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Fios de Tradição

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Renda de bilro e bordados em ponto de cruz e rendendê em Poço Redondo / pesquisa e texto de Marina Zacchi. – Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2013.

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Centro Nacional de Folclore e Cultura PopularIphan / Ministério da Cultura

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Fios de tradicão em Poço Redondo

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Presidência da República Presidenta: Dilma Vana Rousseff

Ministério da Cultura Ministra: Marta Suplicy

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Presidente: Jurema de Sousa Machado

Departamento de Patrimônio Imaterial Diretora: Célia Corsino

Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Diretora: Claudia Marcia Ferreira

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Setor de PesquisaPRogRAMA SAlA Do ARtIStA PoPulAR

COORDENADORA Maria Elisabeth Costa

PESQUISA E TEXTO Marina Zacchi

FOTOgRAFIAS Marina Zacchi Francisaco Moreira da Costa

EDIçãO E REvISãO DE TEXTOS Lucila Silva Telles Ana Clara das Vestes

DIAgRAMAçãO Patrícia Costalonga Leandro Gonçalo (estagiário)

APOIO DE PRODUçãO Dirlene Regina Santos da Silva

PROjETO DE MONTAgEM E PRODUçãO DA MOSTRA Luiz Carlos Ferreira

R397 Renda de bilro e bordados em ponto de cruz e rendendê

em Poço Redondo / pesquisa e texto de Marina Zacchi. –

Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2013.

36p. : il. -- (Sala do Artista Popular ; n. 181).

ISSN 1414-3755

Catálogo etnográfico lançado por ocasião da exposição

realizada no período de 29 de agosto de 2013 a 29 de setembro

de 2013.

1. Renda de bilro. 2. Bordado. 3. Rendendê – Poço Redondo,

SE. I. Zacchi, Marina, org. II. Série.

CDU 746.22(813.7)

PRODUçãO DE TRIlhA SONORA Alexandre Coelho

EQUIPE DE PROMOçãO E COMERCIAlIZAçãO Marylia Dias, Magnum Moreira e Sandra Pires

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A Sala do Artista Popular, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivo constituir-se como espaço para a difusão da arte popular, trazendo ao público objetos que, por seu significado simbólico, tecnologia de confecção ou matéria-prima empregada, são testemunho do viver e fazer das camadas populares. Nela, os artistas expõem seus trabalhos, estipulando livremente o preço e explicando as técnicas envolvidas na confecção. Toda exposição é precedida de pesquisa que situa o artesão em seu meio sociocultural, mostrando as relações de sua produção com o grupo no qual se insere.

Os artistas apresentam temáticas diversas, trabalhando maté-rias-primas e técnicas distintas. A exposição propicia ao público não apenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente, a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiares ou desconhecidas.

Em decorrência dessa divulgação e do contato direto com o público, criam-se oportunidades de expansão de mercado para os artistas, participando estes mais efetivamente do processo de valorização e comercialização de sua produção.

O CNFCP, além da realização da pesquisa etnográfica e de documentação fotográfica, coloca à disposição dos interessados o espaço da exposição e produz convites e catálogos, providenciando, ainda, divulgação na imprensa e pró-labore aos artistas no caso de demonstração de técnicas e atendimento ao público.

São realizadas entre oito e dez exposições por ano, cabendo a cada mostra um período de cerca de um mês de duração.

A SAP procura também alcançar abrangência nacional, recebendo artistas das várias unidades da Federação. Nesse sentido, ciente do impor-tante papel das entidades culturais estaduais, municipais e particulares, o CNFCP busca com elas maior integração, partilhando, em cada mostra, as tarefas necessárias a sua realização.

Uma comissão de técnicos, responsável pelo projeto, recebe e seleciona as solicitações encaminhadas à Sala do Artista Popular, por parte dos artesãos ou instituições interessadas em participar das mostras.

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tantas alcunhas possui, o sertão do São Francisco é região de estiagens periódicas e prolongadas, de “uma caatingona medonha”, como por ali se usa dizer. Maior município do Estado de Sergipe, com uma área de 1.232,123 km², responde também pelo mais baixo IDH. De sua população de 30.877 habitantes, 38% vivem em área urbana, estando os demais moradores distribuídos pelos inúmeros povoados que se espalham por sua extensão. O município já foi cenário de filmes e novelas, e um pouco de sua história deverá ser contado no filme Aos ventos que virão, do cineasta Hermano Penna, cujas gravações agitaram o cotidiano do lugar.

Desde muito, os trabalhos com linhas integram a vida das mulheres do sertão do baixo São Francisco sergipano. Um antigo manuscrito que descreve a vida da população da Freguesia Missão de São Pedro de Porto da Folha na pri-meira metade do século 19 documenta, entre as atividades femininas, a renda de bilro, além das atividades de fiandeira, tecedeira, costureira e louceira (Dantas, 2006). Os bordados em ponto cruz e o rendendê vieram depois, é difícil precisar o momento, mas na primeira metade do século 20 já estavam presentes, sendo comum ouvir relatos de lenços bordados por encomenda para cangaceiros de renome. Quando aca-bavam os demais afazeres dentre os tantos que lhes cabiam,

Fios de tradição em Poço Redondo

MARINA ZACCHI

O município de Poço Redondo fica em uma região do oeste do Estado de Sergipe conhecida como o Sertão do São Francisco. Distante 185 quilômetros da capital, Aracaju, a região é frequentada por visitantes que chegam pela SE-230, conhecida como a Rota do Sertão, para passeios nos cânions do lago da Usina de Xingó, no município vizinho Canindé, um dos destinos turísticos mais procurados do estado. Em Poço Redondo, está o segundo ponto a que os visitantes costumam se dirigir, a grota de Angico, local em que o rei do cangaço, Lampião, e integrantes de seu bando foram capturados pelas forças volantes nos idos de 1938. A Praça de Lampião marca a entrada da cidade em que muitos dos moradores têm, em suas famílias, memórias marcadas pela passagem de cangaceiros e volantes.

O rio São Francisco, à margem do qual Poço Redondo está situado, marca a divisa com o vizinho Estado de Ala-goas. Não obstante a proximidade com o grande rio que

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as mulheres sentavam-se à luz dos candeeiros para produzir as delicadas composições; não só como distração, mas um ofício também.

HIStóRIA quASe CANtADA

A ocupação do baixo São Francisco, ainda no século 16, esteve marcada pelas criações de gado bovino, introduzidas no litoral e posteriormente interiorizadas para os sertões. Em meados do 17, no contexto das incursões holandesas, pequenas povoações surgiram às margens do Velho Chico. Com o passar do tempo, alguns aventureiros passaram a adentrar as caatingas em busca de terras cultiváveis, e assim surgiram as pequenas propriedades, que, em meados do século 19, passariam a conviver com os criadores de gado que chegavam atraídos pela grande quantidade de terras devolutas existentes.

O povoado que recebeu o nome de Poço Redondo, por ser parcialmente circundado pelo riacho Jacaré, surgiu na imensidão de terras que conformavam a Freguesia de Porto da Folha, de que fora emancipado por lei datada de 1953. A cidade de Poço Redondo teria surgido a partir de 1902, quando Manoel Pereira decidiu transferir do arraial de Poço

de Cima pra lá sua fábrica de descaroçar algodão, tendo sido seguido por outros moradores que mudaram também suas casas para o novo lugar (Cinform, 2002).

É comum ouvir entre os moradores mais velhos de Poço Redondo que a maior parte das terras que hoje conformam o município pertenceu ao Coronel Luís da Silva Tavares, ou coronel Lulu, como é conhecido por todos do lugar. O coronel Lulu vivia em um casarão imponente que cons-

casal de idosos observando o movimento da rua em Poço Redondo

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seu Mané Matias

truíra para si em Bonsucesso, ainda existente no antigo povoado na beira do São Francisco. “Da Lagoa Grande até aquele trilho, até o Poço Redondo, descendo o rio, tudo de um homem só”, explica seu Mané Matias.

O avô de seu Mané Matias chegara à região há muito tempo, para ser vaqueiro do coronel Lulu na fazenda que deu origem ao povoado de Sítios Novos. As povoações derivadas dos antigos currais, bem como as fazendas de gado, marcam a estrutura de ocupação do município, com grande número de povoados dispersos no território.

Em um sistema conhecido como “quarteado”, o vaqueiro cuidava da fazenda e, a cada inverno, era feita a partilha dos bezerros, a ele cabendo um de cada quatro dos que houvessem nascido. Vivendo na fazenda com a família, tinha o leite e, aos poucos, ia fazendo também seu rebanho. O trabalho era tanger o gado, “derrubar facheiro no mato, todo dia” porque naquele tempo “não chovia não”. Nos períodos de estiagem era preciso recorrer ao mandacaru, ao facheiro, assar a polpa e o miolo do xique-xique para se esquivar da fome e da sede. Mas quando caíam as chuvas, o verde voltava a cobrir a caatinga e já não faltava comida, que no mato havia muita – veado, ema, tatu, peba, tamanduá, caititu. Conforme diz seu Mané Matias, “veado tinha por grandeza; caititu,

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cotidiano, marcando os acontecimentos da vida. Cantavam as rimas nos sambas de roda ou de coco, nos brinquedos de roda, nos versos que tiravam uns com os outros. No preparo da farinha de mandioca, em tempo de farinhar, vinham os vizinhos e, até que estivesse acabado, por todo o mês havia

a gente tirava até uma cantiga”:

Veado corre saltandoCaititu corre na trilhaMulher parida não comeFarinha do mesmo diaSe comer, se desmantelaE a criança não se cria

A caça era abundante para o caçador que conhecia os encantos do mato. Os bons caçadores eram conhecidos e admirados. A carne de caça era a base da alimentação serta-neja, complementada pela de bode e a da chamada “miunça”, cabras, ovelhas e porcos criados soltos na caatinga. Cultivava-se o milho e o feijão, o arroz e a mandioca, a melancia e a abóbora. Poço Redondo não era, então, mais do que poucas casas dispersas no largo da pracinha da igreja, e os exceden-tes produzidos pelos moradores eram comercializados em um barracão que ali ficava – mas também em feiras de outras localidades – e adquiria-se o de que se precisasse. Na mesa sertaneja não faltava o leite, a manteiga feita em casa e o queijo bem curado; o cuscuz, o feijão, a farinha.

As cantigas estavam presentes em muitas situações do Igreja Nossa Senhora de Aparecida no povoado Sítios Novos

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gente ajudando. Quando chegava a vez dos vizinhos traba-lharem a mandioca, a ajuda era então retribuída.

Dona Maria Baia, bordadeira antiga de Sítios Novos, conta que trabalhavam até de noite cantando, rapando a mandioca e t i rando versos uns com os outros. Em uma ocasião um “rapaz enxerido” tirou verso com ela, que logo devolveu para o rapaz, e ele “murchou”:

Atirei meu lenço brancoem cima de um tabuadotu pensa que eu faço conta?cara de sapo pintado

Seu Mané Matias conta de uma ocasião em que "apa-receu o trabalho de tirar no mato sulipa para vender" para a construção da linha férrea, quando a rodovia que corta o povoado de Sítios Novos não era ainda mais que estreitas veredas por que se moviam os carros de boi. Vinham às vezes dez, doze carros de boi e neles os homens cantando:

Lá vem um carro cantandoLá no arto do piôioLagartixa carreandodona Maria Baia

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Calango chamando boiGuaxinim cortando canaRaposa juntando ôio(...)No dia que eu amanheçoDentro de ItabaianinhaNem homem monta cavalo

Nem muié deita galinha (...)

No ano de 1929 se deu a chegada de Lampião ao lugarejo, o que por toda a década seguinte marcou a vida dos moradores. Muitos cangaceiros famosos andaram por ali – Amoroso, Bom de Vela, Cruzeiro, Juriti, Cobra Verde, Jararaca, Velocípede. Muitos nascidos na região aderiram ao movimento, tomando um caminho que não mais teria volta. Quando Correnteza decidiu ir viver no meio dos cangaceiros, desceu a ladeirona grande do lugar em que morava e se ia também cantando

Adeus casa do arco, Terreiro da viraçãoEsse nosso apartamento

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É com dor no coraçãoAdeus pia da venezaE adeus da Veneza piaAdeus Poço Redondo Monte Alegre até um dia

A chegada do século 20 trouxe para a região algumas mudanças, um impulso de modernização com a instalação de curtumes e indústria têxtil. A fábrica de linhas Estrela foi inaugurada em 1914, e promoveu muitos cursos de trabalhos manuais antes de ter suas atividades encerradas e o maquinário inutilizado, após ter sido adquirida pela Machine Cottons, em 1930 (Dantas, 2006). A construção da linha férrea no início do século 20 e de rodovias a partir da década de 1950 ampliaram a ligação com outros centros mais distantes.

Existiam em Poço Redondo e em seus povoados – e ainda existem – os bailes, animados pelo som do fole, do ganzá e do pandeiro; as vaquejadas, pegas de boi bravo, em que os garrotes são soltos na caatinga para serem derrubados pelos cavaleiros; os torneios de cavalhada; as festas do mês de junho, Santo Antônio, São João e São Pedro, as novenas, o casamento do Matuto; as festas da padroeira do municí-

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pio, Nossa Senhora da Conceição, protetora dos vaqueiros, ou dos tantos povoados, como a Festa de Nossa Senhora de Aparecida em Sítios Novos. E, complementando o trabalho masculino com a gadaria e mais, as rendas de bilro e os bor-dados, conduzidos pelas mãos firmes das mulheres sertanejas.

MulHeR SeRtANejA

Os delicados trabalhos com bilros e almofadas ou com agulhas e bastidores possibilitavam às mulheres do sertão do médio São Francisco sergipano o custeio de pequenas despesas consigo e com os filhos, como as vestes e os sa-patos, pequenos mimos e regalos. Conhecedoras dos altos e baixos dos mercados, se a procura rareava, algumas dei-xavam a renda de bilro para se dedicar a outras atividades que estivessem rendendo melhor, como os bordados ou o crochê. Às vezes voltavam à renda, outras seguiam com os bordados a que preferiam por conta da facilidade de transporte, permitindo-lhes sentar com outras mulheres, conversar durante a costura.

Os bordados e rendas que produziam eram, em geral, levados a vender por mercadores, seguindo três diferentes rotas: a do Cotinguiba, importante e rica zona açucareira

sergipana, chegando até a capital Aracaju; a do São Francisco, seguindo até Propriá, de onde alcançavam outros destinos; e a rota do sertão, perfazendo Simão Dias, Lagarto, Estância, Boquim, Itabaianinha, e seguindo para a Bahia até o municí-pio de Alagoinhas. A partir da década de 40 novos mercados se abriram, beneficiando-se dos fluxos migratórios para o “sul”, motivados pelas notícias que chegavam via rádio, pelo aumento da comunicação e por políticas fundiárias de então.

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Senira Correia Souza Maria Feitosa dos Santos Leopoldina Gomes dos Santos

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Muita renda e bordado foram levados para ser vendidos em São Paulo e Rio de Janeiro, e as mulheres se orgulhavam com o fato de que não retornavam.

Iam os homens, ficavam as mulheres com as crianças e a lida do dia a dia. Elas recebiam as encomendas e se ocupa-vam em realizá-las com a perícia e esmero que tanto. Muitas vezes as encomendas vinham de moradoras do próprio município ou de municípios vizinhos, com mais recursos e acesso a compradoras e mercados, como as esposas de políticos ou fazendeiros locais. No sistema estabelecido, quem encomendava deixava as linhas e os cortes de pano, além de fornecer as amostras, pagando depois pelo traba-lho. Quando podiam, algumas bordadeiras bordavam para si, enviando seus trabalhos para serem vendidos, mas não eram muitas, pois nem sempre se podia investir na aquisição da matéria-prima e esperar pelo retorno da peça. "Pondo o nome" para a renda ou o bordado, tinham a garantia do ganho, ainda que este estivesse muito aquém da beleza das peças que faziam.

As rendas e bordados eram para as mulheres um refúgio e uma garantia. Quando se viam sós, desprovidas de pai ou marido, restava-lhes remediar com as linhas a situação em que ficavam. dona Cruz

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Dona Cruz começou a bordar aos 16 anos. Fazia muita renda de bilro, mas, tendo perdido o pai, sem saber bem o que iria viver, ganhou de uma amiga um corte para uma colcha e duas caixas de linha. Para ter o que comer, trabalha-va em uma roça que o irmão botou para ela. Levava consigo o pano – “naquele tempo era bramante” – e, entre o cavar das covas, espaçadas para o milho e miúdas para o feijão, pegava um pouco o bordado, até que acertou o jeito. Conta que tinha tanta sorte que às vezes a formiga tuiuca feria o tecido, mas era bem onde o bordado ia passar, de modo que ela não perdia o trabalho. Como fosse cuidadosa, ficou o pano sem nenhuma nódoa, o trabalho pronto foi vendido e ela não deixou de fazer mais.

Outra antiga bordadeira, dona Maria Baia aprendeu a bordar com a mãe, dona Eutímia. Lembra com orgulho os grandes bordados que fizera, as toalhas de banquete, uma para o altar da igreja da cidade. Conta que os bordados mais difíceis e elaborados, que as outras bordadeiras não que-riam fazer, vinham sempre para ela. Tinha 12 anos quando começou a pegar as encomendas, dividindo o trabalho com os cuidados com a casa, o preparo dos alimentos, a roça de algodão do pai, o rapar mandioca e o farinhar. Com uma professora contratada para lhe ensinar as letras,

aprendeu bordado à máquina, a costura, o ponto labirinto, o richeliê. Com a mãe, aprendeu ainda a fazer louça de barro, que ela e as tias todas faziam bem. Parteira, cortou o umbigo de duzentos e um meninos. E entre as atribuições tantas, dia e noite eram passados com os complicados bordados que lhe cabiam.

Dona Eutímia, mãe de Maria Baia, era bordadeira muito querida em Sítios Novos. Contam que bordou até os últimos dias de sua vida e, na enfermaria em que estava, quando

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o juízo já lhe faltava, enrolava em seu colo o lençol que cobria o leito e, segurando uma agulha imaginária, quem sabe que lindos bordados a outra mão conduzia. Quando de seu falecimento, as companheiras cobriram o caixão com um lenço bordado em branco e azul, as cores de que tanto gostava. Mais que um ofício a que dedicam o tempo, no entrecruzar dos fios dos panos, os sentidos dos pontos e os da vida se entremeiam nas composições que vão surgindo.

ReNDA De bIlRo De Poço ReDoNDo

No ano de 1994, após viver muitos anos em São Paulo, Maria Dominga chegou para residir em Poço Redondo, acompanhando o marido, que queria viver mais perto de seus pais, que estavam com idade avançada. Sem alternativa para obtenção de renda, passou a produzir peças de crochê, que comercializava no próprio município. Conta que, sem-pre que saía à rua, parava para olhar as rendeiras trançando bilros em suas almofadas e recordava suas avós, rendeiras também em Alagoas.

Naquele tempo havia muita rendeira produzindo em Poço Redondo. Sentadas próximo às janelas para aproveitar a luminosidade, chamavam a atenção de quem ia passando,

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marcando, assim, a paisagem local. Todavia, um estudo re-alizado por Dantas (2002) apontava tratarem-se de senhoras entre 60 e 80 anos de idade que, por uma série de fatores, não haviam logrado transmitir seus saberes às gerações mais novas. Ao que tudo indicava, não tardaria a deixar de existir a renda de bilro no município.

Nessa mesma época, Maria Dominga encontrou a opor-tunidade de aprender a fazer renda por que tanto ansiava. Uma amiga lhe informou que a Ação Social estava oferecendo cursos, dentre os quais, um de renda de bilro. Sua inscrição

não teria sido aceita, uma vez que eram destinados a bene-ficiários do programa Bolsa Família, mas sobrou uma vaga e, percebendo seu interesse, o responsável pelas inscrições decidiu lhe dar uma chance.

O curso durou três meses e ela não faltou nem se atrasou um único dia. Pouco tempo depois, novo curso de renda de bilro foi oferecido no povoado de Sítios Novos. Sabendo que Maria Dominga já havia repassado à filha o que aprendera, os organizadores a con-vidaram para ministrá-lo acompanhando dona Ce-nira, rendeira antiga do município.

Dentre as mulheres que, como Dominga, fre-quentaram os cursos de renda de bilro, poucas deram continuidade à produção de renda. Quan-do, no início de 2010, o Promoart propôs realizar novos cursos de transmis-são de saberes, não se via Maria Dominga

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quase renda de bilro em Poço Redondo. Muitos na cidade duvidaram que haveria inscrições suficientes para que os cursos pudessem ser realizados, mas Dominga, agente local do programa, tomou para si o desafio e em pouco tempo conseguiu organizar uma turma de quatorze garotas, a maior parte entre 12 e 16 anos de idade. Rendeiras antigas, Cenira, Leopoldina, Conceição e Maria Feitosa assumiram como instrutoras. Ao longo de quase um ano reuniram-se na sede do Ateliê do Cangaço, espaço que Vera Ferreira ce-deu muito gentilmente para que as atividades pudessem se realizar. Concluído o curso, as novas e antigas rendeiras por ele reunidas estavam estabelecidas como grupo de produção.

No contexto do Promoart, Dominga integrou a Carava-na Brasil, que levou um grupo de artesãos de todo o país para conhecer lojas e centros de comercialização de artesanato em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro; participou do Mercado Brasil de Rendas e Bordados, em Brasília, e do Mercado Brasil, no Rio de Janeiro. Nesses eventos, conhe-ceu rendeiras de diferentes regiões do Brasil e, com as quais trocou experiências, modelos de renda e ideias.

De volta a Poço Redondo, além dos bicos e entremeios, o grupo de renda de bilro passou a produzir também presilhas, aplicações, diademas, bolsas, saias e coletes, desenhados por

sua filha Alane e outras rendeiras mais jovens. Com o apoio de outros parceiros regionais, buscaram novos pontos de comercialização. Atualmente, a renda de bilro que produzem é comercializada no município de Piranhas, em Alagoas; no Centro de Cultura e Arte J. Inácio, na orla turística de Aracaju; e na loja de Mônica Schneider no Museu da Gente Sergipana.

A Associação de Artesãos de Poço Redondo, criada em 2008 com o apoio do Sebrae e a que a renda de bilro está integrada, ainda em 2010 elaborou para o Mais Cultura um projeto visando a se tornar ponto de cultura. Como a asso-ciação não possuísse ainda o tempo necessário de existência, o projeto acabou sendo encaminhado pela Fundação Dom José Brandão de Castro, já bem estabelecida. Novos cursos foram realizados, uma marca foi criada, uma designer foi contratada e vem desenvolvendo produtos que apostam na aplicação de renda em peças de tecido, incluindo peças de vestuário. A fundação repassa para as rendeiras as peças a serem produzidas, fornece a matéria-prima e remunera pelo trabalho. O desafio será, agora, compatibilizar mais essas conquistas com o caminho de autonomia e protagonismo que as rendeiras de bilro de Poço Redondo vêm há alguns anos trilhando.

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FAZeNDo ReNDA

Para fazer a renda de bilro, o primeiro passo é a almofada. Feita com capim seco forrado com tecido de algodão de modo a adquirir um formato cilíndrico, é apoiada sobre um cavalete de madeira. A rendeira irá precisar também de um bom punhado de espinhos de man-dacaru, que, se não encontrados, podem ser substituídos por alfinetes, embora haja a queixa de que escorregam, fazendo perder os pontos, e de que se dobram muito facilmente. Serão necessários linha, que pode ser de diferentes tipos e espessuras; um papelão com a matriz do modelo que se deseja produzir; e, para começar, cerca de duas dúzias de bilros, suficientes para os bicos e entremeios de até cinco ou dez centímetros de largura.

As rendas mais largas e os motivos mais elaborados são feitos apenas por rendeiras já experientes, que podem chegar a fazer tilintar, trançando de um para outro lado, 300 bilros em uma única peça. Mesmo nas mãos de rendeira já muito experiente, um metro de renda de 30 centímetros pode chegar a levar um mês para ser produzida, com muitas horas de trabalho todos os dias. O número de bi l-ros empregados em uma peça é como um d iploma pa ra a rendei r a , a s s im como o é a arte de pinicar os papelões que operam como matrizes, procurados e guardados com es-tima pelas rendeiras e cujos mistérios nem todas dominam.

Sr. José Lemos

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SÍtIo DoS boRDADoS ou uM SoNHo A MAIS

O povoado Sítios Novos, não muito distante da sede do município de Poço Redondo, chama a atenção pelo grande número de mulheres que, uma após outra geração, vêm se dedicando a ornar os cortes de pano com fios que se entre-cruzam e entremeiam ao tecido em composições graciosas. Contando os fios de dois por dois, de dois por três, fazem os pontinhos miúdos que cobrem, às vezes, toda a extensão do tecido. Os pontos mais frequentes são o ponto cruz e o rendendê, que na década de 1970 ganhou visibilidade, chegando a ser conhecido como a renda sergipana.

Era uma tarde quente de dezembro quando as mulheres bordadeiras de Sítios Novos se reuniram para conversar sobre o ofício que possuíam, estimuladas por técnicos do programa Artesanato Solidário, nos idos de 2001. No clube da cidade, apoiadas no desenho de um umbuzeiro, foram provocadas a pensar juntas sobre os problemas que enfrentavam e como fariam para superá-los. Lídia conta que não foi às primei-ras reuniões, até que cedeu à persistência de uma vizinha, dona Eutímia, bordadeira das mais antigas, por quem todas demonstram grande carinho.

Quando chegou, queriam que ela escrevesse em Lídia

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um pequeno quadro um sonho que possuísse, para juntar aos das demais, mas, em suas palavras, ela “não tinha sonho”. Seguiram a reunião, ela ficou participando e, “quando foi no terceiro dia, olha eu ali parada sonhando”. Veio daí o nome escolhido pelas bordadeiras para a cooperativa que então formaram – Um sonho a mais.

O súbito interesse pela atividade que por ali há tanto se fazia alçou-as de uma vida que pouco tinha a oferecer às mulheres. Geanne conta que elas pouco se conheciam, não

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muito produzidos e reproduzidos, esses padrões acabaram por conformar uma identidade visual, com nomes que as bordadeiras lhes foram dando por associação com elementos por elas conhecidos: linha do trem, olho de pombo, teia de aranha, escadinha, tijolinho, centro oval, boa noite. Os pa-drões estabelecidos se renovam por intermédio de variações, ao que dão o nome de guarnição.

tinham qualquer distração; quando alguém de fora chegava, se escondiam, não cumprimentavam nem encaravam as pes-soas. Hoje todas conversam, viajam, não têm mais timidez. As bordadeiras de repente se viram envolvidas com novos aprendizados, integrantes de um movimento mais amplo. Aprenderam o avesso perfeito; aperfeiçoaram a bainha aberta, o “perfílio” e os cantinhos; padronizaram cores, produtos e tamanhos. Aprenderam sobre cooperativismo e gestão, e passaram a assumir todas as etapas, da produção à comercialização.

Embora a técnica do bordado possa ser aplica-da a quaisquer esquemas gráficos, as bordadeiras de Sítios Novos optaram pelo estabelecimento de alguns padrões, o que foi feito com base em antigas peças encontradas nos baús de suas mães, tias e avós por uma designer ligada ao Programa Ar-tesanato Solidário. Há Padrão centro oval

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pontos, para dar “vida” ao espaço, dando lugar a tons mais suaves e aos bordados em branco.

Com a assessoria do Artesanato Solidário, estabeleceram o sistema de trabalho que ainda hoje vigora, rompendo com o antigo sistema de encomendas em que as intermediárias lhes repassavam os esquemas gráficos e os materiais e cen-tralizavam as encomendas. As bordadeiras passaram, assim, a contar o tempo que dedicam a cada peça produzida e a remunerar o próprio trabalho.

Atualmente, com o apoio de programas variados que elas próprias se encarregam de administrar, controlam os estoques de matéria-prima, adquirem embalagens e folhete-rias, participam de eventos e feiras para a comercialização da produção. Na sede da cooperativa, se encontram para bordar enquanto conversam, riem, trocam confidências. Entre os desafios enfrentados na busca pela valorização dessa prática artesanal, seguem com o contínuo movimento de encontrar em cada tempo o ajuste entre as formas dos bordados e o gosto dos compradores, inventando novas peças, adequando as medidas, caprichando no asseio e apresentação de cada uma delas.

O estabelecimento de padrões fixos visava, justamente, a criar uma identidade para a nova marca Sítio dos Borda-dos, bem como reduzir o tempo de trabalho empregado em cada peça, viabilizando a comercialização e melhorando a remuneração ao trabalho das bordadeiras. De modo a ajus-tar as peças produzidas ao gosto dos clientes em potencial, as cores vibrantes de que as bordadeiras gostavam passaram à recepção da cooperativa, em um mostruário decorativo de

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Para a confecção da peça, as bordadeiras cortam o tecido no tamanho estabelecido e chuleiam a borda para que não desfie. Costuram a bainha à mão, observando a medida. Com especial cuidado, fazem a dobra dos cantinhos sem que haja sobreposição. Para a “bainha aberta”, puxam os fios na altura da bai-nha e costuram, de seis em seis, os f ios opos-tos na trama. Quando o acabamento dado é o “perfílio” primeiro é feita a costura, depois a peça é lavada, engoma-da e passada, e só então o tecido é cortado, para não ficar com fiapos na ponta.

O cuidado se-g u i n t e é c o m a d i s t r i b u i ç ã o d o motivo no corte de tecido, razão pela qua l muitos bor-dados são iniciados a partir do meio da peça. Mas o mais importante para um trabalho bem acabado, aspecto que para as bordadeiras tem o efeito de um marco, é o feitio do “avesso perfeito”, obtido quando todos os pontos são feitos em uma mesma direção. “É pelo avesso que se conhece a bordadeira”, e as bordadeiras de Sítios Novos muito se orgulham do avesso das peças que executam, sem nós ou linhas transpassadas. Após a realização do bordado, lavam e alvejam, engomam e passam a peça, finalização que exige habilidade e perícia. O excesso de goma tira a maleabilidade da peça e pode acarretar sua deformação.

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bIblIogRAFIA

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