7
Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 9 N o 1 Jan/Fev 1999 1 FISIOPATOLOGIA DA HIPERTENSÃO EDUARDO MOACYR K RIEGER, M ARIA CLÁUDIA I RIGOYEN, J OSÉ EDUARDO KRIEGER Unidade de Hipertensão e Laboratório de Biologia Molecular Instituto do Coração — HC-FMUSP Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 — CEP 05403-000 — São Paulo — SP EQUILÍBRIO DOS FATORES PRESSORES E DEPRESSORES Como é bem sabido, os determinantes da pressão arterial são o débito cardíaco e a resistência periférica e qualquer alteração em um ou outro, ou em ambos, interfere na manutenção dos níveis pressóricos nor- mais. Diferentes mecanismos de controle estão envol- vidos não só na manutenção (componente tônico) como na variação momento-a-momento (componente fásico) da pressão arterial, regulando o calibre e a reatividade vascular, a distribuição de fluido dentro e fora dos va- sos e o débito cardíaco. Os complexos mecanismos pressores e depressores interagem e se equilibram; quando o equilíbrio se rompe com predominância dos fatores pressores, ocorre a hipertensão primária (1) . Essa ruptura pode ser provocada e/ou acelerada pelos fato- res ambientais, como excesso de sal na dieta e estímu- los psicoemocionais, entre outros. Na hipertensão estabelecida, a maioria dos controladores está altera- A hipertensão arterial primária resulta de altera- ções nos sistemas de controle da pressão arterial. Vá- rias substâncias endógenas participam de maneira integrada nesse complexo sistema, que tem por objeti- vo manter a homeostasia cardiovascular. No indiví- duo hipertenso, a interação de fatores genéticos e fa- tores ambientais leva ao desequilíbrio desses sistemas, que resulta no aumento da pressão arterial associado a maior incidência de eventos de morbidade e morta- lidade. Esse quadro desfavorável pode ser modificado rapidamente com a utilização de estratégias que têm por objetivo, de forma integrada, identificar os determinantes genéticos em populações de pacientes e/ou modelos experimentais. Por meio de técnicas de biologia molecular, o papel de cada um desses genes candidatos em processos celulares pode ser investiga- do. Esses avanços permitirão o reconhecimento pre- coce de indivíduos com risco de desenvolver a doença até mesmo antes que ela se manifeste. Isso deve propi- ciar estratégias de intervenção pré-clínica e desen- volvimento de terapias mais específicas e eficazes. Descritores: hipertensão arterial, genética molecular, mapeamento gênico, epidemiologia molecular. (Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 1999;1:1-7) RSCESP (72594)-813 da, sendo difícil estabelecer quais os que tiveram pa- pel preponderante no desencadeamento e mesmo na manutenção das cifras elevadas de pressão arterial. O aumento da resistência periférica é o fator mais im- portante na hipertensão e, portanto, os mecanismos que promovem a redução do calibre das arteríolas mere- cem especial atenção. Eles atuam basicamente na con- tração da musculatura que regula a luz do vaso ou na espessura da musculatura, ocupando maior ou menor parte do lúmen, ou em ambos. Admite-se, também, que a redução da luz ocorra não só pela hipertrofia da pa- rede como também por um remodelamento. Na Figura 1 observam-se as diferentes formas de aumentar a re- sistência periférica na hipertensão. No remodelamento, há redução dos diâmetros interno e externo, sem mo- dificação da massa. Fatores funcionais, como a atividade simpática modulada pelas aferências de diferentes reflexos e por substâncias vasopressoras ou vasodepressoras circulantes ou produzidas pelas próprias células da

Fisiopatologia Da Hipertensao

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Fisiopatologia Da Hipertensao

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 9 No 1 Jan/Fev 1999 1

FISIOPATOLOGIA DA HIPERTENSÃO

EDUARDO MOACYR KRIEGER, MARIA CLÁUDIA IRIGOYEN, JOSÉ EDUARDO KRIEGER

Unidade de Hipertensão e Laboratório de Biologia MolecularInstituto do Coração — HC-FMUSPEndereço para correspondência: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 — CEP 05403-000 — São Paulo — SP

EQUILÍBRIO DOS FATORES PRESSORES EDEPRESSORES

Como é bem sabido, os determinantes da pressãoarterial são o débito cardíaco e a resistência periféricae qualquer alteração em um ou outro, ou em ambos,interfere na manutenção dos níveis pressóricos nor-mais. Diferentes mecanismos de controle estão envol-vidos não só na manutenção (componente tônico) comona variação momento-a-momento (componente fásico)da pressão arterial, regulando o calibre e a reatividadevascular, a distribuição de fluido dentro e fora dos va-sos e o débito cardíaco. Os complexos mecanismospressores e depressores interagem e se equilibram;quando o equilíbrio se rompe com predominância dosfatores pressores, ocorre a hipertensão primária(1). Essaruptura pode ser provocada e/ou acelerada pelos fato-res ambientais, como excesso de sal na dieta e estímu-los psicoemocionais, entre outros. Na hipertensãoestabelecida, a maioria dos controladores está altera-

A hipertensão arterial primária resulta de altera-ções nos sistemas de controle da pressão arterial. Vá-rias substâncias endógenas participam de maneiraintegrada nesse complexo sistema, que tem por objeti-vo manter a homeostasia cardiovascular. No indiví-duo hipertenso, a interação de fatores genéticos e fa-tores ambientais leva ao desequilíbrio desses sistemas,que resulta no aumento da pressão arterial associadoa maior incidência de eventos de morbidade e morta-lidade. Esse quadro desfavorável pode ser modificadorapidamente com a utilização de estratégias que têmpor objetivo, de forma integrada, identificar os

determinantes genéticos em populações de pacientese/ou modelos experimentais. Por meio de técnicas debiologia molecular, o papel de cada um desses genescandidatos em processos celulares pode ser investiga-do. Esses avanços permitirão o reconhecimento pre-coce de indivíduos com risco de desenvolver a doençaaté mesmo antes que ela se manifeste. Isso deve propi-ciar estratégias de intervenção pré-clínica e desen-volvimento de terapias mais específicas e eficazes.

Descritores: hipertensão arterial, genéticamolecular, mapeamento gênico, epidemiologiamolecular.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 1999;1:1-7)RSCESP (72594)-813

da, sendo difícil estabelecer quais os que tiveram pa-pel preponderante no desencadeamento e mesmo namanutenção das cifras elevadas de pressão arterial. Oaumento da resistência periférica é o fator mais im-portante na hipertensão e, portanto, os mecanismos quepromovem a redução do calibre das arteríolas mere-cem especial atenção. Eles atuam basicamente na con-tração da musculatura que regula a luz do vaso ou naespessura da musculatura, ocupando maior ou menorparte do lúmen, ou em ambos. Admite-se, também, quea redução da luz ocorra não só pela hipertrofia da pa-rede como também por um remodelamento. Na Figura1 observam-se as diferentes formas de aumentar a re-sistência periférica na hipertensão. No remodelamento,há redução dos diâmetros interno e externo, sem mo-dificação da massa.

Fatores funcionais, como a atividade simpáticamodulada pelas aferências de diferentes reflexos e porsubstâncias vasopressoras ou vasodepressorascirculantes ou produzidas pelas próprias células da

Page 2: Fisiopatologia Da Hipertensao

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 9 No 1 Jan/Fev 19992

KRIEGER EM e cols.Fisiopatologia da hipertensão

musculatura lisa, ou endoteliais, são os determinantesda variação do tônus vascular. Além disso, há evidên-cias de que diferentes hormônios pressores(angiotensina II, norepinefrina, vasopressina, insuli-na) contribuem para o estímulo ao crescimento da pa-rede vascular, enquanto as substâncias vasodilatadorastêm efeito oposto, inibindo a proliferação celular. Por-tanto, a hipertensão primária resultaria da ruptura doequilíbrio entre os fatores vasoconstritores, que tam-bém promovem o crescimento da musculatura vascular,e os fatores vasodilatadores, que também inibem o cres-cimento da musculatura vascular (Fig. 2).

Na fase inicial, poderia predominar o fator funcio-nal (vasoconstrição ativa), enquanto na fase de manu-tenção ocorreriam as alterações estruturais. O encade-amento temporal dos dois mecanismos possivelmentevaria de indivíduo para indivíduo e é difícil saber, emdeterminada fase da hipertensão, qual a importânciarelativa de cada um deles.

Como a hipertensão resulta do desequilíbrio naatuação dos diferentes reguladores, é consideradauma doença multifatorial. Também pode ser consi-derada uma verdadeira síndrome naqueles casos emque vem acompanhada de obesidade, alteração nometabolismo lipídico e glicídico e resistência à in-sulina (Fig. 3), quando geralmente existe hipertoniasimpática produzindo elevações da freqüência e dodébito cardíaco.

Figura 1. O aumento da resistência periférica pode ocorrer por vasoconstrição (funcional) ou por hipertrofia dacamada média muscular (estrutural). A alteração estrutural pode ocorrer por remodelamento (redução de todosos diâmetros, sem alteração as massa).(2)

BIOLOGIA MOLECULAR E HIPERTENSÃO

A hipertensão é uma doença que afeta milhões depessoas em todo o mundo e contribui de maneira ex-pressiva para grande número de mortes devidas a infartodo miocárdio, acidente vascular cerebral e doença re-nal crônica. Apesar de todos os avanços na área da fi-siologia cardiovascular, ainda não se conhecem osdeterminantes primários da hipertensão arterial. Exis-tem várias razões para explicar esse fato, mas funda-mentalmente reconhece-se, hoje, que a hipertensão nãoé uma doença simples com causa única em todos osindivíduos afetados. O estudo dos mecanismos de con-trole da pressão arterial nas últimas décadas eviden-ciou grande número de substâncias e de sistemas fisi-ológicos que interagem de maneira complexa e comredundância para manter a pressão arterial em níveisadequados, nas mais diversas situações fisiológicas.Admite-se, portanto, que a hipertensão arterial resultada disfunção dos sistemas de controle de pressão arte-rial. Entretanto, a complexa interação desses sistemasfisiológicos, assim como as modificações que eles so-frem de fatores ambientais, como, por exemplo, con-teúdo de sal na dieta, têm dificultado determinar se asalterações fisiológicas encontradas em pacientes comhipertensão arterial são causadoras primárias da hiper-tensão ou simplesmente conseqüência de disfunçõesprimárias ainda desconhecidas.

Page 3: Fisiopatologia Da Hipertensao

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 9 No 1 Jan/Fev 1999 3

KRIEGER EM e cols.Fisiopatologia da hipertensão

Figura 2. A hipertensão primária provavelmente se inicia por alterações funcionais (vasoconstrição) e se estabi-liza por alterações estruturais, combinadas em grau variado com as funcionais.(3)

Figura 3. Diagrama demonstrando a associação entre a elevação da pressão arterial e as alterações de outrosfatores, observada em 452 homens, no estudo Tecumseh, Michigan. (4)

Page 4: Fisiopatologia Da Hipertensao

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 9 No 1 Jan/Fev 19994

O advento das técnicas de biologia molecular e aincorporação de abordagens de genética molecular vêmpermitindo buscar-se a identificação de mutaçõesgênicas específicas que contribuem para o desenvolvi-mento da hipertensão arterial. Isso permitirá determi-nar como defeitos genéticos específicos perturbariama fisiologia normal, dando origem à hipertensão arte-rial. Dessa forma, o mecanismo fisiopatológico dasvárias formas de hipertensão arterial poderá ser escla-recido e, com isso, a identificação precoce de indiví-duos de alto risco, o desenvolvimento de formas maisespecíficas de tratamento das causas primárias do pro-cesso e, ainda, a possibilidade de evitar o desenvolvi-mento da doença por meio de intervenção pré-clínica.Existem várias evidências indicando que a hiperten-são arterial é multigênica e que as influênciasambientais têm importância na determinação dofenótipo. Estima-se que 30% a 40% da variação dapressão arterial em uma população sejam devidos afatores genéticos (5). Portanto, a identificação dos fato-res genéticos determinantes da hipertensão arterial seráfundamental para esclarecer o processo fisiopatológicoda doença. A característica multifatorial e aheterogeneidade etiológica representam os maioresobstáculos para a identificação das alterações genéti-cas específicas. Apesar dessas dificuldades, estão sen-do feitos progressos importantes na área com a utili-zação de estratégias de genética molecular e o uso depopulações de pacientes hipertensos e animais experi-mentais.

FORMAS MENDELIANAS DEHIPERTENSÃO ARTERIAL

As formas mais simples de hipertensão que podemser analisadas geneticamente são as chamadas formasmendelianas, ou seja, aquelas nas quais a mutação emum único gene é suficiente para produzir aumento dapressão arterial. Os defeitos associados a essassíndromes têm sido identificados porque a segregaçãofamiliar de um alelo simples pode ser feita mais facil-mente e, também, porque a morbidade da hipertensãoé proporcional à severidade da doença. Essas formasde hipertensão em geral são severas e não respondemà terapêutica convencional. Apesar de essas síndromesserem raras, elas fornecem informações importantesnão somente para o desenvolvimento de novas formasdiagnósticas e de tratamento, mas, também, para a com-preensão de interações entre genes e destes com fato-res ambientais que podem participar da gênese da hi-pertensão. Recentemente, foi identificado o defeitomolecular presente em três dessas síndromes e, em

todos os casos, a pressão arterial está sendo modifica-da por meio de uma via comum, que resulta em altera-ção dos mecanismos de reabsorção de sal e água pelorim:— aldosteronismo remediado por glicocorticóide

(GRA);— síndrome de Liddle;— síndrome do aparente excesso de mineralocorticóide

(AME).

Aldosteronismo remediado por glicocorticóide(GRA)

É uma doença autossômica dominante, caracteri-zada pela produção ectópica de aldosterona pela ca-mada fasciculada da adrenal. É reconhecida pela se-creção aumentada do esteróide 18-OX cortisol e seusmetabólitos, ou pela completa supressão da secreçãode aldosterona por glucocorticóides. A hipertensão teminício precoce e se acompanha de baixos níveis de ati-vidade de renina plasmática.

Na glândula adrenal normal, a atividade daaldosterona sintase é expressa somente na camadaglomerular. A aldosterona é secretada na camadaglomerular pela ação da angiotensina II, enquanto oACTH controla a produção de cortisol pela camadafasciculada da adrenal. Estudos moleculares demons-traram que existe uma duplicação gênica nos indiví-duos portadores dessa síndrome. O gene responsávelpelo GRA está localizado no cromossomo 8, onde selocalizam também o gene que codifica a aldosteronasintase, responsável pela biossíntese da aldosterona, eo gene da 11-beta-hidroxilase, envolvido na biossíntesedo cortisol. O gene duplicado que aparece nesses indi-víduos é resultante da recombinação aberrante chama-da “crossing-over” incompleto. Essa anormalidade re-sulta na formação de um gene quimérico, que contémo promotor (região que possui as seqüênciassinalizadoras que ligam e desligam o gene controlan-do sua expressão) da 11-beta-hidroxilase, e a regiãocodificadora (que vai dar origem à seqüência deaminoácidos da proteína) da aldosterona sintase. Emconseqüência disso, a proteína aldosterona sintase, queparticipa da síntese de mineralocorticóides, é agoraregulada positivamente pelo ACTH. O aumento na se-creção de aldosterona está associado a retenção de águae sal, expansão do volume plasmático e desenvolvi-mento de hipertensão. Feito o diagnóstico, o tratamentopode ser feito por modificação farmacológica da ex-pressão do gene pela administração de glicocorticóides,inibindo a secreção do ACTH, portanto desligando aexpressão do gene quimérico e/ou inibidores da açãode mineralocorticóides (6, 7) .

KRIEGER EM e cols.Fisiopatologia da hipertensão

Page 5: Fisiopatologia Da Hipertensao

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 9 No 1 Jan/Fev 1999 5

Síndrome de LiddleRepresenta outra forma de hipertensão arterial hu-

mana de herança autossômica dominante, caracteriza-da por supressão da atividade de renina plasmática ebaixos níveis de aldosterona, ao contrário do GRA. Ahipertensão desses pacientes é mediada por reabsorçãoexcessiva de sal e água no néfron distal.

Estudos genéticos indicaram que o gene responsá-vel por essa síndrome está ligada a uma região docromossomo 16. Nessa região cromossômica estãolocalizados dois genes que codificam as subunidadesbeta e gama dos canais de sódio epiteliais sensíveis àamilorida. O canal de sódio é formado por trêssubunidades (alfa, beta e gama), essenciais para a ati-vidade normal do canal. A reabsorção de sódio pelocanal é normalmente regulada pela aldosterona. Estu-dos moleculares em pacientes com síndrome de Liddleidentificaram mutações nos genes beta e gama. Essasmutações resultam em deleções ou introdução de umsegmento peptídeo curto, rico em prolina, na porçãocarboxiterminal intracelular das subunidades beta egama. O resultado dessas alterações gênicas é o au-mento de atividade do canal, levando a excessivareabsorção de sal e água, independentemente da açãode mineralocorticóides, com desenvolvimento de ex-pansão de volume e hipertensão(6, 7) .

Síndrome do aparente excesso demineralocorticóide (AME)

É uma doença autossômica recessiva caracterizadapor hipertensão de moderada a severa, que também semanifesta precocemente e está associada à razão au-mentada dos metabólitos cortisol:cortisona urinários.Essa síndrome é decorrente da estimulação excessivados receptores de mineralocorticóides, mas, ao con-trário do GRA, os pacientes apresentam baixos níveiscirculantes de aldosterona.

Estudos moleculares identificaram uma mutaçãona enzima 11-beta-hidroxiesteróide desidrogenase re-nal, que resulta em perda da atividade; portanto, ocortisol não é convertido em cortisona. Em condiçõesnormais, o cortisol apresenta atividademineralocorticóide muito pequena porque é rapidamen-te convertido em cortisona (não apresenta atividademineralocorticóide), pela ação dessa enzima. Na AME,a enzima é deficiente e o cortisol em abundância ativareceptores mineralocorticóides renais. A clonagem dogene que codifica a enzima 11-beta-hidroxiesteróidedesidrogenase permitiu identificar as mutações respon-sáveis pela perda da atividade enzimática(6, 7) .

Os estudos dessas diferentes síndromes ilustracomo a identificação molecular do defeito leva à com-

preensão dos mecanismos celulares associados adisfunções complexas, como a hipertensão arterial.Nesses três exemplos, a via final comum para o desen-volvimento da hipertensão é a retenção de sal e água,apesar de diferentes genes estarem envolvidos. É im-portante ressaltar que, mesmo nessas síndromes, ondeum único defeito é capaz de elevar a pressão arterialpor uma via comum, existem particularidades impor-tantes que determinam a terapêutica específica.

HIPERTENSÃO ARTERIAL ESSENCIAL

A causa do aumento de pressão arterial na maioriados pacientes permanece desconhecida e, por isso, édenominada hipertensão arterial essencial. Acredita-se que a síndrome na realidade seja poligênica e queas influências ambientais desempenhem papel impor-tante na manifestação do fenótipo. Devido a esse altograu de complexidade, várias abordagens estão cor-rentemente sendo utilizadas para identificar os genesque participam da gênese da hipertensão arterial. Asabordagens presumem que a variação interindividualda pressão arterial é determinada, pelo menos em par-te, geneticamente.

Estudos de associação ou de casos controlesEsses estudos comparam se a freqüência de deter-

minado alelo polimórfico está alterada em populaçõesde indivíduos normotensos “versus” hipertensos. Nes-se modelo, imagina-se que o marcador molecular sen-do testado está em desequilíbrio de ligação com o aleloresponsável pelo traço genético. Ou seja, o marcadormolecular está sobre ou tão próximo ao alelo procura-do que eles são segregados conjuntamente com fre-qüência maior que aquela esperada ao acaso.

Investigação de variantes moleculares em genescandidatos

É outra abordagem que vem sendo utilizada, ondeas variantes funcionais de vários genes são identificadaspor métodos que permitem a análise de muitos indiví-duos, como, por exemplo, o método de análise dopolimorfismo conformacional de uma fita simples deDNA (SSCP) ou de seqüenciamento de DNA de for-ma automatizada. A alteração de DNA corresponden-te a variantes funcionais pode ser identificada facil-mente e sua significância funcional, avaliada de váriasmaneiras. Por exemplo, podem-se empregar estudosde associação semelhantes aos mencionados acima paratestar se as variantes funcionais estão associadas à hi-pertensão mais freqüentemente que na população nor-mal. Alternativamente, empregam-se estudos de liga-

KRIEGER EM e cols.Fisiopatologia da hipertensão

Page 6: Fisiopatologia Da Hipertensao

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 9 No 1 Jan/Fev 19996

ção, onde o impacto das variantes funcionais é anali-sado pela segregação das variantes em heredogramasfamiliares contendo indivíduos hipertensos. É impor-tante salientar que, devido à complexidade caracterís-tica da hipertensão arterial, como a heterogeneidadeetiológica, a possibilidade de penetração incompleta ede modelos de herança desconhecidos, outros méto-dos alternativos aos estudos de ligação tradicionais vêmsendo utilizados. Um desses métodos é a análise depares de irmãos afetados. Finalmente, essas diferentesanálises são complementadas por estudos de expres-são funcional, que são utilizados para testar o efeitofisiológico direto das variantes funcionais em célulasem cultura ou até mesmo no contexto do animal intei-ro pelo desenvolvimento de modelos animais geneti-camente manipulados (transgênicos, “knockout”,“knockin” e congênicos). Já foram citados anterior-mente três exemplos de sucesso empregando essa abor-dagem para identificação dos genes responsáveis porformas mendelianas de hipertensão. Mais recentemen-te, essa abordagem forneceu evidência de existir umaligação de variante do gene do angiotensinogênio coma hipertensão arterial essencial, em indivíduos de ori-gem caucasiana. A variante T235, onde a treonina subs-titui metionina no códon 235, está associada a níveiscirculantes mais elevados de angiotensinogênio(8). Alémdisso, a hipótese de que níveis circulantes elevados deangiotensinogênio podem influenciar a pressão arteri-al foi elegantemente testada(9). Nesse estudo, foramproduzidos camundongos contendo 0, 1, 2, 3 e 4 cópi-as do gene do angiotensinogênio por meio de técnicasde recombinação homóloga. Nesses animais, os níveisde angiotensinogênio circulante e os níveis de pressãoarterial são proporcionais ao número de cópias do gene,demonstrando assim a relação causal entre a elevaçãoda pressão arterial e os níveis de angiotensinogênioem camundongos.

Outra abordagem complementar às discutidas aci-ma baseia-se na utilização de animais de experimenta-ção com substrato genético uniforme, onde cruzamen-tos genéticos controlados podem ser feitos paramaximizar os resultados de estudos de ligação genéti-ca. Esses estudos de “total genome scan” baseiam-sena utilização de marcadores moleculares distribuídospelos 21 cromossomos do rato, e que permitem a iden-tificação da origem parental das diversas regiõescromossômicas. Dessa forma, pode-se criar uma gera-ção de ratos que contêm distribuição aleatória do con-teúdo genético proveniente de uma cepa de animalnormotenso e de uma cepa de animal geneticamentehipertenso. A caracterização fenotípica desses animais,como, por exemplo, a pressão arterial sob diversas si-

tuações, pode ser correlacionada com a herança de re-giões cromossômicas específicas da cepa de ratos ge-neticamente hipertenso e/ou a falta de regiõescromossômicas da cepa normotensa. Em nosso labo-ratório, foram investigados cerca de 220 animais pro-venientes do intercruzamento da cepa normotensaBrown Norway com a cepa geneticamente hipertensaSHR(10). Com a utilização da análise de 24 fenótiposrelacionados a variáveis cardiovasculares e 336marcadores moleculares, foram identificadas cincoregiões cromossômicas (duas no cromossomo 2 e umanos cromossomos 4, 8 e 16), associadas à elevação dapressão arterial desses animais após sobrecarga salina.Essas cinco regiões devem conter genes associados aodesenvolvimento de hipertensão nesses animais. Como objetivo de testar essa hipótese, estamos desenvol-vendo linhagens de animais congênicos, que contêm o“background” genético do animal SHR, exceto pelaregião mapeada que está sendo transferida do animalnormotenso. Esse processo é feito por meio deretrocruzamentos e seleção dos animais, que contêm aregião a ser transferida do animal normotenso e o res-tante do genoma do animal hipertenso. Atualmente,estamos desenvolvendo a sétima geração dessas dife-rentes linhagens, esperando-se que o processo estejacompleto em uma ou duas gerações. A análise dessesanimais permitirá testar diretamente se aquelas regi-ões contêm os genes que determinam o desenvolvi-mento da hipertensão no SHR; permitirá, também, queestudos de interação gene-gene e gene-fatoresambientais possam ser realizados “in vivo”.

Portanto, a utilização das técnicas de biologiamolecular e as abordagens da genética molecular es-tão permitindo, pela primeira vez, que se explore deforma sistemática os fatores primários determinantesda hipertensão arterial. É importante enfatizar que esseconjunto de técnicas não só ampliou nossa capacidadeanalítica para identificar genes candidatos, como tam-bém criou a oportunidade de modificar o genoma deuma célula ou de um organismo para testar as hipóte-ses no contexto complexo do animal inteiro. Essasabordagens fazem uso conjuntamente de experimen-tação animal e de estudos humanos, por meio de técni-cas fisiológicas e bioquímicas para cruzamento de in-formações que levem à identificação de defeitos pri-mários, ao reconhecimento de vias celulares, e às con-seqüências fisiológicas que advêm dessas alterações.O desenvolvimento desse conhecimento permitirá quesejam desenvolvidos meios para identificar precoce-mente os indivíduos hipertensos, formas terapêuticasque atuem de forma eficaz na causa primária, e a opor-tunidade para intervenções pré-clínicas que reduzam a

KRIEGER EM e cols.Fisiopatologia da hipertensão

Page 7: Fisiopatologia Da Hipertensao

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 9 No 1 Jan/Fev 1999 7

morbidade e a mortalidade associadas à hipertensãoarterial essencial. Além disso, a utilização dessas téc-nicas está tendo grande impacto no conhecimento dosvários sistemas de controle da pressão arterial, como odo sistema renina-angiotensina, onde já se conhece a

intimidade de ação da angiotensina, levando à respos-ta contrátil da célula muscular (funcional) e à cadeiade reações que modifica o painel controlador dos genesque comandam a síntese de proteínas responsáveis pelocrescimento da musculatura (estrutural).

REFERÊNCIAS

1. Folkow B. Physiological aspects of primary hyper-tension. Physiol Rev 1982;62:347-504.

2. Krieger EM, Franchini KG, Krieger JE. Fisiopato-genia da hipertensão arterial. Medicina — Ribei-rão Preto 1996;29:181-92.

3. Krieger JE. New contribution to clinical hyperten-sion from molecular biology. Curr Opin Cardiol1998;13:312-6.

4. Julius S. Sympathetic hyperactivity and coronary riskin hypertension. Hypertension 1993;21:886-93.

5. Ward R. Familial aggregation and genetic epidemi-ology of blood pressure. In: Laragh JH, BrennerBM, eds. Hypertension: Pathophysiology, Diagno-sis and Management. New York: Raven Press,1995;pp.67-88.

6. Lifton RP. Genetic determinants of human hyper-tension. Proc Natl Acad Sci USA 1995;92:8545-51.

7. Williams GH, Fisher NDL. Genetic approach to di-agnostic and therapeutic decisions in human hyper-tension. Curr Opin Nephr Hypertens 1997;6:199-204.

8. Jeunemaitre X, Soubrier F, Kotelevtsev YV, et al.Molecular basis of human hypertension: role of an-giotensinogen. Cell 1992;71:169-80.

9. Kim HS, Krege JH, Kluckman KD, et al. Geneticcontrol of blood pressure and the angiotensinogenlocus. Proc Natl Acad Sci USA 1995;92:2735-9.

10. Schork NJ, Krieger JE, Troilliet MR, et al. A bio-metrical genome search in rats reveals the multi-genic basis of blood pressure variation. Gen Res1995;5:164-72.

HYPERTENSION: PHYSIOPATHOLOGY AND PERSPECTIVES

EDUARDO MOACYR KRIEGER, MARIA CLÁUDIA IRIGOYEN, JOSÉ EDUARDO KRIEGER

Hypertension results from abnormalities of the control systems that regulate blood pressure. A number ofendogenous biologically active substances interact in a complex but integrated manner to maintain cardiovascularhomeostasis. In the hypertensive patient, the interplay of genetic and environmental factors leads to disequilibriumof these systems and hypertension ensues. This picture is about to be changed with the use of well definedstrategies aimed at identifying the genetic determinants of hypertension in experimental animals and affectedpopulations. The specific role of candidate genes in cell pathways can then be explored by molecular biologytechniques to clarify the underlying mechanisms responsible for development and maintenance of hypertension.These advances shall enable early identification of individuals at risk. In addition, it raises opportunities forpre-clinical intervention and rational development of new forms of therapy.

Key words: primary hypertension, molecular genetics, genetic mapping, molecular epidemiology.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 1999;1:1-7)RSCESP (72594)-813

KRIEGER EM e cols.Fisiopatologia da hipertensão