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As fotonovelas surgem na Itália, em meados da década de 1940. Atribui-se sua origem, dentre outros, aos resumos de filmes – combinados com fotogramas dos mesmos – veiculados na mídia impressa. Originalmente vinculadas a outro tipo de mídia – o cinema –, as fotonovelas tornam-se, posteriormente, um novo meio para a veiculação de histórias originais. Já a fotorreportagem é uma das especificidades do fotojornalismo. O fotojornalismo moderno tem origem nas revistas ilustradas alemãs das décadas de 1920 e 1930. À fotorreportagem não interessava a imagem isolada, mas uma sequência de imagens (fotografias) com o intuito de obter uma lógica narrativa. Uma fotorreportagem deveria ter começo e fim. Este artigo traça um paralelo entre os conceitos de fotonovela e de fotorreportagem.
Citation preview
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Fotonovela e fotorreportagem: a relação
texto/imagem e a ideia de narratividade
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Angelo Mazzuchelli Garcia; Escola de Belas Artes da UFMG, Belo Horizonte, MG; E-mail: <[email protected]>.
Resumo
As fotonovelas surgem na Itália, em meados da década de 1940. Atribui-se sua origem, dentre outros, aos resumos de filmes – combinados com fotogramas dos mesmos – veiculados na mídia impressa. Originalmente vinculadas a outro tipo de mídia – o cinema –, as fotonovelas tornam-se, posteriormente, um novo meio para a veiculação de histórias originais. Já a fotorreportagem é uma das especificidades do fotojornalismo. O fotojornalismo moderno tem origem nas revistas ilustradas alemãs das décadas de 1920 e 1930. À fotorreportagem não interessava a imagem isolada, mas uma sequência de imagens (fotografias) com o intuito de obter uma lógica narrativa. Uma fotorreportagem deveria ter começo e fim. Este artigo traça um paralelo entre os conceitos de fotonovela e de fotorreportagem.
Palavras-chave: relação texto/imagem, fotonovela, fotorreportagem, fotojornalismo, design editorial, design gráfico.
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A fotonovela
O sucesso popular que o cinema alcançou no início do século
XX deu origem, na Itália e na França, a adaptações de filmes
para a mídia impressa. Essas adaptações combinavam um
texto/sinopse do filme com imagens retiradas dos fotogramas
do mesmo. Um fotograma, ou quadro (em inglês, frame) é uma
imagem fotográfica – a menor unidade física de um filme. É a
projeção em sequência dos fotogramas (numa determinada
velocidade) que dá a impressão da imagem em movimento. Na
década de 1930 e início da década de 1940, esses resumos
ilustrados levavam a localidades distantes dos grandes centros
(e carentes de salas de exibição) as produções
cinematográficas da época. Os resumos ilustrados serviam
também para aqueles que tinham acesso às salas de exibição
reviver as emoções de assistir os filmes.
Blucher Arts ProceedingsSetembro de 2015, Número 1, Volume 1
253
Algumas dessas adaptações eram diagramadas tal como as
páginas de uma revista ilustrada: a simples justaposição do
texto/sinopse do filme e de imagens oriundas dos fotogramas.
Em outras adaptações, como as da revista italiana “Cinevita”
(fig. 1), imagens retiradas dos fotogramas eram dispostas em
quadros sequenciais; a cada quadro correspondia uma parte
do texto (juntamente com uma legenda interna ao quadro).
Fig. 1: Revista Cinevita (Itália / 1942). Fonte: original digitalizado.
As adaptações de filmes para a mídia impressa (que
continuaram sendo produzidas ao longo do século XX) são
254
consideradas precursoras de um grande fenômeno da cultura
de massa – a fotonovela – forma de narrativa que combina
texto e imagem fotográfica.
A fotonovela surgiu, efetivamente, de uma intuição pessoal de
Domenico Del Duca, um dos proprietários de uma pequena
editora em Milão, a Universo1. Além de editor, Del Duca era
autor de romances populares sentimentais; e em 1935, lançou
um fumetto (história em quadrinhos) de grande sucesso:
"Intrepido". A boa aceitação tanto dos romances sentimentais
quanto da revista em quadrinhos sugeriu a Del Duca que uma
forma híbrida poderia ser igualmente bem aceita. Outra fórmula
bem sucedida, também importante na genealogia das
fotonovelas, foi o folhetim – histórias publicadas em episódios.
Os folhetins italianos eram melodramáticos, contendo apelos
sentimentalistas e antagônicos: a luta do bem contra o mal.
Assim, em 29 de junho de 1946, a Universo lança uma revista
intitulada “Grand Hôtel”, contendo romances sentimentais em
quadrinhos. Em pouco tempo, os desenhos – realistas – seriam
substituídos por fotografias.
O êxito da novidade foi enorme e imediato. Diversos títulos
foram lançados por outras editoras italianas. Segundo Anna
Bravo (Tradução nossa): “Em um curto espaço de tempo, as
fotonovelas se instalaram na topografia cultural das italianas e
dos italianos” (Bravo, 2011: s. p.). As fotonovelas atingiam
grandes tiragens; e o fenômeno se difundiu por outros países,
especialmente na França2; alcançando grande sucesso
também no Brasil.
1 O irmão, Alceo Del Duca, era sócio de Domenico.
2 As fotonovelas ainda são produzidas, atualmente, na Itália e na
França.
255
Fig. 2: Revista Grand Hôtel (Itália / 1963). Fonte: original digitalizado.
Devido à similaridade, pode-se dizer que o formato consolidado
(tradicional) das fotonovelas (Fig. 2) permaneceu
conceitualmente atrelado a uma de suas origens, os resumos
ilustrados de filmes. O layout das páginas ou, de modo mais
abrangente, o processo de montagem das fotonovelas era
quase invariável: os quadros apresentavam pouca ou nenhuma
diferença de tamanho entre si (de modo geral, eram
organizados por uma estrutura modular). Às vezes, um ou
outro quadro era maior que os demais – mas isso parece se
dever unicamente a fatores de ordem espacial/composicional –
não a fatores expressivos, dramáticos. O texto que se segue foi
256
retirado de uma espécie de manual de instruções de uma
editora para montagem de fotonovelas3:
A fotografia ampliada deve ser selecionada em base do critério da mais dramática e mais sugestiva. (...) O tamanho das fotos não será arbitrário e sim corresponde à redução mais conveniente das fotos originais (Apud Habert, 1974: 80).
É possível fazer uma analogia entre a montagem de uma
fotonovela e a montagem cinematográfica: cada fotografia de
uma fotonovela seria correspondente a um plano
cinematográfico. Do ponto de vista físico, o plano é uma
sequência de fotogramas. Tecnicamente, o plano é o tempo
decorrido entre o momento em que a câmera dispara e o
momento em que ela para, ou seja, é o trecho de película que
fica entre os cortes (o corte corresponde ao momento da
passagem de um plano a outro). Assim, a montagem
cinematográfica é uma articulação linear de planos numa
determinada ordem4; por analogia, a montagem de uma
fotonovela seria a articulação linear de fotografias numa
determinada ordem.
Marcel Martin distingue dois tipos de montagem
cinematográfica: a montagem narrativa e a montagem
expressiva (embora não haja um limite bem delineado entre
ambas). A montagem narrativa, segundo Martin, é aquela que
“consiste em ordenar segundo uma sequência lógica ou
cronológica – tendo em vista contar uma história – vários
planos”. Já a montagem expressiva é aquela que busca um
efeito dramático por meio de um “choque de duas imagens”
(Martin, 2005:167).
3 O texto em questão faz parte de um resumo, elaborado por
Angeluccia Habert, do conteúdo de um original datilografado intitulado
“Instrucciones para el armado de las historietas fotográficas”. As
instruções foram elaboradas na Argentina; no Brasil, foram utilizadas
para orientar a montagem de fotonovelas da Editora Abril.
4 É um reducionismo tal definição de montagem cinematográfica, mas
é conveniente, dados os objetivos deste artigo
257
Note-se no trecho do manual de instruções, reproduzido acima,
que o critério de dramaticidade se refere às fotos –
individualmente –; e o tamanho das mesmas vincula-se “à
redução mais conveniente”: não se faz referência à
dramaticidade relativa ao conjunto – à montagem. Apropriando-
se da classificação proposta por Martin, a montagem de uma
fotonovela tradicional é narrativa, não expressiva – não é
considerada a possibilidade de se obter efeitos dramáticos por
meio de um choque imagens. Uma fotografia de determinado
tamanho seguida de outra bem maior e que não estabelecesse
um nexo imediato com a anterior, por exemplo, poderia
provocar uma fratura no pensamento do leitor, tornando mais
intensa a experiência de leitura e compreensão.
No entanto, o entendimento das editoras era de que as
fotonovelas deveriam contar a história de modo a garantir a
fácil absorção pelo público: uma montagem mais elaborada,
baseada em fatores dramáticos, não coaduna com um produto
destinado às massas. Desde a origem, a fotonovela foi
concebida como um formato destinado à audiência popular: tal
público não se interessa por apuros dramático/visuais, apenas
em consumir o conteúdo mediante a forma consagrada. Esse
foi o ingrediente fundamental para o sucesso das fotonovelas.
Assim, as fotonovelas tradicionais parecem ser nada mais do
que uma continuidade do expediente de oferecer,
sequencialmente, imagens retiradas de fotogramas para
sintetizar a história de determinado filme (como os resumos da
revista “Cinevita”). A diferença é que a maioria das fotonovelas
tinham roteiros específicos; e os diálogos eram incluídos nos
quadros. Em diversas fotonovelas, inclusive, os quadros
sugerem uma tela – e, indiretamente, um fotograma (fig. 3). É
justo relembrar que as fotonovelas também têm em sua
genealogia os fumetti, histórias contadas em quadros.
258
Fig. 3: Mais acima: Revista “Intervalo TV” (Brasil / 1965); Acima:
Revista “Sétimo Céu” (Brasil / 1967). Fontes: originais digitalizados.
Sintomaticamente, as adaptações ilustradas de filmes
publicadas ao longo do século XX incorporam o formato das
fotonovelas, passando a incluir os diálogos no interior dos
quadros.
Em algumas outras adaptações, nota-se um interesse em
explorar a página impressa de modo a obter mais dinamismo
(talvez uma tentativa de alusão ao ritmo cinematográfico). As
259
páginas da adaptação do filme “Embrassez la pour moi”5 (fig. 4)
mostram um layout mais expressivo, com cortes não ortogonais
e composição em diagonal, quebrando a regularidade
monótona da tradicional sucessão de quadros. A não
ortogonalidade conferiu equilíbrio entre áreas impressas e não
impressas, proporcionando uma composição visualmente mais
leve, não tão densa como a das fotonovelas tradicionais.
Fig. 4: Revista Amor Film (França / 1958). Fonte: original digitalizado.
5 Título original: “Kiss Them for Me” (com Cary Grant e Jayne
Mansfield). Exibido no Brasil como “O beijo da despedida”.
260
As fotonovelas eróticas também recebiam (recebem) um
tratamento gráfico diferenciado. A razão é simples: elas não se
vinculam diretamente à narrativa, mas ao erotismo; daí o
interesse maior pela forma. Embora a página dupla reproduzida
a seguir (fig. 5) tenha um layout mais tradicional, destaca-se
pelo uso da inflexão tipográfica (em “Che fai?”) – recurso
próprio da mídia impressa: sugere-se, por meio de um tamanho
maior de letras, uma mudança de modulação de voz. Tal
artifício não é explorado em fotonovelas tradicionais.
Fig. 5: Revista Pop (Itália / 1973). Fonte: original digitalizado.
A fotorreportagem
Fotorreportagem é uma atividade que se inclui num campo
mais amplo, denominado fotojornalismo. Em sentido lato, o
fotojornalismo é um gênero jornalístico em que a fotografia
desempenha um papel fundamental na produção da
informação. Segundo Jorge Sousa, a informação produzida
pelo fotojornalismo pode ter as seguintes formas:
das spot news (fotografias únicas que condensam uma representação de um acontecimento e um seu significado) às reportagens mais elaboradas e planeadas, do fotodocumentarismo às fotos “ilustrativas” e às feature photos (fotografias de situações peculiares
261
encontradas pelos fotógrafos nas suas deambulações). Assim, num sentido lato podemos usar a designação fotojornalismo para denominar também o fotodocumentarismo e algumas fotos-ilustrativas que se publicam na imprensa. (Sousa, 2000: 12).
Não é nosso objetivo pormenorizar e distinguir as diferentes
formas do fotojornalismo (mesmo porque tais formas são,
muitas vezes, ambíguas). Nossa abordagem é ontológica e
enfoca a fotorreportagem. Segundo um dos pioneiros do
fotojornalismo moderno, o húngaro Stefan Lorant, a
fotorreportagem “devia ter (...) um começo e um fim definidos
pelo lugar, tempo e ação” (Apud Sousa, 2000: 81). Portanto, a
fotorreportagem tem por objetivo contar uma história.
Nos primórdios da fotografia aliada ao jornalismo6, o interesse
era pela imagem única, “tendo em vista fazer chegar essa
imagem a um público, com intenção testemunhal” (Sousa,
2000: 25). Tal interesse visava à consubstanciação, nessa
imagem isolada, dos “diversos elementos significativos de um
acontecimento (...) de forma que fossem facilmente
identificáveis e lidos” (Sousa, 2000: 18). A fotografia, portanto,
era concebida como testemunho, verdade – tautologia –, afinal,
uma fotografia, como salientou Roland Barthes, “sempre traz
consigo seu referente” (Barthes, 1984: 15).
Até então, ainda não havia propriamente uma noção de
fotojornalismo. O conceito de fotojornalismo, ou mais
especificamente o de fotorreportagem, surgiu na Alemanha, na
década de 1920. A articulação texto/imagem nas revistas
ilustradas alemãs da época já não se centrava em uma
imagem isolada; o interesse incide sobre “o texto e todo o
mosaico fotográfico com que se tenta contar a estória” (Sousa,
2000: 72).
Entretanto, pode-se considerar que a primeira fotorreportagem
foi produzida alguns anos antes. Embora tenha sido uma
6 As revistas ilustradas com fotografias surgem em vários países no
final do século XIX.
262
experiência isolada, a fotorreportagem em questão foi
publicada em 1886, no periódico francês “Le Journal Illustré”
(fig. 6). Trata-se da entrevista que o fotógrafo Félix Nadar, fez
com o cientista francês Michel-Eugène Chevreul. O texto foi
combinado com uma série de doze fotografias em sequência
feitas por Paul Nadar (filho de Félix).
Fig. 6: “Le Journal Illustré” (França / 1886). Fonte: original
digitalizado.
O editorial do periódico versa sobre a dificuldade de se obter
fidedignidade em uma entrevista (Tradução nossa):
A fidelidade das histórias narradas depende de sua absoluta, matemática precisão. Uma palavra esquecida muda o significado da frase, ou até mesmo o pensamento do entrevistado, da personagem questionada.
Visando à prevenção de tal inconveniência, o editorial
apresenta a solução para “dar aos leitores uma ‘prova’ da
veracidade da conversa reproduzida”:
Em breve, como todos sabem, será possível gravar palavras humanas, por meio do maravilhoso fonógrafo7
7 O Fonógrafo foi um aparelho inventado em 1877, por Thomas
Edison, para a gravação e reprodução de sons por meio de um
cilindro. Foi o primeiro aparelho capaz de gravar e reproduzir sons.
263
Ader; assim, não haverá mais erros, não haverá mais omissões. Um jovem artista, carregando um sobrenome famoso, Paul Nadar, foi capaz de concluir com antecedência, por meio da fotografia, a tarefa do fonógrafo de gravar sons articulados.
Embora curiosa, é admirável e perspicaz a analogia que se fez
entre o som gravado e a imagem fotografada: parafraseando
Barthes, uma voz gravada também traz consigo seu referente.
O fato é que Nadar, propondo-se a explorar as potencialidades
expressivas do rosto humano, oferece a prova de que o que foi
dito é verdadeiro, como sugere outro trecho do editorial:
Paul Nadar reproduz instantaneamente todas as atitudes e, por assim dizer, todos as fisionomias do famoso cientista. Dependendo das questões abordadas por ele, seu rosto ia se transformando, o ritmo, a velocidade da fala se transformava.
A experiência anacrônica de Nadar contém o gérmen do
conceito de fotorreportagem. Mas foi o jornalismo alemão do
início do século XX que concretizou a ideia de picture-story, ou
de photo-story – a reportagem fotográfica com um começo e
um fim, conforme a definição de Lorant, que foi editor de uma
das mais importantes revistas alemãs da época, a Münchner
Illustriert Presse. Em outro periódico alemão do mesmo
período, Rheinsberger Zeitung: Illustrierte Beilage, foi publicada
a reportagem intitulada “O diamante negro”, sobre a mineração
de carvão8 (fig. 7). Embora não haja um sequência visual de
quadros, o conjunto – um mosaico fotográfico – cumpre o
objetivo de descrever o processo de obtenção da substância.
8 O carvão mineral (importante fonte energética na era da Revolução
Industrial) era também conhecido como diamante negro, pois é rico
em carbono, a substância do diamante.
264
Fig. 7: Rheinsberger Zeitung: Illustrierte Beilage (Alemanha / 1926).
Fonte: Sistema de informações de jornais da Biblioteca Estatal de
Berlim <zefys.staatsbibliothek-berlin.de>.
E a natureza narrativa das fotorreportagens parece ter sido
bastante adequada às reportagens policiais. Uma publicação
do gênero, do início do século XX, o periódico francês
“Détective”, dava às fotorreportagens um caráter semiliterário.
Numa delas, intitulada “O vampiro de Kent” (fig. 8), o texto em
primeira pessoa do repórter Ashton Wolfe sugere um conto
policial. O trecho inicial é reproduzido a seguir (tradução
nossa):
Estiquei mecanicamente o braço em direção ao aparelho de telefone.
— B.r.r.i.n.g.
Eu apertei o receptor ao meu ouvido. Tênue e distante, a voz do meu amigo, o Inspetor Wedgewood, da Divisão Especial da Scotland Yard, articulou:
— Cara, como você demora a atender. Há uma eternidade que eu chamo você.
Olhei para o mostrador luminoso na mesa de cabeceira: eram apenas cinco horas!
— Um caso muito interessante, continuou meu interlocutor, cuja voz era muito mais alta agora. Em uma hora todos os policiais deixarão Kent para uma batida nas matas e florestas circundantes, com uma matilha de cães de caça [sic]. Ivy Godden, uma amável garota de
265
doze anos, desapareceu misteriosamente, ontem. A menina é muito conhecida no país por causa da voz requintada. Ela canta todos os domingos na igreja de Uper Rupkinge. Há temores de que ela tenha sido adicionada à lista de vítimas do vampiro Kent. Se, infelizmente, nossos medos forem justificados e encontrarmos o corpo da pobre moça, os cães serão imediatamente lançados no rastro do assassino infame. Vai ser uma caçada implacável ao homem e, se isso lhe faz feliz, eu vou levá-lo. Em dez minutos, estarei aí em sua casa. Esteja preparado.
Fig. 8: Jornal Détective (França / 1931). Fonte: original digitalizado.
Essa fotorreportagem também não traz uma sequência visual
de quadros, mas o mosaico fotográfico descreve – e reverbera
a dramaticidade do texto: a foto da vítima sobre um fundo
neutro, no topo da página; a ameaçadora imagem recortada –
em meia página – dos cães, logo abaixo; a sucessão de
quadros (mostrando o rebuliço na localidade) que, por
contraste visual, destaca a imagem recortada do pai da garota.
Conotações de uma fotorreportagem
O grau de excelência da fotorreportagem, em termos da
desejada credibilidade jornalística, decorre do fato de a
fotografia ser considerada um espelho do real. Em meados da
década de 1850, a fotografia já se “beneficiava (...) das noções
de ‘prova’, ‘testemunho’ e ‘verdade’, que à época lhe estavam
266
profundamente associadas” (Sousa, 2000: 33). Alguns teóricos
contemporâneos9 consideram que a evolução no campo da
fotografia permitiu “a representação imagética da realidade de
uma forma cada vez mais perfeita” (Sousa, 2000: 15). A
verdade da fotografia é incontestável: é o trunfo da reportagem
que se beneficia de tal recurso.
Essa incontestabilidade da fotografia é corroborada por
Barthes: por ser uma “mensagem sem código”, a fotografia só
pode denotar; ela é não mais do que o “próprio conteúdo
analógico” (Barthes, 1990: 13). Entretanto, Barthes observa
que há um tipo de fotografia que pode também ser conotada:
justamente a fotografia jornalística.
Uma fotografia jornalística pode ser conotada de diversas
maneiras, pois é “um objeto trabalhado, escolhido, composto,
construído, tratado segundo normas profissionais, estéticas ou
ideológicas” (Barthes, 1990: 14). Contudo, o principal artifício
para se conotar a fotografia jornalística é exatamente a
possibilidade de justaposição da mesma a um texto (título,
legenda, artigo) – afinal, a fotografia jornalística não é uma
estrutura isolada: Barthes observa que há uma coexistência de
duas mensagens: o denotado (o análogo fotográfico) e o
conotado (que se estabelece por meio do texto justaposto).
Em 1964, a revista “O Cruzeiro” publicou uma fotorreportagem
sobre a caça de marrecões, no Vale do Jacuí (RS) (fig. 9).
9 Sousa cita Gernsheim, Geraci, e Hoy.
267
Fig. 9: Revista O Cruzeiro (Brasil / 1964). Fonte: original digitalizado.
268
À época era permitida a caça desse animal na região10. O texto
trata a caçada como uma atividade arrojada e corajosa: o teor
dá às imagens uma conotação positiva e heroica: um trecho da
reportagem afirma que os marrecões mortos “são os troféus
conquistados como prêmios aos tiros certos”. Se as mesmas
fotografias fossem justapostas a um texto de teor negativo (em
relação às imagens) – evocando valores de proteção
ambiental, por exemplo –, a conotação seria diametralmente
oposta: as fotografias não mais seriam vistas como
representações de gestos heroicos.
E a conotação nas fotorreportagens pode ser inconsciente:
Jorge Sousa observa que as histórias contidas nas
fotorreportagens alemãs do início do século XX eram contadas
“não raras vezes interpretando-se o acontecimento,
assumindo-se um ponto de vista (...), mesmo que não se desse
conta disso” (Sousa, 2000: 72-73) (grifo nosso).
Fotonovela e fotorreportagem
Como produto cultural, toda fotonovela exige uma produção
(similar a uma produção cinematográfica): necessita (além das
fotografias) de roteiro, direção, cenários, maquiagem, atores.
Alguns tipos de fotorreportagens demandam uma produção
igualmente elaborada. A revista “Look” publicou a
fotorreportagem “As estudantes mais procuradas da América”,
abordando o treinamento para a carreira de secretária nos EUA
(fig. 10).
10 O Ibama ainda permite a caça no Rio Grande do Sul; o estado
atende às exigências das leis ambientais. Os animais que podem ser
abatidos são considerados um problema para a agricultura gaúcha. A
caça ao marrecão é, atualmente, proibida (Fonte: site do Ministério do
Meio Ambiente).
269
Fig. 10: Revista Look (EUA / 1965). Fonte: original digitalizado.
270
Um relato do editor da revista e produtor da fotorreportagem,
George Leonard, revela uma parte do processo de produção:
Sabíamos que tínhamos de encontrar uma jovem e tentar transmitir, por meio do seu rosto e de seus pensamentos, exatamente o que vem a ser estudar para secretária. Encontramos a nossa jovem, Judy Kirwan, de 18 anos (...). Visitamos sete outros colégios da área de Seattle e vimos cerca de 400 jovens antes de decidir que Judy era a melhor.
John Vachon [o fotógrafo da reportagem] colheu (...) impressões, movendo-se por toda parte [da escola de secretárias] com sua câmera para capturar gestos significativos, como o ballet das mãos colocando o papel numa bateria de máquinas de escrever. (Apud Bacelar, 1971: 13).
Selecionada – tal como uma atriz –, a estudante protagonista
da reportagem é fotografada representando três momentos: o
desejo de tornar-se secretária; a fase de aprendizado; e,
finalmente, a colocação profissional. Segundo o diretor de arte
da revista, Verne Noll, nas três páginas duplas que continham
a fotorreportagem havia “uma lógica imediata: um começo (a
jovem à máquina de escrever), um meio (a animação e a
variedade no aprendizado de uma secretária) e um fim (a
jovem num posto de secretária, seus planos e anseios)” (Apud
Bacelar, 1971: 13).
Essa fotorreportagem da “Look” foi produzida e concretizada
como uma espécie de fotonovela: exigiu roteiro, direção,
cenários, maquiagem (presumivelmente) e uma atriz. Além
disso, buscou-se adicionar sentimento e emoção à história –
segundo Martin Goldman, editor de textos da revista, nas
fotorreportagens da “Look”:
As legendas devem ligar-se às fotos, mas também ir além delas. As legendas soltas, na forma de blocos de texto, devem tentar especialmente transmitir os sentimentos e emoções invisíveis da pessoa que aparece na fotografia. (...) As palavras numa reportagem ilustrada devem compreender o pensamento e a emoção em movimento, assim como a câmera capta imagens; e devem fazê-la com a precisão de um soneto. (Apud Bacelar, 1971: 13)
Outra fotorreportagem, publicada em 1937, pela mesma “Look”,
intitulada “O terceiro meio: métodos policiais brutais usados
271
algumas vezes em prisioneiros”, recorre mais diretamente à
emotividade. Na reportagem (fig. 11), atores interpretam a
aplicação de alguns desses “métodos”, como o uso de uma
garra de ferro ou de uma mangueira de borracha. A
diagramação se assemelha à de uma fotonovela.
Fig. 11: Revista Look (EUA / 1937). Fonte: original digitalizado.
Indo mais além, as duas formas narrativas chegam a se
hibridizar: a fotonovela “Pacto de sangue”, publicada numa
edição especial da Revista “Sétimo Céu” (fig. 12), pode ser
classificada como fotorreportagem. A fotonovela documento
encena a história do assassinato da atriz Daniela Perez,
ocorrido em 1992.
272
273
Fig. 12: Revista Sétimo Céu (Brasil / 1993). Fonte: original
digitalizado.
Segundo Eduardo Leone, não existe uma narrativa específica,
própria de cada meio. Se a narrativa é “entendida como o
encadeamento de um determinado número de ações que se
desenvolvem entre um começo e um fim” (Leone, 2005: 51),
toda narrativa se estabelece por meio de uma lógica, cujas
relações entre as partes visam à inteligibilidade. Portanto, não
há uma narrativa teatral e outra cinematográfica, por exemplo –
o que há de específico é a narratividade, a adequação de uma
narrativa ao meio: num livro, um travessão indica uma fala de
um personagem; numa história em quadrinhos, um balão.
Pode-se distinguir uma narratividade das fotonovelas e outra
das fotorreportagens? Parece não haver – em essência – um
limite entre ambas. Avaliando de modo menos abrangente: o
pressuposto caráter ficcional das fotonovelas e o igualmente
pressuposto caráter testemunhal das fotorreportagens
delinearia um limite? Se sim, instaura-se um aparente
paradoxo: de modo geral, como vimos, as fotorreportagens
parecem explorar mais a dramaticidade do que as fotonovelas.
Entretanto, se a fotonovela é, predominantemente, obra
ficcional, não é igualmente ficcional a conotação – a visão
particular – que se pode dar a uma fotorreportagem? Uma
fotorreportagem não está isenta do componente dramático
autoral. Alguns exemplos aqui mostrados diluem, em diferentes
graus, eventuais limites entre as duas formas narrativas.
Referências
Bacelar, M. C. (1971). Fotografia e jornalismo. São Paulo, SP: USP.
Barthes, R. (1984). A câmara Clara. Rio de Janeiro, RJ: Nova
Fronteira.
Barthes, R. (1990). O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de
Janeiro, RJ: Nova Fronteira.
Bravo, Anna (2011). Il fotoromanzo. Bologna: Mulino, (e-book).
274
Habert, A. B. (1974). Fotonovela e indústria cultural. Petrópolis, RJ:
Vozes.
Leone, E. (2005). Reflexões sobre a montagem cinematográfica. Belo
Horizonte, MG: UFMG.
Martin, M. (2005). A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro.
Sousa, J. P. (2000). Uma história crítica do fotojornalismo ocidental.
Chapecó, SC: Grifos.