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david grossman Fora do tempo Tradução Paulo Geiger

FORA DO TEMPO - companhiadasletras.com.br · — Mas o que vai ver agora? O que restou para ver? ... — Pensei que nós ... no momento em que nos comunicaram

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david grossman

Fora do tempo

Tradução

Paulo Geiger

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Copyright © 2011 by David Grossman

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesade 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título originalNofel mi-jutz la-zman

Capawarrakloureiro

PreparaçãoAna Cecília Agua de Melo

RevisãoAna Maria BarbosaMariana Zanini

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Grossman, DavidFora do tempo / David Grossman ; tradução Paulo Geiger.

— 1a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2012.

Título original:Nofel mi-jutz la-zman.isbn 978‑85‑359‑2156‑4

1. Ficção israelense i. Título.

12‑08784 cdd‑892.43

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura israelense 892.43

[2012]Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532‑002 — São Paulo — spTelefone (11) 3707‑3500Fax (11) 3707‑3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

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anotador dos anais da cidade: Na hora em que estão sen-tados à mesa do jantar, o rosto do homem de repente se trans-forma: num movimento brusco ele empurra o prato a sua frente. Facas e garfos tilintam. Ele se levanta e fica de pé, e parece não saber onde está. A mulher se sobressalta em sua cadeira. O olhar dele paira em volta dela e não se fixa, e ela — já a atingira uma vez a desgraça — sente de imediato, eis aí outra vez, já toca em mim, seus dedos frios em meus lábios. Mas o que aconteceu? Ela sussurra com os olhos, e o homem olha para ela com espanto —

— Eu preciso ir.— Para onde?— Para ele.— Para onde?— Para ele, para lá.— Para o lugar onde aconteceu?— Não, não. Para lá.— O que é lá?— Não sei.

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— Você está me assustando.— Para vê-lo só mais um instante.— Mas o que vai ver agora? O que restou para ver?— Talvez lá se possa ver? Talvez até falar com ele?— Falar?!

anotador dos anais da cidade: E agora os dois se dão conta. Despertam.

— A sua voz, mulher.— Ela voltou. A sua também.— Tive tanta saudade da sua voz.— Pensei que nós... que jamais, nunca mais —— Mais do que da minha voz, tive saudade da sua.— Mas o que é lá, pode me dizer? Não há um lugar assim,

não existe lá!— Se vão para lá, lá existe.— E não voltam de lá, ninguém voltou ainda.— Porque só mortos foram para lá.— E você, como irá?— Eu irei para lá vivo.— E não vai voltar.— Talvez ele espere que vamos até ele.— Ele não. Já faz cinco anos que ele é só não e não.— Talvez ele não compreenda como desistimos dele assim,

tão depressa, no momento em que nos comunicaram...— Olhe para mim. Nos meus olhos. O que está fazendo co-

nosco? Sou eu, você vê? Somos nós, nós dois. Esta é nossa casa. A cozinha. Vem, sente aqui. Vou servir a sopa.

homem:É bela —tão bela —

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é belaa cozinhanesta hora delaquando você serve a sopae aqui é quente e ameno, e o vaporcobre a vidraça friada janela —

anotador dos anais da cidade: Talvez por causa dos anos de longo silêncio, sua voz é rouca, extingue-se num murmúrio. Ele não tira dela os olhos. Ele a olha tanto que a mão dela co-meça a tremer.

homem:E mais belos que tudo seus braços,redondos, macios,a vida está aqui,querida, por um momento esqueci:a vida está no lugarem que vocêserve a sopasob o círculo de luz.Bom ter lembrado:estamos aquie ele lá,e há uma fronteira eternaentre aquie lá.Por um momento esqueci —estamos aquie ele —

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mas não é possívelmais é impossível!

mulher:Olhe para mim. Não,não com esse olharvazio,contido.Volte para mim, para nós,volte. Fácil,tão fácil renegara nós, o círculode luz, essesbraços macios,a ideia de que voltamosà vida,e de que o tempoapesar de tudopõe curativosfinos —

homem:Não, não é possível maisassim, não é possível maisque nós,que o sol,que os relógios, as lojas, os bares,que a lua,os casais, os pares,que árvores nas aleiasverdejantes, que sangue

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nas veias,que primavera e outono,que genteinocenteexistenteno mundo.Que filhosdos outros,que sua luze calor —

mulher:Cuidado,você tem ideiastão frágeiscomo teias —

homem:À noite eles chegaramtrazendo na bocaa nova.Longo caminho fizeram,graves, calados,e talvez duranteprovavam, lambiama nova, furtivamente.Num espanto de criançasconstataram que se pode retera morte na boca comouma balade veneno, à qual eles por milagresão imunes.

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Abrimos para eles a porta,esta aí, aqui estávamos,você e eu,ombro a ombro,e elesno umbrale nósdiante delese elespiedosamentecontidose silenciososali de pésopraram em nóso ventodos mortos.

mulher:Era um silêncio terrível.Em volta triturava um fogofrio. Eu disse: esta noite viriam,senti-o. Pensei:venha, o caos, o vazio.

homem:De algures, de longe,ouvi você dizer:não temam,quando ele nasceunão gritei, tampouco agoragritarei.

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mulher:Nossa vida de antescontinuoua brotar em nósuns minutos mais.A fala,os gestos,expressões faciais —

homem e mulher:Agoranum instante, não mais,afundamosos dois. Calamoscom palavras iguais.Não por elechoramos, o canto da vidaantes vividachoramos, o admiravelmentesimples, aleveza, orostoliso esem rugas.

mulher:Mas nos prometemos,juramos,ser, sofrerpor ele, ter saudadese viver.

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E agora, espere,o que houve, de repente, para que você assim se dilacere?

homem:Depois daquela noiteveio um estranho e seguroumeu ombro e falou: salveo que restou.Lute,tente curar.Olhe nos olhosdela, grudenos olhos dela,todo o temponos olhos dela —sem descurar.

mulher:Não volte para lá,àqueles dias não devevoltar mais,não volte seu olharpara trás —

homem:Naquele escuro eu via minha frente um olhochorosoe um olhoenlouquecido.

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O olho de um homemterminale o olhode um animal.Animal já metadena boca da fera, uma presa dessangrando,desvairando,de teus olhos me encarava —

mulher:A terraabriu sua boca,a nós engoliue vomitou.Não voltepara lá, parao que o seduz,não saia um passo sequerdo círculo de luz —

homem:Não pude, nãoousei olharentão seu olhar,aquele olhoenlouquecido,de você não estar —

mulher:Não vi você,

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não vinadanem no olho do homemnem no olhodo animal. A raizde minh’alma arrancadanum calafrio.Frio, fazia muito friotambém agora faz frio.Venha dormir,o agora é tardio.

homem:Cinco anoscalamosaquela noite.Sumiu você primeiro,depois sumi eu.Em você foi bomo silêncio, e em mimme apertoua garganta. E umaapós outra morreramas palavras, e ficamoscomo uma casaem que lentamente se apagamtodas as luzes,até que se feza escuridão da mudez —

mulher:E nela

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de novo o achei,e a ele. Envolveunosso trio um manto sombrio,enrolados nele estávamoscom ele, e mudos estávamoscomo ele. Trêsfetos que a tragédiaconcebeu —

homem:E juntosnascemosno outro lado,sempalavras, semcores, e aprendemosa vivero negativoda vida

(silêncio)

mulher:Olhe,de palavra em palavrao algo secreto entre nósse esgarça, se dissolvecomo um sonhoque a luz de um luzeiroilumina. Pois havia no calarum milagre,

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e um segredo no silêncioque nos tragou, junto com ele,em que ficamos sem vozcomo ele, em que falamosna língua dele.E o que têm as palavras —o que tem a sortedas palavrasa ver com sua morte?

anotador dos anais da cidade: No silêncio que cai depois do grito dela o homem recua até suas costas tocarem a pare-de. Em movimentos lentos, como a dormir, ele estende os dois braços para os lados e caminha ao longo da parede. Contorna a pe quena cozinha, em toda a sua volta —

homem:Conte,me contede nósnaquela noite —

mulher:Sinto aqui algumsegredo: você rasgaas ataduras parapoder bebero seu sangue, raçãono caminhopara lá.

homem:Aquela noite,

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me contede nósna noiteaquela —

mulher:Vocêmerodeia comoum predador. Me cercacomo um pesadelo.Aquelanoite, a noiteaquela.Você quer ouvir sobreaquela noite.Nestas cadeiras sentamos,você sentouaí, eu aqui. E vocêfumou, eu me lembrodo seu rosto vindoe indo na fumaça, e lentamenteficando um poucomenos, menosvocê, menosgente.

homem:Caladosaguardamos a manhã.Manhãnãoveio.