessaltada, colocada a mostra nos diversos meios de comunicacao,
e, com as novas tecnologias, ha um deslocamento do intimo e doprivado para o publico. Nesse processo, muitas vezes, o sujeito seve inebriado, assustado por perceber que a busca nunca termina e,a cada lacuna fechada, outras maiores se abrem e outras duvidasemergem, fazendo-o nao parar de buscar a singularidade de seu
ser.Quanto ao que e ser pos-moderno, Harvey afirma:
Eis, por exemplo, a describe de Berman (1982): Ha uma modalidade
de experiencia vital - experiencia do e.spa^o e do tempo, do eu e uos
outros, das possibilidades e perigos da vida - que e partilUada poihomens e mulheres em todo o mundo atual. Denominarei esse corpo
208 FOUCAULT E OS OOMINIOS_pA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
de cxperiencia "modernidade". [...] Sermoderno e encontrar-se num
ambiente <]ue promete aventura, poder, alegria, cresdmento,
trail sfbrmacao de .si e do mundo - e, ao mesmo tempo, que amea<;a
destruir tudo o que temo,s, tudo o ([Lie sabemos, tudo o que somos. Os
ambientes e experiences modemo.s cruzam codas as fronteiras da
geograila e da etnicidade, da classee da nacionalidade, da religtaoe da
ideologic, nes.se sentitlo, pode-se dixer que a modernidade une toda a
humanidade. Mas trata-sede uma unidade paradoxal, utna unidade da
desunidade; ela nos arroja num redemoinho de perpetua desintegracao
e renovagSo, de luta e contradigao, de ambigiiidade e angustia. Ser
moderno e ser parte de nm universo em que, como disse Mara, "tudo
quee soHdo desmancha no ar" (HARVEY, 1992, p. 21).
Na visao de Maffesoli (1984), a sociedade pos-modernaenfatiza o presente, a dimensao caotica e politeista desse presente.A partir dessa ideia, o autor desenvolve o conceito de socialidade
pos-moderna cujas caracteristicas sao o presenteismo, o politeismoe o fato de nao ser fixa nem contratual, no sentido de engajamentospoliticos ou pertencimentos a classes sociais defmidas e estanques.Ao contrario, ela e efemera, imediata e empatica. Corno exemplo de
socialidade ele cita os agrupamentos urbanos, festas e rituais, moda,comunidades virtuais etc.
Diante disso, o autor concebe a sociedade pos-moderna naomais como unidade fechada, acabada, objetiva e instrumental, mas
sim uma unidade holistica processual cujos diversos elementos agemem sinergia dentro de uma mesma forma. Para o autor, a
contemporaneidade e marcada por um imaginario dionisiaco(sensual , tribal), em que situacoes ludicas, comunitarias e
imaginarias da vida social sao simuladas e potencializadas porintermedio das tecnologias.
O bhg serve como lugar em que o sujeito, pela escrita de si,procura inserir-se nessa representa^ao da pos-modernidade. AInternet e seus recursos proporcionam a sensagao de aventura,
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUA6EH: DISCUHSO, PODER, SUBJETIVtDADE 209
poder, alegria, crescimento, transformagao de si e do mundo e, ao
mesmo tempo, dao unidade e dispersao, provocando um turbilhao
de desintegracao e renovac.ao, de luta e contradi^ao, de ambigtiidade
e angiistia, sob a aparencia de uma unidade holistica e processual.
Precisamos considerar, porem, que as caracteristicas dessa
tecnologia, que se pauta pelo presenteismo, imediatisrno, efemeridade,
fragmentacao, diversidade, ambigiiidade e virtualidade,proporcionam tambem o espac.o para a atua9ao de um sujeito-ator
que, se quiser representar-se como um outro que nao ele mesmo,podera faze-lo, sem que ninguem possa descobrir realmente se o
'eu' que fala e o 'eu' da vida real. A unica certeza e que ali reside um'eu' virtual e pontencializado, uma possibilidade de vir a ser o 'eu'
real. Temos a simulacao de realidades, de situacoes, de atuacSes, de
online selves (eus digitals) diversos que perpassam a rede em busca
de integracao, de interagao, de descoberta de si e do outro, e assimse constroem identidades multiplas, diversas e virtualizadas.
Um exemplo dessa possibilidade e a autonarrativiza9ao
de um adolescente assumindo-se como homossexual e a reacaode seu primo, situa9oes encontradas no blog http://
genteeunaosounormal.blogger.com.br/:
Tenho que oontar ((Lie coritei para o men primo que sou gay e ele disse
"Tranquilo!" tiquei milito felix. Ele me perguntou um monte de coisas
como se estava namorando (infelimierue nao), se ja beijei homens na
boca (muitas ve^e.s, gramas a Deus), se ja transei, quern sabe da minha
familia e disse que n3o tern mais preconceito quanto aritigamente. Fen
tudo normal. Esse fim de semana, fui pra casa dele e foi cranqiiilo
tambem, apesar de ele nem conversar sobre o assunto.
O proprio titulo do blog revela o discurso conflituoso de um
"eu" que procura encontrar-se, conhecer-se e cuidar de si, ao mesmotempo em que expSe a simulacao de uma situac.ao que pode ter
210 FOUCAULT E OS POHJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDApE
sido real, verdadeira ou imaginaria, para colocar em exposicao as
diividas, as opinioes de um 'eu potencializado. Se olharmos alernda aparencia, esse eu esta cindido, dividido entre o que e como
individuo, o que gostaria de ser e o que a sociedade (representadapela familia/primo} privilegia e aceita.
Levando em considerafao as ideias foucaultianas a respeito
da escrita de si, podemos afirmar que o weblog e um tipo de
hypomnemata dos tempos pos-modernos, ou seja, um procedimentoda narrativa de si na cotidianidade da vida, com uma meticulosa
atencao aquilo que se passa no corpo e na alma. £ o recolhimento
das coisas lidas, ouvidas e vividas, um suporte de exercicios depensamento e de representagao de um ator apresentando seus onlineselves. A constituifao de si proprio como sujeito se faz por meio de
acSo racional por apropriacao, por unificacao e por subjetiva9ao deum ja-dito' fragmentario. Entretanto, ha apenas a escolha de algunsdesses fragmentos, ao colocar para fora de sua alma os movimentos
mais ocultos, de maneira a poder libertar-se deles. O sujeito-atorsente-se a vontade em colocar seus sentimentos a mostra, pois pode
assumir-se na realidade das coisas ou apenas fingir ser, criar uma
representacao de um 'eu' ficticio, virtual, que se esconde atras doseu "eu' real.
A escrita de si no blog difere da pratica dos gregos e dos
romanos no sentido de que podemos considera-la uma carta-diariosobre o si, mas nao uma carta-diario de um discipulo enderecadaao mestre, como faziam os gregos, ou ao sacerdote, como faziam os
cristaos. No primeiro caso, era um exercicio ligado a memorizacSoe, simultaneamente, a constituicao de um "inspetor de si mesmo",para avaliar suas faltas mais comuns e reativar as regras decomportamento que era precise ter presentes no espirito. Talreavalia9ao era administrada em uma relacao semi-aberta: umcolocar-se a si mesmo sob o olhar de outro (o mestre, capaz de
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETlVIDADE 211
orienta-Io). Temos, entao, uma relacao de administrate racional
dos conflitos do "eu". Ja o sacerdote servia nao como administrador,mas como julgador: aquele com poder de dar a penitencia e o alivio
das faltas e, consequentemente, o alivio da culpa. Nesse caso, tratava-se da confissao pautada pelos dogmas da instituicao religiosa aque pertencia.
O blogcomo carta-diario e aberto; nao existe a figura do mestreou do sacerdote, mas a leitura e a opiniao ou julgamento de muitos,que podem ser conhecidos {pertencerem a mesma comunidade
virtual) ou desconhecidos, dai a multiplicidade. Ha a livre expressSo,
que proporciona o retorno de opiniSes e de comentarios tantodaquele que fazia o papel de mestre quanto daquele que julgava asa56es como sacerdote e ate de outras figuras, como a de alguem que
escreve para ironizar, satirizar, sem se preocupar com o outro, ouate mesmo de pessoas mal intencionadas, que podem subverter aordem e persuadir o sujeito ali exposto com opinioes fora do
contexto.Temos aspectos positives e negatives quanto a manipulacao
da palavra nos posts. Os positives sao aqueles que proporcionam aintegracao, a democratizacao do discurso, a liberdade de expressao
e de opinioes. Os negatives estao no fato de ser um mundo virtual,
potencializado e nao um mundo real. Muitas vezes, o adolescente
pode nao estar preparado para observar a manipulacSo da palavra,ou enredar-se numa ilusao de realidade e ser influenciado porcriminosos, ped6filos, guerrilheiros e traflcantes, entre outras
possibilidades.O "blogueiro" da cita^ao acima coloca-se diante de 'outros na
Internet e mostra sua angustia interior. Essa angustia j.'l forarevelada ao primo (de certa forma apreseiitado como seu julgador),
que reage com a expressao: Tranqiiilo! O discurso do prime otranqiiiliza. Essa sensacao parece se complementar com a escrita
212 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
de si, por meio da qual ele pode dizer que encontrou um estado de
felicidade. Entretanto, o primo representa apenas uma parte do
problema. E a sociedade e os amigos, corno reagirSo? O que
pensarao? Novamente o blog serve para que o sujeito se apresente a
uma multiplicidade de 'outros' conhecidos e desconhecidos. Depois,
e so aguardar os posts, para, ao mesmo tempo, entender-se e
compreender como esses "outros" o veem se sera aprovado ou naocomo um gay.
Toda essa escrita de si revel a nao so o conflito do "eu" consigo
mesmo, mas dele em relacao ao mundo, a sociedade. A busca de suaidentidade, on de suas identidades, esta sendo construida na relagaode um "eu" com uma multiplicidade de "outros". Esses "outros"podem pertencer a culturas hibridas, podern ter varias hist6rias
interseccionadas, pertencer a uma e, ao mesmo tempo, a varias
culturas. Qual a conseqiiencia dessa construcao de identidade quese ancora num espago multiple, transitorio, nao-fixo e suspenso?Quais os impactos da constituic.ao desses on-line selves sobre os
nossos off-line selves? As respostas sao complexas e merecem serpesquisadas.
O que podemos perceber e que ha Lima grande inconstancia edescontinuidade nos discursos manifestos na "blogosfera". Ha umagrande oscilacao entre valoracoes positivas e negativas, e nao ha
uma coordena9ao nessa construcao de identidade como havia como mestre ou o sacerdote. Nao esta bem defmido quern sao os outros,pois sao uma multiplicidade, podem ser reais ou virtuais,
verdadeiros ou apenas verossimeis e, entao, se intensifica a metafora
de Alice. Parece que estamos sendo levados pela mao de Alice paraum mundo fantastico e desconhecido, que pode conter o incontido,que pode ser o explicavel e o inexplicavel, o novo e o velho, a repetigSo
e a diferenc.a.Quern sou eu? Onde estou? Para onde vou? Sao questoes que
FOUCAULT E OS DO MI NIPS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 213
permanecerSo para serem refletidas por muito tempo. Por enquanto,
o que temos e a construcao de identidades hibridas que oscilamentre tradifdo e tradu$ao, como afirma Hall:
Naquilo que diz respeito as identidades, essa o.scilaea'o entre Tradi^itoe Tradugao esta se tornando mais evidente num quadra global. Em
toda parte, estilo ernergindo identidades culturais que nao silo fixas,
mas que estao suspensas, em tmnslfdo, entre diferentes posicoes; queretiram sens recursos, ao mesrao tempo, de diferentes tradicGesculturais; e que sao o produto desses complicados cruzamentos e
misturas culturais que sSo cada vez mais comuns num mundo
globalizado (HALL, -2002).
Parafraseamos Foucault, ao afirmar que nunca podemos chegar
a uma conclusao exata das coisas, mas que sempre as retomamos,pois a cada retomada elas nos surgem de forma diferente e comoutras percepc.5es que antes nao notamos. Mas ate" o momento, oque sabemos e que as novas tecnologias, como o weblog, evoluiram
de tecnicas ja existentes, como o caderno de notas ou registros
publicos. Os hypomnematas constituiam o si como objeto da acaoracional pela apropria^ao, unificagilo e subjetiva^ao de um ja-dito
fragmentario e escolhido {FOUCAULT, 2004, p. 162).A sociedade pos-moderna apresenta-nos novas tecnicas e
tecnologias, mas o discurso conflituoso sobre o si e sua identidadepermanece: a busca por um "eu" singular, ou a explicapao para amultiplicidade de 'ens' em cada ser tambem continua, assim comoocorreu com Fernando Pessoa e Mario de Andrade, que utilizarama poesia para escrita de si e da multiplicidade de seus 'eus'. Hoje,temos os blogueiros - pessoas comuns, poetas, jornalistas entreoutros - que usam das novas tecnologias para evidenciar, ressaltarseus online selves e, ao mesmo tempo, mostrar as caracten'sticas de
seu tempo, pois, ao contrario dos gregos e dos romanos, usam as
214 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADg
tecnicas de si nao so para narrar sobre si e entender-se, mas tambem
para entrar num 'jogo', por vezes perigoso, em que o importante e
a aparencia. Estar em evidencia e mostrar-se nao importa como,
nem a quern, basta que sua subjetividade esteja exposta.
Referencias bibliograficasERIKSON, E. H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro:
Zahar. 1972.
FOUCAULT, M. Dits et Merits. Paris: Gallimard, 199*, p.
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. O que e um autor? Tradu^ac de Antonio Fernando
Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens, 2002.
. £tica, sexualidade e politica. Michel Foucault:
organizacao e selec3o de textos Manoel Barros da Motta. Traducao
de Elisa Monteiro e Ines Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro:
Forense Universit£ria, 2004.
HALL, S. A identidade cultural na pos-modernidade.
Traducao de Tomaz Tadeu da Silva e Guarcira Lopez Louro. 7. ed.
Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
HARVEY, D. Condicao pos-moderna. Sao Paulo: Loyola,
1992.
MAFFESOL1, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro:
Rocco. 1984.
Capftulo 5
Foucault, o discurso literarioe a linguagem imagetica
FOUCAULT E OS DQMINIOS DAJ.INGUAGEM: P1SCURSO, PODfeR, SUBJETIVIDADE 217
Teorias e alegorias da interpretacao:no theatrum de Michel Foucault
Marisa Mnrtins Catna Kliulil'
Contra o pasitivismo, i/ue para diante dasfenumenos a dbs Ha
aptnas fatos, eu digit: An cuntrdriii, Jatm e <> t\ue -niSat ha; hd
apeaas ntterpretafGes....
Nietsxche
Um texto Hterdrio configura-se como um espaco instigadorde leituras e de interpreta95es. Esse espaco, que se constroi comouma rede, apresenta-se como congregador e, ao mesmo tempo,dissipador de variadas vozes. Por esse motivo, as reflexoes acercado ato da interpretagao sao costumeiras nos estudos literarios. Asdiversificadas correntes da critica literaria — quer as estruturalistasou as pos-estruturalistas —descortinam em seus metodosperspectivas possiveis para "orientar" as possibilidades deinterpreta9ao do texto literario. Percebe-se tambem a mesmapreocupacao no gesto de muitos autores de textos literarios, quandoemaranham, no tecido narrativo ou poetico, propostas que incitamo delineamento de posturas interpretativas por parte de seuspossiveis leitores.
No presente estudo partimos da voz do filosofo Frances, MichelFoucault, em seus tons e subtons, e a colocamos, como num teatro,em dialogo com vozes de literates — como as de Cervantes, ItaloCalvino, Jorge Luis Borges, Henry James, Guimaraes Rosa,Fernando Pessoa e Camoes — para possibilitar nao odesvendamento de uma teoria da interpretacao, mas a sugestao deuma rede de apontamentos plausiveis para uma interpretacao da
"Profe.ssora da Funda«;fi<> Univer.sidade Federal de Rondonia (UNIR), campus de PortoVelho.
218 FOUCAULT E OS POMJNIOS DA LJNGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
interpretacao.
A opfao por colocar Foucault ao centre, num palco em que se
pretende discutir a interpretafao, deve-se ao percurso historico de
leituras do GEADA — Grupo de Estudos em Analise do Discurso
de Araraquara —, percurso esse que teve inicio com o estudo do
livro Ceci n 'estpas unepipe. Como lembra Gregolin, em "Dos balances
e sens inumeraveis fios - uma historia do GEADA"7:':
Aleiturade Cea'..Jniciouoe.stranhamentodiantedae.stmge-Foucati]t.Ma.s ela nao nos disse o ciassiro deeifra-me on te devoro. Pelouontrario, jii afirmava a impossibilidade de decitragao, pois o sentidosempre leva a outro .sentido e a interpvetagao e um processo infinite.
Uma tela, como Ceci n'est pas tine pipe de Magritte, ou como
outra qualquer, nao existe para afirmar, mas para interrogar o seuespectador e criar novos espacialidades, suscitar novasinterpretacoes sobre o mundo. Assim como o livro e para o narrador
de D. Quixote de La Mancha uma maquina de soadas sonhadas
mvencoes (CERVANTES, 2002, p. 56). Sendo pintura, literatura,escultura ou cinema, a arte nao tern a funyao de afirmar
placidamente os sentidos e engessa-los para todo o sempre, pelocontrario, ela pretende sempre amolecer os sentidos, dar novas e
contlnuas formas a eles. D. Quixote quis copiar as palavras que leupara reinterpretar as coisas do mundo, mas a copia j^ nao era copia,ja era interpretacao.
O GEADA, com a leitura de Ceci,.. e de outros textosfoucaultianos - como As palavras e as coisas -, debru£ou-se sobre umFoucault que, numa rede, procura capturar imagens sobre o sujeito,seus saberes, seus poderes, suas praticas de subjetiv^ao, seus
discursos sobre si e sobre o mundo, seus gestos interpretativos.
'' Tex to (Jispombili/ado em: \v\vw. geada.hpg.ci>m.In-
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA UNGUAGEM:J>ISCURSO, PODER, SUBjETIVIpAPE 219
Projetando um olhar mais apurado sobre a obra de Foucaultpercebemos, entretanto, que nao ha um Foucault que estuda a
interpretacao, pois em toda a sua obra ha o estudo sobre o sujeito,que, com o seu discurso, representa, interpreta, reinventa-se.
Nao nos interessa aqui mostrar uma linha do tema
"interpretacao" na obra de Foucault, como tal tema evolui ao longo
de seus trabalhos, pois esse olhar seria movido pela continuidade,gesto nada foucaultiano. Interessa-nos fazer mover alguns discursos
de Foucault sobre a interpretasao que, em nossa pratica de docenciana area da Literatura, iluminaram nosso contato com o texto
literario.Em As palavras e ax coisas, Foucault, tendo em vista as praticas
relacionadas ao saber, delineia principalmente dois recortes na
cultura europeia ocidental: a episteme classica - seculos XVII eXVIII - e a episteme rnoderna - seculos XIX e XX. A primeira
episteme, a classica, e a da representacao, a da ordem do universe.Ela se opoe a uma episteme anterior ao seculo XVII, que era a
episteme da semelhan^a, porque as palavras passam a se distanciardas coisas; no signo, linguagem e pensamento se superpoem; ascoisas nao falam mais, elas sSo faladas, sao pensadas, organizadas,
classificadas. A episteme moderna e a da interpretacao. As praticasde saber ja nao se satisfazem em analisar as representa9oes. Averdade deve ser entendida no interior da hist6ria, e a historicidade
das palavras e das coisas e determinada pela sua espessura no tempo,pela sua destruicSo, pela sua rnorte. Quanto a linguagem na episteme
moderna, Foucault ressalta:
Destacada da representagSo, a linguagem ja nao existe da! por diante,
e mesmo entre nos, senao de um modo disperse C---3; se se q111861
interpretar, entao as palavras tornam-se urn texto a fracturar pai a(jue se possa ver emergii' tm plena lu/. esse outi'o sent'^o que elasociiltam; entun, acontece a linguagem surgir por si mesnia num acto
220 FOUCAULT E OS DOMIIMIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
lie escrever que nada mais designs! do que ela propria (FOUCAULT
19R8, p. ,19fi-7).
No seu estudo sobre Nietzsche, Freud e Marx, Foucault nos
revela que a linguagem sempre desencadeou duas espe"cies de
suspeita: a de que nao diz exatamente o que diz e a de que ha muitas
outras coisas que falam e que nao sao linguagem (SOOOb, p.48). Tais
suspeitas, tao antigas quanto as dos gregos, sao ainda
contemporaneas nossas. No seculo XVI, a interpretacSo calcou-se
no corpus da semellian^a a partir de algumas nocoes de base:
convenientia, emulatio, signatura, e analogia. Essas 1109068 eram
ancoradas por dois tipos de conhecimento, a cognitio e o divinatio,
que, por sua vez, geravam uma perspectiva dicotomica na leitura
das sernelhancas: havia as semelhangas que "manifestavam o
consensus do mundo que as fundament a va", que se opunham "ao
simulacrum, a falsa semelhanca" (2000b, p.50). Com Nietzsche,
Freud e Marx, no seculo XIX, abre-se uma nova direc^o
hermene'utica, e a interpretacao deixa de ser entendida apenas
pelo vies da semelhanca, porque, para eles, tudo que nos rodeia
e interpretacao. Nietzsche nao ere na existencia de fatos, mas de
interpretacoes; nao ha um significado original, mas uma rede
de significados prisioneiros uns dos outros. Freud nao se ocupa da
interpretacao dos simbolos, mas da interpretacao das interpretacoes.
O que Marx faz nao e a interpretacao das relacoes de producao,
porem a interpretacao de relacOes que se constroem ja comointerpretacoes.
Esses tres fundadores de discursividade provocaram o homem
dos seculos XX e XXI a considerar invalida toda ideia de origem e
todo sentido de acabamento, de completude. Incitado por tal
proposta, Foucault desvela uma teoria da interpretacao que ternna sua base duas conseqiiencias:
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 221
A prime! ra e que a interpretagSo ser<1 sempre £...] a interpretai^o de
"quern?"; nao se interpreta o que h& no significado, mas, no fundo,
quern colocou a interpreta^ao. O princfpio da interpretagao nada mais
e do que o interprete. £...} A segunda conseqiiencia e que a interpretayao
tem sempre (]iie interpretar-se a si mesma, e nao pode deixar de
retoniar a si mesma. £../] A vida da interpretacao j^...] e acreditar que
-so ha interpretagoes (FOUCAULT, yooob, p.Gl).
Baseado nuni olhar que pressupoe a descontinuidade historica,
Foucault, em A arqueologia do saber, mostra-nos que o discurso nSo
deve ser tratado como um jogo de significacoes previas, porque o
mundo nao se oferece a nos de uma forma legivel. Nao se pode,
entretanto, considerar a interpretacao como um ato que se propoe
a revelar um "nucleo interior e escondido" (Foucault, 1999a, p. 53)
do discurso, mas como um acontecimento que, tomando o proprio
discurso a partir da sua aparicao e da sua regularidade, pode
desvelar suas nervuras e suas novas e inusitadas mascaras.
A tematica do "nucleo escondido", de um sentido oculto que a
literatura abriga com muita enfase, e planteada por Henry James
em "O desenho no tapete" (1993). Nesse conto e narrada a historia
de um escritor consagrado, Vereker, que, em dialogos com um jo vein
critico, sugere que a sua arte romanesca encerra mais significados
do que aqueles ate entao percebidos pela sua comunidade leitora.
Revela, para a surpresa do jovem critico, que a sua obra tem um
sentido oculto, sentido esse que, apesar de mostrar-se inscrito a
cada pagina dos seus romances, mantem-se inacessivel — nenhum
dos sens leitores consegue desvendar, nem mesmo os mais
sofisticados, os criticos literarios:
ha em minha obra uma id&ia sem a qual en nao daria a menor iniportancia
a nada do que f'ago. E a mais hela e mais plena de todas as inten<;des, e
sua aplica^ao tem sido, creio eu, urn triunfo da paci^ncia, do engenho.
222 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Estas coisas, en devia deixa-las para que os outros a dissessem; mas
o problems e precisamente o fato de que ninguern as diz (JAMES,1993, p. l<n).
Vereker atribui denominacoes diversas a ideia que atravessa
seus romances, tais como: "pequeno trunfo", "piano sofisticado",
"pequeno segredo", "o fio em que estao enterradas as perolas",
"tesouro enterrado", "desenho no tapete". Todas essas imagens
engendradas por Vereker fazem-nos revisitar a natureza de dois
movimentos: o da escrita literaria e o da interpretacao da mesma e,
nesse mesmo sentido, podemos indagar a respeito das interlaces do
autor, do leitor e do texto. Muitos escritores acreditam que tecem
senridos ocultos, ou seja, que a sua escrita abriga um "niicleo interior
e escondido"; alguns leitores, fomentados por esse clima mistico,
concebem a interpretacao como uma busca do Graal. Todavia, a
linguagem da ficgao, como adverte Foucault,
deve deixar de ser o poder que incansavelmente produz e faz brilhar as
imagens e converter-se, pelo eontrario, em potfincia que as desamarra,
£...] as anima com uma transparencia interior que pouco a pouco as
ilumina ate faze-las explodir (FOUCAULT, I!)!JO, p. 2!)).
Nessa perspectiva, podemos entender que o texto tambem tern
os seus poderes. Como disse Umberto Eco (1993), alem das
intencoes do autor e das do leitor, ha a intencao do pr6prio texto.
Os fios discursivos nSo podem ser aleatoriamente interpretados,
eles estao ali, os fios fbrmam desenhos. Entretanto, tais desenhos
poderao ser reinventados na movencia das vontades de verdade,
das interdicSes, e de todos os outros procedimentos de controle do
discurso instaurados pelos sujeitos, na historia. Como Foucault nos
ensina em sua Arqueologia do saber, a historia deve ser entendida
como descontinuidade, como emergencia de praticas, como
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 223
acontecimento de raridades.
Ao estudar a "vontade de saber", no primeiro volume da
Historia da Sexualidade, Foucault aponta para o jogo complexo e
instavel que e instaurado pelos discursos, jogo que coaduna a um
so tempo estrategia e efeito:
Os discursos, como os silencios, nem s3o submetidos de uma vez por
todas ao poder, nem opostos a ele. £...] O discurso veicula e produ/ o
poder; retbrca-o mas tambem o mina, expfie, debilita e permite barra-
lo (FOUCAULT, I999b, p.,9fl).
Ao produzir o discurso, o enunciador estrategiza determinados
efeitos de sentido, pressupoe um numero determinado de
interpretacSes que serao geradas pelo sen discurso; porem, se em
determinadacircunstanciaeleeojogador, naoutra ele sera ojogado.
A movencia de sentidos e peculiar a todo discurso,
principalmente no que diz respeito ao literario, que traz em sua
rede fios metaforicos que incitam a reinvencSo, a recitagao, a re-
in terpreta9ao. Todo discurso esta entre quern projeta a enunciacSo
e quern a recebe, e esses dois sujeitos encontram-se numa rede que
se re-constroi continuamente, movida pelos procedimentos de
controle do discurso. Os poderes e os sentidos que o enunciador
prop5e podem ser silenciados diante do gesto de leitura de quern o
interpreta. Enquanto acontecimento, o discurso possibilita a
irrupc^o de novas interpretacoes.Nao se descarta aqui a ideia de que o autor predetermina
intencoes, faz "desenhos em tapetes", mas o poder desse ato e minimo,
se pensarmos que ele e apenas um ponto pequeno na imensa rede
que e a interpretacSo. 0 autor que tem a ing£nua crenca de que o
"sentido oculto" e a unica perspectiva para a interpretacao de sua
obra ve no seu leitor uma "c6pia a distancia", um "companheiro"
que representa uma exigenciadesmesurada eumpesodoqual(...)gostana
224 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DI5CURSO, PODER, SUB3ETIVIDAD6
de aliviar-se (FOUCAULT, 1990, p. 63). Ha autores, porem, que
sabem o quanto e inusitado o percurso interpretative e, por essa
razao, delegam ao leitor o direito e o prazer de escolher, ou mesmo
inventar, os caminhos de tal percurso. E o que nos sugere Fernando
Pessoa no poema Isto, do qual transcrevernos as duas ultimas estrofes:
Tudo o que sonho ou passo,
O ([lie me falha ou finda,
£ como que um terra<;o
Sobi'c outra coi.sa ainda.
Essa coisa e que e linda.
Por isso escrevo em meio
Do que riSo e.sta ao pe,
Livre do men enleio,
Serio do que nao e,
Sentir, sinta quern le ! (1980, p. 104)
O "desenho no tapete", nesse caso, deve ser inventado pelo
leitor, pois o eu-poetico assmne a existencia do que e dito ("sonho"}
e do que e interditado ("passo") e reconhece a producao de sentidos
falhos ou findos, sentidos que se situam num "terraco", num local
de producao de outros sentidos, O eu-poetico libera-se, assim, do
"enleio" de um sentido unico, porque sabe que o dito ja prenuncia o
nao-dito e assim o faz porque sabe que a sua voz, ela rnesma, e uma
vertente interpretativa em meio a tantas outras. O enunciado existe
e inscreve alguns provaveis canais de interpretacao, mas as posicQes
ocupadas pelos interpretes defmem diregoes dos sentidos. Por isso,
cabe perguntar quern faz a interpretacao e em que lugar ele se
situa. Foucault nos diz que o printipio da interpretacao nao e mats do
que o interprets (2000b, p. 62). Cada interprete, por sua vez, — e
agora chamamos a voz de Italo Calvino — e uma encyclopedia, uma
biblioteca, um inventdrio de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo
pode ser continuamente. remexido e reordenado de todas as maneiras possiveis
(1990, p.138).
Em "Pierre Menard, autor do Quixote" (1999), Jorge Luis
Borges presenteia-nos com o seguinte enredo que focaliza e questiona
o ritual da interpretacao: um autor do seculo XX, Pierre Menard,
escreveu uma obra subterranea cuja admirdvel ambicao era produzir
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 225
algumas pdginas que coincidissem —palavra por palavra e Imha por
linha — com as de Miguel de Cervantes (BORGES, 1999, p. 493).
Pierre Menard nao queria, contudo, escrever outro Quixote, mas "o
Quixote". E o narrador do conto ainda enfatiza: O texto de Cervantes
e o de Menard sao verbalmente identicos, mas o segundo e inftmtamente
mais rico (1999, p. 494). As mesmas linhas reescritas podem ser
outras? O que muda do seculo XVII para o seculo XX? Acontece
que a biblioteca de Cervantes nao possuia, por exemplo, a obra de
Poe, que gerou Baudelaire, que gerou Mattanne, que gerou Valery, que
gerou Edmond Teste(l999, p.494). A posigao ocupada pelos sujeitos
da escritura e da interpretacao modifica-se mfinitamente, no
decorrer dos seculos, e faz com que o "dito" nao se enclausure numa
unica forma de interpretacao.
Poe gerou Baudelaire, que gerou Mallarme... E pela
transgressao, pelo interdito, pela morte, pelo simulacra que a
literatura se desenha no tempo, se constroi, como explica Foucault
em "Linguagem e Literatura": a literatura e uma linguagem que
autoriza, ao infinite, as exegeses, os comentdrios, as duplicates, porque
ela e uma linguagem ao infinite (2000c, p.155).
Ao tratar da problematica da interpretacao, em seu Theatrum
Philosoficum, Foucault delineia o conceito de sentido-acontecimento,
que e sempre tanto aponta deslocada do presents como a sterna repeticao
do infinitive (SOOOb, p.89). 0 Quixote de Cervantes, sentido-
acontecimento, abre espaco para o incorp6reo; o Quixote cervantino
nao e o termino, e o inter minavel; ele possibilita a escritura do
Quixote de Menard, de Quincas Borba de Machado de Assis, de
Madame Bovary de Gustave Flaubert, e de tantos outros Quixotes
em tantas outras redes discursivas, tao parecidos com o seu modelo,
mas dele tao diferentes ao mesmo tempo. D. Quixote e Sancho Panca
sao, no dizer do proprio narrador criado por Cervantes, figuras
copiadas/interpretadas de um velho alfarrabio do historiador Ode
226 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA L1NGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDAOE
Hamete Benengeli; sao corpos que incitam o incorporal sentido-
acontecimento. Onde esti a origem? E a morteP Ha um pouco de
cada Quixote e cada Sancho em Batman e Robin?
Buscando Foucault, novamente, percebemos que o decreto da
morte da interpretacao reside na crenga de que existam simbolos
primariamente, originalmente; ja a vida da interpretacao baseia-se
no crer que nao hd mais que interpretafoes (SOOOb, P- 62).
For acreditar na existencia dessa miriade de interpretagSes,
Fernando Pessoa cria variados poetas-interpretes para poetizar o
mundo, cada qual com urn ponto de vista diferente: o olhar complexo
do ortonimo Pessoa, o olhar simples do mestre Alberto Caeiro, o olhar
humanista do pagao Ricardo Reis, o olhar caleidoscopico do futurista
Alvaro de Campos. Assim como o autor pode criar uma rede de variadas
interpretagoes, os seus leitores podem multiplicar os fios dessa rede.
Logo, a mudanga de posicoes e decisiva no ato da interpretacao.
Provavelmente, Pessoa recolheu a ligao da mudanga naquele que ele
gostaria de ter reinventado ou mesmo superado — Camoes:
Mudam-se os tempos, mudam~.se asvontades,
Muda-se o ser, rnuda-se a contlanca;
Todo o Mundo e compos to de mudanga,
Tomandosempre novas qualidades.
Coiuinuamente vemos novidades,
Diferentes em tndo da esperanca;
Do mal fleam as rnagoas na lembranca,
E do bem, se algum hotive, as sandades.
O tempo cob re o chao de verde man to,
Que ja coberto f'oi de neve f'ria,E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudanga fax de mor espanto:
Que n3o se muda ja como .sofa.( I<)74, p. IIS)
O eu-poetico desse soneto manifesta sua estupefagao diante
de um mundo todo "composto de mudanga", porem o que mais o
impressiona e o fato de a mudanga jii nao ser mais a mesma, ou
seja, de a pr6pria mudanga ja ter mudado. Colhendo a interpretagao
camoniana de mudanga, Pessoa apercebe-se de que, se o proprio
ato de mudar e em si mutavel, a voz que fala e interpreta tambem
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DI5CURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 227
pode mudar e ate mesmo dissipar-se, quebrar-se para dar lugar a
outras vozes. A voz que Fernando Pessoa escolhe para assumir a
inevitabilidade e o prazer da fratura e da dissipagao e a de Alvaro
de Campos:
A minha alma partiu-se como um va.so vazio.
Cain pela escada excessivamente abaixo.
Caiu da.s macs da criada descuidada.
Cain, fe/,-se em tnai.s pedagos do que havia loii;a no va.so.
Asneira? Impos.sfvelP Sei la!Tenho mais sensa0es do tjue tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de caco.s sobre um capacho por sacudir.
(1980, p.
A fragmentagao do sujeito pode ser entendida nao pelo vies
negativo, como a perda de um fragil poder, mas pelo positive, uma
vez que, quando deixa de ser apenas "eu" — um sujeito a ocupar
somente uma posigao e a, talvez, descortinar uma so interpretagao
—, passa a permitir a descoberta de multiplas sensa^des.
A problematica do plausivel poder do sujeito — interprete e
interpretado — relaciona-se a da linguagem interpretada. Sabemos
que a linguagem agambarca o presente e o passado, contudo ela,
fundamentalmente, aponta para o futuro, para a espera, Em Nem
um nem outro, Foucault afirma que o ser da linguagem e definido
pela "pureza da espera", espera essa que nao se ampara de forma
exclusiva na memoria, mas sobretudo no esquecimento. E no
esquecimento, sugere Foucault, que a espera se mantem uma espera:
aten$ao aguda dquilo que seria mdicahnente novo, semponto de comparafdo
nem de continuidade com nada [...] e atenfao dquele que sena o mais
profundamente velho (1990, p.7S). No ser da linguagem, que espera e
esquece, o poder da dissimulacao "mancha" a estabilidade das
significagOes determinadas e a propria existencia do ser que fala.
228 FOUCAULT E OS DOMINIOS DAJJNGUAGEM; DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE
A interpretacao, para Foucault, manifesta-se de forma
labirintica e, seguindo esse sinuoso percurso, volta-se para si mesma
ate o infmito. Ja vimos que nossa atenyao njjo deve contemplar tao-
somente o resultado da interpretacao, mas principalmente quern a
realizou e qual a posicao que ocupava no momento da interpretagao.
Contudo, esse interprete e atravessado por controles discursivos
(FOUCAULT, I999a) que interferem na constituicao dos
dispositivos interpretative^, tais como: os procedimentos externos
- interdicao, segregagao e vontade de verdade -, os procedimentos
internos - comentarios, autor, disciplinas -, e os procedimentos de
rarefacao do sujeito - rituais, sociedades do discurso, doutrinas e
apropriacoes sociais. Ciente da existencia de tais controles, o
interprete nao deve buscar a universalidade do sentido, mas procurar
apreender os sentidos em sen poder de afirmacao e de rarefacao.
Quando trata do conceito de interdifao, Foucault explica-nosque nao se tern o diretto de dizer tudo, que nao se podefalar de tudo em
qualquer circunstancia, que qualquer um, enfim, nao podefalar de qualquer
coisa (I999a, p.9). Portanto, todos nos, interpretes e interpretados,
somos crivados por controles discursivos, controles esses que mudam
de acordo com as vontades de verdade em vig^ncia, e essas, ao
atravessarem autor, texto e leitor, fazem apagar sujeitos e
significances e destronam a viabilidade tanto da existencia de um
so sentido oculto quanto da existencia de uma rede de infinitasleituras em qualquer momento, em qualquer lugar.
Em um estudo sobre o sujeito e o poder, Foucault (1984)
lembra que, se o sujeito e apanhado nas relacoes de producao e nas
relacoes de sentido, e porque ele e, antes de tudo, apanhado comimensa complexidade nas relacoes de poder. Ha dois sentidos,
recorda Foucault, para a palavra sujeito: o sujeito submetido a outro
pelo controle, pela dependencia; e o sujeito ligado a sua identidade,
pelo conhecimento de si. Nas duas situacoes, o sujeito relaciona-se
FOUCAULT E OS DOHJNIOS DA UNGUAGEMi DISCURSO. POPER, SUBJETIVIDADE 2Z9
ao poder, que subjuga e submete, ha o jogador e o jogado. Para se
inverter as posinoes assumidas, o sujeito leitor, no jogo da
interpretacao, deve trocar a obediencia pela irreverencia, a afirmacao
pela interrogacao.
Foucault nos ensina, ao longo de seus estudos, que ha tres
perspectivas ontologicas que atravessam o sujeito: ser-saber, ser-
poder e ser-si, e que por isso ele e crivado por controles que o fazemassumir posindes em determinados lugares e momentos. Contudo,
dependendo de como ele atua na rede que o envoive, pode provocar
variacSes diversas: a sua posicao na rede e ate mesmo uma nova
disposicao de fios da rede.No palco da interpretacao, interpretes e interpretados vestem
muitas e diversificadas ma'scaras. A mobilidade da troca de mascaras
e assegurada pelo destronamento do sentido de verdade absoluta e
pela assuncao da incompletude do sujeito, da sua rasura, do seudesaparecimento enquanto ser concluso. Se o sujeito e constantemente
mutavel, suas interpretacoes sobre as coisas tambem o sao. E nas
palavras de Riobaldo, o narrador de Grande Sertao:Veredas, de
Guimaraes Rosa, que encontramos o coro para essa ideia da
inconlusao e a irnagem propicia para a conclusao deste texto:
O senhor... Mire e veja: o mais ituportantt1 e bonito, do muntlu, e isto:
que as pessoas nSo cstSo seinpre iguais, ainda n3o fbram temiinadas -
mas que das vSo sempre mudando. Atinam ou desatinam. (19(75, p. 0)
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Paul. Michel Foucault: un parcours philosophique. Paris:Gallimard, 198*.
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FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 231
Foucault nas visibilidades enunciativasNadea Regina Caviar'
Afinal, e posftuel (pie a. natmeza, o mat; <> sussurru das drvwef,
os animals, os rostox, as mascaras, asfacan cruzadas, tudii two
fale; [...] e mail do que nunca exiamfjs a escuta de toda essa
linguagempossivel, tentando surpreender[mr baixo dasftalavras
um ducur.m i\ue sena ?nais essencial
Foucault
Em A Arqueologia do saber (1997), Foucault fundamenta
uma teoria para a analise dos discursos, a teoria arqueologica, naqual ele propSe que o analista identifique e descreva o percurso:enunciado - forma foes discursivas - arquivo. Para ele, e nesse
percurso que o enunciado toma o status de ser considerado comoenunciado discursive e, desse modo, tornar-se relevante naanalise. Foucault (1997, p.150, grifo do autor) expoe: "o arquivodefine um nfvel particular: o de uma pratica que faz surgir uma
multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos
regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e amanipulacao. QO arquivo^ e o sistema geral da formafdo e da
transformafdo dos enunciados.Contudo, em determinados momentos da leitura da obra
desse autor um problema se apresentou, qual seja: - Foucaultpropos a aplicafao dos seus principles somente para os enunciados
verbais (falados e escritos}? Esse problema tornou-se pertinentedevido ao men interesse na aplicac.ao da teoria arqueologica naanalise de filmes. £ o que neste trabalho proponho averiguar,
por meio da compreensao que Foucault fez do enunciado como
"Protessora da Umversidade Federal de Sao Carlos (UFSCar).
232 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
um acontecimento, da observacao das materialidades as quais esse
autor recorreu para compor o legado da sua obra e da 110980 dasmsibilidades enunciativas.
O enunciado acontecimento
Foucault nao teve por objeto estudar questoes relacionadas a
area do cinema ou dos filmes. Ele tambem nao toinou como problema
especifico o estudo de teorias distintas que buscam justificar as
diversas possibilidades de representacoes da Hnguagem vinculadas
a escrita, a oralidade, a imagem fixa, a imagem em movimento.
Esse teorico tambem nao se deteve em observar as diversas formas
de registros como textos, obras, fontes, colecoes, volumes, edicoes,
refere'ncias. Tampouco ele se concentrou na analise de suportes
formatados como livros, jornais, revistas, fitas k-7, cds-rom, fitasVHS.
Qual foi entao a preocupacao desse filosofo, enquanto
pesquisador de uma teoria para a analise dos discursos?
Em urna entrevista concedida a R. Bellour, publicada em um
texto intitulado "Sobre as maneiras de escrever a historia", Foucaultargumenta:
Certarnente nos interessamos pela linguagem; no entanto, nao por
termos eonseguido tmalmente tomar posse dela, mas antes porque,
mais do que nunca, tla no.s escapa. Q..] Pessoalmente, estou antes
obcecado pela existencia dos discursos, £...] esses acontecimentos
fiindonaram em relayao a sua situa^So original; eles deixaram traces
atras deles, eles subsistem e excrcem, nessa propria SLibsistencia no
interior da historia, um certo ni'imero de funcoes manifestas on secretas
£...J. £Deste rnodoj men objeto nao £ a linguagem, was o arquivo, ou
seja, a existencia acumulada dos disatrsos (FOUCAULT, 2000, p.7a,grifo no.sso).
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 233
Foucault se concentrou ern questoes relacionadas ao homem e,
diante disso, ele se deteve em estudar a existencia acumulada dos
discursos. Esse intento levou-o a proper uma teoria para se analisar
os discursos: a arqueologia. O fundamento dessa teoria e identificar
os enunciados discursivos, relacionando-os as formacoes discursivas,
pois as ultimas e que geram o sistema de arquivo. Desse modo,
vamos ouvi-lo quando ele proprio se questiona a respeito de como
a descric.ao dos enunciados pode se ajustar a analise das fbrmacOes
discursivas e, tambem, quando ele se propoe verificar ate que ponto
pode-se dizer que a analise das formacoes discursivas e uma
descricao dos enunciados:
partindo do problema da descontinuidade no disairso e da singidaridade
doenundado(temacetitral),pvacwei iinalisai",naperiferia,certasformas
de grupamentos enigmaticos; mas os principles de iinifica^So com
que me deparei, e que, por eonseguinte, nao podem referir-se nern a
frases, nem a proposigOes, nem a representatives, exigiram que eu
voltasse, pai-a o centro, ao problema do enunciado e que tentasse
elucidar o que e precise en tender por enunciado. E considerarei, nao
que eu tenha consmiido um modelo teorico rigoroso, mas que tenha
liberado urn dominio coerente de descricao - do qual, se nao estabeleci
o modelo, pelo menos abri e prepare! a possibilidade - se tiver
conseguido 'Jechar o circulo' e mostrar que a analise das formafoes
discursivas esta bem centra da na descrifiio do enunciado em sua
esperijicidade (FOUCAULT, 1997, p. 13 1-33, grifo nosso).
A proposta de uma teoria da descontinuidade no discurso, da
singularidade do enunciado enquanto (tema central), e de como as
formafoes discursivas se rdacionam com a descricao do enunciado foramas grandes preocupagoes de Foucault para a fundamentacao de um
metodo de analise do discurso. Desse modo, ele procurou mostrar
que a analise dasjbrmafdes discursivas esta bem centrada na descricao do
enunciado, em sua especifiddade.
234 FOUCAULT E OS DOMIHIOS PA LINGUAGEM: PISCURSO, PQDER, SUB3ETIVIPADE
Se a singularidade do enunciado e um dos seus temas centrals,
observemos outra passagem, na qual ele procurou justificar sua
compreensSo do enunciado como um acontecimento. Foucault
argumenta:
r_..J um enunciado e sempre um acontecimento que nern a [fngua riein o
.sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento
estranho, por certo: mtcialmente porqite estd ligado, de um lado, a um
gesto de escrita on a articulacao de uma palavra, mas, por outro, abrepara
si mesmo uma existenda remanescenteno campo de uma memoria, on na
materialidade dos manuscritos, dos livros e dequalqiter'forma deregistro,
em seguida, porqiteeimicocomo todo acontecimento, mas esta aberto
a repetifao, a transformacao, a reativacaa, fmalmente, porque esta ligado
nao apenas a situagdes que o provocam, e a conseqiiencias por ele
ocasionada.s, mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade
inteiramente diferente, a enunciados que o precedent e o segue.
(FOUCAULT, 1997, p.32, grifo nosso).
Nessa passagem, o teorico explicita tres "caracteristicas" de
como um enunciado pode ser percebido como um acontecimento
que, embora "estranho", nao deixa de ser um acontecimento. Vejamos
essas caracteristicas mais detidamente.
Primeiramente ele esboca que o enunciado e um acontecimento,
pois esta ligado a escrita e a palavra oral, mas ele abrepara si mesmo
uma existenda reinanescente no campo de uma ?nemoria, ou na
matenalidade dos manuscritos, dos livros e de qualquerforma de registro.
Conipreendemos que um dos riiodos do enunciado manifestar-se
como acontecimento, obviamente, e por meio da escrita e da
oralidade, mas ele nao se fixa nessas modalidades, pois ele abre para
si mesmo uma existenda reinanescente em varios outros campos, outras
materialidades, ou seja, a quaisquer ^outras^formas de registro. Desse
modo, avaliamos que o enunciado pode estar num livro, numa
fotografia, num quadro, num filme ou em outra forma de registro.
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 235
O enunciado £ tambem um acontecimento pelo fato de ser
unico e, ao mesmo tempo, estar aberto a repeticdo, a transformacao, a
reativacao. Uma das interpretations que se pode depreender dessa
passagem reporta-nos aos enunciados filmicos, ja que o filme
comporta multiplas linguagens atuando simultaneamente. Assim,
o enunciado no filme pode surgir na oralidade (como nos comentarios,
nas conversas de diretores, nas falas dos personagens); ou ele pode
aparecer na escrita (anotac.oes gerais, roteiros, legendas, cartazes
escritos, sinopses, divulgacoes em revistas, dentre outros); ou entao
nas imagens fixas (storyboard, desenhos, fotos, cartazes de
propagandas etc.); ou mesmo nos sons (dos ruidos, da musica); e,
obviamente, nas imagens em mommento assistidas nas telas (dos
cinemas, dos televisores, dos computadores).
Por essa teoria, no entanto, esse modo de compreender os
deslocamentos enunciativos no texto filmico e um equivoco, pois,
nesse sentido, o enunciado seria observado em um texto (em um
linico filme) ou entao, ele seria observado somente em suportes
filmicos, e parece-nos que nao e exatamente essa a proposta de
Foucault. Embora o enunciado se encontre nos textos, pois se assim
nao o for nao conseguirlamos observa-lo, o teorico indica que a
analise enunciativa recaia nos discursos e nao em um texto ou, mesmo,
em textos que se inserem numa unica materialidade como, por
exemplo, varios filmes ou varias fotos. Desse modo, os enunciados
acontecimentos a que se refere o autor estariam inseridos nos textos,
mas a busca do analista se vincularia ao modo como os enunciados
foram sendo pronunciados no seu movimento de transformafdo
discursi-va. O que Foucault procurou entender e propor, ao longo do
seu empreendimento de pesquisa, e o exame de como acontece o
funcionamento das transformac.oes discursivas.
Em uma das passagens em que traga re^Ses entre os estudos
da lingua, da linguagem e do discursb, na entrevista citada acima,
236 FOUCAULT E OS OOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Foucault argumenta:
Como justiticar esse discurso sobre os discursos que en mantenho?
Que e.statuto Ihe dar? Comeca-se, sobretudo do lado dos logicos,
al Linos de Rus.se! I e de Wi ttgenstei", a se dar conta de que a li nguagem
apenas poderia ser analisada em sua.s propriedades formais, desde que
se leve ein conta sen funcionamento concreto. A Kngua e um conjunto
de estruturas, mas os discursos sao unidades de funcionamento, e a
analise da linguagem em sua totalidade nSopode deixar de f'a/er face a
essa exigencia essencial. Nessa medida, o que faco localiza-se no
anonimuto geral de todas as pesquisa.s que, atualmente, giram em
tor no da linguagem, OLI seja, nik> somente da Ifngua que permite dizer,
mas dos discursos que foram ditos (FOUCAULT, 2000, p. 73).
O que Foucault observou, portanto, nao e a analise dasestruturas da linguagem ou da lingua nos textos, mas o funcionamento
dos discursos, pois, embora os enunciados estejam contidos nostextos, eles se encontram no movimento das transfbrmacoes dos
s deformafdo dos discursos. Para o autor:
O que .se descreve por 'sistemas de formacSo' n3o constitui a etapa
final dos discursos, se por este termo entendemo.s os texto.s (ou as
lalas) tais como se apresentam corn -sen vocabulaYio, sintaxe, estrutura
logics ou organizacSo retorica. A an51i.se fdos discursos] perniauece
aquem desse ni'vel manifesto, que e o da constru^ao acabada | .., ern
suma, deixa em pontilhado a disposicSo final do texto. [[...] o que se
analisa aqui nao s3o, certamente, os estados terminals do discurso,
mas sim os sistemas que tornam possfveis as formas si.stematicas
ultimas; s3o regtitandadespre-tenmnais em relacilo as quais o estado
final, longe de constitnir o lugar dc nascimento do sistema, se define,
antes, por suas variantes. Atras do sistema acabado, o que a aniilise
das f'ormagoes descobre C-..J e Lima espessura imensa de
sistemacicidade.s, um conjunto cerrado de relacoes multiplas. [_...~]
Nao procuramos, pois, passar do texto ao ]>ensamento, da conversa
ao silencio, do exterior ao interior, da dispersSo espacial ao puro
recolliimento do insmnte, da multiplicidade .superficial il nnidade
FOUCAULT E OS POMJNIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETlVipADE 23?
prollinda. Permanecfjinos na dimensSo do discurso (FOUCAULT
19.97, p.83-5, grifo do autor).
Julgamos que as duas ultimas citacOes esclarecem que Foucault
nao se deteve na analise dos textos, entendidos como etapa final dos
discursos, mas o que ele procurou apresentar e uma proposta para aanalise das regtdaridades pre-terminais dos discursos. Desse modo, osdiscursos nao definem o nascimento de sistemas estaveis, mas os
sistemas e que sao antes defmidos pelas variantes que comportam epelas relates multiplas que engendram. Devido as variantes, embora
os enunciados acontecimentos sejam unicos, eles estdo abertos a
repetipao, a transformafdo, a reativafdo.Assim, um possivel enunciado que surge numa modalidade
da imagem fUmica, embora seja ai reconhecido, pode ter vinculoscom enunciados anteriores e posteriores a ele. Os vinculos
enunciativos nao precisam ser exatamente da mesma materialidadena qual imcialmente foram produzidos, pois se originalmente eles
foram observados numa imagem filmica, por exemplo, podemaparecer tambem em outros discursos e serem identificados em
outras formas de linguagem.Destacamos ainda, e fmalmente, nossa compreensao da citacao
exposta mais acima, quando Foucault reitera pela terceira vez queo enunciado se apresenta como um acontecimento. Isso porque, oenunciado esta ligado nao apenas a situafoes que o provocam e a
conseqiiencias por de ocasionadas, \dsto que ele se vincula e abre parasi, ao mesmo tempo e segundo uma modalidade inteirattiente difereiite,
a enunciados que o precedem e o seguem.Para entendermos melhor essa terceira "caracteristic3 do
enunciado como um acontecimento, exemplificaremos com uma dasseqii£ncias do filme A guerra dofogo (1981). Nessa seqiiencia,destacamos um personagem que representa um dos vari°s nomens
240 FOUCAULT E OS POMINIOS DA IINGUAGEM: PISCURSO, PODER^SUBJETIVIDADE
As articulates entre todos esses principios indicariam ao
analista, por exemplo, no caso da sequencia filmica da descoberta
do fbgo, se essa poderia ser ou nao observada como um possivel
enunciado. A nosso ver, essa "migracao" enunciativa leva Foucaiilt
a afirmar que o enunciado acontecimento, por um lado, 6 unico,
mas, por outro, se transforma e se vincula a enunciados que o precedente o segnem.
Pelo exposto acima, percebe-se que a teoria arqueologica oferecequatro principios para se identificar o enunciado: a serie, o sujeito, o
campo associado ao enunciado e a materialidade enunciativa. Deter-
nos-emos com mais cuidado nesse ultimo principio, interrogando oque Foucault compreendeu por materialidade enunciativa.
Para o autor,
£...] o t'nunciado e sempre apresentado atraves dc uma espessura
material £..-J- A materialidade desempenha, no enunciado, um papel
muito £...J importante £../] ela e constitutive do pr6prio enunciado: o
enunciado precisa ter uma substantial um suporte, um liigar e uma
data. £../] Essa matertalidade repetivel que caracterixa a fimciio
enunciativa f'az aparecer o enunciado como um objeto especifico e
paradoxa], mas tambem como um objeto entre os que os homens
produzem, manipuiam, utilizam, transform am, trocam, combinam,
decompoem e recompoem, eventualmente destroem. Ao inves de .ser
uma coisa dita de forma detinitiva - e perdida no pa.ssado £...] - o
enunciado, ao mesmo tempo em qiie stirge emsiia materialidade, aparece
como status, entni em redes, se coloca ern campos de utili/.agao, se
oferece a transfereticias e a modificafdespossiveis, KC i ntegra em operacoes
e em estrategias onde sua identidade se mantem ou se apaga(FOUCAULT, 1.997, p.HS-16,121, grifo no.sso).
Percebe-se. por essa passagem, que o enunciado "muda deidentidade" em funf.ao, tarnbem, da sua materialidade. O autor
evidencia que o enunciado precisa ter uma substanda, mas ele naoindica aqui se a substSncia seria identificada somente na escrita ou
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUflGEM: DISCURSO, POPER, SUB3ETIVIDADE 241
na oralidade. Isso pode ser constatado quando Foucault exp5e que
O enunciado, portanto, nao exists nem do mesmo modo ([lie a lingua
(apesar de ser composto de sigtios que so sao defmiveis, em sua
individualidade, no interior de um sistema lingin'stico natural on
artificial), nem do mesmo modo que objetos qitaisquer apresentados a
percepfao (se bem qiie seja sempre dotado de uma cerla materialidade, e que
se possa sempre situa-lo segundo coordenadas espafo temporals')
(FOUCAULT, 19!)7, p. i)8, grifo nosso).
Nessa cita5ao, o teorico e bastante explicito em afirmar que as
maneiras pelas quais um enunciado pode ganhar existencia material
s&o inumeras e variadas, podendo isso ocorrer, por exemplo, naescrita, na fala, nas expressoes matematicas, nas tabelas (por
exemplo, as quimicas), nas partituras musicais. Em vista disso,
julgamos pertinente considerar que as imagens podem ser vistascomo uma possibilidade de manifestacao enunciativa, incluindo
nessa perspectiva a linguagem dos filmes, das fotos, dos quadros,das plantas arquitetonicas, dos desenhos, para citar apenas esses
exemplos. Ou seja, ao propor a materialidade enunciativa, Foucault
nao a circunscreve a escrita e a oralidade.Certamente, os enunciados tern de ser rnaterializados, tomando
corpo em alguma substancia, mas a identificacao de um enunciado
em um determinado discurso, no qual ele figura com uma
determinada materialidade, nao significa que o analista deva busca-lo em outros textos, observando, exatamente, a mesmamaterialidade na qual ele se apresentou no texto inicialmente eleito.
Para Foucault:
£...] se queremos que ele £o enunciadoj entre em um processo de
verificacao experimental, [sendo observado sob a otica da Arqueotogia,
ha de se admitir que 6 proprio do enunciado] um "principio de variacSo .. . . j A cnnstancia do enunciado, [;...] sens ciesdobrarnentos atraves
242 FOUCAULT E OS POMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
da identidade das formas, tudo isso e em func^o do campo de utiliza$ao
no qua! ele.se encontra inserido (FOUCAULT, 1997, p. 120, grifo do
autor).
Dessa maneira, considerando que ha1 um principio de variafao
enunciativa e, portanto, que os enunciados se trans for mam, ha de
se admitir que, dentre outros, os textos verbals e nao verbais,
pronunciados na forma escrita, oral ou imagetica, no suporte de
livros, quadros ou filmes, acolheriam os enunciados, como se estes
fossem - ou representassem - verdadeiros acontecimentos historicos a
serem analisados.
A proposta de Foucault em rela9ao especificamente a
materialidade do enunciado pode ser mais bem compreendida, se
nos reportarmos brevemente aos sens escritos, ja que, desde as suas
primeiras obras, ele apontou para possibilidades de analise
enunciativa em diversas materialidades discursivas.
Roberto Machado argumenta:
Lima earacterfstica fundamental da arqueologia e justamente a
multiplicidade de .suas definifoes; e a. mobilidade de uma pesquisa qise,
nao aceitando se fixar em canones rigidos e sempre instnitda pelos
doatmentos pesquisados. Os sucessivos deslocamentos da arqueologia
nao atestam, portanto, uma insuficiencia, nem uma falta de rigor:
assmalarn uma promsoriedade assumida e refletida pela analise. Com
Michel Foucault e a pr6pria ideia de um metodo historico irmitavel,
sistematico, un iversa lmence apl icavel que e desprestigiada
(MACHADO, 1982, p. 14, grifo nosso).
De fato, Michel Foucault deixou um legado para os
pesquisadores atuais, no qua] se observa que, alem de analisar vdrias
arqueologias, ele tambem pesquisou discursos extremamentediversos para fazer as analises. A seguir, destacaremos algumas
contribuicoes desse autor, sem nos prendermos ao conteudo das
FOUCAULT E OS DOMJNIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 243
obras, pois a fmalidade neste momento e examinar as materialidades
as quais Foucault recorreu para justificar seu projeto arqueologico.
Aspectos do legado das obras de Foucault
Na sua tese de doutorado, Historia da Loucura (2002),
publicada pela primeira vez em 1961, Foucault ja demonstrava
um carater diferenciado na analise dos discursos sobre a loucura,
pois recorreu a varias materialidades para tratar dessa tematica,
tais como: textos cientificos, tratados, tabelas, dicionarios, operas,
varios textos literarios. Dentre as materialidades enunciativas
apresentadas por ele nesse livro, destacamos o "prefacio", no qualele o "abre" com um quadro de Frans Hals: As regentes.
O Nascimento da cli?iica (2001), publicado originaimente em
1963, e uma das analises discursivas que conduziu Foucault a
observar como a clinica medica se instaurou. Nesse texto, o autor
re vela de que maneira o analista pode considerar o olhar e a linguagem
como aspectos intrinsecamente ligados e que devem ser investigados enquanto
tal. Como afirma Machado:
Em Naissance de la. dimqiie, a historia arqueotogica situa-se em dois
nfveis dilerentes, mas correlacionados: o olhar e a lingiiage.m j^...]
Foucault utili/,a durante coda a sua analise o termo' espacializa^lo' no
sentido da coiistituigao de um espago de visiljilidade da percep^ao
medica ^...] []esse texto] mostra de que maneira a arqueologia
considera como fundamental para sua analise a relac.ao entre a
percep^ao e a linguagem, tematizando a ruptura a partir justamente
da mudanga desta relacSo. O ohjeto da analise arqueologica & a regiaoem que as palavraseas coisasaindanao sesepartiram.aarticula^o un
linguagem medica com o seu objeto, a estrutura falada do percebitlo,
a espacializagao e a verbalizacao tundamentais do patologico, 'o olhar
loquaz do medico' Q..]. Se por urn lado, ver e diner sao aspectos
244 FOUCAULT E OS DO MI NIPS PA LINGUAGEM! DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
com piemen tares, [Tia] o priviiegio do olhar que encontramos em
tvaissancedeladmtqtte[..r\. Mas e importante n3o esquecer queuma
das caracterfsticas basicas do livro e considerar olhar e linguagem coma
aspectos intrmsecamente ligadose que devem ser invest!gados enquanto
tal [,..](MACHADO, 1982, p. 117-20, grifo nosso).
Percebe-se que, desde o inicio das suas pesquisas, Foucault
trabalhou com materialidades que demonstram enunciados
advindos tanto do "dizer" quanto das "visibilidades".
Deleuze expoe:
Aquilo que 'Naissance de la dinique desvendava YA era um 'olhar
absolute', uma Visibilidade virtual', uma 'visibil idade fora do olhar'
que dominava todas as experiencias perceptivas e que nilo convocava
a visa"o sem convocar tambern os outros campos sensoriais, o ouvido
e o tato. As visibilidades nfto se definem pela visao, antes sao complexes
multi-sensoriai.s que acedern a !uz (DELEUZE, 1998, p.86).
Na mesma passagern, Deleuze esclarece que nas obras de
Foucault ha um ser - luz, tal como ha um ser - linguagem.
Em um dos coloquios Franceses de que Foucault participou,
em 1964?, no trabalho intitulado Nietzsche, Freud e Marx, ele expoe
que
£...] a linguagem, em todo caso, a linguagem nas culturas indo-
europeias, sempre fez nascer dots tipos de snspeitas: - inicialmente, a
Nuspeita de que a linguagem nilo diz exatamente o que ela diz. O
sentido que se apreende, e que e imediatamence manifesto, e talvez, na
i-ealidade, apenas um sentido menor, que protege, restringe e, apesar
de tudo, transmits um outro .sentido, sendo este, por sua vez, o sentido
mats forte e o sentido 'por baixo' Q..J - por outro lado, a linguagem
fax nascer esta outra suspeita: que, de qualquer maneira, ela ultrapassa
sua forma propnamente verbal, que ha certamente no nuirido outras
coisas (juefaiame nSo sSo linguagens. Afinal, 6 possivel que a natureza,
o mar, o sussurro das ai'vores, ON animais, os rostos, as mascaras, as
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 24S
tacas cruxadas, tudo isso fale; talvez haja Imgitagem se articulando de
uma. maneira que nao seria verbal. (FOUCAULT, '2000, p.40, grifo
nosso).
Em As palavras e as coisas (1999), obra publicada
originalmente em 1966, Foucault dedica todo o Capitulo I, intitulado
Las Meninas, analisando o quadro homonimo de Velasquez. Em
artigo escrito originalmente em 1967, As palavras e as imagens,
Foucault argumenta:
Estamos convencidos, sabemos que tudo f'ala em uma cuitura: as
estfuturas da linguagem dao forma a ordem das coisas. [_..r\ As vezes,
os elementos de discurso se mantem como temas atraves dos textos,
dos manuscritos recopiados, das obras traduzidas, comentadas,
iinitadas; mas eles ganham corpo em motivespldsticos qiie sao subnietidos
as tmnsformafdes; [^...] outras vexes, a forma plastica se mantem, mas
acolhe uma sucessao de diversos temas £...]. O disatrso e aforma se
mommentam um em direfao ao outro .--3- O discurso n3o e, portanto,
o fimdo interpretative comum a todos os fenomenos de uma cnltura.
Fazer aparecer uma forma nao e uma maneira desmada [J...J de dizer
algtima coisa, Naquilo que os homens fazem, tudo nao e, afmal de
contas, um ruido indecitravel. 0 discurso e afigura tem, cada um, seu
modo de sen mas eles mantem entre si relagOes complexas e
embaralhadas. E seu fundonameiito reriproco que se trata de descrever
(FOUCAULT, 'JOOO, p.78-80, grifo nosso).
NSo ha como negar, na citacao acima, que o teorico percebe o
discurso e a figura como intrinsecamente "mutuos", pois para ele o
discurso e ajlgura tem, cada um, seu modo de ser: mas eles mantem
entre si relacoes complexas e embaralhadas. Contudo, Foucault e
explicito na sua proposta: e seufuncionamento reciproco que se trata de
descrever.
Em 1969, Foucault publica o livro que compoe a teoriaarqueologica - A arqneologia do saber (1997). Por ser o livro em que
246 FOUCAULT E OS DOMJIMIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER. SUBJETIVIDADE
ele fundamentou o metodo arqueo!6gico, seu objetivo nesse texto
nao era trabalhar com nenhuma analise empirica, mas justificar
teoricamente as analises que haviam sido feitas por ele ate entao,
bem como sinalizar as que ainda faria posteriormente. Devido a
isso, Gregolin (2003) pondera que, por esse carater metodologico, a
Arqueologia e um livro que nao pode ser lido mdependentemente dos
anteriores. Remissoes, recoloca$oes, deslocamentos das analises anteriores
costuram as reflexoes da Arqueologia.
Em 1973, Foucault divulga Isto nao e um cachimbo (1988),
texto no qual pode-se observar, com toda a clareza, o pensamento
do autor na analise enunciativa cujo prop6sito e tambem estabelecer
rela9oes com a linguagem estetica dos quadros de Magritte, (des)
vinculando-a da linguagem escrita. No texto em questao, Foucault
consegue evidenciar a harmonia reciproca entre o discurso pictorico
e o escrito.
Vigiar e Punir (2002), publicado originalmente em 1975, seria
um importante empreendimento de Foucault, nao somente para
destacar as relacoes entre o poder e o saber, mas tambem para
demonstrar aos pesquisadores de que mode as linguagens verbais
e nao-verbais podem ser analisadas conjuntamente. E nesse
momento que Foucault recorreu a diversas materialidades
enunciativas, tais como quadros, plantas arquitetonicas, projetos,
gravuras e, tambem, objetos culturais como as moedas.
Depois de Vigiar e Punir, o autor intensified! seus estudos
direcionados para as materialidades esteticas, incluindo nas suas
pesquisas a analise dejilmes.
Barros da Motta (2001, p. XXIX), na Apresentagao de textos
que condensam algumas publicacoes de Foucault de cunho estetico:
literatura epintura, musica e cinema, no volume III da recente colecao
publicada no Brasil, Ditos e Escritos, traca o seguinte comenta'rio: o
que di% Foucault sobre o cinema situa-se em urn periodo relativamente
FOUCAULT^E OS DOHJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 247
recente. De fato, no periodo entre 1975 ate 1980 ele escreveu seis
artigos que se articulam entre si, nos quais procurou relational- os
estudos sobre a politica e o poder, analisando jilmes.
As ponderacoes acima sao algumas possibilidades que
poderiamos argumentar, considerando que Foucault nao prop6s a
aplicacao dos seus principios somente para os enunciados verbais
{falados e escritos), e tambem para justijicarmos a mclusao da teoria
arqueologica na analise dos discursos de cunho imagetico, particularmente
nosfilmes.™ Embora sejam ponderacoes bastante pertinentes, e que
por si bastariam para justificarmos tal intento, pois o proprio
Foucault assim o fez, um problema se afigurou no percurso da
leitura dos seus escritos.
No primeiro capitulo de A Arqueologia do saber, Foucault "coloca
em suspenso" varias abordagens ja tradicionalmente consagradas
na analise dos textos e documentos, dentre as quais figuram o livro
e a obra. Em determinada passagem do livro, esse teorico (1997, p.
25) faz a seguinte afirmagao: "mas, sobretudo, as unidades que e
preciso deixar em suspenso sao as que se impoem de maneira mais
imediata: as do livro e a da obra". No capitulo citado ha Lima reflexao
de Foucault que, num primeiro momento, pode levar a conclusao
de que ele tenha eleito determinadas modalidades da linguagem
para tratar do enunciado. Foucault argumenta:
Uma vez suspensasensas fomias imediatas de continuidade Q'eferindo
-se tamb^m, ao livro e a obraj todo um docnEnio encontra-se, de t'<lto>
liherado. Trata-.se de um donrinio imenso, mas que se pode defintr: e
constitufdo pelo conjuntode todos os enunciados efetivos (fpier tenl'am
sidofalados on escritos), em sua dispersdo de aconiecimentos^e nainstai10111
""' Deleuze (1983, lf)S5, 15J!)S) e unt dos autores que estuduu o metodo arqueoloj* 'propondo-o na analise lihnlca. No Brazil, Salmu Tarinus Muchail (aoOsi) tsimliem reco1
a teoriii ai-qut^ologla para a anahse de nm lllrne.. Na utualidade deve hiiver, certain^outros trabaihos nesta ctire^fio de pesi[Liisa.
(ICO,
ri-eunte,
248 FOUCAULT E OS DQMINIOS DA LJNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
propria de cada uin. Antes de se octipar, com toda a certeza, de mna
ciencia, on de romances, on de discursos politicos ou da obra de urn autor,
ou mesmo de um Livro, o material que temos a tratar em ma neutralidade
micial, e umapopulafao de acontecimentos no espafo do discitrso emgeral.
Aparece, as.sim, oprojeto de uma descncao dos acontedmentos discursivos
como hoiT/,onte para a busca das unidades que .se formam (FOUCAULT,
1!>97, p.30, grifo nosso).
Deter-nos-emos nessa citacSo, procurando abstrair algumas
ponderayoes, pois foi principalmente ela que suscitou a duvida sobre
a possibilidade de Foucault ter proposto na analise a restricao aos
enunciados escritos e falados.
Essa passagem nao pode ser vista separadamente do contexto
ao qual esta sendo enunciada. Isso porque ele a destaca logo apos a
Introducdo de A Arqueologia do saber, na parte II que se intitula, As
Regtdandades discursivas, na qual ele faz uma apresenta?ao de um
dos capitulos que compoem essa parte do livro denominada As
unidades do discurso. Sendo assim, Foucault apresenta, logo no inicio
dessa obra, o que seriam as regularidades discursivas (objetos,
modalidades enunciativas, conceitos e estrategias). Entretanto, antes
de apresenta-las, descreve algumas possibilidades teoricas ja
consagradas de estudos sobre o discurso, distinguindo-as das
regulandadesque ele esta sugerindo no seuprojefo arqueologico. Nesse
contexto e que se insere a citacao de Foucault sobre os enunciados
escritos e falados.
Se Foucault parte do principio de que as unidades do livro e
da obra precisam ser "colocadas em suspense", entendemos que ele
apontou para a possibilidade do enunciado nao surgir apenas dentro
de um livro e, tampouco, dentro da obra de um deterininado autor, mas
tambem, em outros suportes que nao somente esses. No entanto,
compreendemos, tambem, que, se o livro remete a uma forma que
compoe a escrita e a oralidade, Foucault igualmente "coloca em
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 249
suspense" essas materialidades unicas de pronunciamentos
discursivos. Se assim for, Foucault "colocou em suspense" os
suportes textuais que se apresentam apenas na forma da escrita e
da oralidade. Contudo, ele sugere que a analise se volte para os
discursos, que, obviamente, comportam tambem os enunciados
advindos dessas modalidades de linguagem.
Sendo assim, no contexto em que essa cita^ao se insere,
pareceu-nos que ele inicia uma discussao sobre texto e discurso, e nao
propriamente sobre a escrita e a oralidade, procurando justificar seu
posicionamento frente ao discurso, e nao propriamente ao texto
enquanto livro e obra, ja que sao essas ultimas instancias que ele
esta colocando em suspense.
Talvez a discussao sobre discurso e texto se justiflque na
passagem acima, pois, na continuacao da mesma citacao, Foucault
argumenta que o material que temos a tratar em sua neutrahdade initial,
e uma populacao de acontedmentos no espaco do discurso emgeral. Nesse
sentido, Foucault delimita um lugar de atua9ao, qual seja, o espaco
do discurso em geral. Esse espafo nao e restrito, ao contrario, ele e
bastante abrangente, porque e o espaco que compoe os discursos.
Desse modo, ele sugere ao analista que neutralize inicialmente um
pre-conceito, inclusive teorico, diante do material a ser tratado, pois,
"antes de se ocupar, com toda a certeza, de uma ciencia, ou de romances, ou
de discursos politicos ou da obra de um autor, ou mesmo de um livro , o
analista tern que observar "o material" a ser tratado "em sua
neutralidade imcial", pois, para ele, o material discursive se encontra
inserido em "uma populacao de acontedmentos no espaco do discurso em
geral'. Assim, Foucault novamente insere uma meta a ser alcancada,
qual seja, descrever a dispersdo dos acontedmentos enunciativos. Portanto,
uma das compreensoes que se pode fazer dessa passagem e que o
analista deve descrever acontecimentos discursivos, neutralizanao
na identificacao enunciativa as form'as materials.
250 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
A passagem acima sugere tambem que, embora Foucault tenha
delimitado o dominio da analise, sendo esse "constituido pelo
conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sidofalados
ou escritos}", ele nao colocou um ponto final depois do parentese,
pois atribuiu uma condifao as formas escritas e faladas: "em sua
dispersao de acontecimentos e na mstanaa prdpria de cada um', Nesse
sentido, a analise do discurso necessariamente nao precisa se ater
aos enunciados falados e escritos, uma vez que a dispersao
enunciativa, que e algo intrinseco a teoria, 'induz ao encontro de
outras instancias materials.
Diante da proposta da teoria arqueologica, inserimos alguns
questionamentos: - de que modo se pode observar a dispersao nos
enunciados acontecimentos, se considerarmos somente as linguagens
faladas e escritas? Sera que, diante de um metodo tal qual esse
autor propoe, o enunciado estaria circunscrito a fala e a escnta? Se
assim for, como poderiamos analisar os discursos advindos, por
exemplo, das obras esteticas dos seculos XV e XVI? Teriamos que
desconsiderar todos os saberes que ai figuraram? Ou, entao, teriamos
que descrever o que os pintores produziram, mas nao poderiamos
fazer a analise do que eles representaram nos desenhos, nas figuras,
nos quadros, nas pinturas arquitetonicas? E quanto as
representac5es advindas das fotos, das propagandas, das tabelas,
dos numeros, dos filmes?
As ponderacoes acima, juntamente com a observaca"o das
diversas materialidades as quais Foucault recorreu em sens textos,
tal vez possani justificar alguns desses questionamentos. Se Foucault
realmente tivesse restringido a analise enunciativa somente a escrita
e a oralidade teria deixado explicito na Arqmologia do Saber - na
qual propoe um metodo que tern por principle a transformacao, a
dispersao e a diversidade - a limitacao a determinadas formas delinguagem.
FOUCAULT E OS DOHINIOS DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 251
Mas, entao, por que ele registrou, embora entre parentese, em
uma obra tao importante como A Arqueologj.a do Saber, que a analise
recairia nos enunciados escritos e falados?
Para compreendermos o posicionamento de Foucault sobre
isso, amparamo-nos em Deleuze (1998), para quern e precise
observar o dominio empirico ao qual Foucault se ateve para
assentar o seuprojeto arqueologico. Vejamos, entao, aspectos desse
dominio.
As visibilidades enunciativas
Para Foucault:
Por um lado, e precise, empiricamente, escolher um dominio em queas relacoes corratn o risen de sec numerosas, densas e relativamentefaceis de descrever: e em que outra regiao os acontecimentosdiscursivos parecem estar mais ligados uns aos outros, e segundo
relates mais decifraveis, senao nesta que se designa, em geral, pe!otermo dencia? (FOUCAULT, 1997, p.31-, griib nosso).
Observa-se que Foucault escolheu o dominio das aenaas para
justificar o projeto arqueologico. Entretanto, sens estudos nao
abordam "tematicas comuns", porque "falam" do saber, do poder e
dos cuidados de si. Essas escolhas "tematicas" foram premeditadas
por ele. Para o teorico:
[...] como se dar o maximo de chances de tornar a apreender, em umemiHciado, nao o momento de sua estrutura formal e de suas leis deconsti^ucilo, mas o de sua existencia e das regras de sen aparecimento,a menos que nos dinjamos a grupos de discursos pouco fornializados,onde os eiuinciados nao paregam se engendrar necessariamentesegundo regra.s de mera sintaxe? (FOUCAULT, l f><>7, p.34).
252 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Desse modo, a obra de Foucault & voltada para um saber no
dominio cientifico, mas ele sobrepoe esse saber aos enunciados ainda
pouco formalizados pela ciencia.
Poderiamos considerar que, no dominio cientifico,
particularmente no campo das cie'ncias humanas a qual Foucault
se deteve, muitas vezes os enunciados se apresentam somente nas
modalidades da escrita ou da oralidade, o que justifica o fato de ele
ter trabalhado com enunciados advindos dessas formas de
linguagem. Mas como ele trabalhou com discursos pouco
formalizados pela ciencia, como, por exemplo, a loucura, a prisao, a
sexualidade, podemos concluir que ele recorreu a textos que se
diferenciam das modalidades acima.
E interessante observarmos isso, uma vez que parece haver
uma certa contradicao em Foucault, pois, de um lado, nas praticas
empiricas das suas pesquisas, ele recorreu a materialidades que nao
se dirigem somente a escrita e a oralidade, no dominio teorico, ou
seja, no momento de propor a teoria arqueologica dos saberes
discursivos (condensada na ': Arqueologid}; de outro, restringiu os
objetos a serem analisados pela arqueologia, acolhendo em seu
metodo somente enunciados efetivos que seriam falados ou escritos.
Deleuze oferece uma importante luz a essa aparente
contradlgao:
A Arqueologia na"o era apenas um Hvro de reflexao ou de metodo
geral - ela era uma orientate nova, como que uma nova dobragem que
ia retroagir sobre os livros anteriores. A arqueologia propunha a
di.stin^ao de duas especies de formayoes praticas, umas 'discursivas1
ou de enunciados, outras 'nao disatrsivas ou de meios. £...] Aquilo
que a 'Arqueologia reconkecia- mas nao tlesignava ainda senao pela
riegativa - como meios jiao-discursivos, encontrara em 'Vigiar e Punir'
a forma positiva que atravessa a obra de Foucault a forma do visivel,
naquilo em que ele se diferencia da forma do enuncidvel. £...] Existe umapressuposifdo rectyroca entre as duas formas. E,, no entanto, nao exists
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE 253
forma, comum, nem exists conformidade, mm mesmo correspoiidenda. Sera
neste ponto que 'Vigiar e Punir' ira colocar os dois problemas que a
'Arqueologia' nao hama podido colocar porque seficara pelo Saber e pelo
primado do ennnciado dejitro do saber (DELEUZE, 199S, p.54; 56-57,
grifo nosso).
Um dos principios arqueo!6gicos, como vimos, diz respeito a
jvrmafdo das estrategias (teoricas e temdticas). Nas estrategias te6ricas
e tematicas, o saber 6 composto por dois campos: um discursivo e
outro nao discursivo. Assim, nesse texto, no campo discursivo, ele sugere
que se observe o dominio da ciencia, composto basicamente por
representacoes verbais (orais e escritas). Ja, no campo nao discursivo,
ele propoe a observagao de dominies nao cientificos, nos quais se
evidencia com maior facilidade os enunciados advindos de outras
formas de linguagem.
Assim, antes mesmo de descrever o mtitodo, ele havia feito
"experimentos" ou "verificacoes experimentais", tentando observar,
tambem, de que modo os enunciados se revelavam nas suas
pesquisas, o que Ihe permit!u concluir que era possfvel trabalhar
empiricamente com diversas "formas" enunciativas. Portanto, ate a
publicacao desse livro, Foucault assumiu um posicionamento frente
aos seus estudos, observando a ciencia como saber, mas aplicou seus
principios a um corpus ou a um arquivo discursivo, composto por
materialidades ainda pouco trabalhadas pela ciencia, como pudemos
observar no legado da sua obra.Contudo, como pondera Deleuze, a 'Arqueologia nao era apenas
um livro de reflexao ou de metodo geral - ela era uma orientacao
nova, como que uma nova dobragem que ia retroagir sobre os hvros
anteriores". Sendo assim, Foucault estava sugerindo um modelo
"novo" de analise e implantando fundamentos e principios tambem
"novos" e desconhecidos pela ciencia. Na funcao, entao, nao somente
de um pesquisador, mas tambem de um teorico que tern a
254 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
responsabilidade de "nominar" os principios que formularia uma
teoria, ele atribuiu ao saber nao cientifico (representado por meio de
linguagens diversas) o "nome" (se e que poderiamos designar assim)
dtformacoes nao discursivas.
Como explicita Deleuze, foi devido a isso que Foucault
explicitou que os enunciados que nao fossem falados on escritos e
que nao estivessem sob a otica da ciencia, "a 'Arqueologid reconheda
Qx>is as proprias praticas de Foucault nos textos anteriores a esse
revelavam essa existe'ncia] - mas nao designava ainda, senao pela
negativa - como meios nao-discursivos [Tormacoes nao discnrsivas]".
Portanto, em suas andlises praticas, Foucault trabalhou com
enunciados verbals e n&o verbais. Ou, o que Deleuze chamou de
formas do visivel e do enuncidvel. Entretanto, teoricamente, segundo
ainda Deleuze, a "Arqueotogia' nao havia podido colocar porque se
Jicara pelo Saber epelo primado do enunciado dentro do saber".
Compreendemos que foi depois da 'Arqueologia', quando as
pesquisas e o projeto arqueologico de Foucault ja haviam avanpado,
que efetivamente ele assumiu o posicionamento dos saberes advindos
das formacoes discursivas e das formacoes nao discursivas, como
componentes unicos de um mesmo enunciado. Ou, entao, das duas
formas de analise: a do visivel e a do enuncidvel, como possibilidades
de se articularem numa mesma proposta analitica. Deleuze
argumenta que, em algumas obras posteriores a Arqueologia", e
possivel observar que Foucault demonstrou a forma positiva que
atravessa a obra Qle todos os seus textos]]: aforma do visivel, naquilo
em que ele se diferencia da forma do enuncidvel.
Avaliamos, tambem, que o objetivo de Foucault na Arqueologia
do saber foi o de fundamental* os principios que instauraram a teoria
arqueologica e nao o de demarcar e detalhar as possiveis formas de
~' Por exempli), Into nan e um cackimbo, escrito origuiitltnente em 1073, on Vigmr e Puna;publicado em 1075.
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE 255
linguagem em que os enunciados se evidenciariam, pois isso ele ja
havia feito nos livros anteriores. Desse modo, na obra em que ele
expoe o metodo, Foucault nao analisa nenhum tipo de materialidade,
porque seu objetivo 6 outro. Entretanto, ele sinaliza nessa obra outras
possibilidades de analises arqueol6gicas com as quais se poderia
trabalhar, sugerindo materialidades que se distinguissem da escrita
e da oralidade. Nesse sentido, Foucault (1997, p.218-221) faz alguns
questionamentos importantes, e suas repostas tambem nao sao
menos significativas:
Para analisar um quadra £...3 a avqueologia £...] pesquisaria se o
espa<~o, a distancia, a profundidade, a cor, a luz, as proporcoes, OK
volumes, on contornos, nao tbram, na epoca considerados, nomeados,
enunciados, conceitualizailos em uma pratica discitrsiva; e o saber
resultante dessa pratica ein formas de ensino e em receitas, mas tambem
em processos, em tecnicas e quase no proprio gesto do pintor. | ...]
Seria preciso mostrar que, ern pelo menos uma de suas dimensoes, ela
e uma pratica discursiva que toma corpo em tecnicas que se deveria,
em seguida, transcrever na materialidade do espaijo. j^..-3 Pode-se
responder agora, a pergunta que se propunha hii pouco: a arqueologia
so se ocupa das ciencias e nunca passa de uma analise dos discursos
cientfficos? E responder duas vezes nao. O que a avqueologia tenta
descrever nao e a cienuia em sua estrutura especltica, mas o dormnio,
hem diferentc do saber.
Julgamos que a resposta de Foucault e esclarecedora, no
sentido de se compreender que ele esta propondo a analise
arqueologica direcionada nao somente para a ciencia e aos
enunciados escritos e falados, mas tambem, aos discursos advindos
dos saberes e que aglutinam enunciados com materialidades distintas.
Deleuze (1998) e Roberto Machado (1982), dentre outros,
fazem uma analise dos textos de Foucault, reconhecendo que, desde
o inicio dos seus escritos, ele trabalhou com duas possibilidades de
formas enunciativas: "o visivel e'o enunciavel". Vejamos o
256 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA L1NGUAGEM: PISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
posicionamento de Deleuze, quando ele expoe sua compreensao
sobre a forma enunciativa:
A forma, e dita em dois sentidos: elaforma on organixa materias; eiaforma
oufmahzafunfoes, da-thes objetivos. Nao so a prisao como tambeni o
hospital, a escola, a caserna, a ofidna, sdo materiasforniadas. Punir e
urna funcao formali/,ada, como o sao tratar, educar, disciplinar, fazer
trabalhar. O fato e que ha uma especie de correspondenda, se hem qne a.s
duas formas sejam irreduti'veis f_..J. Como entao a coadaptafao? E
que nospodetnos conceber puras materias e purasfuncoes, desde quefacamos
a abstrafao dasformas que a elas se encarnam (DELEUZE, 1998, p.5G-57, grifo nosso).
Essa citacao esclarece que e possivel conceber as duas fbrmas
de analise para um mesmo enunciado, ou seja, a forma de uma
materia: substancia enunciativa, e a forma de como a materia cumpre
uma funcao: 3. funcao existendal
A materia e a fimpdo podem ser percebidas na defmicao do que
e o enunciado. Para Foucault:
O enunciado C--0 * uma fuiifao de existencia que pertence,
exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em
seguida, pela analise on pela intiilfao, se eles Tazem sentido'ou nao,
segiindo que regra se sucedem ou se justapoem, de que sSo signos, e que
especie de ato se encontra reatizado por sua formulofao (FOUCAULT,
, p. 99, grifo nosso).
Parece-nos evidente, portanto, que Foucault procurou fazer e
proper a analise das materialidades enunciativas, concebendo as
duas formas {verbais e nao verbais) como constitutivas de um
mesmo enunciado. Ou, como analisa Deleuze, coadaptando-o, desde
quefafamos a abstrafao dasformas que a elas se encarnam. Se
fizermos a abstra5ao das formas, o que fica e o conteudo, que se
repete. Foucault afirma:
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA UNGUAGEM: DISCURSOr PODER, SUB3ETIVIDADE 257
Uma informacao dada pode ser retransmitida com outras palavras,
com uma sintaxe simpliticada, on em um codigo convencionado: se o
contendo informativo e as passibtlidades de utilizafao sdo as mesmas,
poderemos dizer que ambos os casos constituem o mesmo enunciado. Alnda
ai, nao se trata de um criterio de individualixagao do enunciado, mas
de sen principle de variafdo (FOUCAULT, 1997, p.119- 120 grifo
nosso).
Em todo o Capitulo III da Arqueologia do saber, denominado
O Enunciado e o Arqurvo, Foucault oferece varies exemplos de
enunciados que contem formas materials distintas, mas que
cumprem a mesma funpao ou que poderiam ser percebidos com os
mesmos conteudos informativos e as mesmas possibilidades de utilizafao
na anilise. O teorico (1997, p. 120, grifo do autort negrito nosso)
reafirma: A constancia do enunciado, a manutenfao de sua identidade
atraves dos acontecimentos smgulares das enunciacoes, sens desdobramentos
atraves da identidade dasformas, tudo isso efuncdo do campo de utiliza$ao
no qual ele se encontra insendo.O campo de utihzacao diz respeito a um dos principios para a
identificacao enunciativa (campo associado] e, como esclarece
Machado (1982, p. 14, grifo nosso), ele e sempre instruido pelos
documentos pesquisados. Assim, os documentos eleitos ou os textos
acolhem os enunciados, e como vimos, esses nao advem somente do
saber teorico, e tampouco estariam unicamente vinculados as
materialidades escri-tas e orais. Por meio dessa teoria, observa-se qae
sao tambem as diversas formas enunciativas que compoem os
discursos, que indicam a "selegao" as quais o analista tera que fazer.
Nao ha duvida, portanto, que todas as formas de linguagem,
particularinente a linguagem fflmica, pode vir a ser eleita na analise
arqueologica. Por meio das reflexoes aqui realizadas, pudemos
demonstrar que Foucault nao prop6s a aplicacao dos seus principios
somente para os enunciados verbais '(falados e escritos). Embora
25S FQUCAULT E OS DOM1NIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
em algumas passagens da sua obra, e particularmente no texto A
Arqueologia do Saber, essa possibilidade possa ser assirn interpretada,
e possivel concluir que ele se ateve a estudar, tambem, as demais
formas de linguagem. Fica aberta a possibilidade de se recorrer a
teoria arqueologica, tambem como subsidio a analise dos discursos
nao-verbais e verbo-visuais, como, por exemplo, a linguagem fTlmica,
pois o que se constata e que Foucault ofereceu indicios bastante
pertinentes para tal intento.
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