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ISSN 2176-1396
FORMAÇÃO DE LEITORES MIRINS: LITERATURA FANTÁSTICA
Elaine Cristina da Silva Martins1 - UNIVALI
Adair de Aguiar Neitzel2 - UNIVALI
Grupo de Trabalho - Cultura, Currículo e Saberes
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Esta pesquisa foca na análise da literatura infantil contemporânea com abordagem fantástica
para colocar em relevo o potencial desse gênero literário na formação de leitores mirins. Tem
por objetivo analisar os recursos textuais e os aspectos gráficos (layout) que mantêm a
hesitação e a ambiguidade na composição da narrativa mirim contemporânea, categorias que,
segundo Todorov (1975), é a marca da literatura fantástica. Escolhemos como corpus de
análise o livro Clara manhã de quinta à noite, de autoria de Andrey Wood e Don Wood
(2008). Como resultados indicamos: a) o livro analisado possui um conjunto texto-ilustração
que dialoga por meio de paradoxos e contradições; b) o leitor se depara com um espaço
onírico e com personagens que vivenciam aventuras absurdas e fantásticas introduzindo uma
quebra de linearidade no enredo; c) o enredo insólito introduz o leitor em um universo de
devaneios, multiplicando os sentidos e significados, ampliando os limites do inverossímil; d)
a inverossimilhança colabora para manter as categorias da hesitação e da ambiguidade
ampliando, assim, a potência estética do texto literário; e) a literatura fantástica promove a
multilinearidade e amplia os significados do texto. Os aspectos gráficos (layout) do livro junto
aos fragmentos textuais formam uma malha textual provocativa, ampliam a ambiguidade e a
hesitação no texto permitindo a percepção do livro como objeto estético.
Palavras-chave: Formação de leitores. Leitura do literário. Literatura fantástica.
Introdução
[...] Caso se quisesse representar graficamente o conjunto, todo o episódio com seu
ápice, seria necessário um modelo em três dimensões, talvez em quatro – não há
modelo, nenhuma experiência é passível de repetir-se. É neste aspecto que o abraço
e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e
espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis (ÍTALO CALVINO).
1 Doutoranda em Educação pela UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí – Itajaí/SC - Brasil. Professora da
rede municipal de Itajaí. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Literatura pela UFSC. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Coordenadora
Institucional PIBID-Univali. E-mail: [email protected].
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Calvino (1999, p. 160) faz, na epígrafe, uma aproximação entre a leitura e a vida, pois
a leitura é movimento, evoca sensações, emoções e reflexões tão importantes para a formação
quanto à subjetividade que se instaura na relação do sujeito com o mundo. Dessa forma, a
leitura tende a deslocar o leitor do tempo e do espaço, sugerindo-lhe uma aventura que,
segundo Pillar (2011), articula cognição e sensibilidade para que se alcance a produção de
sentidos.
A leitura é uma atividade que atravessa a existência humana. Historicamente, foi
construída com o desenvolvimento cultural. O ato de ler configura-se importante exercício
para o processo de humanização do homem, que, ao longo da sua existência, criou formas de
comunicação e expressão de suas histórias, tradições, ou seja, da sua cultura. Esse processo
perpassa pela manifestação de sua cultura que pode dar-se por meio de linguagens diversas.
Uma delas é a arte literária, a qual se constitui pela via estética, sensível e crítica da realidade
experienciada. A leitura pode ser abordada como um espaço que possibilita conhecer, que
estimula os sentidos, as emoções, as imaginações e contribui, consequentemente, com a
formação cultural e estética do sujeito.
Este artigo tem como objetivo analisar os recursos textuais e aspectos gráficos que
mantêm a hesitação e a ambiguidade no leitor presentes na composição da narrativa mirim
contemporânea, neste caso, na obra Clara manhã de quinta à noite. Entendemos que, após
trinta anos de discussão sobre a formação de leitores, a composição da literatura bem como
suas funções, vem passando por mutações, inovações via artística e estética que a levam para
além da pedagogização da literatura, implicando assim na formação mais sensível e crítica do
leitor mirim. Observamos, por meio desta pesquisa, que o mundo contemporâneo traz em seu
bojo uma nova criança e um novo livro. Como este livro se apresenta à criança? O conceito de
literatura Fantástica, segundo Todorov (1975), passa pela hesitação experienciada de um leitor
que detém um arcabouço literário repleto de verdades atadas ao mundo real, e que diante de
uma imagem/escritura se depara com um mundo aparentemente sobrenatural. O estilo
fantástico promove a ambiguidade durante o procedimento textual que penetra toda a
narrativa - a loucura que aumenta a incerteza, e a dúvida de que tudo é possível. De acordo
com Todorov (1975, p. 47, grifos do autor): “O fantástico, como vimos, dura apenas o tempo
de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que
percebem depende ou não da ‘realidade’, tal qual existe na opinião comum”.
Clara manhã de quinta á noite é uma obra permeada por elementos disparadores da
literatura fantástica, conjunto texto-ilustração que sugere diversos percursos de leitura. Pode
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ser pela primeira página, pela última, ou qualquer outra página. As articulações entre o texto e
a ilustração conjugam uma característica marcante, desvelando uma aparência plural que se
constitui o fio condutor desse texto fragmentado e acidentado.
Esse livro constitui uma surpresa a cada página, sua potência de envolver o leitor está
em sua construção: na narrativa, nas imagens, nas ludicidades, nos sabores e nos dissabores.
O movimento de folhear esse livro, que conjuga texto-ilustração por meio da abordagem
fantástica, revela, ao longo das páginas viradas, um texto que se desdobra, que expande os
sentidos e que se abre para o leitor fruir. A narrativa contemporânea marcada pela visualidade
tende a persuadir, a auxiliar na recepção da obra ou “mesmo na constituição da vaguidade
semântica”. Assim, esse caráter da vaguidade apresenta-se como um traço linguístico que
implica a incerteza no enunciado. A palavra articulada à imagem constrói outro sentido.
Como também a imagem pode “[...] apontar para um sentido, e a palavra, para outro, gerando
a ambiguidade” (RAMOS; PANOZZO, 2011, p. 41).
No caso da obra em análise, entendemos que existe um diálogo que agrega ao texto a
visualidade e vice-versa. No âmbito da vaguidade, tende a seduzir, formar e informar em um
devir de leitura que entusiasma e desafia a desvelar esse texto enigmático e que exige por ora
mais envolvimento. Importa destacarmos que a leitura é sempre movimento, como afirma
Calvino (1999), no entanto há textos mais provocadores que outros, permitindo ao leitor uma
trajetória mutante e acidentada porque não está pronto, e é pelas hesitações, pelas suas linhas
de fuga que se compõe como um texto dinâmico:
[...] movimento invisível que é a leitura, o correr do olhar e da respiração e, mais
ainda, o percurso das palavras através de sua pessoa, o fluxo e as interrupções, os
impulsos, as hesitações, as pausas, a atenção que se concentra ou se dispersa, os
retrocessos, essa trajetória que parece uniforme, mas que é sempre mutante e
acidentada (CALVINO, 1999, p. 173).
Nem dia e nem noite, nem vivo e nem morto é clara manhã de quinta à noite
Noites podem ser manhãs? Acordar e sonhar que tinha morrido, isso é possível? Galos
põem ovos e chamam personagens? Ao dedilhar o livro Clara Manhã De Quinta à Noite, é
possível nos impactarmos com o delirante jogo de sentidos que compõem essa narrativa sem
pé nem cabeça, que rompe com as verdades absolutas e ironiza as improváveis aventuras.
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Figura 1 – Capa de Clara manhã de quinta à noite
Fonte: Wood (2008).
Os americanos Andrey Wood e Don Wood são casados e dividem a autoria de outras
obras, dentre elas O Ratinho, o Morango Maduro Vermelho e o Grande Urso Esfomeado.
Clara manhã de quinta à noite foi lançado em 2004 pela editora Ática, é de autoria de Andrey
Wood e as ilustrações de Don Wood.
Essa narrativa desenvolve-se em meio a uma brincadeira verbo-visual. Com tom
humorístico e revelador de sonhos e delírios potencializa a multiplicação de sentidos do texto.
O layout do livro parte de uma estrutura física no formato retangular. A capa do livro dá
pistas verbo-visuais de que estamos diante de figuras fantásticas que realçam o real e o
imaginário. Ramos e Panozzo (2011, p. 59) dizem que a capa se assemelha a uma embalagem,
que sugestiona a guarda de um mistério, o acionamento da curiosidade, bem como “[...]
sinaliza algumas possibilidades à mente de quem se aproxima do objeto”.
Colocamos em destaque o caráter lúdico dessa narrativa, o jogo de montagem e de
construção de sentidos que inicia na capa. Do ponto de vista das autoras, a capa é um dos
acessos ao livro, possibilita conexões e permite, de certa forma, o estabelecimento de redes
interpretativas. Inicialmente, abre caminho para o olhar, que vagueia pela superfície da
composição controversa que anuncia.
As páginas seguem sem numeração, cada uma delas apresenta um conjunto verbo-
visual que permite um jogo de associação entre o texto e a ilustração que apontam para a
interação e o estabelecimento de conexões de sentidos. O fato de ilustrações e textos
encontrarem-se em uma caixa delimitada por um contorno colorido ou por uma margem
branca que circunda toda a folha não significa limitação para associações e nem fechamento
de ideias em um único significado. Entendemos que esse contorno que circunda as caixas
constitui-se um link colorido, que se faz, às vezes, de refletor para chamar a atenção por meio
da forma. Vemos, assim, a ilustração corroborar para o conjunto da obra - ela desliza da
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aparente perspectiva limitada da folha plana para o modelo de uma escrita dinâmica, aberta às
intervenções do leitor.
Nesse sentido, o layout mantém em todas as páginas a mesma perspectiva da
composição com relação à posição do texto-ilustração na folha, tipo de letra utilizada,
quantidade e tamanho de caracteres, bem como as linhas retas por onde discorrem o texto.
Essa forma chamou-nos a atenção não pela manutenção da perspectiva, mas pela capacidade
comunicativa instaurada pelos mais diversos elementos. É perceptível um diálogo interno com
fotografias, pinturas, cores fortes, figuras reais e do imaginário e textos, bem como um
diálogo externo, que inspira um movimento de intercâmbio, com a mistura de linguagens,
com o todo do livro e com cada fragmento de texto e de ilustração.
As ilustrações dialogam com a narrativa, são formadas pelo amálgama de linhas,
espaços vazios e ocupados, cores, fotos, desenhos infantis, computação gráfica - uma
representação imagética que explora em todos os sentidos os planos um cenário irreal,
sugerindo interpretações diversas que vagam entre o real e o imaginário do leitor. Para Ramos
e Panozzo (2011, p. 42): “Cada modo de ilustrar – a técnica, o material e o suporte, aliados a
um texto verbal – constrói determinado sentido [...]”. Em Clara manhã de quinta à noite a
construção passa por uma significação peculiar, agencia elementos discursivos de forma
hibrida, ou seja, ilustrações e textos convergem para disparar o inusitado, a incerteza, o
assombro; enfim, percepções que permitem a exploração desse universo poroso da literatura
fantástica. Por ora transparece e simula a infinitude que o figurativo e o verbal vão tecendo.
Ao puxar o fio condutor da ilustração, muitos fragmentos, pequenos e grandes,
poderosos e opacos, em muitos momentos, colocam o leitor em interação com a obra e
potencializam a escrita. A construção imagética utilizada nessa narrativa concorre para
provocar o leitor a todo o momento, arranca suspiros e sensações contraditórias que perduram
durante o ato de ler, abala as verdades absolutas do leitor, pois sugerem, constantemente, a
ambiguidade: verdade ou sonho? Portanto, quando o leitor observa as ilustrações, percebe o
foco delirante da representificação que o ajudam e o instigam a imaginar o que está
acontecendo, já que são cenas, por ora, pouco prováveis tanto quanto distantes da realidade,
ou seja, trata-se de uma literatura com caráter fantástico. Na figura 2 a seguir, podemos
observar a exploração gráfica de uma das páginas do livro.
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Figura 2 – Engrenagens que provocam a imaginação do leitor
Fonte: Wood (2008).
Segundo Ramos e Paiva (2014):
A materialidade de algumas obras, assim como sua composição imagética, pode criar instigante mediação entre a realidade que o olho vê e aquilo que o leitor
imagina para a cena. O valor representacional, simbólico e enunciativo das imagens,
é capaz de instaurar e acionar conexões entre o mundo concreto e o sensível
(RAMOS; PAIVA, 2014, p. 431).
Nesse sentido, a ilustração tende a expandir e dimensionar conexões e percepções bem
como a multiplicação de sentidos ao longo do percurso de leitura escolhido para fazer nessa
experiência real de manuseio do livro, ato que articula pensamento-ação-sensações.
A literatura Fantástica, segundo Todorov (1975), passa pela hesitação experienciada
de um leitor que detém um arcabouço literário repleto de verdades atadas ao mundo real, e
que diante de uma imagem/escritura se depara com um mundo aparentemente sobrenatural. O
estilo fantástico promove a ambiguidade durante o procedimento textual que penetra toda a
narrativa - a loucura que aumenta a incerteza, e a dúvida de que tudo é possível. De acordo
com Todorov (1975, p. 47, grifos do autor): “O fantástico, como vimos, dura apenas o tempo
de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que
percebem depende ou não da ‘realidade’, tal qual existe na opinião comum”.
As ilustrações corroboram para promover uma leitura cheia de perigos, mantêm a
dúvida e provocam a hesitação do leitor ao se deparar com o clima de festa que podemos
observar na figura 3 a seguir. É oferecido ao leitor um enlace verbo-visual, que inspira um
clima de bagunça, muitas cores e uma variedade de contradições.
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Figura 3 – Festa, cores e contradições.
Fonte: Wood (2008).
As imagens tendem a revelar tanto o espaço onírico onde se encontra a personagem
quanto às aventuras mais absurdas e fantásticas que ela vivencia. Encontram-se, ali, animais,
flores, pessoas e objetos em um conjunto descontextualizado, isto é, dividindo espaços com
coisas e seres que, normalmente, não compartilham do mesmo universo de relações.
Esse espaço ficcional constitui o cenário da obra, explora ações e sentimentos que os
personagens vivem e, na lógica da narrativa, dão forma a sua existência. As imagens colocam
no jogo das conexões e associações o tempo - aspecto que, pelas imagens, amplia o potencial
enigmático da narrativa. Ao passo que fotografias de pessoas tão reais convivem com seres
inimagináveis, entre a morte e a engrenagem da vida, a alegria e a tristeza, o tempo
cronológico é dilacerado e, nesse momento, não há marcas evidentes de passado, de presente
e de futuro. A narrativa é espaço para muitas vivências estéticas nos mais diferentes tempos.
Os aspectos gráficos conjugam vários elementos que colocam em relevo sua função
estética, função esta que dá condições, segundo Ramos e Nunes (2013, p. 255), de “[...]
enxergar o verbal a partir de outra ótica e criar novas imagens a partir da interação com o que
vê/lê”. A ilustração constitui-se de uma brecha para ler e vivenciar “[...] experiências
sensoriais, imaginativas, desafiadoras, estéticas e de total fruição”. Essa brecha que se abre
“[...] na ordem natural dos acontecimentos e livra o ser humano das normas que o
predeterminam” (NEITZEL, 2009, p. 132) está ligada também ao encadeamento ilógico e
desalinhado com a realidade. Em um tom de delírio, a lógica da narrativa é interrompida por
uma ilustração que promove a sensação de subversão dos fatos. Ela ocupa um espaço que
dissemina a dúvida, uma imagem colhida que causa uma hesitação – leitor e personagem
decidem se o que percebem é ou não proveniente da “realidade” (TODOROV, 1975).
Para Ramos e Paiva (2014), quanto aos percursos de leitura que podem ser operados,
está a interação com as imagens visuais. As imagens são de “natureza de objeto artístico e
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estético” (RAMOS; PAIVA, 2014, p. 435), constituem-se elementos provocativos, são
capazes de estimular sensações, percepções ou até mesmo pela definição das autoras de
desvelar “emoção estética junto ao texto e à produção de sentido” (RAMOS; PAIVA, 2014, p.
435). Essa emoção estética que parte da relação de interação com uma imagem e que remete a
um objeto insólito, irreal, pode, pelo estranhamento, ampliar as possibilidades de interação do
sujeito com a obra ou restringir a vivência estética pela leitura da visualidade.
Outro elemento significativo da ilustração é a repetição da imagem da primeira página
na última folha, o que, a princípio, causa certo estranhamento. Esse recurso promove um
movimento circular na leitura, diluindo as fronteiras entre o início e o fim, não trazendo um
desfecho para as histórias pessoais - e o fio do enredo, já bastante tênue, permanece sem
solução. Esse é um recurso utilizado na literatura adulta, como em O jogo da amarelinha,
onde não apenas há um aspecto de incompletude mas também de inconclusão: “O desfecho
das histórias pessoais é um enigma que se perpetua mesmo após a última página do romance”
(NEITZEL, 2009, p. 98). Um recurso que exige do leitor maior interatividade, no sentido
atribuído por Neitzel (2009), levando-o a ser um produtor de significações.
Figura 4 – Ilustrações que se repetem
Fonte: Wood (2008).
De acordo com Todorov (1975), a ambiguidade perpassa a narrativa em todos os
momentos da aventura: realidade ou sonho? Sua construção traz à tona o distanciamento do
narrador e a hesitação própria do fantástico. Clara Manhã de Quinta à Noite, construído a
partir de paradoxos e contradições, convida o leitor a duvidar da própria escrita. Como
alguém pode sentar para dançar? Clara manhã de quinta feira à noite? Dia ou noite? Como
alguém que acordou pode sonhar? Os limites da verdade e da ilusão são diluídos. As
fronteiras se desfazem.
À luz dos estudos de Todorov (1975, p. 166), compreendemos que o fantástico é uma
característica da literatura que desacomoda, passa pela hesitação do leitor que decide se o
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“[...] acontecimento pertence à realidade [...]”, ou se “[...] é fruto da imaginação ou resultado
de uma ilusão [...]. Por outro lado, o fantástico exige certo tipo de leitura: sem o que,
arriscamo-nos a resvalar ou para a alegoria ou para a poesia”. A literatura fantástica explora
estratégias linguísticas que incitam a integração interna e externa do livro, com os
movimentos e o mundo das personagens. No entanto, o grau de aceitação pela obra ou do
estabelecimento de confrontos depende em parte da proposta do autor e em parte da recepção
do leitor. Nesse caso, a obra que estamos nos detendo oferece um amplo material que explora,
em exaustão, o nonsense, ousando estruturas não convencionais, seja pelo texto verbal seja
pelas imagens.
A narrativa compõe-se de mortos que andam entre os vivos, convidados contentes que
choram, pessoas que sentam para dançar, seres inanimados como uma batata que se traja com
roupa e que desperta a paixão de uma mulher; enfim, fatos distantes da nossa realidade, os
quais se tratam de situações sem explicações diante das leis que regem o real. Assim, surge a
incerteza entre ser real ou imaginário. O efeito fantástico pensado por Todorov (1975) é
exatamente a hesitação entre o real ou o sobrenatural.
Nesse sentido, é preciso que o leitor afaste-se da condição de intérprete do texto, de
tentar buscar sentidos ao pé da letra e perceber que a narrativa oscila entre o alegórico e o
poético. Um texto calcado na diferença, no ausente e utópico, coloca o leitor em um estado de
perda, de procura, é uma areia movediça permeada pela “visão ambígua”, como podemos
perceber na figura 5 em que texto-imagem são partes desse universo dos contrários e de
múltiplos sentidos.
Figura 5 - Vestindo-se para o enterro
Fonte: Wood (2008).
Trata-se de um texto ambíguo que vai deixando lacunas, dúvidas entre o real e o
sobrenatural. Anuncia um certo delírio em um universo de muitas dúvidas, um terreno
movediço, de névoa. Essa névoa que tem no texto implica uma interação maior do que ler
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uma obra onde tudo está dito, pronto e acabado. Nesse sentido, a névoa da vaguidade das
diversas informações textuais e visuais que implodem e recriam os limites do real e do
imaginário implicam na organização de um projeto literário disposto a abalar as estruturas de
uma leitura linear, deslocando o leitor que procura o início-meio-fim na respectiva ordem.
Junto às suas sensações de estranhamento diante do fascínio que as aventuras
fantásticas provocam, está o desejo de estabelecer uma relação movente e analógica entre as
palavras e expressões que constituem a narrativa ao longo das páginas. Podemos observar
essa construção ao ler as seguintes passagens: Os convidados, contentes, choram o tempo
inteiro / Até os mais pobres, cheios de dinheiro.
Figura 6 - Convidados que choram
Fonte: Wood (2008).
O enredo é um amálgama de oximoros que fragmentam o texto. Esses paradoxos
criados constituem uma malha textual provocativa, introduz a ambiguidade na percepção do
leitor sobre o texto caracterizando, assim, o fantástico. Apesar das palavras terem sentido
contrário, fazem sentido porque induzem o leitor ao apagamento de determinados termos que
são durante a leitura obnubilados. Um texto dessa natureza não se centra na referencialidade,
ao contrário, antes coloca em evidência sua função poética:
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Numa clara manhã de quinta-feira à noite, Acordei e sonhei que tinha morrido. Meu galo vermelho põe ovo e me chama: “Có-có-ri-có-có!” E me tira da cama! Vesti a
roupa para o meu enterro – Uma festa bem simples, com muito luxo. Os convidados,
contentes, choram o tempo inteiro. Até os mais pobres, cheios de dinheiro. Quando a
banda tocou “Gelatina de Osso”, Todos nós sentamos para dançar. Aí apareceu uma
batata argentina, Sem roupa, com calças de gabardina. - Que bom ver você
novamente – falei. E à primeira vista me apaixonei. - Vamos comer, que morro de
sede – ele diz. E de uma só bocada comi o infeliz. - Veja o que fez comigo! – gritou
o crocodilo. - Comeu o estranho, o meu melhor amigo. – Eu não fiz isso – sorri
arrependida. – E não vou fazer de novo – é o que lhe digo. Como tenho pressa,
demoro a contar: A batata argentina pudemos salvar. Aí o crocodilo fez nosso casamento, E ficamos solteiros no mesmo momento. Eu sabia, eu sabia, eu tinha
certeza, Por isso gritei muito surpresa: - Aí vem um bebê, sem nenhum cabelo, Com
topete na testa como um novelo. Eu sou mentirosa, mas a história é verdade. E o fim
acontece antes da metade. Se você acreditou nessa mentira verdadeira, Recomece,
do fim, toda a brincadeira(WOOD, 2008).
Essa narrativa sugere um processo de busca, ao percorrer a história, em um
movimento de ler, de reler; Em um devir entre fragmentos textuais e ilustrações opera-se um
jogo montagem para interpretar e multiplicar sentidos. Do ponto de vista de Neitzel (2009) e
Wandelli (2003), essa simultaneidade acontece por meio do jogo de ambiguidades acerca do
tempo-espaço, do texto e da ilustração que, por ora, convergem ou divergem, não a fim de
fundirem-se, mas de entrelaçarem-se e ampliar o distanciamento da realidade. Um texto que
revela mundos microscópicos, tão diversos quanto opostos que servem como passagem “[...]
do mundo sonhado ao construído e novamente ao sonhado, num processo de circularidade
que, pelo poder sugestivo dos símbolos, determina espaços voláteis, de combate e hostilidade,
mas também de concórdia e harmonia” (NEITZEL, 2009, p. 132).
Os autores estrategicamente constroem uma narrativa verbo-visual de forma
fragmentada, cada página lembra o todo, o todo remete a outro fragmento, movimento este
que instiga a busca de cada nó que se encontra reforçando a concepção que “[...]o livro nunca
é algo acabado, terminado pelo ponto final que o autor coloca na última linha, na última
página” (NEITZEL,2009, p. 60).
Entendemos que a narrativa tem o final em aberto, as proposições textuais e visuais
sinalizam outra forma de dar continuidade dizendo, na última frase: “Se você acreditou nessa
mentira verdadeira, recomece do fim toda a brincadeira”. E a história torna-se reversível,
outro caminho pode ser percorrido, mesmo que seja pela confusão promovida pelos
desdobramentos textuais. Implica dessa forma a oportunidade de começar a ler a história de
trás para frente. Essa possibilidade aparece nas entrelinhas da última página e deixa explícito
um processo de escrita/leitura com tom de história infinita ou labiríntica.
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Considerações Finais
Ao revisitar nosso objetivo de pesquisa que é analisar – à luz da teoria fantástica – os
recurso textuais e aspectos gráficos que mantêm a hesitação e a ambiguidade na composição
da narrativa mirim contemporânea, nesse caso, na Clara manhã de quinta à noite,
identificamos que muitos são os recursos que promovem a multilinearidade e ampliam os
significados do texto. Balizados pelos estudos de Todorov acerca dos recursos literários que
mantêm a hesitação e a ambiguidade, buscamos evidenciar como um texto poroso e aberto
pode ser provocativo e ampliar a percepção estética do leitor, elevando o livro à categoria de
objeto artístico.
O jogo de hesitações e ambiguidades que os textos verbais e não verbais compõem
oferecem linhas de fuga, passagens inverossímeis ao leitor que o permitem penetrar em
espaços voláteis e afirmar que essa obra é um texto plural, na acepção de Barthes (1992). A
impossibilidade de atribuir um ponto de vista, uma origem, uma enunciação e, portanto, uma
forma de forçar “o muro da propriedade” das palavras, segundo Barthes, é uma das medidas
que permite apreciar o caráter plural de um texto. Temos, portanto, um texto escrevível.
Ao longo de nossa pesquisa, sinalizamos as diversas possibilidades de um texto
mostrar-se multilinear. Nesse momento, podemos resumi-las indicando que Clara manhã de
quinta à noite é um livro que: a) possui um conjunto texto-ilustração que dialoga por meio de
paradoxos e contradições; b) seu enredo explora um espaço onírico e os personagens
vivenciam aventuras absurdas e fantásticas que introduzem uma quebra de linearidade no
enredo; c) o enredo insólito insere o leitor em um universo de devaneios, multiplicando os
sentidos e significados, ampliando os limites do inverossímil; d) a inverosimilhança colabora
para manter as categorias da hesitação e da ambiguidade ampliando, assim, a potência estética
do texto literário; e) a literatura fantástica promove a multilinearidade e amplia os significados
do texto. Os aspectos gráficos (layout) do livro junto aos fragmentos textuais formam uma
malha textual provocativa, ampliam a ambiguidade e a hesitação no texto permitindo a
percepção do livro como objeto estético.
Logo, a narrativa infantil contemporânea, por suas inovações, pode provocar abalo nas
atuais estruturas escolares. O professor que privilegia essa literatura na formação de leitores
mirins passa a trabalhar a leitura pela via artística e estética, visando à formação de leitores
mais sensíveis e críticos.
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REFERÊNCIAS
CALVINO, Í. Se um viajante numa noite de inverno. Tradução Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das letras, 1999.
NEITZEL, A. de A. O jogo das construções hipertextuais. Florianópolis: Ed. Univali, 2009.
PILLAR, A. D. (Org.). A educação do olhar no ensino das artes. Porto Alegre: Mediação, 2011.
RAMOS, F. B.; NUNES, M. F. Efeitos da ilustração do livro de literatura infantil no processo
de leitura. Educar em Revista. UFPR, Curitiba, Brasil, n. 48, p. 251-263. Abr./jun. 2013.
RAMOS, F. B.; PAIVA, A. P. M. A dimensão não verbal no livro literário para criança. Revista Contrapontos [online], v. 14, n. 3, p. p. 425-447, set./dez., 2014.
RAMOS, F. B.; PANOZZO, N. S. P. Interação e mediação de leitura literária para a
infância. São Paulo: Global, 2011.
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.
WANDELLI, R. Leituras do hipertexto: viagem ao Dicionário Kazar. Florianópolis: Ed. da
UFSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.
WOOD, A. Clara manhã de quinta à noite. 1. ed. 3. imp. São Paulo: Ática, 2008.