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PREFÁCIO Marilyn Strathern especialmente para esta edição da coleção Antropologia Hoje Em seus comentários, Elizabeth Tonkin, junto com Stephen Tyler e George Marcus, disse algo que visto em retrospectiva me dá um enorme prazer interior. Eles pegaram uma dimensão da popularidade de Frazer com a qual eu não lidava em absoluto, a saber, que contra um pano de fundo do darwinismo, nas palavras de Tonkin, a insistência dele em ver a Bíblia como folclore abasteceu tanto os céticos quanto os ecumênicos em igual medida - o que Tyler e Marcus apontam como sendo uma reconciliação entre pagãos e cristãos, que tornou a Bíblia crível de uma nova maneira. A razão do prazer é que eles me fizeram lembrar por que a palestra fora dedicada a meu pai, Eric Evans. Fole-lore in the Old Tes- tamentestava no meio de seus livros favoritos (lista longa!), incluindo o quase contemporâneo The God 01 the Witches, de Margaret Murray. O livro de Murray, sobre o paganismo que persistiu ao largo da cristandade medieval, me fora familiar na época de colégio. Darwinista assumido, meu pai se colocaria ao lado dos céticos e livres-pensadores. A sua posição, por sua vez, suponho eu, era um comentário renitente sobre o que, para ele, havia sido uma rígida criação cristã. Sem dúvida um dos contextos em que escrevi a palestra Fora de contexto, talvez eu recorde os interesses de meu pai de maneira mais viva agora do ):

Fora de Contexto - Strathern

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Texto: Fora de ContextoMarilyn Strathern

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PREFÁCIOMarilyn Strathern

especialmente para esta edição da coleção Antropologia Hoje

Em seus comentários, Elizabeth Tonkin, junto com Stephen Tyler eGeorge Marcus, disse algo que visto em retrospectiva me dá um enormeprazer interior. Eles pegaram uma dimensão da popularidade de Frazercom a qual eu não lidava em absoluto, a saber, que contra um pano defundo do darwinismo, nas palavras de Tonkin, a insistência dele em vera Bíblia como folclore abasteceu tanto os céticos quanto os ecumênicosem igual medida - o que Tyler e Marcus apontam como sendo umareconciliação entre pagãos e cristãos, que tornou a Bíblia crível de umanova maneira. A razão do prazer é que eles me fizeram lembrar por quea palestra fora dedicada a meu pai, Eric Evans. Fole-lore in the Old Tes-tamentestava no meio de seus livros favoritos (lista longa!), incluindo oquase contemporâneo The God 01 the Witches, de Margaret Murray. Olivro de Murray, sobre o paganismo que persistiu ao largo da cristandademedieval, me fora familiar na época de colégio. Darwinista assumido,meu pai se colocaria ao lado dos céticos e livres-pensadores. A sua posição,por sua vez, suponho eu, era um comentário renitente sobre o que, paraele, havia sido uma rígida criação cristã.

Sem dúvida um dos contextos em que escrevi a palestra Fora de contexto,talvez eu recorde os interesses de meu pai de maneira mais viva agora do

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Fora de contexto Prefácio

que eu tinha consciência na época, pois com o tempo a sucessão geracio-nal tornou-se mais óbvia. Em um nível, a própria palestra é sobre relaçõesentre gerações e - por mais extraordinário que pareça agora - sobre o fatode o lugar onde tive minha própria segunda criação, no Departamentode Antropologia Social, em Cambridge, onde eu fui uma estudante degraduação de 1960-63, apoiar-se com força sobre a perspectiva de quenão havia antropologia "real" antes de Malinowski. Era o apogeu da entãochamada Escola Britânica de Antropologia Social. Uma das razões paraessa perspectiva era precisamente que, na sobretudo curta história queos estudantes britânicos absorviam, a antropologia pré-rnalinowskianaera dominada por Frazer. Não é que não ouvíssemos falar em Boas ouem Morgan, e certamente éramos examinados sobre Marx, Weber eDurkheim, mas isto tudo era de fato história, enquanto o que ocorreradesde Malinowski era nosso presente vivo. A figura que encapsulou aprópria possibilidade de ruptura com o passado foi Frazer.

É convencional em boa parte da escrita antropológica, assim como naescrita acadêmica em geral, identificar um problema ou quebra-cabeçaque o texto que se tem em mãos busca resolver. Estou certa de que di-vido com muitos colegas a experiência de descobrir que um problemaintelectual também é um problema pessoal, ou melhor, que o problemaé conduzido por uma necessidade intelectual, que também é emocional.Isto foi verdadeiro aqui. O convite, em 1985, para conferir a PalestraFrazer, que é uma das poucas palestras públicas no calendário britânicoque não é vinculada a uma instituição (ela circula entre quatro delas),me motivou a concentrar-me sobre (aquilo que eu logo descobri ser) oenigma de minha "ignorância" quanto à antropologia pré-rnalinowskiana.Ela tocava numa situação na qual eu estivera, e talvez este seja um doslegados do trabalho de campo - alguém movido por ou aberto a umevento, relacionamento, conceito, ou o que seja, em particular. Claroque ser movido dessa maneira não é algo restrito ao "trabalho de campo"enquanto tal. De fato, os muitos anos que passei depois disso na chefiado departamento, primeiro na Universidade de Manchester, depois em

Cambridge (o que incluiu o período em que era raro haver qualqueroutra cátedra no departamento, e a chefia era, por assim dizer, vitalícia),criaram "problemas" administrativos, difíceis de lidar em conjunto naprática, e quebra-cabeças sobre os quais pensar, o que conduziu a meuinteresse de pesquisa por culturas de auditoria. Estou certa de que nãopreciso explicar para o público presente que o paradigma inicial, paramim, havia muitos anos, era o da antropologia feminista. Não há dúvidade que ter sido pega pelas aspirações do movimento feminista da décadade 1970 trouxe um ímpeto especial para o tipo de trabalho conceitualque fiz sobre relações de gênero nos anos 1970-80. Eu saía do meucaminho para referir-me à "pesquisa feminista" em qualquer contextoque oferecesse a oportunidade, como fiz por ocasião da Palestra Frazer.

Mas ser arrastada para o deslocamento geracional entre Malinowski eFrazer tinha outra vantagem para tudo isso em conjunto. Literalmenteuma geração (+25 anos) desde que eu embarcara na antropologia sociale aprendera a apreciar a expansão de horizontes dada primeiro pela an-tropologia feminista e depois pela marxista, em meados dos anos 1980havia uma mudança de tipo diferente no ar. Estou certa de que qualquerum, ao olhar para a bibliografia e ver ali Clifford e Marcus, assumiriaque eu estava escrevendo em reação a seu trabalho desestabilizador. Naverdade, a palestra foi entregue antes de o livro chegar às minhas mãos,embora eu tivesse lido rascunhos dos capítulos de Rabinow e Marcus[ver nota 41]; as referências vieram durante a revisão. Não digo istopara afirmar autoria mas, muito pelo contrário, isso diz respeito ao quesignifica dizer que as ideias estavam "no ar". Havia um interesse cres-cente na escrita etnográfica como um gênero literário (Boon, Marcus eCushman, Thornton, Tyler) e as implicações políticas disto (Clifford,Crick). Minha impressão de lembrança é que o fenômeno que estavapara ser amplamente abordado com relação a práticas de escrita emantropologia, "pós-modernismo", era aparente antes de haver acordosobre o termo para ele. Meus próprios usos desse termo (extraídos deFoster, entre outros) eram hesitantes ao extremo, e eu o empregava na

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apresentação da palestra de uma maneira de certo modo experimental("será que funcionaria?", querendo dizer: "será que decolaria?"). Nãosurpreende que alguns dos comentadores pegaram hesitações e incertezasainda evidentes na última parte da palestra escrita. De que outra maneirapode alguém estar no presente?

Algo similar acontecera no início de minha carreira de escritora - amonografia Women in Between (1972) está o mais próximo possível defalar sobre relações de gênero, sem usar esta formulação. A primeira vezque deparei com gênero em seu sentido atual foi por volta da época emque o livro veio a lume (e tenho usado esse termo desde entãol). Detodo modo, o que quer que eu imaginasse estar no ar no período daPalestra Frazer era um ímpeto a repensar a mudança geracional. Comoé estar em meio a uma mudança, quando as ideias ainda não assentarame qualquer posição crítica ainda não está bem formada? Temo que umarazão para eu me deter tanto sobre o pobre e velho Frazer, já que fazê-lonão é de modo algum uma exigência da palestra que leva seu nome, éque seu ecletismo foi uma maneira de mostrar preocupação, olhandode forma desafiadora para parte da celebração do pastiche e justaposiçãoque parecia estar em marcha.

Os pós-graduandos em antropologia social em São Paulo que começa-

ram esta tradução pertencem à sua própria geração (outros 25 anos sepassaram!). Eles e seus colegas estarão em meio a outras mudanças. Deminha parte, ao agradecê-los calorosamente pelo seu interesse e trabalho,eu os agradeço pelas lembranças que também eles acenderam.

Marilyn StrathernUniversidade de Cambridge

5 de setembro de 2012

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RESUMO

A história da antropologia social britânica revela um abismo dramáticoentre Frazer e Malinowski. O modo pelo qual este abismo é construídoilumina-se por meio da análise de um abismo posterior, que separa osperíodos conhecidos como modernista e pós-moderno da escrita antro-pológica. Cada geração cria seu próprio sentido de história e, portanto,suas rupturas: os modernistas veem Frazer como um autor que falhou aoabordar o problema técnico de elucidar conceitos alheios* através de seupróprio contexto social; os pós-modernos recuperam, do passado, diversasironias nos escritos de antropólogos - incluindo Frazer -, à medida quesão estimulados por seu próprio jogo** de contextos. Argumento queFrazer está fora de contexto nos dois casos, com base nos parâmetrostécnico-literários dos tipos de livro que escreveu. Ele não organizou seus

* N.T.: O termo em inglês, "alien", faz referência clara àquilo que é exterior ao Ocidentee seu sistema de produção de conhecimento.

N.T.: Para uma compreensão dos sentidos de jogo envolvidos da palavra "play" eexplorados pelo texto, nos apoiamos na tipologia de Roger Callois, para quem háquatro tipos de jogo: os de competição, os performáticos, os de azar e os que alterama percepção e os sentidos a respeito das coisas. CE. Callois, Man, Play and Games,Nova York, Free Press ofGlencoe, 1961.

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12 Esta é uma versão da Palestra Frazer de 1986, proferida na Universidade de Liver-poo!. A conferência anual, uma honra em referência a Sir James George Frazer e seutempo, circula entre quatro universidades: Liverpool, Glasgow, Cambridge e Oxford.A primeira foi concedida em Liverpool por Bronislaw Malinowski e a mais recenteaté o momento por Marshall Sahlins. Sou muito grata a John Peel e à Universidadede Liverpool pelo convite, que me persuadiu a reler Frazer; este paper é dedicado aEric Evans.

textos de forma modernista, mas também não desenvolveu seu pastichepara além daqueles exercícios de contextualização da antropologia ma-linowskiana que os pós-modernos tencionam superar. A preocupaçãoatual com a ficção na antropologia dirige-se a novos problemas na relaçãoescritor! leitor! sujeito" - o que acentua problemas relativos à comuni-cação. Pós-modernos têm de viver o paradoxo da autorrepresentação.Faz-se uma tentativa de descolar as intenções de pastiche e justaposiçãodas imagens de desordem e confusão, perguntando-se qual mundo socialé fantasiado através dessas imagens e se desejaríamos de fato retornar

a Frazer.

FORA DE CONTEXTOas ficções persuasivas da antropologia"

Esta é a confissão de alguém formada para ver Sir James Frazer de modoparticular, tendo descoberto que o contexto que permitia aquele en-tendimento mudou. Gostaria de extrair algum sentido dessa mudança.

Falar de um pesquisador ou pesquisadora é também falar de suas ideias.Mas há um quebra-cabeça na história das ideias. As ideias parecem pos-suir a capacidade de aparecer em todos os momentos e lugares, com talintensidade que podemos considerá-Ias como preexistentes a seu tempo,ou atemporais. Uma das coisasque aprendi sobre Frazer foi que suas ideiasjá eram antiquadas antes mesmo de o autor tê-Ias escrito. Mas, ao mesmotempo, havia ali algumas ideias de estilo decididamente moderno. Naverdade, a experiência de voltar a Frazer e seus contemporâneos de finsdo século XIX é a de perceber o quão modernos eles também pareciam.

* N.T.: Em língua inglesa, além dos sentidos de disciplina curricular, súdito e sujeitogramatical, a palavra "subject" refere-se à pessoa ou coisa que está sendo discutida,descrita ou com que se lida - o que pode ser traduzido como assunto, tema ou ob-jeto, em português. Por outro lado, a mesma palavra também se refere em línguainglesa a sujeito, com o sentido de entidade que pensa ou sente de modo consciente,em oposição àquilo que é exterior à mente. Essa ambiguidade aparece no texto deSrrarhern e, para evidenciá-Ia, optamos por traduzir o termo ora como "objeto", oracomo "sujeito", ora por meio do neologismo "subjeto". A tradução, portanto, buscaaderir ao questionamento de Srrarhern - e dos autores com quem dialoga, aqui cha-mados pós-modernos - quanto às posições de sujeitos e objetos nos contextos criadospela antropologia. De todo modo, é interessante perceber o jogo por meio do quala autora sugere suas próprias posições e aquelas dos antropólogos que analisa.

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Fora de contexto

E ainda assim estou desconcertada por saber, simultaneamente, que aantropologia pós-frazeriana é radicalmente diferente da que veio antesdela. Houve um deslocamento bastante decisivo no assunto há cerca desessenta ou setenta anos, cujo resultado, entre outros, foi uma geraçãode antropólogos sociais como eu, formados para considerar Frazer um

autor ilegível."

A presença ou ausência de certas ideias não parece suficiente para com-preender tal movimento. Elas transformam um sentido de história emum sentido de déjà vu. Isso é particularmente desconcertante para umaantropóloga igualmente formada para imaginar que as noções culturais"se encaixam" e que aquilo que as pessoas pensam é um "reflexo" deseu tempo. Considere-se, a título de ilustração, dois exemplos de ideiassobre o etnocentrismo. Ambos lidam com o enigma de como descreveros costumes aparentemente absurdos de ourros povos de forma a torná--los plausíveis ao leitor. Um deles refere-se aos antigos israelitas, o outro,aos modernos selvagens, tópicos que Frazer uniria em seu Folk-lore in

the Old Testament* (1918).

O primeiro é um trabalho publicado em 1681 pelo abade Fleury, lheManners ofthe Israelites. Uma versão expandida, de 1805, foi produzidapor um clérigo de Manchester, Clarke, em resposta à procura do públi-co que seguiu as edições anteriores. A justificativa de abertura do livronos interessa. É porque os costumes do povo escolhido de Deus são tãodiferentes dos nossos que eles nos ofendem, motivo pelo qual o AntigoTestamento foi negligenciado; "na comparação das maneiras dos israelitascom as dos romanos, gregos, egípcios e outros povos de períodos ante-riores (... ) estes preconceitos logo desaparecem (... ) os israelitas tinham

13 Deve ficar claro que escrevo a partir da perspectiva da antropologia social britânica,e não de outra perspectiva que procuraria justificar essas espécies da antropologiacom relaçáo às demais. O fato de os escritores americanos, assim como os britânicos,terem se tornado significativos na discussão posterior de assuntos contemporâneosreflete outros deslocamentos que ocorreram nessa perspectiva.

* N.T.: Optou-se por manter o título dos livros mencionados no original.

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tudo que era valioso nos costumes de seus contemporâneos, sem muitosdos defeitos" (Clarke, 1805, p. 15). A intenção de Clarke é reabilitar aleitura da Bíblia, livrar-se do estranhamento do Antigo Testamento, demodo que seus leitores possam conceber a existência de Deus entre osisraelitas. Ele deseja

que o leitor se despoje de todo preconceito, que ele possa julgar tais costumes

através do bom senso e dos motivos certos; descartar ideias peculiares a seu

tempo e país; e considerar os israelitas de acordo com as circunstâncias deseu tempo e lugar; cornpará-los com seus vizinhos mais próximos e, dessa

forma, entrar em seu espírito e suas máximas. (p, 16)

Tais ideias apresentam um inegável toque contemporâneo - até mesmono dizer do escritor, que não aspira a um panegírico, mas sim a "umaabordagem muito simples" do povo que descreve.

O mesmo ocorre, em alguns aspectos, com as palavras de Sir John Lub-bock proferidas na Câmara Municipal de Hulme, Manchester, em 1874.Como a retomada de Fleury por Clarke, suas palavras se dirigem a umvasto público, de caráter popular: uma palestra sobre selvagensmodernos,como parte de uma série intitulada Science Lectures for the People, cujoevento de abertura atraiu 3.700 pessoas (a frequência posterior ficou emtorno da média de 675 pessoas, segundo os registros). Lubbock começapelo fator da diferença:

A condiçáo mental do selvagem como um todo é, de fato, táo dessemelhante

da nossa que é frequentemente muito difícil acompanhar o que se passa

em sua mente (... ) Muitas coisas parecem naturais e quase autoevidentes

para ele, e produzem um efeito muito diferente em nós (... ) Portanto, ape-sar dos selvagens sempre terem uma razão, como de fato acontece, para o

que fazem e pensam, essas razóes nos parecem mormente irrelevantes ou

absurdas. (l875b, p. 238)

Mas, ao comparar diversas abordagens a respeito de povos ao redor domundo, é possível mostrar o quão amplamente distribuídas estão essasideias e costumes, que "nos parecem, num primeiro momento, inex-plicáveis e fantásticas" (p. 239). O que nós - e ele se refere a si mesmo

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e a seu público - tomamos por "natural e óbvio" revelará não sê-lo. Ocaso especial de Lubbock é um desejo de oferecer "uma ideia correta dohomem, tal como existiu em tempos antigos e dos estágios pelos quaisnossa civilização evoluiu" (p, 237).

Como Fleury/ Clarke, ele pondera que, para entender povos muito di-ferentes de nós, é necessário ter consciência de suas premissas e valoresparticulares. Lubbock argumenta por meio da substancialização dessadiferença, introduzindo às suas testemunhas uma gama díspar de razõese costumes - exemplos aos quais é pouco provável que tivessem acesso,sem que Lubbock as tivesse brindado com as evidências. As evidênciasincluem itens como a crença na realidade dos sonhos, o apreço porornamentos e cerimônias de casamento do tipo que reduz as mulheresa escravas valorizadas por seus serviços. Nessa última circunstância, eleidentifica uma explicação para o casamento por captura - permanecen-do em algumas regiões, diz ele, como realidade grosseira, enquanto emoutras resta apenas a mímica da força (1875b, p. 242).14

No entanto, havia também uma vasta diferença entre esses escritores.O clérigo de Manchester, que promoveu Fleury da década de 1800,sustentava um modelo cíclico do mundo, no qual as nações ascendiame descendiam como se passassem por estágios de prosperidade e declínio.Fleury e Clarke lamentavam a corrupção de seus contemporâneos, queos impedira de apreciar as antigas virtudes dos israelitas. Não se devesupor, argumentavam, que, quanto mais de longe se olha a antiguidade,"mais estúpida e ignorante" parecerá a humanidade (1805, p. 18). Pelocontrário, "as nações têm seus tempos de duração, como os homens".Consequentemente, devemos aprender a distinguir "o que não gostamos,em meio à consideração da distância dos tempos e lugares, embora issoseja em si indiferente com relação àquilo que, sendo bom em si mesmo,

14E procede para descobrir "costumes similares" e "traços" deles tanto na Europa clássicaquanto na moderna, observando "a persistência de todos esses costumes e cerimôniasconectados com o casamento" (1875b, p. 242).

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nos desagrade apenas porque somos corruptos em nossas maneiras"(1805, p. 15). Isso não poderia estar mais distante de Lubbock e desua implementação, na década de 1870, da ideia de que os selvagensmodernos deveriam ser compreendidos à medida que forneciam um .insight de outros tempos: seu estado decrépito expressava a medida dadistância a que chegara a civilização. Lubbock não vivia num mundocíclico, mas sim num mundo em evolução. Seus esforços se dirigiam àsubstituição de uma visão linear quanto ao progresso da humanidadepor outra, combatendo aqueles que viam os selvagens modernos comodescendentes degenerados de povos civilizados; vê-los como exemplosde um estágio já suplantado motivava a esperança do progresso.

Tão logo um conjunto de ideias é colocado no contexto de outros, elesnão mais parecem similares, em absoluto. Na verdade, esses exemplosparticulares podiam ser vinculados a paradigmas radicalmente diferentes(Stocking, 1984).15

Pode-se prosseguir. Quando, mais de quarenta anos após a palestrade Lubbock, Frazer descreveu os modos dos antigos israelitas, foramsuas pesquisas de longo alcance através dos "prirnórdios da históriado homem" que os tornaram completamente plausíveis. Seu objetivoera mostrar que os israelitas não eram uma exceção à lei geral, que suacivilização, como as outras, tinha passado por um estágio de barbáriee selvageria (1918, vol. 1, Prefácio). Se tal perspectiva era similar à deLubbock, por outro lado fornecia um contexto muito diferente das ideiassobre o etnocentrismo que Malinowski publicaria quatro anos depois.Em sua famosa abertura do trabalho que introduzia os ilhéus Trobriand

15Stocking (1984, p. 136) refere-se à história da antropologia em seus primórdios comoa alternância entre dois paradigmas dominantes, ambos diacrônicos. O texto de Lub-bock exprime o paradigma do desenvolvimento progressivo; e o de Fleury/ Clarke,um paradigma difusionisra derivado das suposições bíblicas sobre a genealogia dasnações. Invoco essa dicotomia sem o intuito de parodiar os diversos estilos e linhasde pensamento que contribuíram com premissas que informaram os procedimentosde Lubbock (e, posteriormente, de Frazer), nem o de falsificar uma história apenascomo sinal de que houve uma história.

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da Melanésia, Malinowski argumenta que, em "cada cultura, os valoressão ligeiramente diferentes; as pessoas aspiram a diferentes propósitos,seguem impulsos diferentes" (1922, p. 25), e que, sem um entendimentodos desejos subjetivos pelos quais as pessoas cumprem seus propósitos, oestudo das instituições, códigos e costumes seria esvaziado. 16 O mesmoobjetivo, entender os valores de outros povos, é concebido de formadistinta; para Malinowski, o objetivo é "compreender o ponto de vistanativo". Os trobriandeses se tornam "selvagens", mas no sentido lúdi-co. Ou poderíamos saltar para as ideias expressas por Geertz nos anos1980. Sua afirmação de que a antropologia é a primeira a insistir "queo mundo não se divide entre os crentes e os supersticiosos" parece umalinha familiar. No entanto, quando acrescenta que "vemos as vidas dosoutros através das lentes que nós mesmos polimos e (...) eles retomam oolhar sobre o nosso através das suas" (1984, p. 275), essa versão de umolhar de mão dupla encontra em Malinowski um expressivo ponto departida quanto a seus significados.

Para uma não historiadora, o ponto desconcertante é este: o olhar empe-nhado pode encontrar ideias muito antecipadas em relação a seu tempo,ou pode estabelecer similaridades através do tempo. No entanto, quandose olha uma segunda vez, considerando-se outras ideias, o sentido desimilaridade desaparece. Um modelo de um mundo em evolução nãopode possivelmente produzir as "mesmas" ideias de outro no qual naçõespassam por ciclos de vida. Da mesma forma, não é possível que o olharde mão dupla de Geertz possa levar ao mesmo tipo de entendimentosque a confiança de Malinowski sobre compreender a versão trobriandesado mundo. Ao exprimir o conceito de etnocentrismo, nenhum dessesescritores parece pretender a mesma coisa. Isso torna impossível explicara prevalência de certas ideias apenas pela referência a outras ideias. Comque competência é possível trazer algumas ao primeiro plano, relegandooutras ao contexto de fundo? Escrevemos uma história do etnocentrismo

16 Um ponto sobre o qual Marett também publicara, sob a infeliz terminologia de"psicologia" (cf Marett, 1920).

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ou uma história de suas diferentes premissas? Ou não estamos de formaalguma lidando com a "mesma" ideia?

Esses são quebra-cabeças intrínsecos à comparação transcultural; sãoconhecidos enigmas antropológicos. A questão paira, assim, sobre oque uma solução antropológica poderia parecer. O único problema éque sei que esses conjuntos de ideias são diferentes, que o abismo quesepara Geertz de Malinowski, por exemplo, é tão profundo quantoo abismo que separa Malinowski de Frazer, ou Frazer e Lubbock deClarke e Fleury. Mas como persuadir a mim mesma de que sei? Se aconsequência das ideias é sempre tão ambígua, de onde vem nosso sen-so dramático de mudanças e abismos? Deve vir do lugar ocupado poraquelas ideias em nossas práticas. Portanto, devemos olhar não para ofato de tal ou qual pessoa poder ou não conceber outras culturas e deque maneira - se a ideia de etnocentrismo existiu ou não -, mas paraa eficácia da visão, a forma pela qual uma ideia foi implementada. Épor esse motivo que mencionei a popularidade de Fleury e a enormeplateia das palestras de Lubbock. Este ponto conduz ao surpreendentefenômeno da celebridade de Frazer.

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A frase é de Leach (1966). Atribuindo muito ao caráter de promoter daesposa de Frazer, há vinte anos Leach descartou a ideia de que tal cele-bridade correspondesse a qualquer reputação acadêmica no tempo deFrazer, pelo menos entre os antropólogos. Se eu retomo a mesma questãoagora, é devido ao que ocorreu com a antropologia social desde que Leachapresentou seu ponto de vista. Suspendo o julgamento e procedo comose o que realmente está em questão fosse o impacto de Frazer sobre aimaginação das pessoas - o que se revelará como pertinente à históriarecente da prática antropológica, pois qualquer pesquisa das práticasde antropologia tem de reconhecer a força da observação de Geertz(citado por Boon, 1982, p. 9): "O que o etnógrafo faz? Ele escreve". Seolharmos para a prática, podemos fazer mais do que olhar para a escritaantropológica. Perco algum tempo sobre os escritos do próprio Frazer,pois o abismo entre ele e a antropologia posterior nos diz muito sobre

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como viemos a imaginar que existem abismos e, portanto, sobre comopersuadimos a nós mesmos de que houve uma história.

Sir Iarnes FrazerPrazer é amplamente considerado pelo efeito profundo que teria exer-cido sobre as mentes de seus contemporâneos. Downie (1979, p. 64)repete a famosa história sobre um policial que disse a Jane Harrison:"Eu acreditava em tudo o que me diziam mas, graças a Deus, eu li TheGolden Bough e desde então sou um livre-pensador". Downie destaca que,desde sua primeira aparição, em 1890, o empreendimento foi em geraltratado com respeito; citando a observação de Malinowski, The GoldenBough era "uma obra conhecida por todo homem culto, uma obra queexerceu influência descomunal sobre diversos ramos do conhecimento"(p. 57).17 Sem dúvida, Folk-lore in the Old Testament, publicado porPrazer em 1918, foi rapidamente aclamado, tanto por revistas teológicasquanto pelas literárias. Seu trabalho não parece apenas ter falado a seutempo, mas exercido um poder duradouro. Sobretudo, ele promoveua antropologia. Para muitos não antropólogos, ninguém, nem mesmoMalinowski, conseguiu destroná-Io. Por outro lado, o que é surpreen-dente sobre o efeito de sua escrita é surpreendente para antropólogos, oumelhor, é surpreendente sobre eles, pois durante muitos anos Prazer nãoocupou um lugar respeitável na história da disciplina - alguns diriamque nunca ocupou. Pelo contrário, a antropologia moderna britânicanão apenas se vê como não frazeriana, mas muito afirmativamente como

17 Malinowski (1962) faz elogios efusivos ao livro, que vê, "em muitos aspectos, como amaior realização da antropologia". Mas está claro, em adição, que ele também se situaem relação a Frazer - dando as boas-vindas à edição resumida de The Go/den Boughcomo algo que devia ser introduzido no campo! Antropólogos, em geral, tinham suasreservas. A revisão feita por Marett da terceira edição (reimpressa por Marett, 1920)faz fortes objeções aos paralelismos de Frazer; sobrevivências deveriam ser tratadas nãocomo fósseis, mas num contexto psicológico (por exemplo, sociocultural). Algumasresenhas literárias do período também foram frias (Leach, 1966).

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antifrazeriana. Antropólogos sociais têm o hábito de desdenhar Prazer,ridicularizá-Io e considerar seu folclore como superado. 18

O que foi, portanto, o impacto de Prazer sobre tantas imaginações? Eo que foi criado em resposta por aqueles que fu~daram a antropologia.moderna? Uso advertidamente o termo "moderna", num contexto emque somos informados, por todos os lados, de que vivemos numa erapós-moderna. Como ficará aparente, esta representação de última horaautoriza um lugar contemporâneo para Prazer, o que seria altamente in-concebível há vinte anos. Tal mudança recente sugere que os antropólogospodem, afinal, achar trechos de Prazer mais legíveis do que pensavam.

A questão interessante é como antropólogos modernos conseguiramconstruir Prazer como uma figura que não cabia no tempo deles e comode fato a escrita, que para tantos outros era eminentemente legível, paraeles se tornou ilegível.19 Inevitavelmente, minha abordagem jogará maispeso sobre a significância dessa personalidade do que agradaria a umta)historiador/a), como se ele realmente tivesse sido fundamental para amudança ocorrida na disciplina. * Ela ignora outros nomes, tanto aquelesque também se tornaram ilegíveis quanto aqueles a que os antropólogosse voltam de tempos em tempos como precursores. É raro retomar aPrazer desta maneira: as mais literárias dessas figuras se tornam, entre

18 Leach apresenta uma exposição de fatos para um público não antropológico: "Orenome presente de Frazer é em larga medida não merecido. Muitas de suas con-tribuições ao estudo da antropologia e religião comparada provaram-se sem valor"(1983, p. 13). Devo deixar claro que não pretendo proceder uma revisão em particularda perspectiva de Leach (leio Leach, 1966, depois que o rascunho deste artigo foiescrito).

19 Varridos com Frazer, foram também seus críticos contemporâneos, como Marett; umasequência de escritos antropológicos foi considerada ilegível. A própria obra de Frazerpassou a ser vista como maçante, e nunca como a "leitura gloriosa e estimulante" querepresenta para Jarvie (1964, p. 33).

* N.T.: Novamente, a palavra escolhida é subject: aqui ela faz as vezes de disciplina, masalude aos questionamenros ao sujeito da ciência, correntes no período de escriturado texto.

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todas, as mais completamente ilegíveis. Frazer foi tornado visível nopapel de uma vítima da mudança.

Num ataque amargo, recentemente renovado, contra a antropologiasocial moderna, Jarvie (1964, 1984) promove Frazer ao papel de vítima"de forma deliberada, tomando de empréstimo a metáfora da queda dopadre: "O primeiro clamor de batalha da revolução foi: 'matem o sumo--sacerdote". Ainda mais prosaica, entretanto, é sua reclamação de que"intermináveis doses dos fatos de campo são tão chatas" (1984, p. 15).Certamente, vista de uma perspectiva pós-guerra, a nova antropologia,como a desenvolvida nas décadas de 1930 e 1940, veio a lume em com-petição direta com Frazer no que se refere ao próprio tema do trabalhode campo. Olhando para trás, Evans-Pritchard comentava o quanto asfontes literárias tinham forçosamente substituído a "observação direta"(1951, p. 10).21Era sobretudo através das possibilidades de observaçãodireta oferecidas pelo trabalho de campo que as fontes literárias podiamser suplantadas; e Malinowski (juntamente com Radcliífe-Brown) assas-sinara Frazer (a imagem é de Jarvie [1961, p. 1]).

Jarvie também promove Malinowski ao papel de arquiteto da revolução,situada por volta de 1920. Em sua alegoria, "Malinowski tramou e diri-giu a revolução na antropologia social- com o objetivo de destronar ainstituição de Frazer e Tylor e suas ideias; mas, principalmente, a revo-

20 Jarvie diz isso literalmente. Aqueles que não creditam a Frazer muita estatura tomama palavra metaforicamente - as vítimas reais devem ser encontradas em outro lugar.Os alvos do próprio Malinowski incluíram, por exemplo, a antropologia de Riverse Seligman (Langham, 1981) e o difusionismo de Elliot Smith (Leach, 1966). Paraum comentário sobre a criação de vítimas, ver a resenha de Urry (1983) sobre aabordagem de Langham. Langham não está preocupado com Frazer e Malinowski,mas principalmente com Rivers e Radcliffe-Brown. Urry afirma que Langham acusaRadcliffe-Brown "de praticamente tudo, menos assassinato", eclipsando a contribuiçãode Rivers para a antropologia britânica (p, 401).

21 Obscurecido na dicotomia entre observação direta e fontes literárias está o faro deas fontes literárias de Frazer serem em larga medida relatórios de observações feitaspor etnólogos que incentivavam a corresponder-se com ele. A dicotornia portantoobscurece o status literário das próprias relatarias.

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lução era contra Frazer" (1964, p. 173). Em sua visão, a revolução tevetrês objetivos: (1) substituir a antropologia de gabinete pela experiênciade campo; (2) no domínio da religião e da magia, substituir a atençãode Frazer às crenças pelo estudo da ação social (o rito); e (3) substituiras falsas sequências evolucionárias por uma compreensão da sociedadecontemporânea. Jarvie está longe de ser voz isolada em sua perspectiva. Alição aprendida é que a observação em campo significava a possibilidadede registrar as práticas das pessoas em seu contexto social imediato. Issomudou os tipos de explicação que os antropólogos buscavam. Malinowski(como Radcliffe-Brown) insistia que práticas deveriam ser relacionadasa outras práticas - que as trocas de alimentos e objetos de valor em ce-rimônias de casamento, por exemplo, tornavam-se inteligíveis à luz dasregras locais de herança ou posse de terra. Para abordar tais cerimôniasnas Ilhas Trobriand, Malinowski voltou-se não às práticas encontradasem outras culturas, mas a outros aspectos desta única cultura. O restoé bem conhecido - que isso levou a um entendimento de sociedadesindividuais como entidades a serem interpretadas em seus próprios ter-mos, de modo que tanto práticas quanto crenças deveriam ser analisadascomo intrínsecas a um contexto social específico; que sociedades assimidentificadas eram vistas como todos orgânicos, depois como sistemase estruturas; e que o empreendimento comparativo que os antropólo-gos modernos estabeleceram tornou-se, portanto, a comparação entresistemas distintos.

'):

De fato, essa visão acerca da comparação entre culturas tornou-se tãoentranhada no seio da disciplina que é bastante estranho ler a própriareivindicação de Frazer de que "o método comparativo" pertencia a ele(1918, vol. 1, p. viii). Frazer queria dizer não a comparação de sistemassociais, mas a coleção de diversos costumes para lançar luzes sobre de-terminado conjunto. A luz pode irradiar de qualquer direção - crençase práticas de qualquer lugar no mundo iluminarão aquelas em estudo,mostrando antecedentes possíveis ou uma tendência das pessoas a pensardo mesmo modo em todos os lugares. Os procedimentos comparativos

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de Frazer incluíram tanto a proposição de que em qualquer traço decomportamento pode-se encontrar traços de hábitos anteriores - o queajuda a explicar formas presentes - quanto a proposição de que práticasdevem ser entendidas como reflexos de crenças. Logo, era possível ex-plicar práticas difundidas por meio de crenças difundidas. A revoluçãofoi exitosa ao conseguir que o método comparativo de Frazer parecessenão apenas equivocado, mas absurdo. A nova tarefa era a comparaçãode sociedades enquanto tais, e isso requeria atenção excruciante àquelesdetalhes que distinguem sociedades particulares, e que Jarvie consideratão entediante. Por outro lado, Frazer era extremamente atento aos deta-lhes. Como veremos, foi sobre seu arranjo que Jarvie deve ter protestado.

Embora ainda haja algum debate mais ou menos frequente em tornodos argumentos do próprio Frazer, o que se condena é seu estilo. Maisque enfrentar o problema dos resíduos históricos ou da comparabilidadeentre as crenças, o antropólogo moderno tende a opor-se à estruturanarrativa de Frazer. Seu trabalho é criticado por ser literário demais.Também é criticado por abordar eventos, comportamentos, dogmas,ritos fora de contexto. ''Antropologia frazerianà' é sinônimo de incur-sões indisciplinadas contra dados ernográficos, sem respeito por suaintegridade interna, pela forma como tais elementos se encaixam comopartes de um sistema, ou pelo que significam para os atores envolvidos.Na verdade, é muito apropriado que seu estilo tenha incomodado oantropólogo moderno, pois, acima de tudo, o que está em discussão éo tipo de livro que Frazer escreveu.

Tomo como exemplo Folk-Iore in the Old Testament, de Frazer, que reu-niu um texto clássico e uma tradição de exegese histórica da Bíblia aosresultados cumulativos do método comparativo - uma vasta coleção decostumes que lançaram novas luzes sobre a antiga vida do povo hebreu."

22 Esta obra, escrita na véspera da revolução malinowskiana, tem continuidade diretana posição atingida por Prazer à época da terceira edição de The Golden Bough, poisele desejava um contexto para passar adiante a informação que vinha juntandosobre o pensamento e a cultura primitiva. De fato, a primeira pode ser lida como

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A diversidade de seus exemplos é assombrosa." Primeiro, eles percorremvários episódios da história do Antigo Testamento: a criação do homem,a decadência do homem, a marca de Caim, o dilúvio, a torre de Babel,a aliança de Abraão, a herança de Jacó - ou ultimogenitura -, Jacó e aspeles de cordeiro, etc. Segundo, oferecem ocasião para descrições deta-lhadas sobre mitos de origem, o tratamento dos homicidas, mitos sobredilúvios, variedades de sacrifício, regras de herança, poligamia, etc., cadatópico tratado como um episódio narrativo. Terceiro, os episódios sãotornados ainda mais episódicos pelas discussões que os acompanham. Ocasamento de Jacó é o subsídio para um tratado (o termo é de Marett)de dezoito seções e aproximadamente trezentas páginas: Jacó e suas duasesposas; o casamento entre primos; o casamento entre primos na Índia,na América, na África, no arquipélago Índico, na Nova Guiné e nas ilhasdo estreito de Torres, na Melanésia; por que o casamento entre primoscruzados é favorecido, e o casamento entre primos paralelos, proibido,incluindo-se um argumento detalhado sobre várias teorias acerca docasamento entre primos cruzados; e assim por diante. Finalmente, aspróprias seções são compósitas: aquela sobre o casamento na África incluireferências aos herero, bantu, nyanja, awamba, wagogo, wahehe, baganda,banyoro e basoga, entre outros grupos.

Cada exemplo é situado. Frazer atribui de forma devotada costumesparticulares a povos particulares. Respeita tais origens específicas, assimcomo faria ao estabelecer autorias diferentes aos manuscritos clássicos

)

uma descrição detalhada sobre religião, poder e política (cf Feeley-Harnik, 1985),e a última, sobre parentesco, casamento e economia - passando pela herança e pelapropriedade.

23 Enquanto seu predecessor no campo, Robertson Smirh, em 1heReligion o/the Semites(1956 [1894]), restringira seu estudo a um grupo de nações aparentadas (amplamentecategorizadas como se incluíssem árabes, hebreus e fenícios, aramaicos, babilônios eassírios), Prazer se permite transitar ao redor do mundo. Para uma comparação entreaquele trabalho e Tbe Golden Bough, ver Jones (1984). Srnirh estava especificamenteinteressado num contraste entre as religiões semítica e ariana, e assim não podiaapenas assimilar as crenças e práticas de uma às da outra.

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e bíblicos. Mas o efeito de empilhar exemplo sobre exemplo resulta nocontrário. Tendo em vista que já se perdeu há tempos qualquer sentidode especificidade sobre os israelitas, o que não dizer da capacidade dedistinguir o estreito de Torres, ou a Melanésia? Na verdade, há umacontraespecificidade em sua demonstração de similaridade. O próprioFrazer (1918, vol. 2, p. 97) diz que "a história do casamento de Jacó,seja ou não estritamente histórica, reflete os costumes observados nocasamento por povos mais ou menos primitivos em várias partes domundo; e de modo semelhante, podemos com justeza supor que, numestágio anterior de sua história, costumes semelhantes eram praticadospelos israelitas". A demonstração de similaridade estabelece a auten-ticidade daqueles registros bíblicos enquanto descrições plausíveis docomportamento real. É possível ver o poder que isso tinha em contra-posição a uma tradição de pesquisas preocupadas com a veracidade doregistro enquanto tal. Usar (digamos) práticas melanésias para tornaras israelitas menos estranhas significa, é claro, que não pode havercontraste interno sustentado entre práticas israelitas e melanésias. Masa estratégia é deliberada. Frazer isola três elementos nas circunstânciasde Jacó - casamento entre primos, casamento de um homem com duasirmãs durante a vida, e prestações matrimoniais:

Todos os três costumes eu proponho ilustrar através de exemplos e, em segui-da, interrogar sua origem e sentido. Embora ao fazê-lo devamos divagar paralonge de nosso tema imediato, que é o folclore da antiga Israel, a excursáopode ser perdoada se lançar luzes sóbrias sobre as pinturas primorosas da erapatriarcal no Gênesis, ajudando-nos dessa maneira a revelar a profundidade esolidez do fundo humano sobre o qual as figuras dos patriarcas sáo pintadas.

Suas 280 páginas de exemplos "bastam para provar que casamentos comoo de Jacó foram e ainda são praticados em muitas partes diferentes domundo (...) [O] patriarca, conformado a costumes que são completamen-te reconhecidos e estritamente observados por muitas raças" (1918, vol.2, p. 371). A consideração bíblica não é "apenas uma imagem decorativa",mas descreve arranjos sociais "extraídos da vida".

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Mas os costumes foram alguma vez vistos como apenas decorativos?Ele é ambíguo sobre como exatamente essa consideração contribui paradebates em torno da historicidade do Antigo Testamento. A estratégia deFrazer faria sentido numa atmosfera de descrença à respeito dos modosdos israelitas, ou simplesmente de uma atitude que visse muitos aspectose incidentes menores como embelezamentos narrativos, colocados ali pornenhuma outra razão. Sua "sociologia comparativa" demonstraria que, nocontexto de culturas mundiais, a experiência israelita não é tão estranha.Mas seria de fato desta forma que as pessoas de seu tempo liam o AntigoTestamento? Certamente, para muitas das mentes que Frazer influenciou,o Antigo Testamento teria parecido deveras familiar, seus múltiplos even-tos como partes intrínsecas de uma estória sempre recontada. Na realidade,há quase que um sino de igreja reverberando nos episódios que ele narra.Não podemos creditar com justeza a Frazer o problema de Fleury, quebuscava superar a antipatia do povo pelos antigos israelitas, descrevendo--os como exemplo de uma sociedade menos polida que a sua. Era muitomais provável que os exemplos etnográficos eclodissem tal credibilidade.

Por outro lado, ao colocar os israelitas lado a lado com culturas africanasou melanésias, Frazer não apenas habilita sua credibilidade, mas declaraque se pode assumir que os antigos hebreus, como qualquer um, haviampassado por "um estágio de barbárie e mesmo selvageria; e tal proba-bilidade, baseada na analogia com outras raças, confirma-se medianteum exame de sua literatura, que contém muitas referências a crenças epráticas que dificilmente podem ser explicadas, exceto pela suposição deserem sobrevivências rudimentares de um nível cultural muito inferior"(1918, vol. 1, p. vii). Ele prossegue: "O instrumento para a detecçâo

da selvageria sob a civilização é o método comparativo que, aplicado àmente humana, nos permite traçar a evolução intelectual e moral dohomem" (p. viii). Seria esta rotulação das práticas contemporâneas comosobrevivências constitutiva de boa parte do fascínio exercido por Frazerem seu tempo? Teriam seus leitores aplicado "a detecção de selvageriasob a civilização" a si mesmos?

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E se Malinowski derrubou de fato esse profeta, será porque derrubou taldoutrina central? Malinowski e seus colegas levaram adiante a mesma pro-posição, mas de modo reverso: a detecção da civilização sob a selvageria.Talvez isso explique a visibilidade de Malinowski na antropologia moderna,como aquele que ofereceu um contexto particularmente persuasivo para essaproposição por meio de sua escrita. Sigo a observação de Boon: o motivocentral para a superação da antropologia frazeriana foi um novo tipo de livro;Malinowski tornou o estilo de Prazer obsoleto (Boon, 1982, pp. 13 e 18).

Entrou na moda perscrutar as narrativas antropológicas por seus efeitos,especialmente no caso de Malinowski - escritor autoconsciente, com

uma bagagem filosófica que informou sua abordagem para a arte darepresentação e o conceito de texto (cf Thornton, 1985). Não estoumexendo com a literatura crítica, atualmente extensiva. De modo diver-so, levanto uma questão circunscrita, a respeito do impacto do escritorsobre a imaginação, na perspectiva do tipo de relacionamento que seestabelece entre escritoría) e leitorta) e entre escritoría) e assunto. Aqui asmediações se dão através de relações internas ao texto, pelo modo comoo escritor arranja suas ideias. Nos trabalhos de Malinowski, aparecemnovas justaposições, novas disjunções de uma estirpe que possibilitouao método comparativo proceder de modo diferenciado. De fato, parapreparar a cena que permite a comparação entre as estratégias de Prazer(como aquelas expostas em Folk-lore) e as da antropologia moderna,necessito de um campo neutro, que é a razão pela qual enfatizo as obrasdesses autores como produtos literários. Ao estabelecer tal parâmetro,lidarei também com a primeira das duas críticas frequentemente levan-tadas contra os escritos de Prazer - a de que eles são literários demais.

Ficções persuasivasMarcar uma obra escrita como "literária" é como marcar uma pessoacomo detentora de "personalidade". Obviamente, uma vez que qualquerobra escrita busca um certo efeito, isso só pode ser uma produção literária.

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Surgem dificuldades quando fatos aparentes de um caso são alteradosou distorcidos em vantagem de um efeito particular. Prazer é certamenteculpado nessa acusação; ele não se esforçou para realizar uma "análisetransparente". Desse modo, tem sido acusado não apenas de criar umaatmosfera selvagem romântica, mas também de adulterar suas fontes paraisso (Leach, 1966, p. 564). Entretanto, antropólogos têm um problemaparticular de produção literária em suas mãos e esse é o problema quetorna Prazer muito mais antropólogo que Malinowski.

O problema é de tipo técnico: como criar uma consciência de mundossociais diferentes quando tudo o que se tem à disposição são termospróprios." Quer dizer, indo além de simplesmente livrar-se do. saborparticular da atmosfera - ambos Prazer e Malinowski criaram descriçõesevocativas, coloridas por um senso de localidade." Também me refiroa algo para além da habilidade de tradução de uma visão de mundo aoutra. Quando se coloca em face de ideias e conceitos de uma culturaconcebida como outra, o antropólogo está diante da tarefa de adaptá-Iosa um universo conceitual onde haja espaço para elas e, portanto, de criar

24 Em parte, como mostro depois, trata-se de uma construção modernista (a ideia ho-Iística da cultura à qual tudo pertence). Agradeço a David Lowenrhal (comunicaçãopessoal) por mostrar que a preservação da língua permite à a1teridade dos termos(estrangeiro, anacrônico) alguma vida por si só. Mas, em parte, há outra questão,aquela que fornece o enquadrarnento para a consideração de Boon: o fato de quenão há lugar fora de uma cultura, "exceto em outras culturas ou em seus fragmentose potencialidades" (1982, p. ix). Seria possível ver a questão como um "problema"técnico, cujo enquadramento teórico foi provido pela percepção de um fato social: apresença de Outros sociais no mundo. Foi o que levou às técnicas esotéricas de soluçãode quebra-cabeças, que Langham (1981, p. 19) com insistência considera indicativasda presença de uma maturidade científica.

25 O escritor usa as impressões que o lugar lhe provocou para oferecer ao leitor informa-ções confiáveis. O que a vida numa cabana em Trobriand representa a um europeuexpressa, dessa forma, um tipo de retrato sobre os trobriandeses. Thornton (1985,p. 9) situa esses esforços para obter a imagem concreta no contexto das teorias deMalinowski sobre o papel da imaginação, "fundadas em uma concepção positivistaacerca da existência psicológica real das imagens (...) na mente, o que permitia darlugar à apreensão da realidade".

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este universo. Se, diante das trocas matrimoniais que acompanham ocasamento melanésio, eu observar que os pais da noiva estão sendo pagosem razão de seus sentimentos em relação a ela, estou justapondo ideias

que, na linguagem que uso, são normalmente antitéticas. Emoção nãoé mercadoria. Embora eu possa tentar evitar a palavra "pago", fica claro

que estou descrevendo como uma transação aquilo que é também umaexpressão de relacionalidade - o que normalmente interpretaríamos comofluxos de emoções entre pessoas, não como algo transferível a terceiros.O terreno necessita estar limpo antes que eu consiga exprimir a unidadede uma ação que, numa descrição em língua inglesa, se apresenta como

um compósito de elementos disjuntos.

Isso é parte de um problema geral de comunicação: "fazer uma pontena divisa entre a experiência do leitor e as experiências das pessoas que opesquisador deseja descrever para ele" (Runciman, 1983, p. 249). O efeitode uma boa descrição é alargar a experiência do leitor. Mas essas muitasexperiências do leitor são elas mesmas um problema - o que garanteque a descrição não estará cheia de preconceitos, e que não irá, longede alargar, meramente aumentar a perspectiva estreitar" Nós pensamosnos antropólogos como os típicos criadores de dispositivos por meiodos quais é possível compreender o que outras pessoas acham e em queacreditam. E, claro, como simultaneamente empenhados em construirdispositivos através dos quais se pode afetar aquilo que seu público achae acredita. Preparar uma descrição requer estratégias literárias específicas,a construção de uma ficção persuasiva: uma monografia precisa estararranjada de tal maneira que possa expressar novas composições deideias.27 Essa se torna uma questão sobre sua própria composição interna,

26 Goodenough (1970, p. 105) escreve que o problema da emografia é como produzirum descrição que satisfatoriamente represente "o que se precisa saber para jogar ojogo aceitável pelos padrões daqueles que já sabem como jogá-lo". Isso implica umaenorme disposição da parte do leitor para comparar padrões.

27 Podemos voltar aos argumentos de Frazer sobre magia e ritual e sobre as origensdo rotemisrno, como se estivessem abrindo um espaço conceitual (num campo deoutro modo dominado pela dicotomia entre religião e ciência) para, entre outros, os

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a organização da análise, a sequência pela qual o leitor é introduzido aconceitos, o modo como as categorias são justapostas ou os dualismossão invertidos. Confrontar o problema é confrontar o arranjo do texto.Dessa forma, quando o escritor escolhe (digamos) estilo "científico" ou"literário", ele assinala o tipo de ficção que faz; não se pode fazer a escolhade evitar completamente a ficção.

Uso o termo "ficção" para fazer ecoar a observação de Beer (1983, p. 3)de que a teoria está em seu ponto mais fictível quando começa a avançar.Ela se refere à narrativa de Charles Darwin: "O aspecto desengonçado doencaixe entre o mundo natural percebido e o hipoteticamente imaginadomantém a teoria, durante um certo tempo, em escopo provisório, próxi-mo ao da ficção". O problema é a nova organização do conhecimento.Darwin, sugere Beer, "estava contando uma nova história, em oposiçãoà natureza da linguagem disponível para contá-Ía" (p. 5). Como alguém"imagina" um mundo natural não apenas em vocabulário, mas em sintaxecriada pelo mundo social? Seu sucesso é mensurado na extensão pela

qual a nova narrativa se torna determinante. A questão não é apenassobre como trazer certas cenas à vida, mas como trazer vida às ideias.

')

Alguma liberdade trópica é conseguida através da imagística. Darwinfiou-se na metáfora do parentesco, entre outras (ver Beer, 1986), na ideiada teia de inter-relaçôes de parentesco para dar forma concreta ao con-ceito de afinidade evolutiva. Uma imagem de proximidade era estendidaa todo o mundo vivo, com intenções específicas - não apenas que todasas criaturas do mundo pudessem ser imaginadas sob a tutela comum deuma única lei (ou divindade), mas que houvesse graus demonstráveis deafinidade entre elas. Beer sugere que essa demonstração foi obtida graçasa meios que iam além da promoção de imagens adequadas. A ideia de

argumentos de Spencer e Gillens sobre as cerimônias australianas de crescimento.normon (1985, p. 10) fala da influência de Frazer (e Mach) sobre Malinowski, comoseestivesse criando "um novo espaço discursivo para o argumento emográfico". Sobreo espaço emográfico em geral, ver Marcus e Cushman (1982, p. 42).

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um todo orgânico com diversas partes era tornada convicção na forma

de organizar o próprio texto (Beer, 1983, p. 97).28

Para sua teoria, Oarwin necessita do sentido de jogo livre" ( ... ) Seu argu-

mento epistemológico deve emergir de uma pletora de exemplos, pois a

natureza do texto exige evitar de todas as formas o alinhamento com osprocedimentos da seleção artificial ( ... ) É essencial para a teoria de Oarwin

que a multiplicidade e variedade do mundo natural transborde através da

linguagem. Sua teoria desconstrói qualquer formulação que interprete omundo natural como a medida daquilo que os homens pensam sobre ele.

Ele ultrapassa seu poder de observação e não é coextensível com a razãohumana. No entanto, no sentido da metáfora e analogia, ele encontra uma

maneira de restaurar equivalência sem falsas delimitações.

Se Frazer também escreveu ficções determinantes, o que deveria serexplicado em seu caso era a surpreendente aceitação imediata, em largaescala. Um dos motivos, suspeito eu, é que o contexto de seus escritos foiamplamente alimentado pelas suposições do público a quem se dirigiam.Apoiando-se num pano de fundo de pesquisas clássicas e hebraicas, cujapresença, se não os detalhes, seus leitores aceitavam plenamente, eleapenas introduziu tais pessoas a um terceiro tipo de material, o mundoprimitivo, a partir do qual construiu suas comparações. Aqui residiua força organizativa das considerações do autor. A efetividade dessajustaposição ampara-se na minúcia comparativa do caso apresentado.Ele não teve de criar o contexto pelo qual suas ideias ganhariam forma

28 Darwin não apenas estava utilizando "realidades bem compreendidas" com as quaisas mal compreendidas "poderiam ser trazidas ao círculo do conhecido" (Geertz,1983, p. 22), estava alterando o próprio sentido de realidades bem compreendidas.Portanto, Beer sugere que ele jogava nos conformes de suposições contemporâneasde classe, enraizadas em conotaçôes aristocráticas de árvores genealógicas; a históriado homem tornara-se uma rede familiar difícil e extensiva, sempre consciente de suasorigens mais remotas (1983, p. 63).

* N.T.: O termo "jogo livre" (em inglês, "free play") supõe a ausência de regras - ou aliberdade para que o jogador possa inventar suas próprias regras -, em contraposiçâoa "jogo estrururado" C'play"), que tem regras claras. Veremos como Strathern se valerádessas qualificações ao longo do texto.

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e, portanto, não teve de promover um dispositivo que organizasse umaimagem extraída de outro domínio (como na metáfora de Darwin sobreo parentesco entre as coisas vivas). De fato, por volta de 1900, muitasdas ideias de Frazer eram comuns. Encontrar vestígios do passado nopresente, tratar o Antigo Testamento como arquivo, estabelecer parale-los contemporâneos com práticas antigas era algo que não exigia novasconceituações em si.

)

Frazer lidou com a pluralidade e diversidade (o que, segundo o argumentode Beer, era central para a concepção de Darwin quanto à profusão domundo natural), mas não representou tal profusão em termos de umnovo conjunto de inter-relaçôes. Ideias sobre a evolução do pensamentohumano, da selvageria à civilização, eram amplamente propagadas. Alémdisso, longe de opor-se àquilo que era natural à sua linguagem, Frazerse glorificou no uso da linguagem - os prefácios, tanto de Tbe GoldenBough (1900 [1890]) quanto de Folk-lore in the OldTestamentexprimemuma linhagem literária com os antigos. A música suave que ele ouviamentalmente em Nemi era uma só a seus ouvidos com relação aos sal-mistas, profetas e historiadores do Antigo Testamento que iluminavam olado obscuro da história antiga, glórias literárias "que virão para deleitare inspirar a humanidade" (1918, vol. 1, p. xi).

Talvez, como acontece com os sinos não existentes em Nemi, o que lhepermitia tomar as liberdades que tomou fosse o fato de sua linguagemser tão segura. Uma fonte do impacto de Frazer sobre seus leitoresmédios, portanto, deve ter sido a familiaridade, não a novidade de sualinguagem e temas. E o sentido de novidade, que também devemoscreditar a ele, veio, como veremos, de sua enorme proximidade comseus leitores, daquilo que conseguia compartilhar com eles, e não,como no caso da antropologia que o sucedeu, de um distanciamentodeliberado desses leitores."

29 Frazer e seus predecessores tinham uma ideia clara de seu lugar como modernos emuma era que via a si mesma como moderna. Mas tem-se a impressão frequente de

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Quero sugerir que a autoconsciência sobre a criação de uma distânciaentre escritor e leitor, e portanto sobre a criação de um contexto paraideias que são novas em si, ressurgiu na antropologia como fenômeno"modernista". Isso exigiu do escritor o estabelecimento de relações espe-cíficas com sua escrita. Como implicação, o observador deve estabelecerrelações particulares com o observado, removendo-se a moldura querestringia o exercício intelectual a um esforço de tipo específico.

Os livros que se tornaram ortodoxos nos últimos sessenta anos sãomodernistas nesse sentido. Recentemente, é claro, tem havido fortesquestionamentos sobre o status autoral do antropólogo. Seguindo Ar-dener (1985), este questionamento anuncia o fim do modernismo, aotornar explícita a reíiexividade implícita do exercício antropológico comoum todo nos últimos sessenta anos, a relação entre o antropólogo e ooutro, construído como um objeto de estudo (cf Crick, 1982, p. 15).A divisão entre observador e observado sempre foi autoconsciente. Oque tipificou o modernismo da antropologia foi a adoção dessa divisãocomo exercício teórico por meio do fenômeno do trabalho de campo. Oantropólogo ou antropóloga que "entrava" em outra cultura levava con-sigo a autoconsciência do outro. Era o que inventavam os pesquisadoresde campo no tempo de Malinowski. Qualquer que fosse a natureza desuas experiências de campo, ela era visivelmente reinventada na formapela qual as monografias passaram a ser estruturadas.

Colocando as coisas em contexto

O modernismo pode significar tanto ou tão pouco quanto se deseje.Não pretendo dar uma definição da ideia, mas apenas indicar suaapropriação corrente na definição de uma época antropológica espe-

que os selvagens que apresentavam em suas páginas concordariam, se pudessem, comesse arranjo do mundo. Estava por surgir um tipo diferente de auroconsciência, quenão expressaria nem mesmo os rastros de tal acordo. Ela criou uma nova distânciaentre o ernógrafo e seus leirores.

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cífica.30 Ardener é cuidadoso ao delinear um caráter particular do mo-dernismo na antropologia, que nem sempre está em dia com as formasassumidas pelo modernismo em outros campos. Associa, no entanto,Malinowski com sua criação. Malinowski "rearranjou completamentea antropologia social" (p, 50), dotando-a do manifesto que sobretudo'se assentava sobre uma perceptível mudança de técnica. O trabalho decampo era a nova estratégia através da qual o antropólogo podia intervir,segundo Ardener, em certos pontos do tempo e do espaço, "onde secomportava como um dispositivo de medida ideal" (p, 57). Rejeitava-seo historicismo em favor da descoberta do holismo e da sincronia. Anova antropologia transformava os métodos anteriores de lidar com adiversidade cultural mais obsoleta e se reconhecia ao fazê-lo."

Tal gênese do modernismo vai ao encontro da noção de que Malinowskiinstigou a revolução que destituiu Frazer. Ao mesmo tempo, é completa-mente irônico falar de qualquer revolução malinowskiana, ainda que fosseum evento e que Malinowski (o que quer que exigisse para si mesmo)o tivesse produzido e pensado sozinho. O que necessitamos explicar écomo essa figura passou a carregar a ideia de que havia ocorrido umarevolução, uma mudança na disciplina. É importante exprimi-lo, poisé fácil mostrar que o que era verdadeiro sobre Frazer também era ver-dadeiro sobre Malinowski: suas ideias não eram particularmente novas.Assim, elepromoveu o funcionalismo, mas, se argumentos funcionalistaspodem remontar à obra do próprio Frazer (cf Lienhardt, 1966; Boon,1982), há mais continuidades aqui do que a ideia de revolução permiteestabelecer.É possível lembrar Marett, que em 1912 pressionava por umainterpretação funcionalista da "vida social como um todo" (Langham,

30 Por esse motivo minhas referências ao modernismo (e pós-modernismo) são mediadaspela escrita de poucos e convenienres anrropólogos e ganham peso no encontro comcomentadores, mais do que nos expoenres do gênero.

31 Saber disso é importante. Ardener afirma, ponanto, que o século XIX foi verdadei-ramente "moderno", e que o XX só foi moderno como gênero e logo propriamenre"modernista". No seio da anrropologia, a fase modernista incorporou um destrona-mento do historicisrno, com um acento deliberado no contemporâneo.

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1981, pp. xix-xx; Kuper, 1973, p. 31)32 ou notar que "[arvie faz parecer,entretanto, que era Malinowski, sem ajuda de ninguém mais, quemestaria reagindo diretamente contra o trabalho de Frazer. Na verdade,Rivers e seus colegas, A. C. Haddon e C. G. Seligman, foram decisivosao trazer à tona a transformação ocorrida entre o social-evolucionismodo século XIX e o estrutural-funcionalismo do século XX" (Langham,1981, p. 59). Talvez alguém preferisse colocar Radcliffe-Brown no centro,como o principal instigador da descoberta em meio à oscilação entre osparadigmas diacrônicos anteriores (Stocking, 1984) ou apontar exageronas estimativas subsequentes sobre o interesse de Frazer em crenças, maisdo que ritos (Boon, 1982, p. 11). Sobretudo mais irônicos seriam osclamores exagerados a favor de Malinowski como o promotor do trabalhode campo e seu descrédito junto àqueles para quem ele de forma alguma

inventou o trabalho de campo.

Firth (1985) indica uma tradição de trabalho de campo em andamentomuito antes da apoteose feita por Malinowski a seu respeito. Ele sugereque a novidade de Malinowski repousa antes no fato de ter elevado ométodo a uma teoria (cf Leach, 1957, p. 120). Stocking (1983, p. 93)desenterrou as prescrições de Rivers para o trabalho de campo que, em1913, descreviam o programa habilitado por Malinowski: o pesquisadordeveria viver por um ano ou mais no campo, numa comunidade ondeviesse a conhecer todo mundo e, não satisfeito com informações genéri-cas, estudar cada traço da vida em detalhes concretos. "Muito antes quea influência de Malinowski fosse sentida, Rivers era celebrado como oapóstolo da nova abordagem do trabalho de campo" (Langham, 1981,p. 50). Seria a diferença, nesse caso, Malinowski ter tornado seu estilode trabalho de campo numa questão de "colocar-se em uma situação

32 A partir da edição de 1912 de Notes and Queries on Anthropology. Marett recomendauma investigação exaustiva e intensiva da organização social, não apenas estatistica-mente (cf. estrutura), mas dinamicamente (cf processo). Mais além, ele argumentaque o único esquema que tem valor científico deve ser emoldurado pelo próprioobservador para adequar-se às condições sociais da tribo específica que está estudando.

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onde se pudesse ter um certo tipo de experiência" (Stocking, 1983, p.112)? Consultando os muitos antropólogos que deixaram universidadesinglesas rumo ao campo mais ou menos na mesma época e percebendoa natureza intensiva de seus estudos, Stocking é forçado a argumentar:"Algo mais do que carreiras atrasadas ou institucionalmente marginaisparecia estar envolvido (... ) no lapso de lembrança quanto a esses outrosetnógrafos acadêmicos da geração de Malinowski (...) [para perceber] quesuas primeiras etnografias não os apresentavam como inovadores etno-gráficos auto conscientes" (p. 84).33 Se de fato Malinowski não inventouholismo, sincronia, trabalho de campo intensivo e o resto, não houveentão invenção alguma? Prefigurei minha resposta de que a invençãose assenta sobre o que ele escreveu e, especificamente, na organizaçãodo texto. Foi isso que implementou os tipos de relacionamentos entreescritor, leitor e tema que dominariam a antropologia, britânica e de

fora, nos sessenta anos seguintes.

Por contraste, seu estilo descritivo enquanto tal é retrospectivo. De fato,é por causa desse aspecto de seu estilo que Malinowski é geralmentepoupado, por muito pouco, de imitar Frazer. Leach (1957, p. 119) serefere a seu "estilo frazeriano de belas-letras"; Firth, ao modo românticode Malinowski em oposição ao modo clássico de Radcliffe-Brown; e Ka-berry (1957, p. 87) argumenta que foi a aceitação, não de Malinowski,mas das distinções conceituais de Radcliffe-Brown o que conduziu aum estilo de escrita etnográfica amplamente difundido, que enfatizava aprecisão das definições e a linguagem simples. O que deve ser preferen-cialmente deixado à porta de Malinowski é a proclamação dos tipos deespaço que tinham de ser criados para expressar ideias analíticas "novas".É porque tal contextualização era nova que as próprias ideias vieram a

33 Ver também Leach (1957: 120); de modo interessante, Stocking (1983:79) encontraum precursor em Tbe Native Tribes ofCentralAustralia, de Spencer e Gillen, "reconhe-cidamente 'moderno' em seu estilo ernográfico (. .. ), dado o foco numa performancecultural totalizante". SeU:status subsequente foi comprometido, Stocking sugere, pelofracasso de Spencer em deixar progenia acadêmica significativa.

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parecer novas e que outros pesquisadores que pudessem ser vistos comoseus expoentes prévios foram tornados invisíveis. Seu poder para osantropólogos reside no paralelo entre o arcabouço da monografia e oarcabouço da experiência de campo.

O trabalho de campo tornou um novo tipo de ficção persuasiva possível.Mas eu seguiria Clifford (1986) ao sugerir que isso deve ser conside-rado pela via contrária: a experiência de campo era reconstruída nasmonografias, de maneira a tornar-se um dispositivo organizador para amonografia," à medida que Malinowski conseguia criar um contextopara "novas" ideias (tal como a percepção da sociedade como um todoem funcionamento), produzindo muito do contexto social e culturalno qual as ideias nativas se encontravam. De fato, esse foi o tema de suaPalestra Frazer sobre o mito (Malinowski, 1932 [1925]), uma descriçãodetalhada sobre a importância de ver mitos no contexto de suas vidas,ou seja, a sociedade e a cultura que o etnógrafo descreve. As ideias tro-briandesas tinham funções que não podiam ser compreendidas de outraforma. Ele reconhece sua dívida frente à insistência do próprio Frazerna conexão entre crença e rito e entre tradição, mágica e poder social.No entanto, a importância de situar as coisas em seu contexto socialpassou a ser reforçada de forma universal em larga escala na antropolo-gia, devido às críticas que denunciavam o baixo apreço de Frazer pelocontexto, pois as novas ideias em questão tinham adquirido uma duplaidentidade: as ideias analíticas organizativas dos antropólogos eram elaspróprias contextualizadas pela introdução, em seu contexto social, dasideias nativas através das quais as pessoas organizavam suas experiên-cias. Contextos podiam ser comparados, o que suscitou um dispositivoliterário persuasivo no arranjo dos textos através dos quais sociedades eculturas deveriam ser descritas.

34 Clifford (1986: 162): "a compreensão emográfica (uma posição coerente de simpatiae compromisso herrnenêutico) é mais bem entendida como uma criação da escritaetnográfica do que como uma qualidade consistente da experiência etnográfica".

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Tudo estava muito bem para a exposição de Malinowski, explicando queos mitos trobriandeses eram parte da experiência pragmática das pessoas.Como era a natureza distintiva daquela experiência expressa a um públiconão Trobriand? Uma justaposição se engendrava por meio da descriçãoda experiência da figura central do investigador de campo entrandonuma cultura (cf Clifford, 1986, pp. 162-163).35 Ideias trobriandesas,assim justapostas, eram contrastadas com aquelas da cultura da qual opesquisador de campo provinha. Logo, o Outro (Fabian, 1983, p. xi;Marcus e Cushman, 1982, p. 49) era construído. E embora a divisãoentre si mesmo e o Outro fosse construída no encontro colonial, nospreconceitos do pesquisador de campo, nas suposições sobre seu público,issoestruturou as monografias resultantes para maximizar efeito criativo."

O novo tipo de livro que Malinowski escreveu não era apenas a mo-nografia holística centrada num povo particular ou o esclarecimentosobre a distinção de sociedades ímpares, que seria o fundamento dasociologia comparativa posterior. Leach (1957, p. 120) indica a signi-ficativa suposição teórica de que o conjunto das informações coletadassob observação deve "encaixar" e "fazer sentido": "Nenhum dado forado presente subjetivo-objetivo imediato precisa ser considerado". Assim,o novo tipo de livro tinha por premissa a disjunção entre observador

35 Clifford sugere que os insights de trabalho de campo eram construídos menos nocampo (onde Malinowski, em suas próprias palavras, carecia de uma personalidadereal) do que no processo de escrita de Argonautas do Pacífico, em que ele se estabeleceucomo um antropólogo de campo.

36 Não foi somente o mito de Malinowski como pesquisador de campo o que definiu aantropologia moderna - o pesquisador de campo era um veículo simbólico para umnovo tipo de produção literária. Assim, nenhuma quantidade de desmitologizaçãoafetará o fato de que, não importa o tipo de trabalho de campo realizado anterior-mente, e o quão irregular ele tenha sido posteriormente, o símbolo do pesquisadorde campo tinha um novo poder na escrita pós-malinowskiana. Isso e uma série deOutros pontos que enfatizo foram apresentados por Boon (cf. "O autor como pesqui-sador de campo sempre esteve implicitamente presente; o autor como autor sempreesteve implicitamente ausente" [1983, p. 138]). Ver Beer (1986, p. 226-227), sobreas apresentações de Charles Darwin como pesquisador de campo.

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(sujeito) e observado (objeto), uma disjunção que tornava o observadorconsciente da técnica e conduzia, de modo subsequente, à conceituaçãoda prática antropológica como construção de modelos. Arcabouçosanalíticos tornaram-se permitidos, como artifícios deliberados. O con-traste entre essemodernismo e o historicismo de Frazer foi corporificadonuma nova versão de primirividade" - uma versão que incorporou umnovo relacionamento. A diferença entre "nós" e "eles" era concebidanão como um estágio diferente no progresso evolucionário, mas comouma diferença de perspectiva. "Eles" não usavam as mesmas moldurasque "nós" para visualizar o mundo. Sendo apenas etnocentrismo, aquilonão era descoberta nenhuma. Por outro lado, o etnocentrismo foi in-ventado tanto como um princípio teórico quanto como um arcabouçopara organizar a escrita. E isso ficou demonstrado no arranjo e relaçãode ideias internas à monografia. Uma maneira radical de apresentar osubjeto antropológico se abria; seus dois elementos eram igualmentecriativos para a disciplina.

O primeiro foi a implementação literária do etnocentrismo que carac-terizou todo o período modernista: a percepção de que molduras sãoapenas molduras, que conceitos são impregnados na cultura, que termosanalíticos estão elespróprios enterrados em premissas e suposições. Desdeo começo, os etnógrafos modernos tentaram desalojar o status dos con-ceitos ocidentais que eram tomados como dados - o desenvolvimento deuma terminologia técnica seguiu de mão em mão com autoescrutínio.Sempre houve muito mais para as definições de termos como lei oufamília do que o relativismo cultural.

O segundo elemento foi a descoberta do comum no bizarro, da civilizaçãosob a selvageria. O modo impositivo da apresentação etnográfica tornou--se exatamente aquilo que Jarvie parodia (1984, p. 15, grifos meus):

37 Capturada de maneira espirituosa por Ardener, para quem Malinowski criou ummoderno primitivismo para povos modernos (1985, p. 59).

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o que o trabalho de campo envolve é ir a uma sociedade exótica e obterêxito ao atribuir sentido positivo a seus costumes e instituições para alguémde fora. Então, cada monografia diz, com efeito: "Olhe aqui! Que bizarro,né? Tudo o que você esperava de primitivos ignorantes, irracionais, anár-quicos. Mas agora olhe mais perto. O que você vê? Eles vivem uma vidasocial ordenada, razoável e talvez até admirável".

"Dar sentido" era, pelo menos num momento inicial, uma questão deproduzir "senso comum" (Leach, 1982, pp. 28-29). Por extravagante quefosse em sua escrita atmosférica, Malinowski também insistia na neces-sidade de cobrir, séria e orgulhosamente, todos os aspectos da culturatribal. O que para ele era uma injunção, a fim de evitar o sensacional esingular para não diferenciar entre o lugar-comum e o fora de série (1992,p. 11), tornou-se a posteriori uma máxima sobre o comum em si. Assim,Jarvie acentua negativamente a observação de Evans-Pritchard de quea antropologia pós-frazeriana não estava buscando apelos estranhos oucoloridos para interesses românticos, mas endossava inquéritos factuaissobre instituições sociais (1964, pp. 4, 13 e 214). Leach recentementereabriu o tópico: "É sempre altamente desejável que o pesquisador decampo deva livrar-se da noção de que há alguma coisa em si extraordináriasobre a situação que observa" (1982, p. 29). E quantos cursos antropo-lógicos começam com o adágio de que o trabalho do antropólogo é darsentido àquilo que primeiro se apresenta como estranho, expor crenças eatos, despojando-as de seu status dado e inserindo-as no contexto em quevivem as pessoas! A queixa de Jarvie é que, após a primeira ou segundaexposição dessa revelação, a repetição se torna tediosa.

Para a disciplina, ambos os movimentos foram altamente produtivos.Eles conduziram ao desenvolvimento de várias molduras pelas quaisOutras sociedades e culturas podiam ser analisadas e colocaram o an-tropólogo na posição de elucidar o bizarro, revelando assim a lógicae a ordem nas vidas das pessoas. O próprio Malinowski é por vezescreditado por impor racionalidade a seus sujeitos. Seu senso do que écomum na cultura de Trobriand certamente abriu espaço conceitual

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para futuras investigações sobre a lógica e a razão primitiva. 38 Ao mesmotempo, seu holismo criou o contexto para investigações no interior desistemas, embora ele próprio não o tenha levado muito longe. Enfim,era inevitável que os antropólogos fossem criticados por tratar as pessoasque estudam como "objetos" (cf. Fabian, 1983). Mas essa objetificaçãoera produto de um posicionamento das próprias ideias do antropólogo(as molduras analíticas) sobre aquelas atribuídas a seus outros sujeitos.Isso permaneceu como um arcabouço estruturante para a escritura demonografias muito tempo depois de o funcionalismo de Malinowski tersido considerado de interesse teórico - o holismo que primeiro compeliuà relação subjetivo-objetivo não era mais requerido para a investigaçãointerminável daquela relação crucial em si. O efeito da dicotomia ob-servador/ observado tinha sido o de criar um sentido de alheamento ououtridade, introduzindo o leitor ao bizarro, e, simultaneamente, o desuperar o mesmo sentido, localizando o que "nós" vemos como bizarroem um contexto que, para "eles", é familiar e comum. O caráter comumera, dessa forma, um caráter comum técnico, ou seja, um produto daconsideração de ideias ou comportamentos em termos do contexto aoqual propriamente pertenciam. Trazidas ao primeiro plano pela novaantropologia (cf Clifford, 1986), "sociedade" ou "cultura" abrangiamtais ideias em âmbito doméstico. O estranhamento tinha que ficar defora dessa fronteira e era idenrificável apenas em contextos cruzados." Oentrecruzamento supremo de contextos se dava entre observador e obser-

38 Stocking (1984, p. 178) se diverte com o desespero de Gregory Bateson ao descobrir--se incapaz de encontrar um único exemplo da palavra "lógica" ao vasculhar CoralGardens and Their Magic inteiro. Mas o funcionalismo assumia que o antropólogo"podia encontrar razão mesmo se ela nunca tivesse aparecido de fato na consciênciaindividual do selvagem" (p. 183).

39 Seria possível lembrar aqui os exames funcionalistas sobre as crenças na bruxariae na feitiçaria: o que era classificado como estranho ou exótico tinha que ser vistocomo algo que atravessava algum tipo de fronteira social. Eu argumentaria que aantropologia da classificação e das fronteiras, tão prevalecente nas décadas de 1950 e1960, falava a uma epistemologia implícita que domesticava comportamentos (tudo"fazia sentido") como o atriburo de uma cultura ou sociedade particular e, portanto,

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vado. Assim, criava-se o problema central da antropologia modernista,em cujos termos acomodei minha questão original: como manipularideias e conceitos familiares para exprimir os alheios.

A concentração das novas etnografias sobre culturas isoladas abria a possi-bilidade de explorar o dualismo da relação entre observador e observado,usando-se a própria linguagem de um dos lados para reverter ou virar decabeça para baixo suas categorias (por exemplo, vemos pagamento comoantitético às relações de parentesco; eles veem as relações de parentescocomo baseadas em transações). Conceitos combinados na cultura doobservador podiam ser divididos (por exemplo, temos uma economiade mercado; eles têm uma economia da dádiva). Porque o outro estavadesemoldurado, tornava-se possível usar termos no interior da molduracom significados diferentes daqueles que eles tinham do lado de fora(parentesco, para eles, não é o que queremos dizer com o termo). Eassim por diante." Dessa forma, manipular os próprios conceitos paraconceitualizar aqueles construídos como alheios estabelecia distânciasentre escritor, leitor e subjeto de estudo."

conduzia a um problema especial ao considerar os conceitos das próprias pessoassobre o que era bizarro e exótico no interior dessas sociedades e culturas.

40 Outras disjunções típicas desse modo incluem (1) dividir dados em domínios, comoparentesco ou economia, que então são postos em colapso diante do outro, ou vistoscomo versões um do outro; (2) definir conceitos pela negação - os X não têm (diga-mos) nenhum conceito de "cultura' - para introduzir descontinuidades no que sãodicotornias habituais no pensamento ocidental (por exemplo, o contraste entre culturae natureza); (3) comparação entre culturas que repousa numa elucídaçâo de similarida-des e diferenças, mas sempre implica a distintividade das unidades então comparadas;e (4) comparação interna à análise entre "nós" e "eles", agora e antes (o outro sendoapresentado como uma versão de alguém, ou uma antítese de alguém familiar).

41 Espero ter deixado clara a extensão pela qual eu defenderia as disjunções rnalino-wskianas: a artificialidade (entre "nós e "eles") está contida na construção de umproduto literário preocupado com uma questão que está longe de ser artificial,abrindo espaço conceitual para outros sociais. Deixe-me refletir sobre um exemplono qual estou interessada: os termos "dádiva" e "mercadoria" e os contrastes entreos sistemas de troca melanésio e ocidental. Ambos os termos só fazem sentido doponto de vista de uma economia de mercado. Ao mesmo tempo, pode-se usá-los

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Jarvie hostiliza antropólogos modernos(istas) por lutarem para mostrarque não havia nada de excepcional sobre as vidas que descreviam. Atécnica analítica, derivada de postulados sobre a integridade da socie-dade e cultura, está enraizada na técnica literária. O salto imaginativose dá entre o que "nós" achamos comum e o que "eles"acham comum. Daío significado da insistência perpétua de Malinowski de que "eles" erammais do que projeções das teorias ocidentais. O problema que abordouem sua Palestra Frazer era que os trobriandeses não tratavam seus mitoscomo os teóricos de gabinete especulavam que o fizessem. Suas ideiastinham que ser apreciadas em seus próprios termos, em razão de queos mitos não podiam ser tratados como uma "ocupação intelectual degabinete primitiva" (1932 [1925], p. 82). Não havia teóricos de gabinetenas Ilhas Trobriand! Portanto era necessário afetar seus leitores/ ouvintespara que aceitassem a distintividade das paixões trobriandesas antes deexpor seu ponto de encaixe na pragmática da vida social. O público

tinha que aceitar a naturalidade das ideias trobriandesas em seu contex-to _ uma vez que esse contexto tinha sido criado na separação entre acultura daqueles para quem Malinowski falava e a cultura daqueles sobre

quem ele falava. Exigia-se a conivência do público por sua distância comrelação ao tema do antropólogo. Enquanto isso, o antropólogo se moviaentre os dois. Sua proximidade com a cultura que estudava se tornava sua

para falar sobre duas maneiras radicalmente diferentes de organizar o mundo. Issopode abrir espaço para a sugestão empirista de que a dádiva nunca foi observadaem nenhum estado puro. Mas objeções desse tipo deixam um sério problema: deque outra maneira pode um escritor, abordando a Melanésia, apresentar para umamplo público ocidental a distintividade da organização social melanésia, das ideiasde pessoa, de toda a sutileza e complexidade, assim como as maneiras tão funda-mentais e cruas nas quais os conceitos melanésios têm ou não analogias no mundoocidental? Sendo essa uma necessidade da prática literária, como se pode proceder?De Heusch, por exemplo, reduz a ideia de dádiva a uma transação econômica ecoloca em seu lugar a ideia de cozinha ritual como "a expressão da ordem social"(1985, p. 17). Antropólogos fazem esse tipo de coisa o tempo todo, mas isso tornaa comparação difícil, porque é preciso conhecer o locus literário de tais construtoS

na consideração do escritor: a que eles servem - não apenas como eles são definidos,mas que papel eles desempenham na construção da análise.

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distância em relação àquela a que se dirigia, e vice-versa, Grosso modo,foi assim que o pesquisador ou pesquisadora de campo modernofista)se imaginou desde então."

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Estamos agora em melhor posição para apreciar a persuasão das ficçõesde Frazer e sua reputação entre antropólogos modernistas que não asconsideraram de modo algum persuasivas.

Quando os novos arcabouços para comparação foram criados - a dis-tintividade de diferentes tipos de sociedade fornecendo uma base para oque se tornou, em essência, uma comparação de contextos -, a sociologiacomparativa de Frazer pareceu ridícula. Daí a queixa mais comum aseu respeito, que ele separou as coisas de seu contexto." Seu tratamentoepisódico do Antigo Testamento e as similaridades que mostra entre oscostumes hebreus e os da Melanésia, África ou quaisquer outros parecemacarretar o pior tipo de empréstimo indiscriminado, sem apreço pelascircunstâncias históricas ou sociais. Frazer não estava manipulando asdiscriminações internas entre escritor e tema, entre observador e obser-vado, que tipificaram os modernistas. Pelo contrário, confiava numalinhagem unindo suas próprias revelações e interesse contemporâneopelos clássicos, neste caso o Antigo Testamento, e a história primeva dohomem. Longe de distanciar-se de seu público, ele parecia compartilharmuito com ele.

42 A tríade escritor/ objeto/ público foi constantemente explorada como díade (obser-vador/ observado, antropólogo-repórter/leitor) (cf Webster, 1982).

43 Gellner (l985b, p. 645) usa essafrase ao falar da reação do funcionalismo de Malinowskià especulação frazeriana. Frazer reúne uma vasta gama de dados fragmentários, fora deCOntexto,enquanto o método do trabalho de campo de Malinowski, observa Gellner,era uma exploração exaustiva de contextos sociais. Lienhardt (1966, p. 27) apresentaSucintamente a ortodoxia modernista: Frazer "achou que podia entender crenças es-trangeiras bastante fora de seus contextos reais apenas pelo esforço de introspecção".

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Certamente, ele não evidenciou nenhuma das estratégias que se torna-riam tão significativas. Primeiro, não estava interessado no status de suasmolduras, em especificar perpetuamente seu próprio etnocentrismo.Daí a facilidade com que compreendia o que era estar em Nemi, ou queexpectativas de condura poderiam recair sobre os antigos hebreus (porexemplo, 1918, vol, 3, p. 80). Não havia problema em interpretar asemoções e motivações das pessoas. Ao longo de sua descrição minuciosasobre o casamento, Frazer é meticuloso ao localizar as fontes particularesa partir das quais ele compila seus inumeráveis fragmentos de informação.Sempre que possível, ele cita razões como se pessoas as tivessem fornecido,mas não hesita em supri-Ias ele mesmo. Este é um comentário sobre a

troca direta de mulheres na Melanésia (vol. 2, p. 216):

Sem dúvida, a prática de trocar mulheres em casamento pode ser observadapor uma variedade de motivos, um dos quais em certos casos pode bemser o desejo de manter com todas as forças uma família, ao somente entrarcom uma parte em mulheres na condição de receber um número igual demulheres em troca. Mas tal motivo de política pública parece menos simplese primitivo que o motivo puramente econômico que eu considero na basedo costume; pois enquanto o motivo econômico apela diretamente a cadahomem em sua capacidade individual, o motivo público apela para homensem sua capacidade coletiva, como membros de uma comunidade, e portantoé provável que afete apenas a minoria ilustrada capaz de subordinar seusinteresses privados ao bem público.

Essa seleção de razões é governada pelo que ele imputa como exemplosprováveis de comportamento simples e primitivo. Poucas monografiasmodernas não impuram também pensamentos e sentimentos às pessoasque descrevem; a diferença é a validação da presença do pesquisador decampo, que usa a si mesmo como um dispositivo de medida (cf Clifford,1983). Ao falar sobre os motivos econômicos do casamento, Frazer tinhaque ser guiado pelos etnógrafos que se reportavam a ele. Logo, afirmacautelosamente que "se diz que os nativos da costa norte da Nova Guinéholandesa encaram suas filhas casado iras como produtos que eles podemvender sem consultar os desejos das próprias garotas" (1918, vol, 2, p.

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217). No entanto, isso leva não ao escrutínio do que os ditos nativospossam querer dizer, mas a uma extrapolação geral (p, 220):

Parece provável que, em todos os lugares, a prática de trocar filhas ou irmãsem casamento fosse inicialmente um caso simples de escambo e que issosurgiu num estado inferior de selvageria, em que mulheres tinham um .valor econômico como trabalhadoras, mas a propriedade privada aindaestava em estágio tão rudimentar que o homem praticamente não tinhanada equivalente para dar em troca de uma esposa senão outra mulher. Omesmo motivo econômico pode ter levado ao florescimento de tais uniões,em que primos cruzados casariam uns com os outros (... ).

Para um leitor modernista, não é apenas a economia, mas as estruturasdo parentesco que exigem elucidação. A relação entre estas coisas dariauma autoridade interna à consideração. Frazer estabelece sua autorida-de, entretanto, com referência a uma moldura extrínseca - o sentido dehistória que ele compartilha com seus leitores (p. 220):

Se a história dos costumes pudesse ser seguida nas muitas e distintas partesdo mundo em que prevaleceu, seria possível remontar a essa origem simplesem qualquer lugar; pois sob a superfície similar de selvageria e civilização, asforças econômicas são tão constantes e uniformes em sua operação quantoforças da natureza, da qual sem dúvida são apenas uma manifestação pe-culiarmente complexa.

Frazer não estava particularmente interessado, portanto, em desemol-durar suas ideias em relação às de seu público ou àquelas que descrevia,e o segundo ponto é que consequentemente ele não teve que atribuirum sentido positivo ao bizarro. É verdade que tentou mostrar como osCostumes, uma vez abandonados e tachados de bárbaros, não deveriamser recusados no Antigo Testamento como fantasias, pois carregavamsemelhanças com as práticas de muitas culturas. Mas isso não era amesma coisa que atribuir-lhes sentido. Antes, confirrnava-lhes o statusde índices de selvageria: o selvagem de Frazer era o homem antigo, cujaspráticas de tempos simples e primitivos ainda estavam preservadas. Eleestabeleceu a plausibilidade de numerosos costumes que reportava, mos-

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trando como ainda ocorriam e voltavam a ocorrer, oferecendo motivose razões para sua compreensão geral da sociedade primitiva. Mas nãohavia necessidade de [ustificá-los em termos de um sistema lógico ouprovocar conexões com outras ideias. Sua narrativa mostrava, exemploapós exemplo, o que aconteceu - sendo incapaz de criar um contextointerno que permitisse transformar o puramente concebível em lógicacultural distinta. A atribuição de sentidos aos costumes só funcionavade forma muito limitada. Sobretudo, Frazer não tinha motivação teóricapara transformar o exótico em comum. Pelo contrário, o efeito de suacomposição literária era mostrar, ponto por ponto, o comum tornar-se

cognato ao extraordinário. 44

Talvez seja este o poder de todos aqueles exemplos fora de contexto.A propósito do Antigo Testamento, Frazer contava uma história queseria muito familiar a seus leitores. O que quer que se pensasse acercade incidentes particulares, na moldura da estória bíblica eles encon-travam um lugar estabelecido há longa data." Ele expõe a históriaepisódio por episódio, mostrando as afinidades dos costumes hebreus

44 Boon (1982, p. 11) afirma que a prosa de Frazer descreve ritos inacreditáveis de modocrível. Ao mesmo tempo, enquanto Malinowski inscrevia práticas não como espécimesexóticos, mas como experiência humana direta, Frazer "representava a culminânciade compilações tradicionais, de 'compêndios de modos' e gabinetes de curiosidades"(1982, p. 17). Frazer tornava tais curiosidades plausíveis, mas não lógicas. Cf. Stocking(1984, P: 183): "antropólogo de gabinete em sua forma arquetípica, Frazer podiadar a [crenças e costumes irracionais] significados racionais, através do utilirarisrnoracionalista embutido na doutrina da sobrevivência: o que não fazia nenhum sentidoracional no presente era perfeitamente compreensível como a persistência absolutada busca imperfeitamente racional da utilidade, num estágio anterior".

45 A própria resenha de Malinowski (republicada em 1962) da edição reduzida de Folk--lore comenta que Frazer reforma fatos e situações familiares (a "história é revividapor meio de todos nós"), mas que, embora familiares, eles sempre foram incômodose incompreensíveis, atados a sonhos e fantasias instilados na infância. Feeley-Hamik(1985) desenvolve a sugestão de que lhe Golden Bough, por ser um tratado sobreos pensamentos selvagens que compelem as pessoas a matar para prosperar, expõe osacrifício do padre/ rei como metáfora para compreender a irracional idade e violêncialatentes, nos termos da autora, à superfície afável dos ideais cristãos de progresso naInglaterra vitoriana e eduardiana.

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com aqueles cultivados por povos selvagens e patriarcais em todo omundo. Incidentes que poderiam ser aceitos apenas como parte danarrativa são mostrados como notáveis em comparação a costumesexóticos. Logo, a disjunção em torno da qual Frazer joga está entrea percepção anterior de seus leitores - que viam os costumes bíblicoscomo corriqueiros - e seus cognatos, nada corriqueiros. Isso permiteuma disjunção maior entre os costumes que o leitor ou leitora tomacomo dados em sua cultura e as origens desses mesmos costumes sobregimes selvagens bastante diferentes. Em resumo, Frazer desmontouseu texto. O que tem coerência na forma de um desdobramento delendas bíblicas revela-se como um palimpsesto de relatos sobre eventosque não mais pertencem intrinsecamente uns aos outros, mas em vezdisso apresentam semelhança familiar com feitos em todas as partes domundo. Eles devem ser apreciados à luz das razões práticas e sociais queaparecem em muitas épocas e locais: uma cultura global, sem dúvida,diferenciada apenas pelos estágios de selvageria e civilização."

As notas prefaciais de Frazer, com a data de maio de 1918, concluemcom a observação de que "a revelação dos elementos imorais, subjacen-tes à civilização da antiga Israel assim como subjazem à civilização daEuropa moderna, serve antes para efeitos de comparação, para levantar,por contraste, a glória de um povo que, das profundezas da ignorânciae da crueldade, pôde erguer-se a tão brilhantes alturas" (1918, vol. I, p.x). Não é apenas a multiplicidade de épocas e lugares que surte efeito,mas sim que Frazer, por meio de seus paralelos, tenha desenhado cul-turas que já podiam ser classificadas na mente do leitor como exóticas.A revelação era que a chamada civilização devesse consistir em muitaselvageria prévia. Teria sido essa justaposição entre civilização e selvageria

46 Ele parece utilizar essa classificação repetidas vezes, mas sem que isso organize seusarranjos de exemplos. Também não busca paralelos históricos para seus personagensbíblicos. Logo, ele cita paralelos semelhantes com a Papua Nova Guiné em suas dis-CUssõesem PatriarchalAge [Era parriarcal] e lhe Times ofJudges and Kings [O tempodos juízes e reis].

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que atingiu as mentes de seus contemporâneos? No relacionamento queFrazer desfrutava com seus leitores médios e (através do que lia) comaqueles sobre quem escrevia, ele presumiu uma continuidade. Tratava-sede uma continuidade que abraçava igualmente o racional e o irracional,que pôde ser compartilhada nos parâmetros ou da selvageria ou da civi-lização, nenhum destes elementos distinto em sentido absoluto, comoatributo de uma ou de outra sociedade. A "minoria ilustrada" entre osmelanésios de Frazer prefigurou uma atenção civilizada ao bem público,como a luz literária que irradiava dos escritores hebreus. Este tema dailuminação percorre sua narrativa em consistente paralelo com a des-coberta dos "elementos imorais": "Os anais da selvageria e superstiçãoinfelizmente compõem uma vasta parte da literatura humana; mas emque outro volume [a não ser pelo Antigo Testamento] encontraremoslado a lado, em registro melancólico, salmistas que derramavam seusesforços doces e solenes, etc.?" (1918, vol. I, p. xi, grifo meu). Leitor eescritor compartilham um texto: o que o escritor força seus leitores aperceber é a irregularidade do próprio texto, sua multivocalidade, suaconjunção lado a lado de selvageria e civilização.

Quando cinquenta anos antes Lubbock proferiu uma palestra à RoyalInstitution sobre "A origem da civilização e a condição primitiva dohomem", confessou um bloqueio em seu desejo de descrever a "condiçãosocial e mental dos selvagens" (1875a): ele teria de se referir a ideias eatos que poderiam aborrecer seus leitores. Frazer, no comando de umasurpreendente gama de materiais, muitos dos quais coletados nos anosseguintes, faz um vívido discurso sobre a condição social e mental dosselvagens por meio de textos intermediários, de obras completamentefamiliares e respeitáveis. O resultado, como sugeri, é a exotização da-quelas ideias familiares e respeitáveis. O mundo é visto como plural,compósito, cheio de modos diversos, de ecos do passado. O presente, ocorriqueiro, guarda todas as possibilidades coloridas do folclore, tantoquanto a civilização quase se revela como um ocultamente da miscelâneade práticas que pertenceram a dias mais obscuros e antigos.

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Na realidade, chega a ser possível chamar Frazer de um "esteta comhabilidade para selecionar referências", para quem "o ato da invençãoconsiste em reler o passado e recombinar uma seleção de seus elementos"(The Listener, 20/03/1986, p. 32), ou dizer que seu estilo "evoca, .dápistas, lembra" num mundo de infinitas referências, em que signos "nãosão arbitrários, porque os significados estão sedimentados neles: signostêm 'estado por aí'; eles mostram as pegadas de manobras semânticaspassadas"; em consequência, "ao invés de passos analíticos, há um usosugestivo de imagens, manobras desafiadoras e numerosas reservas", demaneira que escrever chega a parecer uma disseminação ou explosãopromíscua (Crick, 1985, pp. 72-73, citando Tyler, 1984, p. 329). Estasobservações não são, é claro, sobre Frazer, mas representam duas ten-tativas de evocar um temperamento pós-moderno. Isso me leva a meuscomentários finais sobre a natureza da criatividade de Frazer.

Jogando com o contexto

Se estamos ou não entrando numa fase pós-moderna da antropologiasocial, gente suficiente parece falar como se estivéssemos, para suscitarinteresse pela ideia. Crick vê essa tendência em meio a diversas outras,que incluem a antropologia reflexiva, a antropologia crítica, a antropo-logia semântica, a antropologia semiótica e o pós-estruturalismo (1985,p. 71). Segundo ele (citando Hastrup, 1978), essa não é uma posiçãounitária, mas uma consequência do modernismo, e não podemos ficarsurpresos porque parece não haver futuro algum em particular" ou

47 Se moderno é um tipo de futuro apropriado, seu colapso deve ser percebido comoo colapso do futuro (Ardener, 1985, p. 57). No entanto, da mesma maneira queexperiências atuais de escrita ernográfica trazem o modernismo à consciência, elastambém podem ser vistas como parte do próprio modernismo (cf Marcus, 1986);cf. Foster (1985 [1983], p. ix): "Se o projeto moderno deve, de alguma maneira, sersalvo, ele deve ser ultrapassado". Sobressairá meu uso do contraste entre modernismoe pós-modernismo para indicar uma mudança na escrita antropológica - pode-se ounão desejar subsumi-la ao termo "moderno".

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porque a história pode ser virada ao contrário. Crick descreve comoapropriadamente irônica a recuperação de Leenhardt, predecessor deLévi-Strauss em Paris, cujo trabalho atingiu o ponto certo para ser desco-berto na era pós-estruturalista (Clifford, 1982, p. 2; cf Young, 1983, p.169). Ao mesmo tempo, Ardener (1985) argumenta que, embora outrasdisciplinas possam ver o estruturalismo como pós-moderno, seu lugar naantropologia é o de um fenômeno completamente modernista. Assim,ele localiza o tempo do modernismo entre a antropologia de Malinowski(em 1920) e o começo do dedínio da influência estruturalista, na metadedos anos 1970. O dedínio do modernismo/ estruturalismo é sublinhadopela ressurreição de Leenhardt, uma figura que precedeu o principalexpoente do estruturalismo na antropologia (Crick, 1985, p. 72).

Crick chama a atenção à biografia de Leenhard, feita por Clifford. Lee-nhardt é apresentado como alguém cuja obra "se dedica à preocupaçãopresente com teorias culturais mais 'abertas' - modos de compreensãocapazes de contribuir para processos inovadores e a descontinuidadehistórica (...) e pela reciprocidade na interpretação etnográficà' (Clifford,1982, p. 2). O acesso de Leenhardt ao "ponto de vista dos nativos" se deunão apenas por meio da empatia no trabalho de campo, mas envolveuum trabalho coletivo de tradução mútua, que não poderia ser facilmentedominado por uma interpretação privilegiada (Clifford, 1980, p. 526).O contexto para o interesse de Clifford é o de reciprocidades similares,identificáveis na escrita de uma nova geração de etnógrafos preocupa-dos com a representação do diálogo - como se lida com o encontro notrabalho de campo e, portanto, como a etnografia é escrita.

A defesa de Leenhardt pelos historiadores também envolve algo de umataque a Malinowski (Clifford, 1983).48A época parece madura para se

48 "Ataque" é uma palavra forte demais à luz de seu apreço geral por Malinowski. Aocomparar, a posteriori, Malinowski como autor de diário e como autor de Argonautas,Clifford (1986) o ressuscita como um heteroglota original, alguém capaz de expe-rimentar diferentes vozes, diferentes personae; e descreve com simpatia a "estruturaampla, multiperspectivada, cheia de meandros de Argonautas" (1986, P: 156), em

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expor a figura do pesquisador de campo que foi o registro da outridade dasculturas. Clifford enfrenta a autoridade que os antropólogos afirmavamter gerado com seus escritos: o pesquisador de campo que regressava deoutra sociedade falava sobre ela de uma determinada forma, que agoraparece repugnante. Se antropólogos afirmaram ou não tal autoridade,está fora de questão. É o tipo de livro que escreveram que se expõe: amonografia, apresentada como se fosse apenas sobre um povo particular,o autor ausente, pois o pesquisador de campo éa autoridade do texto (vertambém Marcus e Cushman, 1982, pp. 31-32). Mas "o silêncio da oficinaernográfica foi quebrado - por insistentes e heteroglotas vozes, pelo somarranhado de outras canetas" (Clifford, 1983, p. 121). Por enquanto,tem-se tornado amplamente aceito que o pesquisador de campo deva serreescrito no texto também no papel de autor e reproduzir as condiçõesde seu encontro com o outro. A antropologia reflexiva vê a produção re-sultante como um diálogo entre o antropólogo e o chamado informante:o relacionamento observador! observado não mais pode ser assimiladoàquele entre sujeito e objeto." O objerüv)« é uma produção conjunta.Muitas vozes, múltiplos textos, autoria plural (por exemplo, Rabinow,1983; Clifford, 1980 e 1982) sugerem um novo gênero. "A etnografiadeve confiar de boa-fé na miríade de contingências e personalidadesopacas da realidade, e negar-se a ilusão de uma descrição transparente"

que os modernistas viam apenas argumentos sem estrutura. Clifford sugere que o fatode que uma totalização convincente sempre escapou ao trabalho de Malinowski oalinha com o cosmopolitismo mais atual. Em seu artigo anterior, Argonautas se tornao arquétipo para uma geração de ernógrafos que "com êxito estabeleceram a validadecientífica da observação-participante" (Clifford, 1983, p. 123-24). A tese de Cliffordé que o que foi criado na escrita da ernografia foi a experiência do pesquisador decampo como fonte única de autoridade, dissonante da própria experiência de cam-po. O que, portanto, exige ataques é a autoridade enraizada no símbolo literário deMalinowski como pesquisador de campo.

49 W'iebster (1982, p. 96) critica a tradição da antropologia na qual o sujeito compreen-sivo e o objeto compreendido são abordados como realidades primordiais. Pensarque se pode substituir sujeito por objeto não basta: temos que saber que é no cursodo diálogo que tanto subjetíficação quanto objetificação são necessariamente criadas.

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(Webster, 1982, p. iii). Escrever tornou-se uma questão de autoria, aindaque para negá-Ia novamente já que a "realidade negociada" do texto é arealidade social ou experimental de nenhum grupo (Crapanzano, 1980).

Ao longo de uma ou duas décadas, têm sido crescente a consciência deque as dicotomias que caracterizaram o modernismo na antropologianão servem, sendo o alvo mais fácil a sincronia, a atemporalidade das

'-descriçõesemolduradas não pela história, mas pela distinção entre "nós" e"eles".De fato, sempre houve críticas à a-historicidade da antropologia, naqueixa enganosa de que os antropólogos criaram uma ruptura idealizadaentre a sociedade original, "antes do contato", e a "mudança social" desdeentão (enganosa porque, tomando de empréstimo ideias de Ardener, lêas dicotomias como uma questão de vida, mais que de gênero). Isso sesoma às críticas crescentes sobre a audácia do antropólogo de falar pelooutro, de tratar outras pessoas como objetos, não permitindo a própriavoz aos autores das considerações, e assim por diante. 50 Em resumo, aquelapoderosa moldura modernista, a distinção entre "nós" e "eles"que criou ocontexto para posicionar o escritor ou a escritora com relação àqueles quedescrevia, tornou-se completamente desacreditada. O outro como objetoliterário, tomado pelos críticos como sujeito humano caracterizado comoobjeto, não mais pode sobreviver como a moldura organizadora explícitade textos. Nenhum conjunto de vozes deve ser negado ou privilegiado - oautor ou a autora deve objetificar sua própria posição na ernografia, tantoquanto luta para interpretar a subjetividade dos outros.

Há uma ambivalência inerente ("lúdica", nas palavras de Crick) em cer-tos expoentes atuais do pós-modernismo. Eles estão merecidamente atrás

50 Marcus e Cushman (1982, pp. 25-26) argumentam que a recente autorreflexívidadena escrita etnográfica quer desmistificar o processo de campo e, assim, confrontar aobjetificação dos textos resultantes. Geertz (1985) se refere à autodúvida pós-modernacomo ansiedade sobre a representação do outro no discurso ernográfico. No entanto.é interessante notar um paralelo entre a crítica de Webster (1982, p. 97) a Geertze a crítica de Rabinow a Clifford: tanto Geertz quanto Clifford estâo em sinroniacom múltiplos textos, mas procedem de modo a ausentar-se da narrativa - ou seja,falham ao objetificar a sua própria participação.

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do acontecimento - pois sua força reside na exposição da construçãoartificial do estruturalismo, da autoridade etnográfica, do que seja." Demodo semelhante, estruturalista e etnólogo também. estavam jogandojogos; a diferença é que não sabiam. Essa consciência é definitivamentepós-moderna. O gênero apropriado não é representação, mas a "repre-sentação de representações" (Rabinow, 1986, p. 250).52Na decorrentereapropriação da história antropológica, Leenhardt é particularmenteinteressante por ser um pesquisador de campo pré-malinowskiàno." Tal-vez ele seja atraente na medida em que a corporificação religiosa de suasideias (Clifford 1982, p. 3) evidencia um afastamento do sociológico edo fenomenológico em direção a signos enraizados nos usos humanose, intencionalmente, àquilo a que Tyler se refere (1984, p. 328). Oobservador missionário é um bom exemplo, pois seus entendimentossáo voltados a objetivos claros. Mas a antropologia britânica tem suaprópria figura proeminente, por assim dizer, no suposto predecessor deMalinowski, Frazer. De fato, em alguns aspectos, a totalidade livrescade Frazer é altamente evocativa.

51 Ponto também levantado fora do interesse antropológico pelo pós-modernismo; daío comentário de Jameson de que haverá tantas formas diferentes de pós-modernismocomo houve formas estabelecidas de elevado modernismo (1985, p. iii). Se, assimcomo na antropologia, o "modernismo" é agora descortinado retrospectivamente,haverá ambiguidades consideráveis sobre o que é modernista e o que é pós-modernista(ver nota 44). Um binarismo simples não basta: à medida que o pós-modernismorecupera o passado, ele procura recuperar também o modernismo, e portanto é elepróprio um projeto modernista.

52 Beneficiei-me da leitura do rascunho do artigo de Rabinow, como fiz com Marcusno mesmo volume (Writing Culture). Este e o trabalho de Marcus e Fischer sobrea antropologia como crítica cultural foram publicados depois que minha palestrajá estava preparada; não os considero aqui, embora ambos sejam claramente fun-damentais para meus temas. Sou grata a Paul Rabinow por seus comentários sobreesta palestra.

53 Young (1983, p. 169): "Como um ernógrafo, Leenhardt preenchia amplamente ascondições para o trabalho de campo intensivo cerca de 12 anos antes de Malinowski,buscando a maestria na língua nativa como chave para sua pesquisa".

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Não estou sugerindo que Frazer seja pós-moderno. Ele não poderia sê--10, pois esse estado" retira sua criatividade do modernismo (Ardener,1985, p. 60). Mas talvez Frazer seja alguém que o pós-modernismonos permitiria aprovar. É salutar pensar em Frazer porque - retirandoas coisas de contexto - é salutar pensar naquilo que os modernistasconsideravam tão desagradável a seu respeito. O estado pós-modernoé jogar de forma deliberada com o contexto. Diz-se para borrarmos asfronteiras, destruir a moldura dicotomizante, justapor vozes de modo atornar concebível o produto múltiplo, a monografia autorada conjun-tamente. Permanece tarefa doia) leiroría) decidir seu caminho atravésdas diferentes posições e contextos daqueles que falam. Meros pontosde vista (cf Hill, 1986), tais contextos deixaram por si sós de ofereceras molduras organizativas da narrativa etnográfica. Contempla-se umanova relação entre escritorta), leitorta) e tema. Decodificar o exótico("atribuir sentido") não mais funciona; o pós-modernismo requer queo(a) leitorfa) interaja com o exotismo per se.

No entanto, quero introduzir uma nota de discórdia: reerguer Frazer,tanto com respeito quanto como um espectro. A discórdia fica entre oque antropólogos contemporâneos estão fazendo ao brincar com rótuloscomo pós-modernismo e o que continuam a fazer em seus escritos. Defato, como ocorreu nos primeiros programas de escrita feminista, hámais palavras sobre o que o pós-modernismo pode ser do que exemplosdele. Sugiro que há uma diferença significativa entre borrar contextos ejogar com eles, entre jogo livre e jogo estruturado, entre uma identidadecompósita e reciprocidade; e que a evocação do pós-modernismo se apoiaem imagens nem sempre apropriadas para a antropologia que se vê como

* N T.: O substantivo mood (atmosfera, estado de espírito ou humor) foi autoatribuídopelos pós-modernos, aludindo ironicamente a uma posição transitória, mais do que auma escola, tradição ou corrente. Assim, na própria recusa a identificar-se como umaescola com um projeto único, os pós-modernos assumiam a liberdade para o jogoentre diferentes afiliações teóricas e o livre trânsito entre posições que lhes parecessemmais oportunas no momento.

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tal. Os antropólogos que podemos identificar como pós-modernos'?estão cientes do jogo com o contexto; eles não apenas o embaralham.Crick afirma (1985, p. 85) que não há jogo livre, que um paradoxo éimpossível sem uma noção das regras. O problema é que a representaçãoda atividade como pós-moderna borra tal distinção - residindo, em vezdisso, na libertação trópica que se obtém ao saltar de um contexto aoutroS.55 É aqui que entra o espectro. Se de fato queremos embaralharcontextos, então temos um guia histórico no próprio Frazer.

A esta altura, devo deixar explícita minha posição. Há uma tensão entredois estilos/ molduras, nenhum dos quais abarcando bem o outro. Oprimeiro poderia zombar de si mesmo ao seguir a tendência contem-porânea de acentuar o aspecto literário da obra de Frazer: mais que ocientífico ou o argumentativo. O próprio uso da palavra "ficção" exprimeum jogar autoconsciente. Isso reflete incerteza de minha parte sobre aque se refere a ideia de pós-modernismo. Claro, a resposta é que a ideianão "se refere" (a qualquer coisa além de si) - é posta em ação, perfor-matizada. O segundo estilo/moldura é modernista. Procurei uma certaperspectiva sobre Frazer ao colocar parte de seus escritos em contexto,e portanto produzi um tipo de história. Apesar de considerar Frazer eMalinowski a partir de suas ficções persuasivas, os apresentei como secompartilhassem um problema modernista, qual seja, como exprimiridéias alheias através das culturas. 56 Argumentar que Malinowski o fez de

54 Ou os antropólogos interessados em questões levantadas ao assumir uma posturadeliberadarnente pós-moderna, mas que não necessariamente adotariam o róculopara si mesmos. Esta posição é exatamente análoga àquela dos antropólogos interes-sados em assuntos feministas, mas que não necessariamente se denominam comoantropólogos feministas.

ss O que podemos chamar de má representação do pós-modernismo vem dos mesmosesforços para represenrá-lo. Novamente, fora da antropologia, Foster (1985, p. xi)sofre para distinguir o pós-modernismo - um conflito específico entre velhos e novosmodos - do relativismo e pluralismo, "a noção quixotesca de que todas as posiçõesna cultura e política estão agora abertas e são iguais".

S6 Marcus e Cushman (1982, p. 46): "Não apenas a linguagem conceicual e descritivado etnógrafo faz sentido (produz senso comum) para seu leitor de acordo com sua

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modo diferente de Frazer projeta o problema para trás, na mesma formacriada por Malinowski e seus colegas. Porém, ao colocar essasabordagenslado a lado, permitam-me sugerir que é possível apreciar Frazer sob novaluz e perguntar por que devemos ser cautelosos ao fazê-lo.

Um estilo pós- moderno?

Se há uma palavra que resume o reconhecimento antropológico dohumor pós-moderno, é ironia. 57 E a redescoberta atual da ironia mostratoda a diferença entre o jogo livre - apontado em algumas descrições dopós-modernismo - e o jogo estruturado pós-modernista - se é que eleexiste - na escrita antropológica. A ironia envolve não um ernbaralha-mento, mas uma justaposição deliberada de contextos, pastiche talvez,mas não bagunça.

Aqueles que têm consciência da ironia encontram ironia nos outros.Estou tentada a sugerir que parte da leitura de Darwin empreendidapor Beer faz essa jogada. Ela comenta o quão rica em elementos con-traditórios é a prosa de Darwin, quão polivalente e cheia de potencial

própria moldura cultural, mas também deve comunicar significados para os mesmosleitores que, acreditam, dariam sentido (outra vez, produzindo senso comum) aosobjetos emográficos".

57 Sou grata a Richard Fardon e James Boon por seus comentários num rascunhoanterior deste paper e por mostrar que a ironia pode assumir muitas formas. Seriapossível construir uma tipologia virtual de ironias. No entanto, deve ficar claro quenão pretendo discriminar, desse modo, entre os tipos de mecanismo de distanciamentoe os falsos reconhecimentos que possamos identificar nos escritos de antropólogosdo passado; diferentemente, meu interesse está no fato de que a "ironia" se tornouatualmente uma palavra ruidosa para distância e reconhecimento de parte de co-mentadores contemporâneos. É pela frequência com que o termo é usado agora nacontemplação de escritores do passado que ele me intriga. Necessariamente, portanto,são os comentadores que adotam uma postura irônica - em sua forma extrema,aproximada por Jameson ao pastiche: "Pasriche é uma paródia em branco, paródiaque perdeu seu senso de humor: o pastiche está para a paródia como algo curioso,a prática moderna de um tipo de ironia em branco está para (... ) as ironias estáveis ecômicas, digamos, do século XVIII" (1985, p. 114, grifos meus).

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hermenêutico, com seu "poder de permitir um grande número desentidos significativos e múltiplos" (1983, p. 10). Ele aceita a variabi-lidade das palavras, "sua tendência a dilatar-se e contrair-se através desentidos correlatos, oscilar entre significações" (p, 38). Como sugere aautora, as metáforas profusas de Darwin renunciam a uma clareza ouunivocalidade cartesiana, ecoando o contraste utilizado por Boon paradescobrir que a visão de Frazer, assim como sua prosa, podem ter sidorocadas pela ironia; Frazer substituiu a relatoria unidimensional pelarepresentação multidimensional (1982, p. 11),58enfatizou a rica gamado rito primitivo, enfrentando o paradoxo (diz Boon) que antropólogosmodernos preferiam evitar: "como as culturas, apesar de perfeitamenteadequadas ao senso comum, quando vistas de dentro flertam com suaspróprias 'alteritivas', * ganham autodistanciamento crítico, formulamperspectivas complexas (mais do que apenas reacionárias) sobre as outras"(1982, p. 19). Por contraste, argumenta Boon, o funcionalismo a partirde Malinowski tornou-se uma antropologia sem ironia. 59

58 Comparar com a observação de Downie (1970, p. 21), para quem que lhe GoldenBough não tinha objetivo único.

* N.T. Alternities, no original em inglês; neologismo que combina "alternativas" e"alteridade" .

59 Ainda assim, parece não haver fim para a descoberta contemporânea da ironia nosOutros. Logo, o próprio Thornton (1985, p. 14), ao justapor contextos (Malinowskie Conrad enquanto escritores), apresenta um retrato de Malinowski como fixado na"agonia auto imposta da solidão, na própria confluência da contradição" (uma con-tradição colocada na interação entre imaginação e descrição, pensamento civilizadoe primitivo, adesão e dúvida). A visão da monografia etnográfica, dos incomparáveiscomparados, abriu espaço para um "senso de ironia profundo": nenhum evento era oque parecia ao nativo, em virtude das categorias universais da ciência social ocidental.Ele sugere que, ao final do século XIX, a escrita emográfica passara a "refletir umavisão irônica dos povos que deviam ser examinados, tanto para si mesmos quantopara o resto do mundo" (1983, p. 516) (aqui Thornton inclui Prazer). Stockíngtoma como dada a "gentil ironia" da atitude de Malinowski diante de seus sujeitosmelanésios, como uma característica da emografia moderna (1983, P: 108). Tantoo etnógrafo compartilha de sua visão quanto sabe coisas sobre eles que eles nãosabem (cf Webster, 1982, p. 93). Clifford (1986, p. 145) fala da "postura irônica daobservação participante", pressuposta pela antropologia moderna. Tudo o que estou

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A preocupação de Beer é com os problemas que acometeram Darwin aoprecipitar sua teoria em linguagem (1983, p. 5). Ela lida comA origem dasespécies como um exemplo extraordinário de uma obra que abarcou maisdo que seu criador sabia na época, apesar de tudo o que ele sabia (p, 4).Não nos é exigido considerar seu uso da linguagem como inteiramenteplanejado - estamos falando da maneira pela qual uma obra fica regis-trada na mente de seus leitores e, portanto, de seu poder de persuasão.Stocking (1983, p. 105) escreve que, se Malinowski tinha consciência deque a etnografia era um artifício literário, só nos restam nossos própriosdispositivos crítico-literários para explicar o método desse artifício. Aoque se deve acrescentar: nós é que estamos interessados nos dispositivosliterários dos outros e na persuasividade de sua ficção, pois nesta quetambém é uma era pós-paradigmas não podemos tomar as moldurasque eles colocaram como se fossem fronteiras naturais (Marcus, 1986).60Quando Beer sugere que a linguagem de Darwin serviu para a teoria docientista, talvez queira dizer que ela (Beer) deve fazer disso uma verdadesobre si mesma. O mesmo provavelmente se aplica a qualquer sugestão,imputada por mim, de que Frazer estivesse lutando com as estratégiasmodernistas. Logo o "problema" de exprimir ideias alheias (adscrito aFrazer) é escrito (por mim) em sua obra, a partir de minha perspectivasobre ela. Se ele se propôs ou não a enfrentar conscientemente o pro-blema, isso aparece como um efeito de sua escrita. No entanto, essaaparência, por sua vez, deve vir da preocupação contemporânea com a

representação de representações.

Pergunto-me sobre Frazer no que se refere à ironia. Não estou certa deque suas intenções irônicas fossem as mesmas dos ironistas mais atuaise de que podemos recuperá-Io como alguém que antecipou nossos "eus"

sugerindo é que a descoberta dessa interação como algo irônico parece caracterizara reflexão da década de 1980 sobre esses tópicos.

60 Clifford (1986, p. 14) fala do pós-cultural, ou seja, uma situação sincrética nãoajustável a paradigmas unidimensionais. O privilégio dado a culturas naturais sedissolveu na aparência contemporânea de cultura como uma ficção.

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pós-funcionalistas. Sua diversidade conduziu à totalidade." Ele fezcontrastes equívocos (as duas versões da história da criação no Gênesisrecriam o debate entre Darwin e seus difamadores sobre a evolução eo criacionismo). Ele descentralizou seus textos (bíblicos e clássicos);ele restaurou vestígios do passado; ele lotou seus livros com múltiplasvozes numa forma de falar - mas apenas uma forma de falar. Aquelasnumerosas justaposições, melanésios e africanos se acotovelando lado alado, exibindo esta ou aquela crença, não estavam lá como "melanésios"e "africanos". Provavelmente, ele pensou na maneira pela qual qualquer

povo considerava iluminadas as crenças de outros povos, mas, comocolocou tais evidências fora de contexto, não eram os contextos (ou seja,ser melanésio ou africano) que se justapunham. Pode-se, a partir disto,ver tal procedimento como aquilo que os pós-íuncionalistas entenderam

por ironia? Não necessitamos nós que os contextos sejam identificados?Que a ironia repouse deliberadamente sobre o jogo? Crenças e costumesestariam justapostos não para revelar similaridade, mas para levantarquestões sobre ela. Diferentemente do modernista que "explica", que trazà tona parâmetros para a similaridade e a diferença, o pós-modernista(tenho notado) deixa esse trabalho para o leitor," Ele está interessado naprovocação em si mesma. Mas o legado dos últimos sessenta anos é quea provocação residirá precisamente na justaposição de contextos sociaisou culturais. Com que significado, então, atribuímos um "comparatismoirônico" a Frazer (Thornton, 1985, p. 14)? Será que entramos no espíritode ver toda comparação como irônica, e que Frazer, sem uma molduramodernista explícita, parece endossar nossos próprios sentidos de ironia?

61 "Alimentação misturada e rica", disse Marett (1920, P: 173). Por contraste, o sentidode profusão de Darwin, de um mundo polivalenre, foi controlado por sua teoria dasinter-relaçóes.

62 Outra vez Marett (citado por Kardiner e Preble, 1961, p. 106): "Pela magia da caneta

[do dr. Frazer], ele tornou viva a miríade de fatos, fazendo-os contar sua própriasaga, e estarnos livres para ler seu significado como ditarem nossos muitos gostos etemperamentos".

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Como quem encontra ironia nos outros, Clifford também é figuracentral nas considerações de Rabinow (1986) sobre o pós-modernismona antropologia e as promulgações de novos estilos etnográficos. Seriaconcebível um movimento do texto etnográfico para além da dialogia(a reprodução ensaiada de um intercâmbio entre sujeitos) rumo à hete-roglosia (uma utopia de esforço plural que dá a todos os colaboradoreso status de autores). Rabinow encontra nas sugestões de Clifford umadisposição equivalente àquela descrita por Jameson (1985) para o pós--modernismo na arte: mais que uma confusão de elementos, o pastichede filmes nostálgicos, por exemplo, obscurece a linha entre passado epresente, borrando a especificidade do passado. Esse aplainamento his-tórico deliberado reaparece como "aplainamento metaetnográfico quefaz de todas as culturas do mundo praticantes da textual idade" (Rabi-now, 1986, p. 250). Uma proliferação de referências a representaçõesdo outro esvazia os conteúdos de qualquer uma delas; o referente decada imagem é outra imagem." Rabinow dá voz a hesitações quanto aesta receita - sobretudo se tentarmos eliminar a referencialidade social,outros referentes ocuparão a posição vazia (1986, p. 251) - e duvida quetais estratégias discursivas de fato sirvam às intenções de alguém comoClífford.?' Se a antropologia endossa o estilo modernista de modo par-ticular, o mesmo ocorre com o pós-modernismo. Seus expoentes jogamcom diferentes contextos (como na justaposição de produções literárias e

63 Compare-se a discussão de Lowenthal (1985, p. 382-83), para quem a reação aoecletismo da amnésia histórica da vanguarda nas artes tem sua contrapartida arqui-tetônica no classicismo pós-moderno (motivos clássicos são empregados com ironia,para efeito decorativo, selecionados fora de contexto como um desafio a suas origense relaçóes, tudo atraindo no mesmo grau de interesse). Particularmente informativaé sua citação de um comentário sobre arquitetos italianos modernos que salvam nãoa história, mas suas próprias emoçóes, nostalgia e incidentes autobiográficos para

escapar à tradição do novo.64 Ao distinguir fontes diferentes de comentário pós-moderno (ele contrasta Lyotard

e Jameson), Rabinow separa pastiche de confusão, assim como Crick separa jogoestruturado de jogo livre, para criar a distância, também percebida por mim, entreironia (jogo com contexto) e titubeio (repúdio ao contexto).

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ernográficas), mais do que os borrm. O jogo permanece auto consciente;daí sua capacidade para a ironia."

Ao rever a biografia de Leenhardt feita por Clifford, Young nota suatotalidade e seu caráter aberto: "Clifford pensou longa e profundamentesobre Maurice Leenhardt, e algo da mesma colaboração complexa entreernógrafo e informante, algo do diálogo que produz um texto etno-gráfico, passou-se nesse caso entre biógrafo e sujeito" (1983, p. 170).A referência ao diálogo é também uma referência à reciprocidade, aoreconhecimento dos relacionamentos (como aquele entre ernógrafo einformante), e não a seu aplainamento (cf Clifford, 1980). Isso é o queconfere à antropologia pós-modernista seu sabor especial - se os rela-cionamentos envolvidos entre escritor e sujeitos devem ser negociados,mesmo revestidos de reciprocidade, seus contextos culturais não podem,afinal, ser embaralhados, como poderíamos dizer da escrita de Frazer.

Em resumo, fala-se mais do que se pratica a confusão. Seguindo amudança evidenciada por Clífford, Rabinow o contrasta com Geertz,embora em longo prazo o uso auto consciente de ironia por Geertz (cfWebster, 1982, p. 92) tenha antecedido a mudança. Geertz fala sobrea antropologia como uma mistura descentrada de visões díspares, otrabalho de campo como coloquial, improvisado. Ele fala sobre a antro-pologia recente num contexto social caracterizado por "uma desordemvocacional de entidades [disciplinares]" (1983, p. 23), da antropologia"titubeante" (1985). Mas, ao mesmo tempo que descreve a antropolo-gia como uma busca para manter o mundo em desequilíbrio, puxando

65 Da mesma forma, a consideração de Crick sobre o novo estilo antropológico queevoca, insinua, lembra, é amplamente reconhecida como argumento. Seu própriojogo está na justaposição deliberada de contextos: um contraste entre, por exemplo,o pesquisador de campo e aquela figura que o pesquisador ou pesquisadora de campoconsidera a mais diferente de si, o turista. Crick também argumenta que jogos exigemregras. "Se 'vale tudo', tem-se absurdo, não jogo" (1985, p. 85). A atitude de Boonfrente ao trabalho de campo é "jocosa", pois conceitua um ideal e ação que devem serSimultaneamente desmascarados e preservados (1982, p. x). Ele luta por um discursoque seja tão interpretativo quanto sistemático (p, 26).

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imaginamos que ele responda. Há problemas envolvendo a forma comque ele é representado, o pastiche interpretado como confusão. Perguntarse realmente desejamos retomar ao tipo de coisas que Frazer escrevia éuma forma de afirmação.

o tapete por debaixo da complacência (cf 1984, p. 275), ele tambéminstitui deliberadamente uma moldura. A dupla negatividade de seutítulo, "antiantirrelativismo" (que rejeita algo sem comprometer-se como que se rejeitou), é um jogo com molduras. Além disso, quando Geertzinicialmente introduziu a ideia de ironia, foi em referência a uma tensãomoral entre "antropólogo" e "informante", ou seja, como algo enraizadona conduta em um relacionamento social específico. Isto torna o jogocom contextos possível, mas a possibilidade de borrá-Ios sobretudo di-Hcil." Por que, então, mantemos uma noção de confusão, de contextosembaralhados? De que estamos falando?

A metáfora do jogo é poderosa (como revela Crick). Ela privilegia umcontexto sobre todos: o escritor retirando as molduras de sua escrita emmensagem teatral, "Tudo dentro dessa moldura é jogo". Logo, é jogoque se imagina como jogo livre. "Ficções" determinantes (a)parecem(para) transformar-se em ficções, o romance com novo sopro de vidacomo exercício antropológico. Pode-se lembrar aqui de Frazer, quandoadmite, na terceira edição de lhe Golden Bough (1911-15), que a alegoriado padre/ rei poderia ser desmascarada como um dispositivo dramáticoque lhe permitira falar sobre o pensamento e a sociedade primitivos.O drama, claro, é o desmascaramento - o potencial para o jogo é umareflexão tardia." Mas jogar com a ideia de pós-modernismo na antropo-logia levanta questões sobre os tipos de relacionamento social aos quais

Problemas modernistas

Que podem existir problemas de representação, isso é sugerido poraspectos das pesquisas feministas contemporâneas. Muito do discursofeminista é construído de forma plural. 68 Argumentos sejustapõem, commuitas vozes solicitadas na maneira com que as feministas falam sobresuaspróprias pesquisas. Não há textos centrais, não há técnicas definiti-vas;o empreendimento transdisciplinar deliberado joga com o contexto.Perspectivas de disciplinas diferentes são mantidas para iluminar umasàsoutras; ínsights históricos, literários ou antropológicos são justapostospor escritoras que simultaneamente têm consciência dos diferentes con-textos dessas disciplinas e se recusam a assumir um único contexto comomoldura organizativa. Se isso é reconhecidamente pós-moderno, entãoa pesquisa feminista é similar ao modo pós-modernista na antropologia(verYeatman, 1984),69com seu jogo consciente com os contextos.

E, sea pesquisa feminista encontra êxito sob tal aspecto, então seu sucessoreside firmemente no relacionamento - e em sua representação - entreapesquisa (gênero) e o movimento feminista (vida). O jogo com o con-texto é criativo, devido à continuidade expressa entre as finalidades das66 Embora as frases "gêneros borrados" e "mistura de gêneros" sejam de Geertz. Ele

escreve (1983, p. 23): "Os instrumentos da razão estão mudando e a sociedade é cadavez menos representada como uma máquina elaborada ou quase organismo, e maiscomo um jogo sério, um drama de calçada ou texto cornportamenral". A elucidaçãooriginal de Geertz sobre a ironia antropológica apareceu em 1968 com referência aoentendimento da observação-participante como uma forma continuamente irônica deconduta, baseada no reconhecimento da tensão moral entre antropólogo e informante.

67 "Chocado pela luxúria do crescimento abrangente" dos volumes em expansão, Ma-rett (1920, p. 177) nota que houve uma mudança de plano. O desmascaramento éde fato pensado a posteriori, num livro que "deve daqui em diante deixar de lado aúltima pretensão à unidade dramática, resolvendo-se em uma série de perspectivasem dissolução".

68 Tenho também deparado com uma posição similar discutida na crítica de arte. Owensem particular chama a atenção para a posição feminista (neste caso, expressa por umaartista) de que não há discurso teórico único (1985, p. 64). O que está em jogo,argumenta, é o status não apenas da narrativa, mas da própria representação (p, 66).

69 vleatman mostra que certas estratégias analíticas no seio da ciência social feministasão pós-modernas - por exemplo, a de quebrar o paradigma da arte versus natureza/público uersus doméstico (1984, p. 47) -, mas critica cientistas sociais feministas àmedida que, por tudo o que dizem, ainda se inscrevem largamente em paradigmasmodernos.

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feministas enquanto pesquisadoras e das feministas enquanto ativistas.Objetivos podem ser percebidos de diversas formas; no entanto, a pes-quisa é, ao final, representada como livre de molduras por um conjuntoespecial de interesses sociais. As feministas discutem entre si, com suasvárias vozes, pois também se reconhecem como um grupo de interesse.Há uma certeza sobre aquele contexto. O antropólogo está em posiçãobem diferente. Parece não haver tal grupo de interesse antropológico.Para a antropologia, jogar com contextos internos - com as convençõesda pesquisa (gênero) - parece jogo livre com o contexto social da an-tropologia enquanto tal (vida). Em realidade, a incerteza resultante éintrínseca à motivação antropológica e à motivação para o estudo.

Boon (1982, p. 21) pergunta se temos que escolher entre a antropologiade acordo com os muitos partidários de Frazer ou de acordo com osmuitos partidários de Malinowski:

por que não um sistema pluralista? Há padrões de "convencibilidade" em

vários estilos e gêneros transculturais, assim como há cânones de verossimi-lhança na etnografia realista. Para avaliar a precisão de interpretações como as

de Malinowski ou como as de Frazer (ou como as de Geertz ou como as de

Lévi-Strauss), devemos sondar as complexidades de dados convergentes - osdeles e os nossos - e renunciar à fé iluminista na "simplicidade" analítica,

às suposições de determinação direta e às esperanças de comunicação não

mediada, transcultural ou qualquer outra.

As culturas percebidas aparecem umas às outras em formas exageradas(como culturas), "cada qual em seu jogo de cena vis-à-vis à ourra" (p.26). O discurso transculturallida inevitavelmente com tais exageros. Otrabalho de campo deve acontecer, pois a comunicação em linguagemcomum não ocorre: o trabalho de campo mantêm-se a meio caminhode duas culturas comunicantes, (elas) intactas enquanto (nós) tentamosescrever o que acontece. "O que poderia ser mais extremo ou teatral emenos padronizado e objetivo? Idealmente todas as culturas deveriamser nós e eles uma da outra. No entanto, a política interfere" (p. 26).Pode haver jogo de cena, portanto, para o bem da comunicação entre

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"outros", em oposição ao jogo livre, restrito apenas à escolha individual.Talvez seja a redução consumista da comunicação à autoedificação, detodo conhecimento ao autoconhecimento o que também representaa própria comunicação como teatro e a vida cultural como texto. Ospastiches deliberados da escrita pós-modernista endossam e expõem essavisão ao mesmo tempo. Os textos não podem sobreviver à pluralizaçâo."

A justificativa para o pluralismo vai, paradoxalmente, contra a ideia deque vemos culturas como dramas ou textos. O que, portanto, é o poderdesse imaginário último? Ele repousa sobre um certo apelo moral: umtexto merece tanta atenção de nossa parte quanto qualquer outro. Masentão vem a questão: que modelo do mundo social acomoda tal mora-!idade?É o sentido de um mundo que se encolhe? Estamos lado a lado,de roupas multicoloridas, nos acotovelando, tornando-nos imagens desatélite uns dos outros - todos igualmente diferentes e, portanto, todosigualmente os mesmos." Ecos de Frazer, sem dúvida. Este é um mundo"com vozes demais falando todas ao mesmo tempo, um mundo ondesincretismo e invenção paródica estão se tornando a regra, não a exceção;um mundo urbano, multinacional de transitoriedade institucionaliza-da" (Clifford, 1986, p. 147) - que trata as diferenças como escolhasdo consumidor e eventos multiculturais como culinária internacional,que vê distinções finais como criações culturais e não como também a

70 Eles devem se tornar discurso (político). Percebam que "pluralismo" é mais um daque-les termos (como "ironia" e "pasriche") que podem ser apropriados tanto em defesado relativismo e do jogo livre (ver nota 52) quanto em defesa do jogo estruturadoe da justaposição de contextos. Gostaria que aqui o termo funcionasse no segundosentido.

7\ O que Geertz rotula como o terror do antirrelativismo (1984, p. 265), um medoprovocado uma vez que tudo é tão significativo -logo tão insignificante - quantoqualquer outra coisa: "A imagem de vastos números de leitores de antropologia tantodando voltas no interior de uma moldura mental tão cosmopolita quanto não tendonenhum ponto de vista sobre o que é ou não verdadeiro, ou bom, ou belo me pareceem grande parte uma fantasia". Sou simpática ao ponto de vista de que tais prescriçõesliterárias podem ser mais apregoadas do que praticadas, mas os antropólogos nuncase deram o trabalho de dispensar fantasias por serem difíceis de imaginar.

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obra de interesses sociais uns contra os outros - em resumo, onde todos'os contextos se parecem. Todos os contextos se parecem na medida emque fazem emergir a afirmação situada, em que são molduras para asperformances das pessoas - há toda razão para citar exemplo atrás deexemplo, apenas para mostrar que as crenças e práticas das pessoas sãotodas igualmente bizarras. Será, então, que o compêndio de Frazer énosso guia do caroneiro rumo à aldeia global?

"Aldeia global" é uma ficção interessante. Poucos antropólogos podemde fato ter estudado uma aldeia que não fosse dividida por interessessociais coníiitantes. Sem dúvida, a aldeia inglesa que melhor conheço foiradicalmente dividida entre aqueles moradores que achavam que ela erauma aldeia e aqueles que não achavam. Não acredito que os antropólogosconfiem na ideia de uma aldeia global, não mais do que acredito queeles realmente embaralham contextos;" há um interesse que a escritaantropológica deve seguir endossando, e é a questão dos relacionamentosenvolvidos na comunicação. Relacionamentos só podem ser especificadosem referência a contextos.

Ao considerar a disparidade entre a reputação popular de Frazer e suapobre reputação antropológica, concentrei-me no tipo de livros queele escrevia, pois é nas relações das pessoas com estes artefatos que asvemos aclamar ou rejeitar as ideias dos autores. Sua organização interna

72 Faço ecoar a conclusão de Crick, para quem o dadaísmo envolve o antidadaísmo:"Quando algo acontece, seriedade, descrições melhores e um trabalho de campo maistrabalhoso também estão entre as cartas" (1985, p. 86). "Todo esse Hauteado com aspropriedades da composição, perguntas e explicação representa (...) uma alreraçãoradical na imaginação sociológica (... ). Se o resultado não deve ser um conjunto deboatos ou absurdo maior, uma consciência crítica deverá ser desenvolvida" (Geerrz,1983, p. 23). Geertz (1984) sugere que, em seu grau último, a antropologia batalhacontra o provincianismo. Cf. o "cosmopolirisrno crítico" de Rabinow, que ele atribuiao pós-modernismo. De fora da antropologia, o pluralismo como "uma reduçãoda diferença à diferença absoluta" (Owens, 1985, P: 58) também é mantido comoum espectro do qual cerros tipos de pós-modernismo se dissociam. O pluralismo ésugerido, é claro, uma vez que o "pensamento pós-moderno não é mais pensamentobinário" (Owens, 1985, p. 62). Quanto ao equívoco do pluralismo, ver nota 65.

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estabelece uma relação particular entre escritor, leitor e conteúdo."

Frazer compartilhava um texto e uma linguagem com seu público, masprocedia de forma a mostrar o quão heterogêneo era tal texto, umamistura entre selvageria e civilização, o comum cognato com o exótico.Tal relacionamento afeta o destino dos próprios textos. A antropologiacontemporânea escreve sua própria história com uma mudança claraque se alega ter ocorrido na década de 1920. Qualquer que fosse o alvoevidente de Malinowski, os escritos de Frazer são os que mais ilegíveisele tornou. Logo, não foi realmente a descoberta de novas ideias, comosincronia ou etnocentrisrno, o que tornou Frazer antiquado: foi a imple-mentação delas como um dispositivo ficcional para emoldurar um novorelacionamento entre o(a) antropólogo(a) e seu tema, capaz de convidara um novo relacionamento entre oía) escritorta) e os profissionais que,em meio a seu público, se identificavam com eleía)." Os antropólogosdefiniram como um problema profissional a organização de sua escrita,buscando exprimir conceitos para os quais não havia espaço prontoem sua cultura. Uma distância se colocava entre a sociedade estudadae a sociedade à qual pertencia o principal público do antropólogo. Aopertencer a ambas, por assim dizer, o pesquisador ou pesquisadora decampo se apresentava como um mediador. E o que se apresentava comomediação entre estilos de vida era evidentemente uma mediação pro-duzida pelo texto - a forma com que se descrevia a sociedade e a formacom que o antropólogo veio a analisá-Ia e teorizá-la, autoconsciente dasua própria especificidade. Terá agora tal problema técnico nos deixado?

73 Em suas análises da ficção ernográfica, Webster (1982) mostra várias constituiçõesdiferentes para as relaçóes escritor-leitor; ele também discute mais a fundo os públicosignorados daqueles sobre quem escreve.

74 [orion (1983) argumenta de forma efetiva que a divisão êrnica-ética na escrita antro-pológica, mantida para corresponder a diferentes emolduramentos para o mundo,também pode ser interpretada como uma tensão interna ao texto antropológico. Atensão fica entre o senso comum e os entendimentos técnicos. Na linguagem dosenso comum (êrnica), o antropólogo cria certos parârnetros para uma compreensãomútua entre seus leitores, a quem é negado ou de quem se afasta o verniz técnico(ético). Dois relacionamentos diferentes com o público estão assim colocados.

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Em certa medida, sim. Particularmente, ao longo dos últimos vinte anos,certas di coto mias aparentes entre escritor, público e sujeito se dobraramsobre si mesmas. Se os antropólogos agora escrevem sobre "outros povos",estão escrevendo para sujeitos que se tornaram um público. Ao descreveras cerimônias melanésias de casamento, devo ter em mente meusírninhas)leitoresías) melanésiosías}. O que, consequentemente, torna problemá-tica a distinção estabeleci da anteriormente entre escritoría) e objeto:devo saber a favor de quem e com que finalidade escrevo. Talvez sejaisto, sobretudo, o que é capturado pela proclamação pluralista do pós--modernismo, aproximando as preocupações da antropologia àquelasdos estudos feministas, e tornando verdadeiramente apropriada a preo-cupação com a ficção. Os pós-modernos devem zelar por seus textos denovas formas. As novas justaposições irônicas focalizam o ato de escritaem si e interessam pelo status ficcional na medida em que aquilo queescrevemos abre a questão de para quem escrevemos. Retrospectivamente,perguntar sobre as ficções persuasivas de épocas anteriores é perguntarcomo os outros (Frazer, Malinowski e os demais) lidaram com nossosproblemas morais de construção literária. Ao responder à questão, cria-mos transformações históricas entre escritores do passado de acordo como que, a nossos próprios olhos, é persuasivo, participando assim de umahistória pós-moderna, recolocando na leitura dos livros as estratégias deficcionalização. Construir obras do passado como jogos literários quaseintencionais é o novo etnocentrismo. Não há evidência, afinal, de que"nós" tenhamos parado de atribuir nossos problemas aos "outros".

A mudança de 1920, entre Frazer e a antropologia modernista, ajudaa interpretar a suposta mudança do modernismo ao pós-modernismona década de 1980. O fenômeno consiste em como os antropólogosrepresentam o que fazem, o que dizem que estão escrevendo e quais ospropósitos da comunicação. ldeias não podem, afinal, divorciar-se derelacionamentos. Poder-se-ia encontrar precursores do modernismo nasideias da grande geração de 1870, que precedeu Frazer, assim como seriapossível encontrar um precursor da escrita pós-modernista no próprio

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Frazer. Mas também tem havido uma notável sequência de práticas naevolução das novas relações entre escritor, leitor e sujeitos. Frazer nãoé um pós-moderno no sentido antropológico contemporâneo, e o mo-dernismo de Malinowski deu lugar a um conjunto de relações diferentesdaquelas em voga na geração da qual o próprio Frazer foi leitor. Só podehaver um guia para a mudança presente. A questão real é saber se umanova ficção sairá de tanto falatório. Não seremos capazes de voltar auma consciência pré-fictionalizada, mas podemos ser persuadidos deque ainda há relações significativas a ser estudadas.

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