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Introdução
Pensamento de rebeldes e românticos alemães pelo foto-realismo
transcendental de Gerhard Richter
Nossa geração teve que pagar para saber, pois a única imagem que irá deixar é a de uma geração vencida. Será esse o legado aos que virão.
Walter Benjamin
Buscando desvelar as forças que agem na experiência estética oferecida
pelas obras de arte do pintor alemão Gerhard Richter, percebemos que a trama
era tecida permeando a complexa relação entre a estética de suas obras e as
tragédias que aparecem como resultado de um processo histórico, inter-
relacionando a história de vida do artista e a da Alemanha no século XX.
A crítica de obra de arte nesse trabalho é tratada como um problema
filosófico e moral e contempla mais atentamente a teoria do conhecimento de
Walter Benjamin. Entendemos que o pensamento benjaminiano é a escolha
mais acertada na leitura das obras de arte de Gerhard Richter, pois a
―essência‖ de sua reflexão se constitui concebendo a História do ponto de vista
do presente, cujos pressupostos gnosiológicos refletem as determinações
estéticas de Immanuel Kant e Friedrich Hegel, indo estabelecer certo vínculo
com o tempo presente de Martin Heidegger e o ―materialismo histórico‖ de Karl
Marx, até chegar naquilo que particulariza sua concepção temporal de
passado: ―Ação do presente‖ (Jetztzeit).
A filosofia do tempo anti-histórico de Benjamin mostra como seu
discurso pode ser mais adequado para refletir as questões da modernidade.
Por isso, nos apóia na leitura da obras de arte de Richter, que por sua vez,
trata em seus temas e em alguns aspectos de seu estilo, das implicações
morais ocorridas no mesmo tempo e lócus histórico, que Benjamin viveu e
produziu suas teses.
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Longe de fazer uma análise pormenorizada do pensamento de todos os
filósofos que de alguma forma influenciaram a reflexão de Benjamin,
ressaltaremos apenas a relação de alguns pontos de contato entre os acima
citados, visando aplicar seus conceitos na leitura das obras de Richter
produzidas a partir de 1960 que, não obstante, não desprezam, mas atualizam
a relação do ―sujeito com o objeto artístico‖ ponto de vista racional, sensível e
moral.
O teor trágico do pensamento benjaminiano surge materializado nas
obras de arte de Gerhard Richter 25 anos após sua morte. Entre suas inúmeras
obras foto-realista a seguinte inaugura nosso trabalho:
Fig. 1. RICHTER, Gerhard. Tote (Morto). Catalogue Raisonné: 667-2.
Óleo sobre tela, 62 cm x 62 cm, 1977.
O quadro “Tote‖ foi produzido por Richter em 1988 acromaticamente e
baseado na foto de um jornal alemão. A retratada é Ulrike Meinhof, uma das
fundadoras da Rote Armee Fraktion ou RAF ou Baader-Meinhof (1970 – 1998),
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em português, Organização Guerrilheira Alemã de Extrema Esquerda,
conhecida também como Facção do Exército Vermelho. O grupo agia
ideologicamente na defesa do Estado fascista, refutando o Imperialismo
vigente no pós Segunda Guerra Mundial. Essa pintura foi produzida por Richter
entre outras quinze que mostram a morte dos integrantes do grupo em um dos
trágicos episódios acontecidos na Alemanha Ocidental na década de 70. A
série foi intitulada pelo artista como October 18, 1977 (18 Outubro, 1977), onde
apresenta vários dos principais integrantes da organização após suicidarem-se
na chamada ―Noite da Morte da Prisão de Stammheim‖. Ulrike Meinhof enforca-
se enquanto aguardava seu julgamento na detenção em 1976. Todavia, a
morte por suicídio de todos os integrantes do grupo, como foi publicada pela
imprensa, é até hoje muito controversa.
Ao gozar de uma profunda atualidade estilística, as obras de Richter são
capazes de nos localizar na atualidade da experiência estética, fato que levou o
artista a ser considerado artista popular, no entanto, a atmosfera de um tempo
longínquo e os temas de guerra tratados em suas obras, exige que sejam
acolhidas como narrativa histórica, nos impelindo a voltar nosso olhar para o
sentido da vida.
A obra Sargtraeger de 1962 sugere a natureza de nossa reflexão:
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Fig. 2. RICHTER, Gerhard. Sargtraeger (Carregadores de caixão). Pinakothek
der Moderne, Munique, Alemanha. Óleo sobre tela, 135 x 180 cm, 1962.
Considerado um artista que paradoxalmente transita entre os mais
variados estilos, Richter navega entre as artes vanguardistas como, a foto-
realista, a minimalista, a conceitualista, a pop art e as tradicionalistas como, o
realismo clássico, contudo sua singularidade estética carrega uma atmosfera
romântico-existencialista tão distante da estética tanto de totalitaristas nazistas
e socialistas, quanto de capitalistas norte-americanos.
Ao ser intitulado artista foto-realista, Richter produziria uma arte, como
fizeram os típicos artistas da pop art, visando à massificação da cultura
popular, todavia, embora tenha se baseado em fotografias para produzir suas
obras, o pintor não as reproduz tecnicamente sobre a tela, mas
artesanalmente. No que tange o aspecto da representação figurativa realista,
seu estilo alude a uma imagem fotográfica, contudo, ao abstrair sua fixidez
através de borrados, o pintor propõe uma pintura, cuja linguagem estética
sugere uma foto desfocada. Aspecto esse que o pintor desenvolveu para
manter secreta as histórias de vida (identidades) de seus modelos com
implicações político-nazista.
Num primeiro momento a grande ambiguidade surge do fato de suas
obras terem sido produzidas no período pós-moderno concebendo
simultaneamente a tradição e a inovação. Paradoxalmente, seu conteúdo
―tragi-romântico-rebelde‖ considera a arte clássica e subjetiva e seu estilo foto-
realista-transcendental (grifo nosso) trata o modelo com a típica objetividade
das artes revolucionárias. ―Foto-realista-transcendental‖ faz referência ao estilo
de Richter como adotamos no decorrer de todo texto e refere-se àquilo que vai
além do típico foto-realismo, haja vista que, as obras de Richter, quando
consideradas pela crítcia especializada como foto-realista, tem relevância
puramente metafórica, pois a abstração sobre as imagens ―realistas‖ pintadas à
mão (apenas baseadas em fotografias), sintetizam seu estado singular de
exceção que assumimos chamar de ―transcendental‖.
A obra Sargtraeger (Carregadores de caixão) acima é um bom exemplo
disso. Sua presença no Museu de arte moderna de Munique (Pinakothek der
Moderne) é narrada no texto de Anja Brug da seguinte maneira:
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A pintura "Sargträger" é uma das primeiras obras de Gerhard Richter, que remonta à apresentação de uma fotografia de jornal. Era 1962, um ano depois de sua mudança para a Alemanha Ocidental, onde Richter se concentra sobre o impacto do estilo gestual de seu mestre, Karl Otto Götz, na Academia de Dusseldorf e onde primeiramente se ocupou com os estilos da Informal. Logo em seguida, embora Richter tenha considerado além das imagens materiais de Alberto Burri, a de Lucio Fontana conhecido como "Conatti spiziali", ele foi profundamente influenciado pela Informal, de onde começa a trabalhar com fotografias com pincel e tinta sobre a tela. A partir desse ponto, ele seleciona como modelos de suas pinturas, fotos da imprensa e publicidade, bem como snapshots e do álbum de família. O uso de fotografias sem um preparo inicial, abre a Gerhard Richter possibilidades de criar uma "pintura pura" também - livre de suas próprias idéias sobre a composição, cor, conteúdo e criação de estilo (stilkreierender design). Ao usar a imagem de uma foto escolhida arbitrariamente, Richter consegue que suas "fotografias pintadas" passem para o efeito de nível secundário, que permite a distância emocional do espectador. Em "Sargträger" o realismo do transporte do caixao é contrastado com grossas e expansivas sobrepinceladas. Em formação de cores quase monocromáticas, as áreas e os contornos, que definem o fundo, são cobertos e substituídos por um ato de pintar circular-violento. A realidade visual é garantida pela foto da realidade também ofuscada (verunklärt) por pingos de tinta escorrendo para baixo e riscas de tinta (farbschlieren) - um estilo, que foi desenvolvido simultaneamente nos Estados Unidos, especialmente por Robert Rauschenberg. Uma prova disso é o Quadro "Voult", pintado no mesmo ano. (BRUG, 2006, p.338).
Segundo Paul Moorhouse, crítico de arte, curador e estudioso das obras
de Richter, essa obra, sem muitas referências acerca do tema, inclusive do
próprio autor: ―Apesar de ter origem numa foto de jornal, essa pintura mantém,
a priori, a maneira leve e pitoresca que lembra a ocupação de Richter com a
arte Informel anteriormente.‖ (MOORHOUSE, 2009, p.23).
Segundo nossa pesquisa, o termo Informal foi muitas vezes associado a
outros estilos artísticos como o tachismo e o expressionismo e, como tal,
assimilou a arte européia na concepção da pintura pragmática, instintiva e
espontânea de ―ação‖ norte-americana (―Action painting”), preconizada por
Jackson Pollock (1912 - 1956). A pintura informal é auto-significante e
desvaloriza o processo de criação. Ela abandona qualquer forma previamente
conhecida, eliminando gradualmente os objetos da pintura, por outro lado,
recusa também a referência ao gestualismo que guarda a memória do artista
no momento da criação da obra.
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Os artistas informais acreditavam que era possível a comunicação
estética através de imagens e de linguagens totalmente novas e inventadas
sem referência às memórias ou às vivências comuns. Todas essas tendências
artísticas que se relacionam a arte Informal narram os anseios de sociedades
que sofreram sob regimes totalitaristas, cujos poderes políticos foram
legitimados e mantidos pelos meios de comunicação de massa, inclusive
através da própria arte.
É importante ressaltar, relacionando a arte e a política nesse contexto,
que a natureza tecnológica da estética dos totalitaristas, ao precipitar os
acontecimentos catastróficos do século XX, foi alvo da ―crítica negativa‖ da
Aufklaerung benjaminiana que, não obstante, na pode presenciar, na sua
época, a forma mais ―positiva‖ de algumas artes-fotográficas, como
evidenciamos no ―foto-realismo-transcendental‖ de Richter. Por analogia, o
artista narra em suas pinturas (denunciando), as memórias dessa mesma
guerra, 66 anos mais tarde, nos levando a inferir que o tempo não é capaz
mitigar a criatividade do homem, logo sua ação independe de seus
instrumentos, mas de sua ética. Assim, a hipótese nesse ponto do texto,
sistematiza o problema da laboração dos meios técnicos na esfera da arte
como sendo posterior ao problema moral daqueles que a utilizam. Em última
instância, a ética como condição social esbarra no limite da vida estabelecendo
o teor moral da estética.
Acerca do tema, Richter esclareceu nos trechos coletados por
Moorhouse, em entrevistas fornecidas pelo pintor respectivamente em 1964/65
e em 1970 o seguinte: ―A fotografia me interessou por que ela ilustra a
realidade muito bem‖. (RICHTER apud Moorhouse, 2009, p.39). Para Richter, a
foto é ―o quadro perfeito‖. (Ibidem, 2009, p.39). A respeito disso reitera
Moorhouse:
Essa afirmação contém em seu âmago secreto a idéia de ―autenticidade‖ e corresponde a possibilidade da idéia de um mundo direto e verdadeiro. Assim abala o posicionamento moralista daqueles que criticam a pintura que usa fotografia. (MOORHOUSE, 2009, p.39).
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Tais observações filosóficas nos levaram a arriscar um juízo crítico na
defesa da ―qualidade‖ da arte-fotográfica de Richter, contrariando as profecias
daqueles que a condenaram a favor da arte clássica. Existindo em plena
atualidade, ao gozar de total autonomia estilística, sua arte parece atender às
exigências formais dos juízos de valor estéticos hipostasiados pelos filósofos
Kant e Hegel, que pautaram a qualidade da ―arte elevada‖ em sua capacidade
universal de afetar o fruidor na experiência estética. Para os idealistas
alemães, a arte deve ir além do gosto subjetivo, em última instância, deve ser
avaliada na medida do conhecimento e deleite que proporciona a todos,
promovendo uma experiência de transformação existencial.
Gerhard Richter nascido em Dresden em 1932 (antiga Alemanha
Oriental) alcançou sua liberdade e maturidade artística apenas a partir de 1960,
depois de mudar para Düsseldorf (antiga Alemanha Ocidental). Seu atípico
estilo foto-realista, cuja ênfase ao abstrato alude ao transcendental, destaca o
movimento e o acromatismo de uma imagem fotográfica, em temas que
retratam e eternizam principalmente o espírito da Alemanha sob a vigência do
regime nazista.
Assim, sua estética traz à tona a discussão acerca da ―morte da obra de
arte‖ que antecipara Hegel já no século XIX: ―A arte é e permanecerá para nós,
do ponto de vista de sua destinação suprema, algo do passado‖ (HEGEL,
2001, p. 35). Tema sumário, que deu início a reflexão crítica benjaminiana no
decorrer do século XX, caracterizando, por assim dizer, a preocupação do
pensador com a mudança de valores estéticos sob os quais as obras de arte
eram julgadas na passagem da modernidade para a pós-modernidade.
O fim da ―obra de arte‖ surge como sinônimo do fim da ―história da
grande arte‖ abrindo espaço para as artes reproduzidas tecnicamente, assim
revolucionam os paradigmas estéticos construídos durante todo o curso da
história da arte Ocidental até o início da fotografia.
Nesse contexto, nasce os quadros-foto de Gerhard Richter reabrindo
antigas discussões crítica/filosóficas sobre o valor da obra de arte: ―valor de
culto‖ transformado em ―valor de exposição‖, que Benjamin exaustivamente
analisou:
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As diversas técnicas de reprodução reforçaram esse aspecto em tais proporções que, mediante um fenômeno análogo ao produzido nas origens, o deslocamento quantitativo entre as duas formas de valor, típicas da obra de arte, transformou-se numa modificação qualitativa, que afeta a sua própria natureza. Originariamente, a preponderância absoluta do valor de culto fez – antes de tudo – um instrumento mágico da obra de arte, a qual só viria a ser – até determinado ponto – reconhecida mais tarde como tal. Do mesmo modo, hoje a preponderância absoluta do seu valor de exibição confere-lhe funções inteiramente novas, entre as quais aquela de que temos consciência – a função artística – poderia aparecer como acessória. É certo que, a partir do presente, a fotografia e mais ainda, o cinema testemunham do modo bastante claro nesse sentido. (BENJAMIN, 1980, p. 12)
Richter, que buscou no decorrer de sua carreira captar a essência do
objeto-espaço-tempo e materializá-la em forma de arte, medita e considera
aspectos das artes do período moderno e não simplesmente as despreza
enquanto artista pós-moderno. Exemplo disso são seus quadro-fotográficos
preto e branco que, ao mostrar como a técnica encerra o mito da razão e a
esperança de encontrar a ―aura perdida‖, traduzem a crise que o humanismo
vem passando desde a modernidade. Assim, a arte como tema-problema
nesse texto é refletida em termos de mudança dos paradigmas que pautam os
valores estéticos na passagem da modernidade para a pós-modernidade.
A mudança de valores que humanidade enfrentou desde o início do
século XX traduz a crise da modernidade estética entre dois grupos que se
opõe: os contra e os pró-tecnologia. Entre os grupos de artistas modernistas
alemães, cujas opiniões oscilavam entre antes e depois da I Guerra Mundial,
estavam, de um lado, um resistente a tecnologia como sinônima da
massificação dos produtos culturais e bens artísticos, e de outro, um que se
inclinava a mistificação da técnica e que se subdividiu em dois outros grupos,
um, partidário dos regimes totalitários, como o realismo socialista e outro, que
se lhe opôs, como o expressionismo alemão.
Analisando essa conjuntura histórica identifica-se que alguns conceitos
diferenciam a modernidade da pós-modernidade. Ciro Marcondes Filho,
refletindo sobre o tema, descreve como o ideário do espírito Iluminista
sucumbe no âmbito da arte arrastando consigo todos os fundamentos que
sustentavam os paradigmas da ―modernidade‖:
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O projeto da arte moderna sucumbe, portanto, com os outros componentes do espírito das Luzes até chegar a um momento de absoluta perda de identidade. É exatamente nesse momento que se trava o debate que marcará a divisão de rumos de concepções que pautarão a discussão sobre a pós-modernidade. (MARCONDES F. 1991, p 13).
Na opinião de Marcondes F., bem como ressaltando a opinião de
Lyotard, Juergen Habermas, seguindo a tradição de Adorno e de Kant de fusão
de esferas cognitiva, político-moral e expressivo-estética, almeja restaurar uma
utopia perdida:
Habermas é holista e está na verdade em busca de um ―telos‖ (fim, realização), procurando recuperar, portanto a concepção de um devir, de uma história, de um futuro utópico de natureza finalista. Para Lyotard, da mesma maneira, Habermas, na sua proposta de revitalização do fenômeno estético, deixa transparecer seu objetivo unificador da história e a existência do sujeito totalizador. Para ele, Habermas busca a ordem, a unidade, esperança, a esfera pública quando critica todos os movimentos chamados vanguardistas e a por ele caracterizada perda do referencial histórico da arte. (MARCONDES F., 1991, p. 13).
Como observa Marcondes, F., a morte da história da arte é sinônima de
pós-modernidade. Isso significa dizer que a arte deixou de ser um objeto
estético particular e singular. Ela tomou corpo e passou a compor a vida em
suas mais variadas instâncias:
Para a maioria dos autores que analisam o momento atual pós-moderno do desenvolvimento social, a arte é uma manifestação que por seu atrelamento às concepções de mundo e ao espírito do Iluminismo e da razão não tem mais possibilidades nem esperanças de recuperação da aura perdida. A arte na sociedade tecnológica deixou de ser um fenômeno específico; a experiência geral das pessoas tornou-se estetizada, isto é, os ambientes gerais que compõem a cultura passaram eles próprios a se tornarem porta-vozes, maneiras públicas de expressão artística. Tanto nas pessoas como designers bodies (Kroker), como nos ambientes interiores e nos próprios edifícios da paisagem urbana instala-se uma total estetização dos ambientes de vida. Isso constitui o que se convencionou chamar de ―fenômeno artistico integral‖. (Ibidem, 1991, p. 13/14).
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Por intermédio dessas primeiras reflexões, percebemos como Richter,
ao revolucionar o estilo realista de representação, contemplando atípicamente
imagens fotográficas em suas obras, propõe uma nova experiência estética.
Como pudemos observar até agora, as afirmações de que a arte pós o
advento tecnológico deixou de existir ou de que ela passou a representar,
enquanto linguagem estética, apenas um complexo de combinações estilísticas
das artes de outrora, é consensual na reflexão de alguns filósofos e
comunicólogos, e como tal, pressupõe a fatalidade também de seu criador.
Conjectura perigosa e notoriamente frustrante, pois séculos e séculos de
reflexão filosófica e científica acerca da arte foram exaustivamente dedicadas a
libertar o homem das instâncias que o suprimiam para elevá-lo ao status de ser
autônomo.
Tudo isso nos levou a refletir: Se a arte e o artista existem ainda hoje,
como evidenciamos através das obras de arte de Gerhard Richter, não seria
por que o artista, através de sua criatividade e ―genialidade‖, conseguira
transcender o mundo das artes à serviço da Igreja e do Estado, bem como, as
forças ideológicas intangíveis da ação da estética publicitária tanto de nazistas
e comunistas, quanto de capitalistas?
A obra de arte, a partir das produções artísticas de Richter, não teria seu
conceito pautado em novos pressupostos, distantes daqueles que rezaram
suas concepções dentro do cenário aristocrático europeu e não fatalmente
extinto como se temia?
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1 - Metodologia da pesquisa
A única força verdadeira contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, se me for permitido usar a expressão Kantiana; a força para a reflexão, para a autodeterminação, para o não deixar-se levar.
Theodor W. Adorno
O critério para a seleção das obras a serem analisadas nesse texto tem
como princípio trazer à tona as referências do materialismo histórico e do
idealismo alemão na formação do pensamento benjaminiano com vistas a
interpretar as obras de ―foto-realistas-transcendetais‖ de Gerhard Richter, que
tem como referência, em sua grande maioria, pessoas de seu círculo familiar
relacionadas ao sistema nazista. Embora o pintor tenha contemplado em sua
iconografia também, mas não exclusivamente, elementos de sua família
relacionadas a Alemanha nazista, ressaltaremos essas obras específicamente,
com o intuito de buscar possíveis pontos de contato entre da vida de Gerhard
Richter e a de Walter Benjamin, enquanto respectivamente artista alemão e
pensador judeu-alemão afetados pela ―aura e a ruína‖ da Alemanha do século
XX.
Seu estilo, que atualiza e tensiona os paradoxos da ―aura e ruína‖ na
Alemanha do século XX no tratamento da arte em tempos de massificação da
cultura, ressalta que é no mesmo lócus catastrófico de Auschwitz que se
desdobram reflexões tanto de teóricos quanto de artistas. Sumariamente, é
sobre esse pano de fundo, que apoiados sobre a crítica-moral bejaminana,
analisaremos as obras de arte de Gehard Richter.
Para tanto, a divisão em três partes mais os subitens desse trabalho visa
o estabelecimento da relação entre o que é apresentado como dados da
pesquisa dos autores predominantes e suas fundamentações metodológicas.
Pretendendo com isso obter clareza principalmente do conceito de crítica de
obra de arte benjaminiano, de forma a ampliá-lo para a leitura das obras de
arte de Gerhard Richter.
No primeiro capítulo descrevemos elementos que consideramos
relevantes acerca da história de vida de Gerhard Richter, incluindo suas
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relações pessoais, estudos acadêmicos e percurso profissional, ressaltando
pontos que nos ajudam a compreender sua personalidade por intermédio de
sua visão de mundo, cujos elementos surgem efetivamente materializados em
suas obras.
No segundo capítulo, em primeira análise, com vistas a conhecer as
particularidades das doutrinas epstemológica-estéticas de Immanuel Kant
(1724 – 1804) e Friedrich Hegel (1770 – 1831), confrontamos as obras Crítica
da Razão Pura e Crítica da Faculdade do Juízo de Kant e a obra Curso de
Estética I de Hegel, ressaltando os pontos que sustentam a reflexão de Walter
Benjamin (1982 – 1940) na obra Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política; em
sua tese de doutorado Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão; no
artigo A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução e nos textos
apresentados na obra Magia e Técnica, Arte e Política. Quando Benjamin ruma
para o existencialismo de Martin Heidegger (1889 – 1976) e para o
―Materialismo histórico‖ de Karl Marx (1818-1883) a obra de apoio será a A
Filosofia de Walter Benjamin - Destruição e Experiência organizada por Andrew
Benjamin e Peter Osborne. Quando o tema que trata da identidade cultural em
Benjamin traz à tona, os pontos de contato dos pensadores alemães com
judeus-alemães nascidos na Alemanha do século XX, a obra de apoio é
Redenção e Utopia, o Judaísmo Libertário na Europa Central de Michael Löwy.
Nesse momento do trabalho, a discussão que norteia os temas que
relacionam a cultura, arte e a política busca ressaltar dessa trama, os limites e
possibilidades que envolvem a difusão entre a arte e a fotografia na Alemanha
na passagem do período moderno para a pós-moderno.
Lembramos que permeando todo o texto, no que tange o tema da
subjetividade, que nesse caso será tratada na esfera da arte sob o conceito de
gosto, a teoria do conhecimento Kantiana confronta a teoria do inconsciente de
Sigmund Freud (1856 – 1939) na obra Esboço da Psicanálise. Isso será feito
com vistas à esclarecer as distintas formas que o sujeito e o objeto estético
podem ser analisados.
No terceiro capítulo, com vistas a nos aproximar daquilo que singulariza
a arte de Gerhard Richter, desenvolve-se uma análise comparativa entre
algumas de suas obras e de outros artistas totalitaristas e vanguardistas. Para
tanto, além de recorrermos, sempre que necessário, aos pensadores que
13
compõe a base de nosso córpus teórico (Kant, Hegel e Benjamin), nos
ancoramos nos conceitos estéticos do crítico de arte americano Clement
Greemberg (1909 - 1934) em sua obra Estética Doméstica e nos do filósofo
italiano Umberto Eco (1932) a partir de suas obras História da Beleza e História
da Feiúra.
No quarto capítulo analisaremos como as obras de Richter permitem um
diálogo entre os valores da modernidade e da pós-modernidade. Entre as
inúmeras questões que as obras de arte de Richter trazem à tona, estão os
valores da modernidade e da pós-modernidade, que discutidos através de um
processo dialógico são representados, de um lado, pelas teorias e, de outro,
pela arte, cujos fundamentos acompanham e representam os anseios da
humanidade durante todo o percurso da história da arte.
Dessa forma nesse momento da pesquisa traremos à tona as
considerações de Stuart Hall, que salienta a piscanálise Sigmund Freud e
Jacques Lacan na obra A identidade cultural na Pós-modernidade; de Ciro
Marcondes, que ora evoca o conceito de devir de Heráclito, ora o pensamento
de Bertolt Brecht na obra Sociedade Frankenstein e de Umberto Eco, que
confronta o pensamento de Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss na obra A
Estrutura Ausente.
Informações gerais acerca da arte, estilo e movimentos artíticos, que são
fornecidas no texto, foram coletadas da obra Arte Moderna de Giulio Carlo
Argan e da obra História da Pintura de Wendy Beckett, além de fontes vituais
que estão disponíveis no glossário.
Ressaltamos que todas as demais informações na esfera artística e as
reflexões fornecidas por Gerhard Richter à mídia alemã durante toda sua
tragetória artística, são extraídas das seguintes obras alemãs, ainda sem
tradução para o português: Abstrakte Bilder, Herausgegeben von Ulrich
Wilmes. Mit Beiträgen von Benjamin, H. D. Buchloh, Beate Soentgen e Gregor
Stemmrich; Atlas. Herausgegeben von Helmut Friedel; Text 1961 bis 2007.
Schriften, Interviews, Briefe. Herausgegeben Von Dietmar Elger und Hans
Ulrich Obrist e na Die portraets von Gerhard Richter, redigida e organizada
pelo curador de arte, responsável pelo século XX do National Portraets Gallery
em Londres, Paul Moorhouse.
14
Essas obras foram por nós traduzidas, respeitando o máximo possível a
íntegra de seus significados dentro do pensamento alemão.
Além disso, o texto apresenta uma lista de Ilustrações contendo as obras
de arte que foram nossos objetos de análise.
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Capítulo 1 – Acerca da vida Gerhard Richter
Você pode me acreditar ou não, mas eu vejo o universo pleno de pontos. Eu amo todos os pontos. Com muitos pontos eu sou casado. Eu desejo que todos os pontos sejam felizes. Os pontos são meus irmãos. Eu sou também um ponto. Antigamente brincávamos sempre juntos, cada um percorre seu caminho. Nós nos encontramos ainda em festas de família e indagamos uns aos outros: Como vai? ―Sabe, Elly‖, falou ele tranquilamente: só pode-se amar, o que não tem estilo, por exemplo, Dicionários, Fotos, a Natureza, a mim e a meus quadros! Suspirou [...] por que o Estilo é a violência e nós não somos violentos e não queremos nenhuma Guerra‖, finaliza a frase; ―nunca mais uma Guerra".
Gerhard Richter
As seguintes informações acerca da trajetória de vida e das influências
artísticas de Gerhard Richter foram extraídas do texto alemão Studium der
Kunstgeschichte an der Universität de Viena de Michael Kai; da obra Die
Portraets von Gerhard Richter de Paul Moorhouse e das obras de Gerhard
Richter: Abstrakte Bilder; Atlas e Text 1961 bis 2007 - Schriften, Interviews,
Briefe de Gerhard Richter.
Gerhard Richter nasceu no dia 9 de fevereiro de 1932 em Dresden,
Alemanha. Ele é o primeiro filho de Hildegard e Horst Richter, cuja felicidade
matrimonial não perdurou por muito tempo. Segundo uma publicação da revista
New York Times, Horst Richter poderia não ser o pai biológico de Gerhard
Richter. À respeito desse tema, em 2005 Richter declara aos reporteres
Susanne Beyer e Ulrike Knofel da revista Spiegel o seguinte: "Assim é. Mas
estas coisas não são exatamente incomums". (ELGER/OBRIST, 2008, p.513).
Aos 3 anos de idade, Richter mudou-se com a família para Reichenau
na Saxonia (leste do país), onde seu pai trabalhou como professor. Gerhard
Richter, de 1933 a 1945, viveu 12 anos sob a vigência do terceiro império
alemão (Dritte Reich) e até 1959 a ocupação soviética na Alemanha oriental.
Em 1942, Gerhard Richter mudou-se para Waltersdorf no estado da Turíngia,
onde participou de uma organização de jovens conhecida como "Pimpfen" ou
Juventude Hitlerista. Richter declara seu descontentamento em uma entrevista
16
cedida à Robert Storr: "a juventude Hitlerista era muito violenta. Eu não gostava
de jogos de poder, pois eu não era muito atlético‖. (RICHTER, 2002, p. 17).
Acerca disso declara ainda o artista:
Eles eram um bando de idiotas pomposos. Com 12 anos se é demasiamente pequeno para compreender o todo ideológico, mas mesmo isso agora parece engraçado, eu sempre soube que eu tinha algo melhor do que eles. Hitler e os soldados foram se aproximaram da multidão, do povo, da massa, enquanto minha mãe me trouxe para perto da "cultura", Nietzsche, Goethe e Wagner. (Ibidem, 2002, p. 17).
Como observamos nas próprias palavras de Richter, sua mãe foi uma
figura fundamental em sua vida, apoiando sua inclinação artística desde a
adolescência. Com 15 anos Richter começou a desenhar experimentando
diferentes técnicas, inclusive a aquarela. Apesar de muito jovem ele já
ambicionava uma carreira artística, fato que o levou a se empenhar em
aprender história da arte e mesmo com dificuldades a manter-se em seus
vários indesejáveis empregos. Em 1949 em Zittau no estado de Görlitz, Richter
conseguiu seu primeiro emprego como caligrafista. Insatisfeito com o trabalho
abandonou-o meio ano depois indo trabalhar como assistente de pintor no
teatro, cuja profissão era reconhecida como "Pintor de teatro e propaganda‖.
Profissão que Richter aprendeu no curso médio profissionalizante em 1948 na
Höhere Handelsschule (Escola Superior de Negócios).
Devido a sua personalidade auto-confiante e rebelde, Richter se
recusava a executar tarefas subalternas, assim, em 1950 ele tentou sem
sucesso ingressar na Hochschule der bildenden Kunst (Academia das Belas
Artes) em Dresden. Mesmo tendo sido muitas vezes reconhecido por seu
talento artístico, foi recusado pela academia de artes, que ao mesmo tempo, o
aconselhou a primeiramente trabalhar para uma Instituiçao Estadual, de onde
poderia renovar seu pedido. Seguindo a orientação, Richter foi aceito em 1951.
O programa curricular de 5 anos da Academia de Arte foi estritamente
tradicional, era constituído pelo aprendizado de pintura a óleo, retratos, estudo
de nus, natureza morta e composição, além de uma formação teórica bastante
profunda que incluía história da arte, o idioma russo, economia política e teoria
marxista-leninista.
17
1.1 - Formação Acadêmica
De 1952 à 1957, Gerhard Richter estudou na Hochschule der bildenden
Kunst (Academia de belas artes) em Dresden e de 1961 a 1964, estudou na
Staatliche Kunstakademie (Academia nacional de artes) de Düsseldorf. Seus
Professores na Academia das Belas Artes em Dresden foram Karl von Appen,
Ulrich Lohmar e Will Groham. Em 1955 Richter pintou, para a avaliação final de
seu curso, o quadro que intitulou Abendmahl mit Picasso (Jantar com Picasso).
Ainda para a avaliação final do curso em 1956 ele pintou um mural no Museu
da Higiene de Dresden, que intitulou como Lebensfreude (Alegria de viver).
Pouco antes de sua fuga para a Alemanha Ocidental, Richter deu ordens
para pintarem sobre todas as obras que ele havia produzido dentro da
Academia de Belas Artes preconizadas pelo estilo realista exigido pela
república socialista (regime vigente na Alemanha oriental na época) de forma a
destruí-las por completo. Entre suas pinturas de retratos, estão as conhecidas
obras Arbeitskampf (Luta do trabalho) e a cidade de Dresden.
1.2 - Influências Artísticas
Dois anos antes da construção do Muro de Berlim (1961), Richter foge
com sua esposa de Dresden na Alemanha Oriental, para Duesseldorf na
Alemanha Ocidental. Temendo retaliação política, Richter, além das obras que
foram destruídas segundo suas ordens, outras ele queimou antes da fuga
como a de Antonie Tapies e Francis Bacon.
Após esse período Gerhard Richter experimentou muitos estilos e
formas de expressão dentro da arte moderna. Essa fase durou pouco tempo,
contudo, deu início a sua arte neo-vanguardista de inspiração francesa-
americana.
A característica central de suas obras é a falta de objetividade,
abstração (Gegenstandslosigkeit), cujo nome criado pelo próprio Richter marca
sua expressão artística até 1962. Influenciado pela arte popular alemã de Roy
18
Lichtenstein, Richter deu um novo direcionamento estilístico para sua arte,
carregando além das influências da pop-art americana como a de Andy Warhol
a do neo-expressionismo alemão. Entre outras influências, Richter assimila o
neo-dada e sua crítica à institucionalização da arte conhecida pela fluxus do
alemão Joseph Heinrich Beuys e pela arte conceitual do ready-made do
francês Marcel Duchamp e ainda pela action painting do norte americano
Jackson Pollock.
1.3 - Amigos artistas
Entre seus principais amigos artistas e influentes estava o pintor alemão
Sigmar Polke. Ambos fugiram da Alemanha Oriental para a Ocidental, na
Staatliche Kunstakademie Düsseldorf (Academia de artes de Düsseldorf)
conheceram Blinky Palermo e estudaram juntos de 1961 à 1964 sob a
orientação do Professor Macketanz e Karl Otto Götz.
Gerhard Richter, Sigmund Polke e Konrad Fischer Lueg realizaram suas
primeiras exposições juntos em 1964. A partir dessa época, Richter passa a
expor sozinho em várias galerias e museus.
Com a cooperação de seu grande amigo Blinky Palermo, Richter produz
várias esculturas e pinturas, marcando sua arte dos anos 60 aos 70. Nos anos
80 e 90, Richter começou a realizar pinturas mais coloridas, abstratas e
expressivas, ou seja, mais impulsivas, gestuais e ousadas, raspadas e com
mais camadas de tinta. Quadros esses que mostram e escondem
simultaneamente sua criação. Richter foi também colega e influenciado pelo
famoso pintor Georg Baselitz.
Em 1963, Richter junto com Sigmund Polke e Konrad Lueg funda o estilo
chamado "Capitalismo Realista" (Kapitalistischen Realismus), título criado para
refutar, através da ironia, a arte do "realismo socialista" (Sozialistischer
Realismus), estética válida além de em todos os países do leste europeu
adeptos ao Sistema comunista, na epocal Alemanha Oriental, onde Richter e
muitos de seus amigos viveram, estudaram e trabalharam até a maturidade.
Segundo Richter, os realistas eram capitalistas satíricos muitas vezes de
19
assuntos correntes na mídia imprensa. Richter começou a ver a arte como algo
que deveria ser separado da história da arte. Ele acreditava que as pinturas
deveriam centrar-se mais na imagem do que em referências, ou seja, mais na
linguagem visual e menos na declaração, por isso ele almejou encontrar uma
nova forma de pintura que não fosse tão restrita.
Como podemos observar o realismo capitalista, tem forte cunho moral.
Como o próprio termo indica, ele troça a ideologia da doutrina oficial da arte
socialista na versão realista da estética totalitária.
Observa-se que elementos relacionados à Alemanha Oriental como a
casa em que Richter viveu nunca apareceram em suas obras.
1.4 - Atividades acadêmicas e produções artísticas
Em 1967, Gerhard Richter foi professor na Hochschule für Künste
Bildende (Academia de Artes de Hamburgo) e de 1971 a 1993 na Staatliche
Kunstakademie (Academia de Düsseldorf). Em 1971, Richter foi convidado a
participar da bienal de Veneza (Biennale de Venedig), onde representou a
Alemanha com o séquito de 48 Portraits (48 Retratos).
Para compor essa imensa obra, Richter usou retratos dos léxicos de
pessoas famosas, representantes de sua cultura como filósofos e cientistas,
entre os quais estavam Albert Einstein, Thomas Mann e Franz Kafka.
20
Fig. 3. RICHTER, Gerhard. Foto-colagem das 48 fotografias de cartão 70 x 90
cm, para a produção da obra 48 Portraits. Museu Ludwig, Köln, Alemanha.
Óleo sobre tela, 70 x 55 cm, 1971 – 72.
Nessa mesma época (1972) Richter compôs um lugar importante para
armazenar as imagens e as idéias que colecionava (rascunhos, fotos, revistas,
estudos de cores, retratos, tecidos e natureza morta), que posteriormente
foram compiladas e publicadas.
O estilo de Richter começou a mudar a partir de 1976. Em 1978 ele atua
como docente visitante da Academia de Artes em Halifax no Canadá e em
1988, como professor na Städelschule em Frankfurt na Alemanha.
Com o crescimento do reconhecimento internacional, Richter, nos anos
1993/94, é homenageado com uma retrospectiva de suas obras em Paris,
Bonn, Stockholm e Madrid. Em 2002 realiza-se mais uma retrospectiva no
Museu da Arte Moderna de Nova York. Hoje suas obras estão presentes nos
museus de arte contemporânea mais importantes do mundo. Obras no estilo
abstrato e foto-realista, Richter realiza até hoje!
21
1.5 – Identidade cultural alemã em Gerhard Richter
O trabalho de Richter, no que tange seu aspecto técnico, revela como a
pintura sempre explora seus recursos promovendo uma renovação na relação
do artista com o espectador, atualizando um ao outro.
Através das várias técnicas que abordam temas populares, Richter
mostra uma inclinação nada convencional à arte popular. Ao usar fotos
extraídas da publicação das mídias, ele recorta seus títulos icônicos e de
apologia ao consumo. Seu trabalho é constituído, além dos retratos e pinturas
abstratas, por paisagens, produções com espelhos e vidros e livros de arte.
Sua maior e mundialmente conhecida obra até esta data é a Ausstellung
1, contando com fotografias, imagens produzidas desde o início dos anos 60,
a partir da qual surge a tese, por parte de alguns críticos de arte, de que elas
exigem uma investigação mais aproximada das questões que envolvem a
histórica da civilização e cultura alemã, cujas tragédias marcaram a história da
família de Richter.
Entre os quadros, cujos temas são copiados de revistas, jornais e fotos
particulares, estão os que foram reproduzidos predominantemente de forma
acromática e desfigurada aludindo a uma foto desfocada. Suas obras foto-
realista, produzidas a partir dos anos 60, são particularmente discutidas por
trazerem à tona a paradoxal e dramática história da Alemanha do século XX.
Elementos que a constituem surgem simultaneamente refletidos e ocultos em
suas obras por intermédio de seu estilo ―foto-relista-transcendental‖, com intuito
de manter secreta a identidade de seus modelos, ora vítimas, ora mandantes
do sistema nazista no auge da Segunda Grande Guerra, muitas vezes
integrantes da família do artista.
Todavia, seu trabalho artístico refletindo a história e a cultura da
Alemanha não narra apenas uma história de horrores, mas também de
pensadores, artistas, cientistas e filósofos, cujas teorias mudaram o rumo da
história humanidade.
22
1.6 - Família
Gerhard Richter se casou em 1957 com Marianne Eufinger (Ema), filha
do ginecologista Heinrich Eufinger. Em 1968 nasceu Betty sua primeira filha e,
em 1982, já separado, se casa com a artista plástica Isa Genzkene de quem se
divorciou em 1983. Desde 1995 o artista é casado com a ex-aluna, também
pintora, Sabina Moritz com quem tem três filhos. Ele vive desde 1983
em Cologne.
A partir dos quatro quadros foto-realista a seguir testemunharemos a
memória das atrocidades do holocausto, que relacionam membros da família
de Richter ligados ao sistema nazista. O pano de fundo dessas obras, cujos
temas são representados como cenas banais, são reconhecíveis apenas
quando investigados. Como veremos nada desse idílio familiar permite
qualquer conjectura acerca da história de vida trágica de seus modelos. Tais
características são declaradas no romance jornalístico de Juergen Schreiber,
publicado em 2005, sob o título "Gerhard Richter, um pintor da Alemanha: "O
drama de uma família".
Contemplemos as obras Tante Mariane, Onkel Rudi, Familie am Meer e
Herr Heyde a seguir:
23
Fig. 4. RICHTER, Gerhard. Tante Marianne (Tia Marianne). Coleção
privada. Óleo sobre tela, 120 x 130 cm, 1965.
O quadro Tante Mariane (Tia Mariana) apresenta Richter quando bebê
nos braços da tia Mariane, que aos 18 anos adoeceu de esquizofrenia sendo
internada em uma clínica psiquiátrica em Grosschweidnitz, onde foi executada
numa das muitas câmeras de gás do ―Programa nacional socialista de
eutanásia‖ para deficientes mentais e crônicos.
Suspeita-se que a obra Tante Mariane poderia estar diretamente
relacionada com a representação de um criminoso do regime Nazista: Herr
Heide (Senhor Heide):
24
Fig. 5. RICHTER, Gerhard. Herr Heide (Senhor Heide). Coleção privada.
Acrílico sobre tela, 55 x 65 cm, 1965.
Werner Heide foi psiquiatra e neurologista membro da SS ou
Schutzstaffel, em português ―Tropa de Proteção‖ e do NSDAP ou
Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, em português Partido nacional
socialista dos trabalhadores alemães ou ainda Partido nazista. Na época do
nacional socialismo, Werner Heide, juntamente com outros dois médicos, foi
chefe responsável pelo departamento central da ―Ação T4‖ ou programa de
Eugenismo e Eutanásia, obrigatório durante a vigência do sistema nazista. A
participação Werner Heide foi fundamental para a implantação do Programa,
consequentemente foi o responsável pela execução de milhares de pessoas.
Werner Heide viveu e trabalhou depois da guerra sob o falso nome Dr.
Med Fritz Sanade, que atuou novamente como neurologista e perito do
Tribunal em Flensburg. Apenas em 1959, Werner Heide se entrega a polícia
apresentando sua verdadeira identidade. Em seguida, judicialmente acusado
de ter exterminado milhares de pessoas, ele foi sentenciado pelo tribunal da
25
seguinte maneira: ―como médico do campo de concentração ele matou pelo
menos 150.000 humanos cruel, insidiosamente e com intenção.‖ (KAI, 1998, p.
51). Herr Heide, cinco dias depois de proferida sua condenação, suicida-se na
prisão.
Embora não se saiba a relação direta entre a morte de tia Mariane e o
Werner Heide, conjecturar sua relação é procedente na opinião de alguns
pesquisadores que investigam mais profundamente as histórias dos modelos
representados nos quadros de Gerhard Richter.
O próximo quadro intitulado Familie am Meer é mais uma obra dessa
conjectura:
Fig. 6. RICHTER, Gerhard. Familie am Meer (Família na praia). Coleção
Ströher, Darmstadt, Alemanha. Óleo sobre tela, 150 x 200 cm, 1964.
Familie am Meer mostra a família da primeira esposa de Richter numa
hipotética situação de família feliz em uma praia. O homem no quadro é o
26
sogro de Richter, o ginecologista Prof. Dr. Heinrich Eufinger, junto com uma de
suas pacientes, que na época era amiga da família Eufinger. A senhora
Anneliese Graefin von der Osten, cujo filho Erimar (com chapéu) está junto com
a filha de Gerhard Richter chamada Ema, que aparece usando uma toca de
natação. A poética que envolve a cena do quadro feliz esconde bem a
verdadeira identidade de Dr. Heinrich Eufinger, que trabalhava na época da
Segunda guerra determinando a outros médicos a esterilização de um número
imenso de pessoas.
Sabe-se que Mariane Schoenfelder ou Tante Mariane não contava como
uma de suas vítimas.
Logo com o fim do Nazismo, o Dr. Eufinger, atuou como médico, mesmo
após ter sido mantido prisioneiro na Rússia Soviética. Ao ser libertado passou a
atuar na Alemanha Oriental até 1956 e depois disso na Alemanha Ocidental,
sempre sem ser perseguido.
Entre as pinturas produzidas em meados dos anos 1960 que mostram
representantes da família da Richter nas passagens sombrias acontecidas na
vigência do Sistema nazista estão os quadros Onkel Rudi (Tio Rudi) e o Horst
mit Hund (Horst com cachorro), abaixo:
27
Fig. 7. RICHTER, Gerhard. Onkel Rudi (Tio Rudi). Tschechisches
Museum der Schönen Kunst, República Checa, Praga). Óleo sobre tela, 87 x
50 cm, 1965. (MOORHOUSE, 2009, p. 56). (MOORHOUSE, 2009, p. 68).
Fig. 8. RICHTER, Gerhard. Horst mit Hund (Horst com cachorro).
Coleção Agnes Gund, Nova York, EUA. Óleo sobre tela, 80 x 60 cm, 1965.
28
Esses dois quadros baseados em fotografias de referência familiar
explicitam muito da relação de Gerhard Richter com esses dois importantes
elementos. Onkel Rudi ou Tio Rudi é o tio de sua mãe, chamado Rudolf
Schoenfelder, representado em uniforme Nazista e sorrindo, sugerindo a
estima idolátrica e heróica de Richter por sua figura na época.
Durante décadas Richter não declarou nada sobre as histórias secretas
que compõe o pano de fundo de seus quadros, mas na maturidade ele
esclareceu em entrevista a Dietmar Elger o seguinte: ―nessa época seria
desconfortável para eu publicar essas histórias. A arte seria interpretada como
uma forma de recuperação da história enquanto trabalho social. Assim eu tive
paz e tudo ficou no anonimato. Agora não me incomodo mais se isso se torna
público. (RICHTER apud Kai, 1998, p. 172).
Tal revelação não se aplica a obra Horst mit Hund (Horst com cachorro),
na qual Richter representa seu pai Horst Richter de forma humilhante. Um
homem um pouco gordo, descabelado e usando um chapéu feminino. A foto de
referência que Gerhard Richter lançou mão para a execução do quadro foi feita
durante o casamento de sua irmã em 1959 quando seu pai estava embriagado.
Gerhard Richter refutava a ideologia nazista que, segundo sua opinião,
seu pai era adepto, todavia, outras fontes indicam que Horst Richter trabalhou
para o Estado como professor para continuar sustentando a família e não por
ideologia. Em outro episódio, Horst Richter, mesmo não tendo ideológica e
diretamente participado das atividades do partido Nacional socialista foi forçado
a fazer parte do exército militar da época e logo após o término da Segunda
guerra, ficou confinado até 1946 numa prisão de domínio americano. Ao voltar
para casa foi recebido como um estranho sendo acusado pela esposa de
destruir a família. Rechaçado e estando impossibilitado de voltar a atuar como
professor, tanto na Alemanha Ocidental sob domínio americano, como na
Alemanha Oriental sob domínio Soviético, Horst Richter não conseguiu mais se
integrar socialmente.
Em 2002, Gerhard Richter, já maduro, falou arrependido a respeito de
sua relação com seu pai no passado. Ele explica que muito de seu
posicionamento na época, se deveu ao fato dele ser manipulado pelas ideias
de sua mãe.
29
Ao ver seu quadro Horst mit Hund pela primeira vez em exposição em
Nova York no ano de 2002, depois de 30 anos, Gerhard Richter sentiu remorso
de como representou seu pai em 1965. A respeito disso Richter declara: ―com
esse cachorro ridículo, junto com chapéu de mulher e os cabelos como um
palhaço, hoje eu sinto mais do que nunca que eu o pintei como uma figura
pobre. (RICHTER apud Kai, 1998, p. 177) Em outro momento reitera acerca do
tio Rudi: ―ele era o irmão de minha mãe, o querido da família. A respeito dele
era muito comentado. Ele sempre foi apresentado como herói para mim. Ele
era charmoso, músico, elegante, corajoso e bonito. E meu pai era considerado
um sem talento, um desclassificado. (Ibidem, 1998, p. 175).
Não se sabe exatamente o verdadeiro posicionamento ideológico e real
envolvimento com o sistema nazista adotados, nem pelo tio de sua mãe Rudi,
nem pelo seu pai Horst Richter, pois todas as informações que Gerhard Richter
recebeu vieram das histórias contadas por sua mãe, logo carregadas de sua
relação afetiva com tais figuras. Não existe nenhuma prova de que eles foram
realmente responsáveis pelo extermínio de pessoas, contudo sabe-se que a
nacionalidade de cada indivíduo nascido na Alemanha daquela época
determinava irrevogávelmente sua identidade cultural e seu posicionamento
político dentro do sistema.
Constante nas obras de Richter, isso pode ser ilustrado pela passagem
da obra Geschichtsbewusstsein und posttraditionale Identität de Habermas,
ressaltado no artigo Tarefa Infinita: percursos entre história, memória e
esquecimento, de Leila Danziger, publicado em Ipotesi nº 13, Revista de
Estudos Literários, Departamento de Letras, Universidade Federal de Juiz de
Fora:
Alguns são herdeiros das vítimas, outros dos que as ajudaram ou apresentaram resistência. Outros são herdeiros dos criminosos ou dos que permaneceram em silêncio.Essa herança compartilhada (diese geteilte Erbschaft) não resulta, para os que nasceram depois da guerra, em mérito ou culpa pessoal. Para além da culpa individual, existem diferentes contextos que resultam em cargas históricas distintas. Com as formas de vida nas quais nascemos e que formaram nossa identidade, assumimos tipos de responsabilidade histórica. (HABERMAS apud Danziger, 2004, pp. 61/77)
30
Acerca do tema que envolve as questões do nazismo, concordando com
a citação de Habermas, Gerhard Richter declara que o senhor Rudi morreu em
1944 combatendo como soldado na linha de frente da guarda nazista,
provavelmente vítima ideológica do sistema: ―ele era jovem e muito ingênuo e
morreu alguns dias depois de entrar na guerra‖ (RICHTER apud Kai, 1998, p.
20).
As histórias que envolvem a vida particular de Gerhard Richter dizem
respeito àquelas de praticamente todo povo alemão, que sofreram as
consequências das atrocidades do nazismo. Contudo, as obras de Richter
incluem outros aspectos da sua cultura. No que tange ao aspecto temático de
suas obras, sua iconografia inclui também a representação de modelos sem
nenhuma conotação declarativa ou denunciativa, ou seja, político-ideológica
significativa, como amigos, conhecidos e outros membros de seus familiares,
bem como animais, aviões e fotos das mídias, cujas representações
contemplam apenas o efeito testemunhal da fotografia. Apesar de não se
encontrar provas mais concretas da ligação entre as histórias de vida dos
modelos com o sistema nazista representados em suas obras, elas constituem
certamente um rico espaço para se refletir acerca dos elementos históricos e
culturais imbricados nessa complexa trama.
1.7 – Teoria do conhecimento: Gerhard Richter entre a aparência e a realidade
O clássico problema ontológico do confronto entre a realidade e a
aparência é frequentemente exposto nas palavras e nas manifestações
artística existencialistas-testemunhais de Gerhard Richter e como tal
ofereceram os motivos para o nascimento de suas obras enquanto o lançaram
na busca por tentar solucioná-los. Richter, ao utilizar as fotografias como fonte
de suas obras, distingue-se de seus amigos artistas também vanguardistas-
foto-realistas, inaugurando um novo estilo conceitual de arte. O pintor, que
supera a indecisão de muitos artistas em usar meios técnicos de reprodução na
esfera da arte, não liberta-se dos problemas que surgem da subjetividade.
Lembramos que Richter, desde 1962, nunca mais deixou de pintar o
tema do humano. Esse é um aspecto sensível em sua personalidade que por si
31
só reflete sua preocupação com todas as condições norteadoras e
determinantes da vida humana.
O pintor, que assume mostrar a superfície (aparência) da realidade
disposta sobre um plano secreto, deixa-nos sempre reflexivos e perplexos.
Como o próprio Richter declara: ―A ilusão – ou melhor, a ―aparência‖, é meu
tema de vida. Tudo o que existe, parece e é para nós visível, por que para nós
apenas o reflexo da aparência refletida é observável, nada mais do que isto é
visível‖. (RICHTER, 2009, p.8). Logo, o problema do confronto entre realidade
e a aparência (o visível e o invisível), que sempre norteou a reflexão filosófica-
epistemológica é tensionado ao seu grau máximo na arte Richter.
Essa reflexão sumária, que se desdobra filosóficamente desde a
antiguidade, alcança seu auge no século XVIII, com o nascimento da teoria do
conhecimento. Nesse momento o sujeito passa a refletir sobre a capacidade
intelectual de conhecer e demonstrar a ―verdade‖ do mundo exterior,
interrompendo a marcha da história, que pressupunha a inferioridade do
homem frente a supremacia da natureza, às custas de suas diferenças
substanciais.
A versão mais racionalista do idealismo alemão reflete sobre o homem e
a natureza, o ―sujeito e o objeto‖ a partir de si mesmos, como vemos acontecer
distintamente em Kant e Hegel. Para os idealistas, a priori, corpos alheios ou
de naturezas estranhas, podem ser conhecidos pelo sujeito desde que sejam
transformados em conceito ou em ideia clara, demonstrável.
Tema amplamente refletido por Gerhard Richter surge em sua arte como
forma de romper com o paradigma da arte que acreditava ser possível captar o
ser das coisas através da imitação mais perfeita do objeto, conceito conhecido
como mimesis.
O conceito de mimesis, gênese de toda criação artística, que está ligado
a imitação da Natureza e não a cópia. Nesse texto, o conceito de mimesis, será
tratado artítica-filosoficamente, dentro do gênero retrato de arte, considerando
seu significado antigo, quando acreditava-se ser possível captar a ―Alma‖ do
ser observado.
Refutando esse pressuposto, que via de regra deveria reproduzir os
modelo em sua presença, o pintor assume copiar fotografias como base de
suas obras. Acerca disso afirma Richter: "um retrato só pode ser uma
32
semelhança – uma aparência. Conseqüentemente o contato com a pessoa não
é um requisito para retratá-la. A aparência dela é tudo o que existe e por causa
disso uma foto é suficiente". (RICHTER apud Moorhouse, 2009, p. 9). Em outro
momento, esclarece: ―Um retrato não pode ser mais similar ao modelo do que
apenas muito semelhante.‖ (Ibidem, p.86). Assim, o artista resolve a relação do
pintor com o modelo com a cópia de uma fotografia declarando preocupar-se
mais com o aspecto técnico da produção de suas obras, do que com o conceito
mimético do período Antigo.
O racionalismo iminente no pensamento de Gerhard Richter, ao romper
com a antiga concepção mimética da arte realista, que buscava alcançar a
essência da realidade num mundo secreto por trás da aparência (mundo
metafísico), resolve o problema com a imitação de uma fotografia.
Para Richter, tudo já está dado na realidade física e aquilo que não está,
se é que existe, é intangível e inenarrável. No interior dessa contraposição
ficam disponíveis os dois imperativos categóricos que norteiam a relação do
sujeito com o objeto e que simultaneamente se excluem entre si: a essência e
a aparência do objeto.
Frente a essa evidência em suas obras, Richter mostra uma forte
preocuopação meta-tradicionalista. Em suas próprias palavras em entrevista
com Rolf Schoen em 1972 publicada no livro de Moorhouse encontramos: ―A
gente gostaria de compreender e tentar pintar o que a gente vê, o que
absolutamente existe (Da ist). Depois percebemos que é absolutamente
impossível representar uma realidade e isso que fazemos é sempre e apenas
representar a si mesmo. (RICHTER, 2009, p.59). Assim, o pintor hesita entre
refutar a arte tradicional de outrora, que busca imitar a natureza e uma
nostalgia desse mesmo passado que já não existe mais. Reafirmando sua
aversão ao estilo realista da arte na versão clássica, Richter cita: ―Quadros que
são explicáveis e contém sentido, são quadros ruins.‖ (RICHTER, 2009, p. 33).
Em outro momento reitera Richter seu pensamento no livro de
Moorhouse declarando que a arte atrelada à metafísica do passado não faz
mais sentido: ―A pergunta sobre o sentido da vida é ridícula e dá sentido
inumano‖ (RICHTER apud Moorhouse, 2009, p. 71). Disso conclui-se, como o
próprio pintor esclarece, que oferecer significação à arte ao representar a vida
é um absurdo.
33
Mesmo que o gênero de pintura foto-realista se mantenha em destaque
no séquito de suas obras, desde 1976 Richter passou a se dedicar ao
desenvolvimento de quadros abstratos e até hoje, entre alguns intervalos, esse
gênero de pintura compõe uma parte importante de seu trabalho.
As obras foto-realistas de Richter permanecem abertas às múltiplas
interpretações, sem determinar qualquer significação, como cita Moorhouse,
elas ―parecem transmitir uma experiência meditativa para além do tempo.‖
(MOORHOUSE, 2009, p. 7) Assim, sua estética pode aludir a múltiplas
significações ou a nenhuma. Muitas informações estilísticas em suas obras
parecem antagônicas, logo, ficam indisponíveis a uma única tradução e se
transformam inexplicavelmente em uma estética de distanciamento e
objetividade.
Richter, que evita fazer alusões através da arte, sabota a típica
concepção universal de mundo, que não busca encontrar significados na
aparência das coisas. Seus quadros são passivos como o próprio pintor deseja
que sejam.
Segundo a história da filosofia, o confronto entre a realidade e a
aparência, abordadas pelas teorias subjetivistas modernas dos idealistas
alemães, comemoram o declínio do objetivismo puro de inatistas e empiristas,
cujas teses reverenciavam a existência do objeto em si e por si mesmo,
indepedente e inacessível à razão subjetiva. Por analogia ao trabalho de
Richter, como vimos até agora, o tema da subjetividade é também amplamente
considerado. Em entrevista oferecida à Doris von Drathen em 1992, e também
citada na obra de Moorhouse, Richter esclarece:
O quadro pintado é primeiramente mais próximo da aparência (Schein), mas ele tem mais realidade do que uma foto, porque um quadro em si, perceptivelmente pintado à mão, tem mais caráter de objeto, pois é produzido materialmente tangível. A aparência da pintura é na comparação com a realidade sempre mais ou menos diferente (anders), e isto irrita. (RICHTER apud Moorhouse, 2009, p. 293).
O pintor deixa explícito seu posicionamento diante do problema,
declarando que a dicotomia entre a aparência e a realidade causa a ele um
34
grande desconforto: ―Nunca gostei da subjetividade‖ (RICHTER, 2009, p. 34).
Contudo, para Richter, a subjetividade goza de um duplo e antagônico status,
ao mesmo tempo em que impede o acesso do sujeito ao mundo externo, ela
resolve o problema da representação, enquanto fundamento da vontade: "Criar
uma imagem e ter entendimento disso, nos faz humanos". (RICHTER apud
Moorhouse, 2009, p. 34). Isso amplia ainda mais a distância entre a coisa em si
(termo Kantiano para essência) e a imagem da realidade, o fenômeno
(aspectos impressos na superfície dos objetos, referente ao mundo empírico).
Nesses termos Moorhouse cita: "Richter define sua arte a partir da aparência
da natureza desconfiando da verdade entre o que o olho vê, do que a natureza
representa e do temperamento do artista.‖ (MOORHOUSE, 2009, p. 34). Nesse
momento aparecem os motivos que levaram Richter a não produzir uma arte
que imita a natureza:
O sistema completo da arte que imita (lança mão de ver imagens através da percepção, interpretação e de criar uma composição, desenhar, colocar tinta, fazer sombra e luz) é fundamentalmente subjetivo. Isso significa que todo este trabalho é conectado com o mundo interno do artista e não direto com o mundo externo. O mundo como ele é realmente, está para além da aparência. Essa subjetividade do artista que capta fenômenos da aparência do objeto, idealizando-os e tornando-os estéticos, só serve para suscitar a nebulosidade (vernebeln) dessa aparência. (RICHTER, 2009, p. 35).
Richter, que explícita e analíticamente alude ao problema do conhecer
esbarra no tema central da epistemologia reafirmando que ele é
incontestávelmente provocado pela subjetividade. Logo, em concordância com
as teorias subjetivistas, encontramos Richter declarando em entrevista com
Rolf Schoen em 1972, o seguinte: ―Eu não desconfio da realidade, da qual eu
não sei quase nada, mas da imagem da realidade como nossos sentidos nos
transmitem e da imagem da realidade que não é completa, é limitada‖.
(RICHTER apud Moorhouse, 2009, p. 60)
O pintor, através de sua experiência como artista, interpreta a realidade
de forma a concluir que a subjetividade é a condição humana que nos
impossibilita conhecer o mundo exterior (dos objetos). Entretanto, ele deixa
claro que tal afirmação não pressupõe sua crença na existência da essência da
35
realidade. Richter continua esclarecendo que a subjetividade exige que a
realidade seja sentida indiretamente e por isso ele acredita que não podemos
emitir um juízo efetivo à seu respeito: ―Tudo o que existe, parece e é visível
para nós por intermédio da aparência que as coisas refletem, nada mais além
disso é perceptível‖. (RICHTER, 2009, p. 65).
Ainda acerca do tema, Richter, em outra entrevista cedida a Peter Sager
em 1972 e captada por Moorhouse, afirma: ―Nós não podemos confiar na
imagem que vemos da realidade, por que nós só vemos o objeto como nosso
olho está nos transmitindo, além de outras experiências, que por sua vez,
corrigem esta imagem.‖ (Ibidem, 2009, p. 65).
Richter, ao alcançar sua maturidade artística em 1960, declara
explicitamente, através de sua experiência como artista, sua preocupação com
um problema existencial jamais resolvido: saber se existe ou não uma
realidade ou se tudo o que somos e pensamos, só existe para nós apenas
mediante nossa condição subjetiva, logo, num mundo exclusivamente particular
e utópico. Até esse momento fica claro sua frustração frente à impossibilidade
de se apreender o ser das coisas (essência) assim o artista que almeja
produzir obras revolucionárias completa um volta de 180 graus e deixa
transparecer seu pesar frente à inexistência do espírito de um tempo de
significações no âmbito das artes.
36
Capítulo 2 – O ―foto-realismo-transcendental‖ de Gerhard Richter interpretado
segundo o conceito de história de Walter Benjamin
Abriremos esse segundo capítulo analisando o quadro intitulado Party,
(Festa) pintado por Gerhard Richter em 1963, baseado em uma fotografia
publicada na revista alemã Neue Illustrierte. Essa pintura paradoxal mostra que
embora o quadro seja quase que uma cópia perfeita dessa referência
fotográfica, ele trata de uma dimensão visceral da realidade deixando
transparecer a interpretação particular de mundo do pintor. Nessa experiência
estética o espectador fica ainda mais confuso quando seu acromatismo volta a
reverenciar sua origem midiática:
Fig. 9. RICHTER, Gerhard. Party (Festa). Museum Frieder Burda, Baden
Baden. Diversos materiais, 150 x 182 cm, 1963.
37
Embora o homem entre o grupo de mulheres glamorosas seja um
famoso apresentador de televisão chamado ―Vico Torriano‖, o título do quadro
não o menciona, tampouco a identidade das mulheres ali representadas. Muito
pelo contrário, o fato da perna de uma das modelos ter sido pintada na cor de
pele, a tinta vermelha lançadas aleatoriamente sobre a tela e as costuras sobre
seu plano superior, pressupõem seu posicionamento subjetivo frente ao plano
da existência.
Em tempos midiáticos, tais inscrições contrapõem-se a típica forma de
representação foto-realista. Mais interessante ainda, é observar que sob os
rasgos, no plano inferior da tela, estão costurados recortes de textos e fotos de
jornais. Aspectos esses, para os quais nos chama atenção o crítico de arte
Moorhouse, ao interpretá-lo: ―Com isso é sugerido que no fundo do quadro haja
uma camada, uma dimensão da existência.‖ (MOORHOUSE, 2007 p. 43) O
quadro Party trata do tema da dicotomia entre a essência e a superfície da
realidade marcando o aspecto central da arte de Richter, que, não obstante,
subsistirá em suas futuras obras.
Esse quadro é um, entre muitos outros, onde a subjetividade de Richter
dá indícios de sua tendência a compreender o mundo por um viés mais
ontológico, existencialista, tragi-romântico e rebelde. Os motivos para tal
interpretação são oferecidos além de, por intermédio das características
intrínsecas de seu estilo, nas palavras do próprio pintor, e por si sós, nos
estimulam a meditar sobre o sentido da vida e do conceito de obra de arte em
termos metanarrativos.
2.1 - O conceito de crítica de obra de arte de Walter Benjamin pendular entre a
Aufklaerung de Kant e o romantismo de Hegel
Segundo nossa pesquisa, as teorias estéticas de Kant e Hegel partem
do devir dialético, no entanto, surgem distinções no que concerne a
fundamentação do conceito de história na concepção de cada pensador. Suas
interpretações de mundo oscilavam entre um romantismo exacerbado e um
árido racionalismo.
38
O conceito de história, enquanto reflexão filosófica acerca de seu
significado existencial é fundamental na esfera artística e como tal abarca
discussões das mais diversas ordens, entre as quais oscilam meditando acerca
da tradição e da vanguarda.
Respeitando a particularidade de cada uma das doutrinas dos filósofos
do idealismo alemão Kant e Hegel, veremos como ambos os pensadores
concordam ao considerar a ―realidade essencial e suprema‖ racionalmente e
como isso veio a ser interpretado por Benjamin no século XX.
2.1.1 – Distinções entre o conceito de história em Kant e Hegel
É importante observar que a arte nesse contexto está sendo tratada
como elemento fundamental entre os problemas que surgem dos vínculos da
Aufklaerung e o romantismo alemão. Relações essas que parecem
conflituosas, desde que a reprodutibilidade técnica passa a agir na esfera
artística transformando a arte em propaganda política, exigindo, por assim
dizer, um novo método de apreensão da realidade e configurando o teor
reflexivo e o gosto do ―receptor‖.
Com o racionalismo e o empirismo, temos como válida a afirmação
moderna, à respeito do processo de produção de conhecimento, principalmente
na relação do sujeito com o objeto. Sendo esse o eixo condutor das
possibilidades de apreensão do objeto pelo sujeito, podemos afirmar que seja
possível a assimilação da realidade de forma diferenciada, ou seja, de acordo
com cada subjetividade, uma vez que cada sujeito percebe o mundo de uma
forma particular. Contudo, considerando Kant, quando afirma que o sujeito
realiza tal processo, condicionado pelas ―formas a priori de entendimento:
espaço e tempo‖ (KANT, p. 24, 1987), podemos dizer que pelo menos quanto à
captação dos fenômenos nosso acesso é uniforme.
Para o autor da Crítica da Faculdade do Juízo (1790) a apreensão da
realidade se dá de maneira ―regular‖. O que o levou a compreender a estética
pelo viés subjetivo. Direcionando nossa compreenção epistemológica para o
campo da arte, entendemos que é importante esclarecer que o termo Estética
39
estará ancorado no pensamento de kant, que é figura marcante na percepção
do belo e do Sublime, na prática da vida cotidiana.
A estética para Kant é um estado de vida de direito do sujeito
cognoscente e que no âmbito da fruição, está intimamente relacionada às
outras de suas capacidades, que vão para além das cognitivas constitutivas da
faculdade do conhecimento conceitual.
Segundo a teoria do conhecimento de Kant, no confronto com o objeto, o
sujeito capta suas características em toda a sua plenitude, e não isoladamente,
como poderíamos imaginar. A arte, segundo o autor, estéticamente
considerando, tem um caráter contemplativo e não intelectivo, transcendendo o
mero estatuto teório com a finalidade de conceituar ou classificar o objeto,
sumariamente, ela se preocupa apenas com a contemplação em si.
Nas próprias palavras de Kant:
O que há com o objeto em si e separado de toda essa receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nosso modo de percebê-los, o qual nos é peculiar e não tem que concernir necessariamente a todo o ente, mas sim a todo homem. Temos a ver unicamente com esse modo de percepção. Espaço e tempo são as suas formas puras, sensação em geral a sua matéria. Podem conhecer aquelas unicamente a priori, isto é, antes de toda a percepção real, e chamam-se por isso intuição pura; a última, porém, é o que em nosso conhecimento a faz chamar-se conhecimento a posteriori, isto intuição empírica. Aquelas inerem à nossa sensibilidade de modo absolutamente necessário, seja de que espécies forem nossas sensações; estas podem ser bem diversas. Mesmo que pudéssemos elevar essa nossa intuição ao grau supremo de clareza, com isso não nos aproximaríamos mais da natureza dos objetos em si mesmos. (KANT, 1993, p.49)
Tal percepção ou captação dos fenômenos do objeto praticadas pelo
sujeito, não quer instituir a idéia de uma supremacia da subjetividade, mas
inspira-nos a pensar que essa ação se realiza de uma maneira muito particular,
e que pode, portanto, ser confirmada pela intersubjetividade, que kantinamente
interpretando podemos chamar de "subjetividade universal". Contudo, para
Kant a manisfestação estética só pode ser objeto de observação, por aqueles
que possuírem, a priori, os aparatos necessários para sua captação:
inteligência e sensibilidade, além de ser necessário também que tais sujeitos
40
estejam diponíveis a apreenderem a presença sensível de um objeto
específico:
A faculdade dos conceitos quer sejam eles confusos ou claros, é o entendimento; e conquanto ao juízo de gosto, como juízo estético também pertença o entendimento (como a todos os juízos), ele, contudo pertence ao mesmo, não como faculdade do conhecimento de um objeto, mas como faculdade da determinação do juízo e de sua representação (sem conceito) segundo a relação da mesma ao sujeito e seu sentimento interno, e na verdade, na medida em que este juízo é possível segundo uma regra universal. (KANT, 2005, p. 74-75)
Segundo Kant, lembramos que, é através da experiência do sublime e
do belo que o humano tem a aportunidade experimentar e realizar sua
capacidade mais elevada: a contemplação. Assim, Kant traz para o mesmo
âmbito, no que tange o conceito da percepção estética, todos os objetos
independente do seu caráter de ser artístico, originário da natureza ou da vida
cotidiana, pública ou privada. Enfim, para o autor, todos os objetos são
possuidores de aspectos no mínimo comuns, ou seja, manifestam-se a partir
da observação do sujeito, no limite, kantianamente entende-se que conceitos e
objetos estéticos são indissociáveis.
A partir dessa relação da percepção com a contemplação estética
realizada pelo sujeito, ao contrário do que se possa imaginar, ele se liberta das
amarras impostas pelas determinações do conhecimento conceitual, realizando
assim sua experiência enquanto ser determinado no mundo. Na introdução da
Crítica da faculdade do juízo, Kant esclarece que a capacidade do
conhecimento é proveniente da ―alma‖, logo, tal conhecimento disponibiliza-se
a todos os sujeitos, como descreve o pensador:
Em qualquer um esse prazer tem que necessariamente assentar sobre idênticas condições, porque elas são condições subjetivas da possibilidade de um conhecimento em geral, e a proporção destas faculdades de conhecimento, que é requerida para o gosto, também é exigida para o são comum entendimento que se pode pressupor em qualquer um (KANT, 2005, § 156, p. 139).
41
A subjetividade, que etmologicamente corresponde a uma qualidade do
mundo interno do sujeito em sua condição particular, é em Kant ―universal‖. Ao
aplicarmos a crítica Kantiana do juízo na dimensão estética, percebemos que
isso se dá na esfera do sentimento. Para compreendermos tal particularidade
no pensamento do autor, desdobraremos o tema do devir, que nesse momento
histórico representa a dialética intelectual, distintamente concebido em Kant e
Hegel.
2.1.2 - Kant: Razão transcendental e intuição sensível X Hegel: Razão Absoluta
e intuição racional
O conceito de arte de Hegel compreende o devir dialético desdobrado no
tempo Histórico apenas enquanto ideia e não empiricamente como para Kant.
Ser e ser compõe o todo universal que Hegel chamou de Ideia absoluta. As
citações hegelianas nos levam a compreender que a arte autonôma toma corpo
no Espírito absoluto, diferentemente da autonomia da arte de Kant, que
concebe a arte na relação do sujeito com o objeto, empiricamente. Isso é
esclarecido por Hegel em sua obra A Filosofia do Espírito III, da seguinte
forma:
O espírito não é algo em repouso; antes, é o absolutamente irrequieto, a pura atividade, o negar ou a idealidade de todas as fixas determinações-do-entendimento. Não é abstratamente simples, mas em sua simplicidade, ao mesmo tempo, é um diferenciar-se de si-mesmo. Não é uma essência (já) pronta, antes de seu manifestar-se, ocultando-se por trás dos fenômenos; mas na verdade, só é efetivo por meio das formas determinadas de sua necessária manifestação de si. (HEGEL, 1995, § 378, p.10) 1o-) O espírito é na forma da relação a si mesmo: no interior dele lhe advém a totalidade ideal da idéia. Isto é: o que o seu conceito é, vem-a-ser para ele; para ele, o seu ser é isto: ser junto de si, quer dizer, ser livre. (É o) espírito subjetivo. 2o-) (O espírito é) na forma da realidade como [na forma] de um mundo a produzir e produzido por ele, no qual a liberdade é como necessidade presente. (É o) espírito objetivo. 3o-) (O espírito é) na unidade – essente em si e para si e produzindo se eternamente – da objetividade do espírito e de sua idealidade, ou de seu conceito: o espírito em sua verdade absoluta. (É) o espírito absoluto. (Ibiden, § 385, p.29)
42
O idealismo absoluto de Hegel nos esclarece como o movimento
dialético da Razão absoluta é o próprio devir dialético em atuação, que depois
de desdobrado no tempo histórico, volta a compor a ―Verdade absoluta‖, ou em
outros termos, o devir dialético é o desdobramento da tese, enquanto princípio
não desdobrado. A antítese, que coloca a tese em movimento, em algum
momento, se distancia dela extraindo o seu contrário e a síntese, no limite
dessa tensão, extrai de ambas, suas diferenças ou a unidade mais íntima
dessa interrelação.
Contudo, como traduzimos da citação acima, para Hegel esse
movimento não acontece num único intervalo de tempo, mas em múltiplos
momentos. Isso em virtude da verdade parcial que constitui a unilateralidade da
tese e da antítese, permitindo que a síntese, em última instância, seja a
compensação e a complementação de ambas, tranformando suas não-
verdades em uma verdade plena. Lembramos que, disponibilizada no
movimento do devir, a Verdade absoluta ou plena torna-se denovo uma nova
tese, ou seja, uma nova verdade parcial, perpetuando seu desdobramento
infinitas vezes.
Sumariamente Hegel concorda com Kant, quando o pensador entende
que a realidade é subjetivamente racional, no entanto, para Hegel é apenas em
termos exclusivamente idealizados, pois, para sua epistemologia o
conhecimento é desprovido de quaisquer possíveis relações com a experiência
empírica. Segundo o filosófo, o presente, o passado e o futuro são tempos que
existem isoladamente em cada sociedade e momento histórico, onde os
conhecimentos, valores e significações nascem e morrem no próximo período.
Em Kant, por sua vez, o tempo não é considerado históricamente, ele é,
assim como o espaço, uma categoria a priori. Como vimos anteriormente, as
categorias a priori de tempo e espaço kantianas constituem uma faculdade
puramente abstrata responsável por captar objetos empíricos. Uma captação
que se dá sem intermediários, intuitivamante e independente do tempo.
O sujeito para Kant, na marcha dialética do devir, é um ser
transcendental ou lógico racional, que organiza a experiência empírica, através
da sensibilidade. Ao realocar o sujeito no centro do conhecimento, Kant traça
43
seus limites e potenciais. Logo, o conhecimento racional ou a razão kantiana,
na constituição de sua estrutura e conteúdo particulares, realiza a síntese entre
uma forma universal inata e a experiência empírica realizada através da
intuição que é, para o autor, exclusivamente sensível, e não intelectual ou
racional como para Hegel. Todavia, como pudemos perceber até agora, ambas
as teorias se alinham ao considerarem o Absoluto racionalmente.
2.1.3 - Estética: O conceito de belo alinha Kant e Hegel
O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na imitação; o sublime, contrariamente, pode também ser encontrado num objeto sem forma, na medida em que seja representada nele uma imitação ou por ocasião deste e pensada além disso na sua totalidade; de modo que o belo parece ser considerado como apresentação de um conceito indeterminado do entendimento, enquanto o sublime como apresentação de um conceito semelhante a razão.
Immanuel Kant
Ao analisarmos a obra Curso de estética I de Hegel pela perpectiva
histórica percebemos que Kant e Hegel, reservando as singularidades de suas
doutrinas, consideram que o verdadeiro conhecimento acontece na fruição
contemplativa da experiência estética, em última instância, em uma dimensão
que transcende a racional. O conhecimento efetivo vai além dos estados
distintos daquilo que concerne a estado essêncial do sujeito e do objeto, cujo
elo de ligação se faz por intermédio do belo.
Hegel, por sua vez, concordar com o belo artístico kantiano, quando
esse o compreende como objeto estético único e unificador:
O belo artístico foi reconhecido como um dos meios que resolve e reconduz a uma unidade aquela contraposição e contradição entre o espírito que repousa em si mesmo abstratamente e a natureza - tanto a que aparece externamente quanto a que é interior e pertence ao sentimento (Gefühl) e ao ânonimo subjetivos. (HEGEL, 2001, p.74).
44
Hegel, mesmo divergindo quanto a forma sistemática seu tratado,
reconhece o mérito do postulado kantiano, ainda quando esse transforma em
fundamento, a racionalidade que pauta em si mesma sua própria finalidade.
Como observa Hegel, Kant intencionava profetizar a ―Unidade‖ sobre a
esfera da subjetividade. Segundo Hegel, para Kant:
Não restou outra saída a não ser proferir a unidade apenas na Forma de idéias subjetivas da razão, para as quais não podia ser demonstrada uma efetividade adequada, como também em postulados que devem ser deduzidos da razão prática, mas, segundo Kant, seu ser em-si (Ansicht) não pode ser conhecido pelo pensamento e cuja realização prática permaneceu um mero dever (Sollen) sempre empurrado ao infinito. E assim Kant realmente representou a contradição reconciliada, mas não conseguiu desenvolver cientificamente sua essência verdadeira nem demonstrá-la como a única e verdadeira efetividade. (HEGEL, 2001, p.75)
Como pudemos compreender até agora, o sistema cognoscente
kantiano pretendia resolver o problema da contraposição entre o sujeito e o
objeto, o particular e o universal ou ainda a aparência e a essência da
realidade, esbarrando no antigo problema do conhecimento, "do pensamento
subjetivo e das coisas objetivas (objektiven gegenstaenden), da universalidade
abstrata e da singularidade sensível, da vontade" (Ibidem, 2001, p. 75). Mas,
na opinião de Hegel, nesse ponto, Kant não alcança seus intentos.
Sumariamente, Kant hipostasia que pelo pensamento meramente
racional é impossível apreender a verdade (essência) das coisas, isso mesmo
na relação direta com o objeto cognoscente, pois seu núcleo permanece
inacessível, ainda que seu encontro aconteça na esfera da moral. Esse é o
ponto em que Hegel discorda: "Na verdade, defini o juízo em geral como a
"faculdade de pensar o particular como contido no universal" e denomina de
reflexionante o juízo, quando apenas lhe é dado o particular, para o qual deve
encontrar o universal". (HEGEL, 2001, p. 74). Logo, o pensamento hegeliano
tem em vistas superar científicamente o problema da essência da unidade, do
universal, que em Kant se mantém em aberto na Unidade. Kant considera a
essência ou o núcleo do objeto apenas como forma de idéias subjetivas da
razão.
45
Os pontos de discrepância que particularizaram cada um dos tratados
são superados através do conceito de belo. Hegel concorda com Kant na
medida em que autor concebe o belo reunindo em seu interior o universal e o
particular, conceito (idéia) e objeto (aparência), mesmo discordando dele no
que concerne seu entendimento acerca do conceito de tempo e em outros
aspectos. Sumariamente, a discussão ontológica girava em torno do duplo
status que gozava a conceito de belo na obra de arte: meios e finalidade.
2.1.4 - A dialética particular de Kant e Hegel
O objeto estético segundo Kant, como vimos anteriormente, possui seu
valor e finalidade pautados em si mesmo. Essa é a condição de sua
"universalidade ideal", que em outras palavras, é constituída pelos seus
próprios fins e meios, no limite, sua finalidade não se relaciona diretamente
com o interesse e o desejo particular de um determinado sujeito, mas
subjetivamente é entendida enquanto se destina a complascência universal.
Assim, o belo, enquanto possuidor de sua própria finalidade
disponibiliza-se universalmente a fruição desinteressada e ao prazer de todos,
agindo através da intuição e não das categorias do entendimento. No entanto,
o autor alerta que para ser afetado pelo belo é necessário que o sujeito seja
reconhecido como legítimo universalmente e para tanto lhe é exigido um
conhecimento prévio. Nas próprias palavras de Kant, citadas por Hegel na
obra Curso de Estética I, encontramos: "para apreciar o belo há a necessidade
de um espírito formado" (KANT apud Hegel, 2001, p. 77). Reiterando, Hegel
cita: "Na observação (Betrachtung) do belo não tomamos consciência do
conceito e da sua subsunção que se opera sob esse conceito e não deixamos
que aconteça a separação do objeto singular do universal, que no juízo sempre
está presente". (Ibidem, p. 77). A Idéia kantiana de belo com a qual concorda
Hegel é esclarecida na seguinte passagem:
O belo é em si mesmo infinito e livre. Pois se o belo também pode ser de conteúdo particular e, desse modo, novamente limitado, esse conteúdo deve, porém, aparecer em sua existência como totalidade em si mesma infinita e como liberdade, na medida em que o belo é sempre conceito que não
46
faz frente à sua objetividade e por meio disso se volta contra ela na opinião da finitude e da abstração unilaterais, mas se une com sua objetividade e por meio desta unidade e perfeição imanentes é em si mesmo infinito. (HEGEL, 2001, p. 126)
Para Hegel, a ideia de belo é absoluta, é espírito, e não está
condicionada e confinada nas limitações finitas da empiria, como vimos,
estabelecida nas estruturas categóricas do a priori kantianas. Segundo Hegel,
o conceito de belo não é, outrossim, que o Espírito absoluto e, enquanto tal é
universal e infinito. Como esclarece também Ubaldo Nicola na obra Antologia
Ilustrada de Filosofia: ―o sujeito para Hegel é o Espírito ou Razão, lembrando
que a razão Hegeliana não é algo estranho e contraposto à natureza, mas
coincidente com ela". (HEGEL apud Nicola, 2005, p. 358). O trecho enfatiza
como para Hegel, o Eu é sinônimo da razão discursiva.
A natureza enquanto representante do finito, do limitado, é distinta do
Espírito absoluto, contudo, prescinde deste. Logo, é constituída por sua
essência carregando intrínsecamente sua ideia. Todavia, não é o próprio
Espírito absoluto em sua plenitude, é outro dele, é sua "criatura" (das Setzend),
sendo admitida substancialmente em seu interior. Em linhas gerais, é no
antagonismo da idealidade (infinitude e verdade) e da negação (finitude e
limitação), que a natureza em sua forma aparente (Erscheinung) diverge e
converge no seio da Ideia absoluta, ora a supera se particularizando em si
mesma, ora a nega se universalizando como sua "criadora". Esclarecimento
esse que encontramos nas próprias palavras de Hegel:
Esta idealidade e negatividade infinita constituem o profundo conceito da subjetividade do espírito. Mas como subjetividade, o espírito é primeiramente apenas em si a verdade da natureza, na medida em que ainda não tornou seu verdadeiro conceito para si mesmo. A natureza não lhe está contraposta como ser-outro (Anderssein) insuperado e limitado, ao qual, como se o outro fosse um objeto encontrado a frente, o espírito permanece relacionado enquanto o subjetivo em sua existência de saber e de vontade e apenas pode figurar em natureza o outro lado. (HEGEL, 2001, p. 108)
Segundo Hegel, portanto, a subjetividade do espírito é um conceito que,
muito embora seja uno, se compreende desdobrando-o. Enquanto o espírito
47
não supera a natureza, se conservando em sua complacência, o subjetivo toma
forma de saber e vontade se lhe desprendendo.
Assim, através do princípio racional desdobrado dialéticamente e
mantido exclusivamente na dimensão do Absoluto ou do Ideal, que Hegel
pretende superar o inacessível ser-em-si kantiano. No limite, para Hegel é no
desdobramento do Espírito absoluto (da Idéia, do Universal, do Infinito) que
nasce a natureza (do posto, do particular, do finito), que como sua "criatura"
possui sua composição, mesmo não o sendo em sua plenitude.
Kant, por sua vez, postula o caráter dual da natureza (aparência) como
sendo de origem essencialmente Universal. Hegel, que parte dessa concepção
se distingue de Kant, ao determinar que parte desse desdobramento se nega e
volta a se reunir com o Universal ou o Absoluto. Na opinião de Hegel a
inacessibilidade da Natureza (do Particular) no Universal na doutrina kantiana
permanece sem solução. Porém, Kant, ao hipostasiar que o universal é um
conceito que contém o particular e sua aparência a partir de seu interior,
sustenta a concepção hegeliana de Absoluto, logo, ambos concordam quanto
ao fato do universal determinar o particular.
Na sequência, veremos como Walter Benjamin, mesmo vivendo no auge
do período moderno, herda traços das doutrinas dos idealistas alemães,
trazendo à tona os problemas que surgem do imbricamento do processo
estético da arte com a política e a sociedade, considerando trágico que a arte
perca sua essência incondicional. Nesse ponto, Benjamin assim como Hegel,
também considera o conceito romântico de arte. Ambos partem do pressuposto
kantiano de que existe identidade entre o artístico e o belo da natureza: "a
natureza é bela quando tem a aparência da arte"; e que "a arte só pode ser
chamada de bela quando nós, conquanto conscientes de que é arte, a
consideramos como natureza" (KANT, 1993, § 45).
De forma a especificar a natureza de nossa análise buscaremos
entender como isso vem a acontecer na reflexão-crítica de Walter Benjamin.
48
2.1.5 - Walter Benjamin a partir do conceito de obra de arte dos Idealistas
alemães
No que tange os conceitos como conhecimento, belo, gosto e gênio,
Benjamin cita, já no início de sua tese de doutorado O Conceito de Crítica de
Obra de Arte no Romantismo Alemão, as passagens kantianas que lhe foram
caras:
No § 1 da Crítica do juízo podemos ler: ―Para distinguir se uma coisa é bela ou não, nós não relacionamos por meio do entendimento a representação ao objeto visando o conhecimento, mas , antes, nós a relacionamos pela imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao sentimento de prazer ou de pena deste. O juízo de gosto não é, portanto, um juízo de conhecimento; consequentemente, ele não é lógico, mas estético; o que significa: aquilo cujo princípio determinante não pode ser senão subjetivo. No § 35 na analítica do sublime Kant assinala que o ―o juízo do gosto se distingue do juízo lógico, devido ao fato de que este último subsume uma representação sob conceitos do objeto, enquanto o primeiro não subsume nada sob o conceito, pois senão sob o assentimento universal necessário poderia ser imposto por provas. No entanto, ele é parecido ao juízo lógico na medida em que pretende uma universalidade e uma necessidade, mas não á partir de conceitos do objeto, e, consequentemente, puramente subjetivas‖. Como Kant deixa claro mais adiante, ―o gênio é o talento (dom natural) que fornece regras à arte‖. (& 46). (KANT apud Benjamin, 2002, p. 139).
Compreender o conceito obra de arte na concepção de Benjamin exige-
se uma aproximação maior de seu conceito de história, cuja constituição parte,
além de outros conceitos não considerados por esse texto, do conceito de belo
de Kant e de história de Hegel.
Como vimos até agora, no que tange ao aspecto exterior da obra de
arte, o tratado kantiano parece dar sustentação para o postulado hegeliano.
Todavia, Hegel passa a considerar a inter-relação da arte com o público,
abrindo caminhos para investigações acerca do tema da "recepção" no sentido
mais sociológico, mais precisamente amplia o tema da arte para o âmbito da
sociologia da comunicação, na abordagem que envolve as relações entre a
49
obra de arte, o público, o autor e a sociedade. Relações essas que são
profundamente refletidas e desdobradas por Walter Benjamin.
Para Benjamin, parecia haver uma urgência em se estabelecer uma
crítica imanente sobre todas as obras de arte, "se a obra é criticável, logo ela é
uma obra (de arte), de outro modo ela não o é. (BENJAMIN apud Silva, 2007,
p.33). Esse já é primeiro ponto de divergência entre Benjamin e Kant.
Mesmo tendo Benjamin partido da via kantiana ao conceber o belo da
obra de arte em sua autônomia, sua reflexão acerca dos conceitos de forma e
conteúdo na constituição da obra de arte, hesita entre o Idealismo histórico
hegeliano e o materialismo histórico marxista.
Como observa o crítico de arte Clement Greemberg ao interpretar Kant,
entende-se que emitir um juízo de valor acerca de um objeto artístico acontece
a partir da experiência estética, através da forma, que está disponível além de,
―formalmente‖ num objeto artístico produzido pelo homem, ―não-formalmente‖,
num objeto natural (da natureza). Greemberg observa que essa autonomia
estética frente às supressões das instâncias políticas é um aspecto romântico
em Kant e isso é compreendido quando o autor concebe a arte privilegiando a
forma em detrimento do conteúdo. Esse é o ponto, a partir do qual se
compreende que a afetação estética para Kant é imediata e como tal produz
um efeito exclusivamente autônomo na sensibilidade do fruidor. Logo, a arte
está disponível à intuição em qualquer experiência estética, o que por si só,
legitima a subjetividade livre e espontânea do gosto:
Juízos estéticos é a experiência estética, coincidem com ela, chamam atenção para ela e, ao mesmo tempo, lhe são consubstanciais. Tudo isso vale ainda, mais uma vez, para a experiência estética bruta, ―não-formalizada‖: para o pôr-do-sol e para a aurora (que me agrada mais), para o canto dos pássaros e o farfalhar das folhas, para sons ou ruídos agradáveis ou desagradáveis, odores, sensações táteis e sensações de frio ou calor, estados de espírito, idéias e lembranças (todas elas podem ser vividas esteticamente, como qualquer outra coisa que não a própria experiência estética). É ainda o juízo de valor que confere ―forma‖, seja na arte formalizada ou não-formalizada. Aqui coopera o distanciamento estético. (GREEMBERG, 2002, p. 112).
Por analogia ao pensamento de Greemberg, lembramos que para
Benjamin, não se trata de proferir o seu inverso, ou seja, condenar a forma em
50
detrimento do conteúdo, mas de lembrar que ambos os elementos estão
intrínsecamentes relacionados. Benjamin alerta ainda que, o formal em arte
não é uma estrutura vazia, mas está em consonância com seu conteúdo e
como tal carrega, além da qualidade do estilo, o caráter ideológico de seus
temas.
É com grande pesar que Benjamin assiste a natureza contemplativa da
arte, inscrita na forma da natureza, sucumbir à estética publicitária. A essência
dessa reflexão parece ter origem nas vicissitudes catastróficas de seu tempo.
Hegel, um século antes de Benjamin, descreve os primeiros indícios dessa
supressão moral que alcançará sua máxima no século XX. Em seu Curso de
Estética I encontramos:
A arte tem à sua disposição não somente todo o reino das configurações naturais em suas aparências múltiplas e coloridas, mas também a imaginação criadora que pode ainda, além disso, manifestar-se em produções próprias inesgotáveis. Perante esta plenitude incomensurável da fantasia e de seus produtos livres, o pensamento parece que tem de perder a coragem para trazê-los em sua completude diante de si, para julgá-los e enquadrá-los em suas fórmulas gerais. Em contraposição concede-se que a ciência, segundo a sua Forma, ocupa-se com o pensamento que abstrai da massa de particularidades. Assim sendo, por um lado, fica dela excluída a imaginação e seus aspectos casuais e arbitrários, isto é, o órgão da atividade e fruição artísticas. [19] Por outro lado, se é justamente a arte que distraindo vivifica a árida secura sem luz do conceito, se concilia as abstrações e cisões do conceito com a efetividade, se complementa o conceito com a efetividade, não pode ficar desapercebido que uma consideração apenas pensante supera de novo este meio de complementação, o destrói e conduz o conceito de novo para a sua simplicidade destituída de efetividade e para a abstração cheia de sombras. Quanto ao conteúdo, a ciência, além disso, se ocupa com o que é em si mesmo necessário. E se a estética deixa de lado o belo natural, aparentemente não apenas nada ganhamos com isso, como também nos afastamos ainda mais do que é necessário. Pois a expressão da natureza já nos oferece a representação da necessidade e conformidade as leis, a representação de uma relação que fornece enfim esperança de uma maior proximidade com a consideração científica e uma possibilidade de nos entregarmos a ela. Mas no espírito em geral e sobretudo na imaginação parece que, em comparação com a natureza, reside claramente o arbítrio e o desregramento, o que por si só impede qualquer fundamentação científica. (HEGEL, 2001, p. 31)
51
Para Hegel, a arte e a natureza, a criação e a intuição, são premissas da
Verdade absoluta. Esse, que é o epílogo climáxico de todos os românticos,
leva também Benjamin a considerar, em algum momento, o sentido primordial
da existência pautado na razão ideal.
Traços do pensamento racionalista e romântico de kant e Hegel,
aparecem considerados por Benjamin ao fundar seu conceito de Aura. Ao
pautar a finalidade em si mesma, a arte dos românticos é sinônima da arte pela
arte, refugiando os rebeldes e os oprimidos. Do artista romântico ecoava a voz
de uma nova ordem burguesa, que inconformada contra o absolutismo do
Antigo regime, ainda não vislumbrava a possibilidade da existência de qualquer
outra ordem, capaz de submetê-los. Mal conjecturavam que a obra de arte se
sujeitaria à condição de mercadoria com o estabelecimento do capitalismo. Isso leva Benjamin a concordar com Brecht no seguinte trecho:
Desde que a obra de arte se torna mercadoria, essa noção (de obra de arte) já não lhe pode mais ser aplicada; assim sendo, devemos, com prudência e precaução - mas sem receio - renunciar á noção de obra de arte, caso desejemos preservar sua função dentro da própria coisa como tal designada. Trata-se de uma fase necessária de ser atravessada sem dissimulações; essa virada não é gratuita, ela conduz a uma transformação fundamental do objeto e que apaga seu passado a tal ponto, que, caso a nova noção deva reencontrar seu uso - e por que não? - não evocará mais qualquer das lembranças vinculadas á sua antiga significação." (BRECHT apud Benjamin, 1960, p. 12)
Benjamin reflete sobre o status da obra de arte em termos de juízo de
valor percebendo a necessidade da passagem de um tempo que fundou a
noção de obra de arte (aurática, canônica ou sacra) sobre o conceito de
história linear e progressivo dos vencedores, para um novo momento histórico,
onde a arte renasceria autônoma. Sumariamente, a inquietação de Benjamin
decorria da decadência das elaboradas características intrínsecas do objeto
estético na reflexão e no gosto do fruidor a partir da mudança do valor de aura
para o de exposição.
Benjamin deixa claro que a ―democratização da arte‖ a partir de sua
reprodução técnica e indefinida, em detrimento da perda de sua aura, leva
52
consigo também a tradição disponível no devir do tempo histórico. Acerca
disso cita:
O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, com seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (BENJAMIN, 1994, p.224).
Para Benjamin o passado é único e dele nada se recupera:
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. [...] Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. (BENJAMIN, 1994, p. 224)
A dupla função da arte tensionada entre o passado e o futuro, levou
Benjamin a refletir a arte em termos tanto teológicos quanto materialistas: ―A
tarefa do historiador materialista é arrancar do esquecimento a história dos
vencidos e, então, empenhar-se numa dupla libertação: a dos vencidos de
ontem e de hoje.‖ (BENJAMIN, 1994, p.224). No olhar benjaminiano surge a
preocupação com os acontecimentos provocados pela ―estética de guerra‖,
essa que marcaria para sempre a memória e a cultura da Alemanha, dentro da
qual nasce o pensador na condição de judeu. Isso levou Benjamin a aspirar
uma libertação, tanto da moral religiosa quanto política, ou seja, daqueles que,
em última instância, determinavam o rumo da história em detrimento da
felicidade do homem, não apenas de judeus, mas de uma grande massa de
oprimidos.
Ambas, ―tradição‖ e ―vanguarda‖, na esfera da arte, segundo Benjamin,
subsistiam igualmente nas determinações da propaganda política nos domínios
da estética de guerra:
Todos os esforços para estetizar a política culminam num só ponto: a guerra. A guerra e só ela, permite fornecer um motivo para os maiores movimentos de massa, sem, assim, tocar-se no estatuto da propriedade. Quanto a linguagem técnica, poderiam ser assim formuladas: só a guerra permite mobilizar
53
todos os recursos técnicos da época presente, sem em nada mudar o regime de propriedade. Evidente que o fascismo em sua glorificação da guerra, não usa tais argumentos. (BENJAMIN, 1936, p. 27)
Seu pensamento na perspectiva histórico-materialista aparece
claramente na citação acima legitimando seu pessimismo frente à estética
publicitária a serviço do nazismo. Benjamin, na esperança de que os meios
técnicos servissem a expressão e a democratização da arte e da cultura,
assistiu a arte suprimida pela técnica servindo a estetização da política,
exigindo uma nova forma de acolhida do objeto estético. A arte publicitária nas
próprias palavras do autor: "não exige nenhum esforço de atenção".
(BENJAMIN, 1936, p. 27).
A teoria crítica de Benjamin reflete acerca dos meios técnicos de
reprodução de imagens (fotografia, televisão e cinema) introjetados na esfera
artística refutando que, além deles atenderem a demanda da cultura de massa,
provocaram um tamanho desgaste, vulgarização do objeto estético, que foi
capaz de destruir sua singularidade enquanto uma inesgotável fonte de
contemplação, fruição e reflexão. A respeito disso, salienta Peter Osborne e
Andrew Benjamin do pensamento Walter Benjamin o seguinte:
A humanidade que no tempo de Homero era um objeto de contemplação para os deuses olímpicos, agora é para si mesma. Sua auto-alienação chegou a tal ponto que ela é capaz de experimentar sua própria destruição como um prazer estético primeira ordem. Essa é a situação da política, que o fascismo está tornando estética. O comunismo reage politizando a arte. (BENJAMIN apud Osborne e Benjamin A., 1994, p. 44)
Na reflexão de Benjamin, a destruição da aura que singularizava a
unicidade e a historicidade da obra de arte, levou consigo a presença imanente
e transcendental de sua autenticidade, configurando a marca de uma grande
tragédia. Segundo nossa pesquisa, até esse ponto a perda da aura para
Benjamin é pesarosa, contudo ele não lamenta o fato da arte aurática ter
perdido sua ligação com o passado que fundou a noção de obra de arte na
pauta do sagrado e do continuum da história dos vencedores, mas lastima o
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fato dela ao ser indefinidamente reproduzida perder sua singularidade
tornando-se esquiva a sensibilidade.
Kátia Muricy interpreta o pensamento do autor da seguinte forma: ―O
historiador materialista, ao invés de ficar na simples constatação dos fatos da
historiografia científica, quer transformar o que está inacabado (a felicidade) em
algo acabado e o que está acabado (o sofrimento) em algo inacabado.‖
(MURICY, 1998, p. 231). Segundo Muricy, para Benjamin, o passado é
importante na medida em que deixa latente a esperança de uma felicidade que
não se efetivou, e tampouco se efetivava naquele momento (no auge da
Segunda Guerra Mundial).
Para Benjamin, essa fé em uma ―redenção‖ é a força que impulsionava a
classe operária a revolucionar contra a classe opressora: ―essa é a verdadeira
força da classe operária: o ódio e o espírito de sacrifício, porque um e outro se
alimentam da imagem dos ancestrais escravizados, e não dos descendentes
libertados.‖ (BENJAMIN, 1994, p. 229). Assim, Benjamin pendula entre sua
herança do materialismo histórico e a do messianismo judaico, concebendo
que o ser social só poderia ser liberto dessa condição material pela via
messiânica. Mas isso, não na forma ortodoxa do messianismo judaico, que
entende o passado como um tempo que labora na construção de um presente
e sim como um tempo que históricamente se singulariza em cada nova
experiência: ―o materialista histórico faz desse passado uma experiência única‖
(BENJAMIN, 1994, p. 231). Ainda acerca do conceito de história benjaminiano,
encontramos em sua obra Passagens, como o pensador concebe o próprio
devir incapturável do tempo:
Não se trata da projeção do passado no presente, nem da projeção do presente no passado. A imagem é aquela em que o que já foi [Gewesene] se funde com o agora [Jetzt], numa conjunção veloz como o relâmpago. Em outras palavras: a imagem é a dialética em estado de repouso [Dialetik im Stillstand]. Pois enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a ‗do que foi‘ [o outrora] com o agora é dialética: não fluxo, mas imagem brusca. (BENJAMIN, 1987, p. 83).
Ao julgar o sujeito e a arte moderna nesses termos, Benjamin considera
a dialética do materialismo histórico e o messianismo judaico antagonicamente
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tensionados entre o tangível e o fugidio. Esse ponto é esclarecido por Hanna
Arendt, ao interpretar o pensamento de Benjamin. Na sua concepção, o que
Benjamin conservava de ambas dialéticas era sua face rebelde: a antítese, ou
seja, a face ―negativa‖:
Isso mostra claramente quão pouco lhe interessava o aspecto ―positivo‖ (síntese) dessas ideologias e o que lhe interessava verdadeiramente em ambos os casos era o fator ―negativo‖ de crítica às condições existentes, um caminho para fora da hipocrisia e das ilusões burguesas, mas uma posição fora da instituição literária e também, acadêmica. (ARENDT apud Neves, 1987, p. 162).
Ainda buscando compreender o conceito de história na concepção de
Benjamin, voltamos a analisar a obra Curso de Estética I de Hegel (1835)
confrontando-a com o artigo do próprio Benjamin A obra de arte na época da
reprodutibilidade técnica (1936). Percebe-se que mesmo que o pensamento de
Hegel anteceda historicamente ao de Benjamin em 100 anos, ambos refletem
sobre os problemas que norteiam a arte moderna. Hegel refletiu os efeitos da
razão instrumental, desdobrados nos acontecimentos históricos na passagem
do século XVI para o XVIII e Benjamin na passagem do final do século XIX
para o XX.
Nesse contexto Benjamin reflete sobre a arte estetizando a política: "Eis
a situação da estetização da política, provocada pelo fascismo. O comunismo
responde a ele com a politização da arte." (BENJAMIN, 1977, p.44) e Hegel,
que deu sustentação à concepção materialista da história é citado por
Benjamin na seguinte passagem: ―Lutai primeiro pela alimentação e pelo
vestuário, e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo.‖ (HEGEL apud
Benjamin, 1996, p.223). Benjamin tensionando o idealismo histórico de Hegel a
seu máximo grau, esclarece-se rumando pelo ―materialismo histórico‖ de Marx:
A luta classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manisfestam nessa luta sob a forma de confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questinarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças
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a um mestirioso heliotropismo, tenta dirigi-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas. (BENJAMIN, 1996, p. 223/224)
Segundo observa Benjamin, a ideologia age mascarando a realidade, ou
seja, ela age como uma ideia, discurso ou como uma ação que mascara o
objeto, esse que passa a ser percebido apenas superficialmente enquanto
esconde seus verdadeiros interesses:
Devemos lembrar a existência de um primeiro pressuposto de toda a existência humana e, de toda a história, a saber, que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de ‗fazer história‘. O primeiro fato histórico é, pois a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato histórico, de uma condição fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como a milhares de anos, executar dia a dia, hora a hora. (MARX apud Benjamin, 1976, p.33).
Nesse ponto, Friedrich Engels endossa o pensamento de Marx
salientando: “Segundo a concepção materialista da história, o momento em
última instância determinante (In letzter Instanz bestimmende), na história, é a
produção e a reprodução da vida real.‖ (ENGELS, 1985, p.547).
Benjamin, ao assumir o caráter materialista do conceito de história de
Marx, mostra como o autor reflete a relação do sujeito com o objeto no mundo
real. Segundo Marx, o homem produz a história em estando-no-mundo (grifo
nosso), condição essa que Hegel não sustentava. Nessa perpectiva, seguindo
o próprio Marx, o idealismo histórico de Hegel o impedia de analisar a arte
nesse sentido por que a tecnologia na sua época não era o tema essencial.
Trazendo a discussão para o campo da arte, lembramos que, a arte
publicitária nas versões da estética totalitária e capitalista, ao ser refletida por
Benjamin no auge da Segunda grande guerra, indica que:
Aquele que procura se aproximar de seu próprio passado enterrado deve se conduzir como um homem que escava. Isso determina o tom, a postura das reminiscências [Erinnern] genuínas. Elas não devem ter medo de retornar vezes sem conta à mesma situação, de espalhá-la como se espalha a terra, de revolvê-la como se revolve o solo. A situação em si mesma é apenas um depósito, um extrato que só ao mais meticuloso exame entrega o que constitui o verdadeiro tesouro
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escondido na terra [Erdinnern]: as imagens pautadas de todas as associações anteriores [aus aller frueheren Zusammenhaengen ausgebrochen] que permanecem – como ruínas de torsos na galeria de um colecionador – nas sóbrias alcovas de nossa percepção posterior. (BENJAMIN apud Comay, 1977, p. 264).
Segundo essa observação, percebe-se que Benjamin considera que,
devido a sua condição histórica, as imagens do passado representam objetos
de ―ruína‖ no presente. Para o pensador, objetos estéticos são, acima de tudo,
objetos históricos e o corte com a história implica o desvelar de sua própria
origem, logo, a fraca orientação estética inscrita nas imagens efêmeras e
vazias dos objetos artísticos no presente, são a própria marca de sua
decadência. Sumariamente, o ponto fulcral do problema para Benjamin, é a
decadência do objeto estético arruinando a sensibilidade humana enquanto
subsídios intelectuais para a compreensão de objetos mais exigentes e
elaborados.
Do ponto de vista epstemológico, norteando a questão da afetação do
―receptor‖ pela da obra de arte, percebemos que a filosofia benjaminiana
conserva parte do teor romântico da reflexão de Kant e Hegel, quando esses
defendem que o objeto de arte, ao estar disponível na experiência estética,
deve atuar como instrumento de contemplação desinteressada e de
transformação existencial e reflexiva.
Compreendemos que Benjamin, que não desprezava a existência de
uma condição metafísica da existência, vai mais além e analisa a realidade
pelo viés físico numa perspectiva mais sociológica. Isso ao refletir acerca do
objeto estético em termos materiais e existenciais disponível no tempo
presente, e não independente dele como Kant o considerava
transcendentalmente e nem apenas idealmente como Hegel presumia.
Rodolphe Gasché, interpretando Benjamin pela perspectiva kantiana,
reafirma que o pensador refuta o belo das obras auráticas e não em si mesmo.
Acerca disso, encontramos a seguinte análise comparativa feita pelo autor:
Se na Terceira Crítica, Kant pode se desfazer do objeto e se concentrar apenas na intencionalidade com respeito à forma, é porque o juízo de gosto só é um puro juízo de gosto se não
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estiver nem interessado, nem fascinado (como no juízo teleológico) pela existência do objeto. A beleza livre é prazerosa porque sua percepção certifica o sujeito de sua capacidade cognitiva em geral e só é alcançada ali onde o juízo de gosto conservou o encanto sensual e as conotações morais, que dependem ambos da presença do objeto, em xeque. A distinção que Benjamin estabelece entre os efeitos da obra de arte na era de reprodutibilidade mecânica sobre seu espectador e o caráter fenomênico da obra de arte coincide com sua vigorosa crítica da aura. Se acompanharmos Benjamin através das várias facetas do processo em que a aura é repudiada, tanto as similaridades quanto as diferenças com relação a Kant se tornam tangíveis. (GASCHÉ, 1997, p. 194).
A partir daqui percebemos que o juízo estético (o belo) kantiano,
enquanto concebe as características intrínsecas do objeto estético, apóia parte
da tese que Walter Benjamin veio a sustentar. Observamos que nesse ponto,
reside uma possível aproximação que converge àquelas profecias da ―morte da
arte‖ no modernismo hipostasiado por Hegel nas citações anteriores.
No sentido mais acadêmico, norteando a idéia do fim da obra de arte a
partir das técnicas de reprodução, na reflexão moral de Benjamin, temos como
válida a aceitação do autor da concepção kantiana de arte, que pauta a
finalidade da arte em si mesma.
Como podemos observar na seguinte passagem hegeliana a arte, ao
desenvolver-se no tempo histórico, transforma-se no reduto do sentido
supremo da Verdade absoluta, onde o belo é a própria arte efetivamente
presente na unidade ideal:
Mediante esta liberdade e infinitude, que o conceito do belo assim como a bela objetividade e sua consideração subjetiva trazem em si mesmos, o âmbito do belo é arrancado da relatividade das relações finitas e elevado ao reino absoluto da Idéia e de sua verdade.‖ [...] ―O belo é a Idéia enquanto unidade imediata do conceito e de sua realidade, isto é, ele é a Idéia na medida em que esta sua unidade está presente de modo imediato no aparecer (Scheinen) sensível e real. A existência inicial da Idéia é, pois, a natureza e a primeira beleza é a beleza natural‖. (HEGEL, 2001, p.130).
O conceito de obra de arte transcendental de Kant é refutado por Hegel
no ponto em que o autor compreende que deve haver concordância
59
consumada entre o conceito e o fenômeno. Hegel, todavia, aceita que o objeto
estético seja possuidor de finalidade sem fim, como profetizava Kant:
A consideração do belo é de natureza liberal um deixar atuar (Gewährenlassen) os objetos enquanto si mesmos livres e infinitos, e não um querer possuir e utilizá-lo como úteis [156] para necessidade e intenções finitas, de modo que o objeto não aparecerá como e forçado por nós, nem combatido e superado pelas demais coisas externas. (KANT apud Hegel, 2001, p. 129).
O mesmo conceito de belo romântico foi particularmente aceito por
Benjamin, ao fundar seu conceito de aura, quando esse o aplica à beleza
natural. Nas próprias palavras do autor encontramos:
É aos objetos históricos que aplicaríamos mais amplamente essa noção de aura, porém para melhor elucidação, seria necessário considerar a aura de um objeto natural. Poder-se-ia definí-la como a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que esteja. Num fim de tarde de verão, caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou de um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se a aura dessas montanhas e desse galho. Tal evocação permite entender, sem dificuldades, os fatores sociais que provocam a decadência atual da aura. (BENJAMIN, 1980, p. 9).
A citação acima deixa claro como Benjamin concebe a beleza da
natureza ao compreender o quão era ―necessário considerar a aura de um
objeto natural‖.
Todavia, Benjamin, que reflete acerca da arte transformada em objeto de
consumo, parece ter se impressionado ainda mais do que os românticos,
quando eles, na passagem do século XVIII para o XIX, se angustiavam com o
fato da arte ser transformada em objeto de deleite particular.
Reservando a particularidade de cada uma das teorias, tanto Benjamin
quanto os idealistas, parecem refletir acerca do que destituiria o caráter
essencial da obra de arte, que alheia a outros fins não se manteria
exclusivamente disponível à contemplação universal.
Observamos que embora Benjamin conceba o belo do conceito de obra
de arte kantiano, sua reflexão possui um caráter mais realista e não tão
ontológico. A perda da experiência (Erfahrung) estética que a tradição
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carregava através do objeto aurático é para Benjamin sinônimo da degradação
do gosto e, consequentemente, da reflexão. Acerca dessa visão trágica,
Benjamin ressalta seu pensamento na seguinte passagem: ―Não existe
documento de cultura que não seja compreendido como barbárie‖. (Benjamin,
1981, p. 52).
Assim Benjamin, no outro extremo, parece discordar da concepção de
obra de arte de Kant, quando esse pressupõe compreendê-la como um objeto
capaz de carregar todo o passado no presente. Como se o passado tivesse
sido um fato consumado num tempo histórico linear e progressivo permitindo a
obra de arte, enquanto auto-objeto, ser auto-capturada em sua origem, bem
como os eventos nele circunscritos.
Para Benjamin ―a história é objeto de uma construção‖ (BENJAMIN,
1994, p.229). Reiterando acerca disso, o autor cita em outro momento:
Articular historicamente a história não significa conhecê-la como ela de fato foi‖. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialista histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciencia disso. O perigo ameaça tanto a existencia da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo : entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. (BENJAMIN, 1994, p.224).
A história, do ponto de vista benjaminiano, é puro devir, cuja origem é
incapturável, ela é um permanente ―estado de exceção‖ (Ibidem, p.226). É
ainda, uma desconstrução contínua, que carrega as marcas trágicas do
passado escrita e festejada pelos dominadores: ―A história habitual é a
comemoração das façanhas dos vencedores.‖ (BENJAMIN, 1981, p. 52).
Especificamente Benjamin refuta a razão instrumental na versão
histórica dos dominantes. Para o pensador o tempo presente (Jetztzeit) destrói
a identidade historicista pautada no conceito Iluminista de história.
Benjamin, em 30 de março de 1918, escreve a seu amigo Gershom
Scholem, esboçando o que viria a ser o tema de sua tese O Conceito de Crítica
de Obra de Arte no Romantismo Alemão. O pensador explicita sua
concordância com o conceito kantiano de obra de arte romântica, mesmo
discordando de sua concepção Iluminista de história:
61
Apenas a partir do romantismo passou a dominar a visão de que uma obra de arte poderia ser compreendida em e para si na contemplação, sem sua ligação com a teoria ou a moral, e poderia atingir suficiência através desta contemplação. A relativa autonomia da obra de arte com relação à arte, ou antes, sua dependência pura e simplesmente transcendental com relação à arte tornou-se a condição da crítica da arte romântica. A tarefa consistiria em indicar neste sentido a estética de Kant como pressuposto essencial da crítica da arte romântica. (BENJAMIN, 2002, p. 138).
Benjamin, mesmo tendo se concentrado no estudo das obras românticas
dos poetas Schlegel, Novalis e na literatura de Franz Kafka, ele compreende
que a obra de arte está determinantemente alocada no mundo real, de onde se
deve analisá-la ou criticá-la. O conceito benjaminiano de obra de arte possuía
um teor muito mais imanente do que transcendental, em última instância, ele
está pautado em seu atípico conceito de história, cuja constituição ruma para
além da via materialista histórica e idealista romântica (gênese do romantismo
alemão).
Mesmo assim, em 1918 Benjamin reafirma como as obras dos poetas
românticos e a concepção de obra de arte transcendental, incriticável e
autônoma de Kant lhe foi cara:
Desde o romantismo, impôs-se a idéia segundo a qual uma obra de arte pode ser compreendida em e para si, sem a sua relação com a teoria ou a moral e que ela poderia ser satisfeita com esta contemplação. A relativa autonomia da obra com relação à arte, ou, ainda, sua dependência puramente transcendental diante da arte, foi a condição da crítica romântica. O trabalho (de doutorado) consistiria em demonstrar que a estética de Kant é um pressuposto essencial da crítica de arte romântica. Ou seja, aos poucos Benjamin foi deixando de lado o estudo da relação entre o conceito romântico de crítica e a estética de Kant para se fixar no estudo apenas da obra dos românticos. Já numa carta, de maio do mesmo ano, Benjamin afirma que a sua tese visaria ―os pricípios filosóficos da crítica de arte romântica‖. Numa carta de novembro de 1918, ele afirma ainda não ter iniciado a redação propriamente dita do trabalho, mas já estar bem adiantado em suas reflexões: ―o que eu aprendo através dela (a tese), a saber, um olhar na relação de uma verdade com a história, será, no entanto, pouco discutido no trabalho, mas, eu espero, será percebido pelos leitores perspicazes. O trabalho trata do conceito romântico de crítica (de crítica de arte)‖. (BENJAMIN, 2002, p. 11).
62
Percebemos que o conceito romântico de crítica de obra de arte, a partir
do qual Benjamin tece suas considerações, tinha dependência puramente
transcendental diante da arte, pois na concepção kantiana a arte não era
criticável. Para Kant, a arte posta que era transcendental era autônoma em si e
para si mesma, logo a contemplação não tinha qualquer relação com a teoria e
a moral social. Benjamin, por sua vez, mesmo concebendo a importância dessa
consideração, carrega em seu conceito de crítica de obra de arte um caráter
muito mais trágico e inegavelmente mundano e existencial. Para o autor, a vida
tanto em sua dimensão física quanto transcendental, é concebida distintamente
entre os dominantes e os dominados da história.
Como vimos até agora, os idealistas alemães relacionavam os diversos
aspectos físicos com os espirituais e Benjamin, mesmo reconhecendo a
importância de suas premissas, ruma pela via crítica e é contundente ao
contrapõe-se à concepção de história, cuja noção de desenvolvimento e
linearidade progressiva favorecia os vencedores (continuum iluminista da
história).
Assim acredita-se que Benjamin considera a realidade histórica como
uma luta entre a imanência e a transcendência. Lembramos que, o termo
imanência nesse contexto refere-se àquilo que está nessa dimensão da
realidade, exatamente contraposto àquilo que transcende esse estado das
coisas.
Nessa perspectiva, acredita-se que Benjamin, que não desprezava as
meta-narrativas, entendia o tempo histórico em sua imanência e tragicidade,
cujo devir histórico tornava o objeto incapturável. Segundo Michael Löwy,
Benjamin ―Como vê caminhos por toda a parte, ele se encontra sempre na
encruzilhada‖ (LÖWY, 1989, p. 85).
Sumariamente segundo Adorno, como ressalta Löwy, Benjamin está:
―Distante de todas as correntes‖ é o título do artigo de Adorno sobre Walter Benjamin (publicado no Le Monde em 31 de maio de 1969). De fato, a singularidade da obra de Benjamin situa-o como um ser à parte, à margem das principais tendências intelectuais ou políticas da Europa no início do século: neo-kantismo ou fenomenologia, marxismo ou positivismo, liberalismo ou conservadorismo. Estritament einclassificável, irredutível aos modelos estabelecidos, ele está ao mesmo tempo no cruzamento de todas as estradas, no centro da rede
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complexa de relações que se tecem no meio do judaico-alemão. Os caminhos que levam de Berlim a Jerusalém [...] ou de Berlim a Moscou [...] cruzam-se nele, e seu pensamento sutil exotérico parece ser o foco onde se concentram todas as contradições políticas e culturais da intelectualidade judaica da Mitteleuropa: entre teologia e revolução niilista, messianismo místico e utopia profana. (Ibidem, 1989, p. 85).
Como veremos a seguir, isso vem a ser compreendido por intermédio
dos temas que relacionam a Identidade cultural e a situação do indivíduo num
determinado contexto histórico. Aspectos esses, que podem ser ainda melhor
compreendidos confrontando pontos da teoria crítica de Walter Benjamin e a
existencialista de Martin Heidegger.
2.2 - Walter Benjamin & Martin Heidegger
O messianismo judaico contém duas tendências ao mesmo tempo intimamente ligadas e contraditórias: uma corrente restauradora, voltada para o restabeleciemento de um estado ideal de passado, uma idade de ouro perdida e, uma harmonia de ouro edênica quebrada, uma corrente utópica, aspirando a um futuro radicalmente novo, a um estado de coisas que jamais existiu.
Michael Löwy
Segundo os estudos de Michael Löwy acerca da identidade cultural a
cultura judaica-alemã de Benjamin, ao mesmo tempo que se mantém ligada, se
distancia, tanto dos judeus religiosos anarquizantes (sionistas ou não), quanto
dos judeus puramente assimilados (Alemanha):
Distante de todas as correntes a fórmula é de um artigo de Adorno sobre sua obra) e na encruzilhada de todos os caminhos, ligado ao mesmo tempo aus dois grupos, encontra-se aquele que personifica, melhor que ninguém, essa cultura judaico-alemã messiânico-libertária: Walter Benjamin. A diferenciação entre os dois cunjuntos revela que a afinidade eletiva entre messianismo judaico e utopia libertária comporta também uma tensão, quando não uma contradição, entre o particularismo (nacional-cultural) judaico do messianismo e o caráter universal (humanista internacionalista) da utopia
64
emancipadora. No primeiro conjunto, a predominância da particularidade judaica tende a relativizar o sapecto revolucionário universal da utopia, sem contudo fazê-lo desaparecer; no segundo, ao contrário, a universalidade da utopia é a dimensão preponderante e o messioanismo tende a ser despojado de sua especificidalidade judaica – que, apesar de tudo, não é inteiramente apagada. (LÖWY, 1989, p.29)
O judaísmo-alemão benjaminiano aspira a utopia libertária constituindo
uma trama que traz à tona a questão da identidade cultural pautado em seu
conceito de história. Acerca do tema encontramos:
Sobre o ―conceito de História‖, devia a seus estudos dos primeiros românticos. [...] O materialista histórico se acerca de um objeto histórico única e exclusivamente quando este se lhe depara como mônada. Nesta estrutura ele reconhece o signo de uma imobilização messiânica do acontecer, ou, dito de outra maneira, de uma chance revolucionária na luta a favor do passado oprimido. Ele a percebe para fazer saltar uma época determinada do decurso homogêneo da história: do mesmo modo ele faz saltar uma vida determinada de uma época ou uma obra determinada da obra de uma vida. O alcance de seu procedimento consiste em que, na obra, está conservada e superada a obra de uma vida, na obra de uma vida, a época, e na época, todo o curso da história. (BENJAMIN, 2002, p. 144)
Esse esclarecimento ressalta como o messianismo-judaico de Benjamin
carregava um forte teor materialista. Isso nos levou a compreender que o autor
refutava, não apenas a linearidade do tempo histórico a favor dos vencedores,
mas a versão mais ortodoxa do messianismo-judaico que, segundo Eliade,
concebia a concepção linear da história. Nelson Levy, fala acerca desse
aspecto em Benjamin na seguinte passagem: ―A concepção linear da história,
segundo Eliade, teria nascido na Israel dos profetas messiânicos,
imediatamente acoplada a uma interpretação ideológico-religiosa de cada
evento como manifestação de uma intervenção divina.‖ (LEVY, 1990, p. 14).
Logo, do ponto de vista do tradicional messiânianismo judaico, conceber o
tempo histórico (o passado) no presente, com vistas a entrever o futuro, como
o fez Benjamin, significava transgredir a própria tradição judaica.
Isso nos esclarece como a nacionalidade, enquanto herança cultural, por
65
si só, não determina completamente o pensamento do sujeito, mas deixa
irrefutavelmente suas marcas, que a experiência do ser no mundo não
consegue mitigar. No caso da experiência dos sujeitos nascidos na Alemanha
do século XX, a marca da nacionalidade fica distintamente latente entre
aqueles de origem ―exclusivamente‖ alemã e os de origem judaica, como é o
caso, respectivamente, de Heidegger e Benjamin.
Benjamin herda o teor existencial da reflexão de Heidegger, para fundar
seu conceito de história, todavia, mesmo que ambos tenham fundamentado
seus projetos na proteção do tempo presente (Jetztzeit), eles divergem no
aspecto interior de seus tratados, marcando o ponto em que surge a questão
da nacionalidade enquanto determinante da identidade cultural.
As contingências da época impeliram Benjamin a tratar o objeto estético
na perspectiva de uma imanência trágica, ao passo que Heidegger, ao tentar
preservar a arte da supressão desse mesmo tempo, trata-a na perspectiva da
transcendência, sublimando-a para além dos limites dessa mesma experiência.
Paradoxalmente, a marca que destingue é a mesma que aproxima os
dois pensadores. Isso é esclarecido por intermédio do conceito de origem
(Ursprung) de Benjamin na passagem ressaltada por Howard Caygill, na obra a
A filosofia de Walter Benjamin:
Origem (Ursprung), embora sendo uma categoria inteiramente histórica, nada tem a ver com gênese (Entstehung). O termo origem pretende descrever não o processo pelo qual o existente veio a ser, mas antes aquilo que emerge do processo de vir a ser e desaparecer (1928:45) [...] O local da tradição não é um lugar onde passado, presente e futuro são reunidos para uma ação resoluta, mas um lugar onde o presente é obsedado não só por seu passado como também por seu futuro de vir a ser passado. É um lugar de luto. Aqui a origem e seus objetos jamais podem atingir a autenticidade, estando sempre em divida com algo que não se revela. (BENJAMIN apud Caygill, 1994, p. 34).
Benjamin reafirma que o próprio devir configura a natureza incapturável
do tempo. Para o pensador, do passado histórico nada se resgata em sua
plenitude, logo, a tradição, que jamais conclui um ciclo, está sempre na
iminência de vir-a-ser passado.
Ao considerarmos a natureza do pensamento de Heidegger e de
66
Benjamin pelo viés da identidade cultural, fica translúcido o posicionamento
distinto de ambos. Heidegger, de nacionalidade alemã, foi privilegiado pelo
Sistema e Benjamin, de nacionalidade judaica-alemã, foi pelo mesmo
perseguido.
Embora ambos os pensamentos sejam dissonantes nas mais variadas
instâncias, Heidegger e Benjamin voltam a concordar ao refutarem o teor
Iluminista das filosofias neo-kantianas. Modernamente, conceitos de origem e
tradição consideram a obra de arte no imbricamento com a tecnologia:
Para poder ser transmitido ao presente, o passado tem de ser destruído, transformado num tipo de objeto diferente, um objeto passado. A origem é, portanto destrutiva, não dando lugar algum para a autenticidade ou a plenitude - nas palavras de Benjamin, ela é "um sorvedouro no fluxo do vir a ser cujo rítmo consome os materiais do vir a ser" - a tradição é catastrófica, tomando quando pareceria dar; um perpétuo estado de emergência. (BENJAMIN apud Osborne; Benjamin A., 1994, p. 35).
Diferentemente de Heidegger, para Benjamin, a tradição possui em sua
origem o caráter de ser destrutiva, impedindo a autenticidade dos objetos ali
originados, no limite, a própria tradição é inautêntica:
Em vez de autenticidade dentro da tradição, numa consumação trágica dentro do tempo, a própria tradição é inautêntica. Benjamin considerava que o momento excessivo da tradição, o momento de origem que destruiu a integridade do originado, podia ser empregado contra a tradição. A tradição como cenário da transmissão podia ser ela própria um objeto de contemplação, como na descrição da "imersão melancólica" no final da origem do drama barroco alemão quando seus objetivos finais, em que ela acredita poder assegurar mais plenamente para si aquilo que é vil, transformam-se em alegorias, e que essas alegorias se diletam e negam o vazio em que estão representadas, assim como, afinal de contas, a intençâo não repousa lealmente na conemplação de ossos, mas se precipita deslealmente na idéia de ressurreição. (OSBORNE; BENJAMIN A., 1994, p. 36)
Benjamin, que em 1916 tece sua crítica à filosofia da história de
Heidegger, esclarece definitivamente suas distinções através do conceito de
tradição e origem. Nessa perspectiva, Benjamin posiciona-se contra o otimismo
67
de Heidegger, alertando para o caráter destrutivo que constitui sua relação com
tempo histórico:
O ato de transmitir destrói o que transmite. O local onde a tradição se congrega não pode ser situado num presente com seu passado e futuro; é adiado para um futuro que não é estático, não é o futuro desse presente; nas palavras de Kafka, "há uma esperança infinita, mas não para nós". Para Heidegger, tal destruição é potencialmente, mas não necessariamente, a consequência da tradição, uma vez que para ele o excessivo momento de origem não só destrói mas pode também congregar, pode permitir que as coisas e os eventos sejam revelados. (OSBORNE E BENJAMIN A., 1994, p. 36/37.)
Fica claro que Benjamin discorda da importância que Heidegger dá ao
tempo histórico ao preocupar-se com a autenticidade da obra de arte, todavia,
concorda quanto ao fato de Heidegger abarcar interiormente a presença de
dois elementos que se contrapõe. Esse ponto, por si só, garante que a história
seja simultaneamente a herança e a destruição de algo hesitante entre a
"verdade" de um tempo que existiu e desse mesmo tempo que não existe mais.
Em suma, Benjamin parece compreender que o tempo histórico é um tempo
inacessível, que não é nem presente, nem passado, é apenas uma idéia, assim
como entendia Heidegger menos categoricamente:
Para Heidegger, o momento de origem é potencialmente um momento de claridade e decisão resoluta, um momento que permite a um sujeito, seja ele um "herói" ou um "Povo", decidir, nas palavras da primeira versão de "A origem da obra de arte", "quem eles são e quem eles não são". Esse momento de origem é um momento de decisão histórica, que permite ao Dasein escolher como um sujeito seu próprio destino. Para Benjamin, tal escolha de destino é característica da tragédia, que "se encerra com uma decisão", ao passo que o drama barroco se encerra com indecisão e catástrofe não catártica. [...]. Ela (a origem) destrói o que transmite. Sem essa destruição, no entanto, nada seria transmitido. A obra de arte é uma ruína, um local de luto onde a destruição da tradição pode ser reconhecida. Para Heidegger a tradição pode reunir o que iria entregar, trazê-lo á luz, e para ele a obra de arte é um templo que expõe essa reunião. Heidegger celebra a tragédia como um local de testemunho dessa entrega, enquanto Benjamin menospreza a tragédia em favor do drama barroco como um lamento coletivo pela destruição. (Ibidem, 1994, p. 37).
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Para Heidegger, na origem do tempo histórico onde nasce a tradição da
obra de arte, o sujeito escolhe seu destino, ao passo que para Benjamin, isso é
impossível, pois, o lócus histórico da origem garante a destruição de tudo
àquilo que nele se origina, seja a tradição, seja o ser no mundo (Dasein),
todavia, ambos os pensadores concordam quanto ao fato de que sem o tempo
histórico nada pode ser transmitido.
Esse ponto esclarece como as obras de arte auráticas, canônicas ou
sacras já nasciam condenadas. Em suma, para Benjamin, uma obra de arte
encerra em si mesma sua presença inefável, pois ela nasce e morre no devir
incapturável de uma temporalidade histórica. Esse local de luto é sinônimo do
conceito aqui e agora (Hic et Nunc ou Hier und Jetzt) benjaminiano, onde a
legitimação efetiva dos objetos estéticos jamais acontece.
Logo, independente do momento histórico de origem (do nascimento), as
obras de arte auráticas, tem sua destruição garantida na concepção de
Benjamin. Heidegger, por sua vez, compreende que o tempo histórico
irrecuperável é o próprio drama existencial.
Sinteticamente, entendemos que a marca que distingue os dois autores
nasce dessa aproximação. Embora ambos concordem quanto ao fato de que o
local da constituição da obra de arte seja o próprio lócus da morte de sua aura,
para Benjamin, isso acontece logo em seu nascimento, na sua origem e
independente de seu destino e para Heidegger isso pode acontecer, mas não
acontece necessariamente. ―O momento de origem de Heidegger pode ser um
momento de decisão, resolução até a morte, enquanto a origem de Benjamin
provoca tristeza e luto pela morte que ocasiona.‖ (OSBORNE; BENJAMIN A.,
1994, p. 37)
Assim, Heidegger e Benjamin concordam quanto ao fato de que ―a ação
de transmitir‖ é ação no sentido imanente e excessivo, todavia, Benjamin é
mais fatalista do que Heidegger. Para Benjamin, não se trata de recuperar e
eternizar o passado no presente canonizando no objeto estético o próprio devir
histórico e sim de extrair a particularidade de cada objeto que se faz nova em
cada origem. Logo, o conceito de aura de Benjamin é esclarecido do ponto de
vista do presente empírico e não do passado. A verdadeira história, segundo
69
Benjamin, não resulta de um processo, mas dessa prontidão dialética, de fazer
do passado uma ―experiência única‖. (Ibidem, p. 230). Para o pensador, o
passado, enquanto tempo em ação ou devir dialético, deve libertar seus objetos
enquanto se auto-liberta.
2.2.1 – Judaísmo-alemão de Walter Benjamin
Observa-se que a nacionalidade, enquanto construtora da identidade
cultural do indivíduo, determina sua reflexão, não apenas em termos
ideológicos, mas vai para além dos limites da experiência constituir a
subjetividade do sujeito. E isso, não simplesmente no sentido teórico-moral
independente da empiria, mas abrange a existência desse ser no mundo, num
determinado tempo histórico e cultural.
Por mais que a marca da nacionalidade apareça como divisora de águas
distinguindo e particularizando o pensamento de alemães e de judeus-alemães
nascidos na Europa central (Mitteleuropa) do século XX, lócus da reflexão-
crítica que se desenvolveu a partir de 1910 com judeus refutando, em partes, a
razão pura e absoluta dos idealistas alemães, acredita-se que o caráter
impetuoso e romântico é marca comum na reflexão de todos.
No limite, todos os pensadores judeus nascidos na Alemanha expõem
na reserva de suas concepções morais, o desejo de alcançar um mundo ideal
para além do real. Mesmo pautados em diferentes causas e por vias
específicas, todos pareciam querer recuperar, um estado seguro de existir no
mundo, que só poderia ser concedido através de um refúgio ou de uma
redenção, logo de qualquer sorte, numa outra dimensão da realidade.
Segundo nossa pesquisa, os idealistas alemães, enquanto românticos,
combatiam a repressão moral do antigo regime e os críticos judeus-alemães,
refutavam a ideologia das ―pseudo-morais libertadoras‖ dos regimes, tanto
absolutistas quanto capitalistas, que transformaram a ação libertadora da arte
romântica em propaganda política.
Como analisa Michael Löwy é nessa aspiração utópica de recuperar um
mundo ideal composto pelo pensamento de idealistas alemães e judeus
anarquistas que surge a reflexão de Walter Benjamin, conhecido como um dos
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pensadores judeus-ateus-religiosos ou anarquistas-messiânicos.
Segundo Löwy, o pensamento de Benjamin ressalta dos nexos
presentes nessa trama: o romantismo, a Aufklãrung, o materialismo histórico
alemã e o messiansimo judaico:
Na atmosfera impregnada de religiosidade do neo-romantismo, muitos intelectuais judeus vão se revoltar contra a assimilação de seus pais, procurando salvar do esquecimento a cultura religiosa judaica do passado. Opera-se assim uma dessecularização, uma desassimilação (parcial), uma anamnese cultural e religiosa, uma `anaculturação´ de que alguns circulos ou cenáculos serão os promotores ativos ―pois, uma vez atraídos pelos movimentos revolucionários de esquerda e pelas idéias socialistas [...] Nesse contexto particular é que se tece a rede complexa de vínculos entre romantismo e anticapitalista, renascimento religioso judaico, messianismo, revolta cultural antiburguesa e anti-Estado, utopia revolucionária, anarquismo, socialismo. (LÖWY, 1989, p. 37/40).
O autor nos alerta para o fato de que alguns filhos de judeus ortodoxos
privilegiaram a intelectualidade em detrimento do capital e, por isso, refutaram
a carreira de negociantes de seus pais, típica da tradição judaica burguesa na
Alemanha no início do século XX. E como forma de encontrarem um lugar para
expressar suas utopias e ideologias libertária-anarquista-anticapitalistas, se
inseriram no mundo acadêmico. Aqui, como sublinha Löwy, é onde surge a
figura de Benjamin, sua racionalidade é concebida pautada em uma
temporalidade romântica-messiânica ou utópica-racionalista, que se constitui
da assimilação de aspectos ideais do romantismo alemão, do messianismo
judaico e da materialismo histórico. Norteando o tema da redenção no tempo
histórico, confrontando o pensamento de Benjamin e de Heidegger, Peter
Osborne e Andrew Benjamin salientam:
Heidegger mantém aberta a possibilidade da redenção no tempo histórico, com a implicação de que a culpa presente pode ser redimida no tempo, ―promovendo‖ o passado ou ―combatendo-o‖. Para Benjamin, não pode haver nenhuma redução no tempo histórico, tudo que pode haver é a redenção do tempo histórico. Não pode haver nenhuma ―promoção‖ ou ―combate‖, nenhum recebimento de uma herança no presente. Como que antecipando o desenvolvimento por Heidegger, em Ser e tempo, do tempo extático como o horizonte para a reunião do passado, presente e futuro, Benjamin insiste na completa exterioridade do tempo messiânico, um tempo cujo
71
advento traz consigo a ―cessação do acontecer‖. Na ausência da plenitude messiânica do tempo, não pode haver nenhuma plenitude no tempo: todos os eventos no tempo não só são inautênticos como jamais podem atingir a autenticidade. (OSBORNE; BENJAMIN A, 1994, p. 27)
A passagem reafirma como o tempo histórico para Benjamin, é um
irredutível um local de luto, ao passo que, para Heidegger ele fica aberto à
redenção.
Com a reflexão de Benjamin, vemos a arte desistir de ambicionar possuir
um valor universal, sinônimo de "arte elevada", ―superior‖ e aurática, como era
estabelecida pela teorias estéticas do século XVIII, resultado da reflexão que
se desdobrou ao longo de mais de dois mil anos de história.
2.3 - A arte de Gerhard Richter interpretada com base nas reflexões de Walter
Benjamin:
Juízos de valor estético fundados por Benjamin como aura, rememorar e
recepção da obra de arte (acolhida), mesmo tendo sido constituídos antes do
nascimento da arte de Richter, serão nossas fontes de interpretação, haja vista
que conceitos como esses, como veremos, são de grande atualidade para a
crítica de obra de arte, se considerados do ponto de vista filosófico.
As fotografias, base das obras de Richter, foram capturadas no mesmo
lócus histórico em que Benjamin tece suas análises à respeito das artes que
usam meios técnicos para sua produção e reprodução enquanto movimentos
de massa à serviço política, ou nos termos benjaminianos, das artes que
estetizam a política:
A proletarização crescente do homem contemporâneo e a importância cada vez maior das massas cosntituem dois aspectos do mesmo processo histórico. O facismo queria organizar as massas, sem mexer no regime de propriedade, o qual, todavia, elas tendem a rejeitar. Ele pensava solucionar o problema, permitindo às massas, não certamente fazer valer seus direitos, mas exprimi-los. As massas tem o direito de exigir uma transformação do regime de propriedade; o fascismo quer permitir-lhes que se exprimam, porém, conservando o regime. O resultado é que ele tende naturalemente a uma estetização da vida política. A essa violência que se faz às massas, quando se impõe o culto de um chefe, cerresponde a
72
violência sofrida por uma aparelhagem, quando a colocam a serviço dessa religião. (BENJAMIN, 1980, p. 27)
Ressaltamos aqui a atualidade do pensamento benjaminiano na
produção artística de Richter:
Em todas as ocasiões onde intervém a câmara, hoje em dia, a massa pode ver a si mesma, cara a cara. [...] O aparelho capta os movimentos de massa melhor do que o olho humano. [...] os movimentos de massa, e nisto também a guerra, representam uma forma de comportamento humano que corresponde, de forma totalmente especial, à técnica dos aparelhos. (Ibidem, 1980, p.27).
Percebe-se que os pontos de contatos entre as obras de Richter e o
pensamento de Benjamin são inúmeros e podem ser analisados do ponto de
vista da estética e da política envolvendo sem dúvidas a história das grandes
guerras. Assim as obras de Richter trazem à tona questões que envolveram a
vida e a construção do pensamento de alemães e judeus-alemães, cujas
implicações e conseqüências constituem a história da civilização alemã durante
séculos e alcançaram seu auge no século XX.
2.3.1 – Do Re-memorar
Ao analisarmos os temas evocativos das memórias da Alemanha nazista
nas obras de Richter, entende-se, que esse ―re-memorar o passado‖ segundo
Benjamin seja algo irrecuperável. Para Benjamin, o passado não deve ser
retirado de seu estado natural. Aqui surge sua discordância com a concepção
romântica de Hegel. O conceito de rememorar (Erinnerung) de Benjamin,
como vemos desdobrados nas citações de Rebbeca Comay, é compreendido
no confronto com a concepção hegeliana:
O Erinnerung Hegeliano é exatamente esse re-memorar (re-membering). O recordar seria precisamente a ressurreição do corpo idealizado, transfigurado, um corpo restaurado em sua unidade orgânica e integridade espiritual como um todo. Em contraposição, Benjamin re-memora (re-members). Isto é, para Benjamin, como para Proust – sobretudo para Benjamin como um leitor de Proust - a memória é antes de mais nada uma
73
mémoire dês membres (duplo genitivo) [1.2, 613n: CB 115n]; o redespertar incoerente, multiplamente situado, das partes despedaçadas do corpo a se re-encontrar a si mesmas no tempo e no espaço. Para Proust, tal encontro tinha o poder de sustar o fluxo homogêneo do tempo: faire reculer le soleil [...]. Os cacos da memória frustram as conciliações do fechamento orgânico, anunciando a eternidade de um luto que persiste em exumar ou desenterrar o que foi sepultado. A memória recobra a interioridade oculta da terra (Erdinnern), como a objetividade ou exterioridade rompida que se desprende (ausbrechen) de toda interioridade. (COMAY, 1977, p. 263/264).
O rememorar o passado nas obras de Gerhard Richter é o primeiro
indício de seu espírito romântico. Nesse ponto, Richter parece confrontar
Benjamin, para quem o rememorar é incapaz de constituir uma forma orgânica
(meio através do qual a sensibilidade humana se realiza e onde se opera a
percepção, da qual dependem a natureza e a história). Para Benjamin, no seu
estado de lembrança, a essência do acontecimento se perde, pois em qualquer
ato de elucidação ―permanece um resíduo‖, (Es bleibt ein rest). (Ibidem, 1977,
p. 264). Nesses pedaços despertos incoerentemente não se permite constituir
a própria ―verdade‖.
Assim, os temas evocativos do passado nas obras de Richter, segundo
o conceito de origem benjaminiano, seriam considerados como leito de morte:
local de luto.
Todavia, relembrando o esclarecimento de Richter anteriormente, para
ele representar pessoas relacionadas à Alemanha nazista foi um ato realizado
sem intenção. Discurso esse que o próprio pintor mudou 20 anos mais tarde.
2.3.2 – Da Aura
Traduzindo as primeiras páginas do artigo benjaminiano, que desdobra o
seu conceito aura, percebemos que ele trata da unicidade da obra de arte, a
partir do qual nascem as duas feições de uma obra de arte: unicidade e
duração, cujo interior mantém a presença da obra. Por unicidade o pensador
compreende, que esse seja o caráter único da coisa: a aura da obra. Sua
origem pressupõe uma função ritualística legitimando, por assim dizer, sua
74
autenticidade carregada pela tradição. O tempo e espaço de origem
(ursprung) e a duração (darstellung) são o próprio testemunho histórico do
objeto.
O aqui e agora (hier und jetzt ou hic et nunc) do tempo histórico, como
vimos anteriormente, mantém a tradição e a autenticidade dos objetos estéticos
na competência do inefável. Melhorando nosso entendimento acerca da
presença da obra de arte no tempo e no espaço histórico, subsidiamo-nos na
interpretação que Rodolphe Gasché, que observa a discrepância entre a
concepção Benjaminiana e a Kantiana:
A unicidade da obra de arte, sua qualidade de ser uma, é, portanto, claramente uma função da sensibilidade, em termos kantianos, de sua condição de objeto da natureza, sendo que, para Benjamin, a natureza tinha conotações de degradação, confusão e ruína. [...]. A presença (das Hier und Jetzt) do original é o pré-requisito do conceito de [sua] autenticidade. Mas o objeto original, singular, que é a obra, é também dotado de autoridade, e possui essa autoridade na qualidade de objeto, isto é, como uma aparição, no espaço e no tempo, de um substrato distante. Benjamin afirma que ―a unicidade dos fenômenos que preponderam na imagem de culto [die Einmaligkeit der im Kultbilde waltenden Erscheinunge] é cada vez mais deslocada pela unicidade empírica do criador ou de sua realização criativa‖. (BENJAMIN apud Gasché, 1977, p. 198).
Ao aplicarmos a noção de obra de arte aurática benjaminia para analisar
as pinturas de Richter, diríamos que, o aspecto artesanal de sua produção
artística protege sua autenticidade. A originalidade, que é legitimada pelo aqui
e agora do nascimento de sua obra, constitui a própria unicidade de suas
obras. A presença única de uma obra sua no local histórico garantem que elas
―não tendem depreciar o caráter daquilo que é dado apenas uma vez‖
(Benjamin, 1980, p.9).
Isso nos leva a questionar: Como a arte de Richter, que a primeira vista,
tanto alude a uma imagem fotográfica, inverte o prognóstico do fim da obra de
arte na era da reprodutibilidade técnica, fazendo nascer uma ―obra de arte
fotográfica‖? Como disse Benjamin: ―gastaram-se vãs sutilezas a fim de se
decidir se a fotografia era ou não arte.‖ (BENJAMIN, 1980, p. 14).
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2.3.3 – Da Acolhida
Outro dado importante a ser analisado acerca das obras de arte de
Richter é sua situação física. Elas se encontram disponíveis em museus e
galerias de arte. A respeito disso esclarece Benjamin: ―Os quadros nunca
pretendem ser contemplados por mais de um espectador, ou então por um
pequeno número deles.‖ (BENJAMIN, 1980, p. 21). Logo, as obras de arte de
Richter, ao ficarem disponíveis em museus como as de outrora, mantém um
caráter contemplativo ralativo a esse distanciamento.
Por um lado, ela é inacessível ao grande público, o que faz conservar
sua unicidade, pois, quanto mais indisponível às massas estiver, mais conserva
seu caráter essencial de ser obra de arte, mas por outro lado, fotografias de
seus quadros estão disponíveis através dos meios de comunicação de massa,
o que provoca a perda de sua profundidade, quando assim acolhidas. Segundo
Benjamin, essa disponibilização pública que a fotografia proporcionou, marcou
a crise que a obra de arte atravessou, do ponto de vista da recepção, a partir
do século XVIII:
Ora, é exatamente contrário à própria essência da pintura que ela se possa oferecer a uma receptividade coletiva, como sempre foi o caso da arquitetura e, durante algum tempo, da poesia épica, e como é o caso atual do cinema. Ainda que não se possa quase extrair qualquer conclusão no tocante ao papel social da pintura, é certo que no momento paira um sério inconveniente pelo qual a pintura, em virtude de circunstâncias especiais, e de modo que contradiz sua natureza até certo ponto, fica diretamente confrontada com as massas, nas igrejas e claustros de Idade Média ou nas cortes dos príncipes até por volta dos fins do século XVIII, a acolhida feito às pinturas não tinha nada de semelhante, elas só se transmitiam através de um grande número de intermediários hierarquizados. A mudança que interveio com relação a isso traduz o conflito peculiar, dentro do qual a pintura se encontra engajada, devido às técnicas de reprodução aplicadas à imagem. Poder-se-ia tentar apresentá-la às massas nos museus e nas exposições, porém as massas não poderiam, elas mesmas, nem organizar nem controlar a sua própria acolhida. (BENJAMIN, 1980, p. 21)
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É a partir da mudança na forma de acolhida, provocada pela
reprodutibilidade técnica na esfera da arte, como esclarecido por Benjamin, que
acreditamos que Richter mantenha a autenticidade de suas obras. Enquanto
alocadas em museus e galerias de arte, elas conservam seu caráter único,
original e autêntico de ser ―obra de arte‖. Assim, mantêm-se irredutíveis à
associar-se as artes reproduzidas técnica e ilimitadamente, como as
publicitárias, as quais permitem apenas a diversão enquanto levam consigo
todo o poder da presença real do objeto estético.
Para Benjamin, como já entrevia Hegel um século antes, o grande
problema que norteava discussão acerca da obra de arte, se resumia na forma
de acolhida. A pergunta que não cessava de ecoar era: Como o valor culto ao
ser transformado em valor de exibição afetaria o ―receptor‖ na experiência
estética? Acerca disso, Benjamin reflete junto a Hegel:
Essa oposição escapa necessariamente a uma estética idealista; a idéia de beleza, dessa última, somente admite a dualidade indeterminada – e, em conseqüência, recusa-se a qualquer decisão. Hegel, no entanto entreviu o problema, tanto quanto lhe permitia seu idealismo. Disse em Vorlesung über die Philosophie der Geschichte: ―As imagens existem já há muito. A piedade sempre exigia como objetos de devoção, mas não tinha necessidade alguma de imagens belas. A imagem bela contém, assim, um elemento exterior, porém, é na medida em que é bela que o seu espírito fala aos homens; ora, com relação a devoção, trata-se de uma necessidade essencial a existência de uma relação a uma coisa, pois, por si própria, ela não é mais do que o entorpecimento da alma... A Bela Arte nasceu dentro da Igreja.... embora já haja da arte‖. Uma passagem de Vorlesungen über die Aesthetik indica igualmente que Hegel pressentia a existencia do problema: ―Não estamos mais no tempo em que se rendia um culto divino às obras de arte, onde se podia dedicar-lhes preces; a impressão que elas transmitem é mais discreta e a sua de emocionar ainda requer uma pedra d toque de ordem superior.‖ A passagem do primeiro modo para o segundo condiciona em geral todo processo histórico da receptividade ás obras de arte. Quando se está desprevenido, fica-se por princípio, e a cada obra particular, condenado a oscilar entre esses dois meios opostos. (BENJAMIN, 1960, p.11)
A questão que se faz recorrente nesse momento é: Como as ―obras de
arte fotográficas de Richter‖ podem atender as exigências da arte do passado e
do presente simultaneamente, ou seja, como elas podem ser inovadoras e
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tradicionalistas, atendendo ao mesmo tempo às exigências de duas
concepções que se excluem?
Richter, que não usa a fotografia para reproduzir imagens sobre a tela,
tampouco para reproduzir indefinidamente sua arte, parece ser defendido por
Benjamin na seguinte citação:
A reprodução do objeto, tal como a fornecem o jornal ilustrado e a revista semanal, é incontestavelmente uma coisa bem diversa de uma imagem. A imagem associa de modo bem estreito as duas feições da obra de arte: a sua unidade e a duração; ao passo que a foto da atualidade, as duas feições opostas: aqueles de uma realidade fugidia e que se pode reproduzir indefinidamente. Despojar o objeto de seu véu, destruir a sua aura, eis o que assinala de imediato a presença de uma percepção, tão atenta àquilo que ―se repete identicamente pelo mundo‖, que, graças á reprodução, consegue até estandardizar aquilo que existe uma só vez. Afirma-se assim, no terreno intuitivo, um fenômeno análogo àquele que, no plano da teoria, é representado pela importância crescente da estatística. O alinhamento da realidade pelas massas, o alinhamento conexo das massas pela realidade, constituem um processo de alcance indefinido, tanto para o pensamento, como para a intuição. (BENJAMIN, 1980, p. 10).
Estaria Richter, através de seu estilo ―foto-realista-transcendental‖,
fundando uma nova forma aurática de obra de arte, atendendo, em plena pós-
modernidade, às exigências da teoria crítica frankfurtiana? À luz da declaração
adorniana observamos, em sua Dialética do Esclarecimento, o seguinte:
O elemento graças ao qual a obra de arte transcende a realidade, de fato, é inseparável do estilo. Contudo, ele não consiste na realização interior e do exterior, do indivíduo e da sociedade, mas nos traços em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado em busca da identidade. Ao invés de se expor a esse fracasso, no qual o estilo da grande obra de arte sempre se negou, a obra medíocre sempre se ateve à semelhança com outras, isto é, a imitação como algo absoluto. (ADORNO; HORKHEIMER, 1991, p. 123).
A idéia de que atualmente não se cria mais obra de arte original, naquilo
que seria ―vítima‖ da Indústria cultural, pode ser desconstruída pelas atípicas
pinturas-fotográficas de Richter.
Paul Moorhouse, reunindo parte de algumas entrevistas cedidas pelo
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pintor em diferentes momentos de sua trajetória, defende a autenticidade de
suas obras: ―A fotografia me interessou por que ela ilustra a realidade muito
bem.‖ (RICHTER apud Moorhouse, 2009, p. 39). Acerca disso reitera
Moorhouse:
Ele também se refere à foto como sendo ―o quadro perfeito‖: Essas afirmações contêm em seu âmago secreto a idéia de autenticidade, correspondendo a possibilidade da idéia de um mundo direto e verdadeiro. Assim abala um posicionamento moralista acerca da pintura que usa fotografia. O uso das imagens fotográficas surge da tentativa de se eliminar a arte e paradoxalmente esse uso de fotos fez com que sua existência como pintor continuasse. (MOORHOUSE, 2009, p 39).
Assim, defende-se que o estilo e a técnica clássica de produção
artesanal das obras de Richter, nos fornecem pistas de que a criatividade está
a favor de uma originalidade e como tal parece revelar algo novo, mesmo
desafiando a típica arte fotográfica do presente.
Tal discussão parece tanger a esfera da moral, num sentido mais amplo.
O que determinava o medo da morte da arte a partir do século XIX era o
mesmo que determinava a produção do saber. Na opinião dos frankfurtianos
Adorno e Horkeheimer, o otimismo benjaminiano, na expectativa da técnica
democratizar a arte através da reprodutibilidade técnica, mesmo à custa de
sua desauratização, era ingênuo.
Benjamin, que acreditava num processo de qualificação das massas,
não presenciou, na sua época, a efetivação do contrário acontecer. Na opinião
dos frankfutianos, a arte ao estetizar a política, perde a referência que
justificava sua qualidade e sucumbe à total banalização. Realidade que marca
a maioria dos estilos de arte realista desde a modernidade. Frente a isso,
Richter reluta, criando obras de arte através de seu atípico estilo foto-realista,
exigindo que os termos que convencionaram as normas das obras no passado,
recuperem validade ainda nos dias de hoje. Mas, mais do que isso,
acreditamos que Richter inverta esse processo, produzindo uma arte que
podemos chamar de força universal.
Do ponto de vista da forma, suas obras recepcionam o fruidor, que na
sua presença pode ser afetado tanto na perspectiva contemplativa da
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transcendência quanto na perspectiva catártica da imanência. Além disso, os
temas trágicos, que norteiam as histórias de vida de seus modelos, quando
desvelados, nos afetam existencialmente a ponto de nos levar a buscar
compreender seus significados. Logo, inferimos que sua arte, como proferia
Adorno: ―fornece a substância trágica que a pura diversão não pode por si só
trazer.‖ (ADORNO, 1991, p. 142).
Apoiada no postulado lógico quantitativo do Capital, a obra de arte na
era da reprodutibilidade técnica, sofreu um processo sinistro de diluição que
esbarrou nos domínios da sua essência. Essa que legitimava sua ―qualidade"
ou ―superiorioridade‖ parece ter desaparecido com o início da aplicação das
técnicas de reprodução.
Segundo Adorno, esse processo dá origem a arte ―inferior", pois a
―verdade‖ que deve constituir a essência de uma obra de arte se dilui
transformando a experiência estética em prazer imediato e fugaz. Uma arte,
que em última análise, se torna incapaz de afetar e transformar seus fruidores.
Tais parâmetros estéticos apoiados sob as ordens da massificação da obra de
arte são esclarecidos por Adorno como citado no artigo em PDF: Indústria
Cultural & Cultura da Mídia: da Modernidade à Lógica Cultural Pós-Moderna de
Maraisa Bezerra Lessa:
O consumidor não é rei, como a indústria gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto‖. [...] Segundo Adorno, os produtos culturais atingem todos os níveis de consciência psicanalítica do indivíduo. Seus conteúdos veiculam não só uma mensagem explicita, como também uma mensagem oculta a ser absorvida pelo inconsciente dos indivíduos. Dessa forma, a indústria cultural difunde não só regras sociais e comportamentos como também formas de conceber e analisar o mundo, pois ―ela impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente [...] Contribuindo para a manutenção do status quo e para a expansão do consumo. Nesse sentido, Adorno expressa uma frase célebre: ―dependência e servidão dos homens, objetivo único da indústria cultural‖ (ADORNO 1971: 288 apud Lessa, p. 6).
A crítica moral adorniana, ao nos alertar para os perigos da ideologia
hedonista do consumo proporcionada pela Indústria cultural por intermédio da
arte publicitária, deixa claro como a função cognoscente da arte sucumbe a sua
total destruição.
80
Ao lembrarmos que, no Ocidente, devido ao nascimento da arte
publicitária, mais de dois mil anos de esforços reflexivos e críticos acerca de
manifestações artísticas, enquanto caro objeto de expressão cultural, perdeu a
razão de existir, diríamos que as obras de arte não tecnicamente reproduzida
de Richter, ao manter-se disponível à reflexão nos domínios da moral e da
estética, auto-legitima seu valor enquanto fonte de conhecimento,
reconhecendo antigos esforços.
Além disso, o conceito de aura benjaminiano, nos ofereceu subsídios
para entender o sentido de ―longínquo‖ típico das artes canônicas do período
antigo, medieval e renascentista. Segundo nossa pesquisa, o estilo realista de
arte, que perdurou desde a antiguidade, atravessando o período medieval,
fascinava pela glória e cânones da arte clássica, atendendo aos interesses da
Igreja. A Igreja, que mantinha seu poder ao controlar os desejos do povo por
intermédio da sacralização das obras de arte, vai perdendo esse status no
período renascentista, quando a arte passa a retratar o que poderíamos
chamar de ―ícones da nobreza aristocrática européia‖. Esse momento que
marca a transição do sistema feudal para o capitalista, levou Benjamin a
preocupa-se no auge do modernismo.
Percebemos que o que mais angustiava o pensador não era o fato de
que o objeto estético, ao perder sua aura, deixar de representar um plano da
existência mais seguro para além da dura realidade física, mas de tornar-se
irredutível à fruição e à reflexão, provocando a decadência do gosto. Acerca
desse tema encontramos Benjamin esclarecendo:
Com relação a isso, a pintura da Renascença fornece-nos analogia bem instrutiva. Nela também encontramos uma arte, cujo desenvolvimento e importância incomparáveis baseiam-se, em grande parte, sobre o fato de que ela integra um grande número de ciências novas, ou, no mínimo, novos dados extraídos dessas ciências. Reivindica a anatomia e a perspectiva, as matemáticas, a meteorologia e a teoria das cores. Como Valéry fez observar, nada está mais distante de nós do que essa surpreendente pretensão de um Leonardo, que via na pintura a meta suprema e a mais elevada demonstração de saber, pois estava convencido de que ela requeria a ciência universal e ele próprio não recuava diante de uma análise teórica, cuja precisão e profundidade desconcertam-nos hoje em dia. (BENJAMIN, 1980, p.22).
81
A obra de arte ao ser transformada em arte publicitária passa a atender
aos interesses da política perdendo tudo que caracterizava seu grande valor.
Isso é verificado na versão estética tanto de totalitaristas, quanto de capitalistas
que disseminaram suas ideologias políticas à manipulação e controle das
massas, provocando conseqüências apocalípticas durante todo o século XX.
Para Benjamin, a preocupação principal era assistir a arte estetizando a política
e a ameaça que condenava seu futuro, já no limiar de sua completa morte.
Segundo a história da arte, a autonomia da arte alheia a finalidades
políticas e ao compromisso moral religioso e até mesmo ao prazer universal, só
é alcançada quando ela assume um caráter revolucionário ou como no termo
cunhado por Alexander Gottlieb Baumgarten, se torna Estética.
Já na Alemanha moderna, veremos como a arte se torna ―cultura de
massa‖, de um lado, sob o controle de governos absolutistas: comunista e nazi-
-facista conhecida como estética totalitária preconizada pelo estilo realismo
socialista (1930 – 1960) e, de outro, sob a manipulação do capitalismo na
versão conhecida como pop art.
2.4 – Subjetividade segundo o gosto na estética de Gerhard Richter
O tema da subjetividade é amplamente refletido por Gehard Richter no
âmbito da arte e torna-se visível em sua obra ―Party‖. Reobservemos a pintura
a seguir:
82
Fig. 10. RICHTER, Gerhard. Party (Festa). Museum Frieder Burda, Baden
Baden. Diversos materiais, 150 x 182 cm, 1963.
A dicotomia entre aparência e a essência da realidade é a eminente e
existencial suspeita de Gerhard Richter. Sondagens sobre uma possível
existência de um ser em si constituindo a ―realidade‖, mantêm-se secretas sob
superfície da tela, onde tinta vermelha é lançada, sugerindo sangue e rasgos
são produzidos e recosturados. Essas são algumas das pistas que parecem
revelar a natureza trágica dessa reflexão. Moorhouse, interpretando Richter,
defende que o pintor entende o mundo filosoficamente ao representá-lo dessa
forma:
A realidade não se deixa representar satisfatória e adequadamente. Esse discernimento (juízo) vem com o conhecimento de que a aparência como significante não fica apenas independente da atualidade a qual se refere, mas o próprio status ontológico da aparência, pressuposto pela sua própria superfície. (MOORHOUSE, 2009, p. 89).
83
Analisando a obra Party, através das próprias pressuposições filosóficas
de Richter, entendemos que ela resume os motivos de seu inconformismo
frente à impossibilidade de acessarmos uma dimensão mais profunda da
realidade às custa da subjetividade. Essa, que em Kant é ―universal‖ e em
Freud, além de ser particular, tem forte substrato inconsciente, é refletida por
Gerhard Richter ainda na obra de Paul Moorhouse:
A gente gostaria de compreender e tentar pintar o que a gente vê e o que absolutamente existe (da ist). Depois a gente percebe que é impossível pintar, representar uma realidade. O que a gente faz é sempre e apenas representar a si mesmo, logo, isso é a própria realidade. (RICHTER apud Moorhouse, 2009, p. 59).
O que parece angustiar o pintor esbarra no clássico problema existencial
de se saber se existe algo substancial secreto na aparência da realidade ou
não. Ao assumir pintar quadros baseado em fotografias, reduzindo ao mínimo
a ação da subjetividade, Richter acreditou ter encontrado uma maneira de se
aproximar mais efetivamente da realidade:
Tudo o que é, parece e é visível para nós porque percebemos apenas a aparência que as coisas refletem; nada mais é visível. [...]. ‖Nós não podemos confiar na imagem que vemos da realidade, por que nós só vemos a coisa (o objeto) como nossos olhos nos transmitem, além de outras experiências, que por sua vez, corrigem esta imagem.‖ (RICHTER, 2009, p. 34).
O paradoxo entre a realidade visível e invisível tratado no âmbito da arte,
se torna ainda mais complicado pela subjetividade na opinião de Richter. Em
entrevista com Rolf Schoen em 1972, Richter declara: ―Eu não desconfio da
realidade, da qual eu não sei quase nada, mas da sua imagem, como nossos
sentidos nos transmitem: incompleta e limitada.‖ (RICHTER, 2009, p. 60). O
pintor se posiciona frente a essa percepção dizendo ainda: ―Nunca gostei de
subjetividade.‖ (Ibidem, 2009, p. 34). Vendo nisso uma dificuldade a ser
enfrentada, Richter tenta superar seu antagonismo fotografando a aparência da
realidade, visando captar os elementos do objeto, que são impossíveis de ser
captados a olho nu.
Com base na investigação epistemológica e na estrutura mental
84
apresentada pela psicanálise, nos aproximamos do que parece ocorrer no
mundo subjetivo do artista, materializado em forma de arte. Assim,
―subjetividade particular‖ de Freud confronta a ―subjetividade universal‖ de
Kant, mais precisamente na hipótese de um pressuposto conhecimento
―uniforme‖ de mundo.
2.4.1 – O gosto segundo a subjetividade
A partir da arte e da reflexão de Gerhard Richter, vimos até agora, que
dois imperativos categóricos acerca da relação do sujeito com o mundo objetal
são tensionados: a objetividade e a subjetividade. Abrindo uma discussão à luz
das teorias da comunicação, percebemos que o tema da subjetividade remonta
a Antiguidade. Mais de dois mil anos distantes de nós, na arte da Grécia Antiga
através do conhecido conceito de mimesis, tentou-se capturar a essência da
realidade imitando a natureza. Problema esse que, mesmo em tempos
tecnológicos avançados, permanece insolúvel.
A subjetividade na esfera artística sempre representou um problema na
relação do sujeito com o objeto. Para Richter, não é possível chegar mais perto
da realidade do que apenas muito próximo. Observação sumária, que redunda
no mesmo e mais fundamental problema da existência humana: Como
podemos conhecer o mundo que nos cerca? Estaríamos confinados, dentro de
um mundo particular, subjetivo, completamente impossibilitados de saber o que
realmente existe?
No que tange os problemas subjetivos, apesar da tendência ao
consenso de ―subjetidade universal‖ em torno do pesamento kantiano, o ser
humano moderno se depara com aqueles que esbarram em sua subjetividade
de forma particular. Se a essência de uma obra de arte para Kant, do ponto de
vista da objetividade, é inacessível, a experiência estética que ela proporciona,
do ponto de vista da subjetividade, que compreende a sensibilidade, é
considerada. Mas isso, apenas para kant, para quem a obra de arte mantém
seus fins e meios fiéis a sua própria incondicionalidade e infinitude. No entanto,
no caso do fruidor desejar ir para além do deleite e da contemplação do objeto
estético, conhecimentos gerais e específicos são requeridos nesse
85
relacionamento e isso, mesmo que os efeitos de uma obra não configurem elos
de ligação entre as partes (subjetividade e objetividade).
A psicanálise Freudiana, por sua vez, ao explicar que, a priori, somos
constituídos de forma a não termos acesso ao mundo que nos cerca,
principalmente no que respeita os domínios de nosso inconsciente, marca o
ponto de distinção com Kant. A teoria Kantiana nos permite uma chance maior
de acesso ao mundo da aparência. Mas mais do que isso, Kant nos chama a
atenção para a importância de se ampliar o grau de cultivo.
Na obra Estética Doméstica, o crítico de arte Clement Greemberg
assíduo leitor de Kant, pautado em suas teorias, esclarece que "gosto
subjetivo― é opinião e "gosto objetivo― é instrução, ou seja, o gosto é
desenvolvido a partir do entendimento de algo, no limite, cita: ―o gosto mal
desenvolvido é o mau gosto.― (GREEMBERG, 2002, p. 171). ―Por sua natureza
involuntária, os juízos de gosto são reveladores do grau de ―cultivo― do gosto
individual.― (Ibidem, 2002, p. 16). Reitera ainda o crítico interpretando Kant:
O que ele quis dizer é que somos razoavelmente semelhantes em linhas gerais. E são as linhas gerais que entram em ação quando desenvolvemos o nosso gosto. Quanto mais você desenvolve o gosto, mais impessoal você se torna. E não mais individual. (Ibidem, 2002, p. 175).
Ainda reforçando o esclarecimento que tensiona as teorias de Freud e
Kant epistemologicamente, entendemos que mesmo que o objeto estético
esteja fenomenologicamente disponível à intuição, ou seja, mesmo que ele se
mantenha desfrutável a qualquer subjetividade, ele ainda continua hermético
quanto a sua natureza essencial. Nesse ponto concordam Freud e Kant.
Mesmo com a concessão cedida por Kant à captação dos fenômenos do
objeto pela sensibilidade, entendemos que o objeto estético em sua natureza
inefável continua intangível e inenarrável, contudo, como nos esclarece o
Greemberg ainda apoiado em Kant, o problema pode ser minimizado quanto
mais gosto se desenvolve.
Segundo Gremberg, através do entendimento das convenções e da
história da cultura e da própria arte, ampliamos e efetivamos nosso prazer, haja
vista que, quanto mais subsídios cultiváveis desenvolvermos tanto mais nexos
86
intelectuais, sensíveis e sígnicos elaboraremos, efetivando, por assim dizer,
nosso prazer na experiência estética.
Isso nos leva a entender que ampliar a reflexão e o gosto, através do
conhecimento (reflexão e cultura), é necessário para objetivação do gosto, a
partir do qual é possível uma maior aproximação do universo alheio. Isso na
medida em que consideramos nossa humanidade de forma equivalente.
Entendemos que as obras de obra de Gerhard Richter, estejam
disponíveis, enquanto forma (estilo) à contemplação e ao deleite e, enquanto
conteúdo tanto a ―subjetividade universal‖ de Kant quanto à ―subjetividade
particular‖ de Freud, mas seu núcleo permanece igualmente substancialmente
inacessível.
Ao considerarmos suas obras através dos conteúdos de seus temas,
encontramos a oportunidade de conjecturar acerca de como os eventos da
Alemanha do século XX podem ter afetado o inconsciente de Richter, de forma
a impulsioná-lo a escolher, dentre tantos temas, representar artísticamente as
das tragédias provocadas pela Segunda Guerra. Na observação do
comportamento de pessoas afetadas pelo drama da Guerra, seja direta ou
indiretamente, procura-se entender como é a relação da subjetividade desse
indivíduo com o mundo externo. Para isso, buscamos lançar nosso olhar para
como o sujeito, pelo seu universo abstrato, relaciona-se com seu mundo
interior.
O foto-realismo de Richter, segundo o próprio artista, é desenvolvido
assumindo a fotografia de forma a minimizar a ação de sua subjetividade na
produção de suas obras, com vistas a universalizá-las ao máximo.
Contudo, esse distanciamento nos leva a refletir acerca de sua própria
ideologia, esbarrando nos domínios de sua reflexão artística-política e seus
imbricamentos com a sociedade alemã. O estilo de Richter, embora tenha base
realista, ao representar o ser fotografado no mundo real, não adere àqueles
estilos que transformaram a arte em publicidade política como é típico na
estética de totalitaristas e de capitalista.
Como salienta Walter Benjamin vivendo no auge da Segunda Guerra:
―Todos os esforços para estetizar a política culminam num só ponto: a guerra‖.
(BENJAMIN, 1980, p.27). Nesse ponto, os quadros-foto de Richter, mesmo
através de seu estilo foto-realista desfigurado, ao representar, entre outros
87
eventos trágicos, as vítimas e mandantes do Holocausto e os dramas
existenciais dali decorrentes, não ―estetiza a política‖ como Benjamin
condenava. Podemos interpretar isso como um ato inconsciente de desabafo
de Richter frente às atrocidades da Guerra.
Entre os elementos que compõe seu estilo foto-realista estão a acromia
e o abstração, produzidos pelo pintor com vistas a manter anônima a
identidade de seus modelos. Quando as fotos têm origem midiática, Richter
recorta seus títulos e discursos sensacionalistas, muitas vezes depreciativos,
como são normalmente veiculados pelas mídias, direcionando, por assim dizer,
nossa olhar para o conteúdo, cujas profundezas, sem uma pesquisa, se
mantêm igualmente impenetráveis. A aparência ilusória e difusa de seu estilo e
os temas existenciais sem esclarecimento confundem o expectador!
2.4.2 – O gosto segundo o longínquo
Retomando o conceito de aura de Benjamin, podemos dizer que quanto
à atmosfera histórica e testemunhal, as obras de Richter traduzem-se na
íntegra benjaminiana como: ―a única aparição de uma realidade longínqua, por
mais próxima que ela esteja‖. (BENJAMIN, 2002, p.10). No entanto, a
atmosfera de um ―tempo longínquo‖ que constituem suas obras, é sugerida
através de um teor de distanciamento físico-temporal (histórico) e não na
intangibilidade de um estado metafísico como compreendem as obras de arte
auráticas do passado, para às quais refere-se o termo. Muito pelo contrário, a
narrativa histórica e a estética trágica de suas obras defendem a
transcendência na imanência de um tempo que existiu irrevogavelmente.
A seguinte obra subsidia nossa interpretação:
88
Fig. 11. RICHTER, Gerhard. Familie nach altem Meistern (Família como nos
velhos mestres). Pinakothek der Moderne, Munique. Óleo sobre tela, 147 x 155
cm, 1965. (MOORHOUSE, 2009, p. 62).
A obra Família como nos velhos mestres acima, embora não cumpra
absolutamente qualquer função ritualística, evoca a memória de um tempo
distante de nossa atualidade, ao mesmo tempo em que carrega elementos
disponíveis a infinitas interpretações. Elementos esses, que por si sós,
legitimam a autenticidade de seu estilo.
De forma a defender objetivamente nossa análise, através da leitura das
características intrínsecas a essa obra, nos subsidiamos nas observações de
Clement Greemberg acerca do conceito de gosto:
Com efeito, a objetividade do gosto está incontestavelmente provada pela presença de um consenso e por intermédio dele
89
no decorrer do tempo. Esse consenso evidencia a si mesmo nos juízos de valor estético que perduram sob o eternamente renovado teste da experiência. Determinadas obras se destacam em seu tempo ou na posteridade por sua excelência, e mantêm sua primazia, isto é, continuam a impor-se aos que entre nós observam, ouvem ou lêem com a profundidade exigida em tempos posteriores. E para essa durabilidade – a durabilidade que cria um consenso – não há explicação a não ser o fato de que o gosto é, em última análise, objetivo. Ou, então, o melhor gosto; aquele que se faz reconhecer pela durabilidade de seus veredictos; e nessa durabilidade reside a prova de sua objetividade. (GREENBERG, 2002, p. 69)
Greemberg pauta o valor de uma obra de arte em sua capacidade de
durar no tempo histórico, pautado em seu estado de objetivação do gosto, logo
nos apóia ao justificarmos que as obras de Richter, no que tange sua
atmosfera histórica, carregam intrínsecamente as qualidades necessárias para
se auto-qualificarem. Ao mesmo tempo em que atendem as convenções da
arte tradicional através de temas que estimulam a reflexão e permitem o
deleite. Suas obras se atualizam nas profusões abstratas de seu estilo.
A alusão a uma fotografia antiga e desfocada no estilo foto-realista de
Richter é pouco convencional. Sua inovação estilística e durabilidade no tempo,
mantém suas obras disponíveis a múltiplas interpretações, não encerrando em
si mesmas uma significação de forma tediosa e banal.
Traduzindo nossa observação, recorremos à afirmação de Richter
encontrada por Moorhouse: ―Depois dos quadros terem sido pintados e já
prontos, eles não contam mais nada de sua situação definida, o retrato é
absurdo. Enquanto quadro ele possui outro sentido, outras informações.
(RICHTER apud Moorhouse, 2009, p. 44).
Pintar retratos em tempos pós-modernos poderia desqualificar uma arte,
na opinião de alguns estetas e artistas vanguardistas. Para tais obras caberia o
termo Kitsch (em alemão) ou brega (em português) como sinônimo de arte
―inferior‖ ou ―ruim‖.
Analisando por esse viés, consideramos o esclarecimento de Greemberg
sobre o que seja esse tipo de arte: A ―arte inferior‖ foi aquela que tornou
irrelevantes o juízo de gosto, esperou tornar irrelevante sua própria
inferioridade qualitativa – também partiu do princípio de que o que mais
importava, de qualquer forma, seria ampliar as fronteiras da arte, assim como
90
fizera a vanguarda clássica. (GREEMBERG, 2002, p. 230). Logo, os retratos
pós-modernistas de Richter, que não desprezam a importância da qualidade
artística, nem quanto a forma tampouco quanto ao conteúdo, parecem
enfrentar esse veredicto.
2.4.3 - Do gosto: ―arte superiror‖ x ―arte inferior‖
Ainda norteando o tema da arte sem qualidade ou ―ruim‖, nos apoiamos
no esclarecimento fornecido por Umberto Eco na obra História da Feiúra. ―Arte
inferior‖ no processo histórico dá origem da palavra kitsch. O termo kitsch,
segundo Eco, nasce quando turistas americanos na segunda metade do século
XIX, tentam negociar em Munique (Alemanha) o preço das obras de arte.
Segundo Eco, o termo ―desconto‖ que em inglês é sketch, é originário do
dialeto mecklenburguês, que anteriormente já existia no verbo kitschen (em
alemão), sinônimo de ―varrer a lama dos lixos das ruas‖. Ele significava ainda a
busca por uma experiência estética fácil, de súbita e excepcional afetação, por
parte do comprador. Umberto Eco subsidiado por Clement Greemberg cita
ainda:
Quem aprecia o Kitsch considera que está usufruindo de uma experiência qualitativamente alta. Basta dizer que existe uma arte para os incultos, assim como existe uma arte para os cultos e que é preciso respeitar a diferença entre os dois ―gostos‖ como são respeitadas as diferenças de crenças religiosas ou as preferências sexuais. Mas enquanto os cultores de uma arte ―culta‖ consideram o kitsch, os cultores do Kitsch (salvo diante de obras cuja aspiração é justamente ―chocar a burguesia‖) não consideram desprezível a grande arte dos museus (os quais, aliás, expõem com frequência obras que a sensibilidade culta considera kitsch). Muito ao contrário, consideram as obras Kitsch ―semelhantes‖ àquelas da grande arte. Se uma das definições do Kitsch o vê como algo que visa provocar um efeito passional em vez de permitir uma contemplação desinteressada, uma outra considera Kitsch a prática artística que, para mobilizar o comprador, imita e cita a arte dos museus. Clement Greenberg afirmou que, enquanto a vanguarda (entendendo-a, em geral, como arte em sua função de descoberta e invenção) imita o ato do imitar, o Kitsch imita o efeito da imitação: ao fazer arte, a vanguarda evidencia os procedimentos que levam à obra e as elege como objetos de seu próprio discurso, enquanto o Kitsch evidencia as reações que a obra deve provocar e elege como objetivo da própria operação as reações emocionais do fruidor. (ECO, 2007, p. 397).
91
Assim, a dimensão artística aparece como elemento fundamental
marcando a distinção entre os mundos dos considerados ―cultos‖ e ―incultos‖.
Segundo Eco, isso acontece na medida em que, o que legitima o gosto dos
burgueses seria o grau de cultivo e sua própria cultura. As obras de arte nesse
caso carregariam em seu estilo a originalidade de um discurso próprio e único,
sem finalidades alheias a experiência estética. E o que legitima o ―gosto dos
pobres‖ seria sua própria falta de cultivo e discernimento. As obras de
referência nesse caso seriam aquelas que carregam o discurso de outros
estilos. Elas copiariam seus efeitos com o objetivo de emocionar o grande
público.
Ao analisarmos, que grande parte das obras de Richter, ao carregarem
em seus temas os escombros do Holocausto junto as expressões sublimes e
supostamente felizes de seus modelos, percebemos que uma experiência
estética autônoma surge, cuja inovação não permite que suas obras sejam
avaliadas pelos critérios de gosto pautados nas concepções da estética
subjetivista. Isso, segundo Greemberg, nos levaria necessariamente a nos
aproximar da concepção de sujeito sociológico:
Creio que a consciência de determinadas coisas que aconteceram no passado recente, no último século, tornou-se extraordinariamente difundida em nossa época. Ao menos para mim, que sou bem mais velho. Penso que, no final dos anos 50 e no começo dos 60, todo mundo percebeu que a forma que a arte encontrou para ter êxito nos últimos cem anos foi ser inovadora. E me parece que levou muito tempo para que se descobrisse isso, para que esse fato se tornasse popularmente conhecido. Surpreende que isso não tenha sido visto dessa maneira abrangente muito antes. Ou seja, nunca tivemos uma classe média instruída com as proporções que temos hoje neste país ou mesmo na Europa Ocidental. Creio também que se saiba – o que talvez Marx tenha sido o primeiro a perceber – que a maioria das pessoas em todas as civilizações urbanas dos últimos cinco mil anos foi exclusiva de quem tinha dinheiro suficiente para desfrutar de um lazer digno e confortável. A injustiça desse fato foi percebida por muitas pessoas, atualmente, e por pessoas, que, infelizmente, são pouco sensíveis e não leram Marx suficientemente bem para saber que não se pode modificar sua situação pelo medo ou pelo desejo de modificá-la. Não se pode modificá-la, como os marxistas e stalinistas vulgares o sentiram, trazendo a cultura
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para as massas. Tanto Hitler quanto Stálin concordavam nesse ponto. Pode-se trazer a cultura para as massas, mas então já não é mais alta cultura. Não há dúvidas quanto a isso. E não é porque o pobre nasceu com gosto pior do que o rico. Gosto é algo que se cultiva, que não é inato. (GREEMBERG, 2002, p. 219).
Segundo Greemberg, Marx foi muito feliz ao analisar que a consciência
é determinada pela materialidade da vida. Assim o ―gosto‖, é a medida do grau
de cultivo, que, a priori, é relativa a condição social inata do sujeito, todavia,
juízos de valor, enquanto critérios de gosto, são continuamente passíveis de
evolução.
Partindo dessas convenções, que pautam a arte ―ruim‖, ou ―inferior‖ e/ou
kitsch, na falta de cultura e aplicando-as na leitura das obras de Richter,
percebe-se que o artista não se pautou em temas fotográficos com conteúdos
vazios e efêmeros, tampouco desenvolveu seu estilo descompromissado com a
qualidade da forma e do estilo.
Sua arte ultrapassou a fronteira do tempo da arte tradicional, todavia,
nunca se expôs ao veredicto de negligente que compreende a arte de ―mau
gosto‖, ou ―ruim‖ convencionada pela crítica especializada, para a qual a
decadência do gosto é inferida a partir do teor político e mercadológico da arte
de cultura publicitária ou de massa.
Por outro lado, ao considerar as obras de Richter pelo olhar da
atualidade, no que tange seus temas memoriais, evocadores do passado,
poder-se-ia dizer que esse seja o ponto que as desqualificam completamente.
No entanto, o crítico de arte Moorhouse defende-o esclarecendo:
Principalmente com seus retratos dos anos 90, como Lesende ou Kleine Badende, Richter alocou sua pintura em uma tradição histórica da arte. Familie nach altem Meister, para Richter é primeiramente, o que ele já mostra através do título: uma imagem de família, mas em forma de pintura. A realização de uma imagem histórica de arte mostra que, bem como as reproduções das revistas e jornais baratos, modelos assim também são possíveis. (MOORHOUSE, 2007, p. 62)
93
A imagem histórica nos quadros de Richter é, segundo Moorhouse, um
fator positivo, haja vista que sua narrativa histórica visa trazer o passado para o
presente, em última instância, busca eternizá-lo e não manter o passado
exclusivamente confinado num mundo que não nos diz mais respeito. Muito
pelo contrário, a obra acima como o próprio título do quadro indica ―Família ao
estilo dos velhos mestres‖ (Familie nach altem Meistern) e como alertou o
crítico, sugere que é possível produzir pinturas no estilo clássico com imagens
atuais de quaisquer mídias.
Assim, a atmosfera histórica dos quadros de Richter fica protegida pela
própria inversão que o pintor faz no tempo. Ao invés de aceitar a morte da obra
de arte a partir do nascimento das técnicas de reprodução, Richter utiliza a
fotografia para recuperar o sentido histórico da obra de arte, inaugurando uma
arte que poderíamos chamar de aurática não ritualísta. Dessa forma, Richter
parece não se submeter, tampouco refutar, à crítica daqueles que
hipostasiaram a qualidade da arte ―acadêmica‖ ou ―elevada‖ nos arautos do
gosto da cultura clássica.
A própria resistência que as obras de Richter oferecem, no sentido de
apresentar uma realidade desatualizada, parece formalizá-la como
comunicável no tempo presente, pois se trata de um passado dramático que
nos afeta diretamente.
Os temas testemunhais da Segunda Guerra Mundial parecem ser a
própria marca trágica de sua cultura, materializadas em forma de arte que, não
obstante, traz à memória a morte de nada menos que 60 milhões de pessoas,
entre as quais contavam 6 milhões de judeus, além de outras, que foram
indiretamente afetadas, cujas proporções são incomensuráveis até os dias de
hoje.
Ao ser produzida após 1960, sua arte baseada em fotografias, pode ser
considerada avançada ou neo-vanguardista e como tal, deve ser entendida em
sua autonomia estilística frente às convenções artísticas do passado. No
entanto, observamos que Richter se propõe ir além dos limites da experiência
imediata, típica da proposta de algumas artes produzidas nessa mesma época.
A arte de Richter atende a exigência de muitos, tanto do ponto de vista
da qualidade estilística quanto conteudista, mas não agrada apenas e
exclusivamente ao gosto daqueles que julgam seu valor a partir de sua riqueza
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de elaboração, definição e estilo, mas muitas vezes, daqueles que são apenas
afetados subjetivamente na experiência estética. Provavelmente, a
originalidade de sua arte, do ponto de vista da inovação, seja o próprio evocar
a memória o longínquo atroz de sua civilização para o presente. De ser
inovadora enquanto é tradicional.
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Capítulo 3 - Comunicação e Cultura - A arte de Gerhard Richter traz a tona
uma discussão política acerca dos conceitos: subjetividade, arte e o gosto na
passagem da modernidade para a pós-modernidade
Gerhard Richter, ao lançar mão de copiar fotografias sobre a tela, reduz
ao mínimo a expressividade de seu gesto e de sua subjetividade de forma a
imitar significativamente o movimento da máquina e não o da natureza, como
entendia a arte mimética de outrora. Nesse sentido sua expressão é midiática,
e como tal não apenas congela um momento do ser no tempo de maneira
informal e objetiva, como também, ao escolher dentre tantas fotos, as que
possuem um forte teor emocional, o faz de forma subjetiva. Sua insubmissão a
alinhar-se a movimentos artísticos pré-existentes é reconhecida mediante seus
temas trágicos irredutíveis à outros estilos.
3.1 – Gosto: a priori ou a posteriori?
Richter concorda que a fotografia possui uma dupla e antagônica função:
ao mesmo tempo em que nos mantém distante da realidade mais efetiva é
capaz de captar mais elementos da própria realidade, do que nossos próprios
olhos. Isso esclarece como Richter, que tanto busca o distanciamento estético
através da objetividade e da alusão a uma imagem fotográfica, permanece
desconfortável com a intrínseca onipresença da subjetividade do homem
enquanto manipulador desses processos.
Essa percepção de mundo, reconhecida através de sua experiência
como artista que busca a neutralidade, acaba por redundar sempre em torno
do mesmo eixo: nenhuma objetividade é possível quando a atividade realizada
tem a mão do homem. Nesse ponto Clement Greemberg nos apóia:
O caráter de indefinição – de indescritibilidade – pertence a todas as coisas que abarcam sua própria meta, (todas as coisas que possuem seus fins em si mesmas) e não coisas que são necessariamente um meio de, ou indicadores para alguma outra coisa. E isso se aplica aos seres humanos, ao amor e ao comportamento moral. Fins em si mesmos como a felicidade, aplica-se até á diversão. Assim como eles, a arte é um valor último. Ou melhor, a experiência com a arte é um valor último.
96
Algo que buscamos apenas em nome da experiência e de que nada mais esperamos senão a assim chamada experiência ―não-referencial‖. Não se trata de uma experiência que possa ser concebida ou decifrada. A arte existe para si mesma. Mas a ―arte pela arte‖ é um conceito que tem sido mal visto nos últimos tempos, e mesmo assim ele persiste. Ele existe e permanece forte. Tudo o que temos a fazer é recordar que a arte, por possuir valor intrínseco, é um valor último em si mesmo, e não um valor superior. É um valor subordinado quando contraposto a boa e a má fortuna dos seres humanos, quando contrposto a felicidade e ao sofrimento de qualquer ser humano particular. Mas, ainda assim, isso não quer dizer que, quando nos ocupamos da arte, ela não seja valiosa e não permanece valiosa em si ou por si mesma, e não por alguma outra coisa. (GREMBERG, 2002, p. 137)
O fato de a subjetividade ser ubíqua, mesmo na ação objetiva do
homem, nos leva a inferir que na experiência estética o elemento fundamental
seja a intuição, no entanto, isso não significa dizer que, o juízo de valor acerca
da qualidade da arte, seja exclusivamente particular e subjetivo, pois, como
vimos até agora, é praticamente unânima a idéia de que a captação de
elementos valorativos num objeto estético seja tanto mais minuciosa e refinada
quanto maior for o conhecimento teórico a seu respeito. Logo, considerar o
contemplador como um receptor, seria conceber sem nenhuma garantia seu
estado passivo de estar na experiência estética.
Nesse ponto, Greemberg concordando com Kant, quando o filósofo
enfatiza que o gosto não deve se manter única e exclusivamente relativo
subjetividade. A exemplo do tema temos duas possibilidades igualmente
legítimas: podemos não gostar de um objeto estético e apesar disso entender
que ele esteja carregado de inúmeras qualidades objetivas ou podemos nos
afetar na presença de um objeto estético, mesmo percebendo que ele esteja
desprovido de qualidades objetivas.
Em suma, a única certeza que se tem acerca da qualificação de um
objeto estético é a de que não se sabe absolutamente o que acontece na
experiência estética. Todavia, como vimos até agora na opinião dos
pensadores, o gosto é o elemento permanente e isso significa dizer que, num
primeiro momento, ele é subjetivo, intuitivo e relativo ao objeto contemplável,
mas num segundo momento, ele objetiva-se, ou seja, carrega em si mesmo as
propriedades alheias ao objeto relativas a qualquer gosto.
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O simples discurso acerca de uma obra de arte, em termos de sua
qualidade, por si só, sugere a emissão de juízos valor, tendo o gosto como
referência. Essa antiga divergência, pendular entre as teorias de estetas e
filósofos, é passível de inúmeras discussões. Retomando a objetividade do
gosto em Kant, lembramos que para o autor ela acontece na experiência
estética em termos de sensus communis. A primeira vista, parece estranho que
o termo ―gosto‖ se refira a algo comum a todos e não seja subjetivo como
estamos acostumados a pensar, em termos freudianos. Todavia, Kant
esclarece axiologicamente sua epistemologia de forma a delimitar a
relatividade dos juízos de gosto subjetivos. O filósofo universaliza a
subjetividade, da seguinte maneira:
O gosto torna, por assim dizer, possível a passagem do atrativo dos sentidos ao interesse moral habitual sem um salto demasiado violento, na medida em que representa a faculdade da imaginação também na sua liberdade enquanto determinável como conforme a fins, para o entendimento e ensina a encontrar um comprazimento livre, mesmo em objetos dos sentidos e sem atrativo destes. (KANT, 1998, p. 264)
Observamos que, essa antiga discussão que divide o mundo em
metafísico pautado na universalidade do absoluto e físico pautado na
subjetividade singular do indivíduo, continua se desdobrando dialéticamente
em movimentos circulares sem jamais concluir um ciclo.
No que respeita a ―subjetividade universal‖ Kantiana, a estética nesses
termos, não possui uma finalidade útil e moral. Ela não é particularmente
subjetiva, pois se assim o fosse transformaríamos o conceito de gosto em
opinião, exatamente o que Kant refutava. Logo, através do juízo estético, onde
encontraríamos algo belo, não aconteceria a satisfação de um desejo
particular, mas a apreciação desinteressada, de finalidade infinitas e comuns.
Kant esclarece que na experiência estética, a captação dos fenômenos
do objeto por parte do sujeito, esbarra na questão moral, todavia, a moralidade
à qual Kant se refere, é a universal (metafísica) e não a entendida
contemporaneamente na trama da vida social. Sua dialética diz que se a
moralidade é relativa ao dever, ela deve ser universal, logo, a experiência
estética, que é relativa ao direito do homem, também deve ser alinhada ao bem
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enquanto respeita a moral de todos. Acerca disso, Kant em sua Crítica à
Faculdade do Juízo afirma que se somos universalmente semelhantes, então
nosso gosto também se alinha:
O gosto é no fundo uma faculdade de ajuizamento da sensificação de idéias morais [mediante uma certa analogia da reflexão sobre ambas as coisas], da qual também e de uma maior receptividade – que se funda sobre ela – para o sentimento a partir daquelas idéias [que se chama sentimento moral] deriva aquele prazer que o gosto declara válido para a humanidade em geral e não simplesmente para o sentimento privado de cada um; assim parece evidente que a verdadeira propedêutica para a fundação do gosto seja o desenvolvimento de idéias morais e a cultura do sentimento moral, já que somente se a sensibilidade concordar com ele, pode o verdadeiro gosto tomar uma forma determinada e imutável. (KANT, 2005, p. 200).
Para Kant, a força estaria em nossa razão por que somos orientados
pela metafísica da natureza. Freud ao interpretar a ontologia psicanalíticamente
nos leva a conjecturar acerca de nossa subjetividade na perspectiva do
inconsciente, que é constituidor de grande parte do nosso ser. Segundo Freud
não apreendemos o mundo da mesma forma nem desenvolvemos o mesmo
gosto, como defendia Kant.
Nesse ponto vemos a teoria do inconsciente freudiana apoiar a reflexão-
crítica dos filósofos da Escola de Frankfurt. Os frankfurtianos, ao refletirem
acerca da vida em termos sociais, admitem que a ideologia pode exercer
grande força de manipulação pela via do inconsciente. Como Adorno
costumava argumentar: ―gostamos daquilo que nos ensinam a gostar‖. Esse
ponto esclarece que, se somos seres sociais (não autônomos), somos
incapazes de desenvolver um gosto puramente particular. Logo,
adornianamente, os seres humanos são considerados universalmente
semelhantes enquanto viventes sob a éxige de uma mesma ideologia política.
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3.2 – Paradigmas estéticos: fenômenos culturais e históricos
Os paradigmas que pautaram os valores que fundamentam a concepção
de estética e de composição de materiais na modernidade sofre sua maior
ruptura com a ação da tecnologia (fotografia) no campo da arte, configurando,
por assim dizer, o que veio a ser conhecido como na pós-modernidade. Assim
Richter, que refuta a opinião de alguns críticos de arte e estetas da atualidade,
de que valores como arte e gosto, em tempos pós-modernos, não são mais
pertinentes, salienta a importância de tais conceitos através de suas obras.
Segundo Ciro Marcondes Filho a mudança de valores na passagem da
modernidade para a pós-modernidade, traz à tona as concepções de Paul
Virilio e Lucien Sfez salientando como, no campo da estética, a crise da razão
acontece em três momentos diferentes:
Em Virilio, a pintura era a expressão da realidade sob uma perspectiva formalista e através dela chegava-se a um conhecimento pleno, direto, ―transparente‖ real que estava sendo representado. O cinema e a fotografia, como intervenções técnicas na forma de se reproduzir a realidade, atuavam sob a perspectiva dialética da representatividade. O primado aqui já não é mais da realidade, mas da atualidade. Fotografia e cinema, isto é, o fotograma significa uma captação atual momentânea, instantânea que dava à representatividade uma apreensão não/programada, não maquinada. Nesse caso, com o privilégio da instantaneidade perde-se o componente da plenitude do conhecimento que tinha a ver com uma captação duradoura e exaustiva do objeto. Por fim no momento atual das tecnologias sofisticadas marcadas pela videografia e pela holografia, já nãose trabalha mais com a atualidade mas com um fenômeno que transcende a possibilidade de correspondência do objeto com a imagem real. Está no campo da virtualidade e aqui o conhecimento torna-se absolutamente impreciso. (MARCONDES, 1991, p.16).
A plenitude do conhecimento pressupõe uma captação exaustiva e
duradoura do objeto. Com a instantâneidade da reprodutibilidade técnica da
imagem perde-se o componente correspondente a plenitude do conhecimento:
Em Sfez, na visão de mundo da representação, o homem domina a máquina e está com ela para seus fins. Há o predomínio e as máquinas representam o homem segundo o princípio da dualidade cartesiana (corpo/espírito, sujeito/objeto). Os meis de comunicação traduzem o mundo, a imagem representa o emissor, vive-se num universo em termos de comunicação, da representação. A figura é a bola, que envez de eviada, atinge seu objetivo e é novamente reenviada
100
com a conservação da plena integridade do movimento. A segunda visão do mundo é a da expressão, em que os objetos são o ambiente natural; nosso mundo é introduzido por ele e o homem está no mundo, nele jogado, não o dominando, mas a ele se adaptando. As partes se relacionam com o todo. Os meios de comunicação igualmente estão no mundo e o mundo está neles, mas não há mais envio de mensagem. A figura desta segunda fórmula é a criatura, e os signos são produzidos como organismos, exprimem a natureza. A terceira visão de mundo é a da confusão; não há sujeito e é o objeto técnico que marca seus limites e determina suas qualidades. A tecnologia diz tudo sobre o homem e seu devir. O homem existe pela tecnologia. Nos meios de comunicação ocorre uma ausência de comunicação exatamente pelo próprio excesso de informação. A comunicação torna-se uma entidade metafísica, auto referente; é uma repetição imperturbável do mesmo o silêncio de um sujeito morto. A figura desta terceira categoria é Frankenstein. (MARCONDES, 1991, p. 16).
Segundo Marcondes, tendo como veículo a estética, a visão foi o sentido
humano mais explorado politicamente e mais seduzido economicamente.
Segundo seus novos contornos a técnica promove a mudança de orientação da
visão de mundo, ―realiza a desintegração da unidade e o fim da perpectiva‖:
A técnica acaba com o ―ponto central do mundo‖, que levará mais tarde os homens a questinar o próprio sentido da metafísica e de sua existência enquanto seres com estruturas estáveis, enraizadas ou culturalmente consolidadas. (Ibidem, 1991, p. 16).
Como adiantara Walter Benjamin, a obra de arte, cuja clássica forma
tinha a metafísica como referência de mundo, oferecia ao receptor uma pintura
que: ―convida à contemplação; em sua presença, as pessoas se entregam à
associação de idéias.‖ (BENJAMIN, 1980, p. 25).
Até esse momento da pesquisa compreendemos que ―ler‖ uma obra de
arte não é tarefa das mais fáceis, sobretudo quando sua interpretação
acontece em uma passagem de mudança de paradigmas que compreende o
imbricamente do estético com a política.
Segundo Benjamin: ―a polêmica que se desenvolveu no decurso do
século XIX, entre os pintores e os fotógrafos, quanto ao valor respectivos de
suas obras (...) traduzia de fato uma perturbação de significado histórico na
estrutura do universo e nenhum dos dois grupos adversários teve consciência
101
dela. Despregada de suas bases ritualísticas pelas técnicas de reprodução, a
arte, em decorrência, não mais podia manter seus aspectos de independência.
(Ibidem, 1980, p.13).
Sumariamente, no que tange a discussão entre a pintura e a fotografia,
confirma-se que a arte é relativa história. No auge da modernidade a
perspectiva existencialista da arte é perdida por causa de sua relação com o
mundo material. Como resume Michel Onfray, a arte contemporânea,
precursora dessa revolução de paradigmas mostra que:
Não existe verdade intrínseca da obra de arte e do Belo, mas uma verdade relativa e conjuntural. A arte não procede de um momento inteligível, mas de uma configuração sensível, de um dispositivo sociológico. Kant se retrai e cede lugar a Bordieu... O objeto pré-feito, manufaturado, saído da loja, exposto num lugar preceituador de conteúdo estético se torna de fato um objeto de arte. A intenção do artista produz a obra, elas as vezes pode até bastar para constituí-la... Acrescentemos a isso duas proposições maiores: de um lado, o observador faz o quadro; de outro, tudo pode servir de suporte estético. De um lado, artista produz, claro, mas o espectador também tem de percorrer a metade do caminho para que se consuma todo o trajeto estético: nascimento do observador artista. (ONFRAY, 2010, 81).
Como pudemos perceber até agora, tentar develar uma obra de arte é
muito diferente de apenas usufruí-la subjetivamente. Do ―receptor‖ na
experiência estética se exige, além de, uma ampla e profunda pesquisa
histórico-teórica acerca da vida do criador da obra e conhecimento dos
paradigmas de julgamento estético relativos a cada época, um distanciamento
de seu olhar como forma de objetivar seu gosto particular. Como nos esclarece
o crítico de arte Clement Greemberg:
O ―subjetivo‖ refere-se a tudo o que particulariza um indivíduo como um Eu afetado por questões práticas, psicológicas, individualizantes, que envolvem interesses. Na experiência estética, há um distanciamento, ora maior ora menor, em relação a esse Eu. O indivíduo passa a ser tão objetivo quanto seu raciocínio, o que igualmente requer um distanciamento em relação a esse. Em ambos os casos, o grau de objetividade depende da amplitude do distanciamento. E quanto maior – ou mais ―puro‖ – o distanciamento mais estrito (ou seja, mais apurado) passa a ser o gosto ou o raciocínio. (GREEMBERG, 2002, p. 56).
102
Greemberg nos alerta, como havia feito Kant em outros termos, para a
importância da experiência estética não ficar exclusivamente sujeita a vontade
particular. Ela deve transcender a esfera pessoal. A subjetividade do artista é
requerida em termos de sua autobiografia, privacidade, temperamento e
talento. Segundo Greenberg, é necessário mais do que isso para se produzir
uma ―boa arte‖, é de suma importância além de disciplina, da pressão do meio,
superar a ação da subjetividade: ―Ao enfrentá-las, o artista superior objetiva,
transcende-a, sem esquecê-la‖ (...) ―o artista bem-sucedido aparta-se de seu
Eu privado, supera-o, transcende-o tanto quanto o faz o amante ―bem
sucedido‖ da arte.‖ (GREEMBERG, 2002, p. 58). Segundo o autor, do ―bom‖
artista, é exigido a objetivação de si mesmo em seu gosto e em sua arte.
Embora o crítico acredite que a experiência estética seja impenetrável
intelectualmente e que, portanto, não se consegue nem se deve desprezar a
intuição, onde o gosto subjetivo é legitimado, ele deixa claro que, pessoas mais
cultivadas e intelectualmente esforçadas desenvolvem mais gosto.
Isso nos leva a compreender que, emitir algum tipo de juízo de valor ao
interpretar uma obra de arte, só é possível por intermédio da análise de sua
forma e conteúdo. Posto que é imanente à existência de uma obra de arte é
exigência básica entender seus nexos históricos e culturais, pois, tais relações
revelam o estilo de um artista, que é constituído em termos de instrução e
ideologia, aspectos que, na grande maioria vezes, são intrínsecos a própria
obra.
Logo, desvelar aquilo que particulariza uma obra de arte requer
analogias. Como pudemos ver até agora, a personalidade tragi-romântica-
rebelde de Richter o impediu de se associar a estilos pré-existentes de arte, na
iminência de reduzir sua expressão artística e subjetividade. Para o pintor,
definir um estilo é sinônimo de uma falsa promessa metafísica, conceito que
defende Adorno quando afirma:
Em toda obra de arte, o estilo é uma promessa. Ao ser acolhido nas formas dominantes da universalidade: essa promessa da obra de arte de instituir a verdade imprimindo a figura nas formas transmitidas pela sociedade é tão necessária quanto hipócrita. Ela coloca as formas reais do existente como algo de
103
absoluto, protextando antecipar a satisfação nos derivados estéticos delas. Nessa medida, a pretensão da arte é sempre ao mesmo tempo ideologia. No entanto, é tão-somente neste confronto com a tradição, que se sedimenta no estilo, que a arte encontra expressão para o sofrimento. O elemento graças ao qual a obra de arte transcende a realidade, de fato, é inseparável do estilo. Contudo, ele não consiste na realização da harmonia – a unidade problemática da forma e do conteúdo, do interior e do exterior, do indivíduo e da sociedade - mas nos traços em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado em busca da identidade. Ao invés de se expor a esse fracasso, no qual o estilo da grande obra de arte sempre se negou, a obra mediocre sempre se ateve à semelhança com outras, isto é, ao sucedâneo da identidade. (ADORNO, 1991, p. 123).
Entendemos que é ―na discrepância, no necessário fracasso do esforço
apaixonado em busca da identidade‖ que Richter permanece fiel a cada nova
experiência estética. Sua personalidade insubmissa, o manteve na insegurança
do devir, permitindo-o experimentar as várias formas e materiais de produção
artística. Escolha insólita que o levou a ―transcender a realidade‖.
Richter, ao assumir a responsabilidade de se manter a deriva, sem a
proteção da tradição, compreende que, anterior a essa tomada de decisão,
está a vida, que é temporal e culturalmente anterior a qualquer conjectura
humana. Elemento determinante da identidade cultural do indivíduo.
Segundo Heidegger, nossa condição existencial no mundo (Dasein) é a
própria causa de nossa autonomia, consequentemente de nossa angústia;
prova efetiva da existência do ser: ―o angustiar-se é, enquanto disposição, um
modo de ser no mundo existindo facticamente. Os traços ontológicos
fundamentais desse ente são a existencialidade, a facticidade e a decadência.
(HEIDEGGER apud Dubois, 2004, p. 42). A partir desse ponto,
compreendemos que os elementos onipresentes na arte de Richter são
percebidos através de sua complexa constituição, cuja trama de significações
encontra-se disponível na episteme. Esse caráter físico-transcendental pode
ser avaliado em suas obras, na imediatez fugidia do momento presente, no
qual Richter se manteve fiel, sem nenhum juramento ou esperança para o
momento seguinte.
O fato de a arte esbarrar nos domínios dos fenômenos históricos e
culturais, por si só, já denota sua precedência ao estético até mesmo ao gosto,
104
porém, o que Richter parece defender é que a arte não é capaz de antecipar-se
a existência do ser subjetivo. Para o pintor, a arte está para o ser enquanto ele
está para a vida, no limite, ela só existe na medida em que o ser compreende
subjetivamente os eventos da vida e sua própria constituição nela. Logo, a
tradução que o sujeito faz do mundo é antecipada nos elementos que
compõem uma ampla e complexa trama de nexos que servem para sua
reflexão, que está, a priori, impressas em seu inconsciente.
Norteando a existência do Ser e do ser no mundo, o tratamento da obra
de arte nos impele a compreendê-la desde nossa cultura e instrução. Às vezes,
ela possui sua própria doutrina, livre e independente de quaisquer relações que
a determinem, cujos prognósticos de estilo e qualidade podem nascer,
desenvolver e morrer, exclusivamente em cada momento histórico e cultural.
Contudo, independente da validade e da duração das regras que determinam
seu valor, os nexos históricos e culturais que a norteiam conservam-se como
juízos existenciais.
Segundo nossa pesquisa, um juízo de valor acerca da arte pode ser
emitido, entre outras formas, pela perspectiva estética, totalmente
independente de outros. Isso nos leva a compreender que a arte, em última
instância, não serve a outros fins, além daqueles que proporcionam prazer
subjetivo através de sua beleza, seja ela harmônica ou grotesca.
Como vimos até esse momento, a estética subjetiva é produto da
experiência do ser no mundo em termos intuitivos e sentimentais e a estética
de caráter mais objetivo reduz o estético ao extra-estético.
Enquanto estudo filosófico, a estética é a esfera do conhecimento que
estuda o belo racionalmente, ou em outros termos, é o estudo dos fenômenos
que norteiam a contemplação do belo como algo que desperta uma emoção.
Sob uma perspectiva fenomenológica contemporânea, como
comprovamos teoricamente, o belo é relativo à idéia de valor estético único, à
partir do qual se julgavam todas as obras de arte, contudo, na passagem para
a pós-modernidade essa concepção deixa de existir. Cada objeto artístico hoje
determina e representa seu próprio tipo de beleza ou, em outras palavras, ele
próprio estabelece o tipo de valor a partir do qual será julgado.
Contemporaneamente, através dos elementos significativos relativos à
experiência estética, é possível reconhecer um objeto estético como belo ou
105
não. Segundo sua forma autêntica, singular e sensível, é legítimo considerar
que uma arte seja tanto bela quanto grotesca ou aterrorizante.
Nessa perspectiva, Gerhard Richter na era da reprodutibilidade técnica
avançada, enfrenta o fatal prognóstico da morte da arte hegeliano proferido no
século XIX. O destino trágico da arte compreendia a morte da bela arte,
singularmente produzida sem fins alheios ao estético e não de qualquer outro
tipo de arte. No Curso de Estética I de Hegel, já na introdução surge o famoso
prognóstico da morte da arte:
Em todas as relações, a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista de sua destinação suprema, algo do passado. Com isso, ela também perdeu para nós a autêntica verdade e vitalidade e está relegada à nossa representação, o que torna impossível que ela afirme sua antiga necessidade na realidade efetiva e que ocupe seu lugar superior. Hoje, além da fruição imediata, as obras de arte também suscitam em nós o juízo na medida em que submetemos à nossa consideração pensante o conteúdo e o meio da exposição da obra de arte, bem como a adequação e inadequação de ambos. A ciência da arte [26] é, pois, em nossa época muito mais necessária do que em épocas na qual a arte por si só, enquanto arte proporcionava plena satisfação. A arte nos convida a contemplá-la por meio do pensamento e, na verdade, não para que possa retomar seu antigo lugar, mas para que seja conhecido cientificamente o que é arte. (HEGEL, 2000, p.35)
A famosa citação, não apenas esclarece como sintetiza o espírito de um
tempo, em que arte começa a ser diretamente absorvida pela tecnologia.
3.3 – Ideologia na arte - Estética capitalista: ―Capitalismo realista‖
(Capistalistisches Realismus) X Estética totalitarista: ―Socialismo realista‖
(Sozialistischer Realismus)
Os tempos primitivos são líricos, os tempos antigos são épicos e os tempos modernos são dramáticos. E onde canta a eternidade, a epopéia soleniza a história, o drama pinta a vida.
Victor Hugo
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Segundo nossa pesquisa, desde os primórdios a arte, enquanto
manifestação de ordem estética pressupunha a manifestação das emoções do
ser humano frente ao seu entendimento emocional e perceptivo de mundo e,
como vimos contundentemente no esclarecimento kantiano, ela estava muito
distante de ser uma atividade com fins de manipulação político-ideológica.
Historicamente, a deformação na essência da obra de arte, remonta o período
medieval, quando passa a servir estilística e tematicamente aos interesses
Igreja. No Renascimento ela ficou conhecida como arte canônica ou sacra.
Assim, a arte, que não nasce com vistas a atender aos interesses
ideológicos da política tampouco da Igreja, torna-se sua principal arma ao ser
transformada em publicidade com apelo político.
No Comunismo e no Nazi-fascimo o estilo Realista de arte ficou
conhecido através do estilo ―realismo socialista‖ e no capitalismo como pop
art ou, em outras palavras respectivamente: estética totalitarista e estética
capitalista.
O realismo socialista foi criado pelo soviético Andrej Zdanov, braço
direito de Stalin (1879 - 1953), que atuava na área cultural e oficializou o estilo
como arte da União Soviética Comunista (1930 - 1960). O estilo foi adotado por
Adolf Hitler de 1933 a 1945 e por todos os outros países de regimes ditatoriais.
Paradoxalmente, mesmo ambos sendo sistemas totalitários, Hitler enquanto
líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães ou Nazista, fica
também conhecido por sua oposição aos Sociais-democratas da epocal União
Soviética. A mesma linguagem estética apologética ou mass art, serviu
simultaneamente à sistemas totalitários que politicamente se contrapunham.
Porém, a estética totalitarista cumpriu igualmente seu papel de
disseminadora ideológica, através do estilo realista e temas que sugeriam a
onipresença e onisciência de um único líder heróico, quase messiânico,
repudiando o mundo ideal das concepções românticas do neoclassicismo.
O estilo realista de representação, que nasce na França no fim do século
XIX, com vistas a libertar a arte das supressões morais do Estado/Igreja
feudais, vem ironicamente atender aos interesses de sitemas políticos
modernos de inspiração stalinista, hitleriano e capitalista, atuando com grande
força de repressão e manipulação.
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Sua linguagem técnica e temática devia ser facilmente compreendida e
assimilada pelas massas, logo, era perfeita para criação e manutenção de
regimes absolutistas, bem como ao apelo ao consumo.
Tais considerações podem ser evidenciadas na representação realista
da naziart, ―arte do povo‖ (Kunst dem Volk), na obra ―Transição no Alto Reno‖
(Übergang am Oberrhein), a seguir:
Fig. 12. SAUTER, Wilhelm. Transição no Alto Reno (Übergang am
Oberrhein). DHM - Museu Histórico, Berlim (DHM - Historisches Museum,
Berlin). Óleo sobre tela, 31 x 23,6 cm, 1942.
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No Museu Histórico Alemão, em Berlim (DHM - Historisches Museum), a
obra é narrada, na reportagem ―Arte e Cultura na Guerra‖ (Kunst und Kultur im
Krieg, 1939 – 1945), da seguinte maneira:
Durante a guerra, incontáveis pinturas e desenhos de ideologia nazista apelavam solidariedade a "comunidade nacional" (Volksgemeinschaft). Representações como propaganda nazista mistificavam retratos marciais, imagem de soldados em linha de frente na guerra, apelando a disposição do povo alemão para fornecer os maiores sacrifícios pessoais a vitória alemã; "destino de guerra do povo alemão" (Schicksalskampf des deutschen Volkes). Alguns deles eram descendentes de oficiais de guerra artistas e cartunistas da imprensa, que se estabeleceram nas 1938 unidades de propaganda do Alto Comando das Forças Armadas Wehrmacht (OKW) e entraram em campo de batalha, tomando-se parte real no combate. Embora muitas pinturas tenham sido criadas nos estúdios dos artistas, as imagens sugerem que o espectador seja imediatamente atraído para a ação, tendo as representações como fonte autêntica do campo de batalha. A distribuição dessas imagens são encontradas em livros, jornais, revistas e revistas de arte, tais como as publicadas por Heinrich Hoffmann, que, muito bem sucedido, possuía um elevado número de assinantes da revista mensal chamada "Arte para o povo." Até recentemente foram realizadas, revistas e exposições como a "Grande Exposição de Arte alemã" (Große Deutsche Kunstausstellung) esteriotipando firmemente a luta heróica e abnegada do soldado. (Museu Histórico Alemão).
Em suma, no aspecto da forma, o realismo na pintura tinha forte caráter
documental, mas no aspecto do conteúdo, sua representação era ideológica,
dependendo da política que a adotava. Muitas vezes, formas e conteúdos
abarcam toda a linguagem ideológica de uma obra.
Constata-se que, a força dos nexos entre a arte, a ideologia e a política
são evidentes na figura de Hitler, que ao se apropriar do estilo realista de arte
para disseminar a ideologia nazista, ridiculariza os artistas adeptos das escolas
vanguardistas mais influentes da época. Hitler fecha a importante escola de
arte ―Bauhaus‖, representante mais conhecida do design revolucionário
alemão. Logo, o ponto fulcral da repressão de Hitler, lançava mão da arte para
destruir tudo o que representava a cultura crítica alemã da época. Com o fim do
Holocausto, artistas modernos e contemporâneos internacionais, com vistas a
recuperar sua expressão junto à República Federal da Alemanha (RFA),
realizaram a primeira exposição em Kassel (Alemanha), conhecida como
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Documenta. Ela é realizada desde 1955 até os dias de hoje, dentre as quais
Richter participou em 1977.
Segundo nossa pesuisa, duas forças de ação confrontam-se
continuamente na pintura: o romantismo e o racionalismo. O racionalismo
originou o tecnicismo e o neoclassicismo, esse último visava recuperar a
versão racionalista fundada na concepção do mundo antigo. Ambas constituem
com igual força o discurso ideológico. Embora, o estilo realista de arte, no que
tange o aspecto de sua forma, tenha servido tanto à expressão de românticos-
rebeldes quanto de clássicos e classicistas, os conteúdos de seus temas são a
própria marca de suas distinções ideológicas.
A discussão acerca de estilos e meios artísticos alcançam o ápice dessa
investigação quando a arte passa a assumir feições políticas: Com quais fins,
estilos e movimentos artísticos, são inaugurados e adotados?
Como podemos constatar na arte celebrativa popular do ―realismo
socialista‖, a proposta do governo era a de manter e controlar o povo
representando artísticamente um líder, como uma figura de grande pai e
protetor:
Fig. 13. VLADIMIRSKI, Boris. Rosas para Stalin, Rússia, 1949.
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Richter que nasceu e viveu durante 30 anos em Dresden teve sua
formação artística toda orientada pela estética do realismo socialista vigentes
na epocal Alemanha oriental sob o regime Comunista, mas na maturidade e já
vivendo na Alemanha ocidental fundou sua arte refutando-a veementemente.
O mural abaixo foi pintado por Richter em 1956, para conclusão do curso
da Hochschule der bildenden Kunst (Academia de belas artes) de Dresden,
respeitando o estilo do realismo socialista:
Fig. 14. RICHTER, Gerhard. The Joy of Life (A alegria da vida). Fundação
Alemã do Museu da Higiene, Dresden. Mural, 10 m, 1956.
No site theartnewspaper.com/articles/Cold-War-cover-up-to-
continue/23762 encontramos na reportagem intitulada Cold War cover-up to
continue narrada por Martin Bailey como história do mural foi tratada pelo
governo alemão:
A Alegria da Vida retrata a vida, sob o regime Socialista vigente na Alemanha Oriental, de forma suave e envolvente. A obra foi pintada em cinco seções sobrepostas. O mural de dez metros de largura fica entre a entrada do museu e as galerias de temporárias de exposição. Na primeira seção, um jovem casal
111
sussurra segredos um para o outro. As cenas seguintes culminam com o par de piqueniques na grama com seu filho recém-nascido. O trator e a chaminé de fábrica ao fundo é utilizado para simbolizar o trabalho neste ―paraíso socialista.‖ Cinco meses antes da construção do Muro de Berlim, Richter fugiu para o Ocidental. Em 1979, The Joy of Life foi encoberto (sobrepintado). Embora o mural tenha ficado em exibição em um prédio público por 23 anos, nenhuma fotografia a cores da obra sobreviveu. Nenhuma das pinturas de Richter realizada antes da idade de 28 anos, estão expostas publicamente, (a maioria foram perdidas ou destruídas, e as poucas que sobrevivem permanecem em mãos privadas). Quando o edifício foi renovado, em 1994, a idéia de descobrir o mural foi brevemente considerada. Duas "janelas" foram abertas para que fragmentos do mural podessem ser vistos, contudo, foi posteriormente sobrepintado. Em 2002, na renovação mais recente do Museu, a parede foi novamente pintada de branco. O mural poderia ser descoberto, mas seria caro devido a sua grande dimensão, alega o governo. O Museu da Higiene dá duas razões para manter a pintura encoberta: A primeira é que a renovação mais recente devolveu o edifício no seu estado original como era em 1930. Um porta-voz explicou que o museu está cumprindo com a decisão da autoridade em preservar o patrimônio na sua originalidade: paredes brancas. O Museu da Higiene também quer evitar antagonizar Richter, que disse que o mural "não vale a pena preservar", com a cidade mais importante do artista do pós-guerra. Richter não foi explícito, mas ele pôde se sentir estranho a respeito dos compromissos que ele (junto com milhões de outros) teve de fazer durante o regime comunista. O jornal Art se aproximou de Richter...seu secretário repetiu o que o artista havia dito antes: "Pelo amor de Deus, é um desperdício de dinheiro. Eu prefiro o dinheiro seja usado para alguma coisa de valor artístico. É apenas um trabalho do aluno. (BAILEY, 2011).
Segundo o tema da ideologia, Richter expõe seu posicionamento no livro
Text da seguinte forma: ―Desde que reflito reconheço qualquer regra de
comportamento e qualquer opinião motivados ideologicamente como errados,
incômodos, contra a vida e criminosos.‖ (RICHTER, 2008, p. 207).
Em outro momento, reitera o pintor: ―Minha condenação à ideologia:
Faltam-me os meios para examiná-la. Não tenho dúvidas de que ideologias
prejudicam, de que somos obrigados a absorvê-las como se fossem muito
importantes: Como forma de comportamento e não como conteúdo. A julgar
por seus conteúdos são todas igualmente erradas. (RICHTER, 2008, p. 221).
Esses esclarecimentos legitimam também o nascimento de seu estilo,
que o pintor intitulou como ―realismo capitalista‖, em alemão (Kapitalistischer
Realismus). Relambramos que o termo foi criado pelos artistas alemães
Gerhard Richter e Konrad Lueg, Sigmar Polke e Manfred Kuttner para refutar e
112
ironizar o estilo realismo socialista. O realismo capitalista foi utilizado para
intitular uma exposição que aconteceu em Düsseldorf no dia 11 de outubro de
1963. O tema vinha impresso no convite ironizando a época em que Richter e
Kutner viveram na Alemanha Oriental (1945 – 1959), sob o domínio comunista.
Outro evento que marca o termo foi uma exposição particular de Gerhard
Richter na galeria Renè Block de Berlim, que aconteceu de 18 de novembro de
1964 até 5 de janeiro de 1965, intitulada "Gerhard Richter - Bilder des
Capistalistisches Realismus" (Gerhard Richter - Pinturas do Capitalismo
Realista). Um dos quadros dessa exposição é o seguinte:
Fig. 15. RICHTER, Gerhard. Mädchenkopf (Cabeça de Menina). Coleção
privada. Óleo sobre tela 75 x 100 cm, 1965.
O estilo dessa obra refuta a apropriação indevida que os comunistas
fizeram da teoria marxista, para legitimar suas atrocidades: ―Não foi a teoria de
Marx que criou mudanças, mas os novos fatos formados a partir de suas
interpretações, que fizeram surgir as ideologias. Atuação através de ideologias
cria coisas sem vida e se torna facilmente crime.‖ (RICHTER, 2008, p. 160).
113
Documentando a história nazista, Richter mantém em seu livro Atlas um
compilado de fotos que o artista reconheceu como sumariamente importantes.
Entre elas constam as denunciativas do holocausto:
Fig. 16. RICHTER, Gerhard. Fotos aus Buechern (Fotos de livros), 1967.
3.4 - Arte Popular: foto-realismo & neo-expressionismo
Na opinião de muitos pensadores e críticos, a arte, que desde o
surgimento das técnicas de reprodução supostamente perdera seu status de
transcendental e imanente, proporcionando uma experência estética sem
finalidades ideológicas, não seria mais a mesma, após ter sido amplamente
deformada em sua essência.
Gerhard Richter que enfrenta esse prognóstico, funda uma arte que
abarca a inovação enquanto se baseia em fotografias, sem perder o aspecto
mais peculiar da arte ―elevada‖, cuja qualidade hipostasiada pelos acadêmicos,
exigia a mão do artista em sua exímia execução.
114
Como Arte popular ou de massa (mass midia), fica estabelecido o
padrão de arte conhecido como conceitual e nesse sentido tanto a pop art
americana como o realismo socialista e a nazart constituem os três grandes
pilares dessa forma de representação artística. Adorno, nos alerta para os
perigos desse tipo de representação:
A indústia cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. Falar em cultura foi sempre contrário à cultura. (ADORNO, 1991, p. 123).
Adorno critica os mass midia, que se defendiam dizendo que produziam
uma arte não eletista como forma de refutar a burguesia européia representada
pelo funcionalismo das vanguardas modernistas. Todavia, essa é uma falsa
tese, como alerta o filósofo, pois, os artistas do realismo socialista e da nazart
transformaram o ideário da arte pela arte em estética publicitária, cuja função
essencial era manter vigentes seus sistemas de governo, exclusivamente,
através do controle das massas pela via midiática, logo, muito distante do
argumento que utilizavam.
Por outro lado, os mass midia na versão da pop art americana é uma
estética publicitária, que nasceu do hedonismo ao consumo, com vistas a
atender o mercado das artes do monopólio capitalista norte-americano.
Definitivamente estabelecida no pós segunda grande guerra, a pop art nasceu
nos EUA e na Inglaterra nos anos 50 e alcançou seu ápice nos anos 60 e 70,
influenciando artistas populares europeus e japoneses, que reassumiram o
controverso conceito dadaísta dos readymade de Marcel Duchamp, cujo forte
cunho interventivo e político refutava a arte histórica (clássica).
Assim, os neo-dadaístas, tensionando a seu máximo grau a relação da
obra de arte com público, expõem a crise na efera da arte na passagem do
período moderno para o pós-moderno. Suas propostas políticas procuravam
superar a arte moderna de caráter subjetivo, que se contrapunha a ideologia do
capital. O neo-expressionismo, exatamente na contramão da ideologia dos
neo-dadaístas, busca resgatar a identidade cultural alemã. Ele nasce na
115
Alemanha no final da década de 80, com vistas a resgatar a pintura como meio
de expressão influenciado pelo expressionismo (fim do século XIX), simbolismo
e surrealismo, com suas representações críticas, emocionais e subjetivas, que
se mantinha já a algumas décadas em silêncio. A idéia expressionista de
valorizar o mundo interior do sujeito refutava a objetividade ou a idealização da
realidade objetiva, logo, contrapunha-se às estéticas realistas, típica das
versões realistas de arte de cunho publicitário como: realismo socialista, Nazart
e a pop art americana.
A pop art americana se transformou em sua própria linguagem realista
de arte, cuja versão publicitária disseminava a concepção capitalista de mundo,
que o expressionismo negou enquanto arte vanguardista alemã. Pode-se dizer
que o expressionismo é a versão romântica da ―arte popular alemã‖.
Da interpretação:
Interpretando a arte de Gerhard Richter, por intermédios de seus estilos
cunhados como foto-realista e neo-expressionista, certifica-se que o pintor
enquanto neo-expressionista assume sua personalidade revolucinária e, ao
contrário do que se poderia imaginar, enquanto foto-realista também, haja vista
que na sua versão realista de arte, o ideário do realismo é controvertido por
intermédio de abstrações. Richter, enquanto artista que teve orientação
artística iniciada pela estética realista do socialismo assume toda a identidade
trágica e romântica da cultura alemã.
Segundo nossa pesquisa, a discussão que norteia o tema das artes
mídiáticas pendular entre a inovação e a convenção, é tensionada ao máximo
grau, quando a fotografia passa a agir na esfera artítica enquanto
representante do ―real‖.
Irônica e paradoxalmente a fotografia, que tanto ameaçou o reinado
absoluto da pintura, foi o motivo fundamental do nascimento da arte de Richter,
que além de abarcar o forte caráter testemunhal e documental característico da
fotografia, que imprimi objetivamente imagens da realidade, torna-se inefável
com sua técnica de desfigurar.
116
Seu ―foto-realismo-transcendental‖ mostra como a presença e a
ausência da imagem podem agir simultaneamente no mesmo lócus fundando
um novo estilo de arte realista, cuja singularidade torna a realidade
documentada pela fotografia em simulacro surreal, como repetia o próprio
artista: ―Eu sou um surrealista‖. Isso sem perder o caráter testemunhal e fáctico
característico da fotografia que congela e eterniza um único instante do ser no
tempo.
A exemplo de suas obras foto-realistas contemplemos a seguinte:
Fig. 16. RICHTER, Gerhard. Portraet Ema (Retrato de Ema). Coleção privada.
Óleo sobre tela 105 x 90 cm, 1965.
O pensamento revolucionário de Richter surge na seguinte passagem:
117
Não sigo uma intenção, nem um sistema, nenhum sentido, não tenho programa, nem estilo, nem interesse. Eu não acredito em problemas técnicos, dos temas de trabalho, variações até o ultimo detalhe. Evito me fixar, não sei o que quero – sou inconseqüente, apático, passivo. ―Eu gosto do indefinido, do ilimitado e da interminável incerteza.‖ (RICHTER, 2009, p.83).
Sua estética trágica em algum momento contorna seu estilo abstrato
carregado de cores vibrantes e movimentos impactantes como podemos
evidenciar na seguinte obra preconizada pelo estilo neo-expressionista:
Fig. 18. RICHTER, Gerhard. Meditation. Museu de Belas Artes, Montreal.
Duas partes de 320 x 400 cm, 1986.
Gerhard Richter, entre outros artistas alemães, como Polke, Jorg
Immendorff, Georg Baselitz e Josef Beuys, fica conhecido como o pintor neo-
expressionista alemão mais importante de sua época. Título que lhe foi
118
concedido ao assumir o estilo abstracionista de arte foto-realista, típico dos
artistas alemães rebeldes atuantes na Alemanha ocidental no pós-guerra.
Lembramos que a acronia não contempla apenas seus obras figurativas,
mas contempla também suas obras abstratas:
Fig. 19. RICHTER, Gerhard. Waldstück. Catálogo Raisonnée: 66.
Coleção Böckmann, Novo Museu: Museu Estadual de Arte e Design,
Nuremberg, Alemanha. Óleo sobre tela, 150 x 155 cm, 1965.
Apesar dos múltiplos gêneros pictóricos, absorvidos e desenvolvidos na
arte alemã dos anos 1960, responsáveis pela forte crise na esfera da arte, o
Neo-expressionismo manteve-se em destaque, tendo Gerhard Richter como
seu expoente no fim dos anos 70, quando ele surge junto com outros artistas
alemães, constituindo o grupo conhecido como ―novos selvagens‖ (Neue
Wilden), cujo destaque se dá nos anos 1980.
119
3.5 – Pintura & Fotografia em Gerhard Richter
Além de ter pintado inúmeros quadros no estilo abstrato, o Foto-realismo
nunca deixou de ser a grande força da expressão artística de Richter. Como
pudemos observar seu desfigurativismo acromático, ao assumir a fotografia
como um objeto teórico, pluraliza a clássica linguagem Realista de
representação, subvertendo sua estrutura, de forma a legitimar sua autonomia.
O pintor transgride a típica representação foto-realista de arte através de
desfigurações sem exclui as feições de seus modelos completamente. Suas
obras depois de pintadas e ainda úmidas, recebem pincelados secas em
movimentos horizontais, deformando seu realismo inicial. Tal efeito dá a
impressão de uma foto desfocada, conferindo uma ilusão de se tratar de seres
espectrais, circunscritos no devir de uma realidade incapturável.
A obra a seguir subsidia nossa observação:
120
Fig. 20. RICHTER, Gerhard. Helga Matura. Art Gallery of Ontario,
Toronto, Canadá. Óleo sobre tela, 180 x 110 cm, 1966.
A pintura de Helga Matura foi produzida por Richter em 1966, tendo
como origem de seu tema uma foto de revista, cujo pano de fundo conta a
história trágica da vida da modelo. Assim, Richter, transforma a fotografia de
Helga em pintura, sem deixar qualquer pista de que se tratar de uma foto
midiática. Richter recorta, além do título, a reportagem da imagem, não fazendo
qualquer apologia icônica.
Na reportagem da revista Quick em 1966, de onde Richter retirou essa
imagem, contava a história de Helga de forma depreciativa. Narrava-se que ela
121
era conhecida, desde os nove anos de idade, nas noites de Frankfurt como
Karin e que era conhecida como a segunda Nitribitt (uma famosa prostituta da
época), mas que possuía mais classe, mais beleza, portanto era mais
desejável e pecaminosa. Contudo, o que a reportagem não dizia era que Helga
Matura estava insatisfeita e sonhava mudar de vida, desejava casar-se.
Na seguinte obra, Richter a representa junto ao noivo:
Fig. 21. RICHTER, Gerhard. Helga Matura mit Verlobtem. Museu Kunst
palast, Düsseldorf, Alemanha. Óleo sobre tela, 199,5 x 99 cm, 1966.
Nesse segundo quadro da modelo, Richter, a partir de seu título, não
permite, mais uma vez, qualquer depreciação de sua imagem, tampouco
explora o que veio a ser seu fim. Em 26 de janeiro de 1966, Helga Matura foi
assassinada por um sujeito desconhecido. No aspecto ideológico, Richter em
Notizen de 1984, declara sua busca pela neutralidade como encontramos na
seguinte passagem do livro Text:
122
Eu aceitei pensar e atuar sem ajuda de uma ideologia; eu não tenho nada para me ajudar, nem uma idéia a quem eu sirvo e a partir da qual eu siga e com isso, não recebo ordens do que devo fazer; nem uma regra que define como e nem uma fé que me mostra o sentido, tampouco uma imagem do futuro; uma construção que tenha sentido superior. Eu aceito apenas o que existe, eu aceito com conformidade a falta de sentido de qualquer descrição e realização daquilo que não sabemos. Ideologias seduzem e abusam sempre da ignorância, legitimam a guerra. (RICHTER, 2008, p. 133).
Richter, enquanto artista foto-realista, hesitava entre a aparência banal
da forma e a tragicidade existencial do conteúdo. Ele interessava-se pelo
antagonismo entre a forma da representação da realidade e o fascínio que
poderiam sugerir de suas significações.
É na incerteza da presença da imagem da representada em suas obras,
que vemos o pintor levar ao limite a discussão acerca da arte com a fotografia.
Tema esse, que surge como objeto indicial de superação por parte da crítica da
arte especializada na esfera artística. Para Richter, não significa que seus
quadros devam significar a cópia de uma foto, pois para isso existe a câmera
fotográfica. A respeito disso, esclarece o pintor em entrevista com Doris von
Drathen, em 1992, num trecho captado por Moorhouse:
O quadro pintado é primeiramente mais próximo da aparência (Schein), contudo ele tem mais realidade do que uma foto, porque um quadro em si tem mais caráter de objeto, pois ele é perceptivelmente pintado a mão, é produzida materialmente. A aparência de pintura é, na comparação com a realidade, sempre mais ou menos diferente, e isto irrita. (RICHTER, 2009, p.119).
Essa observação sumária esbarra nas considerações que Benjamin tece
em sua obra História da Fotografia:
Na fotografia, ser criativo significa acabar repassando a moda. ―o mundo é belo‖ – eis aí exatamente a sua divisa. Nela se desmascara a atitude de uma fotografia capaz de montar qualquer lata de conservas no universo, mas não é capaz de captar uma só das situações humanas em que ela aparece [...] já que, no entanto, a verdadeira face dessa criatividade
123
fotográfica é a publicidade e a livre-associação, a sua legítima contrapartida é o desmascaramento e a montagem. (BENJAMIN, 1986, p. 239).
No caso de Richter, a fotografia produzida como pintura artesanal, além
de possibilitar a fundação de uma arte que evita conceder significados a partir
da subjetividade, ela denuncia e eterniza as memórias do passado.
Assim, Richter apóia a crítica que Benjamin tecia a respeito da fotografia
que substitui a pintura. Ambos parecem esclarecer que a imagem que é
produzida pela mão do artista, não pode ser substituída por um aparato técnico
sem mudar de linguagem, e isso se deve ao fato de que objetos estéticos
carregam as marcas dos meios com os quais são produzidos. Nesse âmbito o
meio deixa seus rastros.
Richter concorda com a observação benjaminiana, de que a fotografia
jamais substitui a pintura, pois ela limita a criatividade do artista ao repassar a
moda. Tensionando esse prognóstico a seu máximo grau, o pintor antecipa
essa problemática lembrando que a ―realidade‖, à qual Benjamin se referia,
também era produzida pelo homem. Logo, o fato do homem copiar o homem
através de aparatos técnicos, não era a grande problemática a ser enfrentada
em termos artísticos, mas sim com quais fins ideológicos as copiava.
O pintor, que não hesita em copiar fotografias como fonte de suas obras,
explica o desejo e a dificuldade de manter a objetividade da foto original: ―Eu
quero deixar tudo como é na foto, mas ao mesmo tempo eu sei que também
invento, manipulo mudo e faço.‖ [...] ―O quadro sempre contém uma coisa nova,
querendo ou não.‖ (RICHTER, 2009, p. 69).
Nessa reflexão artística, Richter concorda com Benjamin, quando esse
entende que tudo já está dado na realidade física, todavia, o fato de não ser
necessário buscá-la numa dimensão metafísica, é que parece distanciá-los. O
que Benjamin explicita como pesar, Richter considera como libertação. Isso é
esclarecido nas palavras de Richter nas seguintes passagens: ―não se trata de
inventar mais nada, pode-se esquecer tudo o que significava pintura. Cor,
composição, espaço e tudo o que a gente sabia e pensava não é mais
condição para arte.‖ (RICHTER, 2009, 34). Mais adiante reitera ainda o pintor:
―Você sabe o que foi bom? Perceber que uma coisa simples como copiar um
124
cartão postal pode resultar num quadro. É a liberdade de pintar o que dá
prazer.‖ (Ibidem, p.43).
O foto-realismo de Richter busca criar quadros que pareçam com uma
imagem fotográfica e não imitar a imagem do modelo na fotografia com uma
exímia técnica realista, como era exigência aos retratistas da nobreza
renascentista, tampouco, busca satisfazer o grande público através de uma
reprodução indefinida de imagens publicitárias.
Acerca disso, esclarece Richter em entrevista com Gerhard Schoen em
1972: ―Não se trata de imitar uma foto, eu quero fazer uma foto.‖ (RICHTER,
2009, p. 69). Moorhouse segue interpretando as pinturas de Richter: ―Suas
pinturas almejam ter a aparência de uma foto, impessoal e objetiva, elas
informam sem interpretar ou mostrar significações.‖ (Ibidem, 2009, p. 69).
Criar quadros com atmosfera fotográfica serviu para o pintor como uma
forma de manter a impessoalidade e a objetividade da aparência dos objetos
sem interpretar ou oferecer interpretações únicas da realidade que, não
obstante, considera impossível. Além disso, a arte de significação para Richter
é considerada ―ruim‖ por que fere o primeiro estatuto da ―arte de qualidade‖:
manter a obra aberta a múltiplas interpretações: ―Quadros que são explicáveis
e contém sentido são ruins.‖ (RICHTER, 2009, p.33).
No limite da representação sua técnica de deformar mantém a presença
do ser no mundo. Ao mesmo tempo em que algo se esvai através de
desfigurações que pressupõe a incerteza a certeza da presença do ser se
mantém na marcha do devir.
3.6 - Gerhard Richter (Alemanha), Marcel Duchamp (França/EUA) e Andy
Warhol (EUA) e Konrad Fischer Lueg (Alemanha)
Fazer analogias na esfera da arte ajuda compreender os aspectos que
particularizam o estilo de cada artista, que mesmo ao viverem as influências de
uma mesma época, interpretam a realidade e suas tendências de forma
singular.
Segundo Richter, analogia é a única forma de nos aproximarmos da
realidade. O pintor esclarece, em entrevista com Rolf Gunther Dienst em 1970,
125
como essa ação constitui a base de sua produção artística: ―Eu quero tentar
entender o que existe ―o que é‖. Nós sabemos muito pouco, e eu tento
entender isso criando analogias. Analogia é, portanto, quase toda obra de arte‖
(RICHTER, 2009. p. 55). Logo, para não cairmos na armadilha de traduzir as
obras de Richter pelo critério do nosso gosto observaremos as diferenças entre
pinturas consideradas dentro do mesmo estilo de representação, cujas
inscrições aparecem nos aspectos de suas formas e conteúdos.
. Marcel Duchamp e Gerhard Richter
Marcel Duchamp, francês naturalizado norte-americano, enquanto artista
Vanguardista protestava contra a loucura das guerras no século XX. Richter,
mesmo estilisticamente distinto de Duchamp, recebe suas influências. O
exemplo disso encontramos Richter estudando sua obra ―Nu descendo a
escada‖. Pioneiramente, a pintura foi produzida em 1912 por Duchamp e em
1965 e em 1966 e foi reinterpretada por Richter.
O ―Nu descendo a escada‖ de Duchamp é representado de forma a nos
remeter a idéia de devir, cujo movimento contínuo é amplamente refletido
também pelo foto-realismo desfigurado de Richter. As características
estilísticas que particularizam os estilos de cada artista podem ser
reconhecidas no tratamento que cada pintor dá a representação do mesmo
tema:
126
Fig. 22. DUCHAMP, Marcel. Akt, eine Treppe hinabsteigend Nr. 2 (Nu
descendo a escada) Philadelphia Museum of Art. Óleo sobre tela, 147 x
89,2 cm, 1912.
127
Fig. 23. RICHTER, Gerhard. Frau die Treppe hinabsteigend (Mulher
descendo a escada). The Art Institute of Chicago. Óleo sobre tela, 198 x 128
cm, 1965.
Richter esclarece que ao pintar sua ―Mulher descendo a escada‖ no
estilo foto-realista, cujo tema havia sido representado pelo estilo dinâmico
futurista de Duchamp, ele teve como finalidade mostrar como a arte pode ser
(re) apresentada sem a influência da subjetividade do artista. Richter esclarece
que almejava: ―mostrar como elas (imagens da realidade) realmente são.‖
(RICHTER, 2009, p. 83). Foi a partir desse entendimento, que Richter difundiu
seu estilo capaz de contemplar uma imagem fotográfica desfocada.
A partir desse ponto, Richter volta a explicar como se certificou de que a
subjetividade estaria eternamente presente em qualquer esforço de
representação, o que o levou a se esforçar para minimizar sua ação: ―A forma
como nossa visão permite ver as coisas, limita ao mesmo tempo nossa
128
compreensão da realidade tornando-a parcialmente impossível.‖ (RICHTER,
2009, p. 83).
Fig. 24. RICHTER, Gerhard. Ema, Akt auf einer Treppe (Ema, nu
descendo a escada). Museum Ludwig, Köln, Alemanha. Óleo sobre tela, 200 x
130 cm, 1966.
Segundo a análise de Moorhouse acerca dessa obra: ―Ema irradia
extremamente um ―ser diferente‖: uma aparência que é simultâneamente real e
129
sublime. (MOORHOUSE, 2009, p.120). Em entrevista com Dieter Huelsmanns
em 1966, Richter confirma este paradoxo dizendo:
Eu sou fascinado pelo humano, pelo enfático, pelo real e pelo lógico no acontecimento, que é, ao mesmo tempo, tão irreal, incompreensível e eterno. Eu gostaria de representar ―isso‖ no quadro, de maneira a conservar esse antagonismo. (RICHTER, 2009, p. 46).
Richter, ao seguir irredutível a conceber que um estilo defina uma idéia,
produz a obra Vier Glasscheiben de 1967:
Meu quadro ―Mulher descendo a escada‖ (Akt auf einer Treppe) baseado no quadro de Marcel Duchamps ―Akt, eine Treppe hinabsteigen‖ de 1912, assim como meus ―Glaeser‖, possue exatamente algo contra o posicionamento de Duchamp. E isso pode ser percebido pelo fato de meus trabalhos serem tão simples e conscientemente descomplicados. (RICHTER, 2009, p. 111).
Fig. 25. RICHTER, Gerhard. 4 Glasscheiben (Quatro placas de vidro).
Atualmente a instalação está no Tate Modern, Londres, Inglaterra. Vidro e aço
esmaltado, 190 x 100 cm, 1967.
130
No guia do Museu de Steiermark, a instalação foi descrita da seguinte
maneira:
Neste trabalho, Gerhard Richter tematiza aquilo que até hoje em muitos lugares é uma metáfora comum: uma imagem pintada como uma janela para o mundo. Com o compromisso claro e inequívoco com a tradição da pintura, os quatro vidros retangulares, emoldurados e sem adornos, capturam toda a realidade de seu ambiente real. Em contraste com a superfície opaca de uma pintura, elas são jóias incolores, transparentes e limpas. As placas são emolduradas com armação de metal e lado a lado são penduradas no teto em verticalidade rotativa, inclinando-se para frente e para trás em posições diferentes. Como o próprio artista esclarece: ―deixemo-nos ver tudo, mas não compreender.‖ As vidraças estão vazias e ainda assim, paradoxalmente, elas mostram tudo o que está em seu contexto. A visão é dirigida através das molduras das placas de vidro e certamente, por trás acontece o conteúdo instantâneo da obra. (GUIA DO MUSEU STEIERMARK)
A obra 4 Glasscheiben por analogia ao ―Nu descendo a escada‖ de
Duchamp é escalrecida por Richter da seguinte maneira:
Conheci Duchamp e com certeza ele me influenciou. Talvez fosse uma certa anti-atitude minha ter me irritado um pouco com seu quadro ―Akt, eine Treppe herabsteigend‖. Gostei muito, mas eu não pude aceitar que com isso essa sua maneira de pintar estivesse resolvida enquanto arte. Eu fiz então o contrário e pintei um ―Nu convencional‖ (konventionellen Akt). Mas isso aconteceu, como falei, inconscientemente, não estratégicamente. Como aconteceu também com ―Vier Glasscheiben‖ (quatro placas de vidro). Eu acredito que alguma coisa me incomodou em Duchamp [...] Essa forma secreta, e por causa disso eu produzi esses vidros simples, mostrando o problema do ―Glasscheiben‖ de maneira muito diferente. (RICHTER, 2008, p. 276/277).
Em ambos os casos, o sujeito parece ter sido afetado em sua essência,
fato esse que aproxima novamente os dois artistas. No entanto, o aspecto
realista-fotográfico de Richter mostra, mesmo de forma abstrata, como ele
enfrentou os paradigmas da fotografia agindo na esfera da arte.
No preâmbulo de seu artigo A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica, Walter Benjamin lembra que a arte sempre foi passível de cópia, e
131
nesse ponto, a base fotográfica dos quadros de Richter, no que tange sua
qualidade, fica protegida pelo olhar do filósofo:
A obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução. O que alguns homens fizeram podia ser refeito por outros. Assistiu-se, em todos os tempos, a discípulos copiarem obras de arte, a titulo de exercício, os mestres reproduzirem-nas a fim de garantir a sua difusão e os falsários imitá-las com o fim de extrair proveito material. As técnicas de reprodução são, todavia, um fenômeno novo, de fato, que nasceu e se desenvolveu no curso da história, mediante saltos sucessivos, separados por longos intervalos, mas num ritmo cada vez mais rápido. Os gregos só conheciam dois processos técnicos de reprodução: a fundição e a cunhagem. Os bronzes, as terracotas e as moedas foram as únicas obras de arte que eles puderam reproduzir em série. As demais apenas comportavam um único exemplar e não serviam a nenhuma técnica de reprodução. Com a gravura na madeira, conseguiu-se, pela primeira vez, a reprodução do desenho, muito tempo antes de a imprensa permitir a multiplicação da escrita. Sabe-se das imensas transformações introduzidas na literatura devido a tipografia, pela reprodução técnica da escrita. Qualquer que seja a sua importância excepcional, essa descoberta é somente um aspecto isolado do fenômeno geral que aqui encaramos ao nível da história mundial. A própria Idade Média viria aduzir a madeira, o cobre e a água-forte e, o início do século XIX, a litografia. (BENJAMIN, 1980. p. 5).
Assim, Benjamin nos subsidia na defesa de que a base fotográfica para
produção dos quadros de Richter não destitui sua pintura do status de obra de
arte.
Segundo Clemente Greemberg, a ―arte ruim‖, poderia ser aquela, que
não provoca nenhum juízo estético no ―receptor‖, ou melhor, seria a arte
monótona, incapaz de provocar qualquer afeto no fruidor, ou pior do que isso,
aquela cujo tédio é capaz de fazer a emoção esbarrar na esfera do desagrado,
muito distante de cumprir suas mais importantes ―funções‖: comover e
transformar.
Richter, que almeja aproximar-se da realidade de forma mais objetiva,
assume produzir quadros-fotos de temas trágicos, marcando o aspecto
universal de sua arte. Nesse ponto, o pintor sublinha, mais uma vez, o motivo
que o levou a usar fotografias como fonte de suas obras: reduzir ao máximo o
problema que a subjetividade, mantendo intacta a realidade capturada no
momento da fotografia: ―nossa visão nos permite ver as coisas e, ao mesmo
132
tempo, limita nossa compreensão da realidade e tornando-a parcialmente
impossível‖. (RICHTER, 2009, p. 57).
No limite, compreende-se que a proposta conceitual tanto de Richter,
quanto a de Duchamp, era a de propôr a libertação dos ditâmes morais-
racionalistas enquanto automatismo psíquico. A arte vanguardista de
Duchamp, cujo estilo remete a idéia de caos e absurdo, negava a cultura de
guerra, cuja força de expressão continuou afetando a reflexão de artistas da
atualidade, como é o caso de Richter.
A arte do período moderno, cujo espírito iluminista pautava-se na
concepção do tempo universal, contínuo e progressista, começa a ver sua aura
diluir-se já no vanguardismo de Duchamp, mas é tensionada ao seu máximo
grau com o expressionismo abstrato e sucumbe completamente na pós-
modernidade, quando a arte assume definitivamente a técnica.
. Andy Warhol e Gerhard Richter:
Reservando a particularidade de suas artes, no que tange seu aspecto
ideológico, tanto Richter quanto Andy Warhol, enquanto pintores vanguardistas
ou pop-artistas rompem com toda a ordem do antigo regime (Ancien Regime).
A arte de Warhol é a própria propaganda ideológica do hedonismo
capitalista, esboçando o espírito de um tempo que transforma a arte em cultura
de massa através da "reciclagem estética do lixo", ao passo que a arte de
Richter, surge impregnada de formas e conteúdos existencialistas, de cunho
nada publicitário. Na obra História da Feiúra de Umberto Eco, encontramos
Warhol em 1975 se declarando como esteta do refugo:
Sempre gostei de trabalhar com refugos. Coisas que são descartadas, que não são boas e todos sabem disso: sempre pensei que possuem um grande potencial de diversão. É um trabalho de reciclagem. Sempre pensei que há mais humor nos refugos. (WARHOL, 2007, p. 388)
133
Os aspectos que distinguem as artes de Richter e Warhol são evidentes
na própria própria base material de suas obras. Nas palavras de Richter:
Andy Warhol é menos um artista do que um sintoma para uma situação cultural. A partir dele se criou, usando essa imagem como substituto para um artista. Seu merecimento está no fato de que ele não fez arte, então todos os métodos e assuntos, os quais outros artistas se obrigaram tradicionalmente a fazer, não o tocava. Com isso, Warhol evitou que víssemos absurdos artísticos, os quais observamos em quadros de outros artistas. (RICHTER, 2008, p. 222).
Usar referências fotográficas de jornais e revistas permitiu a Richter
libertar-se da pressão que a arte exerce sobre o artista, exigindo dele um
posicionamento ideológico através da escolha de seus temas.
Todavia, Richter, enquanto artista vanguardista, mantém-se distante dos
temas sensacionalistas e glamorosos de Warhol, cuja extravagância é proposta
com vistas ao consumo de massa.
O próprio distanciamento de Richter, tanto de vanguardistas quanto de
tradicionalistas, mostra sua posição ideológica. Refutar materializar um
posicionamento ideológico através da arte é a própria marca de sua ideologia.
Richter, que tenta estilísticamente de todas as maneiras fundar uma
arte-fotográfica de vanguarda, com vistas a manter um distanciamento da
convenicionalidade da arte subjetiva, se vê mergulhado numa atmosfera
existencial tão profunda quando trata de seus temas, que expõe aspectos
românticos de sua personalidade. Isso pode ser evidenciado confrontando a
representação da Brigitte Bardot na versão de Warhol e de Richter a seguir:
134
Fig. 26. ANDY, Warhol. Brigitte Bardot. Christie´s London FEB. 8,
2007. Sobreposição pintura polímero sintético e tintas de serigrafia sobre tela,
47,1 / 4 x 47.1/4in, 120 x 120 cm, 1974.
Fig. 27. RICHTER, Gerhard. Mutter und Tochter (B) (Mãe e Filha). Ludwig
Gallerie Schloss Oberhausen, região de Düsseldorf, Alemanha. Óleo sobre tela,
180 x 110 cm, 1965.
135
Traços da tradição e da inovação que rendeu o título de artista ―formal‖ à
Richter são antagonicamente tensionados e percebidos por intermédio de seu
estilo. Moorhouse ao analisar tal obra esclarece a respeito disso:
―Mutter und Tochter‖, faz parte de um grupo de quadros que a incrementação, numa tal esfera, não é clara. É um quadro tirado da realidade, cuja tradução através da tinta (cor) vem da luz brilhante da obscuridade. A moça pintada é Bridget Bardot achegando em sua tão forte mãe, cuja semelhança é bem clara. O quadro representa uma aparência, amplia pistas de significação e fica não translúcido. Ele presenta a incorporação de algo percebido, compreendido e ao mesmo tempo rejeitado. (MOORHOUSE, 2009, p. 88)
Mesmo utilizando uma mistura de meios para a produção de seus
quadros, como o fizeram inovando Duchamp e Warhol, Richter parece preferir
conservar-se fiel ao que particulariza seu estilo como ―foto-realista-
transcendental‖, desalinhando-se, por assim dizer, das artes populares que
pretenderam disponibilizar na experiência estética, qualquer objeto do
cotidiano. Esse que foi o grito dadaísta da estética do tudo de Duchamp é
citado por Greenberg na seguinte passagem:
Duchamp e o Dadá queriam expor objetos ou entidades desprovidas de qualquer interesse artístico. Duchamp não quis dizer que ele queria que se visse o porta-garrafas como uma peça de escultura. Sua intenção, e o estardalhaço de tudo aquilo, era um vazio cultural. Mas, a medida que essas entidades ou objetos persistiam, o gosto penetrava ali de alguma maneira. Duchamp não se safou esteticamente. Aquilo foi um acontecimento histórico, uma demonstração única. Ele não disse: posso chamar qualquer coisa de arte formalizada. Não foi essa a sua formulação. O que ele disse foi: qualquer coisa que eu queria apresentar como arte é arte. E ele estava certo. Se alguém tivesse feito isso cinqüenta anos antes, estaria certo. Mas ninguém o fez antes de Duchamp. De modo que, agora, eu posso escolher qualquer parte dessa sala e contemplá-la artísticamente, como aquela viga lá em cima, e posso fazê-lo inadvertidamente. (GREENBERG, 2002, p 242).
Clement Greemberg nos alerta para um aspecto muito importante sobre
as artes dadaísta e informal convencionadas como ―avançadas‖. Em sua
opinião sua maior contribuição foi desconstruir a idéia de convencionar as artes
em ―superior‖ e ―inferior‖. Conforme Greemberg, a arte de vanguarda pode ser
136
entendida como aquela que progride e que nos atenta para uma experiência
estética consciente, e como tal, é comprovadamente refutável, logo precisa ser
avaliada de forma muito distinta, independente da generalização do termo.
Richter, que assume ter sido profundamente influenciado pelo
vanguardismo da pop art americana desde 1961, esclarece os motivos de suas
diferenças:
Por um curto período de tempo, eu me sentia como um artista da Pop-art. Mas mais importante era que a Pop-art e a Fluxus me tocaram decisivamente, como também antes o Tachismo. Entretanto, o Neo-realismo e a Zero não eram nada importantes pra mim. (RICHTER, 2008, p. 280).
Em outra entrevista cedida a Robert Storr em 2002, Richter melhora
esse esclarecimento dizendo que juntamente com seus amigos artistas
alemães Polke e Lueg ele almejava representar uma experiência mais ampla e
complexa da realidade do que simplesmente o caráter apelativo da fotografia
como realizava a pop art americana. Richter assume que independente da
ideologia disseminadora da cultura comercial, a pop art americana possuía
uma aura tão otimista que a arte alemã, mesmo a expressionista, nunca
conseguiu superar. Richter segue esclarecendo que, embora ambas as artes
sejam vanguardistas, no sentido de usarem fotografias, sua arte enquanto
alemã, não tinha a menor chance de concorrer com a força publicitária típica da
pop art americana, mesmo considerando-a limitada. Acerca disso encontramos
em suas próprias palavras:
Talvez nós nem tivéssemos a chance de concorrer. A afirmação da Pop-art americana era tão potente, tão otimista, mas também limitada, que nós pudemos pensar, que só se pode superar isso ao colocar outro objetivo. Nós não pudemos produzir o mesmo otimismo e a mesma maneira de humor e ironia da Pop-art. Roy Lichtenstein tem uma maneira especial de humor. Em Polke e em mim tudo era mais quebrado (trágico, difícil). Isso é para mim muito difícil de explicar. (RICHTER, 2008, p.422)
137
Distinguindo a pop art americana e a arte popular alemã, Richter,
responde os questionamentos do crítico de arte Robert Storr dizendo que sua
expressão artística e a de Polk, enquanto artistas populares alemães pareciam
ser mais ―quebradas‖ (gebrochener) do que a arte popular na versão americana
como a de Warhol. Isso acontecia até mesmo numa versão mais alemã da arte
popular, como é a de Roy Lichtenstein.
Para Richter, a experiência histórica que o artista chamou de ―quebra‖
estava conectada a uma experiência pessoal de vida: ―As duas experiências (a
pessoal e a histórica) são conectados, ou não? Eu não sei porque! Mas se não
fosse assim, teríamos sido também importantes. Alguns participaram de
verdade, eles imitaram os americanos: tão otimistas, imensos, coloridos,
fortes.‖ (RICHTER, 2008, p. 422).
Embora Richter se distancie da pop art de Warhol, ela foi para ele motivo
de grande apreço. Segundo Richter, suas diferenças abismais são marcadas
pela distinção ideológico-política que constitui suas culturas, o que não impediu
a admiração de Richter por Warhol. Como Richter mesmo proferiu:
Eu sempre gostei muito dele. Mas tem uma diferença enorme: isto é, ele tinha liberdade – aqui nós somos todos cheios de complexos. E isso ele não era. Mas também, o fascínio [die Allueres] de sua história da vida no que tange o tema da homossexualidade, tinha menos importância aqui. Polke se permitia algumas liberdades, mas isto também era totalmente diferente do que as de Warhol. Precisa-se de um palco especial, onde se pode encenar assim. Isso não existia para nós. (RICHTER, 2008, p.422).
As obras de Warhol e de Richter abaixo evidenciam como, em alguns
momentos, a vontade particular consegue reduzir ao mínimo, a marca da
identidade cultural:
138
Fig. 28. WARHOL, Andy. Men in Her Life (Homens em sua vida).
Coleção privada de um consultor de arte francesa. Serigrafia e lápis sobre tela
preparada, 214,6 x 211,5 cm, 1962.
Fig. 29. RICHTER, Gerhard. Portrait Schmela (Retrato Schmela).
Coleção privada. Óleo sobre tela, 100 x 130 cm, 1964.
139
Como se percebe, embora ambos assumam a ―desauratização da obra
de arte‖ ao representarem imagens serialmente, Richter e Warhol se
distinguem na forma de produzí-las. Warhol o faz de forma mecânica e Richter
as pinta à maneira clássica, uma a uma artesanalmente.
Richter em entrevista com Storr emite um juízo de valor acerca da
morbidade dos quadros de Warhol, que, em algum momento, os levam a
convergir. Isso acontece mesmo quando Richter tece sua crítica ao artista
americano, como constatamos na seguinte passagem: ―Eu prefiro a arte
trágica, e isto também vale para os quadros-desastres de Warhol, os quais
prefiro. Exceto eles, eu acho a maioria de seus quadros, por exemplo, a
produção enorme em retratos encomendados, bastante ruins.‖ (Richter, 2008,
p.422).
Apesar de suas profundas diferenças, Richter é agradecido pelo fato da
arte de Warhol tê-lo ensinado a eliminar informações da imagem da realidade
captadas pela fotografia.
Richter confessa que aprendeu com Warhol que só é possível fazer arte
quando se eliminam elementos da fotografia original, caso contrário isso
configuraria produzir uma arte que se dispõe a dar significações, como fôra a
proposta dos hiper-realistas que, não obstante, Richter refuta:
Eu penso que concentrar-se nisso essencialmente (wesentlich) é no fundo o trabalho de todos os pintores em todos os tempos. Isso, os Hiper-realistas não fizeram, eles copiaram realmente tudo, cada detalhe. Por causa disso eles não surpreendiam. Para mim, era evidente (selbstverstaendlich) deixar detalhes de fora. Neste aspecto tenho que agradecer muito a Warhol, ele legitimou a técnica mecânica. Ele demonstrou isso através da impressão tipo trama e foto e foi então que eu desenvolvi os borrados (difuso) nas minhas pinturas. Eles pressupõe desfocados produzidos mecanicamente. Esse foi um método muito libertador. (RICHTER, 2008, p.422).
Richter, ainda esclarecendo como a arte enquanto forma e conteúdo,
aparece inexoravelmente através da cultura do pintor, reforça mais uma vez
seu pensamento em entrevista cedida à Jan Thorn Prikker em 2004. Para ele,
independente da ideologia, a pop art americana teve uma força muito mais
revolucionária do que a alemã, que na sua versão mais controversa foi
representada pela arte expressionismo. Isso Richter compreendeu, ao ter
140
absorvido além de traços do estilo da própria pop art, elementos da informal e
da Fluxus. Richter em 1961 em Duesseldorf cita:
Pop-art através da inspiração ao mundo exterior e a Fluxus através da sua atitude sem respeito (ideologicamente dizendo). Os Pop-artistas deram as respostas imponentes aos artistas abstratos: ―Nós fazemos uma coisa nova, uma coisa que é totalmente proibida, onde seus critérios não chegam.‖ (Ibidem, 2008, p. 488).
Nesse ponto fica claro que a tendência tragi-romântica do estilo de
Richter se deve a sua identidade cultural, o que por si só, o leva a carregar um
teor mais existencialista e dramático em sua arte.
* Konrad Fischer Lueg e Gerhard Richter
Robert Storr nos alerta para as diferenças que distinguem mesmo os
artistas alemães considerados dentro do mesmo estilo popular de arte como
Richter e Lueg. A arte popular alemã de Lueg se aproxima mais da pop art
americana, do que a de Richter.
Isso é evidente na representação do modelo Helmut Klinger, no estilo de
Konrad Fischer Lueg e de Gerhard Richter, respectivamente, a seguir:
141
Fig. 30. LUEG, Konrad Fischer. Bildnis Helmut Klinker. Museu de Arte:
Fortuna da coleção de Helmut Klinger, 1965.
Fig. 31. RICHTER, Gerhard. Bildnis Helmut Klinker. Museum Bochum. Óleo
sobre tela, 100 x 80 cm, 1965.
142
Constatamos que, o que permanece comunicado singularizando o estilo
de cada uma das obras é sempre o aspecto ideológico. O estilo anti-ideológico
de Richter continua a representar a vida existencialmente mantendo-o
irredutível às artes apologéticas.
* Da análise:
O teor existencialista-romântico que aparece nas obras de Richter se
considerado através da recepção da obra de arte nos dias de hoje, poderia
configurar a marca mais negativa de suas obras. Isso, segundo alguns
comunicólogos, seria possível conjecturar pelo fato do ser na ―pós-
modernidade‖, estar sofrendo a compressão do tempo-espaço do mundo
tecnológico avançado. Entendemos a relevância disso, ao considerar o sujeito
em seu modus vivendi e operandi no limiar da exaustão dos bens de consumo,
com o virtual substituindo e impedindo a vivência do ―real‖. A pergunta que
surge é: Estaria o homem nos dias de hoje em condições de apreciar uma arte
tão trágica como a de Richter?
Assim, o fetiche que o belo em forma de glamour propõe através da
publicidade nas sociedades capitalistas avançadas, substituiu a dor e o prazer
inerentes a existência humana, logo, as obras de Richter que apelam a
alteridade e a compaixão frente ao estado doloroso do outro, estariam fadadas
ao fracasso.
Quem não acessaria sua humanidade enquanto contemplador de
algumas de suas obras, mesmo sem conhecer a história de vida de seus
modelos?
Como evidenciamos, as características intrínsicas das obras de Richter
fazem fulgurar no presente, o mundo antigo transfigurado pelas tragédias e
utopias, contemplando o humano com um clamor e profundidade tão
existenciais, que nenhuma possibilidade de libertação e apatia nos é permitida
na experiência estética.
143
3.6.1 - O Sublime segundo Gehard Richter
Os aspectos abstratos inerentes ao estilo foto-realista e neo-
expressionista das obras de Richter, transformam sua arte em auto-realidade
através de uma impetuosidade gestual que previlegia o sentimento em
detrimento da razão e da moral.
A julgar pela acromia, a desfiguração e os temas trágicos de suas obras
foto-realistas e pelas grandes dimensões de suas telas neo-expressionistas,
infere-se que sua arte, por analogia ao espírito romântico alemão, carrega
traços do movimento do Sublime, cujo ideário refutava os postulados do
racionalismo Iluminista relativo às autoridades absolutistas do antigo regime
alemão e da monarquia do mundo burguês, vigentes desde o século XVI até o
XVIII.
Richter, por sua vez, rebela-se contra o ideário racionalista das estéticas
de totalitaristas, que já na época do romantismo (fim do século XVIII), dava os
primeiros indícios do que viria a ser a estética de guerra na modernidade. O
drama que a ―racionalidade negativa‖ precipitou na Alemanha do século XX são
trazidos à tona pela arte de Richter como feridas pouco cicatrizadas. Isso
parece reafirmar que os lastros de grandes eventos mantem sua duração no
tempo histórico, na medida de sua força de impacto, em última análise,
determinam o curso da história.
É na inter-relação da forma com o conteúdo, de maneira análoga ao
terror, que Richter, assim como o conceito de Sublime, transcende o belo. A
desolação de sua estética contrasta com a potência desvastadora e grandiosa
da natureza, refletindo a vida enquanto considera ―grotesco‖ e a ―crueldade‖
constituindo igualmente o plano da existência, ao lado da ―beleza‖ e da
―bondade‖.
A estética de Richter parece ultrapassar o exótico e esbarrar no
grotesco, já no limiar da degeneração. Assim, aspectos do grotesco do
movimento do Sublime ecoam em suas obras, na medida em que a
representação do sofrimento humano volta a ser concebido representando
escatologicamente a vida em sua dimensão ―real‖. Assim, sua arte, ao
144
rememorar o espírito de um tempo em que a violência e o assombro
compunham o cenário da realidade, impõe-se frente à crítica que associa o
grotesco ao ―mau gosto‖ e o belo ao ―bom gosto‖ e enfrenta os veredictos de
juízos de valor estéticos, que sempre se pautaram em concepções morais.
Observando as marcas da tragédia nas obras de Richter, segundo
Umberto Eco pautado nas palavras do romântico Friedrich von Schiller (1759-
1805) infere-se que, o Sublime em suas obras: ―É um fenômeno generalizado
em nossa natureza que aquilo que é triste, terrível e até mesmo horrendo atrai
com irresistível fascínio; que cenas de dor e terror nos repugnem com igual
força, nos atraiam. (SCHILLER apud Eco, 2004 p.289)
Em outro momento, Umberto Eco apoiado na observação de Burke
salienta:
Burke afirma não ser capaz de explicar as causas do efeito do Sublime e do Belo, mas a pergunta que se coloca é: como pode o terror ser deleitável? E sua resposta é: quando não ameaça muito de perto. Mas entendemos para esta afirmação. Ela implica um distanciamento da coisa que faz medo, donde uma espécie de desinteresse em relação a ela. Dor e terror são causas do Sublime se não são realmente nocivos. Este interesse é o mesmo que, no decorrer dos séculos, apareceu ligado à idéia do Belo. O Belo é aquilo que produz um prazer que não induz necessariamente à posse ou ao consumoda coisa que a apraz. Assim também, o horror ligado ao Sublime é horror que não se pode possuir e não nos pode fazer mal. (BURKE apud ECO, 2004, p. 291)
Assim, subsidiando-nos nas observações de Eco, interpretamos o
aspecto dramático e perigoso nas obras de Richter, como uma força que
exerce um efeito catártico, sublimador até mesmo libertador, mas que,
sobretudo, permanece sempre disponível ao sentimento.
As seguintes obras de Richter repectivamente no estilo neo-
expressionista e foto-realista buscam subsidiar a natureza de nossa análise:
145
Fig. 32. RICHTER, Gerhard. Claudius [603]. Coleção Landsbank,
Baden-Württenberg, Alemanha. Óleo sobre tela, 311 x 406 cm, 1986.
(RICHTER, 2008, p. 47).
Sua arte, que em nada se retém entende que o impulso lúdico seja
sinônimo de liberdade, assim privilegia a emoção em detrimento da razão
provocando um processo de retorno do sujeito para dentro de si. Para Richter,
posto que a arte é irreal deve conceder prazer incondicional.
146
Fig. 33. RICHTER, Gerhard. Frau mit Schirm (Mulher com guarda-
chuva). Daros Collection, Zürich, Suíça-alemã. Óleo sobre tela, 160 x 95, 1964.
A representada no quadro é Jackie Kennedy chorando instantes após a
morte de seu marido John F. Kenedy, cuja história e identidade mantém-se
igualmente ocultas através do título. Acerca disso Richter esclarece:
Escolhi com intenção um título anônimo e neutro porque as pessoas não deveriam olhar e reconhecer imediatamente Jacky Kennedy. Eu quis evitar isso, impreterívelmente. Um título como Frau mit Schirm [Mulher com guarda chuva] não revela nada e não conta qualquer história. (RICHTER, 2008, p. 269).
147
A forte natureza reflexiva dessa obra enfrenta antigas profecias, partindo
na defesa de que a obra de arte existe ainda nos dias de hoje. Assim, sua arte,
enquanto se disponibiliza a fruição exige uma grande amplitude de olhar e
disposição reflexiva. Acerca disso nos apóia Hegel:
Além da fruição imediata, as obras de arte suscitam em nós o juízo, na medida em que submetemos à nossa consideração o pensante, o conteúdo e o meio de exposição da obra de arte, bem como a adequação e inadequação de ambos. A ciência da arte é, pois, em nossa época muito mais necessária do que em épocas na qual a arte por isso, enquanto arte proporcionava plena satisfação. A arte nos convida a contemplá-la por meio do pensamento e, na verdade, não para que possa retomar seu antigo lugar, mas para que seja conhecido científicamente o que é arte. (HEGEL, 2000, p. 35).
A citação hegeliana defende Richter naquilo que conserva o caráter
reflexivo de sua arte.
3.7 - Memórias da Segunda Guerra Mundial pelo ―foto-realismo-transcendental‖
de Gerhard Richter - Retrato: A ética como pano de fundo da estética
O branco tem a harmonia do silêncio [...]. Não é um silêncio da morte, mas das possibilidades da vida. O branco chama a atenção para o nada anterior à vida, do mundo da era do gelo. O negro é algo queimado, como as cinzas da pira de um funeral, algo sem movimento, como um cadáver. O silêncio do negro é o silêncio da morte. Aparentemente o negro é a cor com a menor harmonia de todas, um tipo de fundo neutro contra o qual a mais significante sombra de outra cor, fica claramente evidenciada. Difere do branco, com o qual quase todas as cores estão em harmonia, ou se anulam juntas.
Wassily Kandinsky
A acromia e os desfigurados no estilo de Richter suscitam inúmeras
reflexões que nos lançam para além do que é visível na aparência do modelo
impressa na superfície do ―real‖, todavia, permanece o fato de se tratar de uma
imagem de uma impressionante e surpreendente intimidade. As fotos das
memórias de guerra de Richter, enquanto temas de seus quadros, depois de
148
desvelados, não nos deixam iludir pelo seu desejo de impessoalidade e
distanciamento provocados pelas desfigurações e monocronia que marcam seu
estilo foto-realista abstrato.
No entanto, a busca do pintor em manter-se hermeticamente fechado
em si mesmo, num mundo secreto e intangível nos deixa ainda mais curiosos.
A respeito disso, encontramos Richter declarando:
Eu desfiguro (Verwische) para fazer tudo parecer igualmente importante e igualmente sem importância. Eu desfiguro para não parecer uma produção artísticamente artesanal, mas técnica, lisa e perfeita. Eu borro, para que todas as partes engrenem-se. Eu apago talvez o que tem a mais, de informações não importantes. (RICHTER, 2009 p. 33).
Essa declaração é referente ao ano 1965, no entanto, em entrevista com
Sabine Schuetz em 1990, o pintor confessa os verdadeiros motivos para essa
antiga tentativa de distanciamento:
Eu refutei as sentenças vazias da opinião pública sobre minha falta de estilo e a opinião particular de alguns, cujas palavras vazias eram parcialmente polêmicas, contra todas as tendências do tempo (da moda), mesmo quando eram afirmações de defesa. Pois, em algum momento e de uma certa maneira, eu gostei dos motivos da originalidade dos modelos, cujas famílias eu frequentemente conheci. E se eu não as tivesse conhecido, elas teriam, pelo menos, semelhanças com as famílias e os destinos que eu conheci. (RICHTER apud Schuetz, 1990, p. 258).
Os temas de guerra na iconografia acromática de Richter mostram como
sua pintura trata da reprodução de uma fotografia testemunhal. Além de seus
quadros-foto preto e branco nos remeterem ao passado, pintar retratos assim
substitui a aura dos retratos de outrora. Acerca disso esclarece Walter
Benjamin:
Com a fotografia, o valor de exibição começa a empurrar o valor de culto - em todos os sentidos - para segundo plano. Este último, todavia, não cede sem resistência - sua trincheira final é o rosto humano. Não se trata, de forma alguma, de um acaso se o retrato desempenhou papel central nos primeiros tempos da fotografia. Dentro do culto da recordação dedicada
149
aos seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto da imagem encontra o seu último refúgio. Na expressão fugitiva de um rosto de homem, as fotos antigas, por última vez, substituem a aura. É o que lhes confere essa beleza melancólica, incomparável com qualquer outra. Mas, desde que o homem está ausente da fotografia, o valor de exibição sobrepõe-se decididamente ao valor de culto. (BENJAMIN, 1936, p. 13).
A citação benjaminiana interpreta o foto-realismo do gênero retrato de
Richter, como a marca de seu romantismo-trágico. É nítido que Richter
privilegia em sua arte o aspecto mais violento de nossa humanidade em
detrimento a simples contemplação do belo transacionando entre a
―apresentação do real‖ e a ―representação do ideal‖.
As palavras benjaminianas a seguir fazem outras possíveis
interpretações às obras de Richter: ―Na expressão fugitiva de um rosto de
homem, as fotos antigas, por última vez, substituem a aura‖. É o que lhes
confere essa beleza melancólica, incomparável com qualquer outra.‖
(BENJAMIN, 1988, p.13).
Fig. 34. RICHTER, Gerhard. Jungendbildnis (Retrato da juventude). The
Museum of Modern Art, New York. Óleo sobre tela 72,4 x 62 cm, 1988.
150
Apesar da variedade impressionante de temas considerados por Richter,
suas obras apontam quase sempre para uma única direção estilística e
temática. De 1962 até 1966, no séquito de suas obras constavam aquelas que
o pintor produziu acromaticamente com base em imagens fotográficas.
Richter, que evitava possuir apenas um estilo, sempre buscou manter a
impessoalidade e a inconseqüência na marcha do devir, contudo, se revela
surpreendentemente possuidor de uma particular uniformidade estilística.
Desde 1966, ele utilizou suas próprias fotos de família, como fonte de seus
quadros. Este passo teve como conseqüência uma segunda inovação, a
mudança do branco e preto para colorido. O que parece não ter alterado a
essência de seu estilo, cuja beleza e drama continuaram a exigir compaixão e
esforço intelectual do contemplador.
Um exemplo disso é o retrato de sua filha Ella Maria abaixo:
Fig. 35. RICHTER, Gerhard. Ella. Coleção privada. Óleo sobre
tela, 40 x 31 cm, 2007.
151
Seus temas mantêm-se fiel ao gênero retrato, porém, esse que nasceu
com vistas a eternizar a imagem de representantes aristocráticos tem sua
essência controvertida por Richter através de seu efeito de desfigurar.
Sumariamente, no que tange a singularidade de seus retratos, a rebeldia
estilístico-ideológica de Richter, parece inaugurar uma nova forma de
representação de arte retratista, que norteando o tema da abstração,
contempla o caráter autônomo da arte emancipando sua liberdade de criação.
Para muitos estetas tradicionalistas, copiar modelos de fotografias
descaracteriza o gênero da arte de retrato. Os retratos que Richter criou desde
1960 refletem um refinado sentimento dessa situação ficando no limiar entre o
conhecido (Vertrautheit), o oculto (Versteckt) e a alteridade (Andersheit).
Paradoxalmente seus quadros-retratos têm o caráter de explorar um mundo de
aparências enquanto convidam a inúmeras interpretações.
Em entrevista cedida à Dieter Huelsmanns encontramos Richter
refletindo sobre esse aspecto:
Eu acho que um pintor não precisa ver ou conhecer o modelo, e nada do ―ser‖, do caráter ou da ―alma‖ do modelo precisam ser expressos. Um pintor não deve ver um modelo de uma maneira pessoal, por que um retrato não pode ser mais parecido com o modelo do que apenas muito semelhante. Por causa disso, é muito melhor pintar um retrato a partir de uma fotografia, haja vista não ser efetivamente possível pintar um ser humano em seu em si mesmo – ao contrário é sempre só um quadro, que não tem nada em comum com o modelo. A mera e suposta semelhança dos meus quadros com os modelos não é intencional, essa semelhança é a priori inútil. (RICHTER, 2009, p. 45).
Quando Richter concentrou-se nos retratos de pessoas conhecidas,
família, amigos e colegas do mundo da arte, ele rompeu um pouco mais com a
impessoalidade, característica comum em suas antigas obras. Entre os
modelos anônimos, encontram-se alguns identificáveis, contudo, apenas
aqueles sem implicações políticas e ideológicas.
152
Capítulo 4 – Gerhard Richter à luz das teorias da Comunicação: Um diálogo
entre os valores da modernidade e da pós- modernidade
Observando as obras de Richter por intermédio do diálogo entre os dois
momentos, percebemos que o fato de seus temas narrarem a História de um
sujeito simbolizando uma cultura em um tempo e lócus histórico específico, faz-
se relevância aos valores relativos, à racionalidade, à memória e à alteridade,
características consideradas, por muitos pensadores, relativas ao período
Moderno.
Contudo, por outro lado, o aspecto difuso diluindo a nítida identidade do
sujeito tratado em seu estilo, promove uma ruptura com o tempo/espaço
histórico e epistemológico, caracterizando a falta de referência necessária para
construção da identidade do sujeito, características consideradas, também por
parte de alguns pensadores como Nilson Thomé, típicas do período pós-
moderno. O autor, em seu artigo, disponibilido em PDF Considerações sobre a
Modernidade, Pós-Modernidade nos Fundamentos Históricos da Educação
cita: ―Sejam bem-vindos ao pós-modernismo: ao mundo do espetáculo da
mídia, do sumiço da realidade, do fim da história, da morte do marxismo e de
um grande número de outras alegações deste milênio.‖
Assim, entendemos que a forma paradoxal como é tratada a identidade
do sujeito nas obras de Richter ressalta pontos de contato entre os valores da
modernidade e da pós-modernidade permitindo que elas sejam interpretadas
pelos teóricos da comunicação da atualidade que, não obstante, se apóiam nas
teorias filosóficas modernas.
A exemplo disso temos a reflexão de Ciro Marcondes, ora evocando
Henri Bergson, ora o pensamento de Bertolt Brecht e ora de Martin Heidegger;
de Stuart Hall apoiado em Sigmund Freud e Jacques Lacan e de Umberto Eco
também apoiado em Lacan, confronta-o a Claude Lévi-Strauss. Reservando a
particularidade de seus pensamentos, a falta de identidade símbolo do sujeito
pós-moderno, é interpretada a partir das obras de Richter, unanimamente,
como incompleta:
153
Fig. 35. RICHTER, Gerhard. Matrosen (Marinheiros). Neues Museum
Weserburg, Bremen, Alemanha. Óleo sobre tela, 150 x 200 cm, 1966.
Redefinindo o compreendido pelos retratos do realismo clássico, os
retratos de Richter concebem a realidade fixa no instante de sua captura pela
fotografia, mas, ao mesmo tempo, o aspecto difuso passa a idéia de
movimento constante, cuja fluidez impossibilita a formação da identidade do
sujeito. Acerca disso, Richter esclarece na obra de Moorhouse o seguinte: ―Eu
desfiguro para fazer tudo parecer igualmente importante e não importante.‖
(RICHTER, 1964, p. 37). Moorhouse, por sua vez, interpreta o efeito difuso da
seguinte maneira: ―Em retratos de grupos como este, apesar das convenções
desse tipo de representação, é retirado dos modelos representados: a
individualidade e a significação que a relação entre as pessoas poderia
sugerir.‖ (RICHTER, 2002, p. 52).
O pintor, através das linhas que fogem como que escorrendo
horizontalmente, materializa o movimento incapturável do tempo, o efêmero, de
onde escapa toda nossa realidade. Percepção essa que compartilha Ciro
154
Marcondes Filho ao contemplar a ―razão durante‖ de Henry Bergson citada na
obra de Gustavo Said:
O pensamento e o movente, um movimento único que havia de início dois movimentos de ida e volta. Ora diz Bergson – na mesma direção de nossa proposição da razão durante – para avançar com a realidade movente, é nela que devemos nos posicionar: ―instale-se na mudança que você irá compreender de uma vez a própria mudança e os estados sucessivos nos quais ela poderia em qualquer momento imobilizar-se. (EC, p. 307). Ao contrário com os estados sucessivos, apreendidos de fora como ―imobilidades reais‖ e não mais virtuais, complementa Bergson, você jamais irá reconstituir o movimento. O que é válido para a linha percorrida não é válido para o movimento. (BERGSON; MARCONDES F.; SAID; 2008, p. 62/63).
Seguindo a reflexão, norteando a face do desfigurada do sujeito pós-
moderno tratada nas obras de Richter, o conceito de esvaziamento e de
diluição, também é encontrado nos estudos de Stuart Hall, cujo enfoque
principal pauta-se no desenvolvimento da cultura, sobretudo no impacto dos
meios de comunicação de massa sobre a formação das identidades culturais.
Hall, analisando as pesquisas desenvolvidas pelo psicanalista Sigmund Freud
e Jacques-Marie Émile Lacan, sobre a estrutura mental do sujeito, comenta
que ―a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro
de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ―preenchida‖ à
partir de nosso exterior.‖ (Hall, 2006, p. 39).
Assim, diríamos que as obras de Richter nos afetam por intermédio de
seu efeito de difusão, de desfiguração, contemplando a ideia de esvaziamento
lacania concebida por Hall, cujo fenômeno de esvaziamento configura a falta
inteireza de nossa própria identidade.
Essa pode ser a forma que o artista usa para simbolizar a fragilidade do
sujeito pós-moderno como representante do outro na formação dessa
identidade, no limite, pode figurar a falta de estrutura que vemos na imagem do
outro como constructo de nossa própria identidade.
Transcendendo a ideia estática e óbvia de uma simples fotografia, o
estilo de Richter retira do trivial, do momento da captura da imagem pela
máquina fotográfica, elementos para a construção de uma arte que transforma
155
uma fotografia em uma pintura, que alude a uma imagem fotográfica
desfocada, e não o seu inverso, abrindo possibilidades de interpretações que
vão para muito além da pose ou do ângulo escolhido pelo fotógrafo.
Paradigma esse que Richter confirma na obra de Moorhouse, quando
afirma que tudo é apenas uma impressão: ―a verdade de fato, é sempre a
verdade daquilo que a gente vê e experimente/sente/revela.‖ (RICHTER, 2002,
p. 263).
Ao retomarmos os estudos de Umberto Eco, quando esse utiliza as
idéias de Lacan em detrimento às suposições de Claude Lévi-Strauss,
compreendemos que, a ordem do simbólico, na qual a estrutura do
inconsciente é constituída é, a priori, relativa a própria essência do espírito do
homem, logo, antecede os mitos e a linguagem :
Lévi-Strauss afirmara que ―os mitos significam o espírito‖. Mas eis que Jacques Lacan, saltando por cima de toda pesquisa sobre a linguagem, sobre os mitos e sobre os vários acontecimentos mediante os quais o homem comunica, põe-se a estudar a natureza do próprio espírito, e como psicanalista seu discurso versa, portanto, sobre o inconsciente e sua estrutura. [...] Em Lévi-Strauss ainda se podia pensar na existência de um espírito humano cujas leis se reproduzissem nos comportamentos lingüísticos como nos sociais. Em Lacan, ao contrário, a ordem do simbólico não é constituída pelo homem [ou pelo espírito que constitui o homem], mas constitui o homem. (ECO, 1976, p. 324).
Seguindo a premissa de Lacan de que somos constituídos frente a
imagem do outro, podemos considerar também a relevância de sermos aquilo
que já é instituído na sociedade, dessa forma, tanto nossa concepção
subjetiva, como nossa representação é construída por intermédio de nossa
interação com nossos pais, familiares, amigos, sociedade e tudo aquilo que de
alguma forma, nos remeta ao outro.
Assim, o sujeito histórico-social é também esclarecido por intermédio da
análise de uma sociedade de classes pelo olhar de Ciro Marcondes. Pautado
em Brecht, Marcondes tece suas sua considerações acerca situação do sujeito
na pós-modernidade:
A metáfora agora é a do monstro, que criado pelo homem, o ameaça, e a visão de mundo, a do curto-circuito da representação-expressão, da confusão. Desapercecido o
156
sujeito, é o objeto que marca agora os limites da individualidade e determina suas qualidades; o homem passa a existir pela técnica. Em relação a comunicação, ele entra numa espiral delirante e tautológica, onde o excesso produz exatamente a perda da informação. (MARCONDES F., 1991, p.45).
Marcondes leva a limite a ideia da falta de plenitude da indentidade do
indivíduo de Hall e nos apóia ao interpretarmos as identidades desfiguradas
dos modelos nas obras de Richter como sinônima de uma era em que o
homem, muito antes de se tornar indivíduo, é substituído pelo objeto de sua
própria criação. Acerca das implicações que norteiam a formação da identidade
do ser no mundo hiper-capitalista, sinônimo de pós-modernidade, Marcondes
F. reitera:
O enfraquecimento do ser coloca-se na razão direta da elevação do status do objeto. O momento desacredita os heróis, os líderes; as identidades agora flutuam. As pessoas tornam-se ―perdidas‖; é o domínio das máscaras, da esquizofrenia, da solidão e do desejo de suicídio. Narcisismo, necessidade de provar a própria existência, minimalismo são os novos comportamentos. O outro, deixando de ser nosso espelho, decreta a supressão da relação de troca social, do acesso ao imaginário. (MARCONDES F., 1991, p. 19).
Assim, inferimos que os retratos de Richter contemplam essa descrença
de Marcondes F. em ―heróis‖ e ―líderes‖, todavia, o ―mundo das almas
perdidas‖ de Marcondes F., é uma idéia concebida nas obras de Richter, não
simbolizando a personalidade narcisista do sujeito pós-moderno, que tem a
―necessidade de provar a própria existência‖, mas simbolizando a situação do
ser, que tem a necessidade de proteger a própria vida frente a repressão de
um poder maior.
Ainda subsidiado pelo olhar de Marcondes F., que nesse momento, se
pauta em Martin Heidegger, refletimos acerca das imagens desfiguradas nas
obras de Richter:
É o ápice técnica, da imposição universal e provocação do mundo técnico, a Ge-stell (quadro) que assinala o acaso desse humanismo e o aparecimento do que ele chamava de Ereignis (evento), o enfraquecimento do ser, a circularidade vertiginosa
157
em que o homem e o ser perdem seu caráter metafísico. (HEIDEGGER apud MARCONDES F., 1991, p. 21).
Assim, no aspecto da forma simbólica, estão simbolizados os seres
espectrais nos aspectos fugidios do ―foto-realismo-transcendental‖ de Richter,
no entanto, no que tange sua existência material (a fotografia), o pintor mostra
como o sujeito usa a técnica a seu favor, nela se fortalecendo e não se lhe
submetendo.
Ainda apoiados na reflexão de Marcondes F., entendemos que o sujeito
na pós-modernidade está em uma: ―pulsação incessante pelo devir sem
nenhum investimento substantivo no estar.‖ (Ibidem, p. 22). Concepção essa
que Richter, mesmo a título de proteção, contemplou em sua arte.
Como vimos até agora, o estilo ―foto-realista-transcendental‖ de Richter
não faz qualquer apologia capitalista, seus temas tampouco desprezam a
situação do ser em um mundo, que Ciro Marcondes interpreta da seguinte
maneira:
Valoriza-se a instantaneidade e a descartabilidade, inclusive a de valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, da fixação em coisas, edifícios, lugares, povos, formas autênticas de fazer e de ser, muito embora possa representar o estado do sujeito do presente, tampouco busca fundar uma nova metafísica. (MARCONDES F., 1991, p. 22).
Dessa forma, partindo de uma abordagem pós-moderna, podemos
pressupor que a arte de Gerhard Richter, no que tange sua concepção de
sujeito, está intimamente ligada a sua história de vida e a daqueles que
constituíram seu enredo, enfatizando a importância que o artista dá a
existência do sujeito enquanto ser que se constitui identitáriamente dentro das
relações sociais, mas, que jamais se resigna a condição de objeto.
É sobre esse pano de fundo que interpretamos o ―estado excessivo do
ser‖ nas representações artísticas de Gehard Richter. Sua arte age como
instrumento de transmutação estético-político, moral, sensível e cognitivo, mas
sobretudo, enquanto a Alemanha era o epicentro da incongruência entre
tecnologia/ciência e humanização, ela abre possibilidades de uma antinomia
com estruturas societárias que compromentem o sentido de humanidade.
158
Considerações
No início do projeto pretendíamos discutir as relações da comunicação e
da cultura com a arte, pela perspectiva das teorias estéticas, no tratamento da
crítica de obra de arte, tendo como objeto de análise as obras de Gerhard
Richter. Na trama desse tecido evidenciamos que a estética do pintor, ao
contemplar imagens fotográficas das memórias de guerra em suas obras,
exigia uma reflexão que considerasse os pontos de contato entre os valores
que norteavam o imbricamento da arte com a política e com a sociedade, como
símbolo da comunicação e da cultura alemã, na passagem da modernidade
para a pós-modernidade.
Tanto a reflexão de alemães e de judeus-almães que nos apoiavam,
quanto a própria Alemanha política no século XX, enquanto cenário das obras
de arte Richter, traziam à tona suas questões históricas e culturais.
Assim, durante a trajetória da pesquisa confimamos que, o fato dos
nexos causais e da finalidade que envolve a comunicação, não poder ser
exauridos e nem confirmados pelas teorias, por si só sugeria a natureza
extraordinária do fenômeno da comunicação. Frente a complexidade que o
tema envolve, percebemos que não haveria tempo para nos aprofundar como
pretendíamos no início do trabalho, o que nos ampliou o desejo de continuar a
pesquisa em projetos futuros.
Entre as grandes dificuldades que envolveram o projeto, podemos
ressaltar as implicações em compreender como Walter Benjamin fundou seus
conceitos de arte e estética sobre sua concepção (anti-histórica) da história,
cujos fundamentos envolviam o imbricamento da essência do pensamento do
idealismo alemão, do materialismo histórico e do messianismo-judaico,
considerando o controverso lócus e tempo histórico: Alemanha seu século XX.
Já no início da pequisa percebemos que, ao analisar as obras de
Richter, considerando as teorias a partir de seu conceito de história, isso
implicaria em não receber como subsídios teóricos qualquer conforto metafísico
e nem referência moral. A situação implicava em nos manter a deriva,
desdobrando as teorias, num eterno jogo dialético, perpetuando o antigo
159
enquanto concebíamos o novo.
Além disso, mais difícil do que não fazer parte do momento histórico e
cultural concernente a vida e a produção das obras de Gerhard Richter e dos
pensadores contemplados, ao tentar compreendê-los, era não compreender
nosso próprio momento histórico. Por isso procuramos sempre analisar as
obras de arte de Richter enquanto objeto estético específico, que além de ser
em si mesmo histórico, trata de uma narrativa histórica.
Assim consideramos a análise crítica de suas obras a partir do conceito
de história de Benjamin. Segundo ele não se tratava de resgatar ou recuperar o
passado no presente, mas de aceitar que a existência não oferece nenhuma
segurança, nenhum ressurgir. Caso contrário isso significaria nos apegar ao
vazio, evocando um tempo que não existe mais e que, portanto, não poderia de
qualquer sorte, nos servir de referência. Tampouco se tratava de desejar o
sempre novo, efêmero e fugaz dos típicos clichês da moda, banalizando e
desperdiçando a experiência do presente.
Isso nos levou a compreender o quão atual é o pensamento de Benjamin
no tratamento da obra de arte. Confirmando mais uma vez aquilo que começou
como uma suspeita: Acolher as obras de arte de Richter enquanto objeto único,
só era possível considerando suas tramas históricas, éticas e estéticas, muito
embora soubessemos que, ―sua grande ―verdade‖ se manteria para sempre
secreta nos labirintos de sua subjetividade.
Mesmo diante de tantas dificuldades, tivemos a facilidade de lermos as
entrevistas cedidas por Richter aos críticos de arte alemães, bem como a
análise de suas obras realizada pelos próprios críticos de arte, que constam
apenas na língua alemã. Além disso, nossa vivência na Alemanha nos oferece
a oportunidade de nos aproximar da complexidade que envolve a cultura de
uma civilização com uma história tão complexa e única. Uma sociedade, que
em última instância, destaca os valores da modernidade através da cultura
―erudita‖, do tempo-espaço histórico, das metanarrativas que contemplam a
história da razão, do ―eu‖ idealista investindo moralmente nas grandes causas
humanitárias, da epistemologia, da psicanálise, dos ―Estado-nacionalistas‖
(visões totalitárias de mundo), da memória e da estética de grandes obras de
arte.
Tais perpectivas, que serviram de referência para a construção da
160
identidade do sujeito no período moderno, evidenciaram como os valores da
pós-modernidade, possuem uma natureza mais plural, ou seja, menos idealista
e exclusivista. Isso ressaltou como a metáfora da pós-modernidade é relativa à
uma sociedade de cultura mercadológica de massa, onde se valoriza a
instantaneidade do tempo real (virtual) substituindo o tempo-espaço histórico;
às micronarrativas que comemoram a morte da história da razão; ao ―eu‖
hedonista que sem referências morais investe nas causas do ego, à
mundialização do capitalismo que substitui os ―Estados-nacionalistas‖, em
última análise, à comemoração do efêmero suprindo a memória e a estética da
arte mercadológica, ou seja, à um momento estético em que o ―valor de culto‖
da obra de arte sucumbe ao ―valor de exposição‖.
Acreditamos que nosso projeto contribui para a área da comunicação
exatamente quando as obras de arte de Richter salientam a existência de uma
relação indissociável entre a arte, a cultura com a comunicação. Assim, na
ânsia por interpretar suas obras, vimos o quão estavam latentes em suas
entrelinhas, os valores da modernidade na passagem para a pós-modernidade.
Paradoxalmente, suas obras, produzidas na pós-modernidade, salientaram
como é possível considerar e ao mesmo tempo laborar na diluição dos juízos
de valor estéticos considerados no período moderno. Fenomenologicamente,
suas obras meditam o passado festejando seu fim. Elas enaltecem os últimos
apelos à redenção metafísica, ao conceito iluminista de história e ao fim da
identidade cultural nacionalista.
Acreditamos que Richter, ao comprometer-se a assumir criadoramente o
destino de sua arte, torna-se seu próprio árbitro contribuindo efetivamente para
desconstruir os juízos estéticos que julgam as artes a partir de uma única
referência conceitual e teórica. Ele nos mostrou como a fotografia laborando na
esfera artística, não foi capaz de destituir o status de obra de arte da pintura
pós-moderna, muito pelo contrário, a imagem fotográfica serviu para que ele
inaugurasse uma forma não aurática de gozar dessa condição, fundando uma
nova experiência contemplativa e reflexiva da estética.
Logo, ao transformar a fotografia em obra de arte, o pintor inverte o
prognóstico de sua morte a partir de mecanismos tecnológicos, revelando que
é possível criar, transformando a situação do ser no mundo, sem esbarrar
necessariamente nos domínios dos juízos morais, que reduzem a qualidade da
161
arte a seus meios de produção. Em suma, Richter nos levou a descobrir como
é possível fundar o que podemos chamar de ―obra de arte fotográfica‖ abrindo
novos caminhos para a concepção de obra de arte.
No que tange a contribuição social de nosso projeto, acreditamos que,
por intermédio da arte de Richter tivemos a oportunidade de trazer para o
contexto brasileiro, a cultura, a filosofia, a história e o pensamento alemão.
Enquanto criador, Richter, pendular entre a metanarrativa histórica e o devir do
tempo virtual, materializa em suas obras além de sua subjetividade, o espírito
de seu tempo e de sua cultura, desmistificando os clichês de uma Alemanha
única e escatológicamente nazista.
Assim, esbarrando na esfera do ideal, Richter, entre o passado e o
presente, alcançou a transcendendência e nos humanizou.
Para nós, os códigos relativos às suas obras, se traduzem em suas
desnorteantes e arrebatadoras profusões de cores e formas, que concebendo e
controvertendo o tradicional e o inovador, tensionam o limite entre a vida e a
morte, fundando uma nova dimensão de experiência estética, de maneira a
nada mais ter tanta importância, além daquilo que ali representado nos cala.
162
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170
ANEXOS
A - GLOSSÁRIO GERAL
Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental
Alemanha Ocidental foi o nome com o qual ficou conhecida a República
Federal da Alemanha entre 1949 e 1990. O Estado foi constituído a partir de
três das Zonas de ocupação aliada da Alemanha, na sequência da Segunda
Guerra Mundial. A outra zona de ocupação, soviética, constituiu um estado à
parte conhecido como Alemanha Oriental. A Alemanha Ocidental também era
freqüentemente referida pela sigla RFA em oposição a RDA, a Alemanha
Oriental. A Alemanha Oriental, oficialmente República Democrática Alemã
(RDA), em alemão (Deutsche Demokratische Republik - DDR) foi um Estado
criado em 1949 no território da Zona de ocupação soviética, uma das Zonas
ocupadas pelos Aliados na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, quando
o território alemão foi repartido entre os Estados Unidos, o Reino Unido, a
França e a União Soviética. Enquanto a zona soviética deu origem à RDA, a
junção das outras três deu origem à República Federal da Alemanha (RFA), ou
Alemanha Ocidental. (BBC Report).
Arte
(gr. xé%vr|; lat. Ars; in. Art; fr. Art; al. Kunst; it. Arte). Em seu significado mais
geral, todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana
qualquer. Era nesse sentido que Platão falava da A. e, por isso, não
estabeleceu distinção entre A. e ciência. A., para Platão, é a arte do raciocínio
(Fed., 90 b), como a própria filosofia no seu grau mais alto, isto é, a dialética
(Fed., 266 d); A. é a poesia, embora lhe seja indispensável a inspiração
delirante (ibid., 245 a); A. é a política e a guerra (Prol, 322 a); A. é a medicina e
A. é respeito e justiça, sem os quais os homens não podem viver juntos nas
cidades (Ibid., 322 c, d). [...] Kant resumiu as características tradicionais desse
conceito ao fazer a distinção entre A. e natureza, de um lado, e entre A. e
171
ciência, do outro; e distinguiu, na própria A., a A. mecânica e a A. estética.
Sobre esse último ponto, diz: "Quando, conformando-se ao conhecimento de
um objeto possível, a A. cumpre somente as operações necessárias para
realizá-lo, diz-se que ela é A. mecânica; se, porém, tem por fim imediato o
sentimento do prazer, é A. estética. Esta é A. aprazível ou bela A. É aprazível
quando sua finalidade é fazer que o prazer acompanhe as representações
enquanto simples sensações; é bela quando o seu fim é conjugar o prazer às
representações como formas de conhecimento" (Crít. do Juízo, § 44).
(ABBAGNANO, 2000, p. 81).
Arte Abstrata ou Abstracionismo
Em sentido amplo, abstracionismo refere-se às formas de arte não regidas pela
figuração e pela imitação do mundo. Em acepção específica, o termo liga-se
às vanguardas européias das décadas de 1910 e 1920, que recusam a
representação ilusionista da natureza. A decomposição da figura, a
simplificação da forma, os novos usos da cor, o descarte da perspectiva e das
técnicas de modelagem e a rejeição dos jogos convencionais de sombra e luz,
aparecem como traços recorrentes das diferentes orientações abrigadas sob
esse rótulo. Inúmeros movimentos e artistas aderem à abstração, que se torna,
a partir da década de 1930, um dos eixos centrais da produção artística no
século XX. [...] Inclui duas vertentes: 1. Expressionismo e o Fauvismo. 2.
abstração geométrica. Entre outros estão suprematismo, O Tachismo europeu,
Construtivismo, o Neoplasticismo, Expressionismo Abstrato e o Minimalismo.
(ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL).
Arte Clássica ou Classicismo
O termo, correlato a clássico, é empregado na história e na crítica da arte com
sentidos diversos. Em acepção mais estrita, referida ao contexto da arte grega,
"clássico" designa a produção específica da fase entre os anos 510 a.C. e 460
a.C., considerada o auge da produção artística grega (Mirón, Policleto, Fídias e
Praxíteles estão entre os maiores escultores do período). Mais freqüentemente,
"classicismo" é pensado por oposição a romantismo. Se o termo "clássico"
remete à ordem, ao equilíbrio e à objetividade, a designação "romântico" apela
às paixões, às desmedidas e ao subjetivismo. O belo clássico define-se na arte
172
grega, com base em um ideal de perfeição, harmonia, equilíbrio e graça que os
artistas procuram representar pela simetria e proporção (Praxíteles, Hermes
com o Jovem Dionisio, 350 a.C.). As formas humanas apresentam-se como se
fossem reais e, ao mesmo tempo, exemplares aperfeiçoados (Vênus de Milo,
século I a.C.) [...] Tanto o clássico quanto o romântico são teorizados entre a
metade do século XVIII e meados do século XIX. [...] Os termos clássico e
classicismo podem ser empregados com base em uma mescla de juízos de
valor - como se a arte greco-romana estabelecesse um padrão para toda a arte
produzida posteriormente - e periodização histórica. [...] é possível utilizar a
noção de "clássico" e também "romântico", como fazem alguns críticos, como
orientações mais gerais, descoladas de localizações cronológicas marcadas, o
que levaria a distinguir tendências "clássicas" ou "românticas" em diferentes
épocas. A oposição clássico/romântico permitiria explicar, no limite, o
desenvolvimento das artes e da cultura na Europa e Estados Unidos nos
séculos XIX e XX. Em sentido mais corrente, próximo ao senso comum, é
possível ainda utilizar o termo como referência à clareza de expressão ou como
índice de conservadorismo. (ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL).
Arte como Inconsciente
A arte moderna foi profundamente influenciada pelos fundamentos teóricos da
psicanálise freudiana e pela psicologia analítica de Carl Jung. Tanto assim que
André Breton, ao lançar o Primeiro Manifesto Surrealista, em 1924, afirmava
que aquele movimento artístico era regido pelo ‗puro automatismo físico que
expressa verbalmente, por escrito ou por outras vias, o verdadeiro processo do
pensamento, sem o controle exigido pela razão. (FILHO, João Dummar).
Arte Conceitual
Para a arte conceitual, vanguarda surgida na Europa e nos Estados Unidos no
fim da década de 1960 e meados dos anos 1970, o conceito ou a atitude
mental tem prioridade em relação à aparência da obra. O termo arte conceitual
é usado pela primeira vez num texto de Henry Flynt, em 1961, entre as
atividades do Grupo Fluxus. Nesse texto, o artista defende que os conceitos
173
são a matéria da arte e por isso ela estaria vinculada à linguagem. O mais
importante para a arte conceitual são as idéias, a execução da obra fica em
segundo plano e tem pouca relevância. Além disso, caso o projeto venha a ser
realizado, não há exigência de que a obra seja construída pelas mãos do
artista. Ele pode muitas vezes delegar o trabalho físico a uma pessoa que
tenha habilidade técnica específica. O que importa é a invenção da obra, o
conceito, que é elaborado antes de sua materialização. Embora os artistas
conceituais critiquem a reivindicação moderna de autonomia da obra de arte, e
alguns pretendam até romper com princípios do modernismo, há algumas
premissas históricas que podem ser encontradas em experiências realizadas
no início do século XX. Os ready-mades de Marcel Duchamp, cuja qualidade
artística é conferida pelo contexto em que são expostos, seriam um
antecedente importante para a reelaboração da crítica dos conceituais.
(ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL).
Arte Informal
A palavra francesa ‗informel‘ significa ‗sem forma‘ mais do que ‗informal‘. Nos
anos 1950, os artistas da ‗Art Informel‘ buscavam uma nova maneira de criar
imagens, sem adotar as formas reconhecíveis utilizadas por seus antecessores
(Cubismo e Expressionismo). Seu objetivo era abandonar as formas
geométricas e figurativas e descobrir uma nova linguagem artística. As obras
dos artistas da ‗Art Informel‘ são muito variadas, mas eles utilizam com
frequência pinceladas soltas e camadas espessas de tinta. Tal como o
Expressionismo Abstrato, que se desenvolveu na mesma época nos Estados
Unidos, ‗Art Informel‘ é um rótulo muito amplo, que inclui pintores figurativos
(Jean Fautrier) e não-figurativos (Hans Hartung). Embora centrada
principalmente em Paris, sua influência alcançou outras partes da Europa,
principalmente Espanha, Itália e Alemanha." (Chilvers). Artistas: Burri, Dubuffet,
Fautrier, Hartung, Riopelle, Soulages, De Stael, Tàpies. (DICIONÁRIO OBOÉ
DE ARTES).
174
Arte Moderna e Contemporânea
Embora surgida no Ocidente no final do século XIX, a chamada arte moderna
tem seu início marcado em 1905, com a apresentação dos fauvistas no Salão
de Outono, em Paris, ou na década de 1910, quando apareceram
simultaneamente movimentos rompendo os cânones da arte acadêmica
(Costa, Cacilda Teixeira. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 set. 2004, Sinapse,
n. 27, p. 4). Esses movimentos, conhecidos como vanguardas (termo de
origem militar), significavam o avanço de pequenos grupos de atores culturais
sobre a grande massa da população e engendraram revoluções permanentes
até aproximadamente a Segunda Guerra Mundial. Foram os chamados
"ismos": fauvismo, cubismo, futurismo, expressionismo, construtivismo,
suprematismo, neoplasticismo, sadaísmo, surrealismo, etc. A partir dos anos
1960 e 1970, com o movimento pós-moderno, temos a arte contemporânea ou
atual. Utilizando todo o repertório iconográfico da história da arte, o movimento
pós-moderno iniciou-se na arquitetura e rapidamente se espalhou para os
outros campos artísticos. O processo de desmanche da figura iniciou-se com
Pablo Picasso e Georges Braque com a criação do "cubismo" por volta de
1907. Em 1910, o russo Wassily Kandinsky pintou as primeiras aquarelas com
signos e elementos gráficos de forma a apenas sugerir modelos figurativos.
Movimento dominante na década de 1950, a "abstração", uma representação
não-figurativa (não apresenta figuras reconhecíveis de imediato), tornou-se
uma das questões essenciais da arte no século XX. A "arte concreta",
expressão cunhada pelo holandês Theo van Doesburg em 1918, representa a
pintura feita com linha e ângulos retos, usando as três cores primárias
(vermelho, amarelo e azul), além de três não-cores (preto, branco e cinza). [...]
A "arte conceitual", nascida no final dos anos 1960, rejeita todos os códigos
anteriores e trabalha os estratos mais profundos do conhecimento, até então
apenas acessíveis ao pensamento. Um dos artistas brasileiros mais ligados ao
conceitual é Cildo Meireles. Os "ready-mades" são obras com a utilização de
objetos prontos e se tornaram clássicos na arte contemporânea. A presença do
objeto na arte começa em "assemblages" cubistas de Picasso, nas invenções
de Marcel Duchamp e nos "objets trouvés" (objetos encontrados) dos
surrealistas. Em 1913, Duchamp instalou uma roda de bicicleta sobre uma
banqueta de cozinha ("Roda de bicicleta‘) e abriu o caminho para o
175
desenvolvimento dos "ready-mades". No Brasil, as experiências começaram a
ser realizadas nos anos 1960 com os neoconcretos e neofigurativos. As
"instalações" caracterizam-se por tensões entre as suas diversas peças e,
também, pela relação entre essas peças e as características do lugar no qual
estão. Uma única instalação pode incluir "performance", objeto e vídeo,
estabelecendo uma interação entre eles. O "happening", surgido em Nova
Iorque na década de 1960, quando os artistas tentavam romper as fronteiras
entre a arte e a vida, tem sua criação atribuída a Allan Kaprow. Ele realizou a
maioria de suas ações procurando (a partir de uma combinação entre
"assemblages", ambientes e a introdução de outros elementos inesperados)
criar impacto e levar as pessoas a tomar consciência de seu espaço, de seu
corpo e de sua realidade. Os primeiros "happening" brasileiros foram realizados
por artistas ligados ao "pop art", como Wesley Duke Lee, autor de "O grande
espetáculo das artes", em 1963. A "performance" nasceu na década de 1970
da integração entre o "happening" e a "arte conceitual". Pode-se realizar uma
"performance" com gestos intimistas ou numa grande apresentação de cunho
teatral. Sua duração pode variar de alguns minutos a várias horas, acontecer
apenas uma vez ou repetir-se em inúmeras ocasiões, realizando-se com ou
sem um roteiro, improvisada na hora ou ensaiada durante meses. [...] O artista
multimídia experimenta vários meios e trabalha com a hibridização desses
meios ou novas mídias (computador, sensores e outras "interfaces" ou
tecnologias). A palavra híbrido é uma palavra adequada à contemporaneidade,
na qual artistas plásticos ou artistas visuais trabalham com o corpo, com o som,
com movimentos, com fluxos, com performances ... Os meios transformam
nossa relação com o mundo. O artista tenta mostrar esse processo por um
novo ângulo e usa sua sensibilidade para apresentar um outro olhar sobre a
relação entre o homem e os meios, comenta Gilberto Prado, artista multimídia,
professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicação e
Arte da USP- ECA-USP (Diário do Nordeste, Fortaleza, 04.out.2004, Caderno
3, p. 6). [...] O problema da significação da obra de arte se colocou desde o
cubismo, momento no qual a pintura deixou de representar objetos
reconhecíveis (Gullar, Ferreira. "Morte cultural da arte" in "Cultura posta em
questão & Vanguarda e subdesenvolvimento". Rio de Janeiro: José Olympio,
2002, p. 66). [...] Do cubismo aos nossos dias, a evolução da arte
176
contemporânea tem sido uma sucessão de "movimentos". Após estontearem
os críticos e serem por eles admitidos, são, em seguida, substituídos por outros
movimentos e igualmente estonteiam, escandalizam e se consagram, observa
Gullar (idem). Em nome de uma representação mais imediata da natureza, o
impressionismo destruiu a perspectiva e a unidade interna dos objetos,
pulverizando-os num especto efêmero de luminosidade decomposta. Em nome
da reconstrução do objeto como estrutura, o cubismo terminou por decompor a
percepção em "etapas" (os vários lados do objeto) e os planos passaram a ser
arbitrariamente recompostos na superfície do quadro. O neoplasticismo
compreendeu nada mais restar da velha pintura e buscou fundar uma "nova
plástica", na qual a figura do objeto se reduziu a simples ritmos ortogonais
(vertical e horizontal) expressos através das cores primárias (vermelho,
amarelo, azul e preto). O neoplasticismo não aconteceu e do cubismo partiu-se
para outras experiências opostas ao neoplasticismo, buscando não a
impessoalidade e a ordem abstrata, mas as alucinações e os símbolos do
mundo inconsciente (dadaísmo, surrealismo e tachismo). Indissociável da arte
produzida no Brasil até hoje, o construtivismo, aqui adotado com entusiasmo
muito grande, tem numerosos e importantes artistas nacionais e chega-se até
esquecer dos estrangeiros. Lygia Clark, Lígia e Pape, Antônio Maluf, Hélio
Oiticica, Abraham Palatnik, Luiz Sacilotto, Ivan Serpa e Geraldo de Barros são
artistas nacionais dedicados ao desenvolvimento do construtivismo (e suas
manifestações, o concretismo e o neoconcretismo), destaca Celso Fioravante,
crítico de arte, curador da mostra "Construtivos e cinéticos", realizada em São
Paulo, aberta em 06.out.2004. Na arte construtiva, o artista faz uso consciente
das formas geométricas. Na arte cinética, o movimento é parte da estrutura da
obra de arte, em vez de ser apenas representado por ela (Folha de S. Paulo,
São Paulo, 06 out. 2004, p. E2). [...] O surrealismo é provavelmente o mais
incompreendido dos movimentos do século XX, praticamente sem seguidores
no Brasil. Trabalhos do surrealismo mudaram completamente a maneira de
encarar-se o fazer artístico e abriram caminhos para transformações. Até hoje
artistas se inspiram nessas transformações, numa influência direta do
surrealismo sobre a arte contemporânea. Um dos principais idealizadores do
surrealismo foi André Breton. Mas fazem parte do movimento, dentre outros:
Francis Picabia, Jean Arp, Max Ernst, Joan Miró, Wifredo Lam, Yvez Tangui.
177
Os seguidores do surrealismo pregam as idéias de liberação do inconsciente,
além de imensa liberdade. Marcel Duchamp também é destaque numa
exposição surrealista. Ele revolucionou a forma de fazer arte com a introdução
de objetos ("ready-mades"), ou seja, peças deslocadas de seus funções
originais para compor obras de arte. Antes do surrealismo, alguns artistas já
haviam percebido a importância do sonho, do bizarro e do inconsciente na arte,
dentre eles: Lewis Carrol, Francisco Goya, William Blake, Alberto Dürer e Paulo
Gauguin. Uma coleção ou uma mostra multifacetada é composta por colagens,
fotos, desenhos, gravuras, esculturas, além de várias publicações (Bittencourt,
Elaine. "Os surrealistas e seus enigmas". Gazeta Mercantil, São Paulo, 08 out.
2004, Fim de Semana, p. 8). [...] A arte contemporânea, apresentada em
salões e vários museus pelo mundo, não requer conhecimentos de equilíbrio,
ritmo e da composição. Em outras palavras, com ela ficou fácil ser mau artista,
avalia Carlos Perktold, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte –
ABCA (Revista da Academia Mineira de Letras – volume XXXIII, Belo
Horizonte: Academia Brasileira de Letras, 2004, p. 141). [...] O mundo mudou
muito nos últimos 40 anos e, com ele, mudou a arte, observa Rafael Cardoso
(Bravo, São Paulo: Abril, set.2004, p. 38). Boa parte da produção artística atual
privilegia o processo, a experimentação, o conceito, muitas vezes a despeito da
preocupação tradicional com forma e aparência. A arte nem sempre precisa ser
entendida de maneira racional, porém precisa impactar os sentidos, de modo a
atingir a emoção. A arte pode divertir, instigar, chocar, perturbar. Só não pode
entediar, pois assim abre mão da possibilidade de transformar o espectador,
sua meta maior. [...] Certas pessoas admitem estar fazendo "não-arte", sem
enfoque artístico e estético, produto fora da "arte", mas querem ocupar o
espaço do museu e da galeria e querem ser verbetes nos livros de "história da
arte". A crítica de arte praticamente desapareceu. Nos anos 50 e 60, os jornais
contavam com uma equipe de críticos. Hoje prevalece a reportagem e não a
crítica. Reforça-se a cultura da superficialidade, do espetáculo, da falta de
construção do raciocínio. Isso se dá também com a literatura e outros gêneros.
(DICIONÁRIO OBOÉ DE ARTES).
Arte "Pop"
178
Corrente surgida nos Estados Unidos na década de 1960 e caracterizada pela
busca de uma expressão crítica da moderna civilização urbana e industrial.
Utiliza objetos do cotidiano, desde o jornal até a sucata de ferro, para obter
obras representativas da chamada "sociedade de consumo". "A arte ‗pop‘
elevou a ícones os mais crassos objetos de consumo, como hambúrgueres,
louça sanitária, cortadores de grama, estojos de batom, pilhas de espaguete e
celebridades como Elvis Presley. Em 1962, os artistas ‗pop‘ despontavam no
superestrelato como cometas nos quadrinhos de super-heróis. Era fácil gostar
do ‗pop‘. As cores brilhantes, os desenhos dinâmicos, às vezes ampliados em
tamanho heróico, e a qualidade mecânica lhe davam uma lustrosa
familiaridade. Da noite para o dia, o ‗pop‘ se tornou um fenômeno de
‗marketing‘ tanto quanto um novo movimento artístico." (Strickland). No final de
2001, a gravura "Little Eletric Chair", de Andy Warhol, falecido em 1987, atingiu
em leilão o preço recorde para o artista de US$ 2,3 milhões. Uma obra da
mesma série podia ser comprada por US$ 1.500,00 nos anos 1960. Georg Frei,
crítico de arte, analisa: "Warhol é o primeiro artista americano que faz
referências totais à cultura americana. Ele também deve estar entre os
primeiros a reconhecer a onipotência da mídia e, acima de tudo, a explorar o
potencial pictórico da televisão em sua arte. O início de seus trabalhos em série
é provavelmente o fenômeno mais impressionante de sua obra. Isso pode ser
visto em suas primeiras obras, as sopas Cambell de 62, ou nas últimas, de 87,
releituras sem fim do famoso afresco que Da Vinci fez da ‗Última Ceia‘. Hoje a
estética de Warhol reverbera nas contínuas repetições que marcam os vídeos
musicais e na infindável abundância de imagens na internet.‖ Warhol é o autor
da máxima segundo a qual no futuro todos teriam 15 minutos de fama. Artistas:
Blake, Dine, Hamilton, Hockney, Johns, Jones, Kitaj, Lichtenstein, Oldenburg,
Rauschenberg, Rosenquist, Segall, Thiebaud, Warhol, Wesselmann.
(DICIONÁRIO OBOÉ DE ARTES).
Arte Popular
A divisão entre arte erudita e arte popular data do Renascimento, quando foi
criada a denominação belas-artes em contraponto à artesania. Para Mário
Pedrosa, crítico, tratava-se de uma diferença ideológica da época moderna,
179
que conferia valor positivo para a arte culta, patrocinada pela burguesia, e valor
negativo para a arte de origem camponesa ou proletária. (DICIONÁRIO OBOÉ
DE ARTES).
Axiologia
(in. Axiology, fr. Axiologie, al. Axiologie, it. Axiologid). A "teoria dos valores" já
fora, há alguns decênios, reconhecida como parte importante da filosofia ou
mesmo como a totalidade da filosofia pela chamada "filosofia dos valores" e por
tendências congêneres (v. VALOR) quando, no início de nosso século, a
expressão "axiologia" começou a ser empregada em seu lugar. Os primeiros
textos em que esse termo aparece são: P. LAPIE, Logique de Ia volonté, 1902,
p. 385; E. VON HARTMANN, Grundriss der Axiologie, 1908; W. M. URBAN,
Valuation, 1909. Esse termo teve grande aceitação, ao contrário da etimologia,
proposto para a mesma ciência (KREIBIG, Psychologische Grundlegungeines
Systems der Werttheorie, 1902, p. 194). (ABBAGNANO, 2000, p. 101).
Catarse Do grego Κάθαρζις, "kátharsis". Libertação do que é estranho à essência ou à
natureza de uma coisa e que, por isso, a perturba ou corrompe. Esse termo, de
origem médica, significa "purgação". Platão define a C. como "a discriminação
que conserva o melhor e rejeita o pior" (Sof, 226 d). E lembra a existência de
livros de Museu e Orfeu, segundo os quais "os adeptos celebram sacrifícios
persuadindo cidadãos e cidades inteiras de que existem absolvições e
purificações dos atos injustos, por meio de sacrifícios e jogos aprazíveis, tanto
para os vivos como para os mortos". [...] Das muitas interpretações sobre a C.
estética, prevalece a de Goethe (Nachlese zu Aristot. Poetik, 1826), para quem
ela consistiria no equilíbrio das emoções que a arte trágica induz no
espectador, depois de ter suscitado nele essas mesmas emoções, e portanto,
na sensação de serenidade e pacificação que ela proporciona. Se bem que
haja algo de semelhante em Aristóteles, é preciso observar que, para ele, o
significado da C. estética não é diferente do da C. médica ou moral: uma
espécie de tratamento das afecções (físicas ou espirituais) que não as anula
180
mas as reduz a dimensões em que são compatíveis com a razão. Na cultura
moderna, o termo C. foi usado quase exclusivamente como referência à função
libertadora da arte. Freud às vezes chamou de C. o processo de sublimação da
libido, pelo qual a libido se separa do seu conteúdo primitivo, ou seja, da
sensação voluptuosa e dos objetos a ela ligados, para concentrar-se em outros
objetos que serão amados por si mesmos. Segundo Freud, a esse processo de
C. ("sublimação") são devidos todos os progressos da vida social, a arte, a
ciência e a civilização em geral, pelo menos na medida em que dependem de
fatores psíquicos. (ABBAGNANO, 2000, p. 120).
Clássico
(lat. Classicus; in. Classiq; fr. Classique; al. Klassische, it. Clássico). No latim
tardio, esse adjetivo designava o que é excelente em sua classe ou o que
pertence a uma classe excelente (especialmente à classe militar). Aulo Gélio
(Noct. At., XIX, 8,15) contrapunha o escritor C. ao escritor "proletário" (pro-
letarius). [...] Mas a difusão dessa palavra para designar um modo ou estilo
excelente e próprio dos antigos, na arte e na vida, é devida ao Romantismo,
que gostava de definir-se e entender-se sempre em relação ao "classicismo".
Segundo Hegel, o caráter clássico é definido como a união total do conteúdo
ideal com a forma sensível. O ideal da arte encontra na arte C. a sua realização
perfeita: a forma sensível foi transfigurada, subtraída à finitude, e inteiramente
conformada à infinitude do Conceito, isto é, do Espírito Autoconsciente. E isso
acontece porque, na arte C, a Idéia infinita encontrou a forma ideal em que
exprimir-se, isto é, a figura humana. Todavia, o defeito da arte C. é o de ser
arte, arte na sua completitude, mas nada mais. Em face dela, a arte romântico-
cristã está em nível superior, pois nela a unidade da natureza divina com a
natureza humana (isto é, do infinito e do finito) torna-se autoconsciente e, por
isso, não se exprime mais de forma externa, mas sua expressão é interiorizada
e espiritualizada. Na arte romântica, a beleza já não é física e exterior, mas
puramente espiritual, porque é a beleza da interioridade como tal, da
subjetividade inifinita em si mesma (Vorlesungen über die Àsthetik, ed.
Glockner, II, pp. 109 ss.). Dessas idéias de Hegel, repetidas de forma pouco
diferente por numerosos escritores do período romântico, nasceu o ideal
181
convencional do classicismo como medida, equilíbrio, serenidade e harmonia,
contra o qual a distinção de Nietzsche entre espírito apolíneo e espírito
dionisíaco (v. APOLÍNEO) representou a primeira reação. Cf. os artigos de
Tatarkiewicz e outros na Revue Internationale de Philosophie, 1958, 1 (n. 43).
(ABBAGNANO, 2000, p.147).
Comunicação
(in. Communication; fr. Communication; al. Kommunikation; it. Co-
municazioné). Filósofos e sociólogos utilizam hoje esse termo para designar o
caráter específico das relações humanas que são ou podem ser relações de
participação recíproca ou de compreensão. Portanto, esse termo vem a ser
sinônimo de "coexistência" ou de "vida com os outros" e indica o conjunto dos
modos específicos que a coexistência humana pode assumir, contanto que se
trate de modos "humanos", isto é, nos quais reste certa possibilidade de
participação e de compreensão. Nesse sentido, a C. nada tem em comum com
a coordenação e com a unidade. (ABBAGNANO, 2000, p. 161).
Cultura
(in. Culture; fr. Culture; al. Kul-tur; it. Cultura). Esse termo tem dois significados
básicos. No primeiro é mais antigo, significa a formação do homem, sua
melhoria e seu refinamento. F. Bacon considerava a C. Nesse sentido como "a
geórgica do espírito" (De augm. scient., VII, 1), esclarecendo assim a origem
metafórica desse termo. No segundo significado, indica o produto dessa
formação, ou seja, o conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados,
civilizados, polidos, que tam-; bém costumam ser indicados pelo nome de
civilização (v.). A passagem do primeiro para o segundo significado ocorreu no
séc. XVIII por obra da filosofia iluminista, o que se nota bem neste trecho de
Kant: "Num ser racional, cultura é a capacidade de escolher seus fins em geral
(e portanto de ser livre). Por isso, só a C. pode ser o fim último que a natureza
tem condições de apresentar ao gênero humano" (Crít. do Juízo, § 83). Como
"fim", a C. é produto (mais que produzir-se) da "geórgica da alma". No mesmo
sentido, Hegel dizia: "Um povo faz progressos em si, tem seu desenvolvimento
e seu crepúsculo. O que se encontra aqui, sobretudo, é a categoria da C, de
sua exageraçâo e de sua degeneração: para um povo, esta última é produto ou
182
fonte de ruína" (Phil. der Ges-chicbte, ed. Lasson, p. 43). (ABBAGNANO, 2000,
p. 225).
Devir ou Vir-a-ser
(gr. TíyveoGat; lat. Fieri; in. Becoming; fr. Devenir; al. Werdent; it. Diveniré).
1. O mesmo que mudança.
2. Uma forma particular de mudança, a mudança absoluta ou substancial que
vai do nada ao ser ou do ser ao nada. Esse é o conceito de Aristóteles e Hegel.
Aristóteles afirmava: "Diz-se D. em muitos sentidos: ao lado daquilo que vem a
ser absolutamente (ÔOTÀWÇ), há aquilo que vem a ser isto ou aquilo. O D.
absoluto é só das substâncias: as outras coisas que vêm a ser precisam
necessariamente de um sujeito, já que a quantidade, a qualidade, a relação, o
tempo e o lugar vêm a ser só em referência a certo sujeito; e enquanto a
substância não pode ser atribuída como predicado a nenhuma outra coisa,
todas as outras coisas podem ser atribuídas como predicado a uma
substância" (Fts., I, 7, 190 a 30). Heráclito fez do próprio devir o princípio da
realidade. Note-se, contudo, que o devir, em Heráclito, embora seja puro fluir,
está submetido a uma lei: a lei da medida, que regula o incessante iluminar-se
e extinguir-se dos mundos. Parmênides e os Eleatas adotaram, a esse
respeito, uma posição oposta à de Heráclito. Dado que a razão não apreende o
devir, declaram que a realidade que devém é pura aparência; o ser verdadeiro
é imóvel: perante o ―tudo flui‖ de Heráclito, proclamaram o ―tudo permanece‖.
(MORA, 2004, p.70).
1. A mudança considerada em si mesma, como processo e passagem de um
estado a outro. Nesse sentido está em oposição aos estados estáticos e per-
feitos que servem como ponto de referência. 2. Uma série de mudanças de
modos de Ser. Nesse sentido está em oposição ao Ser enquanto imutável.
(LALANDE 1999, p. 253). 3. Uma forma especial de mudança, que vai do Nada
ao Ser ou do Ser ao Nada. Nesse sentido se opõe ao Ser enquanto imutável,
mas não o nega, aliás, o confirma. (ABBAGNANO 1998, p. 268).
Significando tanto processo do Ser (sentido 2 e 3) quanto o Ser enquanto
processo (sentido 1), o Devir se contrapõe à noção do Ser imóvel e estabelece
o conceito de mudança como constituinte do real. É o acontecer, o ir sendo,
mover-se, transformar-se, o passar. É preciso, no entanto, abordar a questão
183
da mudança e do sentido desta mudança. Considerar o Devir de forma
teleológica é considerá-lo um processo finalístico (sentido 3), enquanto que é
possível, tanto quanto necessário, considerá-lo também estado de contínua e
simples transformação: indistinção, caos... (sentido 2). Toda a filosofia se viu
embrenhada no problema do Devir. Inapreensível pela racionalidade pelo
simples fato de não ter uma razão suficiente ou necessária detectável, o Devir
foi e é um problema recorrente até os dias atuais. Poderíamos dizer que a
Filosofia nasce perante a problematização do Devir como realidade sensível,
assim como se desenvolve na problematização do homem diante dessa
percepção. A questão do Devir está para além da questão do fundamento; do
que é primário e persiste contra o que é transitório e derivado. A questão do
Devir está no que se constitui a percepção da mudança: se ela é constituinte
do fundamento ou se é derivada dele e, portanto, transitória.
Análise crítica: A busca do quid, o fundamento pelo qual todas as coisas
derivam, empreendido pelos filósofos chamados naturalistas (ou pré-socráticos,
da physis) foi uma forma de definir o estatuto do Devir dentro da realidade,
levado às vias de fato por Parmênides e Heráclito em posições (ao menos
nesse quesito) contrárias. Mas nem sempre o Devir foi um problema. Até ao
advento da Filosofia na Grécia Antiga, a própria Grécia, as civilizações antigas
antes dela e contemporâneas a ela (assírios, babilônios, chineses, indianos
egípcios, persas e hebreus) obtinham seu conhecimento a partir da Técnica.
Ou seja, empreenderam uma dialética entre suas necessidades e a
possibilidade via tentativa e erro, incorporando culturalmente o que gerava
resultado. Para preservar o resultado criavam narrativas míticas que os fixavam
culturalmente. Na Grécia do sec. VI a.C. nasce a problematização e com isso a
Teoria: um pensar e uma nova mentalidade que se antecipa e conjectura a
aplicabilidade das diversas técnicas em outras áreas do conhecimento, bem
como a formulação de princípios gerais que norteiem as técnicas a partir da
teoria. Inaugura-se na Grécia, nesse período, um novo tipo de conhecimento,
chamado comumente de filosófico-científico. (MARCONDES 2006, p. 19)
Há de se destacar, porém, que não há uma ruptura demarcada e estrita entre o
que chamamos de pensamento mítico e pensamento filosófico. Há nos seus
extremos. A passagem de um para o outro é tênue, sem rompimentos, embora
possamos pincelar em cada fase os fatores que os fazem se distanciar.
184
Nesse aspecto é possível delimitar o pensamento mítico a partir de uma
explicação racional humana buscada dentro da sua relação de necessidade
com o meio. Em todas as culturas o homem identifica um estado inicial
indistinto (o Caos para uns ou a Unidade para outros) e, a partir desse estado,
tem-se a percepção da multiplicidade que caminha para a Ordem; ou mesmo a
―cosmização‖ (que é uma ordem com sentido) desse estado inicial indistinto
para uma inteligibilidade. As narrativas míticas homéricas e, principalmente, as
hesiódicas organizam com sentido (portanto racionalmente) as diversas
narrativas esparsas que, historicamente, compuseram a identidade do povo
grego. O seu aspecto pedagógico incorpora o campo semântico identitário,
mas é possível abstrair dele toda uma racionalidade na forma de composição.
(MIRANDA, Gilberto Jr.).
Estilo
(in. Style; fr. Style; al. Stil; it. Stilé). Conjunto de características que distinguem
determinada forma de expressão. Em sua origem, no séc. XVIII, a noção de
estilo foi expressa pelo lema francês le style c'est homme même e considerada
a manifestação na forma expressiva das características do sujeito em sua
relação com o material empregado. Hegel considerou demasiado restrita essa
concepção e incluiu no E. também as determinações que as condições da arte
em questão produzem na forma expressiva; nesse sentido, pode-se distinguir,
p. ex., na música o E. gregoriano do E. operístico; na pintura, o E. histórico do
E. genérico, etc. (Vorlesungen über die Àsthe-tik, ed. Glockner, I, pp. 394-95).
Neste sentido, o E. não seria o homem, mas a própria coisa. Em todo caso,
porém, o E. seria uma certa uniformidade de caracteres, encontrável em
determinado domínio do mundo expressivo. (ABBAGNANO, 2000, p. 375).
Estética Totalitária
É um tipo de manifestação estética típica dos regimes totalitários e seus
fenômenos do século XX, como o Nazismo, o Fascismo, o Stalinismo, o
Maoísmo e até o Salazarismo. A arte totalitária é um tipo incontestável de
cultura de massa que utiliza de forma peculiar a indústria cultural sob o controle
rígido do Estado (e políticas estatais para a produção cultural). Essa estética,
assim, é geralmente considerada típica da Arte e design de Propaganda, bem
185
como resultante dela, eventualmente aliada ao uso da Violência do Estado.
Desta forma, pensadores mais atuais, como Noam Chomsky apontam para a
existência de uma outra forma de estética totalitária, sustentada basicamente
pela propaganda e reinante no âmbito das democracias ocidentais.
(WIKCIONARIO).
Expressionismo
Entende a arte como expressão do mundo interior do artista e admite, para
tanto, a deformação ou a alteração das cores e formas dos objetos
representados. Em sentido amplo, o termo aplica-se à obra de arte na qual
predominem aspectos subjetivos. "Na Alemanha, um grupo conhecido como
‗expressionistas‘ achava que a arte devia expressar os sentimentos do artista e
não as imagens do mundo real. De 1905 a 1930, as formas distorcidas,
exageradas, as cores destinadas a causar impacto emocional dominaram a
arte alemã. A tendência subjetiva em que se fundamenta muito da arte do
século XX começou com van Gogh, Gauguin e Munch no fim do século XIX e
continuou com o pintor belga James Ensor (1860-1949) e com os austríacos
Gustave Klimt (1862-1918), Egon Schiele (1890-1918) e Oskar Kokoschka
(1886-1980). Mas foi na Alemanha, com dois grupos chamados ‗Die Brucke‘ e
‗Der Blaue‘, que o Expressionismo atingiu a maturidade." (Strickland). [...] "O
Expressionismo é uma oposição ao realismo que caracterizava o
Impressionismo. O Expressionismo se preocupa menos com a reprodução do
mundo exterior, de suas formas e harmonias, e mais com a transferência para
a obra de arte do impacto emocional, dos sentimentos e das vivências
interiores do artista." (Marcondes). O termo fundiu-se à linguagem comum e,
atualmente, qualquer artista pode ser considerado "expressionista", caso
distorça exageradamente a forma e aplique a tinta de forma subjetiva, intuitiva
e espontânea, diz Shulamith Behr, professora de Arte Alemã do Século XX no
"Courtauld Institute of Art", em Londres ("Expressionismo". 2a. ed. São Paulo:
Cosac e Naify, 2001). Artistas: Beckman, Van Gogh, Heckel, Jawlensky,
Kirchner, Kokoschka, Marc, Munch, Nolde, Pechstein, Rouault, Schiele,
Schmidt-Rottluff, Soutine. Erich Heckel, Fritz Bleyl, Ernst Ludwig Kirchner e Karl
Schmidt-Rottluff fundaram em Dresden, em 07 jun. 1905, o grupo "Die Brucke"
186
(A Ponte), início do expressionismo alemão. Esses artistas queriam libertar a
expressão e os hábitos sociais dos cânones acadêmicos e do bom gosto
burguês. Aspiravam criar formas de expressão e transformar valores morais e
de comportamento. Max Pechstein, Otto Mueller e Emil Nolde juntaram-se ao
grupo. A estética inovadora do grupo incluía o uso de cores carregadas, o estilo
de composição rápida, a aparência rústica e a representação de figuras nuas.
Os artistas se inspiravam em imagens das culturas africana, oceânica e
asiática, conhecidas por meio de publicações, museus e exposições
antropológicas (Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 fev. 2005, p. E3).
(DICIONÁRIO OBOÉ DE ARTES).
Existencialismo
(in. Existentialism; fr. Existentialisme; al. Existentialismus; it. Esistenzialismó).
Costuma-se indicar por esse termo, desde 1930 aproximadamente, um
conjunto de filosofias ou de correntes filosóficas cuja marca comum não são os
pressupostos e as conclusões (que são diferentes), mas o instrumento de que
se valeria análise da existência. Essas correntes entendem a palavra existência
(v.) no significado 39, vale dizer, como o modo de ser próprio do homem
enquanto e um modo de ser no mundo, em determinada situação, analisáveis
em termos de possibilidade. A análise existencial é, portanto, a análise das
situações mais comuns ou fundamentais em que o homem vem a encontrar-se.
Nessas situações, obviamente, o homem nunca é e nunca encerra em si a
totalidade infinita, o mundo, o ser ou a natureza. Portanto, para o E.,o termo
existência tem significado completamente diferente do de outros termos como
consciência, espírito, pensamento, etc, que servem para interiorizar ou, como
se diz, tornar "imanente" no homem a realidade ou o mundo em sua totalidade.
Existir significa relacionar-se com o mundo, ou seja, com as coisas e com os
outros homens, e como se trata de relações não-necessárias em suas várias
modalidades, as situações em que elas se configuram só podem ser
analisadas em termos de possibilidades (v.). Esse tipo de análise foi
possibilitada pela fenomenologia. (ABBAGNANO, 2000, p. 405).
Fotografia
187
Fotografar não é só bater retrato. Desde a primeira fotografia de um ser
humano, tirada em 1839 por Louis J.M. Daguerre (1789 – 1851), os fotógrafos
avançaram e ampliaram muito a capacidade operativa da fotografia. Julia
Margaret Cameron (1815 – 79) foi a primeira a ter lentes especiais e a primeira
a bater fotografias fora de foco com o fim de transmitir um clima. Camerom
fotografou retratos de amigos, dentre eles Tennyson, Carlyle, Browning, Darwin
e Longfellow. Sempre procurei registrar fielmente a grandeza interna, bem
como os traços do homem exterior, disse Camerom. A fotografia assim tirada
era quase a corporificação de uma oração, concluiu ela. Nadar (1820 – 1910)
também fotografou retratos. Ele concebia a pose, fazia a pessoa posar e
iluminava a figura de modo a enfatizar seus traços de caráter. Na virada do
século XIX para o XX, influenciados pelo modernismo, os fotógrafos, já livres
do complexo de inferioridade em relação à pintura, passaram a expressar sua
visão pessoal do mundo e se concentraram em composições tensas e na forma
pura. No pós-modernismo, veio o estilo introspectivo e o fotógrafo, com a
utilização mais subjetiva da câmera, expressa mais sentimentos. Um boa
fotografia expressa plenamente o sentimento, e o fotógrafo é "um instrumento
de amor e revelação", avaliou Ansel Adams (1902 – 84). Na fotografia
contemporânea, o traço primordial é a diversidade. (DICIONÁRIO OBOÉ DE
ARTES).
Foto-realismo ou Hiper-realismo
O termo remete a uma tendência artística que tem lugar no final da década de
1960, sobretudo em Nova York e na Califórnia, Estados Unidos. Trata-se da
retomada do realismo na arte contemporânea, contrariando as direções abertas
pelo minimalismo e pelas pesquisas formais da arte abstrata. Menos que um
recuo à tradição realista do século XIX, o "novo realismo" finca raízes na cena
contemporânea, dizem os seus adeptos, e se beneficia da vida moderna em
todas as suas dimensões: é ela que fornece a matéria (temas) e os meios
(materiais e técnicas) de que se valem os artistas. [...]. Hiper-realismo ou foto-
realismo, como preferem alguns, os termos permitem flagrar a ambição de
atingir a imagem em sua clareza objetiva, com base em diálogo cerrado com a
fotografia. Os hiper-realistas "fazem quadros que parecem fotografias", afirma o
188
crítico Gilles Aillaud por ocasião de uma exposição no Centro Nacional de Arte
Contemporânea de Paris, em 1974. A frase traduz uma reação corriqueira
diante das obras, o que não quer dizer que os artistas deixem de assinalar as
diferenças existentes entre pintura e fotografia. Richard Estes (1932), um dos
grandes expoentes do novo estilo, é enfático: "Não acredito que a fotografia dê
a última palavra sobre a realidade". Mesmo assim, afirma, "o foto-realismo não
poderia existir sem a fotografia". Se pintura e fotografia não se confundem, a
imagem fotográfica é um recurso permanente dos "novos realistas", sendo
utilizada de diversas maneiras. A foto é usada, antes de tudo, como meio para
obter as informações do mundo, pinta-se a partir delas. O pintor trabalha tendo
como primeiro registro os movimentos congelados pela câmera, num instante
preciso. Se o modelo vivo - pessoa ou cena - sofre permanentemente as
interferências do ambiente e está, portanto, sempre em movimento, a imagem
registrada pela máquina encontra-se cristalizada, imune a qualquer efeito
externo imediato, o que dá a ela um tom de irrealidade. (...) A retomada da
figuração após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) já havia sido
empreendida pela arte pop, a partir dos anos 1950, com o auxílio de símbolos
retirados da cultura de massas e da vida cotidiana. A recusa ao "hermetismo"
da arte contemporânea, a atração pelos temas e recursos técnicos oferecidos
pelo mundo moderno, assim como a vontade de figurar a realidade de modo
detalhado e impessoal aproxima o hiper-realismo da arte pop. O
reconhecimento dessas afinidades não impede a localização de afastamentos
fortes entre os dois movimentos. A arte pop volta-se preferencialmente para os
objetos estandardizados da sociedade de massas e para os ícones do mundo
da mídia, como as imagens da Marilyn Monroe trabalhadas por Andy Warhol
(1928-1987). O hiper-realismo faz uso de clichês, de imagens pré-fabricadas e
de elementos do cotidiano, mas em sentido inverso: buscando conferir a eles o
valor de obras particulares. Retira, assim, a imagem massificada do seu circuito
habitual, recuperando-a como objeto de arte único. A figura humana, por
exemplo, menos que um ícone ou sujeito anônimo, tem nome, idade e
características específicas, minuciosamente registradas pelo pintor. Trata-se,
segundo, McLean, de "re-autenticar o evento fotografado como um puro evento
pictórico". O mundo cotidiano retratado pelos hiper-realistas, em geral, refere-
189
se aos aspectos banais, às cenas e atitudes familiares, aos detalhes captados
pela observação precisa. (ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL).
Gênio, Talento e Originalidade
(in. Genius; fr. Génie; aL. Genie; it. Genió). A partir da segunda metade do séc.
XVII passou-se a indicar com esse termo (que, segundo Varrão, na origem
indicava "a divindade que é preposta a cada uma das coisas geradas e que
tem a capacidade de gerá-las", S. AGOSTINHO, De civ. Dei, VII, 13) o talento
inventivo ou criativo nas suas manifestações superiores. Pascal já usa essa
palavra com esse sentido: "Os grandes gênios têm seu império, seu esplendor,
sua grandeza, suas vitórias e não precisam das grandezas carnais, que não
têm relação com o que eles procuram" (Pensées, 793). E La Bruyère dizia: "E
menos difícil para os grandes gênios topar com coisas grandes e sublimes do
que evitar qualquer espécie de erro" (Caracteres, 1687, cap. 1). A estética do
séc. XVIII reduziu a noção de G. ao domínio da arte. Kant (provavelmente
inspirado numa obra inglesa de GERARD, Essay on Genius, 1774) defende
este ponto de vista: "O talento de descobrir chama-se gênio. Mas esse nome
só se dá ao artista, àquele que sabe fazer alguma coisa, não àquele que
conhece e sabe muito; e não se dá ao artista que imita apenas, mas àquele
que é capaz de produzir sua obra com originalidade; enfim, só se dá quando
seu produto é magistral, quando, por mérito, merece ser imitado" (Antr., § 57).
Esse é o sentido da definição de G. que Kant dá na Crítica do Juízo como de
"talento (dom natural) que dita regras à arte". Como talento, o G. foge a
qualquer regra; mas como criador de exemplares distingue-se de qualquer
extravagância. É natureza porque não age racionalmente; e é natureza que dita
regras à arte. Kant observa que, justamente devido a estas últimas
características, "a palavra G. derivou de genius, que significa o próprio espírito
do homem, o que lhe foi dado ao nascer, que o protege e o dirige, de cujas
sugestões provêm as idéias originais" (Crítica do Juízo, § 46). (ABBAGNANO,
2000, p. 481). O gênio é um talento; e o talento consiste em produzir aquilo de
que não se pode dar nenhuma regra determinada, razão pela qual a
originalidade é a primeira propriedade do gênio" (Kant). Atribui-se ao
Chevalier de La Palice (Jacques de Chabannes), marechal da França (1470-
190
1525), a distinção entre talento e gênio: "O talento consiste em fazer com
facilidade tudo quanto é considerado difícil; o gênio em tornar fácil tudo quanto
o talento considerou impossível." (...) "O artista deve fazer o que tem de ser
feito, e não o que esperam dele". (Waltércio Caldas, artista plástico
contemporâneo). "Será o artista uma encarnação de Deus, o qual quer
transmitir novas percepções à humanidade ?" "A verdadeira tradição nas
grandes coisas é não repetir o que outros já fizeram, mas sim redescobrir o
espírito que criou estas grandes coisas – e criar outras totalmente diferentes
em tempos diferentes." (Paul Valéry).
Grotesco
(in. Grotesque; fr. Grotesque; al. Groteske; it. Grottescó). Uma espécie do
cômico, distinguida pelos tratadistas modernos. É caracterizado por Santayana
como "um efeito interessante, produzido pela transformação de um tipo ideal,
que exagere um dos seus elementos ou o combine com os de outros tipos".
Nesse caso considera-se "a sua divergência em relação ao tipo natural e não
em relação sua possibilidade interna" (Sense of Beauty, 1896, § 64).
(ABBAGNANO, 2000, p. 492).
História
Para Hegel o caráter necessário e providencial da H. deriva da crença de que a
H. é obra de uma Razão Absoluta cuja perfeição e cuja potência não conhecem
limites. Uma forma levemente atenuada dessa concepção é a que considera a
H. como revelação de Deus. Esse conceito não é estranho ao próprio Hegel,
para quem revelação de Deus no mundo e realização de Deus coincidem. Mas
ele assinala a atenuação da relação entre os dois conceitos de revelação e
realização. (...) Kant na Crítica da Razão Pura (1781), por sua vez, superando
as limitações do cartesianismo, propõe uma filosofia do Iluminismo que concilia
o ―positivo/empírico‖ com o ―racional/lógico‖. Resumidamente, pode-se afirmar
então que a filosofia do Iluminismo estabelece a reciprocidade entre ―sujeito‖ e
―objeto‖, ―verdade interna‖ e ―realidade externa‖, que faltava no pensamento
sistemático de Descartes. É nesses termos que surge a demanda,
kantianamente positiva, da adaequatio res et intellectus, que é a
condição/dilema de todo conhecimento que se pretenda científico. Deste modo,
191
o caminho do conhecimento desenrola-se indefinidamente, pois depende tanto
da natureza do objeto (res) quanto da força específica do pensamento
(intellectus). Por outro lado, pela perpectiva sociológica, o marxismo considera
a H. como um processo unilinear e progressivo que, por meio da luta de
classes, necessariamente desembocará na sociedade sem classes, que é a
sociedade perfeita. Marx diz, a propósito, que a passagem para a nova
sociedade ocorrerá "com a mesma fatalidade que preside aos fenômenos da
natureza" (DasKapital, I, 24, § 7). A noção de mundo histórico, como todas as
noções totalitárias e a própria noção de mundo está além das capacidades
efetivas de investigação e compreensão de que o homem dispõe. A H. como
objeto da historiografia nunca é um mundo nesse sentido, isto é, a totalidade
absoluta dos acontecimentos humanos. (ABBAGNANO, 2000, p.507).
Historicismo e Anti-historicismo
Historicismo (in. Historicism; fr. Histo-ricisme; al. Historismus; it. Storicismo)
foi o termo empregado pela primeira vez por Novalis (Werke, III, p. 173), a
partir do qual pode ser entendidas três linhas de pensamento diferentes, a
saber: Ia Doutrina segundo a qual a realidade é história (desenvolvimento,
racionalidade e necessidade) e que todo conhecimento é conhecimento
histórico; foi expressa por Hegel (cf. especialmente Geschichte der Philosophie,
I, intr.) e por Croce (La storia come pensiero e come azione, 1938, p. 51). Essa
é a tese fundamental do idealismo romântico (v.), que supõe a coincidência
entre finito e infinito, entre mundo e Deus, e considera a história como
realização de Deus. Pode chamar-se H. absoluto. 2a. A revelação de Deus no
H. ocorre substancialmente por meio da fé, ou em outros termos, na história há
a revelação de Deus no sentido de considerar que cada momento da história
está em relação direta com Deus e é permeado dos valores transcendentes
que Ele incluiu na história, conceito defendido por E. Troeltsch e F. Meinecke
(cf. o verbete HISTÓRIA, 3, e). 3a A doutrina para a qual as unidades cuja
sucessão a história constitui (Épocas ou Civilizações) são organismos globais
cujos elementos, necessariamente vinculados, só podem viver no conjunto;
afirma, portanto, a relatividade entre os valores (que são alguns desses
elementos) e a unidade histórica a que pertencem; sendo inevitável a morte
desses elementos com a morte dessa unidade. Esse é o ponto de vista de
192
Spengler e de outros, e pode chamar-se H. relativista. 4a A corrente da filosofia
alemã que, nos últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX,
debateu o problema crítico da história. O fato de, no séc. XIX, as disciplinas
históricas terem sido alçadas ao nível de ciência criava um problema análogo
ao que Kant se propusera a respeito das ciências naturais: o problema da
possibilidade da ciência histórica, ou seja, da sua validade (ABBAGNANO,
2000, p. 508) e Anti-historicismo (in. Antibistoricisni; fr. Antihistoricisme, ai.
Antihistorismus; it. An-tistoricism) é o termo empregado principalmente por
Croce para designar o Iluminismo, que, como "racionalismo abstrato", teria
considerado "a realidade dividida em supra história e história, num mundo de
idéias ou de valores e num mundo inferior que as reflete ou as refletiu até
agora de modo fugidio e imperfeito e ao qual convirá uma vez por todas impô-
los, fazendo suceder à história imperfeita, ou à história pura e simples, uma
realidade racional perfeita" (Lastoria, p. 51). Desse ponto de vista, são "anti-
históricas" todas as doutrinas que distinguem o que é do que deve ser, isto é,
que não admitem a identificação hegeliana entre realidade e racionalidade. Na
verdade, o Iluminismo não é "anti-historicismo", mas "anti-tradicionalismo", pois
constituiu a primeira e mais radical condenação da tradição como portadora e
garantia de verdade. (ABBAGNANO, 2000, p. 63) =.
Idealismo e Idealismo Alemão
Kant formula o seu próprio idealismo, o único que pensa aceitável: o idealismo
transcendental. Este sublinha a função do posto no conhecimento. O idealismo
transcendental kantiano distingue-se do que Kant chama ―idealismo material‖
no fato de não ser incompatível com o ―realismo empírico‖, antes chega a
justificar este. Não se afirma, portanto, que os objetos externos não existem ou
que a sua existência é problemática; afirma-se unicamente que a existência
dos objetos externos não é cognoscível mediante percepção imediata. O
idealismo transcendental kantiano não fundamenta o conhecimento no dado,
mas em todo faz do dado uma função do posto. O idealismo alemão pós-
kantiano oferece variadíssimos aspectos nos seus grandes representantes: é
característico de todos eles o ter prescindido da ―coisa em si‖. Por isso se
pensa às vezes que o autêntico idealismo coincide com o idealismo alemão
pós-kantiano. Em tal idealismo o mundo é equiparado com ―a representação do
193
mundo‖, o que não significa a representação subjetiva e empírica. De fato, logo
que de uma representação, trata-se de um representar, quer dizer, de uma
atividade representativa que exerce o seu sujeito e que desse modo condiciona
o mundo. O idealismo contemporâneo compreendendo pelo menos as
correntes idealistas a partir das duas últimas décadas do século dezenove
adoptou diversas formas, mas na maior parte dos casos baseou-se num dos
tipos de idealismo manifestados durante a época moderna. (MORA, 2004, p.
129).
Judaísmo Messiânico
É o nome de uma ramificação religiosa que aceita as tradições religiosas
judaicas, porém também acredita na figura de Jesus de Nazaré como o
Messias esperado pela tradição profética judaica. Destacamos este tópico,
justamente para diferenciar o judaísmo do judaísmo messiânico já que este
último não é considerado judaísmo pela maioria dos judeus. [...] O judaísmo
geral em todas as suas ramificações rejeita o judaísmo messiânico como
judaísmo. Para estes, o judaísmo messiânico é apenas um artifício religioso de
disfarçar as doutrinas cristãs em uma aparência judaica para tornar-se mais
facilmente assimilável pelos judeus. Quanto ao Cristianismo, apesar de sua
oposição aos movimentos messiânico-judaicos históricos como a seita dos
nazarenos e dos ebionitas, aceita (as denominações evangélicas) o Moderno
Judaísmo Messiânico que é uma ramificação destas denominações. Segundo
Michael Löwy na Obra Redenção e Utopia, O messianismo judaico contém
duas tendências ao mesmo tempo intimamente ligadas e contraditórias: uma
restauradora, voltada para o restabelecimento de um estado ideal do passado,
uma idade de ouro perdida, uma harmonia edênica quebrada e uma corrente
utópica, aspirando a um futuro radicalmente novo, a um estado de coisas que
jamais existiu. A proporção entre as duas tendências pode variar, mas a idéia
messiânica não se cristaliza senão a partir de sua combinação. Elas são
inseparáveis, uma relação dialética que Scholem evidencia de uma maneira
admirável: ―Mesmo a corrente restauradora veicula elementos utópicos e, na
utopia, fatores de restauração estão presentes.‖ [...] Este mundo inteiramente
novo comporta ainda aspectos que dependem claramente do mundo antigo,
mas o próprio mundo antigo não é mais idêntico ao passado do mundo; é antes
194
um passado transformado e transfigurado pelo sonho explosivo da utopia.‖
(LÖWY, 1989, p. 20/21).
Iluminismo
(in. Enlightenment; fr. Phi-losophiedes lumières, al. Aufklàrung; it. Illuminismó).
Linha filosófica caracterizada pelo empenho em estender a razão como crítica
e guia a todos os campos da experiência humana. Nesse sentido, Kant
escreveu: "O I. é a saída dos homens do estado de minoridade devido a eles
mesmos. Minoridade é a incapacidade de Utilizar o próprio intelecto sem a
orientação de outro. Essa minoridade será devida a eles mesmos se não for
causada por deficiência intelectual, mas por falta de decisão e coragem para
utilizar o intelecto como guia. 'Sapere aude! Tem coragem de usar teu
intelecto!' é o lema do I." (Was ist Aufklàrung?, em Op., ed. Cas-sirer, IV, p.
169). [...] Por I. moderno entende-se comumente o período que vai dos últimos
decênios do séc. XVII aos últimos decênios do séc. XVIII: esse período muitas
vezes é designado simplesmente I. ou século das luzes. [...] A atitude crítica
própria do I. está bem expressa em sua resoluta hostilidade à tradição. Na
tradição, o I. vê uma força hostil que mantém vivas crenças e preconceitos que
é sua obrigação destruir. Aquilo que impropriamente tem-se denominado anti-
historicismo iluminista na realidade é antitradicionalismo: a recusa em aceitar a
autoridade de tradição e de reconhecer nela qualquer valor independente da
razão. (ABBAGNANO, 2000, p. 535/536).
Indústria Cultural
(em alemão: Kulturindustrie) é um termo cunhado pelos filósofos e sociólogos
alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973),
membros da Escola de Frankfurt. O termo aparece no capítulo Kulturindustrie -
Aufklärung als Massenbetrug na obra Dialektik der Aufklärung (em português:
Dialética do Esclarecimento), de 1947. Enquanto que os termos "cultura de
massa" ou "cultura popular" remetem à ideia de que exista uma cultura de elite,
quando deveria remeter à cultura produzida pelo povo, ou ainda, para o povo, o
195
conceito de Indústria cultural esclarece que os conteúdos artísticos ou culturais
pertencentes a uma lógica de mercado, passa a ser, automaticamente,
mercadoria. Portanto, o termo "indústria cultural" foi empregado como
substituição ao termo "cultura de massa", com o fim de se excluir de antemão a
interpretação de que se trata de uma cultura que surge espontaneamente das
massas, tal como a cultura popular. (COELHO, T.). Em Kulturindustrie -
Aufklärung als Massenbetrug na obra Dialektik der Aufklãrung em português,
Dialética do Esclarecimento de 1947, Adorno e Horkheimer discorrem sobre o
termo da seguinte forma: ―Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme
não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma
dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro
da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados
exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a
ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da
imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser
reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos (...) paralisam
essas capacidade em virtude de sua própria constituição objetiva.‖ (ADORNO
& HORKHEIMER, 1997:119). O escutado não tem conseqüências para ele que
pode apenas acenar com a cabeça para que o soltem, porém tarde demais: os
companheiros, que não podem escutar, sabem apenas do perigo do canto, não
da sua beleza, e deixam-no atado ao mastro para salvar a ele e a si próprios.
Eles reproduzem a vida do opressor ao mesmo tempo que a sua própria vida e
ele não pode mais fugir a seu papel social. Os vínculos pelos quais ele é
irrevogavelmente acorrentado à práxis ao mesmo tempo guardam as sereias à
distância da práxis: sua tentação é neutralizada em puro objeto de
contemplação, em arte. O acorrentado assiste a um concerto escutando
imóvel, como fará o público de um concerto, e seu grito apaixonado pela
liberação perde-se num aplauso. Assim o prazer artístico e o trabalho manual
se separam na despedida do antemundo. A epopéia já contém a teoria correta.
Os bens culturais estão em exata correlação com o trabalho comandado e os
dois se fundamentam na inelutável coação à dominação social sobre a
natureza (ADORNO & HORKHEIMER, 1997:45).
196
Juventude Hitlerista ou Pimpf
A Juventude Hitlerista ou Juventude Hitleriana (em alemão, Hitlerjugend) ou
ainda Pimpf foi uma instituição obrigatória para jovens da Alemanha nazista,
que visava treinar crianças e adolescentes alemães de 6 a 18 anos de ambos
os sexos para os interesses nazistas. Os jovens se organizavam em grupos e
milícias para-militares. Esses grupos de indivíduos, doutrinados pelo estado,
existiu entre 1922 e 1945. Antes de a Juventude Hitlerista era um movimento
relativamente pequeno, a partir de 1936 com o alistamento obrigatório, 3,6
milhões de membros haviam sido recrutados, em 1938, o número chegava a
7,7 milhões. Em 1939, já no pré-guerra, foi decretada uma ordem de
recrutamento geral. Em 1936, Hitler unificou as organizações de jovens e
anunciou que todos os jovens alemães deveriam se alistar nos Jungvolk (Povo
Jovem) aos 10 anos, quando poderiam ser treinados em atividades
extracurriculares, que incluíam a prática de esportes e acampamentos, além de
uma doutrinação ao nazismo. Aos 14 anos, os jovens deveriam entrar na
Juventude Hitlerista, sujeitando-se a uma disciplina semi militar, bem como a
atividades externas e à propaganda nazista. Paralelamente à Juventude
Hitlerista, existia a Liga das Jovens Alemãs, onde as moças aprendiam os
deveres da maternidade e os afazeres domésticos, e, assim como os garotos,
aprendiam os verdadeiros objetivos do nazismo, e o que fazer para alcançá-lo.
Aos 18 anos, deveriam alistar-se nas forças armadas ou nas forças de
trabalho. (BARTOLETTI, Susan Campbell).
Materialismo Histórico
(in. Historical materialism; fr. Matérialisme historique; al. Historischer
Materialismus; it. Materialismo storicd). Com este nome Engels designou o
cânon de interpretação histórica proposta por Marx, mais precisamente o que
consiste em atribuir aos fatores econômicos (técnicas de trabalho e de
produção, relações de trabalho e de produção) peso preponderante na
determinação dos acontecimentos históricos. O pressuposto desse cânon é o
ponto de vista antropológico defendido por Marx, segundo o qual a
personalidade humana é constituída intrin-secamente (em sua própria
natureza) por relações de trabalho e de produção de que o homem participa
para prover às suas necessidades. A "consciência" do homem (suas crenças
197
religiosas, morais, políticas, etc.) é resultado dessas relações, e não seu
pressuposto. Esse ponto de vista foi defendido por Marx sobretudo na obra
Ideologia alemã {Deutsche Ideologie, 1845-46). Em vista disso, a tese do M.
histórico é de que as formas assumidas pela sociedade ao longo de sua
história dependem das relações econômicas predominantes em certas fases
dela. Marx diz: "Em sua vida produtiva em sociedade, os homens participam de
determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade: relações
de produção que correspondem a certa fase de desenvolvimento de suas
forças produtivas materiais. Esse conjunto de relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, que é a base real sobre a qual se erige uma
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas
sociais de consciência. (...) Portanto, o modo de produção da vida material em
geral condiciona o processo da vida social, política e espiritual" (Zur Kritik
derpolitischen Okonomie, 1859, Pref.; trad. it., p. 17). Marx elaborou essa teoria
sobretudo em oposição ao ponto de vista de Hegel, para quem é a consciência
que determina o ser social do homem; para Marx, pelo contrário, é o ser social
do homem que determina a sua consciência. Contudo, não se deve achar que
Marx fosse partidário fatalismo econômico, segundo o qual as condições
econômicas necessariamente levariam o homem a determinadas formas de
vida social. Nessas relações econômicas, que dependem de técnicas de
trabalho, produção, troca, etc, o homem é elemento ativo e condicionante.
Portanto, a condicionalidade que a estrutura econômica exerce sobre as
superestruturas sociais é pelo menos em parte uma autocondicionalidade do
homem em relação a si próprio (Deutsche Ideologie, I, C; trad. it., pp. 69 ss.).
Engels falou em seguida da "inversão da práxis histórica", ou seja, de uma
reação de oposição da consciência humana à ação das condições materiais
sobre ela. Mas do ponto de vista de Marx essa inversão não é necessária, visto
não ser a superestrutura que reage à estrutura, mas o homem que, intervindo
com suas técnicas para mudar ou para melhorar a estrutura econômica, se
autocondiciona por meio dela. (ABBAGNANO, 2000, p.652).
Metafísica
(do grego antigo μεηα [metà] = depois de, além de; e Φσζις [physis] = natureza
ou física; lat. Metaphysica; in. Methaphysik; fr. Métaphysique, al. Metaphysik; it.
198
Metafísica). Ciência primeira, por ter como objeto o objeto de todas as outras
ciências, e como princípio um princípio que condiciona a validade de todos os
outros. (ABBAGNANO, 2000, p.660).
Mimésis, Metexis ou mimese
(μίμηζις de μιμεîζθαι) imitação ou representação em grego. Participação.
Princípio teórico básico da criação artítica, que define a imitação da natureza,
em um sentido representativo e não como mera cópia (Platão, 2004, p.87).
Essa palavra foi usada por Platão para indicar um dos modos possíveis de
relação entre as coisas sensíveis e as idéias (Parm., 132 d). Os outros modos
em que Platão concebeu essa mesma relação são: mimese ou imitação (Rep.,
597 a; Tim., 50 c) e presença da idéia nas coisas (Fed., 100 d).
Minimalismo
O minimalismo se refere a uma tendência das artes visuais que ocorre no fim
dos anos 1950 e início dos 1960 em Nova York, alçado o principal centro
artístico com o expressionismo abstrato de Jackson Pollock (1912 - 1956) e
Willem de Kooning (1904 - 1997). A efervescência cultural dos anos 1960 nos
Estados Unidos pode ser aferida pelos diversos movimentos de contracultura e
pela convivência de expressões artísticas díspares - da arte pop, celebrizada
por Andy Warhol (1928 - 1987), às performances do Fluxus - cada qual
exercitando um temperamento crítico particular. O minimalismo aparece nesse
cenário com dicção própria, na contramão da exuberância romântica do
expressionismo abstrato. (ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL).
Modernismo e Pós-modernismo (globalização)
Nilson Thomé, em seu artigo Considerações sobre a Modernidade, Pós-
Modernidade nos Fundamentos Históricos da Educação no contestado,
esclarece o pós-modernismo nos seguintes termos: ―Sejam bem-vindos ao
pós-modernismo: ao mundo do espetáculo da mídia, do sumiço da realidade,
do fim da história, da morte do marxismo e de um grande número de outras
alegações deste milênio‖ [...] (Nilson Thomé). Stabile reitera: ―A sociedade
aproximou-se da beira do mundo agora nivelado, alegam os pós-modernistas,
199
e a única coisa que conseguimos saber com certeza é que não podemos
compreender o que nos levou para lá ou o que existe abaixo de nós, no
abismo.‖ (STABILE, 1999, p. 146). Para Stabile, o pós-modernismo é
imprecisamente identificado como uma época histórica – a sociedade pós-
industrial, pós-fordista ou mesmo pós-capitalista – onde o consumo passou à
frente da produção, tornando a luta de classe (sociedade dividida entre
trabalhadores e capitalistas) um conceito obsoleto, fazendo com que ―as
pessoas não se identificam mais como classe, mas sim, através de identidades
mais particulares, ou seja, de pequenos grupos‖ (op. cit., p. 147). Na sua
apreciação entre a pós-modernidade e os movimentos populares, ela entende
que os princípios totalizantes, da modernidade e do iluminismo, incluindo
apelos à racionalidade, progresso, humanidade e justiça, e mesmo à
capacidade de representar a realidade, foram fatalmente solapados na ótica
pós-modernista. As relações entre modernismo e pós-modernismo são
ambíguas. O individualismo atual, por exemplo, nasceu com o modernismo,
mas o seu exagero narcisista é um acréscimo pós-moderno. O homem de
antes, produto da civilização industrial, mobilizava as massas para as amplas
lutas políticas; o homem de agora, presente na sociedade pós-industrial,
dedica-se às minorias – sexuais, raciais, culturais – e, por isso mesmo, atua
apenas no micro-cosmos do cotidiano. Para Aijaz Ahmad, ―temos que tratar o
pós-modernismo estético como um estilo cultural norte-americano no momento
de sua globalização e, portanto, irrecuperavelmente ligado a certa tendência
hegemônica que é imperialista em suas próprias origens‖ (In: WOOD &
FOSTER, 1999, p. 63). Nesta mesma obra, aqui referenciada, em outro
capítulo, Terry Eagleton expõe que o pós-modernismo conta com várias fontes
- o modernismo propriamente dito; o chamado pós-industrialismo; a
emergência de novas e vitais forças políticas; o recrudescimento da vanguarda
cultural; a penetração da vida cultural pelo formato mercadoria; a diminuição de
um espaço autônomo para a arte; esgotamento de certas ideologias burguesas
clássicas, e assim por diante (op. cit., p. 29). [...] Sendo a globalização
econômica a base material da pós-modernidade, como entende Sanfelice,
indicando a irrupção de uma novidade absoluta no cenário da economia e da
política mundiais, relevamos Ianni, que nos alerta para que a ruptura histórica
promovida pelo globalismo (ou globalização) é a mesma ruptura epistemológica
200
que abala os quadros sociais e mentais de referência, assim, abalando os
significados e as conotações do tempo e espaço, da geografia e história, do
passado e presente, da biografia e memória. Sendo assim, a globalização nos
induz à pós-modernidade – ou vice-versa – no registro de mudanças profundas
e de aceleração do processo de internacionalização (ou mundialização) do
capitalismo. Na mesma direção, Milton Santos tem que a globalização ―é de
certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista‖
(SANTOS, 2003, p. 23). Lembra-nos Milton Santos (op. cit., p. 33) que a
história do capitalismo pode ser dividida em períodos, ou seja, em pedaços de
tempo marcados por certa coerência entre as suas variáveis significativas, que
evoluem diferentemente, mas sempre dentro de um mesmo sistema. Ele
esclarece que um período sucede a outro, e que os períodos são antecedidos e
sucedidos por crises, isto é, momentos em que a ordem estabelecida é
comprometida. O período atual do capitalismo, devido à grande concentração
do capital e do poder, ao aprofundamento da competitividade, à produção de
novos totalitarismos, à confusão dos espíritos, diminuição do poder de Estado e
o empobrecimento das massas, seria, entretanto, ao mesmo tempo um período
histórico e uma crise real econômica, social, política e moral, daí porque a
época atual mostra-se, para nós, como ―coisa nova‖ e esta novidade tem o
nome de ―globalização‖. Para José Claudinei Lombardi, globalização e pós-
modernidade não são ―concepções‖, mas sim, ―movimentos‖. Como
―movimento em curso‖, a globalização não caracteriza ―a morte da
modernidade‖, mas está marcando a superação do moderno. Entende o autor
que pela noção de globalização pretende-se caracterizar a vida num mundo
global que tende ao rompimento ou à dissolução das fronteiras, das
economias, das culturas e das sociedades. A palavra pós-modernidade vai na
mesma direção e está a expressar essa nova condição global da humanidade,
pela qual superou-se a modernidade as crenças dela decorrentes, como razão,
objetividade, totalidade e resoluções (NILSON THOMÉ, 2001, p. XXIII).
Objetivismo e Subjetivismo
Objetivismo (in. Objectivism; fr. Objecti-visme, al. Objektivismus, it.
Oggettivismó) é qualquer doutrina que admita a existência de objetos
(significados, conceitos, verdades, valores, normas, etc.) válidos
201
independentemente das crenças e das opiniões dos diferentes sujeitos.
(Dicionário Online de português) e Subjetivismo (in. Subjectivism, fr. Sub-
jectivisme, ai. Subjectivismus; it. Soggettivismó) é um termo moderno que
designa a doutrina que reduz a realidade ou os valores a estados ou atos do
sujeito (universal ou individual). Nesse sentido, o idealismo é S. porque reduz a
realidade das coisas a estados do sujeito (percepções ou representações);
analogamente, fala-se de S. moral e S. estético quando o bem, o mal, o belo ou
o feio são reduzidos às preferências individuais. Esse termo é empregado na
maioria das vezes com intenções polêmicas, e por isso seu significado não é
muito preciso. (ABBAGNANO, 2000, p. 922).
Obra de Arte
"A expressão obra de arte designa um objeto que não possui nenhuma função
prática mas apenas a função de comunicar uma mensagem estética." (Gullar).
Realismo
(lat. Realismus, in. Realism; fr. Réalisme, ai. Realismus, it. Realismo). Esta
palavra começou a ser usada em fins do séc. XV, designando a corrente mais
antiga da Escolástica, em oposição à chamada corrente "moderna" dos
terministas ou nominalistas, cuja doutrina que não admite a existência do
universal nem no mundo das coisas, nem no pensamento. O primeiro a usá-la
foi provavelmente Silvestro Mazolino de Prieria, em Compendium dialec-ticae,
de 1496 (cf. PRANTL, Geschichte der Logik, IV, p. 292). O R. afirmava a
realidade dos universais (gêneros e espécies), entendendo contudo de
maneiras diferentes essa mesma realidade. No sentido mais geral e moderno,
esse termo foi retomado por Kant na primeira edição de Crítica da Razão Pura,
para indicar, por um lado, a doutrina (oposta à que ele defendia) segundo a
qual o espaço e o tempo são independentes de nossa sensibilidade, que é o R.
transcendental, e por outro lado uma doutrina sua, que admite a realidade
exterior das coisas e que é o R. empírico. Kant dizia: "O idealista
transcendental é um realista empírico que atribui à matéria, como fenômeno,
uma realidade que não precisa ser deduzida, mas é imediatamente percebida"
(Crít. R. Pura, Ia ed., Dialética transcendental, Crítica do quarto paralogismo da
psicologia transcendental). (ABBAGNANO, 2000, p. 834).
202
Realismo na arte
"Movimento francês do final da século XIX que procurava representar
realisticamente a vida contemporânea. Foi uma reação contra o romantismo
que o precedeu." (Cumming). A proposta do Realismo, salienta Cumming, "era
que a arte devia adotar como tema a realidade da vida e mostrá-la sem
elaboração, idealização nem sentimentalismo." "Realismo é um dos poucos
termos usados na crítica de arte em que o estilo e o significado real da palavra
são os mesmos." (Strickland). Giotto foi o pioneiro da representação realista e
Cézanne, na direção oposta, libertou a arte da reprodução da realidade,
reduzindo a realidade a seus componentes básicos (idem). ―A necessidade de
realismo, tanto na arte como na vida, pode resultar da sensação de que a
fantasia, a imaginação e a especulação desviaram a atenção humana", avalia
James Malpas, crítico e historiador da arte, o qual ressalta: "Os realistas
almejam um nível de objetividade que os ‗românticos‘ abominam." Artistas:
Gustave Courbert, francês, Winslow Homer, norte-americano, James Whistler,
norte americano. "O Realismo não foi nem é um estilo de arte. Foi e é ainda
uma tendência artística que tem como objetivo retratar assuntos comuns, sem
distorção ou idealização. É bem diferente do Naturalismo, que só se preocupa
na transcrição literal da natureza acurada. Foi dinamizado por Coubert, que
teve o mérito de organizar a primeira exposição de Arte Realista, em Paris, em
1875. Para alguns estudiosos foi um movimento que se opunha ao naturalismo
acadêmico então reinante, na segunda metade do século XIX, na Europa."
(Marcílio Reinaux). O Naturalismo é característica da arte inspirada diretamente
na natureza, e o artista a representa reduzindo ao mínimo a sua interpretação
pessoal. "O Naturalismo glorifica a natureza e exclui elementos supernaturais e
espirituais. Pode ser romântico (com Jean-Jacques Rousseau) ou
determinístico (com Emile Zola) em literatura. (DICIONÁRIO OBOÉ DE
ARTES).
Representação
(lat. Repraesentatio; in. Re-presentation; fr. Représentation; al. Vorstellung; it.
Rappresentazioné). Vocábulo de origem medieval que indica imagem ou idéia,
ou ambas as coisas. O uso desse termo foi sugerido aos escolásticos pelo
203
conceito de conhecimento como "semelhança" do objeto. Kant estabeleceu seu
significado generalíssimo, considerando-o gênero de todos os atos ou
manifestações cognitivas, independentemente de sua natureza de quadro ou
semelhança (Crít. R. Pura, Dialética, livro I, seç. I), e foi desse modo que o
termo passou a ser usado em filosofia. Hamilton defendia o uso dessa palavra
também em inglês (Lectures on Logic, 2a ed., 1966, I, p. 126).
Retrato
Representação de uma figura individual ou de um grupo, elaborada a partir de
modelo vivo, documentos, fotografias, ou com o auxílio da memória, o retrato
(do latim retrahere, copiar) em seu sentido primeiro ligado à idéia de mimese.
Por essa razão, foi muito utilizado nas academias e escolas de arte para o
aprendizado do ofício e domínio da técnica. Na pintura, o retrato se afirma
como gênero autônomo no século XIV, após ter sido utilizado no Egito, no
mundo grego e na sociedade romana, com finalidades diversas: comemorativa,
religiosa, funerária etc. Giovanni, o Bom (1360), pertencente ao Museu do
Louvre, é considerado um dos primeiros retratos pintados de que se tem
notícia. A partir daí, o retrato passa a ocupar lugar destacado na arte européia,
atravessando diferentes escolas e estilos artísticos. A produção de auto-
retratos segue o desenvolvimento do gênero, desde o início, constituindo um
filão fartamente explorado por artistas de todas as épocas. [...] A difusão da
retratística acompanha os anseios da corte e da burguesia urbana de projetar
suas imagens, na vida pública e privada. [...] Os séculos XVIII e XIX fornecem
novos contornos aos retratos, projetando figuras de segmentos sociais mais
amplos (e não apenas dos círculos aristocráticos) por meio de maior liberdade
expressiva. A reflexão sobre as possibilidades e limites da representação
atravessa a arte do século XX, e encontra tradução particular nos retratos. Um
exemplo específico, como o embate de Alberto Giacometti (1901 - 1966) com
um de seus modelos, o escritor James Lord, tem a vantagem de evidenciar,
pelo acompanhamento da feitura de um quadro, os dilemas do artista moderno
na tentativa de reproduzir o que vê, fora da pauta naturalista. Alguns artistas do
século XX se associam diretamente ao gênero, como Amedeo Modigliani (1884
- 1920), que produziu grande quantidade de rostos, em geral, formas
simplificadas e alongadas. Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a arte
204
pop retoma a figura e o retrato numa outra chave: a partir das imagens
publicitárias, dos quadrinhos, do cinema etc. Também no interior do chamado
hiper-realismo, foi produzida uma grande quantidade de retratos. Após a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a arte pop retoma a figura e o retrato
numa outra chave: a partir das imagens publicitárias, dos quadrinhos, do
cinema etc. (ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL).
Romantismo
(in. Romanticism; fr. Romantisme; al. Romanticismus; it. Romanticismo).
Designa-se com este nome o movimento filosófico, literário e artístico que
começou nos últimos anos do séc. XVIII, floresceu nos primeiros anos do séc.
XIX e constituiu a marca característica desse século. O significado comum do
termo "romântico", que significa "sentimental", deriva de um dos aspectos mais
evidentes desse movimento, que é a valorização do sentimento, categoria
espiritual que a Antigüidade clássica ignorara ou desprezara, cuja força o séc.
XVIII iluminista reconhecera, e que no R. adquiriu valor preponderante. Essa
grande valorização do sentimento é a principal herança recebida do movimento
Sturm und Drang, que constitui a tentativa de, através da experiência mística e
da fé, superar os limites da razão humana, reconhecidos pelo iluminismo.
Segundo os filósofos do Sturm und Drang, Haman, Herder e Jacobi, pode-se
obter com a fé o que a razão não é capaz de dar, sendo a fé entendida como
fato de sentimento ou de experiência imediata. Mas, precisamente por isso,
para os seguidores do Sturm und Drang (entre os quais estiveram Goethe e
Schiller, na juventude) a razão continuava sendo o que fora para o Iluminismo:
uma força humana limitada, capaz de transformar o mundo gradualmente, mas
que não é absoluta nem onipotente, estando, pois, sempre mais ou menos em
conflito com o mundo e em luta com a realidade que se destina a transformar.
Do Sturm und Drang passa-se para o R. somente quando esse conceito de
razão é abandonado e começasse a entender como razão uma força infinita
(onipotente) que habita o mundo e o domina, constituindo sua própria
substância. O princípio da autoconsciência, infinidade da consciência que é
tudo e faz tudo no mundo, é fundamental no R., e dele derivam os aspectos
relevantes do movimento. (ABBAGNANO, 2000, p. 860).
205
Senso communis
(gr. KOIVIÍ aio0r|ecaç; lat. Sensus communis; in. Common sense; fr. Sens
commun; al. Gemeinsinn; it. Senso comune). 3- Na doutrina de Kant o S.
comum é o princípio do gosto, da faculdade de formar juízos sobre os objetos
do sentimento em geral. "Tal princípio só poderia ser considerado S. comum,
que é essencialmente diferente da inteligência comum, que às vezes também é
chamada de S. comum (sensus communis), pois esta não julga conforme o
sentimento, mas conforme conceitos, embora se trate em geral de conceitos
obscuramente representados" (Crít. do Juízo, § 20). A inteligência comum {Ge-
meine Verstand) neste trecho é o S. comum dos escritores latinos e da escola
escocesa, que Kant considera inútil e filosofia (Prol., A 197); essa também é a
opinião de Hegel e de outros (cf. R. CANTONI, Trágico e senso comune, p. 35
ss.) (ABAGNANO, 2000, p. 873).
Socialismo
(in. Socialism; fr. Socialistne, al. Sozialismus, it. Socialismo). Este termo, que
se difundiu na Inglaterra (em oposição a individualismo) nas primeiras décadas
do séc. XIX, tem duas significações principais: ls Uma significação mais ampla,
designando, em geral, qualquer doutrina que defenda ou preconize a
reorganização da sociedade em bases coletivistas. Nesse sentido, são S. o de
Platão e o de Marx, o de Owen e o de Proudhon, o de Lênin e o de Stálin.
Refere-se a esse significado a distinção feita por Marx e Engels entre S.
utópico, para o qual a sociedade socialista é um ideal que não leva em conta
as vias ou os modos de realizá-la, e o S. científico, que, sem apresentar
qualquer ideal, prevê o advento inevitável da sociedade socialista com base
nas próprias leis que determinam o desenvolvimento da sociedade capitalista
(cf. sobre esta distinção, especialmente: ENGELS, Antidühring, 1878,
introdução e cap. I da III parte). Neste sentido, o termo é muito vago e indica
qualquer aspiração, ideal, tendência ou doutrina que tenha em vista alguma
transformação da sociedade atual em sentido coletivista. 2S Em sentido mais
restrito, entendem-se por S. as correntes coletivistas que se distinguem do
comunismo (v.) e se opõem a ele, enquanto: a) excluem a necessidade da
ditadura do proletariado; b) excluem que tal ditadura possa ser exercida, em
nome do proletariado, por qualquer partido político; c) excluem a diferença
206
radical, que se observa nos países de regime comunista, entre a qualidade de
vida da elite dirigente e a da maioria dos cidadãos; d) excluem a subordinação
da vida cultural às exigências do partido, à vontade de seus dirigentes; é)
exigem respeito às regras do método democrático. (ABBAGNANO, 2000, p.
912).
Sturm und Drang
Com esta expressão, que significa "tempestade e ímpeto" e foi título de um
drama de Klinger, escrito em 1776, designa-se um movimento filosófico e
literário que surgiu na Alemanha na segunda metade do séc. XVIII e constitui o
antecedente imediato do Romantismo. As atitudes peculiares desse movimento
são simbolizadas pelas duas palavras acima. Trata-se de manifestações
irracio-nalistas cuja expressão filosófica se encontra nas doutrinas de Haman,
Herder e Jacobi: estas remetem aos limites impostos por Kant à razão apenas
para irem além da razão e recorrer à experiência mística ou à fé (v. FÉ,
FILOSOFIA DA). Do "S. und Drang" passa-se para o Romantismo ao se passar
do conceito kantiano de razão finita à qual se contrapõe a fé ou o sentimento,
atribuindose-lhes poder cognoscitivo superior—para o conceito de razão infinita
ou capaz de atingir o Infinito; isso tem início com Fichte, em quem realmente se
encontra a primeira inspiração do romantismo. (ABBAGNANO, 2000, p.921).
Sublime
(gr. üyoç; lat. Sublime; in. Sublime; al. Erhaben; it. Sublime). 1. Forma
lingüística, literária ou artística que expresse sentimentos ou atitudes elevadas
ou nobres. Segundo Kant, o sentimento do S. tem dois componentes: 1Q
apreensão de uma dimensão desproporcional às faculdades sensíveis do
homem (S. matemático), ou de um poder terrificante para essas mesmas
faculdades (S. dinâmico); 2° o sentimento de conseguir reconhecer essa
desproporção ou ameaça, e, por isso, de ser superior a ambas. Kant diz: "A
qualidade do sentimento do sublime é ser ele, em relação a algum objeto, um
sentimento de padecimento, representado ao mesmo tempo como final; isso é
possível porque nossa impotência revela a consciência de um poder ilimitado
do mesmo sujeito, e o sentimento só pode julgar esteticamente este último
através da primeira" (Crít. do juízo, § 27). Por isso, Kant define o S. como "o
207
que agrada imediatamente pela sua oposição ao interesse dos sentidos" (Ibid.,
§ 29, Obs. geral); com isso entende que, ao advertir a desproporção ou o
perigo que o S. representa para a sua natureza sensível, o homem se dá conta
de que, justamente por advertí-la, não é escravo dessa natureza, mas livre
perante ela. Hegel, por sua vez, expressou na oposição infinito-finito o conflito
típico do Sublime. ―O S. é a tentativa de exprimir o Infinito, sem encontrar, no
reino das aparências, um objeto que se preste a essa representação‖
(Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 483). Por isso, "as formas
por meio das quais aquilo que se manifesta é também abolido, de tal sorte que
a manifestação dos conteúdos é também a superação das expressões, é a
sublimidade: portanto, esta não consiste", como diz Kant, "na subjetividade
pura do sentimento e em seu poder de estar acima das idéias da razão, mas,
ao contrário, baseia-se no significado representativo, em virtude do qual se
refere a uma Substância Absoluta" (Ibid., p. 484). Portanto, Hegel viu no S.
uma forma especial de arte, mais precisamente a arte simbólica. Nele, a dor e
a situação de perigo que, para a estética do séc. XVIII, representam a causa do
S., foram substituídas pela inefabilidade e pela majestade da Substância
Infinita. (ABBAGNANO, 2000, p. 922).
Talento
(lat. Talentum; in. Talent; fr. Talent; al. Talent; it. Talento). O sentido metafórico
desse termo, derivado da parábola evangélica dos T. (Mat., 25, 14-30), é de
"superioridade do poder cognoscitivo, que não provém do ensino mas da
aptidão natural do sujeito". Esta é a definição de T. encontrada em Kant (Antr, I,
§ 54), que também distingue os T. em engenho produtivo, sagacidade e
originalidade: este último é o gênio. Essa doutrina kantiana foi repetida
diversas vezes com poucas variações; está presente até na psicologia
moderna, embora acentuando-se a importância dos chamados T. específicos.
(ABBAGNANO, p. 2000, p.938).
Teoria do Conhecimento, Epistemologia ou Gnosiologia
(in Epistemology; rar. Gnoseology; fr. Gnoséologie; rar. Épistemologie; al.
Erkenntnistheorie; rar. Gnoséologie; it. Toeria delia conoscenza; gnoseo-logia
(muito usado); epistemologia (menos usado). Em italiano, o termo mais usado
208
é gnoseologia. Em alemão, o termo Gnoséologie, cunhado pelo wolffiano
Baumgarten, teve pouco sucesso, ao passo que o termo Erkenntnistheorie,
empregado pelo kantiano Reinhold (Versuch einer neuen Theorie des mensch-
lichen Vorstellungsvermõgens, 1789) foi comumente aceito. Em inglês, o termo
Epistemology foi introduzido por J. F. Ferrier (Institutes of Metaphysics, 1854) e
é o único empregado comumente; Gnoseology é bem raro. Em francês,
emprega-se comumente Gnoséologie e, mais raramente, Épistemologie. Todos
esses nomes têm o mesmo significado: não indicam, como muitas vezes se crê
ingenuamente, uma disciplina filosófica geral, como a lógica, a ética ou a
estética, mas um modo de tratar um problema nascido de um pressuposto
filosófico específico, no âmbito de determinada corrente filosófica, que é o
idealismo. O problema cujo tratamento é tema específico da teoria do C. é a
realidade das coisas ou, em geral, do "mundo externo". Gnosiologia ou Teoria
do Conhecimento é o ramo da filosofia que se ocupa com a validade do
conhecimento em função do sujeito cognoscente. O Conhecimento (gr.
YVÜXTIÇ; lat. Cognitio, in. Knowledge, fr. Connaissance, al. Erkennt-niss; it.
Conoscenzd). Em geral, uma técnica para a verificação de um objeto qualquer,
ou a disponibilidade ou posse de uma técnica semelhante. (...) d) O idealismo
romântico e as suas ramificações contemporâneas afirmaram a tese de que
conhecer significa pôr, isto é, produzir ou criar, o objeto: tese que permite
reconhecer no próprio objeto a manifestação ou a atividade do sujeito. [...] O
conceito do conhecer como processo de unificação domina toda a filosofia de
Hegel. A protagonista dessa filosofia, a Idéia, é a consciência que se realiza,
gradual e necessariamente, como unidade com o objeto. Diz Hegel: "A Idéia é,
em primeiro lugar, um dos extremos de um silogismo, porquanto é o conceito
que tem como fim, acima de tudo, a si mesmo como realidade subjetiva. O
outro extremo é o limite do subjetivo, o mundo objetivo. Os dois extremos são
idênticos no ser Idéia. Sua unidade é, em primeiro lugar, a do conceito, que
num deles é somente por si e, no outro, somente em si; em segundo lugar, a
realidade é abstrata num deles, ao passo que no outro está em sua
exterioridade completa. Essa unidade coloca-se por meio do conhecer"
(Wissenchaft der Logik, III, cap. II; trad. it., p. 282). Assim, conhecer é o
processo que unifica o mundo subjetivo com o mundo objetivo, ou melhor, que
209
leva à consciência a unidade necessária de ambos. Todas as formas do
idealismo contemporâneo atêm-se a essa doutrina. [...] A propósito, a
"revolução coperni-cana" de Kant não consiste em inovar radicalmente esse
conceito de C, mas em admitir que a ordem objetiva das coisas tem como
modelo as condições do C, e não vice-versa. As categorias são, na verdade,
consideradas por Kant como "conceitos que prescrevem leis a priori aos
fenômenos e, portanto, à natureza como conjunto de todos os fenômenos"
(Crít. R. Pura, § 26). Os fenômenos, não sendo "coisas entre si mesmas", mas
"representações de coisas", para tanto precisam, ser pensados e, assim, estar
submetidos às condições do pensamento que são as categorias. Para Kant, a
ordem objetiva da natureza, portanto, outra coisa não é senão a ordem dos
procedimentos formais do conhecer, na medida em que essa ordem se
incorporou em um conteúdo objetivo, que é o material sensível da intuição.
Desse ponto de vista, conhecer não é uma operação de assimilação ou de
identificação, mas de síntese; e como tal deve ser considerada sob outro
aspecto, do C. como transcendência. Pode-se considerar que essa fase da
doutrina do C. como assimilação, segundo a qual o objeto da assimilação é a
ordem, situa-se entre a primeira e a segunda interpretação principal do
conhecer, ou seja, entre a interpretação do conhecer como assimilação e a
interpretação do conhecer como transcendência. [...] Esse conceito do C. como
operação de conexão ou de interligação, que nada tem a ver com a
identificação ou a assimilação com o objeto, é chamado por Kant de operação
de síntese. A síntese é, em geral, "o ato de reunir diferentes representações e
compreender sua multiplicidade em um C." (Crít. R. Pura, § 10). Mas, para
Kant, a síntese cognitiva não é somente uma operação de ligação entre
representações: é também uma operação de ligação dessas representações
com o objeto por meio da intuição. "Se um C. deve ter uma realidade objetiva",
diz Kant, "isto é, referir-se a um objeto e nele ter significado e sentido, o objeto
deve poder ser dado de um modo qualquer. Sem isso, os conceitos são vazios
e, se com eles se pensar, esse pensamento nada conhecerá, mas só estará
brincando com as representações. Dar um objeto que não deva ser opinado
indiretamente, mas representado imediatamente na intuição nada mais é que
ligar sua representação com a experiência (seja esta real ou possível)" [Ibid.,
Analítica dos princípios, cap. II. seç. II). Pensar um objeto e conhecer um objeto
210
não são, pois, a mesma coisa. "O C. Compreende dois pontos: em primeiro
lugar, um conceito pelo qual um objeto em geral é pensado (a categoria) e, em
segundo lugar, a intuição com que ele é dado" (Ibid., § 22). A intuição tem o
privilégio de referir-se imediatamente ao objeto e de, por meio dela, o objeto
ser dado (Jbid., § 1). Por isso, não há dúvida de que a operação de conhecer
tende a tornar o objeto presente em sua realidade: um objeto, entenda-se, que
é fenômeno, já que a "coisa em si", por definição, é estranha a qualquer
relação cognitiva. (ABBAGNANO, 2000, p. 174). Gnosiologia como Aufklãrung
- Etmologia: De aufklären ("esclarecer") + -ung ("-ção"). É o termo kantiano
(1784) relativo a Esclarecimento; Iluminismo. O termo é descrito no Dicionário
de Filosofia Alemão Duden da seguinte maneira: ―Ihr zufolge ist aufklaerung der
ausgang des Menschen aus seiner selbest verschuldeten Unmündigkeit.‖ De
acordo com ele, a aufklaerung (a educação) é a a saída do homem de sua
auto-imposta minoridade. (Tradução nossa). (DUDEN, 2002, p.47).
Totalitarismo
(in. Totalitarianism; fr. Totalitarisme; al. Etatismus; it. Totalitarismo). Teoria ou
prática do Estado totalitário, vale dizer, do Estado que pretende identificar-se
com a vida dos seus cidadãos. Esse termo foi cunhado para designar o
fascismo italiano e o nazismo alemão. Às vezes também é usado para designar
qualquer doutrina absolutista, em qualquer campo a que se refira (é usado
nesse sentido por G. H. SABINE, A History o/Political Theory, 1951, cap. 35;
trad. it., pp. 708 ss.). Muitas vezes, por extensão, entende-se por T. qualquer
forma do absolutismo doutrinário ou político. (ABBAGNANO, 2000, p. 963). T.
é uma forma de governo na qual os dirigentes da nação detêm o total controle
sobre os direitos das pessoas em proveito da razão de Estado. No totalitarismo
só um partido político é permitido, chefiado por um líder absoluto, que se
mantém no poder usando a força e a violência. A liberdade de religião não
existe porque o Estado só permite a existência daquelas Igrejas cujos ministros
cooperem com o governo. Sindicatos livres também são ilegais. O partido
político determina as diretrizes econômicas que o país vai seguir. O governo
exerce total controle sobre os meios de comunicação e, em geral, elimina as
escolas particulares, forçando as escolas públicas a ensinar de acordo com a
linha do partido. O primeiro Estado totalitário moderno foi criado, com a
211
Revolução Comunista na Rússia, em 1917. Outros Estados totalitários do séc.
XX foram a Alemanha nazista, de 1933 a 1945, e a Itália fascista, de 1925 a
1943. (Dicionário Online de português). O conceito de Todo acompanhou a
formação do liberalismo político porque serviu de pedra de toque ou de símbolo
para tudo o que o liberalismo condenava. Como tal, também constitui um dos
temas da retórica revolucionária e liberal a partir do séc. XVI. Hoje esse termo
é bem menos usado, não porque os regimes tirânicos tenham desaparecido ou
porque não haja mais o perigo de que estes se instaurem mesmo onde vigore
certo grau de liberdade, mas apenas porque ele parece pertencer a uma
espécie de retórica fora de moda. Absolutismo totalitarismo são os termos que
substituíram tirania, mas o conceito não mudou, e estas mesmas palavras
significam ainda: regime no qual o arbítrio individual ocupa o lugar da lei;
escravidão imposta por escravos; governo que não pode ser mudado nem
corrigir a não ser pela violência. (ABBAGNANO, 2000, p. 960).
Tradicionalismo
Apego às tradições. Religião Sistema de crença que, no conhecimento da
verdade, dá mais importância à revelação do que à razão.
Tradição
(do latim: traditio, tradere = entregar; em grego, na acepção religiosa do termo,
a expressão é paradosis παραδοζις; in. Tradition; fr. Tradition; al.
Überlieferung; it. Tradizioné). Herança cultural, transmissão de crenças ou
técnicas de uma geração para outra. No domínio da filosofia, o recurso à T.
implica o reconhecimento da verdade da T., que, desse ponto de vista, se torna
garantia de verdade e, às vezes, a única garantia possível. Em Ideen zur
Philosophie der Geschichte der Menschheit (1783-1791), J. G. Herder exaltara
a T. como "cadeia sagrada que liga os homens ao passado, conserva e
transmite tudo que foi feito pelos que os precederam". Hegel exaltou
explicitamente ale insistiu no seu caráter providencial: "A T. não é uma estátua
imóvel, mas vive e mana como um rio impetuoso que mais cresce quanto mais
se afasta da origem. (...) O que cada geração produziu no campo da ciência e
do espírito é uma herança para a qual todo o mundo anterior contribuiu com
sua economia, é um santuário em cujas paredes os homens de todas as
212
estirpes, gratos e felizes, afixaram tudo o que os auxiliou na vida, o que eles
hauriram das profundezas da natureza e do espírito. E esse herdar é, ao
mesmo tempo, receber a herança e fazê-la fortificar" (Geschichte der
Philosophie, ed. Glock-ner, I, p. 29). Nesse sentido, obviamente, a T. é apenas
outro nome para designar o plano providencial da história. Foi esse o ponto de
vista dominante em todo o Romantismo, sendo o chamado tradi-cionalismo
apenas uma de suas manifestações. (ABBAGNANO, 2000, p. 967).
Transcendental
(lat. Transcendentalis; in. Transcendental; fr. Transcendental; al.
Transzendental; it. Trascendentalé). Com este termo ou com transcendente,
começaram a ser denominadas, no fim do séc. XIII, as propriedades que todas
as coisas têm em comum, que por isso excedem ou transcendem as
diversidades de gêneros em que as coisas se distribuem. (ABBAGNANO,
2000, p. 967). [...] para Kant, o T. não se identifica com as condições a priori do
conhecimento humano e dos seus objetos (que são os fenômenos), mas é
considerado o conhecimento (ou a ciência, se existe uma ciência) dessas
condições a priori. Kant diz: "Não chamo de T. o conhecimento que cuida dos
objetos, mas o que cuida do nosso modo de conhecer os objetos, e que seja
possível a priori" (Ibid., Intr., VII). E esclarece: "Não se deve chamar de T.
qualquer conhecimento apriori, mas apenas o conhecimento que possibilite
saber que representações (intuições ou conceito) são aplicadas ou são
possíveis exclusivamente a priori e como isso se dá. Vale dizer: é T. o
conhecimento da possibilidade do conhecimento ou do uso dele a priori" (Ibid.,
Lógica, Intr., II; v. Prol, § 13, obs. III). Desse ponto de vista, T. não é "o que
está além da experiência", mas sim "o que antecede a experiência (apriori)
mesmo não se destinando a outra coisa senão a possibilitar o simples
conhecimento empírico" (Prol, Apêndice, nota [A 204]). No entanto, é preciso
observar que KANT não se atem rigorosamente a esse significado do termo e
que, muitas vezes, chamou de T. o que é independente da experiência ou de
princípios empíricos (cf., p. ex., Crít. R. Pura, O ideal da mão pura, seç. 5,
Descoberta e ilustração da aparência dialética). De qualquer forma, com base
no significado explicitamente aceito por Kant, podem ser chamados de T.
apenas os conhecimentos que têm por objetos elementos a priori, e não estes
213
mesmos elementos. Portanto, são T. a estética, a lógica e as suas partes, mas
não o são as intuições puras, as categorias ou as idéias. Mas mesmo este uso
não é rigoroso, pois Kant chama de T. as idéias e de unidade T. o eu penso
(lbid., § 16). (ABBAGNANO, 2000, p. 971/972).
Vanguardismo
Caráter ou qualidade de vanguarda. 2 Movimento cultural, artístico, científico
etc., que possui tendências combativas e avançadas. (Dicionário Online de
português).
214
B - GLOSSÁRIO ESPECÍFICO (Kant, Hegel e Walter Benjamin)
Belo - Estética - Gosto
(gr. TÒ KaXóv; lat. Pulchrum; in. Beautiful; fr. Beau; al. Schõn; it. Bello). A
noção de Belo coincide com a noção de objeto estético só a partir do séc.
XVIII; antes da descoberta da noção de gosto, o B. não era mencionado entre
os objetos produzíveis e, por isso, a noção correspondente não se incluía
naquilo que os antigos chamavam de poética, isto é, ciência ou arte da
produção. Podem ser distinguidos cinco conceitos fundamentais de B.,
defendidos e ilustrados tanto dentro quanto fora da estética: 1Q o B. como
manifestação do bem; 2Q o B. como manifestação do verdadeiro; 3g o B. como
simetria; 4Q o B. como perfeição sensível; 5Q o B. como perfeição expressiva.
Ia O B. como manifestação do bem é a teoria platônica do belo. Segundo
Platão, só à beleza, entre todas as substâncias perfeitas, "coube o privilégio de
ser a mais evidente e a mais amável" (Fed., 250 e). [...] 2S A doutrina do B.
como manifestação da verdade é própria do Romantismo. "O B.", dizia Hegel,
"define-se como a aparição sensível da Idéia." Isso significa que beleza e
verdade são a mesma coisa e que se distinguem só porque, enquanto na
verdade a Idéia tem manifestação objetiva e universal, no B. ela tem
manifestação sensível (Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 160).
Raramente, fora de Hegel, esse ponto de vista foi apresentado com tanta
decisão, mas reaparece em quase todas as formas da estética romântica,
constituindo, indubitavelmente, uma definição típica do belo. 39 A doutrina do
B. como simetria foi apresentada pela primeira vez por Aristóteles: o B. é
constituído pela ordem, pela simetria e por uma grandeza capaz de ser
abarcada, em seu conjunto, por um só olhar (Poet, 7, 1.450 b 35 ss.). Essa
doutrina foi aceita pelos estóicos e fixou-se por longo tempo na tradição. Foi
adotada pelos escolásticos (p. ex., S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 39, a. 8) e por
muitos escritores e artistas do Renascimento, quando quiseram ilustrar o que
procuravam fazer com a sua arte: p. ex., Leonardo em Trattato delia pittura. 4S
É com a doutrina do Belo como perfeição sensível que nasce a Estética (in.
215
Aesthetics; fr. Esthétique; al. Aesthetik; it. Estética) com esse termo designa-se
a ciência (filosófica) da arte e do belo. A Estética como ―Perfeição sensível"
significa, por um lado, "representação sensível perfeita" e, por outro, "prazer
que acompanha a atividade sensível". No primeiro sentido, é concebida
principalmente pelos analistas alemães e, em particular, por Baumgarten
(Aesthetica, 1750, §§ 14-18). No segundo sentido, foi utilizada, sobretudo pelos
analistas ingleses, em primeiro lugar por Hume (Essay Moral and Political,
1741) e por Burke (A Philosophical Inquiry into the Origin of Ourldeas ofthe
Sublime and Beautiful, 1756), preocupados ambos em determinar os
caracteres que fazem do prazer sensível aquilo que se costuma chamar de
"beleza". O Belo como “Perfeição sensível" em Kant unificou as duas
definições complementares de Belo como perfeição sensível ("representação
sensível perfeita" e "prazer que acompanha a atividade sensível") e insistiu
naquilo que até hoje é considerado seu caráter fundamental, isto é, o
desinteresse. Conseqüentemente, definia o B. como "o que agrada
universalmente e sem conceitos" (Crít. do Juízo, § 6) e insistia na
independência entre prazer do B. e qualquer interesse, tanto sensível quanto
racional. "Cada um chama de agradável o que o satisfaz; de Belo, o que lhe
agrada; de bom o que aprecia ou aprova, aquilo a que confere um valor
objetivo. [...] Com a doutrina de Kant, o conceito de B. foi reconhecido numa
esfera específica, tornou-se um valor, ou melhor, uma classe de valores,
fundamental. Juntamente com o Verdadeiro e com o Bem, entrou na
constituição de uma nova espécie de trindade ideal, correspondente às três
formas de atividade reconhecidas como próprias do homem-intelecto,
sentimento e vontade. Embora essa tripartição tenha sido considerada durante
muito tempo como um dado de fato originário, testemunhado pela "consciência"
ou pela "experiência interior", na realidade é uma noção historicamente
derivada, que, na segunda metade do séc. XVIII nasceu da inserção da
"faculdade do sentimento" entre as outras faculdades (reconhecidas desde o
tempo de Aristóteles): a teorética e a prática. O Gosto (in. Taste; fr. Goüt; al.
Geschmack; it. Gustó) por sua vez, é um critério ou cânon para julgar os
objetos do sentimento. Visto que só a partir do séc. XVIII o sentimento
começou a ser reconhecido como faculdade autônoma, distinta da faculdade
teorética e da prática, a noção de G. foi-se determinando, no mesmo período,
216
em correlação com a noção do critério ao qual essa faculdade, em suas
valorações, está adequada ou deve adequar-se. A faculdade do sentimento
logo recebeu como atribuição a atividade estética: assim, entende-se por G.
sobretudo o critério do juízo estético, e foi com esse sentido que essa palavra
se incorporou no uso corrente. Em seu sentido mais geral, o G. é definido por
Vauvenargues como "disposição para julgar corretamente os objetos do
sentimento" (Intr. a Ia connaissance de l'esprit humain, 1746, 12); e por Kant,
que declara, em Antropologia (§ 69): "O G. (enquanto uma espécie de
sentido formal) leva a compartilhar com outros os sentimentos de prazer
e dor e implica a capacidade agradável, graças a esse mesmo
compartilhar de sentir satisfação (complacentid) em comum com outrem".
Para Kant, o Gosto é uma espécie de senso comum, aliás o senso comum em
seu significado mais exato, porque pode ser definido como "a faculdade de
julgar aquilo que torna universalmente comunicável o sentimento suscitado por
dada representação, sem a mediação do conceito" (Crít. do Juízo, § 40).
Portanto, a universalidade do juízo de G. não é a mesma do juízo intelectual,
pois não se baseia no objeto, mas na possibilidade de comunicação com os
outros. Em outros termos, “o juízo de G. só é universal porque se
fundamenta na comunicabilidade do sentimento.” (Crít. do Juízo, § 39).
Kant também fez a distinção entre o G. como faculdade de julgar e o gênio
como faculdade de produzir (Ibid., § 48).
Do conceito de obra de arte:
Belo sinônimo de beleza natural em Kant
O conceito de obra de arte em Kant compreende a natureza autônoma, livre,
infinita e contemplativa do belo inerente a obra de arte, que pode ser tanto
relativos a objetos estéticos, quanto a natureza. Para Kant, o belo é "o que
agrada universalmente e sem conceitos" (Crít. do Juízo, § 6). À faculdade
autônoma do sentimento, que recebe a teoria estética como atribuição, é a
mesma que compreende o gosto como juízo estético: "a faculdade de julgar
aquilo que torna universalmente comunicável o sentimento suscitado por dada
representação, sem a mediação do conceito" (Crít. do Juízo, § 40). Para Kant
“o juízo de G. só é universal porque se fundamenta na comunicabilidade
do sentimento.” (Crít. do Juízo, § 39). Portanto, a universalidade do juízo de
217
G. não é a mesma do juízo intelectual, pois não se baseia no objeto, mas na
possibilidade de comunicação com os outros. Belo e o Sublime: O belo da
natureza concerne à forma do objeto, que consiste na imitação; o sublime,
contrariamente, pode também ser encontrado num objeto sem forma, na
medida em que seja representada nele uma imitação ou por ocasião deste e
pensada além disso na sua totalidade; de modo que o belo parece ser
considerado como apresentação de um conceito indeterminado do
entendimento, enquanto o sublime como apresentação de um conceito
semelhante a razão. (KANT, 1998, seg. 75).
Belo sinônimo beleza natural em Hegel
"O Belo", dizia Hegel, "define-se como a aparição sensível da Idéia." Isso
significa que beleza e verdade são a mesma coisa e que se distinguem só
porque, enquanto na verdade a Idéia tem manifestação objetiva e universal, no
B. ela tem manifestação sensível (Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner,
I, p. 160). Assim, como para Kant, Hegel compreende o Belo como natural e de
natureza contemplativa e liberal: A consideração do belo é de natureza liberal
um deixar atuar (Gewährenlassen) os objetos enquanto si mesmos livres e
infinitos, e não um querer possuir e utilizá-lo como úteis [156] para necessidade
e intenções finitas, de modo que o objeto não aparecerá como e forçado por
nós, nem combatido e superado pelas demais coisas externas. (HEGEL, 2001,
p. 129). (...) ―O belo é a Idéia enquanto unidade imediata do conceito e de sua
realidade, isto é, ele é a Idéia na medida em que esta unidade está presente de
modo imediato no aparecer (Scheinen) sensível e real. A existência inicial é,
pois, a natureza e a primeira beleza é a beleza natural. (HEGEL, p. 131)
Belo sinônimo beleza natural em Walter Benjamin
Parte do conceito de obra de arte de Kant que aceita Benjamin reflete a
estética Kantiana em termos de juízo de gosto. Na seguinte passagem de sua
tese de doutorado o Conceito de crítica de Arte no Romantismo Alemão,
Benjamin ressalta o conceito de obra de arte de Kant:
No § 1 da Crítica do juízo: ―Para distinguir se uma coisa é bela ou não, nós não
relacionamos por meio do entendimento a representação ao objeto visando o
conhecimento, mas, antes, nós a relacionamos pela imaginação (talvez ligada
218
ao entendimento) ao sujeito e ao sentimento de prazer ou de pena deste.O
juízo de gosto não é, portanto, um juízo de conhecimento; consequentemente,
ele não é lógico, mas estético; o que significa: aquilo cujo princípio
determinante não pode ser senão subjetivo. No § 35 na analítica do sublime
Kant assinala que o ―o juízo do gosto se distingue do juízo lógico, devido ao
fato de que este último subsume uma representação sob conceitos do objeto,
enquanto o primeiro não subsume nada sob o conceito, pois senão sob o
assentimento universal necessário poderia ser imposto por provas. No entanto,
ele é parecido ao juízo lógico na medida em que pretende uma universalidade
e uma necessidade, mas não à partir de conceitos do objeto, e,
consequentemente, puramente subjetivas‖. Como Kant deixa claro mais
adiante, ―o gênio é o talento (dom natural) que fornece regras à arte‖. (& 46).
(KANT apud Benjamin, 2002, p. 139). Assim Benjamin pauta-se em Kant,
quando esse estabelece a identidade entre artístico e belo, ao afirmar que "a
natureza é bela quando tem a aparência da arte"; e que "a arte só pode ser
chamada de bela quando nós, conquanto conscientes de que é arte, a
consideramos como natureza" (Crít. do juízo, § 45).(KANT apud Benjamin,
1980, p. 9).
Belo natural: Aura de objetos históricos relativo ao objeto natural
Embora, Walter Benjamin distinga duas acepções do belo, uma histórica e
outra natural, ambas referem-se, cada uma à sua maneira, ao tema da
distância e como tal remetem ao passado. A primeira, histórica, procura
determinar a relação da "experiência aurática" das correspondências com a
tradição através da noção de culto do objeto estético; e a segunda, o belo
natural, esclarece a intangibilidade do objeto estético relativo a experiência da
aura: É aos objetos hitóricos que aplicaríamos mais amplamente essa noção
de aura, porém para melhor elucidação, seria necessário considerar a aura de
um objeto natural. Poder-se-ia definí-la como a única aparição de uma
realidade longíngua, por mais próxima que esteja. Num fim de tarde de verão,
caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou
de um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se
a aura dessas montanhas e desse galho. Tal evocação permite entender, sem
219
dificuldades, os fatores sociais que provocam a decadência atual da aura.
(BENJAMIN, 1980, p. 9).
Conceito de história segundo Walter Benjamin:
Materialismo histórico e Messianismo judaico
Benjamin em Magia e Técnica, Arte e Política esclarece seu conceito de
história da seguinte forma: 4 ―Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário,
e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo‖. (HEGEL apud Benjamin,
1996, p.223). Reiterando a natureza dessa ressalva ruma Benjamin para o
materialismo histórico: ―A luta classes, que um historiador educado por Marx
jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais
não existem as refinadas e esperituais. Mas na luta de classes essas coisas
espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao
vencedor. Elas se manisfestam nessa luta sob a forma de confiança, da
coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos
tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como
as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um mestirioso
heliotropismo, tenta dirigi-se para o sol que se levanta no céu da história. O
materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais
imperceptível de todas.‖ 5 A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz.
O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no
momento em que é reconhecido. ―A verdade nunca nos escapará‖ – essa frase
de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa
do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que
se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. 6
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ―como ele de fato
foi‖. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo. Cabe ao materialista histórico fixar uma imagem do
passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico,
sem que ele tenha consciencia disso. O perigo ameaça tanto a existencia da
tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo : entregar-
se às classes dominantes, como seu instrumento. Messianismo judaico de
Walter Benjamin: Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao
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conformismo, que quer apoderar-se dela, pois o Messias não vem apenas
como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de
despertar no passado as contelhas do esperança é privilégio exclusivo do
historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se
o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN,
1996, p. 223-225). Segundo Michael Löwy, a formulação mais espantosa e
radical da nova filosofia da história — marxista e messiânica — de Walter
Benjamin se encontra, indubitavelmente, nas Thèses sur le concept d'histoire,
de 1940: A exigência fundamental de Benjamin é escrever a história a
contrapelo, ou seja, do ponto de vista dos vencidos — contra a tradição
conformista do historicismo alemão cujos partidários entram sempre "em
empatia com o vencedor" — Tese VII. É evidente que a palavra "vencedor" não
faz referência a batalhas ou guerras habituais, mas à "guerra de classes", na
qual um dos campos, a classe dirigente, "não cessou de vencer" (Tese VII) os
oprimidos — desde Spartacus, o gladiador rebelde, até o grupo Spartacus de
Rosa de Luxemburgo, e desde o Imperium romano até o Tertium Imperium
nazista. O historicismo se identifica enfaticamente (Einfühlung) com as
classes dominantes. Ele vê a história como uma sucessão gloriosa de altos
fatos políticos e militares. Fazendo o elogio dos dirigentes e prestando-lhes
homenagem, confere-lhes o estatuto de "herdeiros" da história passada. Em
outros termos, participa — como essas pessoas que levantam a coroa de
louros acima da cabeça do vencedor — de um "cortejo triunfal em que os
senhores de hoje caminham por sobre o corpo dos vencidos" (Tese VII). A
crítica que Benjamin formula contra o historicismo se inspira na filosofia
marxista da história, mas tem também origem nietzschiana. Em uma obra de
juventude, Da utilidade e da inconveniência da história (citada na Tese XII),
Nietzsche ridiculariza a "admiração nua pelo sucesso" dos historicistas, sua
"idolatria do factual" (Götzerdienste des Tatsächlichen) e a tendência a se
inclinarem diante da "pujança da história". Já que o Diabo é o senhor do
sucesso e do progresso, a verdadeira virtude consiste em insurgir-se contra a
tirania da realidade e nadar contra a corrente histórica. (Löwy, 1989).