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Filhos de divorciados
que vivem (felizes)
em casas alternadas
Semana simsemana não
Com quem deve viverum filho depois de ospais se divorciarem?
Histórias de quemescolheu a residência
alternada como modelo.
14
a residência alternada é escolhida por cada vezmais famílias: durante uns dias ficam com umprogenitor, nos dias seguintes ficam com o outro.Porque os filhos têm um pai e uma mãe e direito aviver e ser educados por ambos. Mesmo que seja emcasas diferentes.
Semana sir^^Hsemana nã<||^^|Lua vive urn l9^|
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QUERES VER ESTA FOTO DO MEU PAI?
Aperguntaé de Lua. Debraço esticado, temna mão uma das muitas fotografias que os
pais tiraram quando se casaram, antes decia nascer. A imagem tem 15 anos c muitacoisa mudou desde então. Lua nasceu há 11
anos, os pais estão separados há sete. Masisso não tem impedido Francisco de ser umpai presente na vida desta filha que agoramostra a fotografia antiga do progenitor.
Quando falaram de separação, a primei-ra coisa que Francisco Vasconcelos e Susa-na Cunha Rego decidiram foi que a Lua iacontinuar a viver com os dois. «Na altura do
divórcio, se há sacrifícios a fazer, têm de seros pais a fazê-los, não as crianças», defendeFrancisco enquanto passa a mão na cabeçada filha. «Quando há uma separação e elanão c desejada por um dos lados, a primei-ra barreira é pessoal e passa por ultrapassarisso.» Ele ultrapassou-a. E decidiu que tu-do ia fazer para encontrar forma de as coi-sas funcionarem para a filha. Organizou avida a dois quarteirões da casa da ex-mulher
para ser tudo mais fácil e tempos houve em
que chegou a viver no mesmo prédio. «Mui-ta gente achou isso ridículo, mas nós acre-ditámos que era o melhor para a nossa filhana altura.»
Texto Sofia Teixeira
A DECISÃO DE COLOCAR LUA cm primeirolugar na lista de prioridades não surgiu naaltura do divórcio. É muito anterior. Quan-do a filha nasceu, Francisco despediu-se do
emprego que tinha e passou a trabalhar emcasa como designerfreelancer, de forma apoder acompanhá-la de perto. Afinal, erarepetente: quando casou com Susana já ti-nha passado por um divórcio c tinha um fi-lho, Manuel, hoje com 25 anos. A primeiraseparação foi conturbada e isso teve um im-pacto na relação entre ambos. «Houve altu-ras em que nem de 15 em 15 dias via o Ma-nuel por causa dos conflitos com a mãe dele.
Penei mesmo muito.»Do lado da mãe de Lua, a preocupação foi
a mesma: o melhor para a filha. Por isso Su-sana Cunha Rego não teve grandes dúvidas
que omelhor era elapoder viver com os dois.
«O Francisco, além de ser pai da Lua - e umexcelente pai - éum amigo.»
Talvez ao contrário do que é comum, cor-reu tudo excecionalmente bem: estiveram
de acordo que a filha deveria morar com os
dois, a Lua adaptou-se bem a viver cada se-
mana numa casa, em sete anos de divórcionão houve uma discussão e não há grandesdiferenças do ponto de vistade regras ou mo-delos parentais. A sua própria experiênciacomo filha de pais divorciados foi pouco or-todoxa, mas muito funcional: o irmão ficou aviver com o pai c cia com a mãe, mas como as
casas eram uma em frente à outra, andavamcáe lálivremente. Susana casou-se entretan-to e o marido é também um apoio e uma re-ferênciapara afilha. «A gestão do dia-a-dia,entre escola, centro de estudos e outros com-promissos é tripartida: umas vezes vou eu,outras a mãe, outras o padrasto», diz Fran-cisco. «Sefor caso disso vamos os três.»
EM 2008 HOUVE ALTERAÇÕES
LEGISLATIVAS AO DIREITO
DA FAMÍLIA, PARA TORNAR
MAIS IGUALITÁRIO 0 PAPEL
DOS PAIS. «PODER
PATERNAL» FOI SUBSTITUÍDO
POR «RESPONSABILIDADES
PARENTAIS» E TORNOU-SE
REGRA A ATRIBUIÇÃO
AAMBOS OS PROGENITORES
DO EXERCÍCIO DESTAS.
FONTE: PETIÇÃO EM PRO_ DA PRESUNÇÃO JURÍDICA DA RESIDÊNCIA ALTERNADA, ASSOCIAÇÃO POR~UGUESA PARA A IGUALDADE PARENTAL E DEFESA DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS
Lua sente-se amada e apoiada. «É bom
porque o pai e a mãe são amigos», diz. «Háoutros meninos que também têm pais se-
parados, mas eles não são assim amigos...»E deixa a constatação em suspenso, comuma expressão no rosto que mostra um certo
pesarporquem não tem tantasorte como ela.
PARAQUETUDOFUNCIONEBEMnestadi-nâmica é preciso haver vontade e demasia-das vezes as crianças são usadas como ar-ma de arremesso entre o casal desavindo ouo fim da relação dita o afastamento de umdeles dos filhos - quase sempre o pai. Estas
são as guerras que chegam aos escritórios de
advogados e às conferências de pais em tri-bunais, e que muitas vezes estão mais rela-cionadas com problemas por resolver entreo ex-casal do que com assuntos relaciona-dos com os filhos.
Susana e Francisco fizeram intuitiva-mente aquilo a que os psicólogos chamamde separar a conjugalidade da parentalida-de: deixaram de ser um casal, mas não dei-xaram de serpais.Nemtão-poucodeixaramque a separação afetasse a relação de algumdeles com afilha. Pode ser difícil, mas só trazbenefício para a criança. «Aliteratura cien-tífica neste domínio é clara: o principal pre-ditor do ajustamento psicológico das crian-
ças ao divórcio é aforma como os pais fazema sua própria adaptação», explica Catari-na Ribeiro, psicóloga do Instituto Nacio-nal de Medicina Legal e Ciências Forenses
do Porto e professora na Faculdade de Edu-cação e Psicologia da Universidade Católi-ca. São a atitude, o comportamento, o equi-líbrio psicológico e a relação dos pais quecondicionam a adaptação dos mais pe-quenos e não apenas na altura do divórcio.«O conflito parental c um dos principais fa-tores de desajustamento das crianças, querquando os pais vivem juntos quer quandovivem separados. Se os pais não são capazesde comunicar um com o outro de umaformafuncional e adequada, o impacto na criançatende a ser muito negativo, independente-mente do regime de responsabilidades pa-rentais que é fixado», diz a psicóloga.
Igual entendimento acercadas vantagensde umaboa relação entre pai e mãe tem Joa-
quim Manuel Silva, juiz de família e meno-res no tribunal de Mafra. «O problema nãoestá no regime, está no conflito», defende o
magistrado, conhecido pelos esforços emtentar conciliar pais desavindos [ver entre-vista na página 24]. Por isso, ao fixar as res-
ponsabilidades parentais, mais do que jul-gar e escolher um dos progenitores, aquiloque faz é ajudar os dois a organizarem anovarelação, agora apenas como pais, e não co-mocasal. «O supremo interesse da criançaéumeonceito indeterminado que eu tenho de
preencher e que, no meu entender, passaso-bretudo por ajudar os pais a evitar o confli-to. Só assim podemos ter uma criança comdireito a pai e mãe e, sobretudo, a um pai e
a uma mãe que se respeitem mutuamente,
«0 CONFLITO PARENTAL
É UM DOS PRINCIPAIS FATORES
DE DESAJUSTAMENTO DAS
CRIANÇAS, QUER QUANDO OS PAIS
VIVEM JUNTOS QUER QUANDO
VIVEM SEPARADOS», DIZ
A PSICÓLOGA CATARINA RIBEIRO.
«SE OS PAIS NÃO SÂO CAPAZES DE
COMUNICAR UM COMO OUTRO DE
FORMA ADEQUADA, 0 IMPACTO NA
CRIANÇA TENDE A SER NEGATIVO,
INDEPENDENTEMENTE DO REGIME
DE RESPONSABILIDADES
PARENTAIS QUE É FIXADO.»
evitando que a criança viva num stress queé muito prejudicial ao desenvolvimento.»
Ana Lúcia e o ex-marido, Miguel, não são
propriamente amigosmas têm umarelaçãoamigável. E contam um com o outro no quetoca aos filhos Gonçalo, de 13 anos, c Tiago,de 11. «Nesta semana e napróxima vou estarcom eles porque o pai não pode durante ase-mana dele. Mas às vezes acompanho o meunamorado nas viagens de trabalho quefaz e,se calham na semana em que estou com os
meninos, também é ao pai que recorro pa-ra ficar com eles. Há muitaflexibilidade.»
NA ALTURA DA SEPARAÇÃO, em 2012,Ana Lúcia Moreira fez uma coisa que nem
sempre é fácil: «Pus-me na posição do meuex-marido e pensei: "O que é que eu senti-ria se só pudesse estar com os meus filhos de15 em 15 dias? Ficava muito, muito triste".»Mas Ana Lúcia recorda-se que, quando fo-ram entregar no registo civil o acordo queeles próprios redigiram, a funcionária tor-ceu o nariz. «Disse que tinha dúvidas se se-ria homologado porque se considerava queuma semana de cada lado poderia não ser omais indicado para as crianças.»
Hoje esse entendimento mudou. A resi-dência alternada - ou seja, a partilha entremãe e pai de 33 a 50 por cento do tempo deresidência e do envolvimento continuadonos cuidados, na educação e na vida quoti-diana dos filhos - tem apoiantes em váriasáreas de investigação. Malin Bergstrõm,psicóloga clínica e investigadora no Insti-tuto Karolinska, em Estocolmo, tem maisde duas décadas de experiência em media-
ção familiar. Nos últimos anos fez vários es-tudos com filhos de casais separados, nos
quais conclui que os que têm a residência al-ternada estão com melhor saúde mental, fí-sicaebem-estar dogue os que vivem apenascomumdosprogenitores.Osestudosforamfeitos primeiro com crianças entre os 10 e os
18 anos e depois com crianças entre os 2 eos 5 anos. Os resultados foram os mesmos.
A psicóloga Catarina Ribeiro alerta parao facto de ser redutor pensar num «modeloúnico» para defender o interesse da crian-
ça e gerir a relação dos pais com os filhos.É preciso considerar as especificidades dacada família. Mas, feita essa ressalva, con-corda que há consenso: «Quando as com-petências parentais estão asseguradas, o
regime que pode ser mais favorável para acriança é o que lhe permite ter um contactoalargado com ambos os progenitores. Nes-se sentido, o regime de residência alternadapode ser o que mais se aproxima de um mo-delo de convívio consistente e securizante.»
Adivinhando isto mesmo, e sem conhece-rem a fundo estudos académicos, em 2012Ana Lúcia e Miguel saíram do registo civil acombinar que, independentemente da sen-
tença que chegasse, iam continuar a fazer o
que já faziam. O acordo acabou homologa-do e hoje, cinco anos passados, Ana Lúciaadmite que a única coisa que lhe custa nes-te sistema é que os filhos tenham perdidouma certa noção de casa que tinham antes.
«Agora nunca dizem "a nossa casa", dizem
sempre "a casa da mãe" ou "a casa do pai".»Mas também acha isso um mal menor e quemais grave seria terem perdido o convívio
pleno com um dos dois.No cartão de cidadão ficou a morada do
pai. Calhou assim. Mas apesar de teremduas casas, não há malas de um lado para
EM 20U, UMA ANALISE
DE UMA SOCIÓLOGA DO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
INDICAVA QUE APENAS 22,2
POR CENTO DOS INQUIRIDOS
CONSIDERAM 0 REGIME DE
RESIDÊNCIA MATERNA E VISITAS
PATERNAS COMO 0 MELHOR
PARA A CRIANÇA,
CONTRASTANDO COM OS 47,5
POR CENTO QUE AFIRMAM
ENTENDER SER MELHOR A
RESIDÊNCIA ALTERNADA.
o outro: têm tudo nas suas duas casas e aúnica coisa que transportam com eles são
os livros escolares. Também não há lugar apensão de alimentos e dividem ameias as
despesas fixas e médicas. Quanto ao res-to, vão combinando sem fazer contas aoscêntimos. «Se eles precisam de um casa-co e de uns sapatos, o pai compra uma coi-
sa e eu outra.»
NÃO HÁ EM PORTUGAL estudos extensosde avaliação do bem-estar das crianças emresidência exclusiva e alternada, como os dasueca Malin Bergstrõm, e os números tam-bém nos dizem pouco acerca da realidadenacional. Os últimos dados sobre decisões
judiciais nesta matéria datam de 2006 e
apontam para as «guardas conjuntas» ape-nas em três por cento dos casos. Mas pas-sados onze anos estão desatualizados, tanto
naspercentagens como na própria termino-logia. Em 2008 houve alterações legislati-vas ao direito da família, no sentido de tor-nar mais igualitário o papel dos pais e co-locar um foco maior nos direitos dos filhos.A expressão «poder paternal» foi substituí-da por «responsabilidades parentais» - deforma a dar ênfase aos deveres, por oposi-ção aos poderes - e tornou-se regra a atri-buição a ambos os progenitores do exercício
destas, por oposição à guarda única que vi-gorava até aí e era quase sempre entregue àmãe. Hoje, as responsabilidades parentaissão quase sempre partilhadas, o que signi-fica que pai e mãe têm de tomar decisões im-portantes em comum, podendo a residên-cia ser exclusiva, quando fixada apenas com
um, ou alternada, quando com os dois.«Os Censos 2011 mostram que as famí-
lias monoparentais e recompostas forma-das pela dissolução conjugal têm vindo aaumentar. As famílias monoparentais fe-mininas são maioritárias (89,2%), bem co-mo as famílias recompostas em que o filhoou filha não comum é da mulher (78%) », ex-
plica a socióloga Sofia Marinho. A investi-
gadora do Instituto de Ciências Sociais daUniversidade de Lisboa lamenta a inexis-tência de dados oficiais sobre os desfechosda regulação das responsabilidades paren-tais no que diz respeito aos regimes de resi-dência e visitas das crianças. Isto porque os
Censos fornecem uma informação muito li-mitada: não registam o tempo que a criançavive na casa do outro progenitor, não sendoassim possível saber qual a sua verdadeirasituação parental. «Não se sabe, por exem-plo, quantas crianças são vítimas de aban-dono parental por parte de um dos seus pro-genitores nestas famílias.»
Apesar destes números, Sofia Marinhoacredita que as atitudes estão a mudar. Nolivro que coordenou, Uma Família Paren-tal, Duas Casas (cd. Sílabo, 2017) a investi-
gadora publicou a análise dos dados do in-quérito International Social Survey Pro-gramme (ISSP) aplicado em 2014 a umaamostra representativa da população por-tuguesa de 1001 pessoas: apenas 22,2 porcento dos inquiridos consideram o regimede residênciamaternae visitas paternas co-mo o melhor para a criança, contrastandocom os 47,5 por cento que afirmam enten-der ser melhor a residência alternada.
E algures na passagem das opiniões às
práticas que estas convicções ficam pelo ca-minho. Os obstáculos à residência alterna-da colocam-se principalmente quando os
pais não estão de acordo, mas também podehaver resistênciaquandoesse acordo existe.«A ausência da residência alternada na le-tra da lei é um dos problemas», diz a investi-gadora. «Na ordem jurídica vigente, o acor-do entre progenitores quanto ao regime de
residência alternada não garante a aceita-
ção deste por parte dos magistrados.»Há quem defenda que a pressão social é
um dos problemas. A assistente social Sa-ra Miranda, 40 anos, tem o seu próprio pro-cesso de adaptação ainda em curso porqueé tudo mais recente e porque a filha Mar-garida era bastante mais nova na altura da
separação: hoje tem 3 anos, quando os paisse separaram tinha apenas 9 meses. O ex--marido reivindicava o direito a passar o
mesmo tempo com afilha, mas Sara resistiu
alguns meses. Não estava de acordo e enten-dia que o melhor para a filha era ficar comela, por ainda ser muito pequena. Para re-solver o impasse foram os três a uma pedo-psiquiatra e só depois de ouvir aprofissionaldizer-lhe que afilha tinhaamesmavincula-ção com o pai que tinha com ela é que cedeu.«Percebo agora que, na realidade, o princi-pal problema que eu enfrentava era o estig-ma de ser mãe em par t-time.»
Sara e o ex-marido tiveram um divórciocom quezílias, não têm uma relação de pro-ximidade e os modelos educativos e formasde parentalidade dos dois são muito dife-rentes. A gestão das responsabilidades emcomum não é isenta de conflitos e têm de-sentendimentos mesmo quanto à interpre-tação do que ficou definido na regulação.Ainda assim, existe um acordo tácito entreos dois: não há, nem nunca houve, discus-sões ou conversas sobre o tema cm frente àfilha Margarida, de forma a salvaguardá-lados conflitos e desentendimentos. «Não é
fácil. Mas às vezes também não éfácil quan-do se está junto como casal. Apesar da mi-nha resistência inicial, hoje defendo que os
pais não têm de ser darbem parauma crian-
ça poder estar em residência alternada.»Embora Margarida vá de bom grado para
opai, Sara acredita que, se lhe perguntassemo que queria, é possível que preferisse estarmais tempo com a mãe. Mas isso não lhe al-tera em nada a convicção de que este é o me-lhor sistema para a filha. «Se a Margaridapudesse, também escolhia almoçar e jantarchocolate. Há coisas que devem ser os adul-tos a decidir, não devem ser perguntadas às
crianças desta idade.» Como todas as mãese pais, há momentos em que sente apreen-sões. Pensa, por exemplo, se um dia a filhanão questionaráporque não ficou a morar só
com ela, mas sabe que, independentementedo sistemaescolhido, seriasempre assaltada
por dúvidas. «Se tivesse ficado a viver só co-
migo, por certo também perguntaria a mimprópria: «Será que elanão vai culpar-me pornão ter tido oportunidade de ter com o pai amesma relação que tem comigo?»
"AO FIXARA RESIDÊNCIAEXCLUSIVAFICAMOS COMUM PROGENITORQUE GANHOUE OUTROQUE PERDEU "
Joaquim Manuel Silva, juiz de famíliae menores, defende que a residência alternadade filhos de pais separados é a melhor opçãopara garantir o bem-estar da criança - sobre-tudo quando os progenitores estão em guerra,porque isso diminui o conflito. O magistradofala de direito, mas também de ciênciae psicologia, para defender este ponto de vista.E acredita que seu papel não é apenas julgar,mas sobretudo informar e conciliar, ajudandoos pais que não estão juntos a conseguiremser um casal parental que restitua a famíliaà criança.Entrevista Sof ia TeixeiraFotografias Paulo Alexandrino/Global Imagens
Formou-se
em Filosofia e Direi-to, foi professor no secundá-rio, exerceu advocacia e che-
gou à magistratura quase aos40 anos. Hoje tem 56, é juiz defamília e menores desde os 44 e
assume-se como defensor dos filhos quandoos pais estão em guerra. Muitas vezes con-
segue o milagre de pais inimigos passarema ter uma relação civilizada, talvez porqueprefere conversar com eles em vez de ler re-latórios. Entre os quatro mil processos tute-lares cíveis que o juiz Joaquim Manuel Silvatratou nos últimos sete anos, só levou dois outrês a julgamento. E conhecido por flexibi-lizar os procedimentos de forma a agilizar aresolução dos casos - telefona ele próprio afazer convocatórias e envia mensagens porFacebook, se necessário. Está na comarcade Mafra há um ano, mas a missão é a mes-ma: impedir que os pais destruam a infân-cia dos filhos, por melhores que sejam asboas intenções deles.
•Em Portugal não há estatísticas ofi-ciais acerca dos regimes de regulaçãodas responsabilidades parentais fixadospelos tribunais. Do que observa, tem no-ção das percentagens?Informalmente. Há um estudo de umaprocuradora minha amiga para o qualentrevistou 28 juizes - entre os quais eu.Na amostra, que engloba a zona norte e aGrande Lisboa, apurou cerca de três porcento de residências alternadas.•Apercentagem de casos em que fixa re-sidência alternada é bastante diferente.Tem pelo menos mais um zero .
Nuncaf iz contas ao total, mas vou fazendo aalguns períodos de tempo e costuma andarentre os vinte e os quarentapor cento. Comovou fazer um doutoramento nesta área, co-mecei a fazer a recolha dos meus casos des-de setembro de 2017 e, nesta amostra, ainda
pequena, que rondará os sessenta casos, te-nho 41 por cento de residências alternadas.•Em que situações é que fixa este regime?Em dois casos: por acordo dos pais - nestas
situações nem discuto, dou apenas meiadú-zia de conselhos em relação a questões ope-racionais - e quando háconflito. Se são am-bos bons do ponto de vista pessoal e de ca-pacidade parental mas estão em conflito,por norma, opto pela residência alternada.
•O senso comum e a maioria dos seuscolegas defendem o oposto: que, em ca-so de conflito, não há condições para aresidência alternada.Também tinha essa ideia e há colegas queainda a defendem, mas hoje tenho umaopinião diferente. Ao fixar a residênciaexclusiva ficamos com um progenitorque ganhou e outro que perdeu: se a re-lação já era má, pior vai ficar e o confli-to aumenta. Ao estabelecer uma igualda-de entre os pais que os responsabiliza aos
dois, normalmente começam a ter o cui-dado de proteger os filhos, desenvolvem
estratégias para lidar um com o outro e o
conflito diminui. Não é a residência alter-nada que é má para o conflito: o conflitoé que é mau para tudo, por isso é aí que te-mos de intervir.•A nossa lei está desajustada e precisa-va de ser mudada?Nem tanto. A nossa lei é muito inovadora:diz que [Lei nfi 61/2008, número 5 do arti-go 1906 a], ao fixar um regime, devo esco-lher o progenitor que se disponibilize parapromover a relação habitual do filho como outro. Isso, não sei se de forma intencio-nal ou não, favorece aquele que facilita,logo, promove a vinculação com o outro.A criança aproxima-se de quem os pais se
aproximam - emocional e comportamen-talmente - e afastam-se de quem os paisrejeitam.•Onde é que fica aqui o conceito tão fa-lado de «pessoa de referência»?É um conceito pobre e redutor que foi ba-seado numa decisão antiga de um tribu-nal superior americano e que, até nos Es-tados Unidos, jáfòi afastada. Às vezes cos-tumo dizer a brincar que uma empregadadoméstica interna preenche o conceito de
pessoa de referência: leva e traz da esco-
la, dá banho, alimenta, brinca. E, no en-tanto, não passa pela cabeça de ninguémentregar-lhe a guarda da criança. Por ou-tro lado, o objetivo de fixar responsabili-dades parentais não deve ser escolher um,mas antes verificar as potencialidades dosdois e organizar a nova relação entre eles.
•Estamos a colocar o foco no problemaerrado? A questão é mais a relação dos
pais do que o regime escolhido?O problema nunca está no regime: quandoos pais se entendem todos os regimes são
bons. Se um pai e uma mãe têm uma boarelação e ambos querem uma residênciaexclusiva com um deles, não me oponho.Mas se há conflito, eu tenho uma situaçãode grande perigo para o desenvolvimen-to da criança e, enquanto juiz do processo,
tenho de me preocupar com isso c intervir.Não posso limitar-me a dizer com quem é
queacriançafica.Masissoimplicapassar--lhes primeiro uma série de conhecimen-tos que, por norma, eles não têm.•Como é que faz essa intervenção paraabordar pais em guerra?Com terapia cognitiva: introduzo conhe-cimento para mexer com os sentimentosdeles. Explico-lhes o conceito de vincula-ção, apresento estudos que mostram queo conflito parental tem efeitos semelhan-tes aos maus-tratos, mostro que o ambien-te hostil faz que haja níveis elevados de cor-tisol no cérebro da criança, que há sinapsescerebrais que não se criam. A criança nãodesenvolve o cérebro emocional, só o cha-mado cérebro reptiliano, responsável pe-los instintos básicos de lutar ou fugir.•E recorre a peritos noutras áreas,quando se justifica?Os pais gostam dos filhos e não queremeste resultado tão danoso. Na maioria dos
casos, a explicação é suficiente para os mo-tivar para a mudança, para protegerem osfilhos. Em casos mais complicados, há téc-nicos de mediação e psicologia a apoiar o
processo.•Sinapses, cérebro reptiliano e cortisolnão são o tipo de palavras que costuma-mos ouvir aos juizes. De onde lhe vemum discurso tão alicerçado na ciência?A interdisciplinariedade talvez tenha vin-do da primeira licenciatura que fiz, em Fi-losofia. Mas as minhas posições nessa áreaforam uma resposta às perplexidades da
prática. Até 2005, nem por acordo entreos pais fixava residência alternada, haviaum conjunto de convicções culturais quediziam que ela era má.
•Que convicções eram essas?Ter duas casas, as rotinas não serem as
mesmas, a possibilidade de potenciaro conflito. Mas os casos começaram amostrar-me o contrário. Os miúdos queme chegavam com residência alternadatinham um desenvolvimento, em regra,muito acima dos que estavam em residên-cia exclusiva. Estava a fazer a tese de mes-trado [Universidade Autónoma de Lisboa,A Guarda Compatilhada., A Família das
Crianças na Separação dos Pais, 2016, EdPetrony] e aproveitei para fazer investiga-ção para tentar perceber através da psico-logia, da neurociência e da antropologia,porque é que isto era assim.•O mito do aumento do conflito já ex-plicou. Como équehojerebateosoutrosargumentos, relacionados com duas ro-tinas e duas casas?
«ATÉ 2005, NEM POR ACORDO
ENTRE OS PAIS FIXAVA
RESIDÊNCIA ALTERNADA (...).
MAS OS MIÚDOS QUE ME
CHEGAVAM COM RESIDÊNCIA
ALTERNADA TINHAM UM
DESENVOLVIMENTO, EM REGRA,
MUITO ACIMA DOS QUE ESTAVAM
EM RESIDÊNCIA EXCLUSIVA.»
O que c a rotina para uma criança? Pen-se na adaptação ao infantário: na ausên-cia do pai e da mãe, e indo ela para um sí-tio que de início lhe pode parecer adverso
porque os pais não estão, ela sente segu-rança quando começa a perceber que to-dos os dias a vão buscar adeterminada ho-ra. E quando percebe isso, consegue estara explorar, a aprender, sem estar em stress.Se um casal se separa e temos dois vincu-ladores, as rotinas mais importantes, no
geral, vão manter-se. E mesmo que hajaalgumas diferenças em casa, os miúdosadaptam-se.•E a questão da falta de estabilidade ge-rada por haver duas casas?Comecei a perceber que, ao contrário do
que pensava, quanto mais pequenos me-lhor a adaptação. Para o adulto a casa é
um lugar de segurança, mas nas criançaso lugar de segurança é a presença do pai e
da mãe. É por isso que os mais velhos têm
mais dificuldade em ter duas casas: com a
aproximação da idade adulta, a vincula-ção ao pai e à mãe pesa menos na sensaçãode segurança e a autonomialeva-os aficarmais chegados ao espaço físico, ao lugar.Oiço todos os miúdos a partir dos 4 anos,e nos adolescentes, por norma, respeito aopinião deles porque sei que o lugar játemmuita importância.•Isso vai contra mais uma crença mui-to difundida: que a residência alterna-da c especialmente má para as criançaspequenas.Nos bebés há na realidade uma certa li-mitação por causa da amamentação e nos
tempos de ausência de cada um dos pais,mas apenas isso. O bebé pode perfeita-mente estar dois dias com o pai e dois diascom mãe. Já fixei residências alternadasa crianças de 3 meses, 6 meses. São pro-cessos que já correram e as crianças fica-ram muito bem.
•Asmãestêmtendênciaaresistiràideia?Muitas vezes resistem inicialmente, maspassado um tempo, quando voltam pa-ra fazermos o acompanhamento do pro-cesso, já vêm com outra postura. No ou-tro dia, uma dizia-me: «Tinha razão, foi amelhor coisa que podíamos ter feito, pa-ra toda a gente, ate para mim.» Mas so-cialmente as mulheres têm uma grandepressão: se não ficarem com as criançasa morar só com elas são catalogadas co-mo más mães.•Também sente esta pressão e tambémé criticado?Há quem me acuse de ser contra as femi-nistas, mas repare: eu é que sou feminista.Eu é que defendo - também - as mulheres.
Porque é que a responsabilidade de tudo o
que está relacionado com os filhos tem deficar exclusivamente com as mães? Ondeé que lhes fica o tempo para a vida pessoal,para a carreira? Fala-se muito na igualda-de no trabalho, mas, para isso, tem de sefalar primeiro em igualdade na parenta-lidade. A igualdade da mulher passa porenvolver e responsabilizar o pai nos cuida-dos aos filhos.• Há casos em que os papéis típicos estãoinvertidos e tem uma mãe a favor da al-ternada e um pai que não quer assumiressa responsabilidade?São casos raros, mas existem. Muitas vezespercebe-se que são indivíduos com infân-cias complicadas, com histórias de aban-donos, o amor de pai não está dentro deles.Mas se proponho alternada e o pai diz quenão quer, isso já é indicador de muito bai-xa capacidade parental, logo, não vou su-jeitar a criança a isso.•Está a iniciar o doutoramento. Qualvai ser o tema?É sobre justiça restaurativa - que eu acre-dito que deve ser o paradigma processu-al na jurisdição da família e das crianças.É uma justiça transformativa que, em vezde levar estes casos à sala de audiências pa-ra proferir uma decisão, passa por fazer es-te trabalho com os pais, a escola e a comuni-dade que acaba por os transformar e recu-
perar afamíliadacriançanaparentalidade.•Que tipo de esforço é que todas essas
diligências implicam?Resolvi 1100 processos entre janeiro e de-zembro de 2017- É exigente e muito duro
para mim, do ponto de vista emocional.Mas nunca c um sacrifício quando se fazuma coisa por paixão. Para fazer este tra-balho é preciso gostar de pessoas, e é pre-ciso querer mesmo ajudar estes pais, paraque eles possam ajudar os filhos.