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PLENARIUM

Figueiredo Limongi Modelos de Legislativo

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PLENARIUM

SUMÁRIOEDITORIAL

ENTREVISTA

Dom Paulo Evaristo Arns

EM FOCO - Poder Legislativo & Democracia Contemporânea

1. A Reforma do Poder Legislativo no Brasil - Fabiano Santos

2. Modelos de Legislativo: O Legislativo Brasileiro em Perspectiva - Fernando Limongi / Argelina Cheibud Figueiredo

3. Representação e Democracia no Cone Sul - Carlos Ranulfo Melo / Fátima Anastasia

4. Parlamento Transnacinal e Integração: A Experiência do Parlamento Europeu e as Li-gações que a América Latina tem para o Mercosul - Susanne Gratius / Delfet Nolte

5. Fragilidade da Democracia no Parlamento Contemporâneo - Bonifácio de Andrada

6. Processos de Integração dos Legislativos no Mercosul - Gustavo Fruet

7. Política, Parlamento, Democracia - Mauro Santayana

8. O Impacto da Reforma Política sobre a Câmara Federal - David Fleischer

9. A Câmara dos Deputados e a Democracia Brasileira no Séc. XXI - João Paulo Cunha

10. Sobre a Reforma Política - Arlindo Chinaglia / Athos Pereira

OLHAR EXTERNO

1. A Segunda Década da América do Norte - Robert A. Pastor T

PENSAR

1. A Armadilha do DLSP/PIB - Antonio Delfim Netto

2. O Desafio da Geração de Trabalho - Ariosto Holanda

IDÉIAS & LEIS

1. Estatudo do Idoso - Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.

2. Vida Nova para os Idosos - Paulo Paim

3. O Acesso do Idoso ao Judiciário - Fátima Nancy Andrighi

PALAVRAS E HISTÓRIA

1. Os Profetas do Amanhã - Discurso de Abertura da Assembléia Nacional Cons-tituinte de 1987/1988 - Ulysses Guimarães

2. Receita Tropicalista de Constituição pelo Mestre Constituinte Ulysses Silveira Guimarães - Luiz Gutemberg

IMAGEM HISTÓRICA

Foto de Arsênio da Silva por PedroVasques

PERFIL - Carlota Pereira de Queirós, por Ricardo Oriá

CHARGE - Bordalo Pinheiro, por Paulo Caruso

FOLCLORE POLíTICO - Sebastião Nery

LEITURAS - Alca: O Gigante e os Anões, por Paulo Roberto de Almeida

APRESENTAÇÃO458

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PLENARIUM

MESA DA CÂMARA

PRESIDENTE

João Paulo Cunha1º VICE PRESIDENTE

Inocêncio Oliveira2º VICE PRESIDENTE

Luiz Piauhylino1º SECRETÁRIO

Geddel Vieira Lima2º SECRETÁRIO

Severino Cavalcanti3º SECRETÁRIO

Nilton Capixaba4º SECRETÁRIO

Ciro NogueiraSUPLENTES

Gonzaga PatriotaWilson SantosConfúcio Moura e João CaldasPROCURADORIA PARLAMENTAR

Luiz Antônio FleuryOUVIDORIA PARLAMENTAR

Luciano ZicaDIRETOR GERAL

Sérgio Sampaio Contreiras de AlmeidaSECRETÁRIO-GERAL DA MESA

Mozart Vianna de Paiva

SECOM

DIRETOR

Márcio Marques de Araújo

DIVULGAÇÃO

Mauro Di Deus

RELAÇÕES PÚBLICAS

Sílvia Mergulhão

RÁDIO CÂMARA

Humberto Martins

TV CÂMARA

Sueli Navarro

AGÊNCIA CÂMARA

Paulo César Santos

COORDENADOR DE JORNALISMO

Cid Queiroz

JORNAL DA CÂMARA

Roberto Seabra

CONSELHO EDITORIAL

Márcio Marques de AraújoJorge Henrique CartaxoRicardo OriáPaulo Roberto Almeida Carlos Henrique CardimFabiano SantosDavid FleischerAthos PereiraValter Costa Porto Luiz Alberto Moniz Bandeira

DIRETOR

Jorge Henrique Cartaxo(61) 216 1803

APOIO

Heloísa Pinheiro(61) 216 1805Thaís Alves de Lima(61) 216 1805

DIAGRAMAÇÃO/ILUSTRAÇÃO

Jonatas Bonach / Wagner Castro

TRADUÇÕES

Sérgio BathCAPA

Ely Borges - Sedes do Poder Legislativo no Brasil

FOTO E ARTE SOBRE FOTO

Edy Ferreira / Agência Estado

REVISÃO

Mônica Mulser Parada

ENDEREÇO ELETRÔNICO

[email protected]

TELEFONE

(61) 216 1803 / 216 1810Câmara dos Deputados, Secretaria de Comunicão, Praça do Três Poderes / Brasília - DF - CEP: 70.160-900

ENTREVISTAAPRESENTAÇÃOTalvez o maior desafio de uma política de comunicação para a Câmara dos Deputados

seja equacionar a dissintonia entre a crescente importância do Poder Legislativo brasileiro na estabilidade institucional e na legitimação de políticas públicas governamentais, e a não percepção desse valor, de forma explícita e contínua, pelo conjunto da sociedade brasileira.

Um olhar mais exigente poderá observar que esse problema, de certa forma, se dá na maioria dos países ocidentais, consideradas as nuances políticas, culturais, jurídicas e conjunturais de cada nação. Essa aparente ausência de identidade dos Parlamentos é, certamente, uma das conseqüências da crise do estado-nação contemporâneo, em que a globalização constitui sua expressão jornalística mais bem acabada.

Daí o conjunto de reformas estruturais que se verificam em todos os continentes, sugerindo, inclusive, uma releitura do papel dos legislativos nacionais. Instrumentos jurídicos consagrados no século XX são hoje revistos e readaptados aos desafios sociais, tecnológicos e econômicos contemporâneos. Se na Europa, existe o Parlamento Europeu, na América Latina, apesar das institucionalidades distintas, foram criados o Parlamento Latino-Americano (Parlatino), o Parlamento Centro-Americano (Parlandino), e já surgem algumas discussões em torno de um futuro Parlamento do Mercosul.

É com essa percepção que temos procurado estimular o trabalho dos nossos veículos de comunicação na Secom – televisão, rádio, jornal e agência - e foi com essa inspiração que percebemos a necessidade de se ter, na Casa, uma publicação de referência. A PLENARIUM, em boa hora, vem se somar aos nossos instrumentos de comunicação, agregando à nossa tarefa uma atribuição a mais: a de trazer, de forma sistemática e orgânica, a reflexão da academia, dos pesquisadores e da inteligência nacionais para os debates que a sociedade brasileira, por meio dos seus representantes, remete para a Câmara dos Deputados. E, claro, é importante sublinhar, PLENARIUM será, sobretudo, mais um espaço para os parlamentares e servidores da Casa contribuírem para esse instigante desafio do nosso tempo que é o debate para a construção do futuro.

Certamente, não será nessa publicação que iremos equacionar e documentar os desafios que nos despertam, a cada dia, esses tempos de grandes transformações. Mas estamos seguros de que oferecemos ao Poder Legislativo e ao País uma publicação que será uma referência no mercado editorial brasileiro, estimulando a participação e a presença dos centros de excelência brasileiros nos temas que animam as atribuições e responsabilidades institucionais e constitucionais da Câmara dos Deputados.

Márcio Marques de Araújo Diretor da SECOM

DOM PAULO EVARISTO ARNSEDITORIALDotar a Secretaria de Comunicação da Câmara dos Deputados de uma publicação

periódica de referência. De forma objetiva, foi essa a tarefa que o Diretor da SECOM, Márcio Araújo, me confiou ao convidar-me para integrar sua equipe, no início de 2003.

Para definir e conceber esse projeto editorial, considerando as especificidades da nossa instituição, trabalhamos com o seguinte conceito: PLENARIUM terá como objetivo central divulgar, documentar e estimular a reflexão sobre os desafios contemporâneos que a sociedade brasileira remete ao Poder Legislativo. Dessa forma, a nova publicação abrigaria textos e ensaios, não apenas dos parlamentares, dos técnicos e consultores do Poder Legislativo, mas, sobretudo, dos pesquisadores da academia e dos centros de excelências de todo o País.

Diante da profusão de assuntos que integram a pauta do Congresso Nacional, prevaleceu o entendimento de que cada edição abordaria um tema dominante, que se buscaria aprofundar com os textos e reflexões de vários especialistas. Nesse primeiro número tratamos, em dez ensaios, do Poder Legislativo na Democracia Contemporânea. Além da reforma política que está sendo discutida no Congresso Nacional, a globalização e a criação dos blocos regionais estão impondo uma redefinição do papel dos estados nacionais, com grande repercussão nas atribuições e funções dos legislativos em todo o mundo.

A definição desse conceito nos remeteu a uma outra reflexão: PLENARIUM precisava ter uma singularidade, uma identidade própria, algo que fosse a marca da sua origem. Seria insuficiente, ainda que plenamente justificável, uma publicação apenas temática. A reprodução difusa das experiências – muitas, extraordinárias –, das publicações regulares existentes em vários departamentos universitários, não acolheria a dimensão que um periódico de referência, editado pela Câmara dos Deputados, necessariamente deve ter.

Assim, além do tema principal, acrescentamos uma série de seções com o objetivo de construir a identidade que buscamos. A primeira seção constará de uma entrevista. Mas não a entrevista clássica, jornalística e conjuntural. Inspiramo-nos na experiência da Documentation Française, que sempre convida uma figura importante da história da França para uma reunião com jornalistas e estudiosos da vida e/ou da época do entrevistado, para juntos fazerem uma reflexão sobre o personagem e sua obra. Esse primeiro número da PLENARIUM traz a figura extraordinária de Dom Paulo Evaristo Arns.

Com o objetivo de não engessar o espaço editorial da revista, subordinando todos os ensaios ao tema central, percebemos que seria importante uma outra seção que acolhesse também textos com temas livres. O relator de um projeto importante, o líder de uma bancada, o presidente de uma Comissão, um pesquisador, um servidor do Congresso, enfim, qualquer

personalidade que se interesse em dividir com a Casa a complexidade de determinado tema será plenamente atendido nesse espaço de expressão, ainda que seu texto não se enquadre no tema central da edição. Nesse primeiro número publicamos ensaios dos deputados Defim Netto e Ariosto Holanda.

Incluímos, também, a publicação de um texto de um pesquisador estrangeiro, inédito ou não, cujo tema de alguma forma enriqueça o nosso debate. Esse espaço deve acolher, ainda, as reflexões dos brasileiros que estão no exterior, a estudo ou a trabalho. A experiência e o olhar dessas pessoas, nesse momento de grandes e rápidas transformações no cenário brasileiro, constituem-se numa importante contribuição aos que dele fazem parte. Nessa primeira edição, apresentamos um texto do professor americano Robert Pastor.

Como a Câmara dos Deputados é sobretudo a “Casa das Leis”, achamos ainda que seria interessante a publicação comentada de uma lei, em cada edição da PLENARIUM. Dessa vez, trazemos o Estatuto do Idoso, com as observações do senador Paulo Paim, autor do projeto, e da ministra do STJ, Fátima Nancy Andrighi. Da mesma forma, pretendemos publicar e comentar o Estatuto do Desarmamento, a Lei de Falências, o novo Código das Águas, entre outros.

Como dispomos de um acervo extraordinário de documentos e imagens, onde estão guardadas todas as falas importantes da história do nosso Parlamento e, de certa forma, da história política do Brasil e, ainda, podemos e devemos estabelecer uma conexão com os demais acervos do País, percebemos aqui uma rica oportunidade de se contribuir para o resgate do papel de grandes atores e momentos específicos da construção da Nação brasileira. Com esse objetivo, foram criadas outras cinco seções na PLENARIUM.

A primeira delas resgatará os grandes pronunciamentos da nossa história, devidamente comentados por personalidades à altura do desafio. Nessa edição, publicamos o discurso do ex-deputado Ulysses Guimarães na solenidade de instalação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987-88. A fala do emblemático parlamentar paulista é analisada pelo jornalista Luiz Gutemberg. Com o mesmo objetivo, traremos sempre o perfil de um personagem destacado da história brasileira. Nesse número, o historiador Ricardo Oriá nos fala da vida e da obra da primeira deputada da América Latina, Carlota Pereira de Queirós. A seção Imagem e História trará sempre uma fotografia histórica, acompanhada de uma apresentação. Essa edição apresenta a foto do Largo do Paço Imperial no dia do casamento da princesa Isabel, com o texto do colecionador Pedro Karp Vasques. Nas duas seções seguintes, traremos sempre uma charge escolhida e comentada pelo Paulo Caruso e as saborosas histórias do jornalista Sebastião Nery, com seu Folclore Político.

Para terminar, teremos o espaço para as resenhas, onde nossos colaboradores poderão dar conta das últimas publicações, no Brasil e no mundo, que correspondam ao nosso universo de interesses. Dessa edição, consta um comentário do diplomata Paulo Roberto Almeida.

Não poderíamos encerrar esse editorial sem agradecer a todos aqueles que acreditaram no projeto enviando seus trabalhos e textos, ao apoio e confiança da administração da Câmara dos Deputados mas, sobretudo, àqueles que participaram da construção dessa publicação, com suas idéias, trabalho e sugestões, desde a elaboração do seu projeto editorial, até o encaminhamento para a gráfica.

São eles: os professores Carlos Henrique Cardim, Fabiano Santos, David Fleischer, Mauro Santayana, Wanderley Guilherme dos Santos, Costa Porto, Ricardo Oriá, Mônica Mulser Parada, Paulo Motta e Paulo Roberto Almeida. Os colegas da SECOM, Márcio Araújo, Tarcísio Holanda, Mauro Di Deus, Flávio Elias, Alexandre Rios, Frederico Campos, Sueli Navarro, Pedro Noleto, Ademir Malavazzi, Gentil Sbarddelloto, Raquel Mello, Heloísa Pinheiro, Thaís Alves Lima e Ely Borges.

O protocolar agradecimento à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, nesse projeto representada pelo presidente João Paulo Cunha, se reveste de uma satisfação toda especial. O entusiasmo e apoio do presidente João Paulo à revista Plenarium, desde o início da discussão do projeto, se fez acompanhar de uma notável elegância e percepção intelectual dignas de referência nesse momento.

Boa Leitura!

Jorge Henrique Cartaxo

Diretor da Plenarium

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ENTREVISTAENTREVISTA

Momentos, Críticas e História

“Meus amigos, a teologia da libertação me fez sofrer, mas eu ainda acredito nela, e acho que ela é que vai salvar a América Latina e – quem sabe? – também a Europa dessa crise terrível em que está entrando”.

Dom Paulo Evaristo Arns não é um homem comum. Sua presença na história contemporânea brasileira redimensiona valores e conceitos que se traduzem nas

palavras bondade, generosidade, coragem e virtude. Símbolo da luta pelos direitos humanos no Brasil, esse filho de colonos do interior de Santa Catarina enfrentou, com sobriedade e destemor, subordinados, oficiais, generais e presidentes que trouxeram o horror da tortura para a vida política brasileira, sobretudo no período sombrio do governo Médici (1970/73).

Nessa entrevista para o primeiro número da revista PLENARIUM, Dom Paulo fala da sua formação religiosa, dos seus embates contra a ditadura militar (1964/1984), da sua relação com Paulo VI e do seu encontro com o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter. Ainda nessa reunião, que teve lugar no Convento São Francisco, em São Paulo, e contou com a participação do Monsenhor Dário Bevilacqua, do vice-prefeito de São Paulo, ex-deputado e ex-Procurador Hélio Bicudo, do Padre Beozzo, do jornalista Mauro Santayana e do diretor da PLENARIUM, jornalista Jorge Henrique Cartaxo, Dom Paulo recomendou ao presidente Lula “ uma reforma completa na política” e explicou como a Igreja deve se posicionar frente à complexa e polêmica evolução da engenharia genética.

DOM PAULO EVARISTO ARNS

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

Padre Beozzo – Dom Paulo, pen-sei na sua formação. O senhor nasceu em Forquilinha, em Santa Catarina. Seus pais, Gabriel e Helena, constituíram uma família grande com muitos filhos e filhas. Quais valores desse mundo familiar o senhor trouxe para a vida pública? Depois, o senhor transformou-se em franciscano. Frei Leonardo Boff me pediu que eu lhe perguntasse como essa figura seminal de São Francisco inspirou sua vida e sua ação pastoral.

Depois, o senhor estudou patrística e letras clássicas na Sorbonne. O senhor gosta de ser um bom escritor, é capri-choso no estilo. O senhor escreveu sobre Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Ambrósio de Milão, freqüentou muito São Jerônimo, estudou a técnica do livro naquela época, e o senhor foi professor de patrística. Como os padres da Igreja, que enfrentaram o poder político com audácia e firmeza, também acabaram inspirando o senhor na sua luta contra a opressão e a ditadura?

Como o senhor explica esse mundo de formação em sua casa, como franciscano, e como encara a sua experiência na patrística para a sua vida pública?

Dom Paulo Evaristo Arns - Para res-ponder, rapidamente, deveria dizer que decidi seguir a carreira literária, que cul-minou com o doutorado na Sorbonne, em Paris, na França, onde fiquei cinco anos como aluno, incentivado por carta de meu irmão. Um pouco mais idoso do que eu, ao se formar ele me escreveu uma carta em que me incentivava a continuar os estudos e, em particular, os estudos clássicos.

Ele assim dizia: “Você gosta de latim, já tem seis anos de latim; você pode agora passar a vida inteira estudando latim e publicando as obras daqueles padres dos

cinco ou seis primeiros séculos, que são um tesouro escondido, que não é conhecido no Brasil nem na Europa. Você sabe grego. Então, estude mais grego, arranje um bom professor, e você vai poder publicar obras importantes para a história da cultura cristã da Antiguidade”.

No mesmo dia, eu fui procurar o Prof. Frei Tito, que, aliás, trabalhou em São Paulo também, por algum tempo, e lhe disse que gostaria de ler um livro da Antiguidade, começando pelo latim. Ele me respondeu: “A obra mais bonita que conheço em toda a literatura cristã, em latim, são as cartas de São Jerônimo para suas amigas e seus amigos, em todo o mundo. Se você quiser, vou buscá-la na biblioteca”.

Fomos juntos à biblioteca, eu trouxe o livrinho, e daí em diante posso dizer que nunca mais deixei de cultivar o latim, o grego e, sobretudo, a história da Antiguidade para poder produzir qualquer coisa. Infelizmente, como você bem o disse, só tive ocasião de publicar meia dúzia de livros e de artigos a esse respeito, mas não cheguei nunca a exprimir aquilo que estava no meu coração – ou seja, como, a partir do Cristo, o cristianismo se expandiu e conquistou as almas mais generosas daquele tempo. Infelizmente, não fiz aquilo que desejava, porque me nomearam Bispo, Arcebispo e Cardeal... E como, envolvido por tantas responsabilidades, eu teria tempo para me dedicar aos estudos e a outras coisas que queria fazer?

Monsenhor Dário Bevilacqua – O senhor foi nomeado Bispo, Dom Paulo, em momento muito vivo da vida da Igreja. Estávamos vivendo o Concílio Vaticano II, as grandes reformas que o Papa João XXIII tinha promovido para a Igreja, que devia estar em dia com o mundo, e o senhor

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ENTREVISTA

foi nomeado Arcebispo de São Paulo, no começo da década de 70, permanecendo nesse cargo por 25 anos.

A formação cultural que o senhor construiu na base fundamentou as grandes opções pastorais pelas quais o senhor foi o grande responsável em São Paulo, como, por exemplo, a opção pelos pobres, pelos trabalhadores e pelos direitos humanos.

Dom Paulo Evaristo Arns - Não há dúvida nenhuma, Monsenhor Dário. Posso dizer que, desde o começo, desde a hora em que cheguei a São Paulo, interessei-me por todas as lutas que havia em torno dos direitos e da dignidade da pessoa humana. Logo que assumi, eu fui visitar os presos políticos, fui me informar sobre o que fazia o regime militar, como procediam os juízes e como procediam aqueles a quem se confiavam os presos.

A minha vida, ao menos pela metade, foi ocupada em socorrer aqueles a quem eu podia dar uma pequena ajuda. Eu fui Bispo-Auxiliar, de 1966 a 1970; foi uma ajuda pequenina, depois ela foi crescendo em dimensão, até eu chegar a debater com os Presidentes da República sobre a maneira de proceder com o povo no Brasil.

Hélio Bicudo - Dom Paulo, lembro-me de que, no início da década de 70, quando o senhor assumiu a Arquidiocese de São Paulo, recebi uma carta sua – o senhor mal me conhecia – sobre a luta que eu estava tendo com o Esquadrão da Morte. Acredito que foi com o senhor, na

condição de Bispo-Auxiliar e, depois, de Arcebispo na Arquidiocese de São Paulo, que começou realmente no Brasil a luta pelos direitos humanos. O senhor, quando criou a Comissão Justiça e Paz, num primeiro momento enfrentou a ditadura militar, as torturas, as eliminações físicas, as prisões ilegais. O senhor ia pessoalmente aos responsáveis por esses fatos, por

essas violações, e os interpelava. Muitas vezes, o senhor conseguiu

fazer com que as coisas não caminhassem como a ditadura

militar gostaria.

Lembro-me da sua atuação quando da morte do operário Manoel Fiel Filho, do jornalista Vladimir Herzog e de todos os presos que corriam à Cúria de São Paulo em busca de seu socorro, que era fundamental para todos nós, cristãos ou não, para

que não houvesse violação dos direitos humanos

durante todo esse período.

Portanto, o senhor encarna a marca inicial, no Brasil, pela

defesa dos direitos humanos.

Dom Paulo Evaristo Arns - Acredito que o senhor está atribuindo a mim o que compete ao senhor (risos dos presentes). Isso é muito interessante, porque o senhor escreveu contra o Governo e protestou contra a prática das torturas. E não pôde publicar um livro. Então me perguntou: “Como é que vamos publicar esse livro”? Consegui que esse livro fosse lançado e tivesse o condão de acordar as consciências, ao menos daquelas pessoas que confiavam em nossa ação e que sabiam que devíamos

“Com os

estudantes, os jor-nalistas e os operários,

essas três classes, podemos dizer que os intelectuais de São Paulo demonstraram que eles constituem, realmente, uma elite mundial capaz de enfrentar a força do Exército sem derramar sangue e

sem prejudicar pessoa alguma”.

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

agir quando tivéssemos um incentivo e uma obrigação para tanto. E o senhor nos obrigou a entrar nessa luta decisiva e importante.

Com os estudantes, os jornalistas e os operários, essas três classes, podemos dizer que os intelectuais de São Paulo demonstraram que eles constituem, realmente, uma elite mundial capaz de enfrentar a força do Exército sem derramar sangue e sem prejudicar pessoa alguma. O senhor é quem começou o movimento e me lançou para ele. Aceitei-o de muito bom grado. Era minha obrigação como pastor da Igreja e era esta, também, a vontade do povo a quem eu servia.

Mauro Santayana - Dom Paulo, minha pergunta é simples. O senhor está satisfeito com sua presença no Brasil, no século e no mundo de hoje?

Dom Paula Evaristo Arns - Santayana, você é um filósofo, que pensa muito a respeito da vida. Aliás, escreveu uma pequena biografia da minha pessoa e revelou-se conhecedor profundo da alma humana. Nunca estamos satisfeitos com o que realizamos. O meu desejo era promover, em São Paulo, uma verdadeira evolução dos estudos para compor toda a história e relatar o trabalho das missões para o futuro. Isso era fundamental para mim. Não consegui quase nada do que pretendia. Os livros publicados, os artigos lançados pelos jornais, as alocuções e as grandes reuniões do povo, imensas e grandes reuniões, deixaram claro que o povo conscientizou-se de que deve tomar a história na mão e caminhar com os que sabem que é possível abrir um caminho.

Qual é o caminho? O senhor foi um dos que nos ajudou a buscar o caminho que deveríamos seguir. O povo acabou, com muito custo e trabalho, nos seguindo

por esse caminho, quando se renovou a democracia mais ou menos vacilante. Em todo caso, há democracia, em vez de se derramar o sangue de irmãos.

Mauro Santayana - Eu me permitiria fazer apenas outra pergunta ao senhor. Estamos hoje diante de um problema muito grave. Procura-se criar uma falsa guerra santa entre o islamismo e o cristianismo. Isso se desenvolve de maneira muito difícil e perigosa. Na Alemanha, vimos o problema da proibição do uso de crucifixos. Na França, há o problema do impedi-mento de as meninas muçulmanas irem à escola com o véu. Hoje, em um artigo que publico, afirmo que se dá a impressão de que os petroleiros do Texas querem colocar Cristo em sua folha de pagamento com o fundamentalismo protestante da Igreja Batista de Bush.

Dom Paulo Evaristo Arns - Santayana, há dois anos fui nomeado Conselheiro da Universidade do Estado de São Paulo, USP. Propus, logo como primeiro tema, o enten-dimento entre as religiões. Participei, qua-tro vezes, de grandes reuniões. Chegamos a 39 religiões, que se juntaram para falar sobre a paz no Oriente, em Jerusalém, sobre a fome e a má distribuição das rique-zas na Terra. O primeiro artigo que propus foi: as religiões devem unir-se para criar um só e grande ideal – o ideal da paz e da solidariedade. E, tudo o mais, cada religião cultiva por si mesma para chegar à meta que o fundador propôs ou que ela mesma propunha.

Padre Beozzo - Dom Paulo, o Papa Pio XI afirmou que o grande drama da Igreja foi ter perdido a classe operária. Muitos intelectuais também se afastaram da Igreja no Brasil. Por exemplo, a geração de 1870, formada na Faculdade de Direito de São Paulo, dos quais os mais conhecidos

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ENTREVISTA

foram Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, todos se afastaram da Igreja, praticamente houve uma ruptura. O senhor acabou de dizer que foi convidado para entrar no Conselho da USP.

O senhor viveu momento de grande aproximação com o mundo intelectual, quando o Governo fechou as portas das Universidades públicas para a realização da reunião da SBPC (Sociedade Brasi-leira para o Progresso da Ciência), o senhor abriu as portas da PUC (Pontifícia Universida-de Católica de São Paulo). Quando desejou fazer um estudo mais abrangente sobre São Paulo, foi pro-curar o CEBRAP, o Fer-nando Henrique Cardo-so e outros intelectuais para escrever trabalho intitulado “São Paulo: Crescimento e Pobre-za”. Posteriormente, o senhor fez da PUC um espaço aberto para acolher Florestan Fer-nandes, Otávio Iani, os professores então cassa-dos. Desejo que o senhor fale do encontro entre a classe operária e a classe intelectual, no trabalho que o senhor teve oportunidade de realizar em São Paulo.

Dom Paulo Evaristo Arns - Você formulou uma pergunta sumamente importante para o futuro, não só da Igreja, mas também da humanidade. Devemos nos entender com os operários. “Quando sai de casa, meu pai me disse: “Você agora pode estudar. Só que, a partir de agora, vai pensar diferente de nós e vai

pertencer a uma outra classe: a classe dos estudiosos”. Ele era colono, não tinha nem um ano de estudo. Aprendeu a ler e a escrever. Tornou-se até um intelectual a partir de esforço próprio. Ele me disse: “Parta para as maiores escolas do mundo, mas não esqueça uma coisa: você é filho de colono. Nunca negue que é filho de trabalhador. Sempre defenda os trabalha-dores”.

Essas palavras vieram-me à mente no exato instante em que

me entregaram o diploma na Sorbonne com a maior dis-

tinção, ao mesmo tempo em que me felicitaram. Eu disse aos professores: “Sou filho de um colono”. Mandei um telegrama para o meu pai em que dizia: “O filho do colo-no foi hoje agraciado com o maior diploma da Universidade mais célebre do momento na Europa. Não leve a mal, porque continua-rei a ser filho de um colono”. Por isso, qual-

quer luta que haja entre operários e a sociedade,

sempre, em primeiro lugar, acho que devo tomar posi-

ção em favor do mais fraco, daquele que enfrenta dificuldade

para obter os meios de defesa, tanto na imprensa quanto em outros setores da

vida social.

Uma coisa destaco: quando o operário tem razão em suas reivindica-ções e reconhecemos isso – para tanto, Monsenhor Dário pode dar uma prova – temos o Conselho de Presbíteros.

“Quantas

vezes eu tive de entrar pessoalmente?

Eu colocava todas as ves-timentas de um Cardeal,

aparecia lá como alguém estranho a esse mundo (risos) e subia, ia diretamente ao gabinete do diretor, sem pedir licença a ninguém, abrindo eu mesmo as portas, entrando e dizendo: “Senhor Diretor, venho aqui reclamar por

causa da tortura deste, deste e deste ope-

rário”.

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

Perguntava eu, ao Conselho, se deveria entrar ou não nas lutas, e sempre me aconselhavam a ir com Dom Cláudio e os operários Lula e companhia no ABC. Posteriormente, São Paulo inteiro entrou na luta e levou caminhões de comida para as famílias não desanimarem. Levamos tudo o que pudemos, sobretudo o apoio jurídico – o Dr. Hélio Bicudo sabe do apoio que demos à classe operária, naque-le momento. Sempre que colocavam um chefe na cadeia, íamos lá, pessoalmente, reclamar e o tirávamos de lá.

Quantas vezes eu tive de entrar pes-soalmente? Eu colocava todas as vesti-mentas de um Cardeal, aparecia lá como alguém estranho a esse mundo (risos) e subia, ia diretamente ao gabinete do dire-tor, sem pedir licença a ninguém, abrindo eu mesmo as portas, entrando e dizendo: “Senhor Diretor, venho aqui reclamar por causa da tortura deste, deste e deste operá-rio”. Eu tinha a lista na mão e a mostrava para ele. Portanto, essa luta com os ope-rários foi, de fato, imprescindível – e essa luta assim será até o fim do mundo. Temos de lutar para que todos sejam operários, operários de coração, ajudando uns aos outros, uns talvez mais pelo pensamento, outros talvez mais pelas mãos, outros, ainda, descobrindo novos métodos para o futuro.

Já com os intelectuais, a coisa era mais difícil. Quando precisei recorrer à nossa Associação de Defesa dos Direitos Humanos, Dr. Hélio, o senhor me desculpe, eu tive de falar com onze pessoas e oferecer-lhes um almoço, para então pedir que fizessem uma equipe de defesa de toda a população de São Paulo e imaginar um novo Brasil, um Brasil diferente, um Brasil que todo mundo quisesse. Não deu certo. Ninguém aceitou.

Afinal, Dalmo Dallari, que em crian-ça foi um boy de rua e que conhecia todas as entradas de São Paulo, veio e sentou-se à minha mesa. Quando eu expus-lhe a minha agonia de estar sozinho no meio de uma luta gigantesca, ele disse: “Eu aceito, só que não tenho prestígio para aglomerar toda essa gente que o senhor quer. Mas vou ajudá-lo. Muita gente vai ajudá-lo”. Muitos padres ajudaram-me, sobretudo Monsenhor Dário (Bevilacqua).

Posso dizer então que conseguimos, aos poucos, uma equipe que poderia enfrentar qualquer outra equipe na Europa ou no mundo, tão bem-preparada estava, tanto para escrever, para falar, quanto para entrar em um processo já iniciado. Vale a pena e, quando fiz a última reunião, dela participaram 51 intelectuais, entre os maiores que conheci no Brasil, na Europa ou em qualquer lugar do mundo. E fico muito satisfeito em dizer: “Essa gente descobriu a Igreja pela luta operária, pela igualdade e dignidade de todos os homens”.

Para dizer também sobre como os jovens se comportavam, devo confessar que diversas vezes tive de entrar diretamente na luta. Um exemplo ilustrativo disso foi uma revolta, ocorrida em 1973, na USP, em que mataram um estudante de Sorocaba, Vanucchi Leme, que teve de ser levado à Catedral. Eles queriam que o levassem lá na escolinha deles para ter uma satisfação. Eu disse: “Não, não. É uma coisa que precisa penetrar no Brasil. Nós precisamos ir para o centro de São Paulo e, se vocês todos vierem e se animarem, vamos levar essa idéia de insatisfação a todo o Brasil”.

E não demorou para a Polícia invadir a nossa PUC, e os estudantes de todo o Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, em 1968, realizarem aquele forte movimento.

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ENTREVISTA

Eles ajuntaram-se e de fato produziram uma reação formidável. Assim, podemos dizer que a conquista se faz através de um objetivo claro, que convença o homem de sua responsabilidade perante a humanidade, sobretudo diante dos temas mais delicados: a liberdade e a responsabilidade.

Dário Bevilacqua - Os resultados da luta em que o senhor se empenhou foram reconhecidos internacionalmente, não só pelos milhares de títulos Doutor Honoris Causa que recebeu – e que não saberia dizer quantos são...

Dom Paulo Evaristo Arns - Uns vinte e poucos (risos)...

Dário Bevilacqua - Mas também por orga-nismos internacionais de grande prestígio. Uma vez o senhor recebeu do presiden-te da República dos Estados Unidos, Jimmy Carter, uma condecora-ção. Qual foi essa con-decoração?

Dom Paulo Evaristo Arns - Foi a de Doutor Honoris Causa e, naquele momento, ele levou aquilo tão a sério que me prometeu, como novo Presidente dos Estados Unidos, que estaria daí a um ano no Brasil para exa-minar as questões e também impor toda a força dos Estados Unidos contra a tortura. Provavelmente, ela passou dos Estados Unidos para o Brasil – e que ela seja, tam-bém, eliminada nos Estados Unidos.

O presidente Jimmy Carter veio e ficou comigo no carro, durante uma hora

atravessando o Rio de Janeiro, olhando todas as partes, mas muito mais para dentro de si e respondendo às minhas perguntas sobre a responsabilidade dos Estados Unidos. Eu lhe disse que, para haver uma nação pacífica, esta não poderia proceder a guerras, como estiveram fazendo agora com o Iraque. Isso é uma loucura. É simplesmente contra o próprio espírito americano. Eles devem ir ajudar, como povo pacífico, a todos aqueles que de

fato precisam, contribuindo para o bem-estar da humanidade, e não

apenas em prol do interesse do próprio país.

Padre Beozzo - Dom Paulo, vou lembrar um pouco sobre a luta dos direitos humanos. O senhor não só recebeu o reconhecimento uni-versal de seu trabalho em prol dos direitos humanos no Brasil e no mundo, como tam-bém um prêmio que, para mim, equivale ao

Prêmio Nobel da Paz, o Prêmio Niwano da Paz.

Gostaria que o senhor nos dissesse alguma coisa sobre

como foi a recepção desse prêmio e que destino o senhor

deu a ele, em decorrência de sua luta pelos direitos humanos.

Dom Paulo Evaristo Arns - De fato, no Japão, eles abriram uma espécie de paralelo ao prêmio Nobel. Portanto, a cada ano, eles dão 250 mil dólares, pagam-nos todas as despesas de viagem, durante uma dúzia de dias naquele país, e tratam-nos com uma dignidade e uma fineza que são bem raras no mundo.

“Precisamos de justiça, de

solidariedade. Temos de construir a história de

forma totalmente diferente: sem fuzis na mão, sem milita-

res exercendo seu ofício, mas, sim, com homens que sabem levar o povo de novo a crer em si, em Deus e na igualdade de todos os homens. Só dessa maneira chegaremos a ven-

cer o terrorismo, e nunca por meio de uma

guerra”.

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

Eu recebi, de repente, o convite: “O senhor está convidado a receber o prê-mio e para isso perguntamos se o senhor o aceita”. No começo, pensei: nunca fiz nada de especial para o Japão, e como se lembraram do meu nome? Mas respondi-lhes: “Se for para a paz, estou disposto a tudo”. Eles responderam : “É para a paz. É uma organização de cinco milhões de japoneses que treinam em escolas fecha-das, durante a semana, para saberem tra-tar-se mutuamente com respeito e também progredir juntos com a comunidade”.

Estudei a Constituição do país e disse: “Sim, eu vou”. Fui lá e fiz uma conferência para cinco mil budistas. Todos tinham tradução simultânea em japonês e me entenderam imediatamente. Sempre respondiam com muito entusiasmo a tudo quanto eu dizia. Naquela oportunidade, eu lhes disse: “Amai os vossos inimigos; rezai por aqueles que vos perseguem e vos caluniam; fazei o bem a todos, assim como quer que façam a você”.

Quando conclui a conferência, o presidente levantou-se e perguntou, à frente da estátua de Buda: “Podemos publicar essas palavras de Jesus para todo o mundo ou é reservada”? Respondi que a palavra de Jesus é para ser difundida o máximo possível. Ele então respondeu que garantia que a palavra de Jesus seria reimpressa, ao menos cinco milhões de vezes no Japão, das maneiras mais diversas. Depois que voltei para casa, pensei nos 250 mil dólares que tinha ganhado. Como franciscano não preciso de nenhum dólar para viver, porque me dão comida, vestimenta e locomoção de um lugar para o outro. O que iria fazer com 250 mil dólares?

Era dia de Natal. Que Natal! Ia começar a Santa Missa, à meia noite, na Catedral de São Paulo, repleta de pessoas

pobres. Fui entrando e, quando cheguei perto do altar, estavam nos degraus todos os pobres e todos aqueles que tinham bebido cachaça durante o dia, que tinham feito suas poesias, composto seus cantos. Estavam deitados, roncando, cantando ou falando entre si.

Mas, quando chegou a hora do sermão, todos se calaram. Eu disse que tinha decidido dar o prêmio de 250 mil dólares que ganhei no Japão para as pessoas da rua e, para isso, nomeava o Padre Júlio Lancelotti para fazer uma consulta sobre o que queriam fazer com aquele dinheiro, que significava muito em relação à moeda brasileira. Todos se assustaram, bateram palmas e disseram: “Opa, um padre oferecendo dinheiro!” (Risos).

O Padre Júlio Lancelotti consultou todos os pobres que podia e indagou o que queriam. Responderam que queriam uma catedral. Mas, além de já termos uma catedral, não se constrói uma obra daquela envergadura com esse dinheiro. Eles disseram que a catedral seria de madeira, construída em um lugar bem central, perto da igreja São Cristóvão. Teria embaixo uma parte onde eles poderiam tomar banho, mudar de roupa, fazer a barba e se enfeitarem, no caso das mulheres. Depois, poderiam subir as escadas para fazer as reuniões, pensar sobre a vida, discutir sobre o que se fez e o que farão no futuro.

Em poucos meses, a Cúria Metropolitana cedeu o terreno e cons-truímos aqueles dois andares da catedral dos homens da rua, que está lá para visita constante dos pobres que vêm para, em primeiro lugar, limpar-se e aparecer como gente, depois aparecer como filho de Deus e dizer que veneram o Cristo pobre. O Cristo sempre está pronto para encontrar-se

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ENTREVISTA

com o Pai, com o coração todo voltado para Deus e com o corpo preparado para encontrar seus irmãos. Isso acontece desde que a catedral foi inaugurada até os dias de hoje, e está funcionando sob a direção do Padre Júlio Lancelotti.

Mauro Santayana - Dom Paulo, fala-mos há poucos instantes sobre o proble-ma do cristianismo. Temos um problema importante, hoje, a discutir, que é o ter-rorismo, que passou a equivaler a uma execração. Entre os grandes atos de terrorismo do século XX, o senhor incluiria o bombardeio de Hiroshima? Lembrei-me desse fato quando o senhor falou do Japão.

Dom Paulo Evaristo Arns - Evidentemente. O bombardeio de Hiroshima foi um ato terrível, embo-ra não se pudesse medir as suas conseqüências, naquele tempo, porque foi a primeira experiência com a bomba atômica. Assim mesmo, foi um ato imper-doável. A história nunca vai esquecer disso. Quando estava no Japão, referi-me a esse ato, com grande respeito diante do povo japonês. Os americanos, que também estavam pre-sentes, causaram esse drama para a huma-nidade. Acho terrível.

Há outra coisa, Santayana: terrorismo não se combate com guerra. Foi um erro o fato de o presidente americano George Bush convidar a Espanha, a Inglaterra e outros países a participarem da guerra contra o Iraque. Foi um crime contra a humanidade, semelhante ao de Hiroshima e a outros crimes que não esquecemos. Todos somos responsáveis, não só pelo

presente, mas também pelo passado e pelo futuro da humanidade.

Precisamos de justiça, de solidarie-dade. Temos de construir a história de forma totalmente diferente: sem fuzis na mão, sem militares exercendo seu ofício, mas, sim, com homens que sabem levar o povo de novo a crer em si, em Deus e na igualdade de todos os homens. Só dessa maneira chegaremos a vencer o terrorismo,

e nunca por meio de uma guerra.

Dário Bevilacqua - Durante muitos anos, conforme seu

relato, o senhor trabalhou, como Arcebispo de São Paulo, com uma equipe de bispos. O senhor tinha o seu grupo do colégio epis-copal. A idéia era cons-truir um governo diferen-te para a diocese de São Paulo, em que houvesse dioceses interdependen-tes, de tal modo que cada

região episcopal tivesse um nível de responsabilidade

e atuação. Essa experiência valeu a pena, Dom Paulo?

Dom Paulo Evaristo Arns - Valeu a pena. Só lastimo que o senhor

atribua o mérito e mim. O mérito é de Paulo VI, o Papa. Quando fui visitá-lo pela primeira vez, em 1973, na qualidade de Arcebispo, para expor a situação de São Paulo, ele me disse: “Precisamos mudar completamente a ação da Igreja nas gran-des cidades. Então vou pedir um grande favor ao senhor. O senhor agora vai visitar as grandes cidades, e quando tiver visitado 3 ou 4 cidades, o senhor volta e me conta como cada uma delas está procedendo, porque precisamos fazer uma divisão nas cidades, mas também precisamos levar

“Como a mulher é

forte! Como a mulher nos surpreende muitas

vezes! Como ela merece louvor todo especial tam-bém no campo da ciência, da pesquisa e no do incen-tivo para a juventude

encontrar seu cami-nho”.

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

todas as pessoas a assumirem as suas res-ponsabilidades de cristãos, quer dizer, de propagar o cristianismo e de fazer o Cristo conhecido e amado. Então, Deus será conhecido e amado, e os homens serão respeitados, porque são filhos adotivos de Deus”.

Eu viajei por muitas cidades. Fui até São Francisco, nos Estados Unidos, fui à Irlanda, fui à Polônia, que estava sob regime comunista. E lá fiquei durante duas semanas, pregando em alemão para os poloneses comunistas. Depois, fui ao Japão, à Austrália, a muitos lugares. Foram trinta e tantos países, sempre com a idéia de que o Papa Paulo VI queria mudar a pastoral das grandes cidades, queria conhecer todos os modelos e todas as experiências já realizadas.

E ele estava confiando-me aquela tarefa. Assim, anotava todas as coisas que os bispos, os padres e os leigos de diversas organizações me comunicavam. Levava essas informações sempre que ia a Roma. Eu ia três ou quatro vezes por ano a Roma, e levava sempre essas novidades ao Papa, que se interessava muito por elas. Certa vez, ele me disse: “Elabore um sistema que seja mais ou menos o resultado de sua pesquisa. Então, você volta e me diz como devemos fazer”.

O Papa Paulo VI tinha realmente um grande coração. E quando falei com ele pela última vez, em 1976, ele já não podia mais conversar. Então, o seu Secretário me disse: “O Papa não pode mais conversar por muito tempo. O senhor fique cinco minu-tos com ele, dê-lhe um abraço, conforto, e diga que estamos rezando por ele. Depois, o senhor se retire”. Aí, eu entrei e disse ao Papa: “Já que temos pouco tempo, vou-lhe dar tudo por escrito. Depois, o senhor manda ler, ou lê quando puder”. O Papa disse: “Quem é que manda no Vaticano? É

o senhor e eu”. (Risos). “Então, nós vamos nos levantar daqui e vamos para o fundo da sala, atrás dos livros da biblioteca, e vamos ficar lá para o Secretário não nos descobrir e chamar outra pessoa aqui para dentro”.

E fomos para lá, ficamos por 55 minutos discutindo como é que deveria ser o nosso trabalho em São Paulo. (Risos). Combinamos todas as coisas e elaboramos um plano inteiro, que, infelizmente, não pôde ser executado por causa das circunstâncias e da morte do Papa, em 1978, logo depois que isso aconteceu.

Padre Beozzo - Dom Paulo, quando estava aqui em São Paulo, o senhor viveu um momento de grandes mudanças na teologia. A teologia era a base da formação dos padres, dos clérigos. E a sua faculdade se abriu para os leigos, para as mulheres, admitindo, inclusive, professoras mulheres, como a Ana Flora e outras. O senhor promoveu uma grande mudança, o senhor assistiu o nascer de uma teologia pensada em função da libertação e do mundo, e não apenas em função da Igreja. E, depois, teve grandes problemas. O senhor, em um momento de crise, com Leonardo Boff, foi até Roma.

Gostaria que o senhor falasse dessa função da teologia, da liberdade e da pesquisa. Além disso, falamos dos operários intelectuais que tiveram uma crise com a Igreja. E o risco, hoje, o da crise das mulheres com a Igreja. Assim, gostaria que o senhor falasse sobre a teologia feminista, a Teologia da Libertação.

Dom Paulo Evaristo Arns - Vamos começar, então, com a questão das mulheres. Em primeiro lugar, a Universidade Católica nunca tinha colocado uma mulher como reitora. Então, eu perguntei quais eram as mulheres que mais se distinguiam, para

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ENTREVISTA

que eu tivesse condições de propor aquela idéia a Roma. Mas seria muito difícil, porque não existia universidade pontifícia – quer dizer, que depende diretamente do Papa e do Arcebispo, mas do Papa sobretudo – e todos os professores eram confirmados em Roma. Então, eles me disseram que a Dra. Kfouri era indicada para isso, porque ela era solteira, não tinha se casado.

Dessa forma, poderia dedicar-se inteiramente à ciência, e também à sua família, à sua mãe e a toda a sua incumbência na Universidade. Assim sendo, eu mandei para Roma simplesmen-te a comunicação da nomeação da Dra. Kfouri como reitora da Universidade Católica, “escolha do Arcebispo de São Paulo”. Eu pen-sei que ia voltar uma carta incendiando São Paulo, e dizendo para o Arcebispo que era hora de criar juízo. (Risos). Mas foi o contrário: veio a res-posta de que ela estava nome-ada, que era a nova reitora da Universidade Católica.

Logo na fase seguinte, já havia a possibilidade de eleições para reitor – que, aliás, eu introduzi nas universidades católicas. Depois, esse sistema foi introduzido em todas as universidades. Eram feitas eleições por meio de professores, alunos e funcionários, cada qual com um peso diferente, é claro. Mas o fato é que a Dra. Kfouri foi reeleita como reitora da Universidade Católica. Como a mulher é forte! Como a mulher

nos surpreende muitas vezes! Como ela merece louvor todo especial também no campo da ciência, da pesquisa e no do incentivo para a juventude encontrar seu caminho.

O senhor fala da teologia em geral. De fato, eu apanhei muito por causa da teologia da libertação. Mas o senhor pode ler na minha autobiografia – que infelizmente tive de escrever – onde digo

que nós mandamos para Roma um documento muito bem-elaborado

pelos teólogos do Ipiranga sobre a teologia da libertação,

dizendo por que a teologia da libertação precisa procurar na Grécia as expressões, a metafísica toda, etc., para dizer, em palavras difíceis, o que Deus, que é simples e bom, quer eliminar para ser amado pelos homens, em vez de apenas ser

apreciado com palavrões que se encontram

nos dicionários mais completos.

Então, mandei aquilo para Roma e o único que me

respondeu foi o Cardeal Danneels. Eu nunca contei isso. Foi o Cardeal Danneels, de Bruxelas, na Bélgica, que me respondeu em um cartão, dizendo: “Eu o felicito pelo que o senhor mandou escrever pelos seus teólogos”. E assinou, em nome de toda a cidade de Bruxelas, dizendo que a teologia começa com o pobre, com o pequeno, e depois vai subindo até o coração daquele que sabe ser humilde e pequeno, mesmo sendo sábio, mesmo tendo estudado, mesmo sendo esse homem de grande projeção.

...“a fé e a ciência têm de

evoluir com a huma-nidade. Cristo nos deu

a essência para tudo, para responder a todas as pergun-tas, mas confiou à inteligência humana a elaboração de todas as respostas para cada tempo, para cada época e tam-bém para os momentos

cruciais da humani-dade”.

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

Danneels me escreveu um cartão tão bonito que eu o guardo até o dia de hoje. Meus amigos, a teologia da libertação me fez sofrer, mas eu ainda acredito nela, e acho que ela é que vai salvar a América Latina e – quem sabe? – também a Europa dessa crise terrível em que está entrando.

Dr. Hélio Bicudo - Dom Paulo, depois da Comissão de Justiça e Paz, o senhor, naturalmente, em face da evolução dos acontecimentos – estávamos no período do término da ditadura militar – criou, em São Paulo, o Centro Santo Dias de Defesa dos Direitos Humanos. Gostaria que o senhor nos contasse como e por que foi criada essa Comissão, e como são os trabalhos que ela vem desenvolvendo a partir de então na defesa dos direitos dos mais pobres.

Dom Paulo Evaristo Arns - Essa proposta de falar sobre o Centro Santo Dias muito me agrada. Nós, na Argentina, conseguimos unir 12 grupos inter-religiosos. No Uruguai também há outro grupo, no Paraguai e, depois, no Chile, no tempo de Pinochet. Fizemos o possível para descobrir quem era torturado, como e quando, dizendo qual é a influência do Brasil na tortura. Levei o resultado daquela pesquisa para Roma. Era justamente uma quarta-feira, quando o Papa ia anunciar sua grande mensagem para o ano santo de 1975. Os jornalistas brasileiros começaram a brincar comigo, dizendo: “Hoje, o senhor vai ganhar um pito em público, e nós estamos aqui para registrá-lo”. Eu respondi a eles: “Não faz mal, se o pito vem do Papa ou vem do povo, é Deus que fala”.

O Papa me chamou lá para cima – eu estava todo de Cardeal – e disse: “Este é um homem que defende os direitos humanos até em outros países, como na Argentina, no Uruguai, etc. Ontem, ele

me entregou um volume em que estão mais de 500 pessoas indicadas pelo nome, profissão, pelo lugar onde sofreram torturas e onde foram enterradas, a data e todas as coisas juntas. Este homem trabalha pela humanidade”.

Então, 150 mil pessoas me aplaudiram, sem saber quem eu era. (Risos). Eu vinha do Brasil. Coitado, um homem pequenino em estatura e pequenino também intelectualmente, como vai aparecer diante de um público de 150 mil pessoas e apresentado pelo Papa?

Mas o Centro Santo Dias tem uma coisa ainda melhor. Ele nasceu do coração da criança. A criança era perseguida na Praça da Sé (São Paulo), em todos os outros lugares, pela polícia e pelas pessoas que não sabiam respeitar as crianças, que, muitas vezes, premidas pela fome, roubavam uma banana, uma laranja, ou qualquer outra coisa. Depois que se alimentavam, brincavam na rua. Então, não sabíamos o que fazer.

O Dr. Hélio (Bicudo), e sua equipe, me propôs que formássemos uma Comissão chamada Santo Dias – o operário Santo Dias é o patrono de todos os operários, porque ele deu a vida pelos operários. Então, chamamos de Santo Dias, e essa associação, de fato, trabalhou dia e noite, com cinco advogados, às vezes, com três, o quanto nos permitiam os nossos bens financeiros para manter essa gente, para socorrer na hora certa e com a rapidez necessária.

Os juristas apoiavam sempre a ação daqueles que trabalhavam no Centro Santo Dias. Conseguimos defender milhares de crianças e criamos casas para elas poderem dormir, lugares para elas poderem ficar durante o dia. Depois, coisas assim se

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ENTREVISTA

propagaram pela cidade e, felizmente, começaram a contagiar a alma do povo. Hoje, amo as crianças e, Oxalá, confio nas crianças como o futuro do Brasil.

Mauro Santayana - Dom Paulo, eu lamento muito, mas queria chamar o senhor para as chamadas “obrigações do dia”. Por exemplo, temos hoje uma discussão muito séria com relação ao nosso comportamento com a natureza. Há o problema, sobretudo, dos transgênicos, que nos preocupa muito hoje, porque estamos tocando nas coisas mais profundas da natureza. Estamos tocando nos códigos da Criação. O que o senhor diria aos cristãos, hoje, com relação a isso?

Nós devemos, em nome da ciência, admitir que permaneça essa soberba do homem, que viola, vamos dizer assim, um contrato essencial que temos com Deus? É o contrato da nossa fé. É o contrato que, com a nossa fé, pedimos a sua proteção. O senhor acha que nós devemos, neste momento, ir adiante nessas pesquisas? Estamos vendo sérios problemas e doenças novas, como a doença da vaca louca, e coisas que não sabemos se virão depois disso.

O que o senhor diria aos cristãos, que reflexão o senhor recomendaria aos cristãos diante disso? Nós devemos agir contra isso ou devemos aceitar?

Dom Paulo Evaristo Arns - Mauro Santayana, o senhor está tocando em um problema que será discutido durante dezenas de anos ainda. Mas já sabemos mais ou menos o que os católicos devem fazer. Não é apenas minha opinião, mas de muitos na Igreja – talvez de toda a Igreja: a fé e a ciência têm de evoluir com a humanidade. Cristo nos deu a essência para tudo, para responder a todas as perguntas, mas confiou à inteligência

humana a elaboração de todas as respostas para cada tempo, para cada época e também para os momentos cruciais da humanidade.

Então, as duas devem continuar pesquisando. A Igreja precisa se atualizar em todas as questões físicas, químicas, etc., onde há elementos morais, éticos, onde existe a possibilidade de se ferir a dignidade humana. E os cientistas devem fazer a mesma coisa. Eles devem respeitar a humanidade e o futuro da humanidade. Eles devem respeitar o homem como ele é hoje, como será amanhã. Eles devem respeitar, sobretudo, a convivência humana acreditando na possibilidade de o futuro ser bem melhor e bem mais pacífico para toda a humanidade.

Portanto, os dois têm de se encontrar sempre e de novo para andar juntos. Naturalmente, haverá crises para cá e para lá. Vai haver Papa que é tido como conservador, e vai haver Papa considerado avançado. Mas todos eles têm a incumbência de atualizar a palavra de Deus sem mudá-la, ficando com o fundamento que o Evangelho nos traz, que a revelação nos transmite, fazendo aquilo que Deus quer para a humanidade, mas também sabendo que os homens podem melhorar a sua situação e devem melhorá-la.

É importante o que fizemos uma vez, em nome da ONU. Andamos, durante quatro anos, em todos os continentes para ver o que se faz a respeito das questões humanitárias. Andamos por toda parte – África, Ásia, América e Europa – e ficávamos 15 dias ou três semanas com os assessores que lá trabalhavam a vida inteira. Ouvíamos deles e levávamos para a ONU aquilo que achávamos que era contra o costume e a crença daqueles

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

povos, ou contra a possibilidade de eles executarem as coisas, porque estavam muito avançados ou eram retrógrados.

Acho que a união da fé e da ciência é a grande missão da Igreja para o futuro da humanidade e para o bem de cada um de nós. Mas ela não se faz de uma hora para outra e não se faz sem controvérsia.

Padre Beozzo - O senhor falou de fé e ciência, mas o senhor foi um mes-tre na sua vida nas questões também de fé e política. O senhor este-ve com muitos Governadores aqui em São Paulo: Paulo Maluf, Franco Montoro, Orestes Quércia, Luiz Antônio Fleury, Mário Covas, que foi seu grande amigo, Geraldo Alckmin, depois com os Prefeitos, os Presidentes, de Médici a Lula. O senhor con-viveu com essas figu-ras e sempre teve uma palavra para a questão da ética na política, da democracia, da cidada-nia. Gostaria que o senhor comentasse um pouco sobre isso.

O senhor deu atenção especial, em São Paulo, ao quarto poder, à imprensa, à televisão. O senhor já teve um jornal, perdeu a Rádio 9 de Julho. O senhor mesmo é um jornalista. Gostaria que o senhor falasse de sua boa relação com a imprensa, da questão da política, da ética e do papel da imprensa.

Dom Paulo Evaristo Arns - Em primeiro lugar, a política. Eu, de fato, na minha vida, sempre achei que ninguém poderia fazer qualquer ação ou expressar

qualquer palavra que não tenha efeito político. Político quer dizer que atinge mais que uma pessoa, atinge muitas pessoas, pode transformar o ambiente e pode até criar um novo sistema para orientar a humanidade em relação ao futuro. Mas, meus amigos, a política no Brasil foi muito difícil no tempo da repressão. Eu entrei, em 1966, justamente quando a repressão começava a cassar os Governadores. Quando cassaram Juscelino Kubitschek,

eu pensei: “Meu Deus, agora acabou tudo. Agora vão cassar todo

mundo e cassaram também...”

Padre Beozzo - O (Carlos) Lacerda, o (João) Goulart...

Dom Paulo Evaristo Arns - O Lacerda, o Goulart e tanta gente. De manei-ra que pensei que o Brasil não teria mais solução. Mas tem. É

preciso que todo mundo sempre diga: “Nós vamos

de esperança em espe-rança. Nunca vamos dei-

xar morrer a esperança do brasileiro, que não é homem de

pegar o fuzil e atirar”. O que está acontecendo, no que se refere à violência, é totalmente contra o espírito brasileiro, a mentalidade do povo e a nossa história. Nunca fomos violentos como estamos sendo neste momento. Mas o papel da política consiste em conduzir essas ques-tões de tal maneira que sejam favoráveis ao povo.

É isso que sempre procurávamos fazer. Qualquer queixa contra um governa-dor, mesmo Mário Covas... – o Covas era muito difícil no que se refere ao seu rela-

“ P o s s o dizer que com os

políticos, no final, eu sempre me entendi, quan-

do não eram militares. Os militares não queriam o enten-dimento, mas oposição. Eles achavam que a Igreja era dos pobres, portanto, comunista e contra o regime. Por isso

eles não respeitavam nossa opinião”.

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cionamento, mas fui eu o último que deu a mão a ele na hora da morte. E ele ainda teve forças para me dizer: “Eu tive mil pessoas que me chamavam de amigo, mas uma eu sei que era e é meu amigo, é Paulo Evaristo Arns”. Eu disse para ele: “Deus te abençoe nessa caminhada onde iremos nos encontrar de novo”.

Posso dizer que com os políticos, no final, eu sempre me enten-di, quando não eram militares. Os militares não queriam o enten-dimento, mas oposi-ção. Eles achavam que a Igreja era dos pobres, portanto, comunista e contra o regime. Por isso eles não respeita-vam nossa opinião. Só a respeitavam em ocasiões nas quais isso era muito fácil e visível para o povo. E o povo, no início, também acredi tava na revolução. Quando falávamos na revolução, o povo reclamava. Aos poucos, ele foi entenden-do que a revolução trabalhava para uns poucos e não para todos os brasileiros. Não trabalhava para o futuro nem para o presente, mas para um passado que já deveria ter sido enterrado há muito tempo.

Dizer como era nosso comportamen-to é uma tarefa difícil, porque cada momen-to era diferente, cada pessoa tinha seu tipo, seu caráter, seu modo de nos receber e

aceitar nossas propostas, feitas em nome, muitas vezes, do Conselho de Presbíteros, ao qual pertencia Monsenhor Bevilacqua, que está ao meu lado, do Colégio dos

Bispos. Fui algumas vezes ao gabinete de Médici levar a opinião dos bis-

pos do Estado de São Paulo. Ele me pôs para fora e disse: “O

senhor cuide da sacristia que nós cuidamos da ordem pública”. Eu disse: “Mas a ordem pública está sendo violada”. E foi a despedida de Médici para sempre.

Jorge Henrique Cartaxo - Dom Paulo, minha gera-ção cresceu sob a ditadura militar e amadureceu na democracia. Os problemas funda-mentais, aqueles que nos animaram a lutar contra a ditadu-

ra, não foram resol-vidos em vinte anos

de democracia. Ainda que possamos apresen-

tar explicações técnicas e históricas para isso, a sen-

sação que se passa, no senso comum, é que essa inviabilida-

de permanente é muito incômo-da. O que V. Excia. tem a dizer sobre

isso?

Dom Paulo Evaristo Arns - O senhor acha que não temos democracia, não é? Temos apenas um arremedo de democracia ou uma tentativa de fazer o povo participar por meio das eleições e por mais alguma coisa. Mas considero muito pouco.

“Todos que estão aqui

nesta mesa são gran-des lutadores pela trans-

formação do Brasil, sobretu-do, para não deixar apagar a

chama da esperança. Precisamos ter esperança para chegarmos à utopia que todos desejam. E vai ser realizada em breve, se Deus quiser, ao contrário do que predizem os pessimistas. Somos um povo que vive de esperança. Devemos unir nossas forças num governo que aceita ou não, psicologicamente ou politicamente, mas quer o bem do Brasil e vai fazer o bem, se Deus quiser, com a

ajuda de todos. O Brasil é responsável por si

mesmo”.

ENTREVISTAENTREVISTA

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Jorge Henrique Cartaxo - É o que me parece. Veja, se considerarmos que democracia significa eleições, participa-ção política e formalidade jurídica, creio que temos democracia. Entretanto, per-cebo que o resultado que isso poderia trazer, em termos de qualidade de vida, bem-estar e aspiração, parece impossível. A sensação que se passa é essa.

Dom Paulo Evaristo Arns - Na minha opinião – eu não costumo dizer em públi-co – o atual presidente da República deve fazer uma reforma completa na política, sobretudo em relação aos cargos essen-ciais que vão orientar a Nação. Assim, poderemos acreditar em uma verdadeira democracia, porque o povo vai receber, da parte daqueles que são mais amigos, aquilo que se espera.

É preciso dizer sempre ao presidente da República que o Brasil não é dele. O Brasil é de todos os brasileiros. E todos eles são representados por um grupo de pesso-as escolhido pelo presidente da República. Essas pessoas devem ser escolhidas para servir o povo e não pelo fato de que são amigas ou foram amigas do presidente em épocas difíceis.

Mauro Santayana - Dom Paulo, como V. Excia. tocou nesse assunto, chegamos a dois graves problemas: a política econômi-ca brasileira e as instituições brasileiras. O primeiro problema reside na deterioração paulatina do sistema federativo nacional com a concentração excessiva do poder em Brasília. Em conseqüência, a economia brasileira está nas mãos de três ou quatro pessoas, que estão em Brasília, que não conhecem a história do País, a miséria do povo e não têm compromisso com os brasileiros.

Essas pessoas estão ditando a polí-tica econômica. A meu ver, a melhor

metáfora no cristianismo é a distribuição do pão e dos peixes – apesar de ser um pouco diferente, considero-me cristão. Como podemos agir neste momento para que a economia realmente sirva ao povo e não aos interesses do sistema financeiro internacional aqui representados?

Dom Paulo Evaristo Arns - V. Sª. mesmo respondeu à sua pergunta, no início. De fato, enquanto deixarmos esse grupo, em Brasília – um grupo novo e inexperiente, em um governo democrático de um novo presidente da República – agir sozinho, sem o apoio de cada estado... Cada estado deve realizar aquilo que é próprio do povo, porque temos mais de 300 Brasis. Cada estado é um Brasil, por-que tem uma mentalidade própria e um jeito de realizar as coisas e sabe como fazê-lo. Nosso País é inventivo, com uma grande capacidade de transformação. Se os estados começarem a transformar o Brasil e o Governo Federal aceitar as propostas de baixo para cima, certamente teremos um outro Governo, outro sistema e um resultado bem mais condizente com o que deseja a maioria do povo brasileiro.

Dr. Hélio Bicudo - Dom Paulo, não vou fazer uma pergunta, mas uma consta-tação. Creio que essa entrevista é da maior importância, pois V. Excia. é bastante conhecido. Mas suas palavras, na medida em que voltam ao povo, têm, na realidade, um retorno excepcional para que o povo tenha esperança. V. Excia. tem sido, é e vai ser sempre o bispo de nossa esperança.

Dom Paulo Evaristo Arns - Muito obrigado, Dr. Hélio. Considero que fize-mos um grande esforço. Todos que estão aqui nesta mesa são grandes lutadores pela transformação do Brasil, sobretudo para não deixar apagar a chama da esperança. Precisamos ter esperança para chegarmos

DOM PAULO EVARISTO ARNS

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ENTREVISTA

à utopia que todos desejam. E vai ser realizada em breve, se Deus quiser, ao contrário do que predizem os pessimistas. Somos um povo que vive de esperança. Devemos unir nossas forças num governo que aceita ou não, psicologicamente ou politicamente, mas quer o bem do Brasil e vai fazer o bem, se Deus quiser, com a ajuda de todos. O Brasil é responsável por si mesmo.

ENTREVISTA

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1) IntroduçãoO Poder Legislativo é certamente

a instituição governamental que mais reformas tem feito no sentido de aumentar a transparência de suas atividades e ampliar sua capacidade de controle sobre as ações dos demais poderes. Um primeiro passo importante foi dado no início da legislatura passada, com a inauguração das TV´s Câmara e Senado, por assinatura, responsáveis pela transmissão de sessões deliberativas de comissões e plenário. No final desta mesma legislatura, por iniciativa do então deputado federal pelo PSDB de Minas Gerais, Aécio Neves, presidente da Casa, a Câmara dos Deputados aprovou emenda constitucional que confere nova regulamentação ao instituto da medida

provisória, impedindo que estas sejam reeditadas indefinidamente, ao mesmo tempo que forçando o pronunciamento do plenário sobre as que foram enviadas pelo Executivo, emenda essa que veio a ser ratificada pelo Senado Federal.

Um efeito claro da medida, já observado, foi o de diminuir o ímpeto do Executivo em governar por decreto. Além disso, foi criada uma Comissão Participativa destinada a receber projetos formulados por entidades representativas da sociedade e fornecer-lhe a devida tramitação. Se eficaz, tal comissão fornecerá visibilidade aos projetos que pela Câmara tramitam, visibilidade que pode significar importante estímulo a deputados e senadores para que invistam parcela maior de seu tempo em

ENSAIO * FABIANO SANTOS

* Cientista Político, Professor e Pesquisador do IUPERJ (Instituto Universitário do Rio de Janeiro)

A Reforma do Poder Legislativo no Brasil

27

FABIANO SANTOS

projetos e emendas do próprio Legislativo, e diminuam a proporção das energias parlamentares dedicadas à agenda do Executivo.

O início da legislatura atual não modificou o ânimo dos líderes da Câmara em aprofundar o processo de desenvolvi-mento institucional do Legislativo. Tanto o número quanto o formato das comissões permanentes sofreram alterações, tendo em vista a necessidade de acompanhar a estrutura do Poder Executivo – até pouco tempo, o sistema de comissões contava com 16 destes órgãos, número que se elevou para 20 ao final do ano de 2003. Ademais, estudos estão sendo feitos no intuito de restringir a criação de comis-sões especiais e os pedidos de urgência constitucional, mecanismos que amesqui-nham o poder das comissões permanentes, principal instrumento de intervenção dos representantes no processo decisório e de implementação de políticas e programas do governo.

No texto que segue, mostrarei que estas mudanças institucionais estão no caminho certo, se o que se deseja é o fortalecimento do Legislativo. Farei isto mediante a exposição de alguns pontos conceituais derivados de avanços teóricos e empíricos conquistados ao longo das últimas décadas pela ciência política, especialmente na área de estudos legislativos. Além disso, proponho um conjunto de alterações institucionais, a meu ver compatíveis com o espírito que vem animando os legisladores no que concerne a estas últimas decisões, de natureza procedimental, e que têm sido tomadas, principalmente, no âmbito da Câmara dos Deputados. Antes de prosseguir nesta direção, é preciso esclarecer algumas questões relativas à inserção do Poder

Legislativo no sistema político brasileiro – este é o objeto da próxima seção, restando para as duas últimas a discussão conceitual e as propostas de reforma.

2) O Poder Legislativo no Presidencialismo de Coalizão

Para melhor contextualizar o tema, faz-se necessário identificar como o debate em torno da assim chamada reforma do Poder Legislativo se inscreve no contexto mais geral das mudanças institucionais em curso no país. O sistema político institucional do estado democrático pode ser entendido como composto de dois conjuntos de elementos: os elementos constitucionais e os elementos procedimentais1.

a) a dimensão constitucional é com-posta por dois conjuntos de variáveis: as variáveis relacionadas aos sistemas elei-torais e partidários, vale dizer, às regras mediante as quais votos são transformados em cadeiras parlamentares, e as variáveis referentes ao sistema de governo. Sabe-se que, no Brasil, adota-se o sistema propor-cional de lista aberta e sistema presiden-cial. Se juntarmos a estas instituições o federalismo e o bicameralismo, conclui-se que a democracia brasileira, pelo menos no que tange a seus elementos constitu-cionais, é altamente difusora do poder político, no sentido de que maximiza a participação do eleitor na configuração dos loci de exercício do poder.

b) a segunda dimensão, a procedi-mental, trata dos poderes de agenda do Governo e da organização interna do Legislativo, vale dizer, as regras e proce-dimentos de formulação da agenda par-lamentar, os núcleos de elaboração das políticas, não só propostas, mas também efetivamente aprovadas, e os agentes de

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maior influência nesse processo. Uma questão central, quando se verifica este conjunto de elementos, é a capacidade do Poder Executivo de iniciar e influenciar o processo legislativo e até que ponto este poder amesquinha tanto a extensão dos direitos parlamentares dos deputados sem postos na burocracia parlamentar, quanto as prerrogativas de poder das comissões permanentes do Poder Legislativo. Sabe-se, por exemplo, que existe uma alta concentração do poder decisório e de agenda em mãos do chefe do Executivo e das lideranças partidárias no interior do Congresso2.

Para nossos propósitos, o que importa assinalar é que a conjugação dos elementos constitucionais do sistema político, baseada em uma concepção difusora do poder, com seus elementos procedimentais, de inspiração concentradora, dá origem a um modelo institucional cuja essência pode ser condensada na seguinte expressão: “presidencialismo de coalizão”, com amplos poderes de agenda depositados no Executivo. Tal modelo, complexo em sua concepção e operação, comporta certos desequilíbrios no modo pelo qual o poder político se distribui entre as diversas instâncias do sistema. Veremos que a reforma do Poder Legislativo pode cumprir a importante função de re-equilibrar o balanço entre os Poderes. Vejamos porque.

O ponto de partida, portanto, de toda análise sobre o Legislativo deve ser o conceito de “presidencialismo de coalizão”. A combinação de sistema presidencialista, representação proporcional de lista aberta e sistema parlamentar fragmentado leva o chefe do Executivo, na intenção de implementar sua agenda de políticas públicas, a distribuir

pastas ministeriais entre membros dos principais partidos, na esperança de obter em troca o apoio da maioria do Congresso. O impacto desta prática institucional para o desempenho do órgão representativo é significativo, e o exemplo do início do atual governo ilustra perfeitamente o sentido deste impacto3.

A tabela abaixo compara o tamanho da base de apoio ao governo na Câmara dos Deputados em dois momentos distintos: logo após o pleito de 2002 e ao fim de 6 meses de governo do presidente Lula4.

Tabela 1

Força Parlamentar da Coalizão Governista em Dois Períodos Distintos

Lula 1 Lula 2PT - 0,17 PT - 0,18PL - 0,05 PL - 0,06PTB - 0,05 PTB - 0,09PSB - 0,04 PSB - 0,06PDT - 0,04 PDT - 0,03PPS - 0,02 PPS - 0,04PCdoB - 0,02 PC do B - 0,01PV - 0,01 PV - 0,01

PMDB - 0,130,40 0,62

O novo governo seguiu a rota habitual da política brasileira: por um lado, estimulou a troca de legendas de partidos originariamente de oposição em direção a partidos aliados, embora o PT tenha se preservado desta dança, e, por outro, convidou o PMDB, grande partido de centro, para fazer parte da base formal de apoio ao presidente5. Ao fim de diversas negociações, envolvendo cargos na estrutura da liderança do governo

Fonte: Câmara dos Deputados

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no Legislativo, a concessão imediata de cargos de segundo e terceiro escalão, além da promessa de postos ministeriais em futuro próximo, a bancada peemedebista decide aceitar fazer parte da coalizão governamental. Com estes movimentos, o governo Lula, que havia iniciado sua administração controlando apenas 40% das cadeiras na Câmara dos Deputados, termina seus primeiros 6 meses com o apoio de 62% destas. Qual o significado político institucional desta mudança de cenário?

Relevante, neste contexto, é o fato de o PMDB ter apoiado a candidatura contra a qual Lula se bateu no segundo turno das eleições presidenciais, além de ter sido a agremiação que forneceu a candidatura a vice-presidente nessa mesma chapa. Em uma palavra, um dos partidos que concorreu nas eleições majoritárias defendendo o governo e em oposição à candidatura e coligação de partidos vitoriosos no pleito, depois de 6 meses de governo, torna-se parceiro da coalizão de apoio ao novo presidente.

Dois pontos são particularmente importantes aqui: em primeiro lugar, o presidente Lula optou por reduzir os custos de transação no Legislativo montando uma coalizão de ampla maioria, tornando a cooperação de partidos como o PSDB e o PFL desnecessária para definição e aprovação da agenda governamental; em segundo, decide enfrentar os custos políticos de incluir uma agremiação tida como “excessivamente pragmática” por amplos setores da opinião pública e de próprios membros da base aliada. O trade-off, custos de transação versus custos políticos, foi resolvido em favor do primeiro, isto é, sanou-se o primeiro com o conseqüente agravamento do segundo.

Várias são as implicações desta decisão, algumas delas já conhecidas.

Opiniões correntes sobre nossa vida partidária afirmam que esta funciona razoavelmente bem no interior do Legislativo, sendo a atividade parlamentar coordenada pelas lideranças, com taxas de disciplina relativamente altas e alguma estabilidade no que concerne ao perfil das coalizões vencedoras e perdedoras no plenário. Todavia, grande ceticismo prevalece quanto à capacidade dos partidos se comunicarem com os eleitores no sentido de definirem uma imagem minimamente distinta das demais agremiações, com base na defesa de determinados pontos da agenda pública e a maneira de encaminhá-los. A crônica deste início de governo Lula sugere a proposição de que a opção mais fácil de montagem de coalizões majoritárias no parlamento tem também contribuído para este curto circuito entre partidos e eleitores, cuja manifestação empírica vem estampada em taxas de identificação partidária minimalistas.

A rationale da decisão do governo de incorporar o PMDB ao governo é bastante evidente. O cenário, no início da atual administração, foi o de uma aposta na viabilidade de um governo de minoria. A inclusão daquele partido na base aumentaria a folga numérica no plenário da Câmara, mas, assim pensava o governo, poderia gerar desgaste eleitoral por manter no governo um partido altamente comprometido com a chapa derrotada no pleito e com o antigo governo. Além disso, conceder ministérios a um partido pragmático como o PMDB traria consigo o risco de abdicar de determinadas áreas de políticas públicas sem a garantia da contrapartida em votos disciplinados em plenário (lembrar que este partido foi a agremiação da base de FHC menos disciplinada em plenário, com média, no período 2002, de 85%). O que significava, àquela altura, a aposta de Lula?

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Tratar-se-ia de um governo de minoria e, como tal, não poderia contar somente com seus próprios votos para aprovar a agenda de governo. A experiência de governos minoritários na Europa e nos EUA indica que a governabilidade neste tipo de governo pressupõe a montagem de coalizões tópicas, negociadas caso a caso. Com freqüência, um pacote de projetos é negociado ex ante, apoiado por setores da sociedade e lideranças partidárias nacionais e sociais que se viabiliza exatamente por ter sido legitimado em ambiência externa ao Congresso.

A negociação pode se dar também no interior da própria instância represen-tativa, ocasião na qual o caráter minori-tário assume feições mais nítidas. Neste contexto, organismos suprapartidários do Legislativo deverão ser valorizados, tais como as comissões técnicas, posto que a participação institucionalizada de mem-bros da oposição no desenho dos projetos é de fundamental importância. O desa-fio neste contexto seria o de fortalecer o Congresso como ator proativo, propositor, dotado de visão própria sobre os rumos da agenda governamental. O pressuposto desta aposta do PT seria a adoção, por parte dos principais partidos de oposi-ção, aí incluído o PMDB, de uma postura policy oriented. A pergunta passaria pois a ser: seria a orientação programática capaz de vencer a orientação patrimonialista, presente em boa parte da vida de nossas agremiações?

Como sabemos, a decisão final do governo foi a de convidar o PMDB para fazer parte da base, além de estimular o troca-troca de legendas em favor dos partidos aliados. Com isso, encurta-se o caminho para a obtenção de maioria parlamentar em apoio à sua agenda. Mas,

do ponto de vista do funcionamento do presidencialismo de coalizão, qual o ensinamento desta decisão? A primeira e fundamental lição é a de que os benefícios de fazer parte do governo são muito elevados. E em segundo, os custos de negociar com os grandes partidos em torno de uma agenda de policies são também bastante altos.Tratemos de cada uma destas lições separadamente.

O poder de nomear e demitir, o poder de reter e liberar recursos orçamentários, além do enorme poder de definição do conteúdo e timing da agenda de decisões governamentais são os principais instrumentos de atração dos partidos e representantes para o seio da coalizão governista no Legislativo brasileiro. Para um partido qualquer, duas alternativas se colocam de maneira muito clara: a primeira consiste em correr o risco de participar de um governo que pode eventualmente fracassar e, por conseguinte, arcar com os custos políticos de ter alguma responsabilidade no processo; e a segunda é a de decidir permanecer do lado de fora da coalizão, assumindo o papel de opositor. Este pode ser de natureza construtiva, ou sistemática.

A adoção de um ou outro tipo dependerá de variáveis como popularidade do presidente, tamanho e coesão da base parlamentar do governo, capacidade de comunicação para os eleitores de um curso de ação cooperativo, etc. O fato é que, nas condições atuais da política brasileira, a atração exercida pelo Poder Executivo é considerável e isto ficou mais do que comprovado com a decisão do PMDB de aderir à coalizão governamental, além da enxurrada de parlamentares que trocaram de partidos em direção a agremiações da base aliada.

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Os custos de transação para um governo que precisa negociar uma agenda com partidos de oposição são altos porque estes se vêem inteiramente desprovidos de meios para implementar políticas de governo. Como qualquer liberação de recursos orçamentários exige uma decisão do Executivo, e como fazer políticas públicas é liberar recursos, então toda e qualquer política pública no país só pode ser feita pelo governo. Partidos de oposição não percebem nenhum ganho em cooperar com um presidente que irá “faturar” de forma quase monopólica os benefícios de implementação de programas governamentais. Daí a virtual impossibilidade de se contar com a cooperação de partidos oposicionistas e, por conseguinte, de se governar com minoria no parlamento.

É esta alienação dos partidos par-lamentares dos programas de alocação de recursos orçamentários que torna essencial para o governo montar coalizões majori-tárias, eventualmente supermajoritárias, o que depende da natureza da agenda e da disciplina esperada de seus parceiros origi-nais. Em outras palavras, para o presiden-te, governar com minoria, ou até mesmo maiorias mínimas, é muito custoso, pois, do ponto de vista dos partidos de opo-sição, não há incentivo para cooperar; por outro lado, participar do governo é altamente benéfico, pois fora dele não há como alocar. Contudo, ao decidir pela incorporação de partidos originalmente de oposição à base aliada, o governo interfere na comunicação que estes tentam estabele-cer com os eleitores – eis um dos desafios institucionais de nosso sistema político e que tem sido enfrentado pelas reformas institucionais implementadas na Câmara ao longo dos últimos anos.

Em suma, uma reforma do Poder Legislativo, com vistas a uma vida partidária mais estável, além de uma distribuição mais equilibrada do poder em nosso sistema político, deve atacar os seguintes dois pontos: a) elevar os custos políticos de fazer parte do governo; b) aumentar os benefícios de se manter na oposição. Antes de dar continuidade à dimensão procedimental do debate, é importante observar de que maneira a ciência política, especialmente a área de estudos legislativos, avalia o desempenho do Legislativo no Brasil.

3) O Legislativo Brasileiro e os Estudos Legislativos

Existem duas tradições na área de estudos legislativos. A primeira, de extração funcionalista, procura detectar o papel, ou papéis, que o parlamento cumpre em determinado país. A segunda, desenvolvida a partir da abordagem neo-institucionalista, verifica os objetivos de carreira dos parlamentares, as regras sob as quais interagem com os colegas e demais atores políticos, para então explicar fenômenos relevantes relativos à vida parlamentar, tais como disciplina partidária, produção legislativa, maior ou menor predominância do Executivo, etc.

Segundo a abordagem funcionalista, um parlamento pode ser ativo, reativo ou “carimbador”6. Um legislativo ativo é aquele que possui a iniciativa do processo decisório. Além de predominante quanto à origem dos projetos aprovados, é ator fundamental também na implementação dos programas governamentais e alocação de recursos. Alta complexidade interna, que se expressa em ampla divisão do trabalho legislativo em comissões técnicas, permanentes, altamente especializadas,

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é a marca deste tipo de parlamento. Ademais, é comum observar a prevalência de carreiras legislativas exclusivas, ou seja, o alvo principal da ambição dos políticos é a conquista de cargos na hierarquia interna do Legislativo, como presidência de comissões importantes, liderança de bancada ou postos na mesa diretora.

Um legislativo reativo é aquele que delega a iniciativa das proposições legais mais importantes para o Executivo. A definição da agenda, assim como as prioridades no que tange à ordem de apreciação dos projetos, é transferida para o governo e negociada, posteriormente, com os parlamentares que lideram o partido ou coalizão legislativa majoritária. A atividade fiscalizatória destes parlamentos é, em geral, bastante bem difundida. Todavia, a complexidade interna não é tão desenvolvida, o que torna o parlamento até certo ponto dependente das informações processadas por agentes fora do âmbito legislativo, como a burocracia do Executivo, o Judiciário, ou grupos de interesse. Além disso, os políticos não conferem prioridade à carreira no Legislativo, preferindo, na medida do possível, concorrer, através do voto ou nomeação, a postos no governo, ao nível nacional ou local.

Um legislativo “carimbador” é aquele que funciona inteiramente a reboque do governo. As matérias que tramitam no Legislativo o fazem de modo quase que inteiramente pro forma, cabendo aos órgãos internos do parlamento apenas arrematar o projeto em seus aspectos técnicos. Uma vez definida uma coalizão legislativa majoritária, todo o poder decisório e alocativo é delegado ao governo que passa a dar o tom dos trabalhos legislativos. Ocorre uma fusão entre os Poderes Legislativo e Executivo, sendo o papel do

parlamento, enquanto instituição distinta do governo, socializar os parlamentares na vida pública e fornecer quadros para os ministérios e secretarias de governo. A carreira de um legislador nestes casos é dedicada ao parlamento até o ponto em que este consegue a nomeação para um ministério, este sim, o verdadeiro alvo da ambição política.

O Legislativo brasileiro é reativo. Em trabalho recente, Santos e Amorim Neto (2002) observaram que em um universo de mais de duas mil leis aprovadas de 1985 a 1999, apenas 336 tiveram a iniciativa de parlamentares. Além disso, constatou-se que, embora relevante para grupos e setores da sociedade, tais leis não afetam o status quo econômico e social do país, sendo mais propriamente intervenções tópicas em questões pertinentes à vida do cidadão comum. O processo orçamentário, ademais, é controlado pelo Executivo e organizado para favorecer as prioridades estabelecidas pela coalizão de partidos que dominam o governo, sendo a intervenção dos parlamentares apenas marginal (Figueiredo e Limongi 2002). A complexidade interna, embora crescente, como atesta a recente elevação do número de comissões técnicas da Câmara de 16 para 20, ainda é insuficiente para fazer frente à máquina de produzir informações do Executivo. Finalmente, com relação às carreiras dos legisladores, vários estudos mostram que estas se caracterizam pelo perfil “zigue-zague”, freqüentemente tendo postos eletivos do Executivo ao nível local como prioridade. (Samuels 2003; Santos 2003b).

Uma vez constatado o perfil reativo do Legislativo brasileiro, dois pontos merecem tratamento mais cuidadoso: 1) se é desejável conferir um perfil mais

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ativo ao Congresso; e, 2) que medidas de reforma poderiam contribuir para avançarmos nesta direção. Antes de atacar estes pontos, passemos para a abordagem neo-institucionalista aplicada ao estudo do Legislativo.

Os estudos nessa área, predomi-nantemente voltados para o Congresso norte-americano, se subdividem em dois grandes grupos: existem aqueles que não vêem relevância na ação dos partidos e os que consideram os partidos o ator chave na organização e processo decisório do Congresso.

A corrente que não considera os partidos como instituição relevante se desdobra em duas subcorrentes: a distributiva e a informacional. A primeira postula que a organização do Congresso serve aos interesses de reprodução eleitoral de seus membros7. Uma vez que a conquista do voto é função da capacidade do representante de atender aos interesses radicados no distrito eleitoral pelo qual se elegeu, este procurará se especializar em temas de políticas públicas de grande impacto neste distrito. É importante lembrar que o mesmo problema é enfrentado pelos demais representantes, o que os leva a desenvolver instituições internas que permitam aos deputados adquirirem expertise nas políticas públicas pertinentes e distribuírem benefícios concentrados em favor dos eleitores de seu distrito.

O sistema de comissões especializa-das, dotadas de amplos poderes de agen-da, a regra da antiguidade como meca-nismo de acesso a posições de hierarquia nas mesmas e os instrumentos regimentais que protegem os projetos, aprovados nas comissões, de modificações em plenário seriam mecanismos mediante os quais o processo decisório atenderia ao esforço

dos representantes em distribuir benesses localizadas, de visibilidade para os eleitores, esforço cuja origem remonta à necessidade de reprodução eleitoral do congressista.

Onde a subcorrente distributiva observa particularismo, a informacional vê eficiência coletiva8. A organização do Congresso em torno de comissões altamente especializadas seria um meio de atender às demandas dos congressistas por expertise – demanda que advém da tentativa de redução da incerteza que circunda necessariamente o trabalho de formulação e implementação de políticas públicas. Tanto a regra da antiguidade, quanto as regras de restrição de emendas às proposições enviadas ao plenário pelas comissões seriam, na verdade, incentivos para o desenvolvimento das próprias comissões. Os riscos de particularismo, inerentes a um processo decisório compartimentado em pequenos núcleos decisórios, ver-se-iam reduzidos na medida em que as diversas tendências de opinião existentes no plenário, isto é, sua heterogeneidade, tivesse correspondência na composição das próprias comissões.

A corrente partidária discorda frontalmente com a assertiva, presente na corrente anterior, de acordo com a qual os partidos não seriam instituição relevante de organização e decisão congressual9. Pelo contrário, segundo os defensores desta corrente, as instituições do legislativo expressam os dilemas de ação coletiva e conflitos internos ao partido ou coalizão majoritária. Os partidos cumpririam duas importantes funções: serviriam de veículo para a tomada de decisão do eleitor e mecanismo de coordenação do comportamento dos parlamentares, uma vez eleitos. Vale dizer, os políticos extraem benefícios da existência dos partidos,

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porque isto facilita sua atuação como candidato ao sinalizar seu posicionamento em questões de interesse público, assim como sua atuação enquanto parlamentar, ao balizar suas decisões relativamente às matérias que chegam a voto em plenário.

Contudo, o interesse que subsidia a emergência e força dos partidos é um interesse coletivo, ao passo que os parlamentares também se elegem por conta de seus esforços individuais no sentido de atender às demandas de seus eleitores. O dilema coletivo dos políticos face aos partidos surge exatamente no momento em que há o risco da imagem do partido se desgastar, seja pela falta de investimento dos parlamentares nos temas e políticas que conferem a marca coletiva da agremiação, seja pelo sobre-investimento nas matérias de alcance meramente paroquial.

A solução clássica para problemas de ação coletiva é delegar para indivíduo ou grupo de indivíduos a tarefa de coordenar, canalizar os esforços individuais na direção do bem público, vale dizer, dotar este grupo de indivíduos de poder e conceder-lhe incentivos para que assuma o ônus de organizar o comportamento individual e realizar o interesse coletivo – na vida dos partidos e parlamentar, este agente atende pelo nome de lideranças partidárias. O papel das liderança dos partidos seria, não propriamente ou unicamente o de disciplinar a conduta da bancada, mas o de não permitir que a ação individual prejudique sobremaneira a imagem coletiva da agremiação, por um lado, e, por outro, não permitir que conflitos de interesse e de opinião no interior da bancada levem a seu amesquinhamento eleitoral e político. Em uma palavra, a função da liderança partidária é a de compatibilizar os interesses individuais

e coletivos de uma mesma coalizão de congressistas.

A literatura recente sobre o Congresso brasileiro tem verificado a coexistência de elementos distributivos e partidários no comportamento legislativo de nossos parlamentares10. Indicadores como pesquisas de opinião, produção legal, processo orçamentário e disciplina partidária revelam pelo menos dois pontos fundamentais: existe amplo reconhecimento sobre a importância de se constituir, junto aos eleitores, reputação pessoal, ou seja, a tarefa da representação política no Brasil está fortemente ancorada na figura individual do político; todavia, o espaço de atuação do parlamentar, tomado individualmente, é muito reduzido no parlamento; vale dizer, a atividade legislativa, sua organização e processo de decisão, se encontra centralizada na liderança dos partidos, em particular dos partidos que formam a base aliada ao governo.

Ademais, e o que é mais relevante para fins da presente discussão, é que também existe amplo consenso de que faz falta ao Congresso brasileiro, em sua forma de atuar, regras e procedimentos que incentivem o desenvolvimento de expertise e capacitação dos parlamentares para a formulação e implementação de políticas públicas. Em uma palavra, o Congresso ainda está por desenvolver mecanismos informacionais.

Em resumo, os estudos sobre o Legislativo brasileiro, e levando-se em consideração as diversas perspectivas que avaliam o papel e comportamento do par-lamento na democracia contemporânea, indicam ser esta uma instituição de perfil reativo que se organiza e toma decisões mediante uma combinação de elementos

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partidários e distributivos. Por conseguin-te, a discussão sobre possíveis pontos de reforma deste Poder no Brasil passa, necessariamente, pela indicação de como é possível conferir a ele um perfil mais ativo, além de aumentar sua capacidade informacional.

4) Conclusão e Proposta de Reforma

Conferir um perfil mais ativo ao Poder Legislativo no Brasil, assim como reforçar os elementos informacionais de sua estrutura institucional, nos conduz ao início do texto, em particular à proposição básica do argumento nele defendido - a reforma do Poder Legislativo visando ao seu fortalecimento deve, primordialmente, desenvolver regras de organização interna que aumentem os benefícios de se estar na condição de oposição parlamentar, ou diminuam os custos de não fazer parte do conjunto de partidos que possuem cargos no ministério.

Aumentar os benefícios de ser opo-sição parlamentar significa multiplicar as possibilidades de intervenção dos parla-mentares, independentemente de sua con-dição de aliado ao governo, no processo de formulação de políticas públicas. A meu ver, três dimensões são de funda-mental importância para se avançar nesta direção: 1) aumentar o poder de alocação de recursos do Congresso; 2) aumentar o poder decisório das comissões técni-cas permanentes; 3) alterar a estrutura de oportunidades com a qual se defrontam os políticos no Brasil.

Quanto ao primeiro aspecto, trata-se de discutir a inserção do Congresso no processo orçamentário brasileiro. Duas medidas são essenciais: a) tornar o orçamento, que é aprovado a cada

ano pelo Legislativo, imperativo e não apenas autorizativo. Retirar o poder de contingenciar o gasto da União é vital para conferir maior responsabilidade às decisões dos congressistas, assim como para redistribuir o poder político da burocracia do Ministério da Fazenda em favor da dimensão representativa do regime democrático. Por óbvio, não devemos pensar que se trata de decisão simples que possa ser tomada imediatamente. Assim sendo, e mantido o desiderato da mudança, é relevante a discussão sobre formas de negociação do próprio processo de contingenciamento, isto é, ao Congresso deveria caber papel mais ativo na definição das prioridades e timing de liberação de recursos para programas e atividades governamentais.

b) A segunda medida essencial no sentido de se aumentar o poder de alocação do Congresso diz respeito à própria forma pela qual a peça orçamentária é discutida e aprovada no Congresso. Atualmente, o processo é concentrado em uma comissão mista, sendo de vital importância a figura do relator do projeto, em geral escolhido entre os mais confiáveis membros da base aliada ao governo. Embora importantes modificações tenham sido introduzidas nos últimos anos, visando tornar a decisão sobre o Orçamento mais transparente e descentralizado (Figueiredo e Limongi 2002), ainda é fato que as comissões permanentes se encontram praticamente alijadas do processo.

Uma maneira de contornar esta situ-ação é dividir o projeto orçamentário por áreas e enviar os diversos subprojetos para comissões pertinentes, fornecendo a estas o poder de modificar as estimativas de receitas e despesas ali contidas11. Uma vez aprovada a proposta da comissão

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temática, esta a envia para a comissão de orçamento e suas subcomissões, que trata-riam de apreciar a proposta de substitutivo daquela. Relevante ressaltar que tal divisão de tarefas implica modificar a forma de tramitação do projeto de Orçamento, que deixaria de ser unicameral, passando a tramitar simultaneamente nas duas Casas do Congresso.

A segunda dimensão relevante consiste no problema do ritmo e lócus de tramitação das matérias enviadas às comissões permanentes. Duas questões básicas devem ser consideradas: a) a questão da urgência; e b) a questão das comissões especiais. Existem dois tipos de urgência, a constitucional, de prerrogativa unilateral do chefe do Executivo, e a regimental, que pode ser solicitada por parlamentares, segundo vários critérios, mas cuja aprovação depende da concordância do plenário. Em comum nos dois casos, o fato de uma matéria sob tramitação urgente ter necessariamente de estar em plenário para votação em 45 dias, tendo ou não sido apreciada pela comissão de mérito.

O ponto central é que os principais projetos de interesse do Executivo, exce-tuando-se projetos de emenda constitucio-nal, recebem o carimbo de urgentes, seja mediante pedido do próprio presidente, utilizando-se de sua prerrogativa cons-titucional, seja pela via de acordo entre líderes.

Não é difícil entender que o recurso sistemático do instrumento do pedido de urgência, incidindo especialmente sobre matérias importantes, acaba por enfraque-cer o trabalho das comissões permanentes, diminuindo, por conseguinte, os incen-tivos para uma participação mais ativa nestes órgãos.

A questão das comissões especiais é mais um mecanismo de amesquinhamento das atribuições das comissões permanentes. Projetos de emenda constitucional e proje-tos de código não tramitam em comissões permanentes. Ademais, matérias comple-xas, apreciadas por mais de 3 comissões permanentes, podem ser retiradas destas e enviadas para uma comissão especial, encarregada unicamente de proferir pare-cer sobre tais matérias. Uma comissão especial difere de uma permanente pelo fato de ser constituída apenas para dar conta da tarefa especificada no momento de sua criação, isto é, trata-se de comissão ad hoc cuja membership é escolhida caso a caso.

O ponto central é que a composição das comissões especiais pode ser mani-pulada pelos líderes, responsáveis pela indicação de seus membros, independen-temente de expertise no tema em apre-ciação, apenas para dar aquiescência às finalidades do governo. As decisões de uma comissão permanente, contudo, para cuja montagem algum grau de dedicação e especialização nos temas pertinentes é pressuposto de seus membros, não são de fácil manejo por parte das lideranças do bloco governista.

A facilidade de se pedir urgência para a tramitação dos projetos de interesse do governo e a prática de montagem de comissões especiais diminuem dramati-camente os incentivos para que os par-lamentares, governistas ou de oposição, participem do processo decisório, despro-vidos que são de um lócus a partir do qual sua contribuição possa ser levada em consideração. Impõe-se, portanto, por um lado, rediscutir os critérios tanto de indicação de tramitação especial para pro-jetos, restringindo, por exemplo, o número

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destes que podem tramitar com urgên-cia em um mesmo intervalo de tempo, ou o tamanho do apoio necessário para aprovar a urgência constitucional; e, por outro, permitir, às comissões permanentes, a apreciação de projetos de emenda cons-titucional e de código, além de aumentar os requisitos de complexidade, tendo em vista criar uma comissão especial.

Por último, a questão dos incentivos de carreira. Como vimos nas primeiras seções deste trabalho, a prática do presidencialismo de coalizão leva o chefe do Executivo a compartilhar com vários partidos, e não apenas o seu, a formação do ministério. A consolidação da aliança entre partidos se faz, freqüentemente, mediante a nomeação de líderes partidários para os postos de primeiro escalão no Executivo – é comum, corriqueiro, que parlamentares deixem sua cadeira no Legislativo para cumprir funções como ministro. A Constituição brasileira permite que um deputado ou senador se licencie do mandato a fim de exercer cargos no ministério; da mesma forma, um parlamentar pode concorrer às eleições municipais, através do mesmo mecanismo da licença, sem por em risco sua cadeira no Congresso.

O baixo custo com que os congres-sistas podem, mediante a disputa eleitoral ou nomeação, se lançar a experiências políticas alternativas ao Legislativo reduz a taxa de permanência dos políticos no órgão representativo. Menores taxas de permanência levam a menor investimento dos membros na própria Casa. Uma Casa legislativa forte depende de representantes comprometidos com a tarefa de repre-sentar, compromisso que advirá como decorrência natural do estabelecimento de critérios mais rígidos de licenciamento do Legislativo.

Evidentemente, não se está propondo pura e simplesmente que os parlamentares que vierem a aceitar convites para ocupar postos no Executivo desistam de seus man-datos, mas sim que regras mais restritivas sejam estabelecidas, tais como, limitar a quantidade de vezes que um parlamen-tar poderá se licenciar do exercício do mandato sem perder a cadeira. Em suma, o que se pede é a delimitação mais clara das fronteiras entre o mundo da represen-tação e outros lócus de exercício do poder político, tornando maior o incentivo para que políticos que logram obter mandatos representativos canalizem suas energias, seu tempo e inteligência no fortalecimento do Poder Legislativo.

Em suma, ampliação das prerroga-tivas das comissões permanentes, assim como o aumento do poder de alocação do Congresso e a delimitação das carreiras legislativas devem informar o espírito de uma eventual mudança institucional no Poder Legislativo, tendo como desiderato a configuração de um perfil mais ativo, assim como o incremento de sua capa-cidade de gerar, armazenar e distribuir informações pertinentes ao processo deci-sório em políticas públicas.

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NOTAS1 Nos próximos parágrafos, sigo a análise que consta em Santos, 2000 e 2002.

2 Ver, a respeito, Pessanha, 1997, e Figueiredo e Limongi, 1999.

3 O estudo pioneiro sobre o presidencialismo de coalizão é de Abranches, 1988. Desenvolvimentos recentes podem

ser encontrados em Figueiredo e Limongi, 1999; Amorim Neto, 2000; Meneguelo, 1998 e Santos, 2003b.

4 O texto que segue é inspirado em Santos, 2003a .

5A literatura sobre o troca-troca de partidos já é bastante consolidada. Bons exemplos são Lima Jr.,1993, Nicolau

1996 e Melo, 2000; Meneguelo, 1998 e Santos, 2003b.

6Ver, nesta linha de análise, Polsby, 1968; Packenham, 1970; Loewenberg e Patterson, 1979, Mezey, 1985.

7 Os principais trabalhos nesta linha são Mayhew, 1974; Ferejohn, 1974; Fiorina, 1977; Shepsle, 1979; Weingast e

Marshall, 1983; e, Cain, Ferejohn e Fiorina, 1987.

8 Ver Gilligan e Krehbiel, 1987; Krehbiel, 1991; Brady e Volden, 1998.

9 Os trabalhos mais importantes nessa tradição são Kiewiet e McCubbins, 1991; Rohde, 1991; Cox e MacCubbins,

1993; e, Sinclair, 1995.

10 Ver Figueiredo e Limongi, 1999; Pereira e Mueller, 2000; Carvalho, 2003; Amorim Neto e Santos, 2003.

11 Percebam que não se trata apenas de permitir que as comissões proponham emendas, mas de conferir a elas a

prerrogativa de avaliar os programas de receita e despesa existentes e que vierem a ser propostos para todos os

ministérios, segundo a área de especialização de cada comissão.

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FABIANO SANTOS

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ENSAIO

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Tipologias são difíceis de construir. Tão difíceis de construir quanto fáceis de serem criticadas e rejeitadas. Em geral, tipologias não conseguem dar conta de todas as dimensões e variações do obje-to sob estudo no interior da teoria que a informa. A construção de tipologias pede a identificação de características essenciais do objeto, características capazes de estru-turar e dar sentido à diversidade da rea-lidade observada. Trata-se de organizar o mundo empírico no interior de um modelo teórico abrangente. O marco teórico sugere - quando não determina - a escolha das características relevantes para distinguir e classificar os casos.

Modelos de Legislativo: o Legislativo Brasileiro

em Perspectiva ComparadaPor isto mesmo, tipologias são tão

facilmente criticadas, posto que acabam por evidenciar as limitações e fraquezas dos modelos teóricos que estão na origem de sua construção. Na medida em que precisam abarcar todo o universo de casos sob consideração, acabam por ser um desafio para as pretensões das proposições teóricas ao testarem sua capacidade de enfrentar os casos difíceis ou limites.

Não faltam tipologias do Poder Legislativo. Cada uma delas organizadas a partir de um referencial teórico específico e, desta forma, enfatizando certas caracte-rísticas como distintivas dos modelos ou

* Professor livre docente do CEBRAP / ** Cientista Política CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise a Planejamento)

ENSAIO* FERNANDO LIMONGI / ** ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

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tipos de legislativo existentes. Neste artigo, não pretendemos fazer uma resenha crí-tica das tipologias disponíveis. Tampouco proporemos ou defenderemos uma tipo-logia própria. Nossos objetivos são bem mais modestos. Pretendemos, tão somente, resgatar uma das tipologias disponíveis, possivelmente a mais consagrada e citada, a saber, aquela proposta por Polsby (1975). Após discutirmos esta tipologia, mostramos como propostas mais recentes, como as de Cox e Morgenstern (2002), se defrontam com dificuldades similares.

Nosso objetivo não é o de submeter essas tipologias a um exame detalhado. Como dissemos, não é difícil criticar tipo-logias. Nosso objetivo é usar as tipolo-gias propostas para aprendermos algo relevante sobre modelos de organiza-ção dos trabalhos legislativos. Assim, após reconstituir as tipologias propostas por Polsby e, com menor atenção, a de Morgenstein e Cox, mostramos as limita-ções e as conseqüências de ambas para nosso entendimento de como funcionam e que papel desempenham os legislativos no interior de regimes democráticos.

Nossa discussão, no entanto, a despeito de se iniciar com estas abordagens mais abrangentes, será direcionada para o debate nacional. Isto é, nossa principal preocupação é derivar deste exercício de análise comparada algum conhecimento relevante para o entendimento do nosso – o brasileiro – modelo de poder legislativo. Para tanto, será necessário deixar o debate dos modelos teóricos para examinar sua prática.

A partir deste exame empírico e com base nas críticas derivadas das discussões dos modelos resenhados, passamos a considerar a forma de organização do legislativo brasileiro. Argumentaremos

que as variáveis chaves para entender a variação dos legislativos, aqui como nos países que são tomados como modelos paradigmáticos, estão ligadas à distribuição dos direitos e recursos no interior do legislativo, especialmente, aqueles que garantem o controle da agenda legislativa. O essencial é saber quem define o que, como e quando matérias serão objetos de deliberação.

As decisões em assembléias legislati-vas são tomadas de acordo com o princípio majoritário, isto é, em última instância pre-valece a vontade da maioria do plenário. No entanto, ainda que a vontade soberana resida no plenário, é raro que as delibera-ções, no sentido forte do termo, tenham lugar ali. Em geral, o plenário tão somente referenda decisões tomadas em uma outra instância ou instâncias. Nestes termos, pode-se dizer que o plenário delega o poder deliberativo, permanecendo com o poder de intervir e afirmar sua prerrogativa sempre que a maioria acreditar que sua vontade esteja sendo contrariada.

De maneira geral os trabalhos legis-lativos se organizam em torno de duas ins-tituições básicas: as comissões parlamenta-res e as organizações partidárias. Cada uma dessas instituições torna possível cumprir as funções básicas das assembléias legis-lativas: a representativa e a propriamente legislativa, isto é, a produção de leis que vão definir as políticas públicas.

Em tese, a divisão do trabalho por comissões permitiria maior especialização e o desenvolvimento de capacidade téc-nica, visando aumentar a qualidade das decisões legislativas. A atuação das orga-nizações partidárias, por outro lado, garan-tiria a correspondência entre as decisões tomadas e as preferências da sociedade aí representadas. Em termos ideais, essas

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FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

duas instituições se complementariam para garantir que as decisões tomadas pela assembléia legislativa sejam as melhores e as mais representativas.

Em assembléias específicas, porém, o papel de uma ou outra dessas instituições tende a preponderar, embora essa pre-ponderância nunca chegue à eliminação do elo mais fraco. A conhecida tipologia de Polsby (1975) se ancora, justamente, na contraposição entre legislativos cujos trabalhos se baseiam mais fortemente nas comissões, àqueles em que o elo mais forte é controlado pelos partidos. Como notado acima, cabe observar que em ambos os casos o poder decisório é deslocado do plenário para uma outra instância, quais sejam, as comissões ou os partidos. Em outras palavras, o plenário delegaria a estas instâncias o poder deliberativo em sentido forte e funcionaria, em ambos os casos, apenas como uma instância que apenas referendaria as decisões tomadas nos verdadeiros loci de poder.

Como uma parcela considerável das análises comparativas, a tipologia de Polsby parte do contraste entre formas de governo:

“Nas democracias modernas, os legisla-tivos variam significativamente de acordo com as diferentes maneiras que estão inseridos nos seus sistemas políticos. A diferença mais óbvia é, naturalmente, a constitucional, a distinção entre os sis-temas parlamentaristas e os sistemas de separação de poderes”. (Polsby, 1975: 274/275).

Como é usual na literatura compa-rada, os Estados Unidos e a Inglaterra são tomados como os casos paradigmáticos, respectivamente, de presidencialismo e parlamentarismo1. A conseqüência deste

ponto de partida é a associação entre legislativos organizados em torno do sistema de comissões, com o presiden-cialismo, e aqueles em que prevalecem as organizações partidárias, com o parlamen-tarismo.

Como mostraremos adiante, esta associação entre modelos de legislativo e formas de governo é indevida. Pior: car-rega consigo expectativas e preconceitos que enviesam as análises. As conseqüên-cias destes equívocos são evidentes no caso brasileiro, uma vez que as expectati-vas geradas pelas concepções subjacentes à tipologia de Polsby estão na raiz dos modelos de legislativo que habitam as mentes e os corações de analistas e atores políticos. Na realidade, ao aprofundar-mos o entendimento destas concepções, podemos notar suas ambigüidades com relação ao papel que reservam ao legis-lativo em um sistema presidencialista. Ao tempo que se espera um legislativo forte e independente como uma conseqüência necessária da separação de poderes, credi-ta-se ao legislativo, sempre que ele afirma sua independência, o papel de obstáculo conservador e paralisante às ações do Executivo.

Nestes termos, como já salientamos acima, recorreremos a uma discussão da tipologia de Polsby para aprofundar o tratamento que dispensamos ao modelo brasileiro, buscando assim afastar precon-ceitos a seu respeito. No entanto, para demonstrar este ponto, se faz necessário aprofundar a apresentação dos dois modelos polares considerados por Polsby.

A tipologia proposta por Polsby combina a distinção das formas de governo com a variação da influência que forças externas exercem sobre o corpo legislativo. O autor acredita que é possível dispor as

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legislaturas de governos democráticos em um contínuo, de acordo com o grau de influência externa que sofrem.

Em um extremo do espectro se encon-trariam os Legislativos Transformativos, aqueles que:

“Possuem, e exercem com freqüência, capacidade independente de moldar e transformar em leis propostas de qualquer origem. O ato de transformação é crucial porque ele postula o significado da estru-tura interna do legislativo, da sua divisão, interna de trabalho e das preferências de políticas dos vários legisladores. Para explicar a produção legislativa não basta apenas saber quem propôs o que e quão imperativamente, mas também quem pro-cessou o que no interior do legislativo, quão entusiasticamente e — quão compe-tentemente”. (Polsby, 1975: 277)

Em oposição a este modelo, Legislativos Arenas são definidos como aqueles que:

“Servem como espaços formalizados para

a interação das forças políticas relevantes na vida de um sistema político; quanto mais aberto o regime, mais variada, mais representativa e mais responsivas as forças que têm entrada nessa arena. Essas forças têm origem no sistema de estratificação social ou mesmo, como na idade média, nos estamentos do reino (...)

A existência de legislativos arenas deixa sem resposta a questão de onde reside o poder que de fato se expressa nos atos legislativos - se no sistema partidário (como é o caso nos vários sistemas democráticos modernos), ou no sistema de estratificação, na burocracia ligada ao rei, nos barões, no clero, ou em qualquer outro grupo”. (pág 277/278)

Tendo definido estes dois tipos polares, Polsby passa a caracterizá-los de forma mais detalhada e completa. Nesta

operação, o autor relaciona os traços distintivos dos parlamentos dos Estados Unidos e da Inglaterra à sua tipologia. Por exemplo, quanto aos Legislativos Transformativos, Polsby nota que “um sistema efetivo de comissões pode bem ser um pré-requisito para a independên-cia de um corpo legislativo, uma vez que por meio dele o legislativo pode colher os benefícios de uma divisão de trabalho – por exemplo, continuidade de interesse e expertise – ao colocar sua marca sobre a política pública” (278)2.

Os termos empregados nesta pas-sagem – um sistema de comissões efetivo e independente – pedem comentários adi-cionais. Um sistema de comissões efetivo é aquele em que o plenário desempenha um papel limitado na elaboração legislativa. O verdadeiro trabalho legislativo, a delibera-ção em sentido forte, ocorre nas comissões na medida em que estas controlam a tra-mitação das matérias sob sua jurisdição. O plenário tem poderes limitados para avocar a si uma matéria, retirando-a da comissão para a qual foi inicialmente distribuída.

Sendo assim, legisladores sabem que pertencer à Comissão de Agricultura, para dar um exemplo, é a condição necessária para ser capaz de influenciar a política agrícola. A distribuição dos parlamentares pelas comissões é ditada pelo interesse eleitoral de cada um, com pequena ou nenhuma influência dos partidos. Assim, para continuar com o exemplo, buscam – e conseguem – fazer parte da Comissão de Agricultura os parlamentares eleitos por distritos em que estes interesses são real-mente relevantes para seus eleitores. Não seria de se esperar que um deputado eleito por um distrito primordialmente urbano, digamos a cidade de Nova York, queira fazer parte da Comissão de Agricultura. É apenas razoável supor que este deputado

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hipotético procure entrar na comissão que trate de assuntos bancários.

Parlamentares, portanto, se distri-buem pelas comissões de acordo com seus interesses eleitorais. Os partidos não controlam a entrada ou a permanência dos membros nas comissões. A tendência é o parlamentar ter uma longa carreira no interior de uma comissão. Sobretudo porque o poder no interior das comissões é distribuído de acordo com o tempo de permanência nas mesmas. Vale a regra da seniority.

Combinadas essas duas coisas, o controle sobre a iniciativa legislativa na área de sua jurisdição com o incentivo à permanência dos parlamentares em uma comissão, entende-se porque as comissões se tornam os centros de poder. Parlamentares, ao longo de suas carreiras, se especializam nas matérias que estão sob a jurisdição de sua comissão. As comissões reúnem especialistas e se tornam depositárias de experiência e conhecimentos nas suas respectivas áreas de políticas.

A independência, portanto, por con-traste ao caso inglês, se refere às influên-cias externas: aos partidos e à estratificação social. A elaboração da legislação é ques-tão interna corporis. Mas envolve algo mais: a independência frente ao Executivo. Nestes termos entende-se porque Polsby as vê como condição necessária para a independência do legislativo vis a vis os partidos e, sobretudo, o executivo.

Cabe notar que o tipo Legislativo Transformativo é inteiramente construído tomando por base o caso norte-americano. Polsby chega inclusive a discutir detalhes do papel desempenhado pelos Rules Committee nos anos sessenta e setenta para bloquear reformas como as relacionadas aos direitos civis. Conquanto a discussão

do Legislativo Arena também eleja o Parlamento inglês como seu tipo mais acabado, Polsby discute outros casos de países parlamentaristas europeus, como Holanda, Suécia, Alemanha, França e Bélgica. Admite assim que os legislativos em regimes parlamentaristas podem variar, afastando-se do caso inglês. É difícil entender que os casos discutidos possam de fato ser dispostos em um contínuo como quer nos fazer ver Polsby. Voltaremos à variação de legislativos sob parlamentarismo adiante.

No momento, por ser mais relevan-te para a discussão do Brasil, cabe frisar que o contínuo imaginado por Polsby seja habitado apenas por países parlamentaristas. Na linha que vai da Inglaterra (Legislativo Arena) aos Estados Unidos (Legislativo Transformativo) não há casos de países presidencialistas. A sugestão é clara: o único modelo possível de legislativo sob presidencialismo é aquele presente nos Estados Unidos.

A sugestão é tanto mais forte quando se atenta para o fato de outros países presidencialistas não estarem totalmente ausentes de sua discussão. Polsby faz apenas algumas poucas referências a outros países presidencialistas quando discute o papel de legislativos em regimes autoritários (em sua tipologia, o termo é regimes fechados e especializados). Nestes casos, legislaturas não têm propriamente um papel a desempenhar na elaboração das leis, são meras carimbadoras das decisões tomadas em outras instâncias, em geral, pelo executivo. São legislativos de fachada e a grande indagação acaba sendo entender porque não são simplesmente abolidos.

Ou seja, o que fica implícito é que o presidencialismo sob democracia requer legislativos “institucionalizados”, para usar um termo caro a Polsby, como o

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americano. Se o legislativo não afirmar sua independência frente ao executivo e aos partidos, organizando-se, então, de acordo com o modelo de comissões, este poder não desempenhará seu papel constitucional. Esta perspectiva se torna problemática quando levamos em consideração a tendência da literatura especializada em países do terceiro mundo a atribuir ao poder legislativo um papel conservador. Legislativos, para usar a linguagem da época, constituem-se em obstáculos à mudança social. Isto porque as forças conservadoras são sobre-representadas no legislativo. De acordo com Packenham:

“No mundo inteiro, legislativos tendem a representar interesses mais conservadores e paroquiais do que os executivos, mesmo nas sociedades democráticas... Nas socie-dades que precisam e querem mudanças (...) pode não fazer sentido fortalecer o poder decisório de uma instituição que provavelmente resistirá mais a mudanças”. (citado por Mezey, pag 750)

Esta tese, na realidade, é bastante conhecida no Brasil e figura com destaque nas explicações para a própria crise de 1964. O conflito político entre um Congresso conservador e um Executivo modernizante e reformador foi considerado por muitos analistas como um dos motivos centrais que teria levado à queda do regime de 1946. Desde então, esta tese tem sido reformulada e adaptada às mais diversas contingências.

Nas últimas décadas, no interior do movimento neo-institucionalista, este argu-mento perdeu sua tradução social imedia-ta para se transformar em um modelo de conflito puramente institucional. O regime presidencialista seria inferior ao parlamentarista porque não teria formas institucionais de resolver o conflito entre o legislativo e o executivo. Sob presiden-

cialismo, o legislativo e o executivo são eleitos por regras eleitorais específicas, de onde segue que representam interesses diversos. Assim, quaisquer sejam estes interesses, conflitos entre o executivo e o legislativo são praticamente inevitáveis. A probabilidade de que o executivo não encontre apoio para suas iniciativas no interior do legislativo cresce com a frag-mentação partidária. Presidencialismo e multipartidarismo são uma “combinação difícil” (Mainwaring, 1993).

Na elaboração da tipologia de legisla-tivos na América Latina, Cox e Morgenstern, como Polsby, partem dos tipos polares relacionados aos dois sistemas “puros” de governo: o parlamentarismo inglês e o presidencialismo norte-americano. Em contraste com Posby, no que se refere ao parlamentarismo, os autores descon-sideram suas variações internas. Dada a presença do voto de confiança e a possibi-lidade de queda do governo, há, em todo e qualquer legislativo sob parlamentarismo, incentivos para que os partidos assegurem a unidade nas votações em plenário. Para isso, os líderes dispõem de instrumentos de controle da agenda no parlamento – definem quando e quais projetos serão votados. Ou seja, os partidos da coalizão majoritária atuam como “coalizões pro-cedimentais” que lhes permitem proteger os seus membros de votos embaraçosos e evitar divergências públicas no interior da coalizão, garantindo, assim, unidade no plenário. Dessa forma, “os partidos parlamentares unificam o executivo e a assembléia, refletindo, de um lado, a confiança que os parlamentares têm nos líderes que escolheram (...) e, de outro, a necessidade de se organizar fortemente em apoio ao executivo. (...) O executivo, e não apenas atores legislativos, exercem o poder de agenda” (Cox e Morgenstern, 2002: 462-64).

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Quanto ao presidencialismo, os auto-res distinguem dois tipos, o dos Estados Unidos e os da América Latina. Quanto ao primeiro, haveria completa separação de poderes e o controle da agenda seria exercido por atores legislativos no interior do próprio congresso. Está claro que há estreita correspondência deste caso com o legislativo transformativo conforme definido por Polsby. Da mesma forma, o Legislativo Arena é generalizado para todos os gover-nos parlamentaristas. Há, tão somente, um deslocamento do elemento externo, que em Polsby era o partido e em Cox e Morgentern é o executivo. Ou seja, nesta última tipologia, o elemento chave é dado pela relação entre o legislativo e o execu-tivo. No presidencialismo americano, o poder de alterar o status quo legal, a capa-cidade transformativa, estaria nas mãos do próprio legislativo. No parlamentarismo, o executivo que deteria esse poder. As carac-terísticas básicas desses sistemas de gover-no determinam a capacidade de cada um dos poderes de fazer leis.

A contribuição mais original dos autores, portanto, estaria na tentativa de acomodar legislativos da América Latina a esta tipologia. Isto se faz pela criação de um terceiro tipo, um tipo intermediário, os Legislativos Reativos. A característica distintiva do presidencialismo latino-americano, em contraposição ao dos Estados Unidos, é que a separação de poderes não é total. Nesses países, à semelhança dos países parlamentaristas, o executivo participa diretamente do processo legislativo: tem o poder de propor e, além disso, pode agir unilateralmente.

Os legislativos latino-americanos, portanto, reagem ao executivo. Não rea-gem, porém da mesma forma. Cox e Morgenstern elaboram quatro subtipos de legislativos que são classificados de acordo com a sua disposição em negociar com o

executivo. Temos, dessa forma, os legisla-tivos “recalcitrantes”, “viáveis” (workable), “venais ou paroquiais” e “subservientes”. Os autores não esclarecem o que deter-mina essa disposição, mas argumentam que ela varia em função da composição partidária do legislativo, mais especifica-mente, do nível de apoio ao presidente que, por sua vez, determina as estratégias do presidente.

Tendo em vista o tamanho de sua base parlamentar, o presidente antecipa as reações do legislativo e utiliza, em função disso, os poderes de que dispõe. Para os autores, a estratégia ótima do executivo varia de acordo com os seguintes pode-res: 1. autoridade para regulamentar ou interpretar; 2. autoridade para indicar ministros, juízes e outros altos postos, em geral com a aprovação do congresso; 3. delegação explícita do poder de legislar; 4. poderes de decreto com força de lei, inclu-sive para situações de emergência, quando pode suspender as liberdades civis; 5. poderes pára-constitucionais de decreto, “que permitem ao presidente mudar leis usando a caneta ou a espada” (Cox e Morgenstern, 2002: 460-1).

Combinando o tipo de presidente ao tipo de legislativo, formam-se pares de tipos de executivo-legislativo: 1. “pre-sidente imperial-legislativo recalcitrante”; 2. “presidente nacionalmente orientado-legislativo paroquial”; 3. “presidente de coalizão-legislativo viável”; e, finalmente, 4. “presidente dominante-legislativo sub-serviente”. Nos extremos estão presidentes sem maioria parlamentar ou com ampla maioria. Os que enfrentam maiorias hostis, os presidentes imperiais, adotam estraté-gias de ação unilateral, usando seus pode-res “de formas constitucionalmente pro-vocativas”. No outro extremo, presidentes dominantes, antecipando assembléias sub-servientes, ditam as regras e as políticas.

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Os dois tipos intermediários referem-se a presidentes que contam com apoio médio no legislativo e, por essa razão, procuram negociar com o legislativo o curso das políticas. O que diferencia os dois tipos são as moedas de troca utiliza-das na barganha pelo apoio parlamentar. Estas compreendem: benefícios particu-laristas (patronagem e pork); posições ministeriais; concessões sobre políticas e poderes de agenda. Assembléias com-postas por parlamentares clientelistas delegam ampla autoridade ao executivo para que este defina políticas nacionais. Por sua vez, a combinação de “presi-dente de coalizão” com assembléias “viáveis” ocorre quando presidentes lide-ram coalizões que incluem atores legislativos, buscam implementar políticas de coalizões por meio de legislação ordinária e desenham estratégias que visam aprovar leis por meio de seus aliados no legislativo. O legis-lativo, deste modo, se envolve no pro-cesso de formulação de políticas (Cox e Morgenstern, 2002: 451-455).

Sendo assim, para esses autores, no presidencialismo latino-americano não existe a possibilidade de que uma maio-ria parlamentar dê seu apoio ao execu-tivo pela simples razão de pertencer ao mesmo partido e, portanto, ter os mes-mos interesses em políticas. Da mesma forma, poderes institucionais de agenda não podem ser utilizados por delegação de uma maioria parlamentar. O uso de poderes unilaterais, como o poder de decreto com força de lei, é associado a governos minoritários, a presidentes “politicamente fracos” (2002: 450).

Há, portanto, uma dificuldade analí-tica de se trabalhar com presidencialismos que se distanciam do caso norte-ameri-cano. O suposto é que, sendo os poderes

legislativo e executivo poderes distintos, devem ter vontades políticas distintas. Os poderes são constitucionalmente separa-dos e deveriam permanecer ou evoluir nesta direção. Se não o fazem é porque, ou o poder executivo é demasiadamente forte, ou o legislativo fraco, ou ambos. A possibilidade de cooperação ou identi-ficação política entre ambos os poderes, tomada como natural e óbvia sob parla-mentarismo, é concebida como expressão de uma patologia.

Tome-se como exemplo o recurso aos poderes de decreto presidencial, como as Medidas Provisórias no Brasil. Os auto-res desconsideram a possibilidade do exe-cutivo recorrer a esse mecanismo institu-cional com apoio majoritário, ou quase majoritário, especialmente em governos de coalizão. O poder de legislar por decre-to pode ser visto como um instrumento útil para solucionar problemas de “barganhas horizontais” entre o governo e a maioria parlamentar que o apóia. Assim, em vez de se configurar como um mecanismo institucional para contornar a vontade da maioria ou subjugar o legislativo, pode ser um poderoso dispositivo em prol das maio-rias governistas, protegendo-as dos efeitos de medidas impopulares, que afetem bases eleitorais específicas, e preservando os acordos políticos entre o governo e a coa-lizão que o apóia no legislativo. Aliás, é assim que poderes de agenda em governos parlamentaristas são tratados por Cox e Morgentern. Por que maiorias só poderiam delegar poderes ao executivo em governos parlamentaristas?

Do ponto de vista normativo, isto é, dos modelos almejados de poder legisla-tivo, desenha-se, desta forma, uma expec-tativa ambígua, quando não pura e sim-plesmente contraditória, quanto ao papel

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FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

a ser desempenhado pelo poder legislativo em regimes presidencialistas. O legislativo é forte, institucionalizado, independente quando se constitui em uma força autô-noma capaz de se opor ao executivo. Ao mesmo tempo, considera-se que o Legislativo é um obstáculo às mudan-ças, barrando as propostas presidenciais. Assim é que, quando o legislativo afirma seu poder e sua independência, rejeitando propostas do executivo, teríamos o que normalmente se nomeia como crise de governabilidade. Se o legislativo aprova as propostas do executivo, teríamos um Legislativo subserviente e atrofiado.

O fato é que os juízos sobre o Legislativo no Brasil são marcados pelas ambigüidades dos modelos usados como referência. O Legislativo no Brasil é, por vezes, rotulado de fraco por não participar decisivamente da elaboração das leis, sendo visto como um mero carimbador das iniciativas do Executivo. Por vezes, a visão se inverte completamente e o Legislativo passa a ser visto como um obstáculo instransponível. Se as “reformas” não avançam, o problema é a resistência do Legislativo, quaisquer sejam as reformas e seu estágio de elaboração. O Legislativo chega a ser responsabilizado por deter até mesmo as reformas que nem sequer são formuladas. A lei da antecipação dos resultados explicaria tal fato: se o Executivo antecipa que suas propostas serão barradas pelo Legislativo, por que apresentá-las?

O ponto, portanto, que estamos pro-curando deixar tão claro quanto possível é que há uma ambigüidade no interior dos modelos com que usualmente se trabalha ao pensar legislativos em regimes presi-dencialistas. Ao tomar os Estados Unidos como paradigma, acredita-se que, sob presidencialismo, legislativos deveriam ter

capacidade para ser a fonte independente e autônoma das iniciativas de alteração do status quo legal. Isto é, se há separação de poderes, cabe ao legislativo legislar, afir-mando assim sua preponderância sobre o poder executivo. Mas se for assim, e aqui o outro lado da moeda se revela, o conflito entre poderes leva a um impasse institu-cional que não teria solução no interior do modelo de separação de poderes. Este conflito será tanto maior quanto maior o número de partidos com representação no Congresso e quanto mais as forças con-servadoras forem capazes de controlar o processo decisório. Em sendo as comissões fortes, tanto maior a capacidade das mino-rias de barrar as pretensões da maioria. A previsão, dentro deste quadro, é que o conflito institucional, sobretudo quando presidentes são fortes, resolva-se de duas formas: ou por um golpe de estado ou pela subordinação do poder legislativo ao executivo3.

As tipologias resenhadas não usam as mesmas variáveis quando passam do parlamentarismo para o presidencialismo, e quando passam dos Estados Unidos para a América Latina. A análise do Legislativo norte-americano toma como relevante a sua organização interna, a forma como os direitos legislativos de propor, emendar, determinar o ritmo da tramitação das maté-rias e usar a informação são distribuídos de forma a tornar as comissões os verdadei-ros focos de poder. A descentralização é vista como a resposta ótima de um Legislativo que se pretende autônomo, capaz de resistir e se opor ao Executivo.

No caso do parlamentarismo, o foco se volta, em uma versão, para referências externas ao legislativo: partidos e classes sociais. Na outra versão, o poder legis-lativo se reduz ao poder de manter ou

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derrubar o governo. A sua participação efetiva na elaboração das leis ou a estrutu-ra interna do poder legislativo são descon-sideradas. Estes pontos não são discutidos porque, talvez, se dê como necessário que sob parlamentarismo o Legislativo seja necessariamente centralizado, e que a participação no processo decisório seja necessariamente indireta4.

O fato é que legislativos sob parla-mentarismo não são todos iguais. Há varia-ções em aspectos fundamentais, mesmo no que se refere ao direito de introdução de moções de censura ou confiança pelo plenário. Da mesma forma, o completo controle que o Gabinete inglês tem sob a agenda dos trabalhos não é encontra-da em todos os regimes parlamentaristas. Os casos mais conhecidos de executivos sem este poder sob parlamentarismo são Itália do pós-guerra e a Terceira e Quarta República na França.

Já no caso dos legislativos latino-ame-ricanos, a caracterização é feita a partir de sua participação no processo de elabora-ção de leis. Como em geral a proposição de leis cabe ao executivo, os legislativos latino-americanos são definidos como rea-tivos. Varia a forma como reagem ao exe-cutivo e esta variação independe de seu formato organizacional, sendo atribuída apenas às preferências partidárias e por tipo de políticas da maioria dos legislado-res induzidas pelas leis eleitorais. Ou seja, a tipologia desconsidera os aspectos inter-nos ao próprio legislativo. Considera ape-nas o efeito das leis eleitorais para definir o tipo de reação às propostas do executivo.

Como se vê, as classificações pro-postas são antes descritivas que analíticas. Para cada caso, identifica-se a variável que melhor o descreveria e a tipologia é adaptada de forma a aproximar o modelo daquilo que o conhecimento convencional estabelece sobre os casos. Características

como o controle da agenda pelo executivo trocam de sinais, passam de positivas para negativas, conforme o caso. A organização interna do legislativo, a forma como esta se relaciona com a definição das agendas do trabalho, o que, quando e como se votam as matérias é a variável central para enten-der a variação dos modelos. A forma de governo é menos importante.

Passemos à apresentação dos traços que caracterizam o Poder Legislativo no Brasil. Nosso objetivo é mostrar, de forma tão sucinta quanto possível, como o processo decisório é organizado e, com base nesta descrição, apontar para uma forma de entender a participação do Legislativo no processo decisório que escape das ambigüidades notadas acima. O caso brasileiro não corresponde quer ao modelo norte-americano, quer ao modelo inglês. Como discutido acima, o expediente de classificá-lo como híbrido ou intermediário de um Legislativo Reativo deve ser rejeitado. Trata-se simplesmente de um modelo organizacional diverso.

Para que o ponto fique claro, é útil retornar ao momento histórico em que este modelo se estruturou, o final dos trabalhos constituintes, quando ganham corpo duas tendências contraditórias. De um lado, a Constituição de 1988 procurou fortalecer o sistema de comissões, dotando-as da prerrogativa de aprovar legislação “ter-minativamente”. Pelo chamado “poder terminativo das comissões”, certas maté-rias podem ser definitivamente aprovadas pelas comissões permanentes sem a mani-festação explícita do plenário. Ou seja, por meio deste expediente, o texto constitucio-nal procurou explicitamente descentralizar o processo decisório, dotando as comis-sões de poder autônomo.

No entanto, tal tentativa chocou-se frontalmente com a prática centralizado-ra que se estabeleceu ao final do próprio

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FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

processo constituinte. A agenda de vota-ções passou a ser coordenada pela Mesa e pelo Colégio de Líderes. O papel de destaque destas duas instâncias na estrutu-ração do processo decisório foi incorpora-do pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados, votado em 1989.

De um lado, portanto, uma ten-dência à valorização das comissões e de seu trabalho autônomo, de outro, uma centralização dos trabalhos legislativos a partir de uma agenda decisória acor-dada pelos líderes dos partidos. A questão é saber qual destas duas tendências prevaleceu. A reposta é clara: a centralização dos trabalhos prevaleceu em detrimento do desenvolvimento das comissões como instâncias decisórias autônomas.

A preponderância do poder dos líde-res partidários sobre as comissões se reve-la de maneira clara quando se analisa o papel do Colégio de Líderes e das comis-sões na tramitação das matérias. Comissões têm impacto sobre o resultado do processo legislativo quando se constituem em rota obrigatória para a aprovação das matérias. De fato, matérias tramitando em regime ordinário são remetidas às comissões a quem, em primeira instância, caberia defi-nir seu destino. A autonomia das comis-sões é afetada quando as matérias sob sua jurisdição são avocadas pelo plenário, por meio da aprovação de um requeri-mento para tramitação urgente. Aprovado o requerimento, o projeto é retirado da comissão e, independente desta ter ou não iniciado a apreciação da matéria, votado em poucos dias com fortes restrições à apresentação de emendas em plenário. Em geral, os requerimentos de urgência são acordados em reuniões do Colégio de Líderes, coordenadas pelo Presidente da Mesa. Submetidos ao plenário, raramente são rejeitados.

O fato é que a grande maioria das matérias transformadas em lei tramita em regime de urgência. De 1989 a 2001, 50% das leis aprovadas tramitaram em regime de urgência do legislativo. Esta proporção aumenta para 56% se considerarmos ape-nas os projetos do Executivo. Este faz uso bem mais comedido da urgência constitu-cional a que tem direito: apenas 10% das leis sancionadas tramitaram em regime de urgência por solicitação do Executivo. A grande maioria das urgências solicitadas pelos líderes partidários ocorreu sem que as comissões tivessem concluído os seus pareceres. No período de 1989 a 1994, 85% das leis que tramitaram em regime de urgência foram votadas em plenário sem que pareceres emitidos pelas comissões tivessem sido apresentados. Além disto, a aprovação de um requerimento de urgên-cia corresponde, praticamente, à aprova-ção da matéria. De outra parte, o poder terminativo das comissões raramente é usado. Apenas 10% das leis são aprovadas por poder terminativo.

Ou seja, o processo legislativo no Brasil é centralizado na Mesa e no Colégio de Líderes. O plenário referenda o que é decidido pelos líderes. A decisão crucial diz respeito à escolha dos projetos que serão objeto de um requerimento de urgência. Neste momento decide-se que matérias passarão a integrar a pauta dos trabalhos e quais, portanto, têm chances de serem aprovadas. Matérias que não recebem tratamento diferenciado dos líderes têm chances escassas de se tornar lei. Em uma palavra: a deliberação, em sentido forte, se dá no interior destas instâncias decisórias.

No interior da Câmara dos Deputados, a Presidência da Mesa é, sem dúvida algu-ma, o cargo politicamente mais importan-te. O presidente detém quase que exclu-sivamente a coordenação dos trabalhos

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ENSAIO

legislativos. As prerrogativas do presidente da Mesa na coordenação dos trabalhos legislativos e na direção das sessões plená-rias são amplas e extensas, garantindo-lhe grande influência nos resultados do pro-cesso legislativo, pois podem afetar o fun-cionamento das comissões e o desenrolar dos trabalhos em plenário.

Duas dessas prerrogativas o presi-dente da Mesa compartilha com os líderes de bancadas: a designação dos membros das comissões e a definição da agen-da legislativa. Em realidade, os líderes partidários controlam a composição das comissões, uma vez que são responsáveis pela indicação e substituição, a qualquer momento da legislatura, dos membros das comissões permanentes e de todos as demais comissões temporárias, inclusive as Comissões Parlamentares de Inquérito. Nomeiam também os membros da Câmara e do Senado para a formação das comis-sões mistas que apreciam as medidas pro-visórias e o orçamento.

O papel de destaque dos líderes partidários não depende exclusivamen-te do Colégio de Líderes. Sua influência na determinação da pauta dos trabalhos depende também das vantagens que lhe são conferidas para efeitos de apresenta-ção de requerimentos, pedidos de des-taques, apresentação de emendas etc. Nestes casos, a manifestação do líder é tomada como manifestação de sua ban-cada. Assim, os líderes se encontram em posição privilegiada para influenciar na direção dos trabalhos legislativos.

O poder dos líderes se expressa ao longo de toda a tramitação das matérias. Por exemplo, votações nominais são testes cruciais para a unidade das coa-lizões legislativas. Muitas vezes, membros de uma coalizão têm que votar medidas

que contrariam os interesses diretos e ime-diatos dos seus eleitores. No entanto, no caso das matérias em que o regimento não obriga a ocorrência de votações nominais, somente os líderes partidários têm condi-ções de apresentar requerimentos forçan-do a que a decisão seja por voto nomi-nal. Mesmo os líderes não podem fazê-lo indiscriminadamente. Para que sucessivos pedidos de votação nominal não sejam usados para obstruir os trabalhos, em favo-recimento à minoria, requerimentos só são acolhidos uma hora após o encerramento da última votação nominal. A oposição, portanto, deve escolher as medidas que quer ver votadas nominalmente e a situ-ação conta com recursos para se proteger de votações embaraçosas.

Portanto, os líderes partidários, incluindo o Presidente da Mesa entre os líderes partidários, contam com armas poderosas para definir a agenda dos tra-balhos. Com os recursos regimentais com que contam, são eles que definem o que, quando e de que forma matérias chegam e são votadas pelo plenário. Estes poderes de agenda decorrem da forma como o Poder Legislativo é organizado. São desta forma independentes, do ponto de vista institucional, dos poderes legislativos do Executivo. Ainda assim, seus efeitos só podem ser compreendidos quando ana-lisados no interior das relações entre o Executivo e o Legislativo.

O Executivo brasileiro é institucio-nalmente forte. A Constituição lhe con-cede a prerrogativa exclusiva de propor alterações do status quo legal nas princi-pais matérias, como taxação, orçamen-tação e alteração da burocracia. E onde não tem poder exclusivo, o presidente não está impedido de iniciar legislação. Ou seja, nas demais matérias, o Executivo e

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FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDOFERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

o Legislativo têm prerrogativa concorren-te para propor legislação. Mesmo nestes casos, o Executivo é dotado de vantagens adicionais, dadas pela urgência constitu-cional5 e poder de decreto (as medidas provisórias).

Portanto, o presidente é de jure o principal legislador do país, em que pese este ser um sistema em que os poderes são separados no que se refere à sua ori-gem e sobrevivência. O direito de propor, no entanto, não assegura automaticamen-te sucesso. Matérias são aprovadas pela maioria dos legisladores e, por extensos que sejam os poderes legislativos presiden-ciais, este não pode aprovar legislação sem a aprovação expressa da maioria.

Nem mesmo a reedição continuada de MP`s, possível até a promulgação da Emenda Constitucional 32, em setembro de 2001, permitia ao presidente ir contra os interesses da maioria. Pedia o apoio tácito da maioria, uma vez que esta sempre poderia rejeitar uma MP. Tal possibilidade não é uma mera hipótese, uma vez que em momentos cruciais, como na apreciação do Plano Collor, o PMDB conseguiu reunir maiorias dispostas a rejeitar MP`s tidas por fundamentais pelo governo. O fato é que nem mesmo o poder de decreto permite que o Executivo legisle sem o apoio da maioria.

Os dados relativos à produção legis-lativa no Brasil falam por si só. O Executivo é não apenas o principal legislador de jure. É também o principal legislador de facto. Desde a promulgação da Constituição de 1988, a taxa de sucesso do Executivo, isto é, a proporção de projetos aprovados sobre o total de enviados, gira em torno de 90%. Rejeições pelo Legislativo dos projetos enviados pelo Executivo são fatos raros: não mais que 10%. Além disto, a produção legislativa é claramente domi-

nada pelo Executivo: do total de 3043 leis aprovadas entre 1989 e 2001, 86% foram propostas pelo Executivo.

Os dados relativos a sucesso e domi-nância do Executivo em países parlamen-taristas não são muito diversos. Isto signi-fica que eles não devem ser lidos como indicativos de que o Legislativo brasileiro é meramente reativo ou atrofiado. O sucesso presidencial depende da sua capacidade de obter cooperação do Legislativo, de contar com o apoio da maioria dos legis-ladores.

Já notamos o papel da Mesa e dos Líderes na tramitação das matérias. Em realidade, no mais das vezes o poder de agenda dos líderes é usado em favor do Executivo. Isto pode ser visto quando se nota que a maioria dos projetos aprovados em tramitação urgente foi proposta pelo Executivo. A agenda de propostas legisla-tivas do Executivo conta com o poder de agenda dos líderes para ser aprovada.

O fato dos líderes e do Executivo contarem com poderes que lhes permite definir e controlar a agenda dos trabalhos não lhes permite usurpar o poder da maio-ria. O Executivo tem sucesso em suas iniciativas legislativas porque conta com o apoio da maioria. Empiricamente, este apoio se traduz em votos de acordo com a indicação do líder do governo nas vota-ções nominais. Desde a promulgação da Constituição, deputados filiados a partidos que fazem parte da base de sustentação do governo votam com o governo em 90% das votações. As variações por governo e partido são pequenas.

A base de sustentação do governo é formada pelos partidos que recebem pastas ministeriais. Em outras palavras, presidentes “formam governo” de maneira análoga a primeiros ministros em siste-mas parlamentaristas pluripartidários. Ao

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receber uma pasta ministerial, um partido passa a participar da definição da política do governo e, desta forma, enquanto mem-bro do governo deve apoiar estas mesmas políticas quando elas são votadas pelo Legislativo.

Nestes termos, a centralização do pro-cesso decisório no interior do Legislativo e os poderes legislativos do presidente são traços institucionais independentes. No mais das vezes, funcionam como elemen-tos complementares, fornecendo as bases institucionais do que em outra oportuni-dade chamamos de presidencialismo de coalizão6.

Do ponto de vista do Legislativo, a centralização dos trabalhos aumenta o seu poder de barganha. Ao delegar poderes aos líderes partidários, os membros do Legislativo estão coordenando suas ações, canalizando suas demandas de uma forma centralizada7. Muito provavelmente, nego-ciações caso a caso e levadas a cabo de maneira descentralizada levariam a solu-ções inferiores.

O Legislativo brasileiro não se apro-xima de qualquer dos modelos clássi-cos. Comparadas às comissões legislativas norte-americanas, nossas comissões são fracas. Estão longe de ser unidades autôno-mas e responsáveis pela gestação de polí-ticas na área de sua jurisdição. Tampouco cabe se falar em um modelo em que todo o poder de propor é monopolizado pelo executivo, como é o caso do gabinete inglês.

Como vimos, se alguma coisa, o modelo brasileiro se aproxima mais do último caso do que do primeiro. É um modelo diverso de preponderância do exe-cutivo que repousa sobre a centralização dos trabalhos legislativos. Reconhecer tal fato não implica em defini-lo como uma forma deturpada de presidencialismo.

Os poderes constitucionais do Executivo, juntamente com a organização centralizada do Legislativo, permitem a ação concertada do Executivo e dos líde-res partidários que pertencem à coalizão de governo. Isto porque os poderes de agenda, nos dois sentidos apontados por Cox, ou seja, como “o poder de colocar e tirar projetos de lei da agenda do plenário” e como “o poder de proteger esses proje-tos de emendas” (2000) são controlados pelo Executivo e pelos líderes partidários. Com isto, a coalizão governista tem os meios institucionais necessários à promo-ção da cooperação entre o Legislativo e o Executivo, neutralizando o comportamen-to individualista dos legisladores.

Não há dúvidas de que o sistema partidário brasileiro é fragmentado e que a legislação eleitoral cria incentivos para que os deputados persigam objetivos par-ticularistas. No entanto, tomados individu-almente, os legisladores não têm acesso aos meios necessários para influenciar legislação e as políticas públicas. Só podem fazê-lo como membros de partidos que se reúnem em dois grandes grupos: situação e oposição.

Tipologias ou modelos de legislativo, como procuramos mostrar, são fortemente influenciados pelos casos tidos como clássicos: Inglaterra e Estados Unidos. Aspectos normativos confundem-se com traços descritivos. O que é se confunde com o que deve ser. O parlamento inglês é visto como o modelo de legislativo em governos parlamentaristas. O americano, com sua forma acabada em sistemas presidencialistas. Para a maioria dos analistas, é difícil compreender os casos que evoluem em direção diversa.

ENSAIOENSAIO

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FERNANDO LIMONGI / ARGELINA CHEIBUD FIGUEIREDO

NOTAS1“O contraste entre legislativos transformativos e arenas captura muitas das diferenças que os estudiosos observam

na discussão dos dois grandes legislativos que servem de modelo para os legislativos da maioria dos países no

mundo, o britânico e o americano. Sendo os legislativos nos demais países mais frequentemente uma adaptação do

que uma cópia, acho que é útil contemplar esses dois casos clássicos como tendendo a extremos de um continuum

mais do que metades de uma dicotomia como é frequentemente proposto” (Polsby, 1975: 280/281).

2Em outra passagem, Polsby afirma: “A existência de um sistema de comissões pode ser uma condição necessária

para a independência legislativa” (1975: 279).

3 Alguns autores acreditam ainda que o presidencialismo só será viável onde e quando presidentes forem

constitucionalmente fracos, isto é, dotados de limitados poderes legislativos. Somente sob esta condição presidentes

teriam incentivos para negociar e ou se submeter às vontades do Legislativo. Esta é a posição de Shugart e Carey,

1992.

4 Indireta, porque se dá por meio da ameaça do voto de censura que pode levar à queda do governo. Logo, o

governo, ao propor, deve levar em consideração a vontade da maioria.

5 A urgência constitucional difere da urgência legislativa discutida acima. É uma decisão unilateral do executivo,

que define prazos limites para a apreciação das matérias.

6 Ver o Capítulo 1, “Bases institucionais do presidencialismo de coalizão”, de Figueiredo e Limongi, 1999.

7 O argumento completo sobre as estratégias de cooperação do parlamentar individual e seu interesse em fortalecer

o partido e votar disciplinadamente pode ser encontrado no mesmo capítulo citado acima (Figueiredo e Limongi,

1999: 34-35).

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Referências

COX, Gary. 2002. “On the Effects of Legislative Rules”. Legislative Studies Quarterly. 25 (2).

COX, Gary e MORGENSTERN, Scott. 2002. “Epilogue: Latin America’s Reactive Assemblies and Proactive Presidents” in Scott Morgenstern e Benito Nacif (orgs.), Legislative Politics in Latin America. Cambridge, Cambridge University Press.

FIGUEIREDO, Argelina C. & LIMONGI, Fernando. 1999. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.

MEZEY, Michael L. 1983. “The functions of Legislatures in the Third World” in Gerhard Lowenberg, Samuel C. Patterson e Malcolm E. Jewell (orgs) Handbook of Legislative Research, Cambridge, Harvard University Press.

POLSBY, Nelson W. 1975. “Legislatures”in Fred I. Greenstein e Nelson W. Polsby. (orgs.) Handbook of Political Science. Reading, Mass.: Addison-Wesley.

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CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA* CARLOS RANULFO MELO / ** FÁTIMA ANASTASIA

Representação e Democracia no Cone Sul

IntroduçãoEste artigo discute a democracia em

quatro países da América do Sul, a saber, Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, sob o ângulo da representatividade de seus arranjos institucionais1. O fato de que as democracias contemporâneas sejam regi-mes representativos não nos deve fazer esquecer que democracia e representação são fenômenos analiticamente distintos. No mínimo, como bem chama a atenção Santos (1998:208), não se pode ignorar a hipótese “de que existam pelo menos duas descendências de regimes representativos – oligárquicos e democráticos – com carac-terísticas e dinâmicas próprias”. Mais ainda,

é possível recorrer ao formato do arranjo representativo para que, à maneira de Dahl, possamos estabelecer distinções entre o grau de poliarquização das democracias contemporâneas. Se “uma característica chave da democracia é a contínua respon-sividade do governo às preferências dos cidadãos” (Dahl,1997:25), segue-se que, quanto maior o grau de inclusividade no que se refere a atores/conteúdos e formas de organização de determinado arranjo representativo, mais democrático poderá ser considerado o regime.

Neste texto, procuraremos verificar o quão densamente democrático é o arranjo representativo nos países em questão. Por

ENSAIO

* Cientista Político da UFMG / **Professora do Departamento Político da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

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densidade democrática da representação entendemos “um atributo da democracia que envolve duas dimensões: a primeira refere-se ao método de constituição do órgão decisório e à sua composição (Sartori, 1994); a segunda relaciona-se aos instrumentos e procedimentos através dos quais a representação é exercida. Quanto maior for a densidade democrática da representação, mais a ordem política se aproxima da realização dos princípios centrais da democracia, a saber: igualdade política e soberania popular” (Anastasia e Melo, 2002).

Como se sabe, a ciência política registra um profícuo debate entre o que se convencionou chamar de duas visões de democracia. De um lado, autores como Schumpeter (1984) e Sartori (1996) argumentam que os arranjos institucionais de tipo majoritário, por propiciarem, com muito mais freqüência que os de tipo proporcional, governos unipartidários, legislativos pouco fragmentados e maior concentração de poderes nas mãos da maioria vitoriosa, seriam mais conducentes à estabilidade política e à eficácia governativa. Lijphart (2003), por sua vez, sustenta que arranjos conducentes à dispersão de poderes entre os atores políticos, como os de tipo consensual, não necessariamente devem ser vinculados à ineficácia governativa e à instabilidade, ainda que seja correto associá-los a regimes mais representativos ou, como mostra Powell (2000), a regimes políticos nos quais o quantum de representação autorizada presente nas decisões é significativamente mais expressivo2.

Na visão de Lijphart (2003), a dis-persão de poderes entre a pluralidade de atores que se constituem na dinâmica societal e se fazem representar na arena

política pode ser um objetivo dos arran-jos democráticos. Para o autor, a escolha do arranjo institucional deve levar em conta as condições sob as quais tais ins-tituições deverão operar. Uma vez que se trate de processar conflitos em sociedades complexas, heterogêneas e marcadas por profundas desigualdades, regimes de tipo consociativo/consensual seriam recomen-dáveis, inclusive do ponto de vista da esta-bilidade. O aparente paradoxo explica-se uma vez que, em tais tipos de sociedade, a manutenção da ordem democrática reivin-dicaria arranjos mais inclusivos e capazes de incorporar a diversidade e a pluralidade de interesses e preferências existente.

As democracias sul-americanas sempre foram mais tendentes à disper-são do que à concentração de poder. Historicamente prevaleceram a separação formal de poderes, a representação propor-cional, o bicameralismo e os governos de coalizão. Recentemente, a tendência foi acentuada com a emergência de sistemas multipartidários e a introdução de elei-ções diretas para prefeitos e governadores em diversos países3. Em conseqüência, a combinação entre presidencialismo, repre-sentação proporcional e multipartidarismo tornou-se comum, sem que necessaria-mente se registrassem os efeitos perver-sos previstos na literatura4.

Neste texto tomamos como ponto de partida que a estabilidade da democracia nas complexas sociedades sul-america-nas encontra-se associada ao grau de pluralidade e institucionalização de seus instrumentos de participação e represen-tação política. Isso implica em assumir a necessidade de um arranjo representativo densamente democrático, ou seja, capaz de distribuir recursos de poder entre os atores relevantes no processo decisório – executivo, legislativo e cidadãos.

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CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

PaísSistema de governo

Organização política

Existência de eleições diretas para:

Executivo Nacional

Executivo Estadual

Executivo Municipal

Todas as

cadeiras na

Câmara Baixa

Todas as

cadeiras na

Câmara Alta

Argentina Presidencial Federalismo Sim Sim Sim Sim Sim

Brasil Presidencial Federalismo Sim Sim Sim Sim Sim

Chile Presidencial Unitário Sim Sim Sim Sim Sim

Uruguai Presidencial Unitário Sim Sim Sim Sim Sim

Nas duas próximas seções compara-mos a densidade democrática da represen-tação nos países selecionados. Primeiro, examinamos a extensão em que o mecanis-mo eleitoral é utilizado para a designação de governantes e legisladores nos diversos níveis, bem como o método de constitui-ção dos poderes Executivo e Legislativo nacional. A seguir, analisamos a relação existente entre as Câmaras Alta e Baixa e a maneira como são compostas as comissões permanentes no Congresso. Na conclusão, ordenamos os países segundo a densidade democrática de seus arranjos representati-vos e, à luz da discussão realizada, tece-

mos um breve comentário sobre a questão da reforma política no Brasil.

Eleições e constituição dos órgãos decisórios

O primeiro indicador a ser analisado refere-se à extensão com que o mecanismo da eleição direta é utilizado para a escolha dos tomadores de decisão nos diversos níveis. Como lembra Manin (1997), um governo representativo tem como primeiro princípio que os governantes sejam eleitos pelos governados. Através da Tabela 1 podemos verificar até que ponto tal princípio é adotado nos quatro países em questão.

Tabela 1

Sistemas de governo, organização política e poderes de constituição de governantes

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ENSAIO

Os quatro países em questão são presidencialistas e possuem um Congresso bicameral. Enquanto Argentina e Brasil são federações, Chile e Uruguai são unitários. Em todos os casos, os presidentes são eleitos diretamente. Na Argentina, a eleição direta é recente; até 1989, o presidente era eleito de forma indireta por um colégio eleitoral cujos eleitores eram escolhidos em 24 distritos plurinominais, sob as mesmas regras vigentes para a Câmara dos Deputados (Jones, 1997). No que se refere ao poder Legislativo, o Chile se destaca por possuir uma Câmara Alta dotada de baixa legitimidade democrática: são 9 senadores escolhidos de forma indireta para um mandato de 8 anos, além dos ex-presidentes que tenham exercido o cargo por seis anos ininterruptos, estes, em caráter vitalício. Também quanto a este aspecto, a Argentina mudou após a reforma constitucional de 1994. Até então os senadores eram eleitos de forma indireta, pelas assembléias provinciais, para um mandato de nove anos.

Brasil e Argentina têm os seus executivos estaduais e municipais eleitos diretamente. Entre os portenhos, merece destaque a instituição de eleições diretas para a prefeitura de Buenos Aires, a partir de 1994. No Uruguai, os governos departamentais (correspondentes aos estados brasileiros) são diretamente eleitos e possuem autoridade sobre os executivos municipais5. No Chile, a constituição determina que os governadores são de exclusiva confiança do Presidente da República. A não realização de eleições diretas para governadores e prefeitos, além de restringir os espaços de disputa política, concentra poderes nas mãos do Presidente da República, negando-os aos cidadãos.

As próximas tabelas irão permitir que iniciemos a análise dos procedimentos

que informam a constituição dos poderes Executivo e Legislativo no plano nacional. Na Tabela 2 encontram-se organizados os dados sobre o processo de escolha do Presidente da República. O primeiro ponto refere-se à adoção das primárias. Eleições internas, fechadas ou abertas, para a escolha de candidatos a presidente, além de diminuir a concentração de poderes das mãos das lideranças partidárias – em especial em países que utilizam a lista fechada e bloqueada – atuam no sentido de adensar a representação. A medida torna mais inclusivo o regime democrático ao aumentar o número de pessoas com algum poder na definição das alternativas colocadas à votação. O caso mais notável é o do Uruguai onde, desde 1996, a lei determina que todos os partidos realizem eleições internas no último domingo do mês de abril anterior às eleições gerais (Freidenberg e López, 2002). Na Argentina o mecanismo chegou a ser aprovado no Senado, mas teve a efetivação suspensa no contexto da crise que se seguiu ao fim do governo De La Rua. No Chile e no Brasil, a questão não é regulamentada, mas a Concertacion por la Democracia tem realizado primárias abertas desde 93, enquanto no Brasil, o PT costuma utilizar o mecanismo para definir candidatos a governador e/ou prefeito. Em 2002 o partido realizou prévias para definir o candidato presidencial.

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CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Tabela 2

Mecanismo de constituição da Presidência da República

Naquela que foi a única modificação destinada a reduzir a concentração dos poderes nas mãos do Executivo chileno, a duração do mandato presidencial diminuiu de oito para seis anos, após o fim da ditadura pinochetista. Na Argentina, como resultado do “Pacto de Olivos”, firmado entre Raul Alfonsin e Carlos Menem, o mandato presidencial passou de seis para quatro após 1994, ao mesmo tempo em que foi admitida a reeleição do presidente. No Brasil, as duas medidas não foram articuladas. O mandato de quatro anos foi definido por Emenda Constitucional de Revisão, em 1994, e a reeleição, para todos os cargos executivos, em 1996, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Não obstante a reeleição haver sido, nos dois países, introduzida de modo a beneficiar governos em curso, a medida pode se mostrar benéfica ao sistema

PaísMecanismo

de escolha do candidato

Mandato FórmulaCoincidência com eleições legislativas

Coincidência com eleições subnacionais

Reeleição

Argentina

Internas abertas

normatizadas por lei

4 anos 2º turno, se ninguém alcança 45% dos válidos

Não Não Sim

BrasilNão há

definição legal4 anos Maioria

absolutaSim Apenas para

governadorSim

ChileNão há

definição legal 6 anos Maioria

absolutaNão Não Não

Uruguai

Internas abertas

normatizadas por lei

5 anos Maioria absoluta

Sim Não Não

político, uma vez que estimula a operação de mecanismos de accountability.

Os quatro países utilizam o segundo turno nas eleições presidenciais. De acordo com a literatura (Carey e Shugart, 1992; Mainwaring e Shugart, 1997), eleições em dois turnos podem diminuir o efeito redutor da eleição majoritária sobre o número efetivo de partidos no Congresso. Mas, por outro lado, a medida contribui para a representatividade do sistema e confere maior legitimidade aos eleitos. Chile e Brasil adotavam a eleição por pluralidade, no período democrático anterior a seus respectivos regimes militares. Na Argentina, o segundo turno foi introduzido em 1994. No Uruguai, a novidade data de 1996, quando o país alterou o seu sistema eleitoral, abandonando o chamado “duplo voto simultâneo”. Até então, o eleitor escolhia um partido e, no interior deste,

Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul

62

ENSAIO

uma das listas apresentadas. As listas competiam entre si e eram capitaneadas pelo seu candidato à Presidência da República, secundado pelos postulantes ao Senado e à Câmara dos Deputados. Os votos das diversas listas eram então somados e computados a seus partidos, de acordo com a “ley de las lemas”. A disputa presidencial era vencida pelo partido que conquistasse a maioria simples dos votos, depois de feito o somatório das listas (Nohlen, 1993). O procedimento gerava distorções acentuadas. Em 1994, a soma dos votos dados aos candidatos do Partido Colorado permitiu que Julio Sanguinetti fosse eleito com 24,7% dos votos, contra 30,6% de Tabaré Váquez, da Frente Ampla. Após a reforma eleitoral, cada partido passou a lançar um candidato, escolhido em eleições internas abertas.

Um último traço institucional que merece atenção no âmbito das eleições presidenciais é o calendário eleitoral, que pode ser organizado de forma a propiciar a realização de eleições concomitantes ou não, para diferentes cargos executivos e/ou legislativos. No Brasil e no Uruguai, as eleições para Presidente e Congresso são realizadas no mesmo dia. No primeiro caso, a coincidência estende-se ainda às eleições para governadores, de forma que apenas os pleitos municipais são realizados em data distinta. No Uruguai, eleições nacionais e departamentais foram separadas após 1996. No Chile, as eleições para os poderes Executivo e Legislativo coincidem apenas a cada doze anos, uma vez que a duração dos mandatos é diferenciada. Na Argentina, como a renovação do Congresso se realiza em duas etapas, existe uma coincidência parcial.

Assim como na questão do segundo turno, e de acordo com os mesmos autores, eleições não coincidentes entre os poderes Executivo e Legislativo nacionais fazem

com que a disputa majoritária não tenha qualquer influência na conformação do número efetivo de partidos no Congresso. Por outro lado, um calendário eleitoral assim organizado permite que os eleitores maximizem diferentes clivagens e/ou diferentes identidades em diferentes pleitos, com impacto positivo sobre a representatividade.

A não coincidência das eleições pode ter impacto ainda sobre a formação e manutenção das coalizões governativas. Dependendo do desempenho do(s) partido(s) no governo, eleições solteiras para o legislativo podem acarretar a perda da maioria numérica necessária para a aprovação de sua agenda. Obviamente, o inverso é também verdadeiro: um presidente minoritário pode ter sua base legislativa ampliada via eleições, como conseqüência do reconhecimento de um bom governo por parte dos cidadãos. Novamente, o ponto pode ser lido sob outro ângulo, que não apenas o da estabilidade. Como afirmam Santos, Anastasia e Melo (2004), “eleições intercaladas facultam aos cidadãos maiores chances de utilizarem as urnas como mecanismos de accountability vertical, já que lhes permitem sinalizar suas avaliações para os representantes no momento em que alguns mandatos ainda estão curso, e não apenas quando todos os cargos estão em disputa. Os governantes poderão ‘ouvir as urnas’ e, se possível, fazer as correções de rumos que estão sendo “demandadas pelos eleitores”.

As Tabelas 3 e 4, a seguir, permitem introduzir a discussão sobre o método de constituição das duas casas legislativas. Tradicionalmente, os quatro países aqui analisados sempre utilizaram a represen-tação proporcional na sua Câmara baixa, ficando a diferença para a composição do Senado. Sob a ditadura militar, o Chile mudou o sistema eleitoral utilizado para a Câmara dos Deputados.

63

CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Tabela 3

Eleições para a Câmara dos Deputados

PaísSistema eleitoral

Tipo de circunscrição e

magnitude

Estrutura do voto e fórmula

Cláusula de barreira

Argentina

Representação proporcional.

24 distritos correspondendo às províncias.

Magnitude entre 2 e 35.

Lista fechada e bloqueada (definida

nas províncias). D´Hondt.

3% do eleitorado na

província.

Brasil

Representação proporcional.

27 distritos correspondendo aos estados. Magnitude

entre 8 e 70.

Lista aberta. D’Hondt. Quociente eleitoral estadual.

Chile

Majoritário com

mecanismo de correção

proporcional.

60 distritos binominais.

Lista aberta.Lista majoritária obtém 2

cadeiras se conseguir mais que o dobro de

votos da segunda lista.

Inexistente

Uruguai

Representação proporcional.

19 distritos correspondendo

aos departamentos. Magnitude entre

2 e 47.

Lista fechada e bloqueada. D’Hondt

modificada.

Inexistente.

Fonte: Banco de dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul.

Tabela 4

Eleições para o Senado

País Sistema EleitoralTipo de circunscrição e

magnitudeEstrutura do voto e

fórmula

ArgentinaMajoritário, com

correção proporcional.3 senadores por

província e 3 por Buenos Aires.

Segunda lista recebe a terceira cadeira.

BrasilMajoritário. 3 senadores por estado,

com renovação parcial (dois e um).

Votação preferencial. Sem mecanismo de

transferência.

Chile

Majoritário com correção proporcional.

2 por região + 9 membros nomeados.

Lista majoritária obtém 2 cadeiras se conseguir mais que o dobro de

votos da segunda lista.

64

ENSAIO

Uruguai

Representação proporcional.

30 cadeiras em um distrito nacional.

Lista fechada e bloqueada por facção

endossada pelos líderes. Transferência de voto no âmbito do partido.D’Hondt modificada.

Uruguai e Chile são casos de bica-meralismo congruente, ou seja, utilizam o mesmo método eleitoral para a consti-tuição das duas casas legislativas, repre-sentação proporcional no primeiro caso e majoritário com correção proporcional no segundo. Em ambos os casos, as circuns-crições eleitorais são diferentes para cada câmara. No caso do Uruguai, os senadores são eleitos em uma única circunscrição nacional, enquanto a Câmara Baixa é constituída a partir de circunscrições ter-ritoriais correspondentes aos departamen-tos. Na constituição do Congresso chileno, são delimitadas circunscrições – 19 para o Senado e 60 para a Câmara – que não correspondem a divisões territoriais.

Os dois países destoam flagrante-mente no que diz respeito ao sistema eleitoral adotado para as duas casas. No Uruguai temos uma representação quase perfeitamente proporcional, uma vez que no complexo processo de distribuição de cadeiras (Nohlen, 1993) os votos dados aos partidos são computados nacionalmente e não existem cláusulas de barreira – o valor médio do índice de desproporciona-lidade (D) para as eleições da Câmara dos Deputados após a redemocratização é de apenas 0,766.

O Chile utiliza distritos binominais com a peculiaridade de que a segunda cadeira pertence ao segundo partido mais votado, sempre que este obtiver mais de

um terço dos votos. A classificação do sistema eleitoral chileno é controversa. Nicolau (1996) prefere tratá-lo como pro-porcional, apesar de reconhecer o seu viés majoritário. Autores como Nohlen (1993), Tavares (1994) e Blais e Massicote (1996) classificam-no como uma variante dos sistemas majoritários devido aos distritos de baixa magnitude, os quais, como se sabe (Shugart e Taagepera, 1989), ten-dem a gerar resultados menos proporcio-nais. De fato, o valor de D nas eleições para a Câmara dos Deputados chilena, desde 1989, atinge uma média de 14,2, valor muito elevado se comparado ao do Uruguai e superior àqueles encontrados para o Brasil e a Argentina, no mesmo perí-odo – 8,4 e 13,5, respectivamente (Santos, Anastasia e Melo, 2004).

Optamos por classificar o sistema eleitoral chileno como majoritário, ainda que reconhecendo a existência de um mecanismo de correção proporcional. A razão para tanto, ademais da pequena magnitude do distrito, está nos resultados gerados pelo sistema. Tal como nos regi-mes distritais puros, onde a magnitude é igual a 1, o sistema eleitoral chileno induz a uma estrutura de competição bipolar e à conformação de uma maioria e uma mino-ria. A diferença é que, nos primeiros, a con-formação dos dois grandes blocos deve-se à distribuição do eleitorado, enquanto no caso chileno, graças à existência de duas cadeiras e ao método de distribuição ado-

Fonte: Banco de dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul.

65

CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

tado, o espaço para a minoria encontra-se preservado desde o distrito7.

Brasil e Argentina possuem um bicameralismo incongruente, sendo o Senado composto por meio de diferentes modalidades de majoritarismo. Nos dois casos, as circunscrições para ambas as casas são coincidentes e correspondem aos estados. Os dois países elegem três senadores por estado e pela capital, mas os mecanismos são distintos. No Brasil a renovação do Senado se realiza em duas etapas, de forma que ora é eleito um representante por estado, ora são escolhidos dois. Neste último caso, o majoritarismo é atenuado, uma vez que a eleição não se realiza em bloco: embora cada partido lance dois candidatos, não há transferência de voto no interior da legenda, sendo considerados eleitos os candidatos que individualmente obtiverem mais votos, independentemente da sigla partidária. Na Argentina, o sistema admite um mecanismo de correção proporcional: das três cadeiras em disputa, duas são reservadas ao partido que obtenha o maior número de votos e a terceira cadeira, ao segundo colocado.

Nos dois países, a proporcionalidade para a Câmara dos Deputados é restringida pelo fato de que os cálculos para a distribuição das cadeiras são realizados com base nos votos obtidos nos estados, não sendo prevista uma cota extra que, a partir da votação nacional dos partidos, possa compensar as distorções. A Argentina adota ainda uma cláusula de barreira de 3% no nível das províncias. No Brasil, o quociente eleitoral estadual – que varia de 1,4% em São Paulo até 12,5% nos 11 estados de menor magnitude – funciona como uma cláusula, uma vez que os

partidos que não o tenham alcançado são excluídos da disputa pelas sobras. A legislação brasileira permite ainda a realização de coligações para as eleições proporcionais, com a peculiaridade de que as cadeiras conquistadas não são distribuídas proporcionalmente à votação de cada membro da coligação – os partidos coligados contam como uma só legenda e a transferência de voto é realizada em seu interior indistintamente, o que permite que a manifestação do eleitor por um partido seja computada em benefício de outro8.

Finalmente, cabe mencionar as diversas modalidades de voto adotadas. O Uruguai adota a lista fechada e bloqueada, composta de forma distinta, caso se trate do Senado ou da Câmara dos Deputados. Para o primeiro, ainda prevalece a “ley de las lemas”: os partidos podem apresentar mais de uma lista, cabendo ao eleitor esco-lher uma delas. O mecanismo das sublis-tas foi abolido para a Câmara Baixa9. Na Argentina, para a Câmara dos Deputados, a lista é ordenada nas províncias e não nacionalmente. Utilizando os critérios de Carey e Shugart (1995), a estrutura do voto nestes países seria a que menos incenti-vos forneceria a que os congressistas se preocupassem com a reputação pessoal vis a vis a reputação partidária. Os líderes – nacionais, no caso uruguaio, e regionais, no caso argentino – possuem completo controle sobre a lista: ao eleitor é permi-tido apenas um voto no partido de sua escolha, e a transferência dos votos é rea-lizada no âmbito do partido, favorecendo os primeiros colocados na lista.

Chile e Brasil adotam a lista aberta. Os líderes partidários possuem controle sobre sua elaboração, mas não a ordenam. No caso chileno, tanto para o Senado

66

ENSAIO

como para a Câmara, trata-se de uma lista composta por dois candidatos, cabendo ao eleitor escolher um dos nomes. A votação de cada candidato é computada para o partido e os que conseguirem mais votos em cada lista serão eleitos – feita a ressalva de que o nome mais votado da segunda lista ganha a segunda cadeira, se esta obtiver mais de um terço dos votos. No Brasil, as listas são formuladas nos estados e podem conter tantos nomes quantas forem as cadeiras em disputa, mais 50%. O eleitor pode votar no candidato de sua preferência ou marcar a legenda partidária. De toda forma, o voto é computado para o partido para efeito da definição do número de cadeiras, sendo eleitos os mais votados em cada lista estadual 10. Dado o grande número de competidores nas listas – nos menores estados cada partido pode lançar até 12 candidatos e em São Paulo, mais de cem – o sistema brasileiro fornece muito mais incentivos que o chileno para que o deputado procure cultivar sua reputação individual junto aos eleitores.

Relação entre as Câmaras, comissões e organização interna do poder legislativo

Como se pode perceber na seção anterior, os quatro países aqui analisados revelam diferentes combinações entre o tipo de divisão política – unitarismo ou federalismo – e o bicameralismo. Trata-se, agora, de buscar avaliar quais são os padrões existentes de interação entre as duas câmaras e como são distribuídos atribuições e recursos entre os parlamentares, explorando-se tais relações do ponto de vista de seus possíveis efeitos sobre a distribuição dos poderes de agenda e de veto entre os atores.

Para tanto, serão mobilizados os seguintes indicadores: a) grau de simetria entre as duas câmaras; b) caráter congruente ou incongruente do bicameralismo quanto ao método de constituição das Casas Legislativas; c) composição e tamanho dos mandatos das duas câmaras; d) organização dos sistemas de comissões.

De acordo com Lijphart (1984, 2002), o bicameralismo pode ser simétrico ou assimétrico. A condição de simetria ocorre quando prevalece uma distribuição equilibrada de poderes e de atribuições entre as duas casas. Tal equilíbrio, por sua vez, não pressupõe que sejam conferidas as mesmas atribuições a ambas as câmaras.

67

CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Tabela 5

Indicadores de Simetria/Assimetria entre as duas Câmaras

Atribuição Argentina Brasil Chile Uruguai

Iniciativa Legal Simétricas Simétricas Simétricas Simétricas

Convocação de Plebiscito,

Referendo e Consulta Popular.

Privativo da Câmara dos Deputados.

Prerrogativa das duas Câmaras

em sessão conjunta.

A convocação de plebiscito é atribuição exclusiva do presidente da

República.

Privativo do Congresso Nacional.

Autorização para o presidente

declarar Estado de Sítio,

Emergência ou Calamidade

Pública.

Privativo do Senado.

Prerrogativa das duas Câmaras

em sessão conjunta.

Prerrogativa das duas Câmaras reunidas em

sessão conjunta.

Sem informação.

Nomeação e Destituição de Autoridades

Públicas.

Compete ao Senado aprovar

a escolha de autoridades públicas.

Compete ao Senado aprovar

a escolha de autoridades públicas.

Sem informação. Ambas as Câmaras em Assembléia.

Autorização para instauração de processo contra

Autoridades Públicas.

Privativo da Câmara dos Deputados.

Privativo da Câmara dos Deputados.

Privativo da Câmara dos Deputados.

Privativo da Câmara dos Deputados.

Processo e julgamento de Autoridades

Públicas.

Privativo do Senado.

Privativo do Senado.

Privativo do Senado.

Privativo do Senado.

Atribuições de Revisão de Matérias.

Simétricas. Simétricas. Comissão Mista e desequilíbrio a favor da Senado.

Ambas as Câmaras, em Assembléia.

Exame e Derrubada

do Veto Presidencial.

Simétricas. Prerrogativa das duas Câmaras reunidas em

sessão conjunta.

Simétricas. Prerrogativa das duas Câmaras reunidas em

assembléia geral*.

Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas Comparadas na América do Sul

* O Art. 38 da Constituição uruguaia diz que “ Cuando um proyeto de ley fuese devuelto por el Poder Ejecutivo[...] se convocará a la Asamblea General y se estará a lo que decidan los tres quintos de los miembros presentes de cada uma de las Cámaras, quienes podrán ajustarse a las observaciones o rechazarlas, mantendo el proyeto sancionado”.

68

ENSAIO

Como se pode perceber através da leitura da Tabela 5, não há variações quanto ao grau de simetria entre os países em tela no que se refere ao quesito da ini-ciativa legal: esta se encontra distribuída de forma simétrica entre as duas câmaras, nos quatro países, ainda que em todos os casos sejam designadas atribuições exclu-sivas a uma das câmaras, como ocorre, por exemplo, com a apresentação de leis tributárias e sobre recrutamento de tropas, cuja iniciativa é prerrogativa exclusiva da Câmara dos Deputados, na Argentina e no Chile, e com as leis sobre anistia e sobre indultos gerais, que, no Chile, só podem ter origem no Senado.

No que se refere à convocação de plebiscito, referendo ou consulta popular, observam-se variações dignas de menção: na Argentina esta é uma atribuição priva-tiva da Câmara dos Deputados, enquanto no Brasil e no Uruguai ela envolve neces-sariamente ambas as câmaras – reunidas em sessão conjunta, no primeiro caso, e em Congresso Nacional, no segundo. O Chile apresenta, neste quesito, uma peculiaridade que afeta negativamente o atributo da densidade democrática da representação, uma vez que apenas o pre-sidente da República detém a prerrogativa de convocar estes mecanismos de partici-pação direta dos cidadãos, nos interstícios eleitorais, o que desequilibra sensivelmen-te a distribuição dos poderes de agenda a favor do Poder Executivo.

Já o exame dos quesitos relacionados à nomeação, à instauração de processo, ao julgamento e à destituição de autoridades públicas permite constatar graus bastan-te expressivos de simetria entre as duas câmaras, nos quatro países, ademais de padrões similares e/ou idênticos de proce-dimentos, especialmente quando se trata

do julgamento de autoridades: em todos os países a autorização para instauração de processo é competência exclusiva da Câmara dos Deputados, ao passo que o processo e o julgamento, propriamente ditos, são atribuições do Senado.

A Argentina se distingue do Brasil e do Chile na questão relacionada à autorização para que o presidente mobilize os poderes emergenciais previstos nas Constituições desses países – estado de sítio, emergência ou calamidade pública. Enquanto na Argentina tal recurso é privativo do Senado Federal, no Brasil e no Chile ele pressupõe a deliberação em reunião conjunta das duas câmaras.

As atribuições de revisão das maté-rias iniciadas na outra câmara talvez sejam os mais relevantes indicadores dos graus de simetria entre as duas casas legislativas. Na Argentina e no Brasil essas atribuições são distribuídas de forma equilibrada entre as duas Câmaras, como se pode constatar pela leitura do Artigo 78 da Constituição da Argentina, e dos Artigos 65 e 66 da Constituição brasileira11. No Uruguai, o processo é conduzido pelas duas casas, em Assembléia. Já no Chile verifica-se a instituição de uma comissão mista, com-posta de igual número de senadores e de deputados, que tem a atribuição de propor soluções para os impasses que possam sur-gir na tramitação das matérias (conforme Artigos 67 e 68 da Constituição chilena). “O Chile, novamente, merece destaque: lá, a matéria de autoria do presidente que tiver sido rejeitada pela Câmara de origem poderá ser enviada à outra Câmara, por solicitação do presidente, diferentemente dos demais projetos que, uma vez rejeita-dos, não poderão ser reapresentados senão após um ano. Se a Segunda Câmara apro-var o projeto por dois terços de seus mem-

69

CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

bros presentes, ele voltará à Câmara de origem e este somente será considerado rejeitado se esta Câmara o reprovar com dois terços dos membros presentes (Artigo 65). Considerando a peculiar composição do Senado, que conta com nove membros indicados, parece correto afirmar que tal dispositivo desequilibra os poderes revisionais a favor do Senado sempre que este constituir a Câmara revisora” (Santos, Anastasia e Melo, 2004).

A Tabela 6 ajuda a caracterizar melhor o bicameralismo em cada um dos países. Nela, são agregados os dados sobre a composição numérica, os mandatos, o grau de simetria na distribuição de poderes e congruência ou não dos procedimentos que presidem a constituição das duas casas.

Tabela 6

Nº de membros, mandato, grau de simetria e congruência entre as casas legislativas

Países

Câmara Baixa Câmara Alta Distribuição de poderes

e atribuições entre as Câmaras

Método de constituição das Câmaras

Nº de membros

Mandato Nº de membros

Mandato

Argentina 257 4 anos 63 6 anos Simétrica Incongruente

Brasil 513 4 anos 81 8 anos Simétrica Incongruente

Chile 120 4 anos 47 8 anos Assimétrica Congruente

Uruguai 99 5 anos 31 5 anos Simétrica Congruente

Fonte: Banco de Dados Instituições Políticas da América do Sul (IUPERJ/UFMG).

O bicameralismo uruguaio combina simetria e congruência. No Brasil e na Argentina verifica-se a presença de um bicameralismo simétrico e incongruente, enquanto no Chile as duas câmaras são congruentes quanto ao método de sua for-mação e assimétricas quanto à distribuição de poderes, recursos e atribuições.

Algumas ponderações importantes merecem ser desenvolvidas quanto às pos-síveis combinações entre graus de simetria e a congruência ou incongruência do método de constituição do órgão decisó-rio. Por um lado, e seguindo os passos de Lijphart (1984, 2002), parte-se do suposto de que o bicameralismo simétrico é mais compatível com arranjos consociativos e

com a distribuição equilibrada de poderes entre as duas câmaras. Por outro lado, e discordando de Lijphart (2002:239), con-sidera-se que o arranjo mais conducente ao incremento da densidade democrática da representação é o bicameralismo con-gruente proporcional, por garantir mais e melhor a expressão plural das preferências que se organizam em torno de cada uma das clivagens que se fazem representar em cada câmara.

Argumenta-se, aqui, que a simetria de atribuições entre câmaras que sejam muito incongruentes quanto ao método de sua formação, que apresentem grandes discrepâncias numéricas e diferentes cir-cunscrições eleitorais pode, na verdade,

70

ENSAIO

ser indicativa de algum tipo de distorção que favoreça a expressão de clivagens e/ou identidades representadas em uma das câmaras, em detrimento daquelas cuja expressão institucional se dê através da outra câmara.

Como afirmam Anastasia e Melo (2002: 26), ao analisar o caso brasileiro, “a Câmara dos Deputados, considerados o número de seus membros e sua heterogeneidade, advinda da eleição via sistema de representação proporcional, é muito mais expressiva da diversidade e da complexidade presentes na sociedade brasileira do que o Senado Federal, constituído como fórum de processamento das clivagens regionais. Portanto, ao conceder ao Senado poderes revisores equivalentes àqueles concedidos à Câmara dos Deputados, a Constituição brasileira permite ao primeiro o poder de vetar decisões tomadas no âmbito da segunda, imiscuindo-se desta forma, em issues que não lhe são pertinentes. Desde este ponto de vista, seria mais aconselhável que houvesse uma delimitação mais estrita das atribuições de revisão entre as duas Câmaras, especificando-se os assuntos nos quais seria prudente limitar estes poderes, tomando-se por parâmetro as características e as atribuições conferidas pelo texto constitucional a cada uma delas.”

Enfatiza-se, ademais, que o tipo de congruência que favorece a representati-vidade é aquele baseado no método pro-porcional, situando-se no extremo oposto o bicameralismo congruente majoritário. Portanto, pode-se sugerir uma tipologia que busque classificar os efeitos combinados do grau de simetria com a observância ou não de congruência quanto ao méto-do de formação das casas legislativas: bicameralismo simétrico, congruente

proporcional; 2) bicameralismo simétrico, incongruente; 3) bicameralismo assimétri-co e incongruente; 4) bicameralismo assi-métrico e congruente majoritário (Santos, Anastasia e Melo, 2004).

Mais uma vez, o caso chileno revela maior tendência à concentração de poderes. À assimetria observada a favor do Senado – casa que, como já foi dito, admite entre seus membros um contingente expressivo de membros não-eleitos – se soma a operação do método de representação majoritário com viés proporcional em ambas as casas, configurando, portanto, o único caso de bicameralismo assimétrico e congruente majoritário, arranjo que afeta negativamente o grau de densidade democrática da representação. Por contraste, o Uruguai é o exemplo mais bem acabado de um bicameralismo conducente ao incremento da representatividade: ao mesmo tempo simétrico e congruente proporcional.

Dando seqüência à análise das características do bicameralismo em presença nos quatro países, vale chamar a atenção para a distribuição das cadeiras legislativas entre as duas câmaras e para o tamanho dos mandatos em ambas. Brasil e Argentina são os países que apresentam as maiores diferenças no que se refere ao número de cadeiras existentes em cada câmara: no primeiro, a Câmara dos Deputados é seis vezes maior do que o Senado Federal; no segundo, quatro vezes. Isso significa, por um lado, que nestes países, quando as casas deliberam em sessão conjunta, o peso relativo da Câmara Alta revela-se menor do que no Uruguai e no Chile. Por outro lado, significa que quando os poderes e atribuições são distribuídos de forma eqüitativa entre as

71

CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

duas câmaras, especialmente os poderes revisionais, os membros da câmara menor, em termos do número de cadeiras, acabam tendo maior peso nas decisões legislativas do que aqueles da câmara numericamente maior, o que conduz à suposição da sobre-representação dos issues e das clivagens presentes na primeira, em detrimento daqueles que se fazem representar na segunda.

No que se refere ao tamanho do mandato, pode-se verificar que no Uruguai há coincidência na duração dos mandatos de deputados e senadores, mais um fator a falar a favor da ampliação dos graus de representatividade em presença. A idéia aqui é a de que mandatos mais longos em uma das Casas, e passíveis de renovação indefinida, favorecem a hipótese da ocorrência de graus maiores de assimetria informacional entre senadores e deputados, o que certamente produz impactos sobre o comportamento e sobre os resultados legislativos. Já mandatos coincidentes entre os membros das duas casas lhes oferecem chances similares de aquisição de expertise. Nos outros três países, os senadores têm mandatos mais estendidos: no Brasil e no Chile, os mandatos na Câmara Alta são o dobro daqueles nas Câmaras Baixas, e na Argentina, uma vez e meia.

Um último aspecto a ser analisado nesta seção refere-se ao papel das comissões que, ao lado dos partidos, são as mais importantes instâncias a serem consideradas na análise dos trabalhos legislativos. Ainda que diferentes modelos de organização legislativa possam ser concebidos12, as comissões, na medida em que facilitam – ou dificultam – a vocalização das preferências dos diversos atores, uns perante os outros, contribuem para a afirmação dos atributos

da accountability e da representatividade no interior do legislativo.

Um sistema de comissões pode estar estruturado de forma a concentrar ou a dispersar poderes de veto e de agenda entre os parlamentares. O exame do método de constituição das comissões permite verificar se ele é mais conducente à formação de comissões heterogêneas – e, portanto, mais expressivas da pluralidade de identidades e interesses presentes na Casa e mais conducentes à influência política das oposições – ou, alternativamente, mais homogêneas e, portanto, mais passíveis de controle pelas maiorias situacionistas. A possibilidade de que partidos e/ou coalizões oposicionistas tenham acesso a recursos de poder no interior do parlamento é, de acordo com Powell (2000), um seguro indicador de quão densamente representativos são os processos decisórios nos regimes democráticos.

Na Tabela 7, a seguir, com vistas a identificar as formas de organização do sistema de comissões, serão examinados o número e o perfil das comissões legislativas, com especial atenção para o método de sua constituição, no que se refere à observância ou não de algum critério de proporcionalidade da participação dos partidos relativamente ao tamanho de sua bancada na Casa13.

72

ENSAIO

O primeiro aspecto que merece men-ção, relativamente ao método de consti-tuição das comissões legislativas, é a prevalência do critério partidário: na maio-ria dos países estudados, os regimentos se referem, de forma mais ou menos explícita, à necessidade de observância, tanto quanto possível, na composição das comissões, da proporcionalidade existente na distribui-ção das cadeiras da Casa Legislativa entre as diferentes agremiações partidárias. Tal ocorre no Senado argentino, em ambas as Casas, no Brasil e no Uruguai.

Este ponto é relevante porque contri-bui para conferir às comissões um caráter mais heterogêneo, permitindo que as mes-mas se aproximem mais de uma configu-ração assemelhada à de “microcosmo do plenário” e, portanto, mais coerente com o modelo informacional (Krebhiel, 1990) e mais condizente à expressão política das oposições.

Por contraste, ali onde a constituição das comissões obedece prioritariamente à influência das lideranças da Casa, via

Tabela 7

Comissões Permanentes nas casas legislativas

CâmaraNº. de

MembrosNº. de

ComissõesConstituição*

Nº. de Membros nas

Comissões

Nº Mínimo de Comissões por Legislador

ArgentinaAlta

Baixa63257

4745

ILEP ou DP

07 a 2115 a 45

52 a 3

BrasilAlta

Baixa81513

0819

IL e DPIL e DP

17 a 2925 a 57

1 a 21

ChileAlta

Baixa47120

1919

EPEM e EP

0513

22

UruguaiAlta

Baixa3199

1616

IL e DPIL e DP

05 a 0903 a 15

2 a 31

designação pelo presidente ou eleição pela Mesa, sua composição tenderá a ser mais expressiva dos setores majoritários da Casa, o mesmo ocorrendo quando as comissões forem formadas a partir de elei-ção pelo plenário, através da mobilização de regra de maioria relativa ou absoluta. Nestes casos, conseqüentemente, dimi-nuem as chances de influência das oposi-ções na definição da agenda e no desen-volvimento dos trabalhos das comissões, como ocorre na Câmara dos Deputados da Argentina, e em ambas as Câmaras do Chile.

ConclusãoNas duas seções anteriores deste arti-

go, foi possível verificar a extensão com que Argentina, Brasil, Chile e Uruguai utilizam o mecanismo da eleição direta para a escolha dos tomadores de decisão nos diversos níveis de poder, que méto-dos utilizam para constituir os poderes Executivo e Legislativo no plano nacio-nal, como organizam as relações entre as

Fonte: Banco de Dados Projeto Instituições Comparadas na América do Sul (IUPERJ/UFMG).* EP = Eleição pelo Plenário; DP = Designação pelo Presidente; IL = Indicação de Lideranças Partidárias; EM= Eleição pela Mesa.

73

CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

Câmaras Alta e Baixa e, finalmente, como são compostas as comissões no interior do Congresso.

A análise dos indicadores utilizados deixa claro que, do ponto de vista que aqui nos interessa, qual seja, o da densida-de democrática da representação, Uruguai e Chile podem ser apontados como casos extremos, ao passo que Argentina e Brasil situam-se em posição intermediária.

Exceção feita à indicação dos prefei-tos, todos os aspectos do arranjo institu-cional uruguaio aqui analisados são mais conducentes ao incremento da densidade democrática da representação. Eleições diretas são utilizadas para a escolha do presidente, dos governadores e de todos os membros do Congresso. Primárias aber-tas são obrigatórias para a definição dos candidatos presidenciais. A representa-ção proporcional com lista fechada é adotada para as duas câmaras que, ade-mais, são simétricas no que se refere à distribuição de poderes e atribuições. A simetria, no caso uruguaio, estende-se até mesmo ao mandato de seus congressistas – cinco anos tanto para deputados como para senadores. Finalmente, no interior do poder legislativo, o critério para a compo-sição das comissões é proporcional.

No Chile, governadores e parte do Senado não são diretamente eleitos. As duas câmaras são constituídas por método majoritário e a distribuição de poderes e atribuições é assimétrica, favorecendo o Senado – a menos representativa das casas. No que se refere à composição das comissões, trata-se do único país que em nenhuma das casas adota o critério pro-porcional.

Os arranjos institucionais de Argentina e Brasil geram resultados menos representativos do que aqueles vigentes

no Uruguai. A razão está não apenas na adoção de variantes do método majoritário para o Senado, mas também na existência de diversos mecanismos, analisados na pri-meira seção deste artigo, que fazem com que os resultados obtidos para a Câmara dos Deputados sejam consideravelmente menos proporcionais do que no último país.

Finalmente, vale mencionar que, no caso do Brasil, alguns aspectos do arranjo institucional encontram-se em discussão a partir de Projeto de Lei apresentado ao Congresso pela Comissão Especial de Reforma Política, em dezembro de 2003. Dentre as diversas modificações propostas pelo Projeto, cabe comentar, ainda que brevemente, aquelas que afetam dispositi-vos aqui analisados, quais sejam: a) o fim das coligações nas eleições proporcionais; b) a revogação do dispositivo que determi-na que apenas os partidos que atingem o quociente eleitoral podem concorrer à dis-tribuição das cadeiras; c) a instituição de uma cláusula nacional de barreira de 2%; d) a adoção do sistema de lista fechada e pré-ordenada nos pleitos proporcionais .

Conforme analisado na primeira seção, as coligações nas eleições propor-cionais e a utilização do quociente elei-toral como cláusula de barreira afetam de forma negativa a representatividade das eleições para a Câmara dos Deputados. Mas, caso sejam aprovadas as propostas referentes aos dois itens acima, o ganho obtido tende a ser contrabalançado pela introdução da cláusula de 2%. Vale ressal-tar, no entanto, que o “prejuízo” poderia ser maior: a cláusula agora proposta vem substituir aquela definida pela Lei. 9.096, com vigor previsto para 2006, e que defi-nia como requisito para o funcionamento parlamentar a obtenção de no mínimo 5% dos votos nacionais.

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ENSAIO

Finalmente, uma eventual adoção do voto em lista provocará uma significativa modificação no sistema político brasileiro. A medida tende a reforçar os partidos em um país onde estes são sabidamente frágeis, e a fornecer poderoso instrumento disciplinar para as lideranças partidárias no Congresso. Mas o aspecto que aqui importa remete à relação entre eleitor e representante e à possibilidade de que o primeiro controle o segundo.

Sabe-se que a votação em lista aberta, como adotada no Brasil, incentiva a definição do voto com base nas características do candidato e não do partido. A partir daí, pode-se supor que o posterior acompanhamento do trabalho parlamentar será realizado, quando o for, de forma personalizada, mais do que em termos partidários. Dito de outro modo, a maioria do eleitorado brasileiro faz do deputado, e não do partido, o seu agente, supondo que este seja capaz, a partir de seu desempenho individual, de levar à frente suas propostas. Mas o eleito, ao chegar à Câmara depara-se com um cenário no qual os poderes legislativos estão concentrados nas mãos do Executivo e dos líderes partidários (Limongi e Figueiredo, 1999). Dito de outra forma, o representante eleito com base em uma relação na qual os compromissos assumidos com os eleitores são de ordem pessoal encontrará no legislativo um contexto institucional que inibe a perseguição de tais compromissos ou que, pelo menos, faz com que estes só possam ser atingidos se compatíveis com as preferências dos líderes partidários. Pode-se dizer que, de certa forma, o cenário parlamentar “corrige” um problema do cenário eleitoral, ao introduzir com mais clareza os partidos. Mas a comparação entre os dois cenários permite chegar à

conclusão de que o eleitor acaba sendo levado a designar o agente errado (Anastasia e Melo, 2002). Dada a maneira como se estruturam os órgãos decisórios no Brasil, o eleitor teria mais facilidade de acompanhar o processo legislativo se designasse o partido, e não o candidato individualmente, como o seu agente. Esta é a principal razão pela qual a introdução da lista fechada contribuirá para tornar mais representativa a democracia no Brasil.

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CARLOS RANULFO MELO / FÁTIMA ANASTASIA

NOTAS

* Professores e pesquisadores do Departamento de Ciência Política da UFMG.1 Os dados utilizados neste texto foram extraídos do banco de dados do Projeto Instituições Políticas Comparadas na América do Sul. Ademais, no presente artigo são reproduzidas alguns trechos do livro (no prelo) que resultou dessa pesquisa. O projeto foi resultado de convênio firmado entre a Fundação Konrad-Adenauer, o IUPERJ e o DCP-UFMG. A pesquisa foi coordenada pelos professores Fabiano Santos (IUPERJ), Fátima Anastasia e Carlos Ranulfo (DCP/UFMG). Integraram o grupo de pesquisa os estudantes Magna Inácio, Cristiane Batista, Éder Assis, Paulo Magalhães Araújo, Luciana Santana, Allan Nuno, Daniela Nunes e Ricardo Alexandre F. de Lima.2Argumenta-se, ademais, que arranjos de tipo majoritário, por apontarem de forma mais clara de quem é a responsabilidade governativa, tornariam mais fácil ao eleitorado controlar governos eleitos (Powell, 2000).Tampouco há consenso quanto a este ponto, ou seja, quanto a que a concentração de poderes conduza a ganhos em termos de controle sobre governos eleitos. Sistemas políticos baseados em mecanismos de checks and balances tendem a potencializar os mecanismos de accountability horizontal. Como mostra Strom (2000), os mecanismos de controle institucional são muito mais evidentes no presidencialismo do que no parlamentarismo. Da mesma maneira, em arranjos institucionais nos quais prevalece um maior grau de dispersão de poder, é mais provável que a oposição atue como um agente da sociedade, criando melhores condições para o exercício da accountability no plano vertical.3Para uma análise da evolução recente dos sistemas partidários na América do Sul, ver Santos, Anastasia, e Melo (2004). A introdução de eleições subnacionais ocorreu tanto em repúblicas federais, como a Venezuela, como em países unitários, como Colômbia e Bolívia. Cabe mencionar, no entanto, que iniciativas em sentido contrário também ocorreram, como a supressão do Senado e a diminuição do número de membros do Congresso, no Peru e Venezuela, ou a introdução de deputados eleitos em distritos uninominais, neste último país e na Bolívia. 4De acordo com Mainwaring (1993) tal combinação institucional é conducente à instabilidade. Para uma discussão deste ponto, à luz da recente evolução dos países sul-americanos, ver o volume organizado por Jorge Lanzaro (2001). 5 Os governos locais no Uruguai são exercidos pelas Juntas Locais. A Constituição uruguaia determina que é função do Intendente Municipal “Designar los miembros de la Juntas Locales, con anuencia de la Junta Departamental”. Contudo, quando o Governo Departamental assim decidir, a junta local poderá ser eleita diretamente. Veja-se o art. 288 da Constituição “La ley determinará las condiciones para la creación de las Juntas Locales y sus atribuciones, pudiendo, por mayoría absoluta de votos del total de componentes de cada Cámara y por iniciativa del respectivo Gobierno Departamental, ampliar las facultades de gestión de aquéllas, en las poblaciones que, sin ser capital de departamento, cuenten con más de diez mil habitantes u ofrezcan interés nacional para el desarrollo del turismo. Podrá también, llenando los mismos requisitos, declarar electivas por el Cuerpo Electoral respectivo las Juntas Locales Autónomas”.6Desproporcionalidade calculada de acordo com o índice proposto por Loosemore e Hanby (1971).7Incapazes de alterar o altamente restritivo sistema binominal arquitetado no período ditatorial, os partidos chilenos passaram a operar como em um sistema bipartidário, articulando-se em torno das duas grandes coalizões que, desde 1989, têm disputado os rumos do país. Aqueles, como os comunistas, que não quiseram ou não puderam proceder desta maneira, viram-se rapidamente privados de representação no Congresso Nacional (Santos, Anastasia e Melo, 2004).8Um quarto fator compromete a proporcionalidade dos resultados eleitorais no Brasil. Trata-se da migração partidária no interior do poder legislativo, fenômeno que faz com que a distância entre o que dizem os votos depositados nas urnas e a distribuição das cadeiras entre os partidos na Câmara dos Deputados continue a aumentar depois de iniciada cada legislatura, com o agravante de que deixa de existir qualquer interferência do eleitor no processo. Simulações feitas por Melo (2004), para a eleição de 1998, revelam que as mudanças de partido são o fator que isoladamente mais afetam a proporcionalidade no sistema representativo brasileiro. 9O artigo 88 da Constituição uruguaia diz que “la Cámara de Representantes se compondrá de noventa y nueve miembros elegidos directamente por el pueblo, con arreglo a un sistema de representación proporcional en el que se tomen en cuenta los votos emitidos a favor de cada lema en todo el país. No podrá efectuarse acumulación por sublemas, ni por identidad de listas de candidatos”. Já os artigos 95 e 96 determinam que “los Senadores serán elegidos por el sistema de representación proporcional integral” e que “la distribución de los cargos de Senadores obtenidos por diferentes sublemas dentro del mismo lema partidario, se hará también proporcionalmente al número de votos emitidos a favor de las respectivas listas”.10 Carey e Shugart (1995) afirmam que os líderes partidários no Brasil não possuem controle sobre os membros da lista. Mas a legislação foi alterada em 1998, com o fim do chamado “candidato nato”. Até então, de fato, todo deputado tinha presença garantida na lista independentemente da vontade de seu partido.11 “Artigo 65. - O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. Parágrafo Único - Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora. Artigo 66. - A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará”.12Como se sabe, segundo o modelo distributivista, as comissões devem estar estruturadas de forma a facilitar a obtenção de “ganhos de troca”, enquanto o modelo informacional enfatiza a possibilidade de consecução de “ganhos de informação”.13 Os parágrafos que se seguem, até a conclusão desta seção, foram reproduzidos de Santos, Anastasia e Melo (2004).

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ENSAIO

Parlamento Transnacional e Integração: A experiência do Parlamento Europeu e as

ligações que a América Latina tem para o Mercosul

* SUSANE GRATIUS / ** DELFET NOLTE

“Quando os estados (democráticos) se empenham em compartilhar e delegar soberania a instituições supranacionais, os problemas de representação e respon-sabilização democrática tendem a adqui-rir importância. Assim, podemos esperar, por exemplo, que o tipo e a força das assembléias parlamentares na ordenação política internacional se correlacionem com o grau em que os estados comparti-lham e delegam soberania. Neste sentido, o Parlamento Europeu é um “elemento externo”, porque a Comunidade é um elemento externo.” (Rittberger 2003: 221).

“Sempre que a capacidade da União Européia de usar o poder público se amplia de algum modo, o Parlamento Europeu é um meio necessário (embora não necessariamente suficiente) para prevenir o seu abuso.” (Coombes 1999: 52)

1. O Parlamento Europeu: um caso único

A União Européia, que desde maio de 2004 conta com 25 Estados membros, é uma organização internacional sui generis. O mesmo pode-se dizer do Parlamento

* ** Colaboradores científicos do Instituto de Hamburgo / Tradução: Sérgio Bath

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Europeu, já que se trata de um Parlamento supranacional único no mundo no que se refere à sua legitimidade democrática e ao seu poder de decisão. Dos seus 624 integrantes, eleitos por voto direto antes mesmo da ampliação da União Européia, o número de deputados deverá aumentar para 732, representando cerca de 450 milhões de habitantes. Com a inclusão da Bulgária e da Romênia na União Européia, prevista para 2007, o Parlamento Europeu contará com 786 parlamentares no fim da atual década.

Número de mandatos por país

(por ordem alfabética do nome de cada país, na respectiva língua oficial)

1999-2004 2004-2007 2007-2009Bélgica 25 24 24

Bulgária – – 18

Chipre – 6 6

República Checa – 24 24

Dinamarca 16 14 14

Alemanha 99 99 99

Grécia 25 24 24

Espanha 64 54 54

Estônia – 6 6

França 87 78 78

Hungria – 24 24

Irlanda 15 13 13

Itália 87 78 78

Letônia – 9 9

Lituânia – 13 13

Luxemburgo 6 6 6

Malta – 5 5

Países Baixos 31 27 27

Áustria 21 18 18

Polônia – 54 54

Portugual 25 24 24

Romênia – – 36

Eslováquia – 14 14

Eslovênia – 7 7

Finlândia 16 14 14

Suécia 22 19 19

Reino Unido 87 78 78

(MAX) TOTAL 626 732 786Fonte: http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/index_pt.htm.

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As características do Parlamento Europeu tornam muito difícil chegar a con-clusões ou extrair lições para instituições do mesmo tipo (como por exemplo a Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul) com base no seu desenvolvimento histórico. Além disso, as funções e o funcionamento de um Parlamento dependem do conjun-to das instituições de um regime político nacional ou supranacional. Não existe hoje no mundo nenhuma união de Estados soberanos com estruturas supranacionais tão elaboradas e poderosas como a União Européia.

Quando comparamos o Parlamento Europeu com as instituições parlamen-tares do Mercosul surge outro problema. Se incluímos a assembléia parlamentar da Comunidade Européia do Carvão e do Aço, que se reuniu pela primeira vez em 1952, o Parlamento Europeu é uma insti-tuição “adulta”, já que tem mais de cin-qüenta anos1. Ora, a Comissão Parlamentar Conjunta do MERCOSUL, que se reuniu pela primeira vez em 1992, é uma institui-ção “adolescente”, que se encontra ainda em uma fase de aprendizado e de cresci-mento institucional.

Não há dúvida de que o Parlamento Europeu pode servir como estímulo ou exemplo para a Comissão Parlamentar do Mercosul, e as duas instituições já fazem contatos institucionais regulares, que no futuro poderão ser ainda mais aprofun-dados. No entanto, as possibilidades de aprendizagem irão depender do desen-volvimento institucional do Mercosul, em especial das suas estruturas supranacio-nais. Em lugar de comparar o Parlamento Europeu como existe hoje com a Comissão Parlamentar do Mercosul, pode ser mais útil adotar como ponto de referência o Parlamento Europeu de períodos ante-

riores, como por exemplo, o dos anos 1960 e 1970. Complementarmente, pode ser útil analisar também o desenvolvimento institucional das assembléias parlamentares em outros sistemas de integração existentes na América Latina. Dessa perspectiva, pare-ce útil resumir brevemente os fatos mais importantes da história do Parlamento Europeu, como também o desenvolvi-mento das assembléias parlamentares da Comunidade Andina e do Mercado Comum Centroamericano, para depois chegar a algumas conclusões a respeito da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul.

2. Breve história do Parlamento Europeu

A Comunidade Européia do Carvão e do Aço, antecessora da Comunidade Econômica Européia, tinha uma assembléia parlamentar planejada como contrapeso das autoridades executivas supranacionais, que teve também a função adicional de corrigir um possível deficit de legitimidade democrática das novas estruturas de inte-gração econômica (ver Rittberger 2003: 211-3).

De acordo com o Tratado de Roma, de 1957, o Parlamento Europeu repre-senta “os povos dos Estados reunidos na Comunidade”. O Parlamento Europeu (denominação adotada em 1962), dos seis países fundadores da Comunidade, tinha 142 integrantes, ou seja, mais do dobro do número atual de integrantes da CPC do Mercosul (64). Era composto por par-lamentares procedentes dos parlamentos dos Estados-Membros da Comunidade, nomeados pelos seus pares, e mantidos seus mandatos nos respectivos parlamen-tos nacionais.

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SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

Número de mandatos no Parlamento Europeu, por país (1957)

País MandatosAlemanha 36

Bélgica 14França 36Itália 36

Luxemburgo 6Países Baixos 14

A princípio, o Parlamento Europeu era um órgão consultivo do Conselho da Comunidade, tendo por tarefa principal o controle da Comissão como principal órgão comunitário supranacional. O Parlamento Europeu tinha o direito de debater a respeito das atividades da Comissão, censurando-a se necessário (hipótese em que a Comissão deveria renunciar). Nos anos 1950 e 1960, na fase de infância e adolescência do Parlamento Europeu, quase não houve mudança nas suas atribuições, mas nos anos e décadas que se seguiram aumentaram as atribuições legislativas e de controle exercidas pelo Parlamento Europeu com respeito à Comissão Européia e ao Conselho, aumentando também a sua legitimidade democrática.

Com a assinatura do Tratado de Luxemburgo, em 1970, foi introduzido na Comunidade um sistema de recursos próprios, sendo também ampliados os poderes orçamentários do Parlamento Europeu (ver Rittberger 2003: 213-7). Para evitar conflitos entre as instituições interessadas e bloqueios no processo legislativo, em 1975, o Conselho e o Parlamento Europeu criaram, mediante declaração conjunta, um sistema de arbitragem para os casos de divergência em matérias jurisdicionadas ao Parlamento. Não obstante, a última palavra cabia sempre ao Conselho. Em 1980, com base

em uma decisão da Corte Suprema de Justiça, o Parlamento conquistou um certo direito de retardar a aplicação da legislação elaborada pela Comissão, antes da sua aprovação pelo Conselho.

Um passo muito importante no desen-volvimento institucional do Parlamento Europeu foi a primeira eleição dos seus membros por sufrágio universal direto, em junho de 1979, interpretada como uma mudança constitucional da maior envergadura (Corbett et al 2003: 355). Desde então, a composição do Parlamento Europeu é renovada a cada cinco anos. É preciso acrescentar que a eleição direta já estava prevista no tratado constitutivo que deu origem à Comunidade, em 1957. Com a eleição direta, o Parlamento passou a ser um órgão corporativo de atividade con-tínua, tendo surgido uma nova classe de parlamentares transnacionais, cuja carreira política depende da sua atuação no âmbi-to europeu. Os parlamentares europeus se esforçaram por ampliar a infra-estru-tura técnica e de apoio administrativo do Parlamento Europeu.

Os novos deputados europeus, elei-tos de forma direta, foram muito mais ati-vos do que os seus antecessores, em todos os aspectos da atividade parlamentar2.“Dos questionamentos parlamentares às audi-ências públicas; da exploração de pro-cedimentos para pressionar a Comissão ao exame dos Comissários e seus funcio-nários; das ações na Corte de Justiça às nomeações para o Tribunal de Contas; dos comitês de investigação ao congelamento de fundos, o Parlamento eleito foi mais vigoroso, mais sistemático e incisivo do que o nomeado.” (Corbett 1998: 129). Os eurodeputados utilizaram o regulamento do Parlamento Europeu para experimen-tar e explorar a elasticidade dos tratados

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comunitários, ampliando a sua área de atuação, mas só dentro de certos limites, representa-dos pela institucionalidade vigente da Comunidade. Em conseqüência, o Parlamento Europeu atuava também na promoção das reformas da Comunidade Econômica Européia e, depois da União Européia, enfatizando uma maior legitimidade parlamentar das decisões tomadas.

O Parlamento Europeu dispõe de três sedes, fato que por vezes complica o trabalho parlamentar e a interação com os outros órgãos da União Européia. O Protocolo número 8, anexo ao Tratado de Amsterdam, de 1997, precisa: “O Parlamento Europeu tem sede em Estrasburgo, onde são realizadas as doze sessões plenárias mensais, inclusive a sessão orçamentária. As sessões plenárias suplementares são realizadas em Bruxelas. As Comissões do Parlamento Europeu se reúnem também em Bruxelas. A Secretaria-Geral do Parlamento Europeu e os seus serviços permanecem em Luxemburgo.” O Parlamento Europeu organiza o seu trabalho com base em 17 comissões parlamentares permanentes e conta atualmente com sete comissões temporárias.

Os deputados do Parlamento Europeu não se integram em blocos nacionais. A despeito de predominar um ambiente de cooperação na defesa dos interesses institucionais e europeus, formaram-se grupos políticos ligados por afinidade ideológica, que reúnem os principais partidos políticos dos Estados-Membros da União Européia. Esses grupos políticos do Parlamento Europeu constituem o núcleo e a coluna vertebral dos partidos transnacionais europeus.

QUADRO: Número de mandatos por grupo político, em 1º de Abril de 2003

Os próprios parlamentares europeus, eleitos de forma direta, defenderam o aumento das atribuições do Parlamento Europeu nas próximas revisões institucionais, argumentando que a perda de controle

Grupo político Sigla Nº de mandatos

Partido Popular Europeu (Democrata-Cristão) e Democratas Europeus

PPE-DE 232

Partido dos Socialistas Europeus PSE 175Partido Europeu dos Liberais, Democratas e Reformistas

ELDR 52

Esquerda Unitária Européia / Esquerda Nórdica Verde GUE/NGL 49Verdes / Aliança Livre Européia Verdes/ALE 44União para a Europa das Nações UEN 23Europa das Democracias e das Diferenças EDD 18Não-inscritos NI 31TOTAL 634Fonte: http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/index_pt.htm

Graças à nova legitimidade democrática, com a assinatura de cada novo tratado o Parlamento Europeu viu ampliada sua competência e o papel político que lhe cabe na União Européia.

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SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

dos parlamentos nacionais, no processo de integração da Europa, deveria ser compensada pela maior competência atribuída ao Parlamento Europeu.

A assinatura da Ata Única Européia de 1986, para completar o mercado comum até o ano de 1992, deu um grande impulso ao desenvolvimento institucional comunitário. O Conselho modificou suas normas internas no relativo ao procedimento de votação, criando-se pela primeira vez um mecanismo co-decisório entre o Conselho e o Parlamento. O impulso dado a essas duas decisões decorreu da necessidade de promulgar um grande número de leis comunitárias (cerca de trezentas) até 1992. Para acelerar o processo de decisão, os Estados-Membros estavam dispostos a transferir e a somar suas soberanias, ampliando cada vez mais a participação do Parlamento Europeu (ver Rittberger 2003: 217-20). Foi o rumo retomado nos tratados seguintes: o Tratado da União Européia (Maastricht, 1992) e o Tratado de Amsterdam, de 1997, que converteram o Parlamento Europeu em uma autêntica assembléia legislativa, com competência comparável à dos parlamentos nacionais. No entanto, nem todas as ampliações das políticas comunitárias levam a uma maior participação do Parlamento Europeu que, para dar um exemplo, exerce pouco controle e influência no campo da Política Exterior e da Segurança Comum.

Não obstante, depois do Tratado de Maastricht, as áreas das políticas comunitárias isentas de ingerência do Parlamento Europeu diminuíram de 72% (segundo o Tratado de Roma) para 40% (Maurer 2002: 132). Com o Tratado de Amsterdam, de 1997, ganhou força a posição do Parlamento Europeu frente à Comissão. O Presidente e os outros membros da Comissão não podem

ser nomeados sem a aprovação do Parlamento. Além disso, ampliou-se novamente o procedimento de decisão conjunta do Conselho e do Parlamento Europeu, simplificou-se o processo legislativo e fortaleceu-se a posição do Parlamento como contraparte equivalente do Conselho, abrangendo agora quase todas as matérias às quais se aplica no Conselho o critério da maioria qualificada, como as que aparecem pela primeira vez no novo Tratado. Por outro lado, o Tratado de Nice, de 2001, reforçou o papel co-legislador do Parlamento Europeu, que desta forma se converteu, no transcurso da última década, em legislador conjunto com o Conselho da União Européia.

A participação do Parlamento Europeu nas decisões do Conselho, como órgão máximo da União Européia, abarca diferentes formas e graus de influência. Para certas matérias é necessário o consentimento do Parlamento para que o Conselho possa decidir. Em caso de consulta, a Comissão submete uma proposta ao Parlamento. Se a consulta é facultativa, a proposta não pode converter-se em lei por voto do Conselho, a menos que o Parlamento tenha emitido um parecer favorável. Nos casos de co-decisão, Parlamento e Conselho compartilham o poder legislativo, e a Comissão envia sua proposta às duas instituições que, se não chegam a um acordo, submetem sua divergência a um “comitê de conciliação”, integrado por igual número de representantes do Conselho e do Parlamento3.

As áreas abrangidas pelo processo de parecer favorável são: algumas missões específicas do Banco Central Europeu; alterações nos estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais / Banco Central Europeu; fundos estruturais e Fundo de

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Coesão; processo eleitoral uniforme para o Parlamento Europeu; alguns acordos internacionais; adesão de novos Estados membros.

As áreas abrangidas pelo processo de consulta são: cooperação policial e judicial em matéria penal; revisão de Tratados; discriminação em razão de sexo, raça ou origem étnica, convicções religiosas ou políticas, deficiência, idade ou orientação sexual; cidadania da UE; agricultura; vistos, asilo, imigração e outras políticas relacionadas com a liberdade de circulação de pessoas; transportes (sempre que haja um significativo impacto em certas regiões); concorrência; fiscalidade; política econômica; “cooperação reforçada” - ou seja, a disposição que permite que um grupo de Estados-Membros trabalhem conjuntamente num domínio específico, mesmo sem a participação dos demais.

As áreas abrangidas pelo processo de parecer de co-decisão são: não discriminação com base na nacionalidade; direito de circulação e residência; liberdade de circulação de trabalhadores ; seguridade social para os trabalhadores migrantes; direito de estabelecimento; transportes; mercado interno; emprego; cooperação aduaneira; luta contra a exclusão social; igualdade de oportunidades e igualdade de tratamento; decisões executivas relacionadas com o Fundo Social Europeu; educação; formação profissional; cultura; saúde; defesa do consumidor; redes transeuropéias; decisões executivas relacionadas com o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional; investigação; ambiente; transparência; prevenção e luta contra a fraude; estatística; instituição de um órgão consultivo para a proteção de dados. Fonte: http://europa.eu.int/institutions/decision-making/index_pt.htm

Ao lado da sua participação no processo legislativo, o Parlamento Europeu tem igualmente outras atribuições tipicamente parlamentares: participa na elaboração do orçamento da União

Européia e pode rejeitá-lo. Além disso, desempenha funções de controle: deve aprovar a gestão orçamentária da Comissão; pode criar comissões temporárias de investigação. Por outro lado, seus deputados, grupos ou comissões parlamentares, podem formular perguntas à Comissão ou ao Conselho, oralmente ou por escrito4.

Em resumo, constata-se que, desde a criação da Comunidade Econômica Européia, a participação do Parlamento nas decisões comunitárias se ampliou, especialmente com base nos Tratados de Maastricht e Amsterdam, que criaram o mecanismo de co-decisão. É preciso assim concordar com as palavras de Richard Corbett (1998: 367), deputado socialista do Parlamento Europeu: “Subestimado por muitos, nos primeiros anos, depois das eleições diretas o novo Parlamento de tempo integral, surgido em 1979, tem sido, de modos nem sempre previstos, um fator importante na aceleração do ritmo da integração européia ocorrida a partir de meados dos anos 1980.”

3. A experiência latino-americana com parlamentos regionais e subregionais

Além da Europa, a América Latina é, em todo o mundo, a única região que conta com parlamentos transnacionais, tanto em nível regional como subregional. Em 2004, a história da América Latina nesse terreno completa vinte anos. O Parlamento Latino-Americano (Parlatino), fundado em 7 de dezembro de 1964, em Lima, foi o antecessor e um fator importante para a criação posterior do Parlamento Andino (Parlandino) e do Parlamento Centro-Americano (Parlacen), no quadro dos respectivos processos de

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integração subregional. O Parlamento Latino-Americano nasceu há quarenta anos, durante as comemorações dos 140 anos da batalha de Ayacucho, em memória das idéias de integração do Libertador Simón Bolivar. O objetivo principal dessa primeira assembléia parlamentar regional foi promover a união política da América Latina. Nos primeiros anos do Parlatino foram discutidas e aprovadas propostas ambiciosas de integração, tais como a criação de uma bandeira regional comum, de um passaporte latino-americano e a abertura de uma universidade regional – propostas que até hoje não foram levadas à prática.

A criação do Parlatino, em Lima, resultou de uma primeira onda de integração latino-americana com enfoque regional. Sua meta final era integrar toda a América Latina, em conformidade com as idéias do pan-americanismo inspiradas em Simón Bolivar. A função principal do Parlatino foi dar um impulso político ao processo de integração econômica da América Latina. O Parlatino nasceu em uma época extremamente difícil do ponto de vista político, em que muitos países do continente eram governados por regimes militares. Essa conjuntura política contrária à integração dos estados da região reduziu desde o princípio as repercussões do Parlamento Latino-Americano, que nunca conseguiu transformar-se em um foro político de peso, e atualmente é uma assembléia parlamentar sem maior transcendência. Os seus membros se reúnem por alguns dias, cada dois anos, e o impacto político da sua atuação se acha consideravelmente reduzido. O pouco poder do Parlatino está vinculado estreitamente com a crise do sistema de partidos políticos na maioria dos países participantes, e na imagem negativa dos Congressos nacionais. Por isso, segundo o Latinobarometro de 2003,

só 14% da população apóia os partidos políticos, e os Congressos figuram entre as instituições mais desacreditadas da região (Latinobarometro 2003, Santiago, Chile).

Não obstante, o Parlatino continua funcionando. Em duas oportunidades sua estrutura foi reformada e, em 1992, foi instalada em São Paulo sua sede permanente. Em comparação com o Parlamento Europeu, o Parlatino é, como instituição, muito mais simples. Seu órgão principal é a Assembléia Geral. Há uma pequena secretaria executiva, um comitê diretivo e sete comissões parlamentares permanentes. Como não existe um processo de integração regional, as funções do Parlamento Latino-Americano são meramente deliberativas, inexistindo um instrumento legislativo: seus principais instrumentos são resoluções e recomendações não vinculantes.

O segundo poder legislativo transnacional criado na América Latina foi o Parlamento Andino (Parlandino), que surgiu dez anos depois do Pacto Andino, em 1979. Hoje, o Parlandino é parte do complexo sistema supranacional da Comunidade Andina. Assim como o Parlatino, o Parlandino está composto por deputados nacionais nomeados pelos parlamentos de cada país membro. Ao contrário do Parlatino, o Parlamento Andino inclui uma cláusula democrática, que condiciona a participação dos Estados-Membros ao “exercício efetivo” da democracia, razão pela qual no passado a presença do Chile como Observador foi suspensa. Pouco depois da ratificação do seu Tratado constitutivo, em 1984, o Parlandino estabeleceu em Bogotá a sua sede permanente. Por outro lado, seguindo o exemplo da União Européia, o então Pacto Andino preferiu não concentrar os

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foros de coordenação na mesma cidade, mas criou sedes diferentes para todas as suas instituições: a Secretaria está em Lima, o Tribunal de Justiça, em Quito, o Parlandino, em Bogotá e a Corporação Andina de Fomento, em Caracas. Essa dispersão representou, desde o início, um sério obstáculo à coordenação política e ao próprio processo de integração sub-regional.

O Parlandino está composto por cinco representantes nacionais e dez suplentes, havendo sido criadas cinco comissões temáticas permanentes. O Parlamento se reúne uma vez por ano, podendo, além disso, ser convocadas sessões extraordinárias, desde que contem com o apoio de um terço dos Estados-Membros. De acordo com seu avançado processo de integração (a Comunidade Andina constitui uma união aduaneira incompleta), sua abrangência é mais ambiciosa do que a do Parlatino e, inclui o prosseguimento do processo de integração, cooperar com os parlamentos nacionais para incorporar o direito comunitário andino e formular propostas de integração. O Parlandino exerce seu poder através de recomendações e decisões que entram em vigor mediante o apoio de dois terços dos deputados; elege um Presidente e quatro Vice-Presidentes, que exercem o mandato durante um ano e representam diferentes países. É esse grupo de representantes que nomeia o Secretário Geral, e juntos eles constituem o foro executivo, ou “Mesa Redonda” parlamentar.

No quadro do processo de transformação do Pacto Andino em Comunidade Andina, o Parlandino foi reestruturado, autorizando-se a eleição direta dos seus representantes. Não obstante, por falta de vontade política e devido ao atual estancamento do processo de integração, o projeto ainda

não se transformou em realidade. Há dez anos (o debate teve início em 1994) estão previstas eleições diretas para o Parlandino, possibilidade que já estava prevista no Tratado constitutivo e especificada no Protocolo Adicional, assinado em 1987. Não obstante, até hoje só a Venezuela e, há pouco mais de um ano, o Equador, realizaram eleições diretas para o Parlamento Andino. Os outros países receberam um novo prazo, até 2005, para seguir esse exemplo. Diante do pouco dinamismo da integração dos países andinos, a debilidade dos Estados interessados e os problemas bilaterais entre Colômbia e Venezuela, surgem sérias dúvidas sobre a viabilidade do projeto e as suas perspectivas futuras. Embora o processo de integração andino tenha criado o quadro institucional mais amplo e complexo, baseado em foros supranacionais, devido à ausência de vontade política dos governos e a endêmica falta de vigor institucional dos Estados-Membros, o Parlandino tem tido pouca visibilidade e efetividade na sub-região.

O balanço que se pode fazer do Parlamento Centro-Americano (Parlacen) está longe de ser melhor. O Parlacen foi instituído em 1987, no contexto do processo de paz centroamericano, como parte dos Acordos de Esquipulas II. Vinicio Cerezo, o então Presidente da Guatemala, promoveu essa idéia, em janeiro de 1986, para criar um clima de paz, consenso político e democracia na sub-região afligida por guerras civis, violência e violações constantes dos direitos humanos. Uma vez superada a crise centro-americana, o Parlacen abriu suas portas em 1991, na Cidade da Guatemala, com a participação de quatro países: Guatemala, Nicarágua, El Salvador e Honduras. O Panamá se integrou alguns anos mais tarde. Costa Rica foi o único país a formular reservas

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constitucionais, e nunca chegou a ratificar o Tratado constitutivo. Havia outros motivos para retardar a sua participação: o respeito predominante à soberania nacional e a situação especial do país, devido à relativa estabilidade democrática, social e econômica.

Assim como o Parlandino, o Parlacen se reúne uma vez por ano, podendo ser convocadas assembléias plenárias extraordinárias. Seu órgão executivo é mais complexo e está composto pelo Presidente, quatro Vice-Presidentes e cinco Secretários. O Parlacen adota decisões por maioria de sete votos, e funciona com doze Comissões temáticas. Sua estrutura está muito orientada para o modelo europeu. Sua estrutura supranacional foi adotada desde o início prevendo a eleição direta dos seus representantes, com os partidos políticos reunidos em diferentes grupos parlamentares. Procurou-se, assim, criar uma verdadeira assembléia parlamentar transnacional, favorecendo a integração sub-regional em vez do predomínio dos interesses nacionais. A importação do modelo europeu de parlamentarismo transnacional esteve relacionada estreitamente com o papel destacado assumido pela Comunidade Européia na pacificação regional, através do denominado Processo de San José, as Conferências entre Europa, América Central e o Grupo de Contadora (e mais tarde o Grupo de Apoio ampliado).

Até hoje o Parlacen é o único parlamento transnacional da região com deputados eleitos diretamente pela população, à semelhança do Parlamento Europeu. O mandato dos seus representantes é de cinco anos. Além dos vinte deputados eleitos diretamente pelos cidadãos, integram-se automaticamente no foro os ex-Presidentes e Vice-Presidentes dos Estados-Membros: uma

fórmula heterodoxa e única que distingue o Parlacen de qualquer outro parlamento, nacional ou transnacional. A razão inicial para a participação de importantes figuras políticas nacionais foi o fortalecimento da coordenação política entre o Parlacen e os Poderes Executivos nacionais. Não obstante, em vez de aumentar a importância política do Parlacen na região, essa prática tem sido seriamente questionada, já que a integração dos antigos Presidentes e Vice-Presidentes na assembléia regional lhes conferiu automaticamente imunidade perante a Lei.

Hoje, discute-se uma profunda reforma na estrutura do Parlacen. As maiores críticas, formuladas por Oscar Berger, atual Presidente do país que fundou o foro, são dirigidas contra a cláusula que prevê a participação de todos os ex-mandatários nacionais, que se tornou um aspecto altamente controvertido desde a incorporação do ex-Presidente guatemalteco Alfonso Portillo e, antes disso, com a do ex-Presidente Arnoldo Alemán, da Nicarágua. No contexto de uma renovação política na Nicarágua e na Guatemala, e de um combate mais intenso às práticas corruptas nos governos dos países membros, o Parlacen tem uma imagem particularmente negativa, além de ter perdido relevância como foro de integração política. Cabe lembrar, porém, que durante o processo de pacificação centroamericana ele cumpriu importante função simbólica e política. Por outro lado, também é certo que fracassou como promotor da integração sub-regional e como plataforma para promover a democracia na América Central.

De modo geral, o balanço do parlamentarismo regional na América Latina é ambíguo. Todos os parlamentos transnacionais criados até hoje têm em comum sua pequena capacidade decisória

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e uma influência limitada sobre os parlamentos nacionais, mantendo funções puramente deliberativas. Seu único instrumento para influir nos processos políticos regionais, bilaterais ou nacionais, são resoluções ou recomendações que não têm qualquer impacto concreto porque não são vinculantes. As funções das três assembléias regionais são semelhantes: servem como plataformas políticas pluralistas e como vínculo entre democracia e integração. Tanto o Parlatino como o Parlacen contribuem para promover a coordenação e o intercâmbio entre os diferentes partidos políticos nacionais e, se o processo de integração está mais avançado, promovem a união política entre os Estados-Membros. Os casos do Parlacen e do Parlandino demonstram que a eleição direta dos integrantes de poderes legislativos transnacionais (meta também prevista pelo Mercosul) pode exigir mudanças na legislação nacional. Assim, a definição de um período eleitoral comum exigiu, no caso do Parlandino, mudanças constitucionais em alguns Estados-Membros, o que, além da falta de vontade política, atrasou a implantação do sistema de eleições diretas.

Refletindo um maior progresso na integração, a competência do Parlandino e do Parlacen é mais ampla, e suas estruturas são mais densas e complexas do que a do Parlatino. Com respeito a este último ponto, o Parlacen é o modelo mais próximo do Parlamento Europeu, já que, diferentemente do Parlatino e do Parlandino, o Parlacen dispõe de sede permanente, seus deputados são eleitos diretamente, agrupando-se de acordo com as afinidades políticas, e mantêm uma relação indireta com o Executivo, por contar com a participação de ex-Presidentes e Vice-Presidentes. Ao

contrário do Parlamento Europeu, nem o Parlacen nem o Parlandino optaram pela distribuição proporcional de representantes do país, e em ambos prevalece o princípio da igualdade, independentemente do tamanho e do peso econômico dos países-membros. Finalmente, os três foros analisados são assembléias parlamentares unicamerais.

Quanto à sua função política, cabe dizer que sobretudo as reuniões do Parlatino têm sido, em termos gerais, um exercício útil para promover um consenso latino-americano em certos temas de interesse comum (por exemplo, a pacificação da América Central e a solução pacífica de outros conflitos) e para sustentar, inclusive em épocas adversas, os princípios democráticos, dentro de espectro político amplo e representativo das forças políticas latino-americanas. Neste sentido, o Parlatino é um dos poucos foros políticos da América Latina que permitem um intercâmbio através das fronteiras nacionais e sub-regionais, entre partidos de diferente orientação ideológica, procedentes de todos os países.

Em resumo pode-se dizer que a experiência com parlamentos transnacionais na América Latina não é muito alentadora, pois eles têm sido foros insignificantes, chegando mesmo a servir de refúgio seguro a políticos perseguidos pela corrupção praticada nos seus países, como no caso do Parlacen.

Desde o início os parlamentos transnacionais tiveram o apoio da então Comunidade Européia, que lhes ofereceu assistência técnica e co-financiamento. Esses vínculos inter-regionais se refletem até hoje nas Conferências bienais entre o Parlamento Europeu e o Parlatino. O primeiro desses encontros teve lugar

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em 1974, e o último deles em maio de 2003, em Bruxelas. Houve também intercâmbios e reuniões esporádicas entre o Parlacen e o Parlandino, instituições com as quais o Parlamento Europeu assinou também acordos de cooperação. Embora os resultados desses encontros entre parlamentares europeus e latino-americanos sejam modestos e passem despercebidos, continuam a ser foros importantes para promover o diálogo entre as regiões. Ao mesmo tempo, a influência européia tem sido uma referência importante para a integração latino-americana, seguindo muito de perto o exemplo europeu, enquanto os Estados Unidos favorecem uma abordagem estritamente comercial no processo de integração. De um lado, a forte orientação para o modelo europeu, por parte dos três parlamentos transnacionais da América Latina (precursores de um possível Parlamento do Mercosul) os converteu em interlocutores idôneos do Parlamento Europeu; de outro, esse eurocentrismo reduziu sua legitimidade e operacionalidade na América Latina, uma vez que nenhum dos três parlamentos transnacionais foi ajustado às circunstâncias e peculiaridades regionais. Levando em conta essas experiências, devemos esperar que o Mercosul não cometa os mesmos erros, mas que, ao contrário, busque um caminho próprio, independente e adaptado às circunstâncias do seu contexto regional.

4. Institucionalidade e dimensão parlamentar no Mercosul

O Tratado de Assunção que criou o Mercosul, em 1991, prevê a criação de um parlamento supranacional em data não determinada, estabelecendo, no Artigo 24,

a Comissão Parlamentar Conjunta, primeiro passo para um futuro poder legislativo transnacional, sem especificar com muita clareza suas funções e competência (na verdade o Tratado constitutivo do Mercosul é um instrumento bastante sucinto, de poucas páginas). O Regulamento Interno da Comissão Parlamentar Conjunta foi aprovado também em 1991; posteriormente, o Protocolo de Ouro Preto, de 1994, especifica a estrutura institucional do Mercosul, incluindo a competência dos seus principais foros. Embora a Comissão Parlamentar Conjunta seja considerada um órgão principal do Mercosul, assim como o Foro Consultivo Econômico e Social, ela não tem qualquer capacidade decisória nem exerce funções de controle legislativo. Tanto a Comissão como o Foro são instituições “deliberativas”, que podem formular recomendações e “acompanham” o processo de integração, sem dele participar diretamente. Além disso, a Comissão não constitui um parlamento regional transnacional, mas continua a ser um foro determinado por interesses parlamentares nacionais. Assim, um primeiro passo para promover uma entidade comum além do âmbito nacional consistiria em criar grupos parlamentares integrados por deputados de correntes políticas similares.

Como não existe propriamente um “direito do Mercosul”, as funções e a competência da Comissão Parlamentar Conjunta se limitam à formulação de recomendações e decisões não vinculantes. Entre outras tarefas, cabe à Comissão encomendar estudos sobre o processo de integração e organizar seminários sobre o tema. Além disso, ela fez um importante trabalho de compilação de todos os textos legislativos do Mercosul,

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que foram publicados em dois volumes. Por outro lado, a Comissão se incumbe de acelerar a incorporação das normas do Mercosul às legislações nacionais, cooperando estreitamente com os parlamentos nacionais. Para fortalecer a sua cooperação com os Congressos nacionais, em todos estes, nos quatro Estados-Membros foram criadas Comissões do Mercosul. No Uruguai, país sede da Secretaria Técnica do Mercosul, a delegação nacional da Comissão dispõe de um escritório com representantes permanentes, situado no Edifício Mercosul, em Montevidéu.

Atualmente, a Comissão Parlamentar reúne 64 deputados, 16 de cada um dos quatro Estados-Membros. Esses 16 representantes e o mesmo número de suplentes são designados pelos respectivos parlamentos nacionais, e exercem o seu mandato por um período mínimo de dois anos. Como em todos os Estados-Membros há sistemas bicamerais, os integrantes da Comissão procedem das duas Câmaras. A sessão plenária da Comissão se reúne pelo menos duas vezes por ano, freqüência maior do que a dos demais órgãos transnacionais da região. Essas reuniões são presididas por uma mesa de quatro representantes, realizando-se normalmente no país que exerce a Presidência pro tempore do Mercosul. Todas as decisões são tomadas pelo consenso das delegações nacionais. Embora oficialmente não exista uma sede permanente da Comissão, foi criada em Montevidéu uma Secretaria Administrativa Parlamentar Permanente, que coordena as atividades das quatro seções nacionais e, além disso, prepara e dá seguimento ao trabalho parlamentar. Também foi criado, recentemente, um modesto fundo orçamentário para financiar esse órgão de apoio da Comissão.

A composição das delegações nacionais está orientada para os respectivos regulamentos parlamentares dos Estados-Membros e o Presidente da Comissão procede do país que exerce a Presidência pro tempore do Mercosul. Ele é assistido por um Secretário Geral e um Secretário Administrativo permanente, residente em Montevidéu. Para preparar as sessões plenárias foram criadas onze subcomissões temáticas. No quadro das relações inter-institucionais entre o Mercosul e a União Européia, o Parlamento Europeu e a Comissão Parlamentar Conjunta mantêm reuniões regulares. Por outro lado, são mantidas relações estreitas com o Parlandino e celebradas reuniões menos feqüentes com o Parlacen.

Assim como acontece com o Parlacen e o Parlandino, o balanço das atividades da Comissão Parlamentar Conjunta é também ambíguo. Em um estudo sobre a institucionalidade do Mercosul, Roberto Bouzas e Hernán Stoltz (2004) criticam o trabalho da Comissão e concluem que esse órgão “não obteve êxito ao desempenhar um papel propositivo e de assessoria dos órgãos técnicos, negociadores e decisórios (...) A Comissão também não teve muito êxito em acelerar ou facilitar as tarefas de internalização das normas do Mercosul, ou de vencer a última linha de resistência de interesses particulares afetados por decisões vinculadas ao processo de integração.”

Devido às suas limitações estruturais e características próprias, a Comissão não responde a nenhuma das três responsa-bilidades parlamentares: 1) representar a cidadania; 2) reunir os interesses nacio-nais favoráveis a um “bem comum” e 3) supervisionar o processo de integração e a aplicação de normas e decisões. Uma

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das causas do seu pequeno impacto no processo de integração é sua competência limitada, o caráter de foro de interesses nacionais e a ausência de capacidade decisória e de mecanismos de sanção. A consciência desse deficit fez com que se considerasse atualmente converter a Comissão em um genuíno parlamento regional, para contar com uma instância de controle democrático das instituições do Mercosul. Essa idéia foi levantada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, que declarou:... deveríamos insti-tuir um parlamento do Mercosul, eleito mediante o voto direto dos eleitores dos nossos países. Faremos assim com que os cidadãos participem do processo de inte-gração regional, dando-lhe mais força e legitimidade.”

O aprofundamento institucional corresponde ao fato de que o processo de integração está ganhando densidade e complexidade, abarcando uma ampla gama de temas de cooperação. A Comissão Parlamentar Conjunta está avaliando os passos necessários para criar um poder legislativo comum, que no futuro contaria com deputados eleitos diretamente pelos cidadãos dos Estados-Membros. Como no caso do Parlandino e do Parlacen, o Mercosul decidiu também, mais de uma década depois da assinatura do Tratado constitutivo, a futura incorporação do Poder Legislativo ao processo de integração. A criação de um Parlamento do Mercosul poderia cumprir quatro funções importantes: a) inaugurar, na integração, uma dimensão democrática, de caráter partidário; b) estimular a futura união política como meta ambiciosa do Mercosul; c) criar um órgão de controle democrático das instituições da integração (até aqui predominantemente intergovernamentais); e d) representar um

fator de legalidade para dar seguimento ao processo de incorporação de normas (levando em conta que até hoje não mais de 35% do “direito do Mercosul” foi incorporado às legislações nacionais).

No nível técnico, a criação de um Parlamento do Mercosul exige uma série de decisões prévias para definir um sistema eleitoral comum sobre os seguintes pontos: • o número de deputados por país,

• a extensão do seu mandato,

• a definição da(s) data(s) do sufrágio universal,

• a definição das funções e competências,

• a instalação ou não de uma sede permanente,

• sua relação com as outras instituições do Mercosul e com os parlamentos nacionais.

No contexto desse debate, autores originários de países do Mercosul, como Gerardo Caetano e Rubén Perina (2003: 318-9), apresentaram propostas concretas para preparar um parlamento regional eleito diretamente pelos cidadãos, median-te um futuro Protocolo de Eleições e Representação. Nessa agenda, esses auto-res consideram fundamental esclarecer a “questão delicada” da proporcionalidade na futura assembléia parlamentar, e a representatividade dos Estados pequenos. A solução para esse dilema não será fácil: o mesmo número de deputados por país e as decisões tomadas por consenso representariam uma desvantagem para os sócios maiores (particularmente o Brasil), enquanto a proporcionalidade absoluta, baseada no número de habitantes, prova-velmente seria inaceitável para os países pequenos. Não obstante, como a experiên-

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cia do Parlamento Europeu pôde demonstrar, existem fórmulas para resolver esses dile-mas. Outro desafio será o da representa-tividade regional no futuro Parlamento do Mercosul, ou seja, a decisão de adotar o modelo unicameral ou o bicameral. O mais lógico seria optar por uma só câma-ra, seguindo o exemplo de outros parla-mentos regionais. Ao reunir-se em uma só Câmara, e levando em conta que os futu-ros deputados do Parlamento do Mercosul seriam eleitos diretamente pelos cidadãos, pela sua estrutura, essa assembléia sub-regional atuaria futuramente como um autêntico foro parlamentar supra-nacional. Não obstante, para exercer essa função, a competência do Parlamento do Mercosul deveria incluir instrumentos eficazes para supervisionar, controlar e legislar o proces-so de integração. Sem essa competência, e sem que haja um verdadeiro “direito do Mercosul”, esse Parlamento correria o risco de ser apenas mais um foro de debate entre parlamentares latino-americanos.

A criação de um futuro Parlamento se enquadra em uma reforma institucional mais ampla do Mercosul. Diferentemente de outros processos sub-regionais de inte-gração, o Mercosul criou uma estrutura institucional “ligeira”, pragmática e inter-governamental. Seus principais órgãos de coordenação são o Conselho, o Grupo de Mercado Comum, a Comissão Comercial e os dois foros deliberativos: CPCD e FCES. Na medida em que progride a integra-ção entre os Estados-Membros, incluindo tanto temas comerciais como políticos, sociais e de segurança, a estrutura do Mercosul foi sendo ajustada. Após um longo período de retrocesso e estancamen-to, o Mercosul foi reativado com a criação de três órgãos adicionais, com incipien-tes funções supranacionais: a Secretaria Técnica, em Montevidéu, o Tribunal de Apelação Permanente, em Assunção, e a

Comissão de Representantes Permanentes, sediada também em Montevidéu.

Cabe lembrar aqui que a experiência da Comunidade Andina, e também do Parlamento Europeu, mostra que dispersar as sedes das instituições, localizando-as em cidades e países diferentes, não é uma estratégia muito acertada, pois eleva tanto os custos logísticos como os problemas de coordenação. No entanto, tudo indica que, assim como a Comunidade Andina, o Mercosul adota também esse modelo. Assim, a Secretaria Técnica e o Comitê de Representantes Permanentes estão situados em Montevidéu; o futuro Tribunal de Apelação estará sediado em Assunção; e os demais órgãos não dispõem de sede permanente, reunindo-se em diferentes lugares. Para reduzir os custos financeiros e logísticos, seria recomendável centralizar as instituições no mesmo lugar, preferentemente em um país pequeno, com estabilidade institucional e política.

5. Lições da Europa e da América Latina para o futuro Parlamento do Mercosul

Antes de criar um Parlamento do Mercosul, seria fundamental iniciar um debate sobre outras experiências com parlamentos regionais ou sub-regionais. A referência mais importante é, sem dúvida, o Parlamento Europeu, mas será igualmente interessante aprender com os poderes legislativos transnacionais já existentes na região.

A experiência latino-americana mostra uma série de erros e de riscos que deveriam ser evitados pelo Mercosul:

• Se não houver uma vigorosa vontade política de todos os participantes no processo de integração, um parlamento regional pode converter-se em foro totalmente irrelevante.

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• A debilidade institucional inerente dos Estados-Membros estará refletida também em uma assembléia par-lamentar conjunta. Um parlamento transnacional não pode compensar as deficiências institucionais dos par-lamentos nacionais. A qualidade da democracia e o poder parlamentar, no âmbito transnacional, dependem da qualidade da democracia e dos poderes parlamentares no âmbito nacional (ver Combes 1999: 18-19).

• Um parlamento regional só pode existir em conjunto com outros órgãos supranacionais ou semi-supranacio-nais de integração.

• Para serem efetivos e para poder influenciar o processo de integração, os poderes legislativos transnacionais requerem funções de controle sobre outros órgãos de integração e sobre os parlamentos nacionais. Quando só podem adotar Resoluções não vinculantes, mal terão um impacto perceptível.

A despeito das peculiaridades do desenvolvimento institucional da União Européia e do Parlamento Europeu, é pos-sível chegar a algumas conclusões aplicá-veis a um futuro Parlamento do Mercosul:

• O processo da ampliação das atri-buições do Parlamento Europeu não resultou de um plano original; com efeito, o Parlamento Europeu foi ini-cialmente idealizado como um órgão consultivo (ver Maurer 1999: 18). Não obstante, com a passagem do tempo, suas funções foram amplia-das e os seus representantes conquis-taram maior legitimação democráti-ca. Neste sentido pode-se constatar que: “Um traço característico do Parlamento Europeu é o fato de que

ele não se considera como parte acabada de um sistema institucional perfeito, mas como um elemento de composição que exige uma evolução ou até mesmo a sua transformação em algo diferente” (Corbett 1998: 368). Desta perspectiva, a futura evolução institucional da Comissão Parlamentar do Mercosul deve ser vista como um processo em aberto. É preciso recordar que o Parlamento Europeu começou também como uma assembléia legislativa nomea-da pelos parlamentos dos Estados-Membros, e que os representantes indicados para o Parlamento Europeu guardavam suas funções nos respec-tivos parlamentos nacionais.

• Levando em conta as diferentes funções ou atividades atribuídas ao Parlamento Europeu ao longo da sua história – como foro de debate, as funções legislativa e de gover-no e as de co-participação e influ-ência na tomada de decisões dos órgãos executivos de União Européia (ver Schmuck 1989) – atualmente a Comissão Parlamentar Conjunta desempenha, no máximo, a função de foro de debate.

• O Parlamento Europeu é parte de toda uma estrutura supranacional, e o seu desenvolvimento institucional foi estimulado e governado pelos progressos ocorridos no processo de integração econômica e política: pela cobertura cada vez mais ampla do direito comunitário e do reforço das estruturas supranacionais no âmbito de governo da União Européia (por exemplo, a tomada de decisões por maioria qualificada, no Conselho). Desta forma, o desenvolvimento institucional do Parlamento Europeu

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se realizou cada vez mais em um caminho já prefigurado pelas deci-sões adotadas no âmbito dos gover-nos.

• Os progressos com respeito às atri-buições do Parlamento Europeu se deram no contexto de uma intera-ção triangular entre a Comissão, o Conselho e o próprio Parlamento. Como instituição supranacional, a Comissão foi muitas vezes uma aliada do Parlamento Europeu, fun-cionando ademais como mediadora entre o Parlamento e o Conselho. No Mercosul, com as instituições hoje existentes, um parlamento suprana-cional entraria em confronto direto com os órgãos intergovernamentais.

• A necessidade de uma maior legiti-mação dos procedimentos das deci-sões comunitárias depende da cober-tura do direito comunitário. Uma associação basicamente econômi-ca como é o Mercosul não precisa necessariamente de ter uma legitima-ção processual, podendo bastar uma legitimação por rendimento (output-oriented legitimacy)5.

• A ampliação das atribuições do Parlamento Europeu foi influenciada pela delegação de soberania a insti-tuições supranacionais, o que provo-cou (conforme a percepção de uma parte importante das elites políticas nacionais), um deficit de legitimação democrática (ver Rittberger 2003). Esse foi o ponto de partida para uma ampliação das atribuições do Parlamento Europeu, como também para uma mudança nos mecanismos adotados para a eleição dos deputa-dos (de eleição indireta para direta). É necessário salientar que, no caso do desenvolvimento institucional do Parlamento Europeu, foi muito importante a atitude assumida pelas

elites políticas a favor de uma maior legitimação democrática. Por outro lado, os parlamentos nacionais não se opuseram à criação e fortaleci-mento de uma assembléia parlamen-tar supranacional. Teria sido igual-mente possível defender um cami-nho alternativo, reforçando o papel dos parlamentos nacionais como órgãos de controle das instituições supranacionais (ou dos representan-tes nacionais nessas instituições). No caso do Mercosul será preciso com-provar que os Congressos nacionais estão realmente dispostos a criar e ceder competência a um Parlamento supranacional.

• Qualquer progresso na integração econômica e política do Mercosul que amplie o papel de um parlamento supranacional precisaria definir igualmente a função dos parlamentos nacionais na estrutura institucional da associação regional. Assim como na União Européia, os cidadãos devem identificar-se primordialmente com o seu próprio país, antes do Mercosul, e a política receberá sua legitimação processual principalmente no âmbito nacional. Com uma estrutura de decisão mais diferenciada e complexa, o Mercosul enfrentaria os mesmos desafios propostos por “um parlamentarismo de múltiplos níveis”, que desde os anos noventa vem sendo objeto de discussão na União Européia.

• Parece pouco provável que o desen-volvimento institucional da Comissão Parlamentar Conjunta se aproxime, no futuro imediato, da trajetória ins-titucional do Parlamento Europeu, já que no Mercosul existem apenas estruturas supranacionais com inde-pendência e poder de decisão, as quais tornariam necessária a criação de algum órgão de controle parla-

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mentar supranacional. No momento, as decisões dos órgãos do Mercosul são tomadas no âmbito dos governos, e ratificadas pelos parlamentos nacio-nais. Nesse quadro institucional é suficiente um órgão consultivo como a Comissão Parlamentar Conjunta, que poderia funcionar como correia de transmissão entre os governos que se reúnem no Conselho do Mercosul e os parlamentos nacionais. Desta forma, os integrantes da Comissão podem acelerar os processos legislati-vos nos Estados Partes, para a pronta entrada em vigor das normas emana-das dos vários órgãos do Mercosul. Ao mesmo tempo, podem remeter as recomendações dos parlamen-tos nacionais para o Conselho do Mercado Comum, por intermédio do Grupo Mercado Comum.

Tomando como base o desenvol-vimento institucional do Parlamento Europeu, quais poderiam ser os cenários futuros para a criação de um Parlamento do Mercosul? Poderíamos imaginar um Parlamento eleito por sufrágio universal direto, que contaria com maior legitimida-de democrática, aumentando a identifica-ção dos cidadãos com o processo de inte-gração regional. O desenvolvimento insti-tucional ocorrido no Parlamento Europeu, depois da eleição direta, demonstra que um parlamento supranacional com uma base própria de legitimação poderia pro-mover sua identidade institucional. Como o Parlamento Europeu, um Parlamento do Mercosul poderia aproveitar ao máximo a institucionalidade vigente. Mas os pro-gressos possíveis dependem desse quadro institucional vigente. Seria possível insti-tuir uma classe parlamentar transnacional, impulsionando os presidentes dos paí-ses-membros do Mercosul e os ministros empenhados nos diferentes órgãos do Mercosul a avançarem no processo de

integração e a ampliarem as atribuições do Parlamento do Mercosul, mas esse cenário só será viável se houver vontade política de progredir na integração econômica e política por parte dos países-membros, o que implicaria ceder soberania a órgãos supranacionais. Não teria sentido criar um parlamento adicional despido de funções reais. Atualmente, os parlamentos nacio-nais são avaliados muito negativamente nas pesquisas de opinião pública realiza-das na América Latina. Qualquer parla-mento supranacional teria que enfrentar um grande ceticismo por parte da cidada-nia, que tenderia a vê-lo como mais um mecanismo inventado pelos políticos para enriquecerem à custa dos seus eleitores. Em um cenário ainda pior, o Parlamento do Mercosul poderia ser confrontado pelo desinteresse geral; como acontece com o Parlamento Europeu, que apesar da sua legitimidade democrática direta e das suas atribuições ampliadas é mal percebido pela opinião pública e não é apreciado pelos cidadãos europeus.

Em suma, tudo indica que falta ainda um longo caminho para que o Mercosul possa por em funcionamento um poder legislativo transnacional que sirva de vín-culo entre democracia e integração. Vale lembrar que a instalação do Parlacen tomou também mais de cinco anos, da formulação da idéia até a sua implementa-ção. No caso do Mercosul, foi o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, que em janeiro de 2003, no princípio do seu man-dato, sugeriu a criação de um Parlamento do Mercosul para aumentar a participação dos cidadãos no processo de integração. Cabe esperar que essa idéia seja levada à prática com a possível brevidade, e que o futuro Parlamento do Mercosul não seja demasiado ambicioso e, por outro lado, não se torne desde o princípio um foro irrelevante.

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SUSANNE GRATIUS / DELFET NOLTE

Nota biográfica: Susanne Gratius: Cientista política, responsável pela América Latina no Stiftung

Wissenschaft und Politik (SWP) (Instituto Alemão de Política Internacional e Segurança).

E-mail: [email protected]; homepage: http://www.swp-berlin.org/forscher/forscherprofil.php?id=1344&PHPSESSID=32c67472ae315f6bbf3a191664a6560d

Delfet Nolte: Cientista político, Subdiretor do Instituto de Estudos Ibero-Americanos de Hamburgo; professor na área de estudos latino-americanos e de ciência política na Univer-sidade de Hamburgo. Áreas de investigação sobre a América Latina: reforma do Estado; descentralização; sistemas políticos; parlamentos; direitos humanos; eleições; relações internacionais (Alemanha-América Latina; União Européia- América Latina); relações cívico-militares. E-mail: [email protected]; homepage: http://www.duei.de/iik/show.php/de/content/mitarbeiter/nolte.html

NOTAS1 Para comemorar esse aniversário foi publicado um número especial da revista Journal of Common Market Studies, intitulado “The European Parliament at Fifty“ (vol. 41 (2003), n. 22 Assim, por exemplo, nos anos 1970, o Parlamento Europeu apresentou em média menos de mil questões escritas e menos de 500 orais, por ano. Depois da eleição direta, nos anos 1980, foram apresentadas em média 2250 questões escritas e cerca de 1000 orais, anualmente. Além disso, as audiências públicas das comissões parlamentares permanentes aumentaram de duas por ano, entre 1974 e 1979, a vinte por ano no período 1980-1989 (Corbett 1998: 124-5). 3 Até julho de 2002, foram submetidas ao Parlamento Europeu 602 propostas legislativas, no quadro do procedimento de co-decisão; destas, 417 concluíram a tramitação legislativa. Em 65 casos, o Conselho não conseguiu por-se de acordo, e cinco propostas foram finalmente rejeitadas pelo Parlamento. 348 das propostas legislativas resultaram em decisões conjuntas do Conselho e do Parlamento: em 236 casos sem entrar em processo de conciliação, e em 112 com base em proposta do Comitê de Conciliação. Além disso, o Parlamento Europeu participou em 2.566 procedimentos de consulta, em 163 casos de consentimento e 448 procedimentos de cooperação – mecanismo que deixou de existir (Maurer 2003:232-4). 4 Cada ano mais de cinco mil dessas perguntas são apresentadas por escrito pelos deputados ou grupos parlamentares. 5 Com relação à diferença entre “procedural legitimacy“ e “output-oriented legitimacy“ ver Scharpf (1999).

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Fragilidade da Democracia do Parlamento

Contemporâneo

* BONIFÁCIO DE ANDRADA

Os avanços tecnológicos e os novos patamares sócio-econômicos que importantes camadas populacionais do primeiro mundo estão atingindo vêm provocando generalizadas repercussões na sociedade e, sobretudo, nas instituições políticas.

Uma das áreas em que a sociedade projeta suas maiores preocupações, através dos seus setores mais expressivos, se localiza nos mecanismos da democracia, que precisam alcançar eficiências maiores para conter demandas sociais, as mais diversificadas, que resultam dos novos

* Deputado Federal

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aparatos tecnológicos de que dispõe o homem moderno.

Mas, se esses avanços tecnológicos estão presentes em vários países desenvolvidos, exigindo mudanças e urgentes adaptações, a maior parte do mundo, vítima das investidas negativas da globalização, começa a ser cada vez mais inserida em processos políticos governamentais de forte tendência autocrática ou mesmo ditatorial.

O quadro do mundo, portanto, oferece alguns ângulos sombrios para a democracia, pois que a tecnologia da globalização exige dos países desenvolvidos novas instrumentalizações democráticas para direitos e garantias de bem-estar do povo, enquanto que, em grandes parcelas populacionais do planeta, os mesmos indicativos globalizantes provocam sérias deficiências para as técnicas governativas que se baseiam nas liberdades públicas.

A democracia, portanto, precisa ser reconstruída e, logicamente, a sua instituição básica, o Parlamento, há de ser reestruturado dentro dos postulados e mecânicas novas que possam colocá-lo sob inovadores imperativos de respostas políticas adequadas ao nosso tempo.

A representação popular – que os romanos de certa forma forjaram em seus primeiros lances e que as instituições inglesas, na metade do milênio, vão promover com artifícios eficazes de que se valerá a Revolução Francesa nas suas alternativas democráticas, com o constitucionalismo do século XIX –exige, em nossa época, uma busca de modelos institucionais que correspondam à complexidade, ao pluralismo, à heterogeneidade, ao participacionismo e às conscientizações ecológicas e

planetárias que se desdobram no cenário em que vivemos.

Todavia, a problemática há de ser enfrentada com uma procura teórica capacitada para viver e sentir os dados pouco conhecidos que, surgidos em nossos dias e compondo novas circunstâncias, pouco são entendidos e apreendidos pelas principais lideranças responsáveis pelas soluções desta ordem social, tão efervescente no cenário hodierno.

Cremos que, inicialmente, há que se compreender os termos abstratos da essência da democracia que possui, no âmago da sua mensagem, valores bíblicos a que se refere o ensinamento notável de Bergson, mas que se completa nos seus condicionamentos práticos com a visão de Lincoln e de Duguit, quando aquele define a democracia como o governo do povo, pelo povo e para o povo, ou como governo dos governados, exercido pela representação dos governantes, segundo aquele outro.

Respeito total ao ser humano e exercícios predominantes dos homens como governados, delegando a alguns desses a responsabilidade de governo: parece-nos que nesse núcleo de entendimento se situa a essência política da democracia. E, partindo dos termos desta nucleação da essência democrática é que devemos repensar a democracia diante da fragilidade que as forças sociais lhe impuseram no tempo atual, repercutindo na sua principal instituição que é o Parlamento, hoje tão enfraquecido diante de elementos redutores da sua plenitude.

Na realidade, em todo o mundo, os impulsores da tecnologia alteraram de maneira espetacular o ambiente psicos-social, onde os processos televisivos e a

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celeridade das informações computatoriais criam, produzem, impõem às inteligências outras formas de realidades, que, muitas vezes virtuais, suplantam a realidade exis-tencial.

As TV´s tendem a fomentar a presen-ça de situações bem distantes das realida-des sociais e, geralmente dominadas pelos núcleos econômicos, enfraquecem e infe-riorizam a consciência política, de acordo com os interesses diretos e indiretos da lucratividade.

Os grupos econômicos querem solu-ções rápidas para os seus pleitos e, quando podem, atropelam ferozmente as instân-cias político-sociais.

O Parlamento, que em outros momentos históricos e em diversas nações constituía o foco principal de poder, o centro maior, a simbologia institucional com significação elevada, hoje está aba-tido e atingido na sua expressão singular por esses produtos acabados de uma mídia poderosa, que lança sobre toda a socieda-de verdadeiros “nevoeiros” informativos, que dominam o ambiente absorvendo (porque não dizê-lo?) mentes e corações. E este espetáculo de desinstitucionalização democrática através de implementações provocadoras de alienação, com aneste-sias psicossociais que atingem o cérebro, somente poderá ser superado e vencido com a criatividade poderosa capaz de defender a democracia, e dentro deste desiderato, principalmente o Parlamento.

Neste quadro de fragilidades institu-cionais, há uma tendência natural histórica de ocupação de espaço pelos elementos representativos dos governantes que as Constituições modernas intitulam de Poder executivo, cujos agentes crescem e se expandem, discriminando e comprimindo

- para não dizer, colocando em situação acuada – os governados que constituem, de fato, o povo, nos seus direitos de viver e de participar de alguma forma nas magnas decisões que dizem respeito à comunida-de em que se integram.

E o crescimento e a presença impo-nente do poder executivo passam a ser a solução simplificada que a tecnologia moderna sustenta no seu vocacionamento de celeridade e de busca da lucratividade econômica.

Verifica-se assim, em vários países, inclusive nas democracias mais clássicas como a norte-americana, a inglesa e a francesa, entre outras, a influência cada vez mais intempestiva e cotidiana dos respectivos governantes executivos, dei-xando enfraquecidas, de certa forma, em maior ou menor tonalidade, as instituições parlamentares que não conseguem mais a audiência prioritária dos seus debates, das suas críticas, das suas formulações, porque tudo não alcança a área parlamentar com os elevados patamares da predominância dos agentes do poder executivo.

É que, de um lado, os grupos eco-nômicos voltados para a lucratividade influem no cenário informativo, e, de outro lado, o processamento governamental do executivo impõe, por meio dos segmentos administrativos fiscais, creditícios, judici-ários e policiais, toda a processualística das informações e dos fornecimentos de dados sobre a realidade, alterando a sua retratação segundo os propósitos que tem em vista.

Espremida nesse ambiente, a fragi-lidade do Parlamento não possui mais o socorro dos Partidos Políticos que, tam-bém abatidos dentro deste “nevoeiro midiológico”, dia-a-dia se submetem a uma consistente infiltração de propagan-

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das bem armadas contra os titulares da vida pública, os políticos, considerados deturpadores e dificultadores do processo de desenvolvimento segundo o tecnocra-cismo dominante e agressivo.

Há também, no meio dessa men-cionada complexibilidade, atores novos que passam a assumir lugares de desta-que nesse ambiente dos nossos dias, que são as entidades transnacionais, super-nacionais, formalizadas ou não, ou que pressionam sob construção globalizante as diversas nações, geralmente ferindo elites ou classes políticas, quando aquelas impõem roteiros perturbadores da estabili-dade social de qualquer país.

Também nessas situações, estranha-mente, o Parlamento e os Partidos Políticos constituem objeto de maior crítica e rejei-ção por parte dos titulares tecnocráticos do governo.

Outro elemento a se considerar nesse cenário planetário de problemas, em rela-ção ao Parlamento e aos partidos políticos, encontrar-se-á na sistemática de governo adotada pela nação. Indiscutivelmente, o regime parlamentarista de Governo é um auxiliar influente para a vivência demo-crática, enquanto que o presidencialismo contém dentro de si, a todo instante, uma vocação autocrática, sempre voltada para as exceções institucionais em que se ferem as liberdades públicas.

Nos países mais civilizados, de um modo geral, prevalece o parlamentarismo, mas nas Américas e nas áreas mais atrasa-das do mundo, logicamente, há prioridades para o presidencialismo, que comumente é deturpado por governantes de exercício ditatorial.

As Américas, sobretudo os países do Caribe e do Continente Sul, vivem nes-tes últimos anos, agora alimentados pela tecnologia e pela globalização, situações expressivamente autoritárias, em que as Constituições contém técnicas excepcio-nais de decisões autocráticas que passam a ser utilizadas no dia-a-dia, como ocor-re no Brasil com as chamadas “Medidas Provisórias”. Há de se incluir, neste mesmo quadro, a projeção de chefes de Estado que, pela sua vocação autoritária, passam a dominar o mundo político em detrimen-to das representações democráticas, como de certa maneira ocorre com o atual presi-dente norte-americano.

Concomitantemente com esses diver-sificados condicionamentos, há ainda, em muitos países, outras formas de predomi-nância dos governantes em detrimento dos governados, devido ao excesso de centra-lização político-administrativa em favor das prerrogativas do poder executivo, com reflexos nos mecanismos da Democracia, que necessitam fortalecer os governados quando estes, esquecidos e ignorados, ficam longe dos centros de decisões insti-tucionais.

Quando temos diante de todos nós essas questões acima, verifica-se, logica-mente, que o fortalecimento da democra-cia, do Parlamento e mesmo dos partidos políticos que sustentam tal sistema encon-trará o seu encaminhamento eficiente se partirmos de um novo raciocínio, de um repensar descritivo referencial da demo-cracia, focalizando, primeiramente, os seus dados básicos acima indicados.

Democracia são os valores evangé-licos na filosofia bergsoniana, que identi-fica tal regime político com os ensinamen-tos do cristianismo. Democracia é governo

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que se envolve e se submete às dinâmicas do povo na pregação lincolniana; e demo-cracia também há de ser um esquema prático em que se deve institucionalizar a predominância dos governados, o povo, em relação aos governantes no modelo político visualizado por Duguit.

De início, portanto, a reedificação da Democracia, segundo o postulado evan-gélico, resultará no combate ao crime e às infrações pecaminosas que, em nossos dias, são momentos cruéis como o terro-rismo, a corrupção, o tráfico de drogas, além das violências e da miséria no seio de parcelas territoriais do planeta. Mas há que se edificar instrumentos para que se possa ouvir melhor e dialogar com mais desenvoltura com o povo, fora do imaginário doutrinário atualmente exis-tente. Nas comunidades maiores, cidades, bairros e vizinhanças impõe-se a criação de inovadoras técnicas de fortalecimento dos governados, sobretudo por intermédio dos partidos políticos e, em especial, do Parlamento, com processos psicossociais e tecnológicos capazes de anular a neblina ou nevoeiro midiológico, impedindo-se a alienação e a anestesia política generali-zada em favor de grupos de poder e de atores novos da globalização.

Não se pode, pois, isolar do conceito de democracia o Parlamento, que conti-nua sendo o núcleo e o coração da vida democrática para corresponder às exigên-cias do regime de liberdade.

A sociedade precisa valorizar, para viver sob o regime dos povos livres, o plenário parlamentar, em que as grandes questões são conhecidas e esclarecidas, tendo em vista o apoio às prerrogati-vas populares e impugnação às infrações tormentosas de desrespeito ao decálogo

evangélico, o qual constitui um permanen-te modo de pensar, conjunto de elencos do subconsciente humano, um dado natural e perene para o comportamento em todos os momentos históricos.

Mas, além deste posicionamento de reação contra os males sociais e políticos, a sociedade, no Parlamento, encontra um campo de debates e de discussões das questões concretas que lhe dizem respeito, diante das escolhas políticas e administra-tivas, em face das encruzilhadas com que a comunidade se depara, para a solução da problemática sócio-governativa que lhe afeta.

Ao lado disso, o Parlamento, psicos-socialmente falando, é a transmissão, a pre-sença, o comparecimento dos reclames e reivindicações populares, enfim, a voz do povo por delegação deste, o que, em nossos dias, não ocorre como no passado, o que evidencia os seus aspectos deficitá-rios que o impregnam de fragilidade, pois não mais corresponde ao engajamento, às exigências, tendências, apelos, inquieta-ções, reclames, preocupações maiores e menores, ditames de toda espécie que a população, como povo, vive e incorpora no seu dia-a-dia, no seu cotidiano.

É nesse ângulo lincolniano de ins-trumentação do regime através da técnica institucional parlamentar, que os nossos dias revelam falhas de inépcia na enti-dade legislativa, com reflexos negativos para o modelo de liberdade política. E, na medida em que esta dinâmica lincolniana se enfraquece na sociedade, há reflexos perigosos na ordem social, pois que a visão de Duguit começa a perder o seu sentido, afastando-se os governados, isto é, o povo, dos centros de decisão, emergindo cada vez mais fortes as ações autoritárias

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dos governantes no que desregulamenta o ambiente da democracia, enfraquecendo o seu conteúdo e permitindo a expansão dos agentes governantes sob clara vocação autocrática.

Não se pode raciocinar, portanto, sobre a problemática do Parlamento e de sua fragilidade sem valer-se das conceitu-ações de Bergson, Lincoln e Duguit, três pensadores que alimentam elevados pata-mares do saber na filosofia, na prática polí-tica e no direito público clássico e, ainda, sem se utilizar de uma visão de inspirações fenomenológicas, partindo da realidade viva da democracia atual nas diversas comunidades nacionais do nosso tempo, e abstraindo os principais dados da sua essência para repensá-la e, sob retificações concretas, reconstrui-la com apropriadas condições existenciais para o século XXI.

De fato, os três pensadores nos reve-lam, como acima nos referimos, três ângu-los essenciais da composição democrática, da sua substância, para construir, partindo de suas referências básicas, as instituições necessárias e correspondentes às nossas aspirações, todavia, reaparelhadas, reati-vadas e repreparadas para confrontarem-se com as incertezas, incoerências, disparida-des e marcas enigmáticas que dominam o nosso presente e mais ainda o futuro.

O Parlamento, para acudir a demo-cracia em nossa época, precisa edificar-se sob rigorosas formas que venham a supe-rar suas acrescidas fragilidades, para ser o plenário dos debates informativos da vida governamental, apontando erros, deficiên-cias, corrupções, irregularidades, defeitos, vícios e deturpações, sobre uma arena em que os gladiadores da representação popular possam lutar contra tais demônios sociais que invadem o seu solo, com

o fim de anular os delegados do povo, procurando imobilizá-los e desmoralizá-los.

Outro problema básico é o da for-mulação de técnicas eleitorais capazes de purificar a representação parlamentar, não só nos aspectos éticos de seus integrantes, contudo, ainda, nos ângulos de eficiência e conhecimentos da coisa pública que pre-judicam a eficiente ação política e admi-nistrativa.

Mas não basta, porém, a existência de uma arena plenarial com bons gladia-dores para combater as feras da corrupção, da prevaricação, da ineficiência e da inca-pacidade. Impõe-se, ainda, que a arena parlamentar tenha ressonância no seio do povo para que esse possa ocupar as gale-rias maiores e expansivas, e venha a se integrar, vendo e acompanhando, aplau-dindo ou não, porém com pleno conhe-cimento das atitudes e do comportamento dos representantes do povo, em face das maiores questões nacionais e das menores, de interesse comunitário.

E esta é outra problemática, pois a tecnologia dos veículos de comunicação e das informações conduz os acontecimen-tos em desfavor, comumente, do verdadei-ro noticiário democrático.

Se as tecnologias das informações se submeterem aos interesses da tecnocracia pública ou empresarial, de vocação auto-crática, através dos nevoeiros midiológicos impedirá o povo de acompanhar, de obser-var e analisar as atitudes parlamentares e os debates decorrentes do convívio destes na representação popular. Também aí a fragilidade do Parlamento pode resultar na sua anulação sob reflexos antidemocráti-cos perigosos, em que o predomínio da tecnocracia pública e empresarial, de nível

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nacional ou internacional, deturpará os ali-cerces do regime de liberdade, reduzindo a capacidade do Parlamento em favor de interesses pouco confessáveis.

Não haverá, assim, a dinâmica lin-colniana, criadora da substância concreta da democracia, em detrimento da influ-ência da população no encaminhamento das coisas públicas. Por outro lado, a democracia é governo dos governados, onde há predominância do povo. Ora, se o povo não tem condições de se articular com o Parlamento em virtude das distor-ções das tecnologias de informação, se ele não pode estar presente, através de seus delegados, na participação decisória das grandes tomadas de posição do gover-no, dificilmente haverá a predominância democrática da sua presença e do seu comparecimento para influir e pesar na escolha de diretrizes do governo, caindo, assim, a titularidade dos governados a um plano de insignificância política.

Tudo isso nos obriga a repensar ins-titucionalmente a democracia através do Parlamento, para que se possa, com urgên-cia, superar estas complexidades que difi-cultam a instituição e o regime.

Verifica-se, para tanto, que a sistemá-tica de escolha dos representantes do povo e a formação dos partidos devem obedecer regras atualizadas, que venham a fortalecer estes e permitir a melhor escolha daque-les, em favor de delegados populares, de comportamento ético, vinculação com a comunidade e preparação intelectual que satisfaça o enfrentamento dos obstáculos comunitários e nacionais de nossa época.

Há que se anularem as possibilida-des de nevoeiro midiológico, que resulta em pleitos presidenciais do tipo Collor, permitindo-se um entendimento informa-

tivo maior para o povo, o que os partidos realmente com bases populares e núcleos políticos locais poderão alcançar através de lideranças básicas e de engajamento com o povo.

Mas, ao lado destes influentes con-dicionamentos, novos modelos ao lado do Parlamento precisam ser instituídos para que a presença do povo se transforme em fator real de manutenção democrática, em que o cidadão possa fazer valer os seus direitos diante de uma burocracia insu-portável, que arma fiscais do fisco com apetrechos violentos e agressivos contra os pequenos comerciantes e correlatos segmentos sociais, enfraquecendo, ainda, a cidadania, diante dos outros tipos de agentes públicos sanguinolentos da área da previdência, do policiamento geral e especializado, da área de vários serviços públicos, que se alinham no desfavor e no desrespeito revoltante aos direitos dos integrantes da população, muitos de con-dições humildes, e poucos alfabetizados, de variadas regiões.

Estas medidas institucionais, todavia, só podem ser concretizadas se lideranças capazes, partidos reestruturados, sem as esdrúxulas limitações de leis conflitantes da Carta Magna, possam de fato atuar com eficiência.

Se mergulharmos na realidade con-creta de diversos países, sobretudo na América Latina, no mundo africano e asiático, localizaremos estas deturpações que fortalecem os governantes, no caso ibero-americano com largas tendências à ressurreição da caudilhagem. Nestas nações, as fragilidades acima se desdo-bram em lamentáveis peculiaridades, em que a vocação autoritária do passado se alimenta diante da fraqueza de parlamen-

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tos pouco integrados ou engajados nas reivindicações populares.

No caso do Brasil, a fragilidade do Parlamento decorre de vários fatores, quais sejam aqueles de ordem constitucional, o do enfraquecimento dos partidos no atual sistema eleitoral, as práticas administrati-vas negadoras das próprias leis vigentes, a perigosa situação social da população dis-criminada, além do atual nevoeiro midio-lógico, que tende, em termos genéricos, a fortalecer o Poder Executivo, apesar do problemático quadro político-governa-mental em que nos encontramos.

A Constituição de nosso país foi discutida e votada numa época desajusta-da, pois que a representação constituinte, ao contrário de se voltar para o futuro e preparar o País para as conquistas do amanhã, voltou-se em termos obsessivos para as práticas dos governos militares que se impuseram à nação, a partir de 1964, procurando promover medidas que impe-dissem a repetição daquelas, mas, curiosa-mente, por razões pouco decifráveis, man-tendo e alargando técnicas constitucionais e legais perigosas e impróprias para um país na busca da democracia.

A forma de Estado adotada inspirou-se muito mais nas engrenagens de gover-nos militares do que nas melhores tradi-ções do Federalismo brasileiro, mantendo os excessos do poder central com todas as atribuições que foram dadas à União, e enfraquecendo as unidades federadas em termos discriminatórios.

No imenso país como o Brasil, não há Federação, mas um poder central que, pela sua fortaleza, domina politicamente os governadores e as unidades federadas, obrigando indiretamente todos os Partidos,

por terem ligações com as autoridades estaduais, a se filiarem às bases políticas parlamentares do Governo Federal, aumen-tando, assim, a fragilidade do Parlamento Brasileiro, limitando as suas manifestações legislativas.

E essa fragilidade do Parlamento em nosso país é acrescida de uma forma estranha e exagerada, quando analisa-mos, amparados em Loewenstein, os Três Poderes da República, o funcionamento de cada um deles e as suas relações insti-tucionais. O Poder Legislativo do Brasil de hoje é o mais fraco de toda nossa história constitucional, deixando de lado a sua ine-xistência durante a ditadura Vargas, quan-do estava fechado, e as limitações drásticas que lhe impuseram os Atos Institucionais nos governos militares, embora permitindo o seu distorcido funcionamento.

Mas, se analisarmos a Constituição de 1988, atualmente em vigor, e a Carta de 1967, temos hoje um Parlamento mais frágil diante de um Poder Executivo que agora é mais autocrático que o daque-la época. O chamado “Decreto-Lei” de 1967 é menos autoritário que as “Medidas Provisórias” de 1988, e as atribuições legislativas do Executivo, na atualidade, são superiores em índices autocráticos aos daquela Carta Magna, fruto do hiato constitucional do período militar. Os próprios partidos políticos, embora sob as malhas estranhas de uma legislação que os tornava matéria de Direito Público, viviam debates e confrontos de melhor validade democrática do que em nossos dias.

A estrutura econômica-financeira instituída em 1988 nos trouxe falhas de tal gravidade que já foi modificada com mais de trinta Emendas Constitucionais, e o sis-tema constitucional tende a enfraquecer,

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neste particular, nossa democracia, porque dá ao Poder Executivo excepcionais com-petências no campo econômico-financei-ro para anular o Orçamento por meios indiretos e oblíquos. Também as abusivas atribuições que confere aos agentes fis-cais e previdenciários, para extorquir da população tributos e contribuições, permi-tem, ilegalmente, o predomínio de normas regulamentares em detrimento da lei e da Constituição.

Há de se acrescentar, além de tudo isso, que a fragilidade do Parlamento no Brasil também é alimentada pelo poderio do Executivo na área das informações e da notícia política, impondo às empresas detentoras dos veículos de comunicação as principais diretrizes do noticiário polí-tico, capazes de construir os perigosos nevoeiros midiológicos alienadores da população.

A Constituição de 1988 contém uma técnica sem precedentes e desconhecida do mundo ocidental no relacionamento do poder legislativo com o poder judiciário, fragilizando também o Parlamento. No seu texto foi criada uma expressa tutela judi-ciária sobre o Legislativo, enfraquecendo-o por um complexo controle da consti-tucionalidade das leis, que se concretiza de forma dupla, utilizando-se ao mesmo tempo a técnica da Corte norte-americana e, ainda, a dos Tribunais Europeus, o que deteriora a capacidade de produzir a lei e, especialmente, a sua vigência. Não con-tente com tais acúmulos de meios revoga-dores de lei por inconstitucionalidade, a Carta Magna institui uma tutela judiciária maior, dando praticamente ao Supremo Tribunal Federal a competência de decla-rar nulas as Emendas Constitucionais, pois o constituinte de 1988 alargou os itens

das cláusulas pétreas, permitindo assim este novo tipo de declaração de “super inconstitucionalidade”. Não fosse o equi-líbrio e a prudência dos ministros do STF, graves conflitos ocorreriam entre os Poderes, o que no futuro poderá, infeliz-mente, se concretizar.

Perigoso mal que fere as fontes da legislação, enfraquecedor do Parlamento, constitui, diante de nós, o processo de pro-dução de normas regulamentares, detrator do Poder Legislativo ao se desrespeitar generalizadamente as leis, substituindo-as por regras infralegais ou subleis advin-das da tecnocracia atuante e eficiente do Poder Executivo.

Na prática, a lei votada pelo Congresso perde sua vigência, substituída pela norma administrativa do Poder Executivo, nas práticas do dia-a-dia da Administração.

O fenômeno da subnormatividade legal entre nós vem, desde os governos militares, assumindo uma situação que implementa, em termos permanentes, a deformidade da ordem jurídica, enfraque-cendo a força da lei e a eficiência jurídi-ca da legislação votada pelo Congresso Nacional.

É uma curiosa mas triste ocorrência, nestes últimos 30 anos, que a Constituição de 88 não soube corrigir e os governos sob a vigência da Carta Magna atual não tive-ram a capacidade de retificar. Os governos militares, antes da Constituição de 1967, criaram novos tipos de normas legais, como os Atos Institucionais, em nível de lei constitucional, os Atos Complementares, em nível de leis complementares e os Decretos-Lei, em nível de lei ordinária, mas prestigiaram muito os Decretos, que são elementos normativos de nível regula-mentar, e iniciaram, juntamente com este

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algumas técnicas infra-regulamentares com certa força jurídica, como as Resoluções, as Portarias, as Instruções e outros meca-nismos reguladores que, estranhamente, ganharam maior projeção após 1988.

De fato, esta área nos governos mili-tares pouco a pouco deu força aos buro-cratas que, de assessores, se transformaram em técnicos burocratas e, especialmente no setor econômico-financeiro, assumiram as principais manifestações administrati-vas do governo. Cresceu, assim, no País o seguimento tecnocrático que, no silêncio, se transformou na principal força políti-ca de influências político-administrativas dentro do poder público, com uma lin-guagem ultra-racionalista que coincidia com o falar e o modo de entender dos militares. Esse seguimento tecnocrático, indiscutivelmente detentor de significati-vas informações de interesse público, vai predominar, embora com menos ênfase, no hiato constitucional de 67.

Todavia reaparece, poderosíssimo, após o golpe de Estado de 1969, com a chamada Emenda Constitucional nº 1, daquele ano, mas, o que é estranho, deve-rá se fortalecer mais ainda após o even-to constitucional de 1988, e, graças ao texto analítico e expansivo da Constituição deste ano, consegue se manter assim den-tro do governo central até os dias presen-tes. Influem nas decisões maiores do País e encaminham soluções sob esta visão ultra-racionalista, alienada da sociedade, dispondo também de Medidas Provisórias, frutos de seus escritos em diversas áreas, especialmente no campo tributário, fis-cal, previdenciário, e de certa maneira, no educacional e da saúde, conseguin-do implantar “subnormas legais” sob as denominações conhecidas de portarias, resoluções, etc., que na maioria das vezes

conflitam com as leis ou substituem estas de forma abusiva, e, em certos casos, até suprimem ou complementam as cláusulas constitucionais.

O fenômeno antijurídico é estranho, mas há exemplo de contorno patológico de teor atraente para o cientista político. Vejamos: o fiscal ou o agente público chega diante de um contribuinte ou cida-dão qualquer e lhe apresenta uma portaria ou resolução que contraria frontalmente a lei e a Constituição, exigindo-lhe algo e ameaçando-o com multas ou penalida-des perigosas e até mesmo com a prisão. O cidadão se revolta contra a portaria ministerial ou departamental, cheia de irregularidades e, de imediato, o agente do poder público o pune com multas e outras arbitrariedades.

O cidadão recorre dentro dos trâ-mites administrativos, mas as autoridades superiores não recebem o recurso e até “debocham” do “pobre coitado”. O cida-dão contribuinte indignado dá entrada no Judiciário com uma providência enqua-drada plenamente na lei para se defender, com boas bases jurídicas e bom advogado, mas o Judiciário vai demorar de 5 a 10 anos para atendê-lo. E assim, na prática, a subnorma ilegal e arbitrária do fiscal da previdência ou tributário, ou de outro setor do governo, prevalece e predomina, anulando o texto constitucional ou o texto da lei e criando, desta forma, uma volu-mosa e expressiva atividade em detrimento das leis, isto é, em detrimento da produ-ção legislativa do Congresso Nacional, provocando uma sinistra fragilidade na ordem jurídica, de efeitos graves contra o Parlamento.

Há em nosso país, ao lado desses ângulos de deficiência, um sistema elei-toral que através do chamado voto uni-

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nominal deturpa e dificulta o processo de escolha dos representantes do povo, permitindo o predomínio dos meios cor-ruptivos e da força financeira nas eleições de toda espécie ocorridas entre nós.

Pelo voto uninominal o eleitor, na prática, vota diretamente no candidato a deputado federal ou estadual, ficando esquecida e ignorada de todos a impor-tância do partido no processo eleitoral, porque ele se torna, fatidicamente, um inexpressivo artifício da lei.

Quando os partidos eram fortes, antes de 1964, com a UDN, PSD, PTB, etc., o eleitor identificava o candidato com a agremiação partidária, e o pessedista, o udenista e outros comportavam-se partin-do da fidelidade à sua agremiação, para depois escolherem o candidato. Depois de 64, os partidos deixaram de ser um fenômeno político para se transformarem numa instituição jurídica, e isto em tais termos que o Judiciário intervinha e parti-cipava do funcionamento partidário, sub-metido a uma técnica de estratégia política dos militares que procuravam disciplinar as tendências – subterrâneas, mas, ainda vivas – das antigas agremiações (UDN, PSD, etc.) que pretendiam anular, inclu-sive, com providências paulatinas como a criação das chamadas sublegendas que funcionavam dentro da ARENA e MDB, instituídas pelos governos militares.

Com o natural enfraquecimento desses partidos políticos artificiais, ger-minou por todo o País o descrédito que hoje persiste em relação às agremiações partidárias, substituídas silenciosamente, em muitas áreas, por “forças políticas” informais como o seguimento tecnocrático e outras manifestações como os agrupa-mentos religiosos, etc.

Nesta crise de patologia político-partidária, o voto uninominal dentro do sistema proporcional se transforma num fenômeno de forte realidade sócio-polí-tica, porém, ao mesmo tempo, assume aspectos de grave deturpação antidemo-crática. De fato, no passado, este sistema era válido e teve seu sentido, mas agora se transformou numa amarga experiência para a democracia.

Entre os aspectos deprimentes da sua presença como instituto eleitoral, basta a descrição dos custos da campanha eleito-ral e dos votos necessários para se eleger um candidato, dados estes que são eviden-tes ao observador.

Atualmente, em Minas Gerais, um candidato, para ter a sua eleição garanti-da, de um modo geral, necessita de 100 mil votos, o mesmo acontecendo no Rio Grande do Sul, mas em São Paulo ele necessita de mais ou menos 200 mil votos. Ora, um candidato, para se eleger em plei-tos deste tipo, há de organizar, seis meses antes do pleito, uma verdadeira empre-sa eleitoral para cuidar das providências jurídico-eleitorais, promover dezenas de comícios com shows e outros espetáculos, implantar outdoors em diversos locais, edi-tar milhões de cartazes pequenos e gran-des. Deverá, ainda, reunir equipes admi-nistrativas dos respectivos trabalhos, para deslocá-las com veículos e outros meios visitando, no mínimo, 50, 70 localidades.

Pessoalmente o candidato deverá alcançar rápida mobilidade de sua presen-ça em muitas áreas de ação para, em deze-nas de cidades e centenas de lugares, fazer reuniões, realizar pesquisas que possam orientá-lo no comportamento de busca de votos, cuidar, inclusive, de sua segurança e da mesma em relação a comícios e reuniões, além de organizar uma eficiente

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equipe de gerenciamento de tudo isso. Esse espetáculo, que é logicamente de elevadís-simo custo financeiro, dificilmente será acessível a um político de classe média, pois é inviável para as melhores vocações que não tenham atrás de si adequados recursos financeiros próprios ou de grupos econômicos que, por razões específicas, desejam eleger um candidato.

É verdade que há exceções, mas dentro do processo do voto uninominal elas tendem a desaparecer para cair numa regra geral em que as Assembléias e a Câmara Federal tornar-se-ão um plenário inacessível e inviável para aquela grande maioria de profissionais da classe média, isto é, aquele tipo de homem público com bom índice de capacidade e inteligência pessoal que povoou o Congresso Nacional até a década de 80, e com o brilho dos melhores debates parlamentares de nossa vida republicana.

Esse problema é da maior seriedade e a proposta da chamada “Lista Fechada”, ainda sob o sistema proporcional em que o eleitor votará no Partido e este, interna-mente, escolherá a lista de seus candidatos preferidos, politicamente falando consti-tui a solução encontrada e praticada no mundo europeu, como também em países das Américas, com êxito democrático bem salutar.

Verifica-se, assim, que hoje no Brasil também o sistema eleitoral é um dos fato-res de fragilidade do Parlamento que, dia-a-dia, tende a ser ocupado por milionários, por representantes de grupos econômicos, por representantes de seguimentos sociais financeiramente influentes e por compare-cimento episódico de alguns, comumente frutos do estrelismo da mídia ou das pre-gações religiosas, havendo, logicamente, algumas exceções que não irão perdurar.

Em face destas questões, urge que a criatividade do pensamento político e a capacidade de novas lideranças saibam, em nosso país, promover o revigoramento de nossa democracia e, em decorrência disto, do Parlamento, formulando modelos capazes de exigentes adaptações nas quais devam predominar os governados através de seus representantes, anulando as mani-festações autoritárias da tecnocracia, supe-rando o “nevoeiro midiológico” que aliena o povo, criando formas de maior interco-municação e integração com a população, mas, principalmente, afastando e punindo a corrupção, as colocações terroristas, a chamada advocacia administrativa e impe-dindo a influência de seguimentos empre-sariais inescrupulosos que preponderam na feitura do Orçamento e na sua própria execução em face das necessidades do País.

Se tais questões são formuladas e objetos de reflexão diante do quadro bra-sileiro, o que ocorre em outros países, mesmo no mundo ocidental, pelos temas e pelas dificuldades sócio-políticas que atravessam, tudo nos revela perigosamente que estamos diante de um novo século, investido de graves complexidades, de incertezas, de incoerências, de enigmas, de frustrações que infelizmente a Ciência e a Tecnologia, ao contrário de nos socor-rer, abrem novas arestas e, até porque não dizê-lo, novos universos de preocupantes indefinições.

É, sob certa forma, curioso o que ocorreu com as gerações pretéritas de nossos avós do princípio do século XX em relação ao convívio daqueles que habitam o presente. Havia muito mais, naqueles atores antigos, uma certeza, uma confian-ça, uma visão esperançosa com o porvir e com o futuro em todos os aspectos da vida,

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do que hoje quando faltam esperanças à atual geração, que é a nossa, tão cheia de temores com o presente e mais ainda com o futuro. Aliás, a tecnologia, além de tudo, aumenta enfaticamente a separação do mundo dos muito ricos, aliás, pouco povoado, e o mundo dos mais pobres, sob excesso de população, que por razões múl-tiplas, inclusive psicopatológicas, tende a erigir e revigorar as lideranças agressivas, reivindicantes e quase sempre contestató-rias.

A democracia e o Parlamento por-tanto, aquela como regime político e sob certo aspecto “forma de vida”, e esse outro como sua principal alavanca, confrontam-se com esse cenário de sombras tecno-lógicas do futuro, com tantas suposições de riquezas mecânicas e virtuais, mas sob tantas formulações imaginárias negativas ou nuvens cinzentas de perigos.

O homem e o líder moderno, o governante e o estadista coetâneo necessitam alcan-çar informações cada vez mais claras dentro desta com-plexidade e possuir uma inteligência ativa, mas treina-da para enfrentar esta problemática complexa que dia-a-dia cresce dian-te de todos, avolu-ma-se com riscos e obstáculos que não bastam apenas a intelectualidade humana resolver, porque necessita, e

muito, da fé em Deus e da presença dos ensinamentos evangélicos que aprimoram o espírito humano.

A democracia precisa preexistir, con-tinuar ao lado da sua âncora principal que é o Parlamento, como obra fundamental para o convívio humano. Todavia, há de revestir-se de vestuário eficaz e moderni-zante, utilizando as novas ferramentas da tecnologia de modo que possa recons-truir-se sob as indicações da sua essência decorrentes dos valores bíblicos, do envol-vimento participativo do povo e da pre-dominância da vontade dos governados através dos seus representantes.

Esta é a mensagem que nos deixam os pensadores maiores e a vivência políti-ca da experiência humana.

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BONIFÁCIO DE ANDRADA

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ENSAIO * GUSTAVO FRUET

Processo de Integração dos Legislativos no Mercosul

Em 25 de setembro de 2003, na cidade de Montevidéu, aconteceu o Encontro de Presidentes de Câmaras dos Poderes Legislativos dos Estados Partes do Mercosul. A organização do evento esteve a cargo da Presidência Pro Tempore do Uruguai, da Comissão Parlamentar Conjunta e com apoio técnico de sua Secretaria Permanente e da Secretaria do Mercosul. A coordenação científica foi de responsabilidade do CEDI – Centro de Estudos de Direito Internacional. Tratou-se de iniciativa importante e indispensável

na consecução do projeto sul-americano de integração, particularmente neste momento histórico em que os legislativos têm a responsabilidade de interagir e debater com seus co-irmãos os rumos das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

Do ponto de vista político, a interação dos Legislativos está em harmonia com as ações do Executivo, especialmente o brasileiro, que tem tido na pessoa do Presidente Lula um incansável protagonista do processo de integração, em face do

* Deputado Federal

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desafio-benefício que o processo representa do ponto de vista histórico, econômico e social, sem ignorar o trabalho diplomático realizado no governo anterior e os ganhos auferidos com a reconhecida inserção do país como importante ator no cenário internacional.

Se de um lado registra-se o entusiasmo pela realização do evento, preocupa que as discussões de um futuro Parlamento do Mercosul não estejam sendo acompanhadas de necessárias reflexões no que concerne às adaptações (modificações) constitucionais indispensáveis, que nos permitam ingressar no processo de igual para igual, em especial, à necessidade de haver, expressa na Constituição, autorização para que o Brasil possa submeter-se a um regime de supranacionalidade. Em outras palavras, é premente a existência de norma constitucional autorizativa que preveja a possibilidade de o país aderir a tratados que venham a criar instâncias (ou instituições) supranacionais.

O Paraguai, em 1992, e a Argentina, em 1994, cuidaram de imprimir as reformas necessárias ao objetivo integracionista, o que ainda não ocorreu entre nós e nem no Uruguai. A reconhecida assimetria constitucional existente entre os Estados Partes não é apenas uma questão acadêmica. É, induvidosamente, muito mais do que isso, na medida em que o Tratado de Assunção estabelece, em seu artigo 2º, que o Mercado Comum estará fundado na reciprocidade de direitos e obrigações.

Além disso, quando a Constituição da República Argentina trata do tema supranacionalidade – vale dizer, quando autoriza que o Estado argentino subscreva tratados que deleguem competência e jurisdição a organizações supra-estatais,

o faz na premissa de que haja dos seus parceiros condição de reciprocidade (inciso 24 do artigo 75 da referida Constituição).

É importante avançar no tema da criação do Parlamento para o Mercosul. Todavia, antes que venhamos a assumir compromissos internacionais cujo mérito é importante, não podemos nos deixar levar pelo entusiasmo ingênuo da palavra. Eventual proposta nesse sentido deve-se fazer acompanhar de providências internas, legais e constitucionais, sem as quais não se poderá atender adequadamente ao que preceitua o Tratado de Assunção e a vocação integracionista de que cuida o parágrafo único do artigo 4º da Constituição brasileira.

Na oportunidade, saliente-se que a experiência européia não prescindiu de exigir dos países-membros que se preparassem constitucionalmente para a almejada integração. É verdade que existem diferenças marcantes entre o Mercosul e a União Européia. A começar, por exemplo, com o registro de que lá o mercado comum nasceu com o Tratado de Roma, de 1957, enquanto aqui o mercado comum é um objetivo a ser alcançado, após vencermos a consolidação da união aduaneira.

Na União Européia convencionou-se a criação imediata de instituições supranacionais, ao passo que no Mercosul seguimos o modelo clássico de instituições intergovernamentais, com decisões tomadas por consenso e por unanimidade.

O sistema de solução de controvérsias na União Européia é permanente, com delegação de competência ao Tribunal de Justiça para deliberar soberanamente sobre o direito comunitário, originário ou derivado (regulamentos e diretivas). No Mercosul não se tem, ainda, um sistema

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permanente, valendo-se da arbitragem ad hoc, nos termos do Protocolo de Brasília, re-ratificado pelo de Olivos, que criou uma instância permanente de revisão, cuja configuração é objeto de muitas críticas.

As normas comunitárias, vale dizer, as normas geradas no âmbito do Conselho e da Comissão Européia, têm aplicabilidade direta e imediata nos Estados Partes, enquanto que no Mercosul as normas editadas pelas suas instituições demandam processo de incorporação aos ordenamentos jurídicos nacionais, com o inconveniente de que, tanto no Brasil quanto no Uruguai, não se têm norma que discipline o conflito entre tratado e norma interna, o que não se compadece com a desejada segurança jurídica.

Diante desse quadro, vê-se com certa perplexidade essa onda que antecede a discussão de um futuro Parlamento para o Mercosul. Como congressista, convencido de que os parlamentos constituem o seio próprio de discussões da cidadania, sendo o regime de representatividade um dos pilares da democracia, os debates para criação de um Parlamento para o Mercosul ainda são prematuros, na medida em que se tem de fazer, primeiramente, o dever de casa e dotar a Constituição e o ordenamento jurídico brasileiro de normas que dêem substância e amparo às negociações internacionais.

Destaque-se o exemplo europeu, mais uma vez, para assinalar que, passados quase 50 anos do Tratado de Roma, com todos os avanços que se seguiram até a união monetária européia, ainda hoje o Parlamento Europeu é uma figura secundária e coadjuvante no processo de integração, à míngua de poderes efetivos para revelar os verdadeiros interesses dos cidadãos lá representados. Na consideração de que o Mercosul

recém completou sua primeira década, e, ainda, de que historicamente nosso projeto de integração pautou-se pela intergovernabilidade, pergunta-se a que se propõe o Parlamento do Mercosul? Quais serão suas atribuições? Sua composição e divisão de cadeiras observará quais critérios: território e população?

No sistema constitucional atual, sobretudo no Brasil e no Uruguai, é possível imaginar que uma norma aprovada pelo eventual e futuro Parlamento do Mercosul produza efeitos imediatos e diretos nos Estados Partes?

Diante da nossa Constituição Federal (artigo 17) e da legislação eleitoral, pode-se imaginar a existência de partidos supranacionais? Ou ainda, é possível imaginar a formação de grupos políticos – à semelhança do que ocorre na União Européia – diante da proibição legal de que os partidos recebam doação em dinheiro, ou estimável, de entidades ou governo estrangeiro? E como fica, por exemplo, a questão do fundo partidário brasileiro, o acesso dos partidos ao rádio e à televisão e o sistema de financiamento de campanhas?

Registre-se que se deve acreditar nos bons propósitos do projeto, com a realização de diversos seminários e ciclos de conferências sobre temas instigantes, como a imunidade de jurisdição.

Espera-se, entretanto, que as autoridades envolvidas neste processo estejam cientes dos obstáculos de natureza constitucional e legal que envolvem a criação de um parlamento para o Mercosul, a fim de que não se crie mais uma bolha de expectativa que frustre o esforço que vem sendo feito em prol da integração do continente sul-americano.

Política, Parlamento, Democracia

Um dos mais antigos discursos políticos é a Oração pelos Primeiros Caídos na Guerra do Peloponeso, pronunciado em 431 AC, por Péricles, o grande estadista de Atenas.

Nesse discurso, que serve de modelo para todos os pronunciamentos políticos posteriores, Péricles diz que a pólis, ou, seja, a comunidade, é formada somente por aqueles que se interessam pelos assuntos públicos. Esses, diz o discurso, merecem o respeito de todos. Os que assim não agem devem ser desprezados.

Cícero, o grande político, jurista e orador de Roma Antiga, em seu livro sobre a República, diz que o povo é constituído pelos que se interessam pela coisa pública. Em sua visão, os desinteressados não faziam parte do povo, e constituíam apenas a plebe.

Cícero faz essa distinção entre “povo” e “plebe”, embora até então, a plebe fosse vista como parte do “populum” romano, e só se distinguisse dos patrícios, ou seja, da nobreza. A expressão “plebe”, em termos políticos, tinha significação respeitosa,

* JORNALISTA

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MAURO SANTAYANA* ENSAIO

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uma vez que os plebeus, quando queriam, participavam da política, e contavam com seus representantes junto ao poder, os tribunos.

Para Cícero, o povo romano era constituído dos patrícios e daquela parte da plebe que se interessava pela política. A outra parte era simplesmente a turba, ou seja, o conjunto de indivíduos sem preocu-pação com a vida coletiva.

A distinção entre os que são cidadãos e os indiferentes à política é importante quando, entre outras coisas, se discute o problema do voto facultativo. Definido o que seja povo, como detentor do poder, é possível estudar a evolução da política do homem.

Os seres humanos começam a dis-tinguir-se na natureza no mesmo momento – e um momento, em termos históricos, pode durar dezenas e dezenas de milhares de anos – em que começam a comuni-car-se uns com os outros, e aprendem a trabalhar juntos. Essa é uma etapa impor-tante, porque, nela, o ser humano também se descobre e, nos limites da sua mente em formação, pergunta-se sobre si mesmo.

Sem entender – e continuamos a não entender – a razão de estar no mundo, o homem primitivo inventa os deuses. Inventar é um bom vocábulo, porque inventar não só significa criar alguma coisa, mas, sobretudo, descobrir alguma coisa. Toda criação é uma descoberta.

Naquele momento, o homem passa a ser protegido pela idéia de Deus. Isso significa, também, estabelecer uma certa ética, que se funda na obrigação de manter a vida como uma concessão divina. Essa ética se revela, em primeiro lugar, na con-dução da vida familiar: o macho deve pro-teger sua mulher e os seus descendentes.

Quando ele se associa aos seus vizinhos e parentes, para a segurança comum, essa ética passa a ser da con-vivência e da cooperação entre todos. É nesse momento que nasce a consciência de grupo, que irá evoluir até a idéia de nação.

Embora não tenhamos registros histó-ricos daquele tempo, não é difícil recons-tituir a vida pré-histórica. Na verdade, o mundo atual vive, contemporaneamente, todas as suas idades.

Há, ainda, sociedades muito primiti-vas. Embora elas se reduzam rapidamen-te, certas tribos autóctones, como a dos ianomâni, no Brasil, permitem estudos antropológicos que nos dão a idéia de como todos os seres humanos viviam na Pré-História.

É assim que podemos entender o surgimento da política, do Estado e do Parlamento. Como sempre, é bom tra-balhar pensando na linguagem. Política, como grande parte dos vocábulos de todas as línguas européias, é uma palavra grega. Ela vem de “polis”, que quer dizer comu-nidade citadina.

Não é simplesmente “cidade”; é mais do que isso. É o conjunto das pessoas que se interessam pela comunidade, ou seja, o conjunto dos cidadãos. A palavra “polis”, no léxico político grego, pressupõe a ordem social baseada na fraternidade.

Por isso mesmo, a palavra “politeía”, ou, seja, república, ou ação política, que significavam a mesma coisa, era defini-da por Aristóteles como “amizade entre vizinhos”.

Nas sociedades primitivas, ainda que ela não se manifeste de forma muito clara, a primeira autoridade é a dos deuses. Em sua grande obra, que influenciou Hegel,

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MAURO SANTAYANA

Marx e outros pensadores modernos, o historiador italiano Gianbattista Vico divi-diu a História em três fases, na sua obra “Scienza Nuova”, publicada em 1725. A primeira fase da História é a “Idade dos Deuses”, a segunda, a “Idade dos Heróis”, e a terceira, a “Idade dos Homens”. A autoridade do chefe nas tribos está sempre sujeita à autoridade dos sacerdotes, vistos como os portadores da vontade divina. Mas os antropólogos concluem que, sobre as duas autoridades, sempre prevalece a vontade do conjunto, que se manifesta no consentimento.

Os membros do grupo devem con-sentir em aceitar a conduta imposta como sendo da vontade de Deus e, em primeiro lugar, aceitar que Deus exista e exerça esta autoridade.

Essa vontade, que muda com as circunstâncias do tempo e do ambien-te, aceitando ou rejeitando a autoridade, surge, naturalmente, das conversas entre os indivíduos e das reuniões dos conselhos comunitários, constituídos quase sempre de homens mais experientes.

Parlamentar é conversar. É certo que a expressão “parlamento”, para designar as instituições que conhecemos, surgiu há pouco mais de 700 anos, o que é recente, em termos históricos.

Tal como “parlamento”, a expressão “estado” é também recente. Aliás, mais recente do que “parlamento”. Antes, os estados eram conhecidos como “rei-nos”, ou como “repúblicas”, ainda que, fossem também estados monárquicos. A palavra “Estado”, ou “Stato”, surgiu no Renascimento italiano, e significava, em sua origem, o grupo que cercava o gover-nante, fosse ele um príncipe dinástico, ou fosse um mandatário eleito, como ocorria nas repúblicas italianas, como a República

de Veneza. O corpo eleitoral pode ser mais amplo ou mais restrito, mas o que define uma república moderna é a temporarieda-de dos mandatos e o processo de escolha por algum tipo de eleitores. As repúblicas podem ser democráticas ou oligárquicas. A República de Veneza, por exemplo, era oligárquica: as 500 famílias mais importan-tes constituíam o “Grande Conselho”, e o “Grande Conselho”, que era o parlamento aristocrático, elegia o doge, o detentor do Poder Executivo.

O vocábulo “Estado” definia, no Renascimento, o governo ou a corte, e não o conjunto das instituições permanentes, como entendemos hoje. Rapidamente, a expressão ganhou nova acepção e univer-salidade. Para o raciocínio moderno, Estado é toda organização política soberana, ou seja, governada de acordo com princípios próprios e com o consentimento de seus cidadãos, ou seja, de todos aqueles que, com a sua vontade e ação, participam das decisões da comunidade.

O que é ser soberano? A melhor defi-nição, encontrada em muitos autores, de uma forma ou de outra, é a de que sobera-no é aquele que não obedece a ninguém. Um homem pode ser soberano sobre os seus atos, mas, na realidade, nenhum homem, isoladamente, pode ser soberano sobre o Estado. O Estado, sim, como ser coletivo, deve dispor da “summa potes-tas”, ou seja, de todo o poder que possa ser exercido dentro dos seus limites territoriais. Os acordos internacionais, que limitem essa soberania, só são entendidos quando se baseiam no princípio da reciprocidade: isto é, quando os estados contratantes não exijam mais do que concedam, nem concedam mais do que exijam. Em suma, que sejam vistos com idênticos poderes e direitos na convenção estabelecida.

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Em todos os Estados, sempre tem existido alguma coisa semelhante a par-lamento. Nas monarquias absolutas, com os conselhos da Coroa. Nas monarquias constitucionais, com a representação eleita pelos cidadãos, ou por uma parcela dos cidadãos. Nas repúblicas, com a repre-sentação daquela parcela de indivíduos que constitua o eleitorado e que se faça representar. Como já vimos, o eleitorado pode ser universal, nas democracias, e reduzido, nos governos oligárquicos. E até mesmo resumido aos militares, como ocorria no sistema espartano e no início da República Romana e como ocorreu em nosso próprio país, quando o Presidente da República era escolhido pelos oficiais generais das Três Armas, mas tendo, no Exército, como a força mais numerosa, o único grupo que oferecia os candida-tos. Isso nos obriga a lembrar que um Estado pode ser monárquico e democrá-tico, como pode ser nominalmente repu-blicano, e ditatorial. Nominalmente, tanto a Alemanha de Hitler, quanto Portugal, de Salazar, eram repúblicas, mas nada tiveram de democráticas. E, enquanto a Itália e a Inglaterra eram nominalmente monarquias, durante os anos 20 e 30, a Itália estava sob a ditadura de Mussolini, enquanto a Grã Bretanha constituía, para o seu próprio povo, uma das mais avançadas democracias do mundo.

A evolução política se faz na universalização do poder, ou seja, na participação cada vez maior dos indivíduos na sociedade política. Isso significa a transformação dos indivíduos em cidadãos. Por isso mesmo, a democracia pode ser vista como o processo permanente de adesão dos indivíduos à responsabilidade coletiva, ou seja, a transformação da turba em plebe e da plebe em povo. Entendamos que, no sentido político,

um indivíduo pode ser o mais sábio dos homens, mas não pertencerá ao povo, como o povo foi definido por Cícero, se não se interessar pela política. Outro pode ser o mais rico, ou o mais idolatrado pelos seus dotes artísticos – mas não será cidadão. Não merecerá o reconhecimento da comunidade, dentro da visão grega da política. O camponês analfabeto ou o trabalhador modesto, que procuram influir em favor de sua comunidade – mesmo nas comunidades menores, como a associação de moradores, ou o grupo de plantadores de feijão – são cidadãos. O empresário rico, que só se interessa em proteger os seus próprios negócios, e não participa da vida da comunidade como um todo, não é cidadão, mesmo que, por oportunismo, financie campanhas eleitorais.

Sendo assim, a evolução do parlamento se faz em dois sentidos: o da legitimidade e o da ampliação de seu poder. Um parlamento é tanto mais legítimo quanto mais ele se aproxime da vontade nacional. E o seu poder será tanto mais efetivo, quanto mais ele puder impor essa vontade nacional aos outros poderes do Estado.

Como em tudo mais, temos que recorrer aos gregos. Os setecentos anos que antecedem a era cristã e os dois pri-meiros séculos de nossa era são vistos como a “idade axial” do homem. Sem remontar a períodos mais antigos, sobre os quais a documentação é ainda escassa, foi nesse período – a Idade dos Heróis, segun-do Gianbattista Vico – que, com a difusão da linguagem escrita e a especulação filo-sófica, o Estado encontrou, no Ocidente, os seus fundamentos modernos. Foi um período de lutas, de paixão pelo poder, de afirmação do homem. Nesse período, os deuses e os heróis começam a ceder lugar

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ao cidadão. O grande cronista dessa muta-ção histórica é Homero, o poeta grego, com seus dois grandes poemas épicos: a Odisséia e a Ilíada. As duas obras são mais do que o relato de hipotéticas gestas, mas a metáfora profética do futuro.

As ilhas e a península gregas eram, naquele tempo, um conjunto de pequenos estados. Cada cidade, que compreendia a zona rural, exercia seu próprio poder, e a disputa entre elas crescia na mesma medida em que cresciam o comércio e o interesse econômico. Sobre todas essas cidades, duas se tornaram maiores e mais fortes: Esparta e Atenas. Em ambas, o governo era exercido por duas instâncias: uma, a dos reis, em Esparta, e a dos tiranos, em Atenas – e a outra, a das instituições parlamentares. É preciso esclarecer que tirano, em grego, não tinha o significado moderno, de ditadura cruel, mas sim, o do governante com grandes poderes. Em Esparta havia uma espécie de Senado, constituído de 30 membros. Em Atenas funcionava o Areópago. Esparta era um estado militarizado, de fundamentalismo estrito, e que serviu de modelo ideológico a algumas das piores ditaduras modernas.

O Areópago ateniense era instituição aristocrática. Dele só podiam participar os “eupatridoi”, ou, seja, os bem nascidos. O nome Areópago deriva de sua situação geográfica. Os seus membros se reuniam no monte ateniense dedicado a Ares, ou seja, ao deus da guerra, que tomou o nome latino de Marte. Pagos, em grego, significa a parte mais elevada, monte, colina. O Areópago tinha dupla função: a de legis-lar e a de julgar os casos de homicídio. Reformas sucessivas lhes foram tirando o poder. A constituição de um parlamento popular, composto de 400 membros, a Boule, retirou do Areópago todas as suas

funções, menos a de tribunal. É curioso registrar a origem da palavra proble-ma, hoje usada para identificar alguma questão complicada. Problema vem do grego “proboulema” (pro-boulema), ou, seja, uma questão encaminhada à boule, Boule, enfim, um projeto de lei. Essas questões podiam ser encaminhadas pelo governo, ou pelas assembléias populares, que se reuniam na praça do mercado, a ágora. Outra das significações de “pro-boulema” é “desenho”. Na linguagem legislativa moderna italiana, o projeto enviado pelo governo ao Parlamento é chamado de “disegno de legge”. A própria palavra “boule” significava, originalmen-te, “vontade”, ímpeto, lançamento – era, assim, a assembléia que aferia a vontade geral.

A “Boule” e todas as instituições polí-ticas gregas são tratadas cientificamente por Aristóteles e Platão em seus livros polí-ticos, nos quais eles partem da práxis, da experiência das diversas constituições, para examinar as questões da “polis”, ou seja, da comunidade política.

Constituição, na linguagem política clássica, é o conjunto de normas e ritos, que podem ser escritos, ou não. É a forma pela qual o Estado se encontra formado, ou constituído.

Os tratados de política e de ética, tanto de Platão como de Aristóteles, for-mam as idéias básicas sobre o Estado no pensamento ocidental. Mesmo sabendo-se que Aristóteles foi discípulo de Platão, os pensadores modernos consideram sua obra mais sistematizada, mais “científica”, vamos assim dizer. Provavelmente porque Platão se situou mais no terreno das idéias, criando até mesmo a primeira uto-pia política com seu livro “A República”. Aristóteles, por sua vez, se atém mais à

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realidade, à prática, à situação da politeía, ou seja, da república, nos tempos imedia-tamente anteriores a ele. Ele não parte de uma doutrina própria do poder, mas, exa-minando a realidade política de seu tempo e dos tempos anteriores, propõe uma teo-ria, no exato sentido grego da palavra. Em grego, teoria significa contemplação, exame, ou, melhor ainda, constatação. De qualquer forma, ambos foram orien-tadores políticos da mais alta expressão. Platão esteve aconselhando os tiranos de Siracusa e Aristóteles foi preceptor de Alexandre, o Grande.

Durante alguns anos, não muitos, Atenas foi o exemplo da sociedade demo-crática. Como, apesar da advertência de Péricles, de que todos os cidadãos deve-riam participar das atividades políticas, nem todos queriam fazê-lo,foi instituído o pagamento para todos os que compa-recessem às assembléias políticas, uma espécie de indenização pelo tempo gasto. Também nessa época surgiu a remunera-ção para os que se dedicassem integral-mente ao serviço público. No alvorecer do sistema democrático, os membros da direção política do Estado eram sorteados, e muitos cidadãos pobres tinham dificul-dade em manter as suas famílias, deixando de trabalhar como artesãos ou pequenos comerciantes, enquanto serviam à cidade. Por isso, Péricles instituiu o costume de os indenizar com uma quantia aproximada à que ganhavam em suas atividades profis-sionais. Foi assim que surgiu a remunera-ção pelos serviços que os cidadãos, eleitos ou nomeados, prestam à comunidade.

Durante o governo de Péricles pra-ticou-se, em Atenas e em algumas outras cidades gregas, a democracia direta. As assembléias exerciam o poder político principal. A “Boule” se encarregava de dar

formato legal e constitucional às decisões populares. De uma certa forma, Péricles foi um precursor do estado de bem-estar social, tal como o conhecemos no século XX. Os persas haviam invadido e destruído Atenas, e a miséria dominava a cidade. Péricles, usando os recursos do Tesouro, reconstruiu a cidade, criando empregos para os pobres. E até mesmo fez uma obra suntuosa, como símbolo da auto-afirmação dos gregos, a Acrópole, com seus grandes templos, cujos restos ainda impressionam o mundo. Ao mesmo tempo, no porto de Pireu, mandou construir o primeiro con-junto de casas populares de que se tem notícia, para uso dos marinheiros da frota ateniense.

A grandeza do sistema ateniense foi a sua perdição, porque a ambição de potên-cia levou-a ao imperialismo, à guerra do Peloponeso, à derrota diante de Esparta e à paulatina decadência. A Confederação de Delos, sob a direção de Atenas, surgira como aliança defensiva contra os persas, mas logo se tornou um sistema de expro-priação das outras cidades do arquipéla-go.

A decadência de Atenas tem sido apontada, pelos historiadores, como adver-tência importante: ninguém pode explorar os outros, em nome de suas virtudes, nem pretender exportar as suas virtudes para os outros. As virtudes podem ser imitadas, mas, nunca impostas ou vendidas.

Contra o imperialismo ateniense se revoltaram Esparta e outras cidades, que derrotaram a metrópole, iniciando-se o processo de declínio. Antes que isso ocor-resse, Atenas forneceu a Roma, e pelo exemplo, os seus princípios constitucio-nais. Conforme fontes romanas, a “Lex XII (dodici) Tabularum”, ou a Lei das 12 , escrita da República Romana, inspirou-se

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na legislação ateniense da primeira metade do século V antes de Cristo. A lei foi adota-da em Roma, depois de ser ajustada por um grupo de estudiosos, em 450 a.C.

Em Roma, desde o seu início sob influência remanescente da Grécia, que colonizara grande parte do território italiano, prosperava o sistema republicano. A República se instalou por volta de 509 antes de Cristo, depois da expulsão de Tarquínio, o Soberbo, o último rei de Roma. Mas, mesmo sob Tarquínio, que foi um déspota, havia um Senado funcionando. A palavra Senado deriva de “sene”, que significa “velho”. O rei detinha dois poderes principais – o de supremo sacerdote da religião romana, e o poder militar. Com o fim da monarquia, o Senado continuou existindo, com seus poderes ampliados, e se instituiu a eleição de dois cônsules. Um deles se dedicava às questões externas – a defesa e a expansão militar – e o outro, à administração interna.

Mas o poder estava nas mãos dos patrícios e dos chefes militares. Só havia duas formas de acesso ao Parlamento, ou seja, ao Senado: pelo nascimento ou pela bravura militar. A instituição do consulado não modificou a situação: os cônsules eram eleitos pelas centúrias militares. Poucos anos depois de instalada a República, a plebe se revoltou, exigindo participação no poder. Como Roma se encontrava sob ameaça de seus vizinhos, o Senado concordou em dividir nominalmente o poder, e foi criado o Tribunato da Plebe. Dois tribunos, eleitos pelos pobres (mas geralmente procedentes da oligarquia) podiam representá-los junto ao poder. Pouco a pouco, a plebe foi obtendo maiores poderes, mas nunca chegou a ter um parlamento próprio, uma Câmara de Deputados, o que só ocorreria muitos séculos depois, na Inglaterra.

O sistema republicano romano começou a corromper-se quando o poder militar se uniu ao poder econômico e ao poder político, no primeiro triunvirato. César, Pompeu e Crasso eram, ao mesmo tempo, chefes militares, chefes políticos e grandes empresários. O enriquecimento de Roma não beneficiara todos os seus habitantes, e os escravos, que eram a prin-cipal força produtiva, se haviam revoltado sob o comando de Spartacus, alguns anos antes. A crise era latente. Com a morte de Crassus, e, logo em seguida, a morte de Júlia, a filha de César casada com Pompeu, o “triumvirato” se desfez naturalmente. Os dois homens, que eram muito semelhantes em suas qualidades e em seus defeitos, mas sobretudo em sua ambição, defrontaram-se em seguida, na Grande Guerra Civil. Podemos, novamente, citar Gianbattista Vico, em uma frase enigmática sobre os dois. Ele disse que “César e Pompeu eram muito parecidos, especialmente Pompeu”.

Vitorioso, com a morte de Pompeu, César se fez cônsul e, em seguida, ditador vitalício. Menos de um mês depois de ter sido eleito ditador, foi assassinado aos pés da estátua de Pompeu, antes de se iniciar uma sessão do Senado. Com ele, morria a República Romana e se iniciava o período monárquico, com Augusto e os imperado-res sucessivos, e começava a lenta agonia do Parlamento. Ele só será restabelecido, na forma que havia alcançado no período áureo da República Romana, mais de um milênio depois, na Inglaterra.

Um dos documentos políticos mais citados nos tempos modernos é a Magna Carta, de 1215, que o Rei João Sem Terra, da Inglaterra, foi obrigado a assinar, sob a pressão dos senhores feudais. Como todas as grandes mudanças institucionais, a outorga da Great Charter foi exigida

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pelas circunstâncias econômicas internas. A Coroa estava endividada, uma vez que tivera que gastar grandes somas para o pagamento do resgate de Ricardo Coração de Leão, aprisionado quando regressava da Terra Santa, em 1194. Esmagados pela tributação excessiva, os barões ingleses exigiram do Rei certas concessões, entre elas a de que os impostos fossem arbitra-dos pelos próprios contribuintes, median-te uma representação política. A Magna Carta inicia o processo de representação parlamentar na Inglaterra, com o Conselho dos 25 Barões.

Esse Conselho evoluirá para tornar-se a Câmara dos Lordes. No século seguinte, os comuns, ou seja os não portadores de títulos de nobreza mas, de alguma forma poderosos, como os grandes mercado-res, passaram a eleger representantes ao Parlamento – e as duas casas se separaram. A partir do Século 17, quando a Câmara dos Comuns se rebelou contra Carlos I, seus direitos cresceram e, embora formal-mente a Câmara dos Lordes detenha, até hoje, seu poder de veto, a realidade políti-ca confere aos comuns todo o poder políti-co na Inglaterra moderna, e tem servido de modelo para a representação parlamentar no Ocidente.

A expressão parlamento para designar essas assembléias de representação política surgiu, como tantas outras, do vocabulário litúrgico. Chamava-se parlamento a reu-nião dos frades beneditinos, depois do jan-tar, para falar sobre teologia e os assuntos atinentes à administração dos mosteiros. Em 1239, Matthew Paris, superior da aba-dia beneditina de Saint Albans – situada a 30 quilômetros de Londres – decidiu abrir estas reuniões e convocar bispos, condes e barões, para discutir assuntos de interesse geral. Seis anos depois, em 1245, a fim

de obter a aprovação para o ato em que excomungara o Imperador Frederico II, do Sacro Império, Inocente IV convocou uma grande reunião dos poderosos em Lyon – e lhe deu o nome de Parlamento.

O Parlamento é, assim, ou assim deveria ser, o espaço para a discussão dos grandes problemas (ou pro-boulemas) e para a criação de leis e processos que pos-sam resolvê-los.

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O Impacto da Reforma Política Sobre a Câmara Federal

A reforma política sempre esteve na agenda do Congresso Nacional desde a redemocratização em 1946, com destaque para: representação proporcional com lista aberta, cassação do Partido Comunista, eleições majoritárias por maioria simples, recadastramentos de eleitores, a introdu-ção da cédula única e um breve parlamen-tarismo (Lima Sobrinho). Com a implan-tação do período militar (1964-1985), o Brasil passou por uma seqüência sem fim

de casuísmos que modificaram as regras políticas para produzir maiorias para o governo no Congresso, como: as cassações de mandatos políticos, dois remanejamen-tos do sistema partidário (1966 e 1980), proibição de coligações, eleições indiretas para presidente e governadores via colégio eleitoral, o voto vinculado, a fidelidade partidária, os senadores “biônicos”, sub-legendas e a tentativa de implantar o voto “misto” distrital-proporcional (Fleischer,

* Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.

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1994). Na nova fase de redemocratização, a partir de 1985, novas modificações nas normas políticas foram adotadas – abertu-ra para novos partidos políticos, o retorno dos partidos comunistas, novos recadastra-mentos de eleitores, a redução facultativa da idade eleitoral de 18 para 16 anos, o cri-tério da maioria absoluta e a reeleição para cargos executivos, cotas para candidatas nas eleições proporcionais, votos brancos contados como inválidos e a implantação da urna eletrônica (Trindade, 1992).

Porém, quatro pontos com grande potencial de impacto sobre a Câmara dos Deputados ficaram de fora destes quase 60 anos de “reformas”, embora tivessem sido debatidos durante a ANC (Assembléia Nacional Constituinte) em 1987-1988: 1) a fidelidade partidária; 2) financia-mento de campanhas eleitorais; 3) sistema de eleição proporcional; e 4) coligações partidárias (Fleischer, 1987a e 1987b).

Em 1995, o então Presidente do Senado, Sen. José Sarney (PMDB-AP) constituiu uma Comissão Especial para estudar a “Reforma Político Partidária” que apresentou o seu relatório final em 1998 (Machado; Fleischer, 1998). Os quatro pontos acima mencionados foram incluí-dos nos 14 itens votados pelo Senado, mas nunca entraram na pauta da Câmara dos Deputados. Inusitadamente, em 2000, líderes do PT e PFL conseguiram elaborar várias medidas para uma reforma política em comum acordo, mas esta iniciativa também não produziu nenhum resultado.

No início de 2003, a Câmara dos Deputados constituiu uma Comissão espe-cial destinada a efetuar estudo em rela-ção às matérias em tramitação na Casa, cujo tema abrangia a Reforma Política (Benevides et al.). Após vários meses de estudos e debates, esta Comissão votou o

parecer do Relator Dep. Ronaldo Caiado (PFL-GO), em 3 de dezembro de 2003 (Quadro 2). Uma semana depois, este PL-2679/2003 foi transmitido para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) para acertar uma versão final antes de ser apreciado pelo Plenário da Casa (Cintra).

Pretendo, nesta breve análise, avaliar os quatro pontos contidos neste Projeto de Lei e seus possíveis efeitos e impactos sobre a Câmara dos Deputados.

Sistema Eleitoral O Brasil usa o sistema de repre-

sentação proporcional de lista aberta para eleger deputados e vereadores desde a Constituição de 1946. Durante o perío-do militar, este mesmo sistema eleitoral continuava em vigor, embora o fosse com apenas dois partidos (ARENA e MDB). A partir de 1985, voltou o sistema de coliga-ções sem sublegenda que vigorava antes de 1964.

Apenas em duas ocasiões houve ten-tativas de mudança do sistema eleitoral proporcional: 1) no fim de 1965, logo depois do AI-2 que extinguiu o então siste-ma pluri-partidário, quando o Pres. Castelo Branco quis implantar o sistema majoritá-rio uninominal (distrital), mas foi dissuadi-do deste intento por líderes da ex-UDN; e 2) com a Emenda Constitucional nº 22 (de junho de 1982), que implantou o voto “misto” distrital-proporcional, semelhante ao sistema utilizado na Alemanha, que teria vigorado para a próxima eleição, em 1986. Porém, em 1983-1984, o Congresso Nacional não regulamentou este esquema, e em maio de 1985 esta disposição foi revogada. Mesmo assim, esta proposta despertou debates entre políticos e acadê-micos, o que ensejou uma edição especial

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da Revista de Informação Legislativa, nº 78 (1983).

Desde então, prosperou um deba-te sobre mudanças no sistema eleitoral – algumas poucas propostas para um siste-ma distrital e várias sugestões em favor do chamado “sistema misto” (Pinheiro Filho; Fleischer, 1992)

Finalmente, em dezembro de 2003, a Comissão Especial aprovou uma mudan-ça substancial no sistema de representação proporcional (RP), a lista fechada. No sistema atual, cada partido ou coliga-ção apresenta a lista dos seus candidatos a deputado ou vereador, mas sem uma ordem prévia. Na eleição, o eleitor vota ou na legenda (partido) preferida ou no nome de um candidato individual. Quase toda a campanha gira em torno de nomes individuais, com propaganda maciça des-tacando o nome, foto e número de iden-tificação do candidato, com pouca ou nenhuma informação sobre sua filiação partidária. As pesquisas de opinião mos-tram que, seis meses após o pleito, menos da metade dos eleitores lembra o nome do candidato em que votou, e muito menos ainda consegue lembrar o partido. Por esta e outras razões, o sistema de lista aberta é muito raro entre os países que usam a representação proporcional (pura). Apenas o Brasil e a Finlândia usam este sistema. No resto do mundo, a (RP) utiliza a lista fechada (Gallagher; Lijphart, 1991; Nicolau, 1993; Shepsle).

No sistema de lista fechada, cada partido ou coligação apresentará à Justiça Eleitoral uma lista de candidatos pré-orde-nada – ou seja, desde o primeiro nome da lista até o número 30º ou 45º , por exem-plo. Ao eleitor cabe apenas escolher qual partido ou coligação votar. Apurados os votos, se o Partido “A” receber votos equi-

valentes a, por exemplo, onze coeficientes eleitorais, os primeiros onze nomes na lista fechada estarão eleitos, e o 12º na lista seria o primeiro suplente.

Esta mudança causaria um grande impacto sobre o sistema eleitoral brasi-leiro. Ao invés dos gastos individuais de cada candidato para conseguir votos suficientes para se eleger e não cair na suplência, no sistema de lista fechada os fatores determinantes para a eleição de um candidato a deputado serão: 1) o seu par-tido ou coligação ter um apelo suficiente para angariar um grande número de votos; e 2) o candidato ter sido colocado numa posição alta o bastante na lista para estar entre os eleitos.

Mas, como que os partidos (coli-gações) vão confeccionar as suas listas fechadas? A não ser que na subseqüente tramitação do PL-2679/2003 as normas para a confecção da lista sejam mais detalhadas, em cada estado, cada partido/coligação basicamente teria três alternati-vas: 1) a comissão executiva ou diretório estadual elaboraria a lista com a ordem predefinida; 2) a lista seria elaborada por uma convenção estadual do partido; ou 3) cada partido teria um mecanismo de receber pré-candidaturas a deputado e a inclusão (ou não) destes (e em qual ordem) seria determinada por uma votação prévia de todos os filiados no estado. Além de mais participativa, esta terceira alternativa poderia funcionar como uma “pré-campa-nha” de divulgação do partido junto aos eleitores e serviria como estímulo a novas filiações. O Projeto de Lei prevê que a lista e a ordem dos candidatos sejam defi-nidas em convenção partidária. Assim, as “opções” 1) e 2) seriam operadas “infor-malmente” e teriam que ser referendadas via convenção partidária.

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A partir de 2010, cada partido ou “federação” definiria, através de conven-ção, os candidatos e a sua ordem em lista única. Porém, a eleição em 2006 teria “regras de transição” para acomodar os atuais parlamentares (eleitos em 2002). Estes parlamentares seriam colocados nas primeiras posições das listas, seguindo a ordem de prioridade de acordo com o número de votos obtidos em 2002:

1º – Candidatos eleitos em 2002;

2º – Suplentes efetivados;

3º – Suplentes que exerceram mandato por pelo menos seis meses; e

4º – Candidatos eleitos que trocaram de legenda após a eleição de 2002.

Esta regra de transição seria pre-judicial aos deputados que trocaram de legenda após as eleições de outubro de 2002, com maior impacto sobre os dois partidos que receberam o maior número de “migrantes” (PTB e PL).

É claro que o partido/federação que tiver a melhor imagem entre os eleitores, o programa ou proposta mais atraente, e escolhido os seus candidatos de uma maneira mais participativa, levaria mais vantagem na eleição proporcional. Para os partidos/federações que não conseguis-sem atender estes três quesitos, o sistema de lista fechada não renderia muitas van-tagens.

No sistema de lista fechada, os man-datos dos deputados pertencem ao partido e não mais aos próprios deputados. Assim, o partido teria mais controle sobre os seus eleitos, e a “migração” [“troca-troca”] dos deputados de uma legenda para outra durante o mandato não existiria mais. As bancadas seriam mais coesas e o trabalho parlamentar se tornaria mais eficaz e efi-

ciente. A articulação do Poder Executivo seria diretamente com os partidos e não mais “um-a-um” com cada parlamentar. Por este raciocínio, os partidos seriam for-talecidos, o que, em grande parte, poderia aperfeiçoar a prática da democracia no Brasil.

Este sistema de (RP) com lista fechada acumularia outras vantagens: 1) o embate eleitoral seria entre partidos e não mais entre “companheiros” da mesma chapa, e o debate na TV seria sobre programas e propostas e não mais de candidatos individuais – 8 segundos de “vote em eu”; 2) o financiamento das campanhas seria muito mais fácil para a Justiça Eleitoral monitorar com a movimentação financeira concentrada nos partidos e não mais nos candidatos individuais; e 3) as cotas para mulheres candidatas pelos partidos/coliga-ções seriam mais fáceis de operacionalizar, como na “Ley de Cupos”, na Argentina, onde obrigatoriamente as candidatas têm que constar pelo menos nas 3ª, 4ª e 5ª posições nas listas (Araújo; Jones). Na elei-ção logo depois da implantação da “Ley de Cupos”, a proporção de deputadas na Câmara Baixa argentina subiu de 5% para 21%.

O sistema de lista fechada também serviria para tolher os efeitos de “locomoti-vas eleitorais”, candidatos “endinheirados” e os apoiados por certas organizações ou “segmentos” – como Enéas Carneiro, do PRONA, que em 2002 recebeu 1,5 milhões de votos para deputado fede-ral em São Paulo, e “puxou”/”elegeu” outros 5 candidatos com poucas centenas de votos; ou candidatos ligados a seg-mentos coletivos que têm grande número de eleitores “fiéis”, filiados ou seguidores – como igrejas, sindicatos e certos grupos funcionais (como funcionários públicos,

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policiais militares, etc.). Estes grupos não mais poderiam concentrar os “seus” votos em candidatos destacados em diversos partidos, mas teriam que escolher um só partido/confederação para “despejar” os seus votos.

Para as eleições de 2006, os atuais deputados (eleitos em outubro de 2002) terão que tomar uma decisão que pode ser bastante draconiana. Até 2 de outubro de 2005, terão que decidir a sua migração partidária “final” – a legenda pela qual disputarão a eleição em outubro de 2006 – um ano antes, sem saber exatamente qual federação o “seu” partido vai entrar e nem como ficaria a sua posição na ordem pré-determinada dos candidatos. Possivelmente, vários deputados “migran-tes”, percebendo que não teriam grandes chances no seu então partido, optarão para um outro partido “nanico”, justamen-te para ter mais poder de barganha para “acertar” a sua posição na composição da lista fechada da confederação que, por ventura, o seu “novo” partido venha a integrar.

Federação de PartidosHá muito tempo que o uso de coliga-

ções (sem sublegenda) nas eleições propor-cionais é criticado no Brasil. Supostamente, este mecanismo contribui para o fato da maioria do eleitorado não conseguir lem-brar o nome do candidato e muito menos o partido em que votou. Também, estimu-la a “migração” de deputados eleitos por uma coligação para outros partidos que nem participavam da coligação que ele-geu o deputado. Em 2003, mesmo antes da posse (em 1 de fevereiro) dos novos parlamentares eleitos em outubro de 2002, uns 40 deputados trocaram de legenda (Quadro 1). O relator desta reforma, Dep.

Ronaldo Caiado (PFL-GO), afirma que até os meados de março de 2004, 125 depu-tados já trocaram de partido (Freitas). Sem o mecanismo da sublegenda [sublemas, na Argentina e Uruguai], os partidos coligados perdem a sua identidade perante o eleito-rado e contribuem para o enfraquecimento das legendas. Em muitos casos, as micro ou pequenas legendas não teriam chances de eleger um só deputado sem o artifício das coligações (Ames; Cintra; Fleischer, 2004; Melo; Nicolau, 1997; Nogueira).

Já apareceram várias propostas para corrigir estas anomalias e atenuar os efei-tos das coligações – desde proibir as coligações totalmente [o fim dos partidos “históricos”, como o PPS e o PCdoB], a adoção de sublegendas [onde cada parti-do participante teria a sua própria sublista dentro da coligação], até a adoção de uma “cláusula de exclusão” ou barreira (de 2%, 3% ou 5% dos votos válidos), como na Alemanha, para excluir os partidos “nani-cos”1. Para 2006, esta nova proposta prevê uma “barreira” de 2% dos votos para a Câmara dos Deputados, nacionalmente distribuídos em 1/3 das unidades da fede-ração, e eleição de um deputado em pelo menos 5 destas unidades – para que os partidos ou federações possam ter direito a funcionamento parlamentar. Portanto, a “barreira” brasileira continuaria menos rígida que a da Alemanha.

Assim, a proposta de uma “federa-ção de partidos”, ao invés de coligação, chega a ser uma mudança inovadora. Continuaria o mecanismo de uma aliança eleitoral entre partidos para as eleições proporcionais, mas com a lista fechada. A grande diferença é que esta “federação” teria que permanecer em funcionamento obrigatoriamente por três anos. Assim, não teria mais “troca-troca” de legenda

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durante este período e a “federação” fun-cionaria como um “bloco parlamentar”. Na linguagem dos jovens, a tradicional aliança eleitoral via coligação é uma rela-ção de “ficar” (até a abertura das urnas), e a “federação de partidos” seria então uma “união estável” durante três anos. Caso a “federação de partidos” se dissolver antes de completar o prazo de três anos, os par-tidos que a compõem perderiam o direito ao funcionamento parlamentar.

Fidelidade PartidáriaO conceito da “fidelidade” do parla-

mentar para com a sua legenda não seria tão rígido quanto a norma que vigorava durante o período militar, mas seria for-temente inibitivo de “migrações” após as eleições – por causa da lista fechada e a operação das “federações partidárias”. Não está muito certo que a “infidelidade” do parlamentar durante o seu mandato poderia implicar na perda do mandato, mas com certeza as lideranças partidárias teriam mais controle sobre o comporta-mento dos seus liderados. De acordo com L.M. Rodrigues, o eleitor não se incomo-da com a infidelidade dos parlamentares migrantes que, em última instância, aju-dam os governos a constituirem maiorias no Congresso após cada eleição. Foi assim com o Presidente Cardoso, em 1995 e 1999, e também com o Presidente Lula, em 2003.

Financiamento de CampanhasDepois do mecanismo da lista fecha-

da, a segunda grande mudança no sistema eleitoral seriam as alterações nas regras para o financiamento dos partidos e as suas campanhas eleitorais em 2006. Tido como um grande entrave na democracia repre-sentativa no Brasil, o resultado parece ser: quanto mais dinheiro o candidato tenha disponível para a sua campanha, mais

votos receberia e maiores chances teria de ser eleito (Fleischer, 2000; Samuels, 2001a, 2001b, 2003; Sirkis).

Usualmente, a contabilidade do dinheiro gasto na campanha (via a cha-mada “caixa um”) apresentada à Justiça Eleitoral não chega a um décimo do total realmente gasto e, portanto, fora do esque-ma de monitoramento dos TRE`s (Fleischer e Whitaker). A grande parte destes recursos vem da chamada “caixa dois” de empre-sas e outras organizações interessadas em poder contar com deputados dispostos a defender seus interesses. O Prof. Cândido Mendes estima que foram gastos algo em torno de R$ 10 bilhões nas campanhas de 2002 (Mendes).

A nova proposta prevê financia-mento exclusivamente público das elei-ções, através de dotação orçamentária no valor de R$ 7,00 multiplicado pelo núme-ro de eleitores cadastrados no ano anterior à eleição (dezembro de 2005) e veda totalmente as contribuições de pessoas físicas e jurídicas às campanhas eleitorais. Resta saber se o Congresso Nacional dota-ria a Justiça Eleitoral com poderes fortes o bastante para realmente impedir estas con-tribuições – a partidos e federações de par-tidos, em 2006. No entanto, não seriam vedadas estas contribuições para o Fundo Partidário. Este continuaria constituído por dotações orçamentárias anuais no valor de R$ 0,35 por eleitor cadastrado no ano anterior às eleições – mas, somente nos anos ímpares (quando não há eleições).

No caso do montante de recur-sos públicos para financiar as eleições, para 2006, estima-se que o total dispo-nível poderia chegar a R$ 966 milhões (138.000.000 eleitores x R$ 7,00) – ou seja, aproximadamente US$ 333 milhões. Este montante seria distribuído entre os partidos da seguinte forma:

129

DAVID FLEISCHER

1) 1%, igualitariamente, entre todos os partidos registrados no TSE;

1% de R$ 966 milhões = R$ 9,66 milhões

2) 14%, igualitariamente, entre os partidos com representação na Câmara;

14% de R$ 966 milhões = R$ 135,24 milhões

3) e 85%, proporcionalmente às bancadas de deputados federais de cada partido, eleitas no pleito anterior [outubro de 2002].

85% de R$ 966 milhões = R$ 821,1 milhões

Este mecanismo penalizaria os pequenos partidos e, principalmente, os “médios”, como o PTB e o PL que quase dobraram as suas bancadas com “migra-ções” após o pleito de 2002 (Quadro 1).

Como exemplo desta distribuição em 2006, apresentamos os cálculos para um “grande” [91 deputados] e um “micro-partido” [4 deputados] – assim, os recursos disponíveis para o “grande” seriam dez vezes maiores que os disponíveis para o “pequeno”:

PSD (elegeu 4 deputados federais em 2002)1) 1/30 de R$ 9,66 milhões = R$ 322.000,00

2) 1/15 de R$ 135,24 milhões = R$ 9.016.000,00

3) 4/513 de R$ 821,10 milhões = R$ 6.402.000,00

TOTAL = R$ 15.740.000,00

PT (elegeu 91 deputados em 2002)1) 1/30 de R$ 9,66 milhões = R$ 322.000,00

2) 1/15 de R$135,24 milhões = R$ 9.016.000,00

3) 91/513 de R$ 821,10 milhões = R$ 145.653.000,00

TOTAL = R$ 154.911.000,00

Para o partido que em 2002 não elegeu nenhum deputado federal e não tem representação na Câmara, o total de financiamento público seria apenas de R$ 322.000,00.

Num ano de eleições federais (como em 2006), a divisão destes recursos alocados para cada partido ficaria assim:

• 30% para a administração nacional do partido, quando o partido/coligação tiver candidato à Presidência;

• 20% para a administração nacional do partido, quando o partido/coligação não tiver candidato à Presidência;

• do restante, 70% ou 80%, para as administrações estaduais do partido, sendo que, 50% proporcionalmente ao número de eleitores, e 50% proporcionalmente às bancadas estaduais de cada partido na Câmara.

Desta maneira, ou 70% ou 80% destes recursos ficariam para custear as 27 campanhas estaduais (governador, senador e deputados federais e estaduais) de cada partido, conforme o “tamanho” do respectivo partido em cada estado. Aparentemente, não há previsão para as eleições com duas vagas para senador, como em 2010, por exemplo. Nos casos de coligações (presidente, governador e senador) e de federações (deputado federal e estadual), os partidos participantes teriam que acertar a distribuição da soma dos seus recursos.

Tramitação O Projeto de Lei nº 2679/2003

tramitou na Comissão Especial durante 26 sessões e 7 audiências públicas, até que o parecer final do Dep. Ronaldo Caiado (PFL-GO) foi aprovado em 3 de dezembro

130

ENSAIO

de 2003. De 3 a 5 de junho de 2003, a Comissão Especial promoveu, junto com a ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política), um seminário para debater esta Reforma Política – ver:

www.camara.gov.br/internet/Eventos/Sem_conf_realizados/2003/Sem_reforma_politica.asp

Os trabalhos apresentados neste seminário estão para ser publicados em um volume, ainda em 2004. No mês seguin-te, em 1º de julho, a Fundação Perseu Abramo lançou na Câmara dos Deputados (com a presença do Presidente Lula) uma coletânea de estudos sobre a reforma polí-tica (Benevides et al.) – resultado de uma seqüência de três seminários realizados a partir de 2001 sobre esta “mãe de todas as reformas”. Mesmo assim, esta reforma ficou fora da pauta da sessão extraordi-nária daquele mês (Cruvinel, 2003a). No mesmo mês de julho, começaram a apare-cer os primeiros sinais de que a chamada “bancada evangélica” se posicionara con-tra esta reforma (Braga; Cruvinel, 2003b).

Finalmente, em 3 de dezembro de 2003, a Comissão Especial aprovou o parecer do relator por 26 votos contra 11, com um ausente – mas esta decisão deixou a base do governo Lula dividida (Franco, 2003). Assim, ficou patente que a tramitação na CCJ em 2004 não seria fácil. O PMDB e o PFL tiveram um voto contra cada, mas o “bloco dos partidos médios” fechou questão contra a reforma política (Quadro 2). Todos os 9 deputados representando o PTB, PL e PP na Comissão votaram contra. Todos os 5 deputados do PSDB votaram a favor e, dos 6 deputados do PFL, apenas um votou contra. Estes dois partidos (aliados no Governo F.H. Cardoso) tradicionalmente trabalhavam

em favor da reforma política e sempre tive-ram um aliado velado (PT). Mas o partido de Lula nunca assumia publicamente estas teses, como o fim das coligações nas elei-ções proporcionais, para não desagradar seus aliados. Porém, com o PT no poder, em 2003, estes aliados (PPS, PCdoB e PSB) votaram a favor da reforma na Comissão Especial, principalmente porque o meca-nismo da “federação de partidos” era um artifício melhor do que a simples proibição das coligações nos pleitos proporcionais – que teria sido a “sentença de morte” para estes partidos.

Interessantemente, o então vice-líder do PL, Dep. “Bispo” Rodrigues (RJ), avisou os petistas que se fosse aprovada a votação em lista (pelo Congresso), seu partido seria obrigado a lançar candidato à Presidência da República em 2006. O raciocínio do “Bispo” era que o eleitor sempre dá preferência [na eleição proporcional] às legendas que têm candidato a presidente. Por esta mesma razão, o PTB e o PP se posicionaram contrários ao voto em lista (Franco, 2003).

Depois da divulgação, em 13 de fevereiro de 2004, do vídeo onde o então Chefe da Assessoria Parlamentar do Governo Lula, Waldomiro Diniz, pede contribuições tipo “caixa dois” ao bichei-ro Carlos Ramos [Carlinhos Cachoeira], em março de 2002, no início da sessão ordinária, o Presidente da Câmara dos Deputados, Dep. João Paulo Cunha (PT-SP), tentou acelerar a tramitação do PL nº 2679/2003 no primeiro semestre, justa-mente por causa do financiamento público exclusivo das eleições. Nisso, até o então Líder do Governo, Dep. Miro Teixeira (sem partido-RJ), ficou contra – para não pare-cer um “casuísmo”, decorrente do “caso Waldomiro”, ou parte de uma “agenda positiva” (Franco, 2004).

131

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Por outro lado, o cientista político Jairo Nicolau lembrou que “o financiamen-to público, com fiscalização e punições, é a melhor opção para reduzir escândalos” (Nicolau, 2004). Na contra mão, o Prof. Wanderley Guilherme dos Santos se posi-cionou radicalmente contra esta reforma, no que concerne à lista fechada que, em seu modo de ver, tolheria a “liberdade” do eleitor de “escolher” o seu candidato:

O voto em lista fechada encarcera o eleitor, o qual, hoje, pode votar na lista partidária (a legenda do partido) ou em candidatos individuais. A proposta impede o eleitor de escolher o seu representante, incumbindo a usurpadores a tarefa de decidir a quem seu voto irá eleger. Dizem que isto elevará o padrão moral da democracia brasileira (Santos, 2004).

No dia 4 de março de 2004, os líde-res do PTB, PL, PP e PDT se recusaram a assinar o pedido de urgência para votar a reforma política (Lima). Diante destas pressões (que incluíram ameaças do PTB, PL e PP de obstruir todas as propostas do governo na Câmara), em 9 de março o PT retirou o regime de urgência da reforma política (Seabra, Braga e Caetano). A urgência até que tinha apoios suficientes para a sua aprovação (com o apoio do PSDB e PFL), mas deixaria a base do gover-no rachada – coisa inoportuna, justamente num momento quando o Governo Lula mais precisava de união das suas forças políticas. Às vésperas do Carnaval, dois experientes deputados do PSDB afirmaram que o financiamento público exclusivo é incompatível com o atual sistema de voto em listas abertas (Ferreira e Almeida). Lembrando os senadores “biônicos” elei-tos em 1978, o Líder Miro Teixeira bradou: “O projeto cria o deputado biônico. Vou para as ruas reivindicar que sejam man-

tidas as eleições diretas para a Câmara” (Franco 2004).

O último lance deste embate na Câmara foi a substituição do Líder do Governo (Miro Teixeira) pelo Dep. Prof. Luizinho (PT-SP), em 1º de abril. Ao mesmo tempo, Miro se filiou ao PPS (partido forte-mente a favor da reforma).

Conclusões Por volta de 2000 e 2001, após a

aprovação de vários pontos do “Relatório Sérgio Machado” pelo Senado Federal e vendo a impossibilidade da Câmara tra-mitar estas propostas de reforma política, inusitadamente, lideranças do PFL e do PT conseguiram elaborar vários pontos em comum para mudanças no sistema polí-tico-eleitoral brasileiro – mas não houve tempo hábil para aprová-los antes do decurso de prazo para o pleito de 2002.

Como vimos acima, novamente estes dois partidos, em lados opostos do jogo político em 2003-2004, ainda conservam a mesma comunhão de idéias quanto a esta reforma. Quando o Presidente da Câmara insistiu em aprovar a urgência para votar e aprovar esta reforma, ainda no primeiro semestre de 2004, os partidos médios que supostamente seriam lesados (PTB, PL e PP) invocaram o “Caso Waldomiro” para imperrar a tramitação. Por outro lado, muitos deputados estavam pressionando para a “liberação” das suas emendas [orça-mentárias] para reforçar as campanhas de aliados no pleito municipal deste ano.

Para quase todos os observadores, a combinação entre a votação em lista fechada com o financiamento exclusivo das campanhas (especialmente as propor-cionais) é inseparável. A solução “miner-va” [ou “mineira”] dada pelo mecanis-

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ENSAIO

mo da “federação de partidos”, ao invés das tradicionais coligações nas eleições proporcionais, operou para “preservar” a identidade (e sobrevivência) dos pequenos partidos, foi inovadora.

Infelizmente, a visão política e a modus operandi dos partidos médios (PTB, PL e PP) em eleger deputados via financiamentos maciços de pessoas físicas e jurídicas, apoios de certos grupos e segmentos do eleitorado a “nomes” a estes ligados, e o uso político da “migração” de deputados para “engrossar” as suas legendas (e a “chantagem fisiológica”) faz com que

estas três legendas se sintam ameaçadas no próximo pleito proporcional, caso a reforma seja aprovada da maneira como saiu da Comissão Especial. Resta saber se, re-estabelecida a sua liderança equilibrada na Câmara no primeiro semestre de 2004, o Governo Lula teria tempo hábil para aprovar esta reforma. Ou se não seria melhor deixar a poeira do pleito municipal baixar, para em 2005 empreender uma tentativa final, incluídas mais negociações políticas na CCJ em relação aos pontos mais polêmicos.

QUADRO 1 – Migração Partidária na Câmara dos Deputados, 2002-2004

Partido 2002 2 0 0 3 2004

Out.* Fev. Junho Ago. Out. Abril**

PT 91 91 93 93 94 90

PMDB – – 68 78 78 78

PTB 26 41 48 52 53 52

PL 26 33 33 40 42 45

PSB 22 28 29 16 16 20

PDT 21 18 15 14 12 –

PPS 15 21 19 19 21 22

PDdoB 12 12 11 11 11 09

PPB/PP – – 47 48 48 54

Outros 15 08 07 07 06 09

Governo 218 252 370 378 381 379

% 57.5 50.9 29.9 26.3 25.7 26.1

TOTAL 513 513 513 513 513 513

PFL 84 76 72 68 66 63

PSDB 70 63 63 55 52 50

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PMDB 75 70 – – – –

PRONA 06 06 06 06 06 02

PPB/PP 49 44 – – – –

PDT - – – – – 13

Outros 03 02 02 06 08 06

Oposição 285 261 143 135 132 134

% 57.5 50.9 29.9 26.3 25.7 26.1

TOTAL 513 513 513 513 513 513* - Eleitos em outubro de 2002.** - Em 7 de abril de 2004.

QUADRO 2 – Votação do Parecer da Comissão Especial da Reforma Política* (em 3 de dezembro de 2003).

Partido A Favor Contra Ausente

PT 7 0 0

PMDB 4 1 0

PSB 2 0 0

PPS 0 0 1

PCdoB 1 0 0

PV 1 0 0

PP 0 3 0

PL 0 3 0

PTB 0 3 0

PDT 1 0 0

PFL 5 1 0

PSDB 5 0 0

TOTAL 26 11 1 * - Câmara (2003).

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NOTAS1 Um mecanismo de cláusula de barreira estaria vigorando para as eleições proporcionais em 2006, mas não tão rígido como na Alemanha onde os partidos assim excluídos não elegem ninguém.

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A Câmara dos Deputados e a Democracia Brasileira no

Século XXI

* JOÃO PAULO CUNHA

Em 2003, Câmara e Senado come-moraram 180 anos de presença do Poder Legislativo no Brasil. Foi o parlamento ins-talado no ano de 1823, logo após o grito de independência. Pouco tempo antes, em 1821, a Metrópole portuguesa dera os primeiros passos em direção ao regime de monarquia constitucional, que superaria o absolutismo. Dera-se início em Lisboa, na seqüência da vitoriosa Revolução Constitucionalista do Porto, às ativida-des das “Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa”, às

quais o Brasil, então Reino Unido, envia-ra seus delegados. Estes, porém, de lá regressaram convencidos da necessidade de a monarquia tropical também se cons-titucionalizar, mas com independência de Portugal.

Declarada esta, convocaram-se elei-ções para a Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, a qual se reuniu, pela primeira vez, em sessão preparatória, no dia 17 de abril de 1823 e, em sessão inaugural solene, no dia 3 de maio do mesmo ano. A história de nosso

* Deputado Federal / Presidente da Câmara dos Deputados

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Legislativo se confunde, pois, com a histó-ria do Brasil independente.

Não nos cabe recapitular as vicissi-tudes pelas quais passou a legislatura entre nós, ao longo de sua história. Ela sobrevi-veu aos percalços, sobretudo durante os retrocessos ditatoriais. Apesar de tolhida em suas funções, nela nunca deixaram de fazer-se ouvir as vozes de oposição ao arbítrio e de defesa das liberdades e do estado de direito. Que se rememore terem as lideranças parlamentares desempenha-do, no processo de abertura, que finalizou o último ciclo autoritário pelo qual pas-samos, decisivo papel, como intermedia-doras eficazes nas negociações entre o governo e os grupos da sociedade civil.

Depois de levada a bom termo a abertura política e a retomada da demo-cracia, o Congresso tem desempenhado um relevante papel na consolidação e no aperfeiçoamento do regime. Que não se esqueça, por exemplo, a condução equili-brada do processo de impeachment de um Presidente da República, certamente uma das provas mais difíceis pelas quais pode passar o sistema presidencialista.

Apesar do protagonismo do nosso Legislativo, não raro encontra eco entre nós uma expectativa resignada, até cética, quanto à função desse poder no mundo contemporâneo. Aliás, não é de hoje essa visão pessimista. Já no século XIX, autores como Walter Bagehot e Stuart Mill olha-vam com temor a crescente ampliação do eleitorado na Grã-Bretanha. Segundo eles, esse fenômeno iria alterar a composição do parlamento, transformando os homens até então independentes, componentes da chamada classe política, em uma minoria sem poder.

Essas preocupações só fizeram cres-cer ao longo daquele século, repercutindo em autores como Ostrogorski, Lowell e Bryce, que olhavam também com suspei-ção o aparecimento das massas e dos par-tidos políticos organizados que as repre-sentavam.

Essas entidades, na feição assumida com o suceder das eleições, serviam para agregar as demandas do crescente eleitora-do. Ao fazê-lo, retiravam da classe política a liberdade de ação de que antes tinha gozado. A atuação parlamentar passou a ser cada vez mais partidária, em vez de individual.

Ao mesmo tempo, os novos gru-pos sociais que entravam na vida políti-ca aumentavam suas reivindicações. Para atendê-las, o Estado teve de expandir-se como entidade prestadora de serviços e reguladora de atividades, num vasto espec-tro de políticas governamentais, deixando para trás a imagem do Estado do “laissez faire, laissez passer”.

Nesse contexto, os partidos não foram apenas os portadores passivos dos pleitos do eleitorado, mas tornaram-se, também, agentes da transferência de poder do Parlamento para o Executivo, a qual foi gradualmente ocorrendo. A assembléia aos poucos cedeu lugar à burocracia pública, comandada, nos regimes parlamentares, por gabinetes que as maiorias partidárias constituíam e que, gradualmente, foram relegando a assembléia a funções rela-tivamente ancilares na determinação da política pública.

Nos meados do século passado, o eixo das decisões deslocou-se ainda mais para fora do parlamento, quando as gran-des centrais sindicais e patronais, em con-

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jugação com o próprio governo, passaram a constituir foros para decisões de políticas governamentais, sobretudo as macroeco-nômicas, mediante os chamados arranjos neocorporativistas, até hoje vigentes em alguns países.

Como conseqüência dessas mudan-ças, teríamos, no mundo contemporâneo, a substituição, no debate político, do par-lamento pelos partidos, órgãos de classe e meios de comunicação de massa, e a perda de algumas de suas funções-chave para os arranjos neocorporativistas.

Contudo, devemos cotejar essa verificação pessimista sobre o papel do Legislativo no mundo contemporâneo com fatos e tendências que apontam em outra direção. Se não, vejamos.

A quem acompanhou as grandes transformações do final do século recém- terminado, não pode ter passado desper-cebida a instalação dos parlamentos nos países que saíram de regimes ditatoriais, ou sua revitalização e renovação, quando não tinham sido extirpados, mas tinham sobrevivido precariamente, privados de poderes. Hoje, um país não ter um parla-mento funcionando com razoável desen-voltura, em cujo seio se abrigue uma opo-sição, pode tomar-se, sem medo de errar, como indicador da presença de um regime ditatorial.

Mas constituiria essa revivescência dos parlamentos apenas homenagem ritual a uma velha instituição, vista, desde Locke e Montesquieu, como apanágio dos gover-nos constitucionais e, posteriormente, com a participação popular ampliada, tam-bém aceita como núcleo da própria idéia democrática? Ou brotaria tal fenômeno de impulsos mais profundos?

Inúmeros estudiosos que se têm debruçado sobre os parlamentos discor-dam do diagnóstico pessimista. Esse diag-nóstico é, na verdade, em boa parte, uma reação conservadora dos que vêem na expansão democrática apenas prenúncio de inelutável declínio das instituições. Os Legislativos modernos têm-se mostrado, ao contrário, insubstituíveis no desempenho de tarefas básicas da política democrática, as quais dificilmente poderiam levar-se a cabo fora do parlamento.

Tomemos um ingrediente inarredável da democracia, ou seja, a competição polí-tica, a disputa de grupos e classes sociais para conquistar o poder e, assim, ter seus interesses tomados em devida conta e efetivamente promovidos. Não se trata de competição desregrada, um vale-tudo. Ao contrário, tem de desdobrar-se sob a égide de regras do jogo mutuamente consenti-das, para que seu desfecho seja acatado.

Ora, o parlamento é essencial para que a competição política se dê sob esse marco regulatório estável, antes e depois do momento eleitoral. O parlamento é, precisamente, a instituição, aperfeiçoada sobretudo ao longo dos últimos duzentos anos, cujas regras e procedimentos per-mitem, na entressafra eleitoral, que a luta política transcorra civilizadamente, e que a solução dos conflitos siga uma forma pactuada, para que todos os competidores aceitem as decisões, em vez de se engalfi-nharem em combates sem trégua.

Esse papel de foro institucional para a competição política entre governo e oposição tem sido sobremodo importante na evolução das democracias, inclusive a nossa, pela capacidade que a legislatura tem demonstrado de incorporar novos

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grupos à representação política. Ela o faz por via de partidos que expressam as reivindicações de setores antes privados da cidadania. Dentro da assembléia, no plenário e nas comissões, habilitam-se tais grupos a usar dos meios institucionais para fazer que sua perspectiva seja levada em conta. Sem a instituição parlamentar, aqui e em outras partes, a luta política seria uma confrontação contínua, via luta arma-da. A força, não o direito, iria prevalecer. Quando esse é o caminho tomado, dificil-mente há desfecho democrático.

Ao contrário, sabemos que, mesmo nos sistemas políticos de participação limi-tada – assim se configuravam politicamen-te as sociedades européias que primeiro se liberalizaram –, quando os estratos popula-res adentraram a vida política, já encontra-ram à sua disposição, em funcionamento, um conjunto de mecanismos para a solu-ção de conflitos e a tomada de decisões, de que também puderam valer-se na defe-sa de seus interesses. Jogando o jogo sob as regras preestabelecidas, descobriram que, aumentando a cada eleição seu peso parlamentar, ganhavam poder e conse-guiam prevalecer em muitas negociações e decisões, até, finalmente, conquistarem o governo. Em suma, o parlamento mos-trou-se um dos lugares institucionais por excelência para, quer no parlamentaris-mo, quer no presidencialismo, a oposição democrática ter voz e voto, e preparar-se para assumir o poder.

Que dizer dos arranjos neocorpora-tivos? Apesar das críticas que a eles foram dirigidas – e que entre nós se repetiram, quando o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – de que até esta-riam usurpando funções do parlamento,

a verdade é, ao contrário, ser bastante circunscrito seu papel. Há áreas da polí-tica pública que lhe escapam, porque não é ele o foro adequado para decidi-las. Maurizio Cotta lembra, por exemplo, não se poder pensar em fazer a política externa por acordos neocorporativistas. E, sendo o governo um dos parceiros nas negociações tripartites, entabuladas mediante os arran-jos neocorporativos, se ele quer continuar como um governo democrático, sua polí-tica tem de ter o próprio parlamento como partícipe decisivo. Na forte expressão de Cotta, um Executivo sem contrapartida de um Legislativo capaz de oferecer espaço político à oposição degeneraria em um órgão autocrático.1

Uma outra tendência contemporâ-nea merece comentário, sem embargo das ponderações anteriores sobre a continu-ada relevância da instituição parlamen-tar na democracia contemporânea. Temos em mente a assunção, pelos Executivos, de acrescidos poderes legislativos, entre outros aspectos pela faculdade de legislar por decretos, fenômeno acentuado nas últimas décadas do século passado.

Guillermo O’Donnel tentou singula-rizá-lo para democracias como a brasileira, a argentina e outras, saídas de regimes que ele intitulou “burocrático–autoritários”. Tratar-se-ia da “democracia delegativa”.2

Para O’Donnel, ganhou corpo, com a nova onda de democratização, um “sub-tipo de democracia”, constituído de regi-mes que não parecem prestes a regre-dir para o autoritarismo, mas, tampouco, parecem caminhar para uma “representa-tividade institucionalizada” maior. Neles, o Congresso e o Judiciário aparecem como incômodos que se têm de aceitar para o

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país poder usufruir as vantagens internas e externas de ter “um presidente demo-craticamente eleito”. A obrigatoriedade de prestar contas (accountability) a outras ins-tituições seria ainda relutantemente aceita. A “democracia delegativa” pode até ser, em virtude de seu lado plebiscitário, mais democrática do que a democracia repre-sentativa clássica, mas certamente, obser-va O’Donnel, é menos liberal que esta.

Os novos regimes tenderiam a insular politicamente decisões básicas, confiando-as aos tecnocratas, sobretudo nos assuntos econômicos, e a relegar e descartar as resistências do legislativo, dos partidos ou das associações às medidas por eles pro-postas.

As democracias delegativas parecem, assim, estar conservando traços dos regi-mes burocrático–autoritários a que sucede-ram, o que tentam justificar por se estarem debatendo com sérias crises econômicas e sociais, exigentes de medidas de urgên-cia e alta necessidade. A diferença com relação ao regime anterior é que, agora, o Congresso e os partidos podem criticar as políticas do governo; os tribunais podem impedir medidas flagrantemente incons-titucionais, e os sindicatos e associações patronais não são impedidos de reclamar e combater as políticas de que discordarem.

Esses elementos democráticos seriam reais na democracia delegativa, mas, com-parada com as democracias consolidadas, os poderes do Executivo não são devida-mente contrabalançados por outras ins-tituições relativamente autônomas, com capacidade de "questionar e eventual-mente punir maneiras 'impróprias' de o ocupante do cargo(...) cumprir suas res-ponsabilidades".

O'Donnel se mostra particularmente alérgico à gestão econômica da "demo-cracia delegativa", a qual contrastaria em extremo com a tomada de decisões pró-pria da democracia representativa. Nesta, as medidas passam pelo crivo de vários poderes, cada um com poder de veto. As decisões surgem de processos lentos, passo a passo, mas a implementação delas é mais segura e os erros, cuja responsabi-lidade é compartilhada por muitos, podem ser detectados antes que seja tarde. Com o "decretismo" da democracia delegativa, as decisões são rápidas, mas não evitam erros grosseiros e sua implementação é incerta.

Sem dúvida, a democracia delegativa de O'Donnel descreve muitas caracterís-ticas dos nossos regimes pós-autoritários. Seu ensaio data do auge dos pacotes eco-nômicos e das medidas de choque, aqui e em outros países.

Entretanto, esse conceito, muito cola-do a uma certa conjuntura latino-america-na, parece apenas extremar tendências presentes nas próprias democracias con-solidadas a que O’Donnel se refere. O predomínio do Executivo sobre os demais poderes extrapola de muito o subconjunto das democracias delegativas. Que se lem-bre a força dos gabinetes britânicos, que reduzem o parlamento, como assembléia, a foro de debates, ou o “decisionismo” que vai e volta na Itália, pátria, aliás, das medidas provisórias, inclusive de sua reedição. O semipresidencialismo francês dota o gabinete de extraordinária força, sobretudo nos períodos em que presidente e primeiro-ministro pertencem à mesma maioria partidária. Por toda parte, no con-tinente europeu, fala-se de “parlamentaris-mo racionalizado”, ou seja, sistemas não

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sujeitos à paralisia de decisões, porque é dada ao Executivo a capacidade de ver seus projetos aprovados com celeridade e praticamente não emendados. E, na democracia norte-americana, o uso, pelo presidente, de seu poder de decreto – as ordens executivas – tem sido freqüente e sua abrangência é cada vez maior.

Ao examinarmos a nova realidade, é preciso, primeiramente, deixar de ver a democracia como um regime pronto e acabado, que possa permanecer imu-tável quando o mundo ao redor está em constante transformação. O mundo glo-balizado exige uma presteza de resposta governamental desconhecida em outros tempos. Por mais bem organizado que seja o Poder Legislativo, por mais centralizados que sejam seus mecanismos de decisão, trata-se sempre de um grande colegiado, cuja lógica de funcionamento não é, nem pode ser, a mesma do Executivo. Por isso, é errôneo, como freqüentemente se vê, encarar o uso do “poder de decreto” pelos governos como constituindo sempre uma usurpação e, da perspectiva da assem-bléia, uma abdicação de competência.

A tendência generalizada de recurso ao “decretismo” revela haver causas mais profundas em operação do que a simples volúpia de poder de governantes, em cum-plicidade com parlamentares pouco iden-tificados com sua missão e pouco ciosos de sua competência legislativa.

Estamos diante de um dos problemas magnos da democracia de hoje, no que diz respeito a uma redefinição dos papéis dos dois poderes, num mundo em que as decisões têm de ser céleres e as crises externamente geradas se sucedem a curtos intervalos.

Por outra parte, instrumentos como as “medidas provisórias”, ainda que neces-sários – como o próprio constituinte de 88 reconheceu, apesar do estado de espírito por todas as razões avesso, à época, à preponderância do Executivo, vista como parte do entulho autoritário – devem conhecer limites, como não cessam de alertar expoentes de nossos meios jurí-dicos. Não se pode ignorar os grandes problemas de segurança jurídica que um arcabouço legal construído com recurso tão abundante como as MP´s traz. Afinal, normas criadas por MP´s podem também se modificar por novas MP´s, o que não é muito tranqüilizador diante da necessida-de de normas estáveis.

A Emenda Constitucional nº 32/2001 sem dúvida aperfeiçoou a sistemática das Medidas Provisórias, em particular por delimitar com clareza as matérias que lhe são vedadas e limitar-lhes a reedição. Com essas vedações, diminuiu-se a irrestrita delegação de antes. Contudo, na prática, a nova mecânica tem trazido problemas ao funcionamento do Legislativo, sobretudo pelo “trancamento de pauta” que provoca, quando também outras matérias relevantes precisam de deliberação. Ainda temos de obter um melhor ajuste entre os dois pode-res no uso do instituto emergencial, que deve ser mais parcimonioso por parte do Poder Executivo.

Os que estudam o indiscutível predo-mínio do Executivo, por toda parte, na ini-ciativa legislativa, quando não na própria legiferação – pois, com os decretos com força de lei, a lei já vem pronta do próprio governo – têm apontado, todavia, para diferenças entre as legislaturas dos países democráticos. Algumas logram exercer um papel mais decisivo na produção legal do que outras.

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Esse papel decisivo já não é de exclusividade na legiferação, mas signi-fica não ser o Legislativo apenas foro de debates, senão também instituição com capacidade de afetar a própria legifera-ção. O Legislativo exerce, também, função transformativa, ao trabalhar e aprimorar os projetos que recebe, ou ao processar os de sua própria iniciativa.

O que distingue os parlamentos mais efetivos, com maior capacidade transfor-mativa, dos demais, é sua própria orga-nização interna, sua institucionalização, sobretudo quando contam com um forte e complexo sistema de comissões.

Nossa Câmara dos Deputados dispõe de comissões permanentes, com juris-dições regimentalmente definidas. Ainda não chegamos, porém, a institucionaliza-ção satisfatória nesse particular. Ainda não preenchemos algumas condições impor-tantes para lográ-la. Vejamos alguns dos problemas pendentes.

Para as comissões desempenharem em plenitude o papel que delas se espera, deveria haver incentivos para a especia-lização dos parlamentares nos assuntos sobre os quais cada uma tem jurisdição. A especialização advém não apenas da formação profissional, do setor de ativida-de social e econômica a que o deputado está vinculado, enfim, de sua experiência prévia, mas, também, do investimento de seu tempo nos assuntos de que o colegia-do trata. Esses incentivos são limitados, porém, exceto no caso dos presidentes da comissão e de seus relatores.

Diferentemente de outras legislaturas – sobretudo o Congresso norte-americano, exemplo mais relevante para nós, por se tratar de um sistema presidencial –, nossa

Câmara não constitui, para numerosos parlamentares, o horizonte de sua “car-reira” política. É apenas um estádio numa carreira em geral orientada para postos no Executivo, sobretudo os de nível infrana-cional (prefeituras e secretarias de estado). A maioria dos representantes norte-ame-ricanos, ao contrário, pensa na carreira legislativa como horizonte de longo prazo, uma opção de vida. Nela os deputados investem seu tempo, esforços e ambição. E a comissão é o lugar fundamental para desenvolver a carreira parlamentar bem-sucedida.

Entre nós, não existe um sólido prin-cípio de antigüidade, de tempo de serviço do parlamentar na instituição, ao contrário do que se dá no Congresso norte-ame-ricano, em que a chamada seniority é respeitada. Seniority significa recompensa ao tempo de serviço. Quando existe, o deputado é estimulado a investir no tra-balho de comissão, a nela permanecer por longo tempo, pois, quanto mais nela permanecer, quanto mais dominar seu campo temático, tanto maior o seu poder parlamentar. Na House of Representatives norte-americana, os presidentes de comis-sões e subcomissões são os parlamentares que nela vêm servindo ao longo de vários mandatos.

No Brasil, praticamente proibimos regimentalmente a carreira no âmbito da comissão, pois seus cargos de comando devem renovar-se anualmente, além de haver grande rotatividade entre os pró-prios membros das comissões. Haveria que repensar o problema, sem, entretan-to, ignorar a complexidade de reforçar o sistema de comissões e ao mesmo tempo buscarmos solidificar os partidos políticos. As partes de um sistema político se inter-

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relacionam. Comissões fortes, compostas por parlamentares especializados e com extensa folha de serviços em suas ativida-des, não existirão no vazio. Ao contrário, podem entrar em choque com partidos mais coesos e disciplinados, que procu-rarão controlar a produção da comissão. A busca do equilíbrio entre os dois desi-deratos constitui um desafio sem solução fácil, que temos, porém, de enfrentar. E os estudiosos da Ciência Política, os publi-cistas e os próprios parlamentares estão desde já convocados a ajudar a Câmara dos Deputados com suas sugestões sobre como encará-lo.

Devo assinalar os notáveis pro-gressos que as modernas tecnologias de informação nos têm propiciado, e delas nos temos valido, para o aperfeiçoamento do trabalho parlamentar e, também, da transparência deste perante a sociedade. Quem entrar em nossa página da Internet terá pleno e rápido acesso às informações relevantes sobre a atividade legislativa.

A imprensa pode ter amplo conhe-cimento de nossas lides, e a comunida-de acadêmica brasileira que se dedica aos estudos do Legislativo tem podido, nos últimos anos, ter acesso à abundante massa de dados para tratar, com metodo-logia científica, o que a Casa faz. Mediante análise de nossas votações nominais, por exemplo, têm-se feito numerosas inferên-cias sobre o papel do Legislativo na Nova República, sobre a força dos partidos na atividade parlamentar e sobre o relacio-namento entre os Poderes. Neste primeiro número de Plenarium, publicam-se alguns textos de cientistas políticos, os quais se têm valido do acesso rápido e confiável aos dados da atividade legislativa na pro-

dução de seus estudos. Chamo a atenção, também, para a disponibilidade, em nossa página na Internet, dos Anais da Câmara, desde os do ano de 1826. O acesso a essa rica fonte é fácil, não havendo, doravante, desculpa para não se pesquisar a insti-tuição por dificuldade na obtenção dos dados. Igualmente, o acompanhamento dos projetos aqui em tramitação é sim-ples, podendo-se obter o texto integral das proposições e dos pareceres em todas as fases.

Enfim, a Câmara é uma instituição responsável e transparente, como deve ser.

Muitas vezes se infere, da obser-vação externa, ser o papel da Casa mais passivo na legiferação, menos transforma-dor, pela preponderância do Executivo na iniciativa legislativa. A despeito, porém, de todas as deficiências que ainda existem e da grande premência de tempo sob as quais o órgão tem muitas vezes de deli-berar, as proposições que aqui tramitam passam por cuidadoso escrutínio, negocia-ção, inclusive com o outro Poder, e apri-moramento. Rara a proposição que aqui deixa de sofrer mudanças, via emendas. A votação nominal, cujo dado fica registrado e tem sido objeto de estudos acadêmicos, é apenas a culminância de uma complexa tramitação em que, em vez de simples delegação ao Executivo ou abdicação de poderes, a Câmara desempenha a função que lhe é própria no sistema de separação de Poderes.

Para preencher essa função de modo mais satisfatório, a Câmara dos Deputados tem, ao longo dos últimos anos, inves-tido em assessoramento especializado. Comparada com outras legislaturas presi-

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dencialistas, podemos dizer estarmos bas-tante adiantados no assunto. De modo geral, as matérias sobre as quais temos de deliberar podem ser tratadas com com-petência técnica, dentro obviamente das limitações de tempo sob as quais temos freqüentemente de funcionar, sobretudo, como assinalado antes, com uma pauta de decisões em boa parte gerada pelo Executivo, e sob regime de urgência.

Outro ponto a realçar é a produtivi-dade da Casa. Dos Poderes da República, nenhum mais exposto do que o Legislativo. É fácil passar ao público uma imagem deturpada, como se a Câmara fosse órgão desidioso. Focaliza-se o plenário vazio fora do horário das discussões e delibe-rações da “ordem do dia”, e tira-se fácil, mas deturpada, conclusão. É que, nesses momentos captados pela mídia, podem, por exemplo, estar funcionando, a pleno vapor, as comissões, e isso não é mostrado. Podem estar os parlamentares em entrevis-tas com autoridades do Executivo, veicu-lando os pleitos de seus eleitores e regiões, e acompanhando-lhes o atendimento, ou recebendo líderes de seus Estados e simples cidadãos, ou trabalhando em seu gabinete na redação de um complexo parecer ou pronunciamento. Todas essas atividades fazem parte de seu papel, apesar de serem menos visíveis.

Basta olharmos o que foi por nós votado nos últimos anos para vermos que a Câmara nada fica a dever às assembléias mais operativas. Aqui, expresso minha estranheza diante de uma visão quantitati-vista, que julga nossa produção pelo núme-ro de projetos apresentados, sem olhar-lhes o teor e a relevância. O importante é deliberar sobre proposições significativas. Nesse particular, não nos saímos mal. À

guisa de exemplo, para não recuar muito no tempo, citem-se, nesta Legislatura, entre vários exemplos, a complementação da reforma da previdência social, a reforma tributária ou o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), e, em legislaturas recentes, a Lei de Responsabilidade Fiscal, acoplada com a de Crimes Fiscais, a Lei dos Partidos Políticos, a Lei das Eleições, a Lei do Refis, a Lei Complementar que acabou com o sigilo das instituições finan-ceiras, as Emendas Constitucionais de Desvinculação das Receitas da União, de criação da CIDE – combustíveis, das Reformas Administrativa e Previdenciária, entre muitas outras peças legislativas fun-damentais.

Para concluir estas notas sobre a Câmara dos Deputados, recordemos ter passado nossa democracia, com as eleições de 2002, pelo prova crucial do regime, ou seja, a transferência do poder à oposição, com total respeito às regras do jogo e num clima de inteira normalidade institucional. Não se tratou, como em vezes anteriores, de um simples rodízio de grupos das elites governantes, extraídos das camadas altas e médias que tradicionalmente exerceram o poder entre nós, mas sim da chegada à presidência de um líder popular vindo da classe operária.

No novo patamar de nossa política, neste século que se inicia, o papel da Câmara dos Deputados será, mais do que nunca, decisivo. Ela não vai desempenhar somente um papel reativo na elaboração das reformas de que o País necessita, mas será, sobretudo, a oficina de um árduo tra-balho proativo, resultante dos embates, dos acordos e das negociações entre as forças políticas que, no seu interior, representam o diversificado eleitorado nacional. Nosso

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Legislativo não se omitirá da missão que dele espera o povo brasileiro nesta quadra tão rica de nossa história.

Que a revista Plenarium, agora lan-çada, seja, entre outras coisas, um foro fecundo de debate político, um lugar de difusão e discussão de conhecimentos sobre o Poder Legislativo e de estreita

colaboração da pesquisa acadêmica com o fazer parlamentar. Sobretudo, que consti-tua mais um dos laços que unem esta Casa à opinião pública, contribuindo, assim, para o reforço da democracia brasileira nesse aspecto fundamental, que é a aber-tura e a transparência das instituições em relação à sociedade.

NOTAS(Footnotes)1 Maurizio Cotta, verbete “parlamento”, em Norberto Bobbio, Nicola Mateucci e Giafranco Pasquino, org. Dicionário de Política, Brasília: Editora UnB, 1986.2 Guillermo O’ Donnel, “Democracia Delegativa?”, Novos Estudos/CEBRAP, 1991.

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Sobre a Reforma Política

I – DiagnósticoNinguém ignora que, desde que o

povo foi às ruas, clamando por eleições livres e diretas, o sistema político e elei-toral brasileiro passou por transformações democráticas significativas. O país foi constitucionalizado, aquilo que se con-vencionou chamar de entulho autoritá-rio foi removido; estabeleceram-se, desde então, eleições diretas em todos os níveis; foi instituída a liberdade partidária e realizaram-se avanços até em campos onde as expectativas eram mais modestas,

como é o caso do sistema eletrônico de votação e apuração de votos. Nesta área construiu-se um sistema que está, sem dúvida, na vanguarda mundial. E, se não é imune à fraude, certamente levanta sólidas barreiras contra essa condenável prática secular. Mas nem por isso o sistema polí-tico brasileiro deixa de padecer de sérias limitações. Aqui algumas delas:

No Brasil, o financiamento privado de campanhas é escandaloso. Ele assegura uma desigualdade absoluta, não só entre os partidos, mas até dentro dos partidos,

* Deputado Federal / ** Chefe de Gabinete da Liderança do PT

*ARLINDO CHINAGLIA / **ATHOS PEREIRA

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de um candidato com relação ao outro, de uma fração partidária com relação à outra. E provoca, de quebra, as condições para a prática do abuso do poder econômico de forma que, freqüentemente, a vontade do eleitorado sai deformada da urna, inde-pendentemente das virtudes do sistema eletrônico de votação.

A ausência de regras destinadas a assegurar um mínimo de fidelidade par-tidária faz com que, quase sempre, as siglas partidárias funcionem como meras franquias e confere aos eleitos uma liber-dade absoluta para trocar de sigla, sem a menor preocupação em dar explicações à sociedade ou, pelo menos, a seu elei-torado. Essa permissividade certamente não contribui para fortalecer os partidos e, por conseqüência, serve para fragilizar a democracia já que, sem partidos fortes e representativos, o sistema democrático tende a perder terreno. Ressalto que não se trata de impor uma fidelidade partidária rígida, assegurada por leis draconianas, inclusive porque isso feriria a liberdade de organização partidária. Além disso, nossa experiência na construção do PT ensina que é possível se obter um alto grau de fidelidade partidária, independentemente das leis, desde que se pratique a demo-cracia interna no partido. Mas, tal como está hoje, a legislação favorece o indivi-dualismo e a corrupção, em detrimento da construção de projetos que contem com o apoio consciente e consentido de frações da sociedade.

A inexistência de listas faz com que as naturais disputas internas nos parti-dos, entre tendências e personalidades, se transfiram para a sociedade, o que fragiliza os partidos. Isso reduz a força do apelo programático e despolitiza as disputas, reduzindo-as a brigas entre caciques ou

entre grupos. A despolitização não contri-bui em nada para a educação política do povo. As disputas proporcionais se trans-formam numa balbúrdia em que o que menos conta são os programas defendidos pelos candidatos. As vitórias são conquis-tadas na base do poder econômico ou, na melhor das hipóteses, pela articulação das corporações e, só raramente, pelo chama-do voto de opinião.

É correto considerar que as coliga-ções são próprias dos sistemas democráti-cos. Mas também é correto considerar que as coligações proporcionais mereceriam uma normatização mais rígida. Se no passado era aceitável que algumas corren-tes políticas perseguidas pela ditadura se abrigassem sob o guarda chuva do MDB, hoje, quando todas podem se apresen-tar livremente à opinião pública, melhor seria que cada uma se mostrasse com seu próprio programa. Isso contribuiria para a politização da sociedade e até para a mon-tagem equânime de possíveis governos de coalizão. Já que, na inexistência de coli-gações proporcionais, seria possível aferir com precisão a força real de cada partido. Além disso, um dos efeitos de tirar o guar-da-chuva de certos partidos seria permi-tir-lhes se desenvolver sem a bengala dos mais fortes. Andar sem bengalas fortalece os músculos. O PT cresceu sem usar guar-da-chuva nem bengala, fazendo alianças parcimoniosas, quase sempre mostrando sua própria cara ao eleitorado. Acho que nossa experiência poderia ser tomada em consideração.

Nenhum democrata pode ser um entusiasta de cláusulas de barreira. Mas mesmo as democracias mais sólidas esta-belecem regras de representatividade para que os partidos consigam assentos em seus parlamentos. A Constituição alemã, por

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ENSAIO

exemplo, contém esse tipo de dispositivo e o Partido Verde alemão já esteve exclu-ído do Parlamento por não ter alcançado um número mínimo de votos. Quando os verdes se viram excluídos, ninguém acusou o sistema alemão de ser ditatorial. Tampouco o PV alemão foi para os can-tos do Parlamento choramingar por um jeitinho. Pelo contrário, foi para a socieda-de debater suas propostas, exercitar seus músculos. Hoje voltou ao Parlamento e participa do governo em aliança com a social-democracia.

É verdade que a lei não deve prejudicar partidos que, mesmo pequenos, tenham programas consistentes, história e um certo grau de inserção na sociedade. Tampouco é correto que a lei seja objeto permanente de burla, abrindo uma avenida para a constituição de siglas cartoriais, de aluguel, que quase sempre servem a interesses pouco confessáveis.

No Brasil, a representação do povo na Câmara dos Deputados padece de severas deformações. Neste capítulo, a Constituição de 1988 foi um retrocesso. Antes dela, a legislação eleitoral estava mais próxima de assegurar o princípio democrático de que a cada eleitor deve corresponder um voto. Quando estabeleceu que a cada unidade da federação cabia eleger no mínimo oito deputados federais e no máximo setenta, a Constituição de 1988 provocou uma enorme deformação, através da qual discrimina quem mora no Centro-Sul, particularmente em São Paulo, e assegura uma sobre-representação, particularmente para os Estados do Norte e do Centro-Oeste.

A título de ilustração, temos um exemplo extremo: em Roraima, nas últimas eleições, tinham direito a voto 197.346 pessoas. No Estado de São Paulo,

nas mesmas eleições, 26.425.954 pessoas tinham direito a voto. Isto significa que o quociente eleitoral em Roraima é 197.346 dividido por 8, que é igual a 24.668. Ou seja, um deputado federal em Roraima representa 24.668 eleitores. Já o quociente eleitoral no estado de São Paulo é obtido pela divisão de 26.425.954 por 70, que é igual a 377.513. Isto que significa que um deputado federal por São Paulo representa 377.513 eleitores. A divisão do quociente eleitoral de São Paulo pelo quociente de Roraima mostra que o peso do eleitor de Roraima é 15 vezes maior que o peso do eleitor de São Paulo na composição da Câmara dos Deputados.

Esperamos que ninguém veja neste exercício algum tipo de bairrismo. Quando falamos de eleitores de São Paulo, estamos falando com igual respeito para com todos os que moram em São Paulo e exercem seu direito de voto naquele estado. Quando usamos Roraima como exemplo não nos move nenhuma má vontade para com os habitantes daquela unidade da federação. Utilizamos o exemplo apenas para ilustrar um caso evidente de distorção que, seguramente, não é da responsabilidade dos eleitores de Roraima.

Aos que porventura alegassem que esta distorção serve para dar equilíbrio político à nossa federação economicamente desequilibrada, eu lembraria que o equilíbrio político da federação é dado pelo Senado, onde a representação de cada unidade federada é igual. Cada uma tem três senadores e o Senado funciona como Casa revisora, por lá tramitam todas as matérias que tramitam na Câmara, o que também me parece questionável, mas este assunto não está em pauta.

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O quadro a seguir mostra como é a representação atual do povo, distribuído pelos estados, na Câmara dos Deputados, e como seria se fosse aplicado o princípio democrático de que a cada eleitor deve corresponder um voto:

UF ELEITORES DEPS_atual %/BR DEPS_IDEAL

AC 371.764 8 0,32% 2

AL 1.648.391 9 1,40% 7

AM 1.578.389 8 1,34% 7

AP 310.912 8 0,26% 1

BA 8.593.106 39 7,30% 37

CE 4.928.660 22 4,19% 21

DF 1.530.451 8 1,30% 7

ES 2.166.648 10 1,84% 9

GO 3.498.544 17 2,97% 15

MA 3.517.123 18 2,99% 15

MG 12.963.562 53 11,01% 56

MS 1.441.607 8 1,22% 6

MT 1.770.653 8 1,50% 8

PA 3.758.711 17 3,19% 16

PB 2.361.184 12 2,01% 10

PE 5.510.895 25 4,68% 24

PI 1.876.289 10 1,59% 8

PR 6.684.573 30 5,68% 29

RJ 10.432.531 46 8,86% 45

RN 1.960.717 8 1,67% 9

RO 917.657 8 0,78% 4

RR 197.346 8 0,17% 1

RS 7.412.691 31 6,30% 32

SC 3.879.940 16 3,30% 17

SE 1.183.607 8 1,01% 5

SP 26.425.954 70 22,45% 115

TO 801.184 8 0,68% 3

TOTAL 117.723.089 513 509

ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA

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ENSAIO

Naturalmente a mediação está na essência da política. Por isso, não seria surpresa se numa negociação sobre esta matéria surgissem propostas no sentido de não se aplicar rigidamente o princípio de que a cada eleitor deve corresponder um voto, mas visando a, pelo menos, reduzir as deformações atualmente existentes.

Há ainda quem discuta a questão do sistema de governo. Existem partidos que são programaticamente parlamentaristas. Nós somos presidencialistas e conside-ramos que esta é uma cláusula pétrea da Constituição, consagrada em dois plebisci-tos pela vontade expressa da esmagadora maioria da população. Consideramos, por-tanto, que não há espaço para discussão desta matéria. Recusamos também a idéia do voto distrital, sobretudo a idéia do voto distrital puro, porque esta é uma forma antidemocrática que exclui as minorias. Teoricamente, neste sistema, uma minoria expressiva pode ser completamente afas-tada do parlamento mesmo que conquiste 49,9% dos votos em todos os distritos. Na Inglaterra, nas eleições de 1979, o Partido Conservador obteve 43,9% dos votos, com isto conquistou 53,4% das cadeiras do par-lamento. Os trabalhistas, com 36,9% dos votos, ficaram com 42,2% das cadeiras; já o Partido Liberal, tendo alcançado 13,8% dos votos obteve apenas 1,7% das cadeiras do parlamento. Esta é uma evidente dis-torção. E o sistema distrital misto apenas atenua esta deformação evidente.

Finalmente, vale lembrar episódio recente, quando dois tribunais superiores decidiram baixar regras mais rígidas sobre a composição das câmaras municipais. Inegavelmente, as decisões adotadas pelo STF e pelo TSE têm um cunho moralizador. No entanto, revelam uma surpreendente vocação legiferante das duas cortes, o que

foi confirmado também pela decisão de verticalizar as alianças eleitorais, tomada pelo TSE durante a campanha eleitoral de 2002. Possivelmente, a decisão de verti-calizar tem seus méritos, mas foi tomada no lugar errado. Temos esperança de que a Câmara dos Deputados aprove uma PEC que está tramitando nas comissões com o objetivo de estabelecer regras precisas sobre o número de vereadores de cada município e que, nesse movimento, dete-nha a vocação legiferante de certos tribu-nais, mas incorpore as tendências morali-zantes reveladas pelas cortes. O episódio serve também para lembrar ao Legislativo o dever da celeridade. É inegável que o Legislativo dormiu sobre esta matéria. Tivesse sido mais ágil, os tribunais não teriam tido espaço para legislar.

Também caberia regular de forma mais precisa a questão da mídia, tanto no que diz respeito à distribuição dos espa-ços entre as diferentes correntes políticas, como no que diz respeito à propriedade de meios de comunicação que, freqüente-mente, são utilizados de maneira arbitrária por oligarquias locais.

II – Uma reforma amplaUma reforma política é assunto que

concerne mais a filósofos e escritores como Platão, Aristóteles e Thomas Morus do que a nós, militantes da política. De forma alguma queremos menosprezar a contri-buição desses autores; todos eles deixaram grandes contribuições. Platão não somente foi o principal responsável pela preserva-ção da memória de Sócrates, precursor de toda a filosofia ocidental e que não escre-via, como foi um grande pensador em todos os campos em que atuou, inclusive na teoria política. Na prática política, que é espinhosa, aceitou ser assessor do tirano de Siracusa e não se deu bem.

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ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA

Aristóteles pode ter deixado um lega-do de atraso para seus discípulos em maté-ria de ciências naturais. Seus sucessores são culpados de transformar os ensinamen-tos do mestre em dogmas tão rígidos que, ainda na Renascença, serviram para levar Galileu Galilei a renegar, para se subtrair à fogueira da Inquisição, sua correta compre-ensão de um sistema solar em que a Terra gira em torno do Sol. Giordano Bruno não teve a mesma sorte: por razões semelhan-tes ardeu nas labaredas inquisitoriais. Mas, em ciências humanas, Aristóteles ainda hoje é referência.

Thomas Morus escreveu a Utopia, uma cidade ficcional perfeitamente justa. Morreu decapitado na torre de Londres. Mas seu sacrifício e seus escritos sempre representarão uma tentativa de contribuir para melhorar o mundo.

Fizemos esta divagação para mos-trar que considero justos os esforços teóri-cos para compreender e para transformar a sociedade, melhorando-a. Mas chegamos a um momento da vida em que damos preferência a objetivos menos ambiciosos, mais exeqüíveis. Por isso, à luz da corre-lação de forças presente, estamos lutando para colocar em pauta uma proposta de reforma política pouco ambiciosa, mas que melhoraria substancialmente nosso sistema, aprofundando seu caráter democrático e conferindo-lhe maior transparência.

III – A reforma possívelAno passado, o deputado João Paulo

Cunha(PT-SP), Presidente da Câmara dos Deputados, criou uma Comissão Especial destinada a produzir uma proposta de reforma política. Presidida pelo deputado Alexandre Cardoso (PSB-RJ) e relatada pelo deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), a tarefa desta comissão era estudar diversas

propostas de reforma política que tramitam na Casa e reuni-las num projeto capaz de congregar o maior apoio possível nas diferentes bancadas partidárias da Casa.

A tarefa foi levada a cabo. O projeto produzido não obteve a unanimidade dos membros da Comissão, mas alcançou o apoio de mais de dois terços dos deputados que a compunham, o que não é desprezível. Esse placar foi alcançado porque houve o esforço de todos para que se obtivesse um mínimo divisor comum. Tal maioria foi construída, portanto, com concessões de todos os lados.

O objetivo expresso na justificação do projeto, produzido pela Comissão em questão, é enfrentar os seguintes problemas do sistema político brasileiro:

a) a deturpação do sistema eleitoral causada pelas coligações partidárias nas eleições proporcionais;

b) a extrema personalização do voto nas eleições proporcionais, da qual resulta o enfraquecimento das agre-miações partidárias;

c) os crescentes custos das campanhas eleitorais, que tornam o seu financia-mento dependente do poder econô-mico;

d) a excessiva fragmentação do quadro partidário;

e) as intensas migrações entre legendas, cujas bancadas no Legislativo osci-lam substancialmente ao longo das legislaturas.

Para fazer face à deturpação pro-vocada pelas coligações proporcionais oportunistas, episódicas e desprovidas de lastro programático, que contribuem para uma permanente instabilidade do quadro político, a maioria da Comissão propõe

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ENSAIO

a proibição das coligações proporcionais. Mas adota a idéia de permitir a criação de federações partidárias. Com isso, o projeto mostra que quer preservar os pequenos partidos que têm história e programa, desde que eles aceitem fazer parte de uma federação permanente.

Ou, na expressão da justificação assi-nada pelo deputado Alexandre Cardoso: “Com o fim das coligações, a fórmula das federações, sobre a qual dispõe o projeto, permitirá aos pequenos partidos contornar o obstáculo do quociente eleitoral, desde que haja o compromisso, legalmente esta-belecido, de estabilidade da aliança pelo período mínimo de três anos, pois funcio-narão eles como um só partido.” Assim, o legislador mostra-se disposto a criar um quadro mais lógico para coligações parti-dárias, ao mesmo tempo em que cria as condições para atenuar as exigências da cláusula de barreira prevista para entrar em vigor em 2006, desde que os partidos se disponham a trabalhar por alianças mais estáveis no seio de uma federação, o que garantiria ao eleitor a compreensão do sentido programático de seu voto. Já que as federações seriam entre partidos que têm objetivos programáticos que se asse-melham e estariam dispostos a fazer alian-ças duráveis, o que seria uma garantia de estabilidade política e, por conseqüência, administrativa.

Com o objetivo de fortalecer as ins-tituições político-partidárias e para colocar um freio ao individualismo exacerbado das campanhas proporcionais, a Comissão resolveu propor a adoção do voto em lista fechada pré-ordenada pelos partidos. Desta forma, o eleitor votará no partido e não mais em indivíduos. É assim que fun-ciona em quase todas as democracias do planeta.

Dada nossa cultura política, é de se esperar uma forte reação a esta proposta que tem vários méritos. Alguns alegarão inconstitucionalidade da iniciativa porque a Constituição assegura o voto direto e o voto em lista seria indireto. Essa alegação procura ignorar que o voto de legenda, há muito admitido no Brasil, é uma espécie de voto em lista, e sua constitucionalidade nunca foi questionada. Por outro lado, a Constituição reconhece a utilidade dos partidos e seu papel de organizador da vontade coletiva. Não poderia ser de outra forma, a democracia direta dos gregos é inexeqüível nos dias de hoje, pela simples razão de que vivemos numa sociedade de massas, o que requer a existência de partidos fortes e bem organizados, capazes de organizar a expressão da vontade de multidões.

Outros alegarão que a lista fechada atribui muito poder a partidos que podem ser dominados por oligarquias ou por caciques que, por definição, são imperme-áveis aos valores da democracia. Há que se reconhecer que esta objeção procede. Mas viver é muito perigoso, ensinava Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo. Registrando que quem fala em risco e perigo, fala também em oportunidade, podemos supor que, com as listas, os partidos tradicionais terão a oportunidade de adotar práticas mais democráticas de administração interna. Já se disse aqui que o PT, independentemente de leis, conse-guiu se construir praticando a democracia, e dentro de regras precisas. Nada impede, portanto, que os partidos tradicionais venham a adotar práticas democráticas, se mais não fosse, porque numa sociedade que respira democracia, a insistência em práticas autoritárias certamente levaria ao esvaziamento dessas siglas. Quem primei-

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ARLINDO CHINAGLIA / ATHOS PEREIRA

ro perceberia isso seriam os próprios caci-ques tradicionais.

Portanto, a adoção da lista fechada poderia criar a oportunidade dos partidos tradicionais adotarem práticas típicas do PT, como a realização de debates exaus-tivos em todos os níveis; realizar prévias envolvendo o conjunto dos filiados de um determinado estado, ou de um determi-nado município, para escolher quem será o candidato a governador ou a prefeito; escolher a direção nacional do partido em eleições envolvendo o conjunto dos filiados em todo o país, ou até decidir sobre questões políticas relevantes, como fez o PT, quando, através de plebisci-to nacional decidiu, em 1985, que não compareceria ao Colégio Eleitoral que elegeu o Presidente Tancredo Neves e, em 1993, também em plebiscito nacional, a militância se pronunciou pelo sistema pre-sidencialista de governo, contra a maioria do diretório nacional do partido, que era parlamentarista. Desnecessário dizer que, em todos esses episódios, quem ganhou levou. Todos se submeteram à vontade da maioria.

Desnecessário dizer que, se apesar dos argumentos acima alinhavados, não for possível realizar um acordo, nada impede que se busque mediações em torno de uma proposta de lista através da qual se elegeria somente a metade dos par-lamentares, enquanto a outra metade seria eleita de forma proporcional. Este é um método que é utilizado em alguns países e que tem a virtude de permitir que o elei-tor corrija possíveis erros praticados pelas direções partidárias na formatação das lis-tas. Ademais, nada impede que se aprove leis obrigando os partidos a funcionarem de forma democrática.

A proposta da Comissão Especial prevê a adoção do financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais. Tal proposta visa estabelecer igualdade de condições entre os partidos envolvidos na disputa, facilitar a fiscalização das presta-ções de conta por parte da Justiça Eleitoral, baratear as campanhas e coibir a corrup-ção, a utilização da máquina do Estado e o abuso do poder econômico, sobretudo por parte dos candidatos preferidos pelos gran-des grupos empresariais, naturalmente os mais propensos a esta prática condenável.

Muitos, baseando-se na má imagem dos políticos, podem objetar que é absur-da a idéia do financiamento público de campanha. Já que os políticos desfrutam de tão grande má fama por que caberia ao Estado financiar suas campanhas? A resposta é simples. O Estado, com a ado-ção da lista fechada, não financiaria as campanhas individuais dos políticos, mas a campanha dos partidos, cuja fiscalização seria relativamente simples. Por outro lado, é ilusório pensar que atualmente muitas das campanhas não são financiadas, de maneira desregrada, pelo Estado. Todos deviam saber que muito do dinheiro priva-do gasto em campanhas eleitorais depois é ressarcido, via corrupção, aos doadores originais. Desta forma, através do financia-mento público, teríamos campanhas mais curtas, mais baratas e mais educativas, conduzidas pelas instituições partidárias e sob um controle mais rígido da Justiça Eleitoral. Portanto a adoção da lista par-tidária, acompanhada do financiamento público, seria um poderoso fator de politi-zação do debate eleitoral e de moraliza-ção das disputas. Contribuiria muito para o avanço da democracia.

A proposta de reforma elaborada pela Comissão Especial preserva a cota

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destinada às mulheres nas listas partidá-rias. E vai adiante quando destina trinta por cento dos recursos do fundo partidário ao estímulo e crescimento da participa-ção política das mulheres e reserva, pelo menos, vinte por cento do horário gratuito nos meios de comunicação destinado a cada partido à difusão da propaganda de candidatas do sexo feminino. Com isso procura-se ampliar no Brasil a aplicação de experiências bem sucedidas que mos-tram que, com estímulo, cresce a partici-pação das mulheres na vida política, o que quase sempre é um fator de equilíbrio e de paz.

No tocante às pesquisas eleitorais, o projeto da Comissão procura estabelecer regras mais precisas com o objetivo de coibir manipulações que freqüentemente servem a objetivos obscuros. Com essas novas regras, os institutos de pesquisas terão suas responsabilidades aumentadas e terão reduzidas suas possibilidades de intervir indevidamente nos processos elei-torais, como lamentavelmente é a prática de alguns deles, pelo menos nas regiões mais afastadas do país.

Como subentendido acima, a pro-posta de reforma política elaborada pela Comissão Especial pode não ser perfeita, nem é essa sua pretensão. Ela é, no entanto, a proposta possível para esse momento da vida nacional. Sua aprovação pela Câmara dos Deputados e, posteriormente, pelo Senado Federal, representaria um grande passo no aperfeiçoamento de nosso siste-ma democrático e seria motivo de orgulho para os parlamentares da atual legislatura, porque serviria aos interesses da maioria do povo e consolidaria a democracia em nosso país.

ENSAIO

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OlharExterno

• Robert A. Pastor

Salvador Dali

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A Segunda Década da América do Norte**

UM PRIMEIRO RASCUNHOO Acordo de Livre Comércio da

América do Norte (em inglês North American Free Trade Agreement, NAFTA) entrou em vigor em primeiro de janeiro de 1994, em meio a temores de perda de empregos nos Estados Unidos e de gritos revolucionários no sul do México. No entanto, em uma só década, as três nações da América do Norte construíram um mer-cado maior do que o das quinze nações da União Européia, e quase tão integrado. O

comércio e o investimento chegaram perto de triplicar; Estados Unidos, México e Canadá experimentaram um grau sem pre-cedente de integração social e econômica. Pela primeira vez “América do Norte” é mais do que uma simples expressão geo-gráfica.

Em 2000, as vitórias eleitorais de George W. Bush, Vicente Fox e Jean Chrétien aumentaram ainda mais a espe-rança de que a promessa de uma parceria trilateral poderia ser cumprida. No entan-

* ROBERT A. PASTOR

* Professor da Universidade da Geórgia, em Atlanta / USA. Texto publicado na Foreign Affairs, Fev/2004.Tradução: Sérgio Bath

OLHAR EXTERNO

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to, quatro anos depois, houve uma deterio-ração nas relações entre os três governos. Nenhum líder se refere à “América do Norte” do modo como os europeus falam do seu continente. Com efeito, nos Estados Unidos voltaram a surgir críticas e acusa-ções à NAFTA nos debates entre os can-didatos presidenciais. Passados dez anos, chegou a hora de avaliar o que a NAFTA realizou e onde ela falhou, para determi-nar o caminho que deve seguir daqui em diante. Quais devem ser as metas para a segunda década da América do Norte, e o que os líderes norte-americanos precisam fazer para atingi-las?

Na verdade, a NAFTA foi apenas o primeiro rascunho de uma constituição econômica para a América do Norte: um documento deliberadamente sucinto, destinado apenas a desmantelar barreiras ao comércio e ao investimento. Os seus arquitetos não fizeram planos, nem para o seu êxito, nem para as crises que confron-tariam. Embora a NAFTA tenha fornecido combustível para o trem da integração continental, não cedeu maquinistas para guiá-lo. O resultado é que dois contratem-pos, a crise do peso mexicano de 1995 e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, ameaçaram descarrilar essa experi-ência de integração.

A crise do peso foi um golpe à eco-nomia mexicana, assim como à confiança dos americanos e canadenses na integra-ção. Os autores da NAFTA haviam presu-mido que, graças à mágica do mercado, a eliminação das restrições ao movimento de capital e mercadorias conduziria a uma grande prosperidade. No acordo não havia nenhuma cláusula criando um mecanismo para prever falhas do mercado ou para res-ponder a elas. Enquanto a União Européia criou um excesso de instituições onipre-

sentes, a América do Norte cometeu o erro oposto: quase não as criou.

O segundo choque recebido pelo ente político norte-americano aconteceu em 11 de setembro de 2001. Se houves-se uma parceria genuína, os líderes dos Estados Unidos, do México e do Canadá se teriam reunido em Washington, nos dias que sucederam a tragédia, para declarar que o ataque tinha atingido toda a América do Norte, e afirmar que responderiam em uníssono. Em vez disso, dada à ausência de instituições comuns, os governos rever-teram a seus velhos hábitos. Agindo de forma unilateral, Washington virtualmente fechou suas fronteiras; os líderes mexicano e canadense responderam de forma ambi-valente, temendo a forma como poderia reagir a superpotência zangada.

Esses dois eventos foram oportunida-des perdidas, e a criação do Departamento de Segurança Interna nos Estados Unidos leva a América de Norte outra vez a uma encruzilhada. Uma posição (a mais pro-vável) consistiria em reforçar o controle fronteiriço e impedir a movimentação, mesmo de amigos. O comércio e o inves-timento declinariam, as tensões subiriam, e a miríade de vantagens da integração começariam a ceder terreno.

Em um rumo alternativo, contu-do, os temores na área de segurança serviriam como catalizadores para uma integração mais profunda, o que exigiria novas estruturas para garantir a segurança recíproca, promover o comércio e trazer o México para mais perto das economias de primeiro mundo dos seus vizinhos. Só pode haver progresso com uma liderança verdadeira, novas instituições cooperati-vas e uma redefinição de segurança que coloque os Estados Unidos, o México e o Canadá dentro de um perímetro continen-tal, trabalhando juntos como parceiros.

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OLHAR EXTERNO

AVALIAÇÃO DA NAFTADesde o princípio, a NAFTA foi sub-

metida a críticas candentes, baseadas mui-tas vezes em previsões bizarras. Nos Estados Unidos, o candidato presidencial Ross Perot preveniu a nação, mencionando um “ruído gigantesco de sucção”, provocado pelos empregos migrando dos Estados Unidos para o México. Enquanto isso, mexicanos e cana-denses temeram que as suas economias fossem apropriadas por empresas ameri-canas. Os opositores previram que o livre comércio iria erodir os padrões ambien-tais e trabalhistas dos Estados Unidos e do Canadá.

Dessas pro-fecias, poucas se transformaram em realidade. De fato, nos Estados Unidos, os anos 1990 teste-munharam a maior expansão de empre-go da sua história. Embora tanto o México como o Canadá tenham atraído um volume considerável de novos investimentos americanos (pois a NAFTA lhes dava acesso privilegiado ao mercado dos EUA), a porcentagem de empresas de propriedade americana existentes nesses países não aumentou. Na verdade, os investimentos canadenses nos Estados Unidos aumentaram ainda mais depressa do que os investimentos america-nos no Canadá.

No México, a disparidade de renda se ampliou, mas isso aconteceu porque as

regiões que não comerciam com os Estados Unidos passaram a crescer muito menos do que as outras: na verdade o problema não era a NAFTA, mas a sua ausência. No México, os padrões ambientais melhora-ram mais depressa do que os do Canadá e dos Estados Unidos, e as eleições mexi-canas de 2000 foram saudadas universal-mente como livres e justas. Por outro lado, embora o México e o Canadá se tenham

tornado mais depen-dentes do mercado americano, como os opositores haviam prevenido, o inverso também ocorreu: o comércio dos Estados Unidos com os seus vizinhos cresceu cerca de duas vezes mais depressa do que o comércio com o resto do mundo. De fato, em 2000, os Estados Unidos importaram 36 por cento da sua energia dos parceiros mais importantes, o Canadá e o México, e as exportações para esses dois vizinhos foram 350 por cento

maiores do que as exportações para o Japão e a China, e 75 por cento maio-res do que as exportações para a União Européia.

Tanta coisa tem sido atribuída à NAFTA que é fácil esquecer que ela não passava de um simples acordo para des-mantelar a maior parte das restrições ao comércio e ao investimento, ao longo de dez anos. Com algumas notáveis exceções (o tráfego de caminhões, madeiras e açú-car), onde os interesses econômicos ameri-canos bloquearam um acordo, em grande

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ROBERT A. PASTOR

parte a NAFTA teve êxito no que pretendeu fazer: barreiras foram eliminadas, houve um grande crescimento do comércio e dos investimentos.

Nos anos 1990, as exportações ame-ricanas para o México aumentaram quatro vezes, passando de 28 bilhões de dólares para 111 bilhões, e as exportações para o Canadá mais do que dobraram, aumentan-do de 84 bilhões de dólares para 179. Os fluxos anuais de investimento direto dos Estados Unidos para o México subiram de 1,3 bilhões de dólares, em 1992, para 15 bilhões em 2001. O investimento ameri-cano no Canadá aumentou de 2 bilhões de dólares, em 1994, para 16 bilhões em 2000, enquanto o fluxo de investimento canadense para os Estados Unidos cres-ceu, no mesmo período, de 4,6 para 27 bilhões de dólares.

As viagens e a migração entre os três países também aumentaram dramati-camente. Só em 2000, as duas fronteiras foram cruzadas 500 milhões de vezes. Naturalmente, o impacto mais profundo foi o das pessoas que cruzaram frontei-ras e permaneceram no país visitado. O censo de 2000 estimava existirem, nos Estados Unidos, 22 milhões de indivíduos de origem mexicana, dos quais cerca de 5 milhões eram trabalhadores não docu-mentados. Quase dois terços deles chega-ram aos Estados Unidos nas duas últimas décadas.

A América do Norte é maior do que a Europa em população e território, e o seu produto bruto é de 11,4 trilhões de dólares, quantia que supera a da União Européia (e continuará superando, mesmo depois que a U.E. se expandir para 25 nações, em maio de 2004): representa um terço da renda mundial. Consideradas como porcentagem das exportações totais

do mundo, as exportações intra-regionais cresceram de cerca de 30 por cento, em 1982, para 56 por cento em 2001 (com-parado com 61 por cento para a União Européia). Como acontece na indústria automobilística, que representa quase 40 por cento do comércio norte-americano, boa parte desse intercâmbio é extra-indús-tria ou extrafirma. Tanto as indústrias como as empresas se tornaram verdadeiramente norte-americanas.

No entanto, embora a NAFTA tenha conseguido aumentar o comércio e o investimento, deixou de enfrentar alguns dos principais desafios do processo de integração. Falha que não só prejudicou os três países interessados como abalou seriamente o apoio ao Acordo, impedindo assim que fossem aproveitadas todas as oportunidades para o seu progresso ulte-rior.

Em primeiro lugar, a NAFTA não se voltou para o hiato de desenvolvimen-to entre o México e seus dois vizinhos setentrionais, diferença que na verdade aumentou. Em segundo lugar, a NAFTA não planejou o próprio sucesso: infra-estrutura e estradas inadequadas não con-seguem suportar o aumento do tráfego, e os atrasos resultantes elevaram o custo das transações no comércio regional mais do que a redução causada pelas tarifas eliminadas. Em terceiro lugar, a NAFTA não se preocupou com a imigração, e nos anos noventa o número de trabalhadores não documentados nos Estados Unidos aumentou de 3 para 9 milhões (55 por cento deles, mexicanos).

Em quarto lugar, as questões relativas à energia não foram abordadas, falha dra-matizada pelo “apagão” catastrófico ocor-rido no Canadá e na região norte-ocidental dos Estados Unidos, em agosto passado. Em

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OLHAR EXTERNO

quinto lugar, não houve qualquer tentativa de coordenar a política macro-econômica, deixando os três governos sem um instru-mento para prevenir desastres como a crise do peso mexicano. Finalmente, a NAFTA nada fez no campo da segurança, e por isso as conseqüências do 11 de setembro ameaçam agora prejudicar a integração norte-americana.

LIÇÕES ANTIGAS DA NOVA EUROPA

O vínculo que une essas falhas é a falta de uma autêntica cooperação trila-teral. Em vez de criar uma parceria con-tinental, o processo de integração assumiu quase sempre a forma de um duplo bila-teralismo: EUA-México e EUA-Canadá. A recente negociação de acordos sobre “fronteiras inteligentes”, depois do 11 de setembro, é um bom exemplo: em vez de criar um padrão uniforme norte-ame-ricano, o governo de Washington assinou com os seus vizinhos tratados separados, embora quase idênticos. Em grande parte, a não adoção de instituições multilaterais tem sido deliberada. Muitas vezes os canadenses pensam que sozinhos podem obter melhor resultado ao negociar com os Estados Unidos (nada prova essa hipótese). E como atualmente Washington não está com disposição multilateral, o México tem sido o advogado solitário da cooperação trilateral. No entanto, uma integração bem sucedida exige uma nova forma de gover-nança na América do Norte, baseada em regras e reciprocidade. A experiência euro-péia com integração tem muito a ensinar aos formuladores de políticas norte-ame-ricanos, desde que sejam compreendidas as claras diferenças existentes entre os respectivos modelos.

A unidade européia foi o fruto de duas guerras cataclísmicas, e os seus mem-

bros mais importantes são comparáveis em termos de população e poder. O PNB per capita da nação mais rica da Europa (Alemanha) é aproximadamente o dobro da mais pobre (Grécia), enquanto o PNB per capita dos Estados Unidos é quase seis vezes o do México. O modelo norte-ame-ricano consta de um único Estado domi-nante, e foi sempre movido pelo mercado; é mais resistente à burocracia, mas mais respeitoso da autonomia nacional do que acontece na Europa. São elementos que irão sempre diferenciar os dois casos.

No entanto, a despeito dessas dife-renças, cinqüenta anos de integração euro-péia são suficientes para ensinar aos norte-americanos que eles precisam enfrentar as falhas e externalidades de um mercado em integração, sejam elas crises monetárias, degradação ambiental, ameaças terroris-tas, impedimentos infra-estruturais ou hia-tos de desenvolvimento.

No princípio dos governos Fox e Bush, houve um momento em que os líde-res da América do Norte pareciam aceitar esse ponto. Em fevereiro de 2001, Fox e Bush endossaram em conjunto a Proposta de Guanajuato, que dizia: “Depois de consultas com nossos parceiros canaden-ses, faremos um esforço para consolidar uma comunidade econômica norte-ame-ricana cujos benefícios se estendam às áreas menos desenvolvidas da região e aos grupos sociais mais vulneráveis dos nossos países”. Infelizmente, esse senti-mento nunca chegou a ser traduzido em termos políticos (com exceção dos qua-renta milhões de dólares da Parceria para a Prosperidade, um programa simbólico, mas substantivamente trivial).

Os três governos compartilham a culpa por esse insucesso. O principal obje-tivo de Bush era abrir o setor do petróleo

167

ROBERT A. PASTOR

no México para investidores americanos, enquanto Chretien não demonstrou qual-quer interesse em cooperar com os mexi-canos. De seu lado, Fox propôs uma agen-da excessivamente ambiciosa, com ênfase exagerada em uma reforma radical da política de imigração dos Estados Unidos. Sua proposta preconizava o aumento do número de trabalhadores temporários legais, e a legalização de milhões de não documentados.

A resposta inicial de Bush foi polida, mas ele não tardou a per-ceber que não podia aceitar essa proposta (consta que, em parte, porque seu conselheiro Karl Rove lembrou-o de que de cada três mexi-canos naturalizados, dois votavam no Partido Democrático). A ques-tão da imigração ilegal continua sem solução. Em última análise, ela é mais um sintoma do que, uma causa: a única forma de reduzir a imi-gração ilegal é fazer com que a economia do México cresça mais depressa do que a americana.

CUIDADO COM O HIATOPara a segunda década norte-ameri-

cana não há maior prioridade do que redu-zir o divisor econômico existente entre o México e o resto da NAFTA. Simplesmente não pode haver uma parceria verdadeira quando os habitantes de um país ganham, em média, um sexto do que ganham os indivíduos do outro lado da fronteira.

O subdesenvolvimento mexicano é uma ameaça à sua estabilidade, a seus vizinhos e ao futuro da integração.

Neste particular, a experiência da União Européia também é instrutiva. Entre 1986 e 1999, o PNB per capita dos qua-tro países mais pobres da União Européia cresceu de 65 para 78 por cento da média de todos os Estados-Membros, graças ao livre comércio, ao investimento estrangei-

ro e a uma assistência generosa (0,45 por cento do PNB da União, anu-almente). Boas políticas por parte dos recipientes dessa ajuda, e o fato de que a assistência esta-va condicionada a essas boas políticas, fizeram também uma diferença importante.

C l a r a m e n t e , nem todos os recursos assistenciais da União Européia foram bem gastos, e a América do Norte pode aprender com essas falhas, bem como com os suces-sos. Assim, a burocra-cia excessiva deve ser evitada, e a assistência

deve concentrar-se em setores tais como infra-estrutura e educação pós-secundá-ria, que têm um forte efeito multiplicador sobre o resto da economia. Mas há duas lições que são básicas: o crescimento em um país beneficia os outros, e a imposição de limites à volatilidade dos mais pobres é uma ajuda prestada a todos.

O México precisa de uma nova estra-tégia de desenvolvimento, financiada, em parte, pelos seus parceiros norte-america-

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OLHAR EXTERNO

nos. Para reduzir o hiato de desenvolvi-mento com os Estados Unidos em 20 por cento, nos próximos dez anos, o México precisará sustentar uma taxa anual de crescimento de 6 por cento. Mesmo com essa taxa, superar completamente o hiato levará décadas, mas uma estratégia susten-tável que resulte em pequenas reduções anuais terá importante efeito econômico e psicológico. E esse crescimento vai exigir uma nova estratégia, baseada em investi-mentos públicos significativos e intensivos de trabalho.

Embora em conjunto o México se tenha beneficiado com a NAFTA, o livre comércio e o maior investimento estran-geiro distorceram o desenvolvimento e exacerbaram as d e s i g u a l d a -des existentes dentro do país. Noventa por cento dos novos investimentos se concentraram em quatro esta-dos, três deles no norte. Esses estados fronteiri-ços têm crescido dez vezes mais depressa do que os do sul, atuando como um magneto para migrantes dessas regiões pobres.

A região fronteiriça pareceria ter uma desvantagem na atração dos investidores estrangeiros: o custo do trabalho é três vezes maior do que no sul, a reposição anual da força de trabalho é de cem por cento, a poluição e o congestionamento são crônicos. Mas as estradas da fronteira para o sul estão em péssimas condições, e outros aspectos da infra-estrutura são

ainda piores. O Banco Mundial estima que o México precisará gastar vinte bilhões de dólares por ano, nos próximos dez anos, para superar esse deficit na infra-estrutura.

Para corrigir tal disparidade, os três governos deveriam criar um Fundo de Investimento Norte-Americano e investir duzentos bilhões de dólares em infra-estru-tura, durante a próxima década. Washington daria 9 bilhões por ano, o Canadá 1 bilhão, mas só com a condição de que o México igualasse o montante global, elevando gradualmente a receita tributária de 11 para 16 por cento do PNB. No passado, Fox tentou,sem êxito, uma reforma fiscal, mas a oferta dos países vizinhos poderia ajudá-lo a persuadir o Congresso a acei-

tar esta e outras reformas. A contribuição dos Estados- Unidos seria menor do que a assistência européia dada aos Estados Membros mais pobres, cor-respondendo à metade da ajuda do gover-

no Bush ao Iraque.

Por outro lado, o retorno do inves-timento no México beneficiaria a eco-nomia dos Estrados Unidos mais do que qualquer outro programa assistencial da história. Não seria necessário criar uma nova agência: O Banco Mundial ou o Banco Interamericano poderiam adminis-trar os fundos. Em última análise, melhores estradas e melhor infra-estrutura atrairiam investidores para o centro e o sul do país, diminuindo assim a migração e as dispa-

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ROBERT A. PASTOR

ridades de renda. As reformas tornariam também o México mais competitivo com a China.

PLANOS PARA A AMÉRICA DO NORTE

A NAFTA não tem criado uma par-ceria porque os três governos não muda-ram o modo como se relacionam entre si. O duplo bilateralismo, alimentado pelo poder dos Estados-Unidos, continua a governar e a provocar irritação. O acréscimo de uma terceira parte às dis-putas bilaterais aumenta muito a possibi-lidade de que os problemas venham a ser resolvidos por regras, não pelo poder. Essa abordagem trilateral deveria ser institucio-nalizada em uma nova Comissão Norte-Americana. Diferentemente da Comissão Européia, esparramada e intrometida, a Norte-Americana seria restrita, de natureza consultiva, composta por apenas quinze personalidades eminentes, cinco de cada país. Seu objetivo principal seria pre-parar uma agenda norte-americana a ser considerada pelos líderes nacionais em reuniões de cúpula bianuais, e monitorar a implementação dos acordos resultantes.

Deveria, também, avaliar as formas de facilitar a integração econômica, fazen-do propostas específicas sobre temas de interesse continental, tais como a harmoni-zação dos padrões ambientais e trabalhistas e a adoção de uma política sobre a com-petição. O Congresso dos Estados Unidos deveria também fundir os grupos interpar-lamentares EUA-México e EUA-Canadá em um único Grupo Interparlamentar Norte- Americano. Isso estimularia os legisladores a deixar de lançar denúncias, através das fronteiras, para começarem a negociar buscando resolver problemas comuns.

Uma terceira instituição seria uma Corte Permanente sobre Comércio e Investimento. A NAFTA criou “panels” para tratar de conflitos numa base “ad hoc”, mas tem sido cada vez mais difícil encontrar expertos que não estejam envolvidos em conflitos de interesse e, portanto, possam arbitrar disputas. Um tribunal permanente permitiria a acumulação de precedentes e fixaria as bases do direito comercial norte-americano. Impediria também a erosão dos padrões ambientais e tornaria o pro-cessamento mais transparente.

O Canadá e o México há muito organizaram o seu governo para dar priori-dade às relações bilaterais com os Estados Unidos. Só Washington está mal organizada para abordar os temas relativos à América do Norte. O Presidente Bush precisa levar em conta a medida em que os interesses internos dos Estados Unidos colidem com os dos seus vizinhos, designando, na Casa Branca, um Conselheiro para Assuntos Norte-Americanos, que trataria de forma inclusiva os temas da segurança geral, segurança nacional e os conselhos de política interna, presidindo um grupo-tarefa sobre a América do Norte, no nível do Gabinete, com a presença de todos os órgãos interessados. Nenhum presidente pode adotar uma política coerente com respeito à América do Norte sem essa reorganização maciça.

O ataque de 11 de setembro e a sub-seqüente resposta americana acentuaram um dilema básico da integração: como facilitar os fluxos legítimos de pessoas e mercadorias e, ao mesmo tempo, impedir a ação de terroristas ou contrabandis-tas. Quando Washington virtualmente fechou suas fronteiras, depois do ataque, do lado do Canadá formou-se uma fila de caminhões de quase quarenta quilômetros.

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OLHAR EXTERNO

Empresas que trabalhavam com o sistema “just-in-time” começaram a fechar suas fábricas.

A nova estratégia, exemplificada pelos acordos sobre “fronteiras inteligen-tes”, que já estava sendo discutida antes do ataque, consiste em concentrar as ins-peções no tráfego de alto risco e usar uma tecnologia mais eficiente para tratar com rapidez o trânsito de pessoas e mercado-rias de baixo risco. Esta abordagem, no entanto, é muito limitada para resolver um problema tão fundamental. Agora, a criação do Departamento de Segurança Interna, o “Department of Homeland Security”, sem querer, é outra ameaça à integração.

Superar a tensão entre segurança e intercâmbio exige uma abordagem mais corajosa à integração continental: uma união aduaneira norte-americana com tarifa externa comum, que reduziria de forma significativa as inspeções na fron-teira e eliminaria as incômodas regras sobre a origem dos produtos, destinadas a negar, às mercadorias procedentes de fora da NAFTA, o mesmo livre acesso. Os três governos precisam também repensar o perímetro continental.

Juntamente com a tarifa externa comum, deveriam criar uma Força Norte-Americana Alfandegária e de Imigração, composta por funcionários treinados em conjunto em uma única escola profis-sional, e formular procedimentos para agilizar a documentação apresentada ao cruzar as fronteiras. Ainda mais importan-te, o Departamento de Segurança Interna deveria ampliar sua missão para incluir a segurança continental, o que será melhor executado se incorporar pessoal e perspec-tivas do México e do Canadá nas etapas de planejamento e operação.

Mas os obstáculos de segurança constituem só o princípio dos proble-

mas de transporte na América do Norte. Conforme a conclusão de um relatório de membro do Parlamento canadense, de maio de 2000: “Na realidade, atravessar a fronteira tornou-se mais difícil nos últi-mos cinco anos ... Enquanto o comércio continental se expandiu enormemente, o mesmo não aconteceu com a infra-estru-tura física que permite o deslocamento dessas mercadorias.”

As barreiras burocráticas à travessia de fronteiras tornam os problemas de infra-estrutura “comparativamente menores”. Washington tem sido criticado por impor aos caminhões mexicanos seus próprios padrões de segurança, mas a verdade é ainda mais embaraçosa: há 64 diferentes conjuntos de regulamentos de segurança, 51 deles nos Estados Unidos. Uma sub-comissão da NAFTA lutou para definir um padrão uniforme, tendo concluído que “não há perspectiva” de se chegar a isso.

A Comissão Nacional da América do Norte deveria desenvolver um plano conti-nental integrado de transporte e infra-estru-tura, que inclua novas rodovias norte-ame-ricanas e corredores ferroviários de alta velocidade. Os Estados Unidos e o Canadá devem desenvolver padrões nacionais de peso, segurança e configuração dos cami-nhões, e depois negociar com o México para estabelecer um único conjunto de padrões.

Além disso, Estados Unidos e Canadá deviam começar a fundir suas políticas de imigração e de tratamento dos refugiados. Vai ser impossível incluir o México nesse processo até que o hiato de desenvol-vimento diminua. Entrementes, os três governos deveriam desenvolver um passa-porte norte-americano, disponível sucessi-vamente, cada ano, a um grupo maior de cidadãos.

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ROBERT A. PASTOR

Finalmente, os governos norte-ame-ricanos podem aprender com os esforços desenvolvidos pela União Européia para criar nos Estados-Membros centros educa-cionais e de pesquisa. Centros de estudos norte-americanos nos Estados Unidos, no Canadá e no México ajudariam cidadãos dos três países a entender os problemas e o potencial de uma América do Norte integrada, assim como a se con-siderarem norte-a m e r i c a n o s . Naturalmente, até que uma nova consciên-cia da promessa da América do Norte crie raízes, muitas dessas propostas estarão fora do alcance dos formulado-res de políticas públicas.

VELHOSARGUMENTOS, NOVAS VISÕES

Os opositores da integração muitas vezes atacam propostas como estas como se fossem ameaças à soberania nacio-nal. No entanto, o conceito de soberania não é imutável. No passado, o Canadá recorreu à soberania para manter afasta-das as empresas petrolíferas dos Estados Unidos; o México a usou para impedir o

monitoramento externo das suas eleições; os Estados Unidos, como desculpa para privilegiar os “direitos dos Estados”, em confronto com os direitos humanos. Em cada caso, a soberania foi empregada para defender políticas errôneas. Os países se beneficiaram ao mudar essas políticas, e a evidência sugere que os norte-americanos estão prontos para um novo relacionamen-

to, que torna obsoleta essa definição anti-ga de sobera-nia.

Nos últi-mos vinte anos, vários estudos demonstraram a convergên-cia de valores, sobre temas pessoais e fami-liares, assim como sobre políticas públi-cas. Os cida-dãos de cada país tendem a ter uma idéia positiva dos seus vizinhos, e o resultado é um apoio líqui-

do modesto dado à NAFTA. E há também um consenso: cada nação concorda em que as outras duas se beneficiaram mais do que elas próprias. 58% dos canadenses e 69 % dos americanos sentem uma “forte” ligação com a América do Norte. E, o que é mais surpreendente, 34% dos mexica-nos se consideram também “norte-ame-ricanos”, embora, em espanhol o termo se refira especificamente aos cidadãos dos Estados Unidos. Algumas pesquisas

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OLHAR EXTERNO

chegam a indicar que, em sua maioria, o público estaria preparado para aceitar uma “nação norte-americana”, se acreditasse que isso iria melhorar o seu padrão de vida sem ameaçar a sua cultura.

Uma pesquisa feita em outubro de 2003, realizada nos três países pela Ekos, uma firma canadense, revelou que uma clara maioria acredita que, nos próximos dez anos, será instituída uma união econô-mica norte-americana. Segundo a mesma pesquisa, uma maioria esmagadora é favo-rável a políticas mais integradas a respeito do ambiente, do transporte e da defesa, e uma maioria mais modesta é favorável a políticas comuns no concernente à energia e ao sistema bancário. Por outro lado, nos Estados Unidos e no Canadá, 75 por cento das pessoas apoiam o desenvolvimento de um perímetro norte-americano de seguran-ça; e dois terços dos mexicanos pensam da mesma forma.

Os governos dos Estados Unidos, do México e do Canadá continuam a defender zelosamente uma concepção de soberania ultrapassada, embora os cida-dãos desses países estejam prontos para aceitar uma nova abordagem. A liderança de cada país tem acentuado as diferenças existentes entre eles, e não os seus interes-ses comuns. A América do Norte precisa de líderes que possam articular e perseguir uma visão mais ampla.

A segunda década da América do Norte coloca um desafio diferente para cada governo. Em primeiro lugar, o novo Primeiro Ministro do Canadá, Paul Martin, deveria tomar a dianteira para substituir o duplo bilateralismo do passado por insti-tuições norte-americanas fundamentadas em regras. Se fizer isso, terá o apoio do México, e os Estados Unidos não tarda-rão a seguir o exemplo. De seu lado, o

México deveria demonstrar como poderia utilizar um Fundo de Investimento Norte- Americano para dobrar sua taxa de cres-cimento e começar a reduzir o hiato de desenvolvimento.

Finalmente, os Estados Unidos devem redefinir a sua liderança para o século 21, de modo a inspirar apoio em lugar de medo e ressentimento. Se Washington puder ajustar seus interesses de forma a alinhá-los com os dos vizinhos, o mundo verá os Estados Unidos de uma maneira diferente. Esses três desafios constituem uma agenda de grande importância para a América do Norte, na sua segunda década. O sucesso não só trará nova energia para o continente, mas proporcionará um modelo a ser seguido por outras regiões do mundo.

ROBERT A. PASTOR

PENSAR

• Antonio Delfim Netto

• Ariosto Holanda

O Pensador - Auguste Rodin

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No Brasil, o “mercado”, ajudado pelo FMI, estabeleceu um limite para a Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) com rela-ção ao Produto Interno Bruto (PIB). Da mesma forma que existe a constante uni-versal de Newton, a hipótese de Einstein de um limite constante para a velocidade da luz (agora contestada pelo físico portu-guês João Magueijo), e a constante de ação de Planck no mundo quântico, existiria, para o Brasil, um limite natural para a rela-ção DLSP/PIB.

Esse limite, primeiro intuído pelo “mercado” e depois “descoberto” pela tarometria dos economistas que se supõem portadores de uma “ciência dura”, seria o misterioso número 0,56. Utilizando sofisti-cados métodos econométricos para equa-ções não lineares, alguns economistas (nacionais e estrangeiros) “provaram” que 0,56 é mesmo uma espécie de

limite: quando a relação ameaça crescer além dele, todo o sistema econômico se inquieta...

Da mesma forma que as constantes universais são “super-humanas” e estabele-cem os alicerces da realidade física, o limite da relação DLSP/PIB = 0,56 constituiria o alicerce da credibilidade, no mundo, da economia brasileira. É ocioso insistir que talvez seja lícito suspeitar que o resultado encontrado foi, insuspeitadamente, intro-duzido pelas crenças dos próprios pesqui-sadores...

Mas isso é rigorosamente irrelevante! Um país profundamente endividado como o Brasil não pode simplesmente ignorar as “crenças” dos seus credores (internos e externos). Se quiser continuar funcionan-do, tem de reconhecê-las como restrição aos graus de liberdade da sua política eco-nômica.

* Deputado Federal

* ANTONIO DELFIM NETTOPENSAR

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Na Dívida Líquida Total do Setor Público estão incluídas as dívidas internas e externas dos três níveis da administração pública e as respectivas empresas estatais. No nível federal inclui-se, obviamente, a dívida do Banco Central do Brasil, da qual se excluem as reservas internacionais. Nos últimos três anos o comportamento dessa dívida foi o revelado na tabela abaixo:

(em bilhões R$)

2001 2002 2003

1. DLSP 660,9 881,1 913,1

Interna 530,1 654,3 726,7

Externa 130,8 226,8 186,4

2. PIB 1.258,4 1.576,5 1.590,0

3. DLSP/PIB 0,525 0,559 0,582 Fonte: Banco Central do Brasil.

A sociedade tem suportado um aumento permanente de carga tributária bruta revelada no gráfico abaixo, onde se registra também a DLSP/PIB. Esta vinha crescendo de forma preocupante e depois de algumas flutuações (produzidas pelo ruído eleitoral de 2002), ela parece estabilizar-se. Os números mostram o fantástico aumento da carga tributária ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso (de 26% em 1994 para 37%, em 2002).

Gráfico nº 1

176

PENSAR

O primeiro mandato de FHC (1995/98) foi um desastre fiscal, com as despesas de custeio crescendo muito mais do que o PIB. Depois de um superavit primário de 5,21% do PIB, no último ano do governo Itamar, que chegou a reduzir a relação DLSP/PIB, o resultado primário desandou. Só no segundo mandato, sob a pressão do FMI, é que se produziram superavits primários, como registra o gráfico nº 2.

Gráfico nº 2

O Governo costumava defender-se dizendo que o aumento da dívida se devia à “absorção dos esqueletos”, isto é, às dívidas já feitas mas não reconhecidas, hipótese facilmente refutada pelo quadro abaixo:

Evolução da DLSP (1995-2002) (em bilhões R$)

1. DLSP em 31/12/1994 153,2

2. DLSP em 31/12/2002 881,1

3. Acréscimo da DLSP no governo FHC 727,9

4. Juros nominais pagos 561,7

5. Superávits primários (-) 158,8 402,9

6. Ajuste cambial 291,8

7. Esqueletos 97,4

8. Venda do patrimônio (Privatização) (-) 64,6 32,8

9. Dívida externa (pequenos ajustes) 0,4

10. Total 727,9

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Vemos que, descontada a venda do patrimônio público, isto é, as privatiza-ções, o reconhecimento dos “esqueletos” não chega a 5% do valor da dívida acumu-lada no período.

Em dezembro de 1994, a relação DLSP/PIB era da ordem de 30%. Em dezembro de 2002 ela atingiu 56%. Isso a despeito de um aumento sufocante da carga tributária bruta que, certamente, foi um dos maiores inibidores de um desen-volvimento econômico mais robusto.

O ano de 2002 foi atípico, porque o processo eleitoral acrescentou uma enor-me volatilidade à taxa cambial. O resul-tado final foi que o Brasil pagou, no ano, 14,5% do PIB como juro da sua dívida e, depois de ter feito um superavit primário de 4%, acumulou um deficit nominal de 10,5% do PIB.

O “mercado” utiliza e o FMI e alguns tarometristas confirmam que a relação Dívida Líquida do Setor Público/PIB é um dos indicadores fundamentais para julgar as condições de resistência da economia brasileira aos naturais choques externos que estão permanentemente se abatendo sobre ela. Não importa a veracidade da proposição.

O que importa é a “crença” de que se aquela relação for maior do que 0,56 (ou seja, a Dívida Líquida do Setor Público é maior do que 56% do PIB), o Brasil terá maiores dificuldades de honrar a sua dívida. Isso eleva os “spreads” externos e a taxa de juros capaz de sustentar o refinanciamento da dívida e seu eventual aumento.

Nessas condições, o Tesouro (ou o Banco Central) não consegue renovar a dívida à taxa de juros vigente, e é forçado a aumentá-la, agravando ainda mais o

problema. O mesmo acontece quando se cria dúvida sobre a capacidade de renovar a dívida externa (incluída na DLSP), o que produz aumento do “spread externo” e uma diminuição do financiamento exter-no, elevando a taxa de câmbio nominal. Outra vez o movimento é no sentido de agravar o desequilíbrio, pois o aumento da taxa de juros aumenta a desconfiança externa sobre a solvabilidade da dívida.

A dramaticidade do problema é que um fator que poderia aliviar o cres-cimento da relação DLSP/PIB seria um robusto aumento do PIB, freqüentemente inibido pelo próprio comportamento da taxa de juros. É essa a armadilha em que nos encontramos há algum tempo.

Quais os fatores que controlam a relação DLSP/PIB? O numerador (DLSP) depende, basicamente, da relação já exis-tente no ano anterior, da taxa de juro real e da taxa de câmbio real, enquanto o deno-minador (PIB) depende da taxa de cresci-mento real do produto. Qual é a condição “desejada” pelo “mercado”, pelo FMI e confirmada pelos tarometristas?

É que a relação DLSP/PIB se esta-bilize em 56% e, a partir daí, revele um decréscimo monotônico. Esse foi o objeti-vo do ministro Palocci quando, no início de 2003, afirmou (logo depois confirmado pelo próprio presidente Lula) que “faría-mos o superavit primário necessário para estabilizar a relação DLSP/PIB” e, unilate-ralmente, aumentou o objetivo do supe-ravit para 4,25%.

O superavit primário não depende, pois, da “vontade” do ministro, das “dúvi-das internas do Governo” ou de “truques”. Ele depende da taxa de juro real, da taxa de câmbio real e do crescimento real. Se em 2003 tivéssemos crescido em termos reais 3% (em lugar de -0,2%), a relação

ANTONIO DELFIM NETTO

178

PENSAR

teria sido menor do que foi, dando um sinal positivo para os credores internos e externos. Por outro lado, sabemos que existe uma relação negativa entre taxa de crescimento real e taxa de juro real.

A taxa de câmbio real de hoje parece próxima do equilíbrio em conta-corrente (com um crescimento do PIB da ordem de 4 ou 5%). Existem, portanto, as condições objetivas para dar início a uma redução consistente da relação DLSP/PIB, iniciando um movimento mais virtuoso do que o que temos vivido.

A aceleração das exportações em 2003 já melhorou outros importantes indi-cadores: 1º) a relação Dívida Externa/PIB e 2º) Amortizações + Juros/PIB, o que con-firma a possibilidade de termos uma ima-gem externa mais adequada das condições objetivas que reduzem o “risco” Brasil.

É preciso estimular ainda mais as exportações, aproveitar a oportunidade de reduzir a taxa de juro real e tomar medi-das para expandir o PIB, para reduzir a relação DLSP/PIB e diminuir o pagamento de juros, abrindo espaço para algum inves-timento público. Há um evidente cansaço da sociedade com o pagamento de juros, que em 2003 atingiu 145,2 bilhões de reais e é percebido como um exagero. Isso tende a estimular a imaginação de alguns economistas a procurar soluções mais rápidas (e em geral, erradas) para a volta ao crescimento.

O Brasil começou 2004 numa situ-ação econômica ligeiramente melhor do que à do ano de 2003 e é por isso que não se justifica a gritaria para mudar a política econômica do ministro Pallocci. Esperamos todos, agora, que com a estabilidade con-quistada, o País assista ao “espetáculo do

crescimento”, modestamente fixado no nível de aumento do PIB em 3,5%.

Todos sabemos que o “crescimento” é feito pelo setor privado quando, den-tro de quadros institucionais adequados (inclusive o absoluto respeito à proprieda-de privada), o Governo “cria” os estímulos para o funcionamento desembaraçado do “mercado”, para a apropriação de parte dos ganhos de produtividade pelos trabalha-dores e incentiva os empresários.

É o comportamento do Governo que reduz, para o agente privado, as incertezas que o futuro sempre esconde. É ele que dá certeza de que a demanda efetiva vai cres-cer, o que, combinado com a redução do custo do capital e a expansão de crédito, despertará o “espírito animal” dos empre-sários. Quando estes se dispõem a tomar o “risco” dos novos investimentos, o cresci-mento simultâneo da oferta e da demanda globais põe em marcha um processo virtu-oso de expansão. Mais dia menos dia, ele atinge o nível de emprego e, depois, com a redução do desemprego, acaba propor-cionando o aumento do salário real que é a forma de participação do trabalhador no crescimento.

Isso mostra que nem o tamanho do bolo de 2004 nem a sua qualidade estão determinados. Ele vai depender dos ingre-dientes que o setor privado vai mobilizar em resposta à “receita” que o Governo for capaz de imaginar. Lula sabia disso em 1978 quando, numa reunião de ex-quase intelectuais, na qual era o único trabalha-dor, em lugar de “teorizar” disse:

“Quando fui convidado para debater o tema ‘Brasil depois de novembro’ tentei até encontrar uma bola de cristal para me dizer o que será o Brasil em janeiro de

179

ANTONIO DELFIM NETTO

1979. Mas acho que o Brasil de janeiro de 1979 será o Brasil que a sociedade brasi-leira quiser, será aquele Brasil que a socie-dade sem medo, sem apavoramento, possa exigir que os atuais governantes não con-cedam, mas cedam para nós, o Brasil para os brasileiros” (Painéis da Crise, 1979).

Hoje o governo é ele, Lula! Quando insiste simultaneamente no “espetáculo do crescimento” e no “ano da microecono-mia”, acende uma grande esperança. O “ano da microeconomia” não será, ape-nas, o da redução da taxa de juros real, por mais importante que ela seja!

Será o ano do desembaraço máxi-mo do funcionamento dos mercados, da redução drástica dos impedimentos buro-cráticos, da racionalização dos impostos combinada com a redução da carga pela ampliação da base imponível com a incor-poração do setor informal, da redução da extravagante legislação prudencial impos-ta ao sistema bancário, da redução dos custos do trabalho, da mobilização das agências financeiras do Governo para o desenvolvimento, da criação do crédito para as pequenas e médias empresas, com sistemas que reduzam o poder de mono-pólio do sistema bancário e do estímulo à concorrência nos setores onde houve uma enorme concentração (industrial e comer-cial) nos últimos 10 anos?

O “ano da microeconomia” só pode ser o da criação de incentivos para reduzir o custo do capital, para a reorganização da atividade produtiva, para a escolha de novas tecnologias, para a aceleração da depreciação dos equipamentos velhos e sua substituição por novos, que incorpo-ram tecnologias mais eficientes e o ano do aumento da integração entre o setor

privado e as instituições de pesquisa e desenvolvimento.

O “ano da microeconomia” não será menor do que uma década! Inicialmente, as grandes transformações certamente não serão visíveis a olho nu. Como o velho Schumpeter mostrou, há quase um século, o aumento da produtividade e do cresci-mento numa economia de mercado é o resultado da realocação de recursos e da reestruturação das empresas dentro e entre os vários setores.

Trata-se de um mecanismo relati-vamente lento, mas permanente, que ao mesmo tempo em que constrói o novo vai destruindo o velho. Por isso é às vezes chamado de “creative destruction”. Foi isso que os “nouveaux économistes” tenta-ram através da “désinflation compétitive”. Infelizmente colheram apenas “destruc-tion”!

180

IntroduçãoPretendemos nesse ensaio apontar

uma política de geração de trabalho a partir dos mecanismos de capacitação tec-nológica da população, que tenham como base a educação profissional, a extensão tecnológica e a informação.

Entendemos que na realidade atual, com a economia globalizada e com as

freqüentes inovações tecnológicas, não podemos falar em trabalho sem colocar como carro-chefe o conhecimento, que deve ser perseguido em todos os níveis da educação.

A geração de trabalho torna-se com-plexa porque temos pela frente um avanço tecnológico crescente e uma grave ques-tão social traduzida pela pobreza, analfa-betismo e concentração de renda.

*Deputado Federal

PENSAR

1. Sobre as Disparidades Inter-Regionais

REGIÃOEXPECTATIVA

DE VIDA (anos)

TAXA DE ALFABETIZAÇÃO

(%)

MORTALIDADE INFANTIL

(p/mil)

POBREZA ABSOLUTA

(%)

DH (0 a 1)

Sul

Sudeste

Nordeste

Norte

Centro-Oeste

70,1

67,1

58,8

68,2

68,4

87,5

88,2

63,5

88,1

83,1

61,8

74,5

121,4

72,3

70,3

20,6

14,8

51,2

24,6

24,7

0,872

0,852

0,575

0,780

0,818BRASIL 64,9 81,1 87,9 26,2 0,794*IDH - Índice de desenvolvimento humano: medido numa escala de 0 a 1, leva em conta a renda per capita, a expectativa de vida e a taxa de alfabetização.Fonte: Relatório da Comissão Especial do Congresso que estudou as causas do desequilíbrio econômico inter-regional - ANO 1998.

* ARIOSTO HOLANDA

181

Os números apontados pela Comissão Especial do Congresso Nacional que estudou as causas dos desequilíbrios econômicos inter-regionais em 1993, (tabela anterior) e os do Relatório do IPEA – ano 2000 (a seguir), comprovam muito bem a gravidade desse quadro.

Observe no gráfico acima, do Relatório IPEA – Ano 2000, que o coeficiente Ginni, que mede a concentração da renda vem se mantendo ao longo dos últimos 20 anos no patamar 0,6. Nos países onde existe uma boa distribuição de renda, esse número fica em torno de 0,25.

O gráfico acima, do Relatório IPEA – Ano 2000, mostra que 50% da renda está concentrada em 10% da população, enquanto 50% da população detém somente 10% da renda.

182

PENSAR

O gráfico acima, do Relatório IPEA – Ano 2000, mostra a evolução do número de Pobres e Indigentes no período de 1979 a 2000. Estima-se que hoje exista uma população aproximada de 17 milhões de analfabetos, 50 milhões de pobres e 22 milhões de pessoas sem qualificação profissional.

Como o trabalho é a única forma digna de combater a miséria, devemos com urgência encontrar respostas para os seguintes questionamentos:

• Como fazer ingressar num sistema produtivo eficiente essa quantidade de analfabetos, que hoje chega a ser da ordem de 17 milhões de brasilei-ros?

• O que fazer com milhões de tra-balhadores cuja força de trabalho é cada vez menos exigida, ou nem mais o é?

• Como distribuir renda com pessoas sem qualificação profissional, princi-

palmente nesse momento em que a explosão tecnológica que ocorre no mundo está a exigir cada vez mais das pessoas atualização permanente de seus conhecimentos?

• Como superar as desigualdades regionais, quando se tem a consci-ência de que elas aumentam com a concentração do conhecimento?

Fala-se muito em cluster, em empre-endedorismo, em cadeia produtiva, em empresa de base tecnológica, em incu-badoras de empresa como formas de desenvolvimento, mas não se fala em acabar com o analfabetismo tecnológico da população, das pequenas empresas e dos pequenos negócios. Por isso, torna-se urgente uma ação de massa voltada para apoio tecnológico às micro e pequenas empresas e para implantação de um amplo programa de ensino tecnológico baseado, sobretudo, nas vocações das regiões.

O discurso do crescimento econômi-co como fórmula de geração de trabalho,

183

diante dessa massa de excluídos, torna-se inócuo,porque poderemos ter aumento sig-nificativo do PIB sem que isso implique em geração de um grande número de empre-gos. Isso porque as empresas, dentro da atual lógica de crescimento, e não podem fugir dela, serão cada vez mais intensi-vas em capital e menos mão-de-obra. O modelo que temos de discutir é o que esteja pautado numa visão de crescimento sócio-econômico, ou melhor dizendo, que esteja baseado numa economia que leve em conta as pessoas. Apresentar, apenas, como indicadores de desenvolvimento, índices frios, sem considerar por trás de tudo isso o homem: oportunidade para uma vida melhor, justiça social, saúde, habitação, educação, alimentação e salá-rios dignos constitui uma visão parcial do que entendo por desenvolvimento.

Vamos aprofundar essa discussão apresentando alguns cenários para refle-xão.

2. A Nova Realidade do Trabalho e Exigência de Mão-de-Obra – Cenários para Reflexão

2.1. Relacionados com a Cadeia do Conhecimento

Se analisarmos a figura anterior constataremos que a cadeia do conheci-mento em nosso país encontra-se, senão degradada, no mínimo, enfraquecida. São pontos que merecem a nossa atenção:

• Analfabetismo – esse deve ser zerado.

• Ensino fundamental e médio, como foi constatado pelo recente diagnós-tico do MEC, precisa urgentemente ser melhorado, tendo como ponto de partida a formação, o aperfeiço-amento e a atualização profissional dos professores. Atualmente, existe um grande deficit de professores de matemática, física, química, biolo-gia e português. A escola precisa ser assistida com os meios interativos proporcionados pela internet, ensi-no à distância e biblioteca multimí-dia.

• Ensino Profissionalizante - A LDB (Lei de Diretrizes e Bases), na área do ensino profissionalizante, contempla 3 formações: básica, técnica e tecno-lógica. A formação básica diz res-peito a cursos de curta duração, não legalizados, na sua maioria patro-cinado pelo FAT (fundo de apoio ao trabalhador); a formação técnica ine-rente às escolas técnicas, de número reduzido; e a formação tecnológica, de responsabilidade dos centros de ensino tecnológico superior, ainda em fase de implantação no país. Diante desse quadro, constata-se que existe um fosso entre o ensino fundamental e médio e a gradua-ção, evidenciado pela ausência de escolas técnicas profissionalizantes. Nos países desenvolvidos existe uma

ARIOSTO HOLANDA

184

relação considerada ótima, de um técnico de nível superior para cinco técnicos de nível médio. Essa relação no Brasil está invertida. Dados da CPI do atraso tecnológico (1993) revelou que tínhamos dois técnicos de nível superior para um de nível médio, como média nacional. Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, essa relação é de quatro técnicos de nível superior para um de nível médio.

• Ensino tecnológico - deverá ser ministrado com forte embasamen-to em ciências e domínio das lin-guagens: matemática, Informática, português e inglês.

• Graduação - deve ser fortalecida com o aumento do número de mes-tres e doutores. O país precisa formar 120.000 doutores. Hoje, só dispõe de 35.000

• P (pós-graduação e pesquisa), D (desenvolvimento tecnológico) e E (extensão e engenharia) – essas ati-vidades precisam ser implantadas ou fortalecidas nas universidades e instituições de pesquisa.

• Extensão – os trabalhos de extensão das universidades e institutos de tec-nologia precisam ser massificados no sentido de levar novos conhecimen-tos para a população.

• Infovias do conhecimento - forma-das por redes eletrônicas interligando os centros de ensino tecnológico e as universidades, deverão ser implanta-das em todo país como suporte aos programas de ensino à distância e das bibliotecas multimídias, encur-tando assim a distância do conheci-mento.

2.2. Relacionados com a Tecnologia

O século XXI vai se caracterizar por mudanças rápidas na área tecnológica, onde a única certeza vai ser a incerteza. Como diz o professor Wladimir P. Longo: “Estamos todos nos deslocando sobre uma esteira rolante que se move em sentido contrário, a velocidades crescentes, tra-zendo novos conhecimentos; temos que correr para ficar, pelo menos no mesmo lugar”.

Esse avanço tecnológico, conclui o professor, vai resultar no aprofundamento do conhecimento de poucos e no aumento da ignorância de muitos.

São consideradas áreas estratégicas do conhecimento frente às inovações: ciên-cias biológicas, biotecnologia, engenharia genética, química fina, energia, teleco-municações, informática, novos materiais, microeletrônica, mecânica fina, robótica e mecatrônica.

As grandes aplicações desses conhecimentos se darão nas indústrias de: telemática, bélica, transporte, robóti-ca, bens de consumo, aeroespacial, na agricultura voltada para genética animal, genética vegetal, doenças e pragas, e nos serviços relacionados com automação, informação, educação, lazer e saúde.

2.3. Relacionados com o Trabalho

Estudos mostram que, num futuro próximo, a indústria e a agricultura serão cada vez mais intensivas em capital e menos em mão-de-obra. A automação industrial e o avanço da mecanização agrícola com certeza vão acelerar esse processo. As fábricas sem operários e as empresas virtuais surgirão cada vez mais, dia a dia.

PENSARPENSAR

185

ARIOSTO HOLANDA

Estima-se que, em 10 anos, nos países desenvolvidos, somente 10% dos trabalhadores estarão nos setores primário e secundário, e que a terceirização, ou seja, a área de serviços será a grande demandadora de mão-de-obra. Não mais existirão as profissões tradicionais de pai para filho; nessa terceira via, devido às inovações tecnológicas, surgirá um número muito grande de profissões nascendo e morrendo, e que somente a porta do saber permitirá o acesso a elas.

Apesar de se apontar a área de serviços como a grande empregadora, no entanto, a atual transição da sociedade industrial rumo à sociedade de serviços ou à sociedade informatizada, mostra que no atual setor terciário, o potencial de racionalização é enorme. Estima-se que poder-se-ia economizar 51% dos empregos no comércio e até 61% na administração pública e nos bancos. Do ponto de vista social e da ameaça do desemprego, isso é extremamente grave.

Novos campos profissionais surgirão com o desenvolvimento tecnológico. As atividades a eles inerentes beneficiarão apenas uma pequena elite global e virtual.

Vamos nos deparar com situações onde teremos, de um lado pessoas procurando emprego e, na contramão, trabalho procurando profissional.

Profissões vão surgir e em curto tempo desaparecer; do mesmo modo que postos de trabalho vão exigir habilidades e conhecimentos que em pouco tempo serão substituídos. O profissional, para subsistir, terá que ser um eterno estudante.

3. ConclusãoHá, diante desse quadro, uma urgên-

cia de criarmos mecanismos, ágeis e fle-

xíveis, de transferência de conhecimentos para a população, como verdadeiros ata-lhos que avancem sobre os procedimen-tos tradicionais da educação.

Existe uma grande massa de trabalhadores sem esperança de empre-go, por total desqualificação profissional. Hoje, se houvesse um reaquecimento da economia, com novos investimentos em áreas de alta tecnologia, esses traba-lhadores não entrariam no mercado de trabalho.

Temos que adotar, de imediato, medi-das voltadas para o aprimoramento do ensino profissionalizante. Os indicadores sociais que acabamos de ver estão a exigir, das instituições que detém o conheci-mento, ações que venham a contribuir de modo decisivo no processo de educação para o trabalho, em todos os níveis.

Certamente, a geração de emprego e a distribuição de renda só se darão quan-do investirmos no capital humano e proce-dermos a uma profunda transformação na lógica do desenvolvimento. Por sua vez, o investimento no capital humano deve ser feito através de um sistema educativo eficiente, de qualidade, e que envolva toda sociedade. Só assim daremos o salto de qualidade.

Temos que ousar e partir para um processo de interação com a sociedade do tipo Educar Trabalhando e Trabalhar Educando.

A lógica do processo de educação, incluindo as várias etapas do conhecimen-to, deve ser capaz de responder a questões do tipo:

“Como e por que os produtos e serviços são feitos dessa ou daquela maneira, e como podem ser melhorados”?

186

PENSAR

Ao lado do mecanismo educacional, deve ser perseguida a implantação de um amplo sistema de informação tecnológica, no sentido de proporcionar aos pequenos segmentos produtivos, hoje mergulhados num verdadeiro analfabetismo tecnológi-co, condições de conhecer e de apropriar-se de novas tecnologias.

As ações a serem desencadeadas devem ser tais que integrem todos os seg-mentos da sociedade; elas não podem ser estanques e isoladas, e devem ter como objetivo o homem no seu estágio atual de conhecimento e no seu contexto social.

O analfabeto fora da escola, o analfa-beto tecnológico dentro da escola, a escola fora da realidade atual, a universidade sem interagir com os problemas do meio, o setor produtivo isolado dos problemas educacionais e tecnológicos são verda-deiros desafios para qualquer governo que queira promover uma revolução social, educacional, científica e tecnológica.

Por tudo isso, defendemos um novo modelo de desenvolvimento que tenha como alvo, não o crescimento econômico em si, mas o desenvolvimento sócio- eco-nômico que leve em conta as pessoas, que saia da lógica do desenvolvimento com base no mercado para a lógica da social democracia, onde o Estado deve exercer o papel regulador do processo de desenvol-vimento, e que tenha na educação, ciência e tecnologia o suporte basilar para o seu desenvolvimento. Que seja um Estado que massifique as ações da extensão tecnoló-gica via universidades, centros de ensino tecnológico e instituições de tecnologia. Que abra o mercado, na área de serviços e de produtos, para os pequenos negócios, tipo compra e serviços governamentais. O que o governo (municipal, estadual e fede-

ral) compra ou contrata que pode ser feito pelo pequeno? Há que se definir progra-mas de geração de trabalho voltados para essa massa de trabalhadores desemprega-dos. Programa, como o de produção do biodiesel, poderia se constituir no maior programa de reforma agrária do país. Para finalizar, torna-se oportuno transcrever a entrevista com o camponês Cícero dos Santos no livro “A Questão Política da Educação”:

“O senhor diz que até poderia ser diferente, não é assim? Que não é só para ensinar aquele ensinozinho apressado, para ver se velho aprende o que menino não aprendeu. Então podia ser tipo de educação até fora da escola, da sala. Que fosse assim dum jeito misturado com o de todo dia da vida da gente daqui. Que podia ser um modo desses de juntar saber e clarear os assuntos, que a gente sente mas não sabe. Então era bom. O povo vinha”?

PENSAR

187

&IdéiasLeis

Estatuto do Idoso

• Senador Paulo Paim

• Ministra Fátima Nancy

O Pai do Artista - Paul Cézanne

188

ESTATUTO DO IDOSO

Estatuto do Idoso LEI Nº 10.741, DE 1º DE OUTUBRO

DE 2003.

Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

TÍTULO I

Disposições PreliminaresArt. 1º É instituído o Estatuto do Idoso,

destinado a regular os direitos

assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.

Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social,

IDÉIAS E LEIS

Mulher com a Mania de Jogo - Théodore Géricault

189

em condições de liberdade e dignidade.

Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de priori-dade compreende:

I – atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à popu-lação;

II – preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas espe-cíficas;

III – destinação privilegiada de recur-sos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso;

IV – viabilização de formas alternati-vas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações;

V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimen-to do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência;

VI – capacitação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de geriatria e gerontologia e na prestação de serviços aos idosos;

VII – estabelecimento de mecanismos que favoreçam a divulgação de informa-ções de caráter educativo sobre os aspectos biopsicossociais de envelhecimento;

VIII – garantia de acesso à rede de serviços de saúde e de assistência social locais.

Art. 4º Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.

§ 1º É dever de todos prevenir a ame-aça ou violação aos direitos do idoso.

§ 2º As obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção outras decor-rentes dos princípios por ela adotados.

Art. 5º A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade à pessoa física ou jurídica nos termos da lei.

Art. 6º Todo cidadão tem o dever de comunicar à autoridade competente qualquer forma de violação a esta Lei que tenha testemunhado ou de que tenha conhecimento.

Art. 7º Os Conselhos Nacional, Estaduais, do Distrito Federal e Municipais do Idoso, previstos na Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994, zelarão pelo cumprimento dos direitos do idoso, definidos nesta Lei.

TÍTULO II

Dos Direitos Fundamentais

CAPÍTULO I

Do Direito à Vida Art. 8º O envelhecimento é um

190

IDÉIAS & LEIS

direito personalíssimo e a sua proteção, um direito social, nos termos desta Lei e da legislação vigente.

Art. 9º É obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.

CAPÍTULO II

Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à DignidadeArt. 10. É obrigação do Estado e da

sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis.

§ 1º O direito à liberdade compreen-de, entre outros, os seguintes aspectos:

I – faculdade de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitá-rios, ressalvadas as restrições legais;

II – opinião e expressão;

III – crença e culto religioso;

IV – prática de esportes e de diver-sões;

V – participação na vida familiar e comunitária;

VI – participação na vida política, na forma da lei;

VII – faculdade de buscar refúgio, auxílio e orientação.

§ 2º O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psí-quica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.

§ 3º É dever de todos zelar pela dig-nidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

CAPÍTULO III

Dos Alimentos Art. 11. Os alimentos serão prestados

ao idoso na forma da lei civil.

Art. 12. A obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores.

Art. 13. As transações relativas a alimentos poderão ser celebradas perante o Promotor de Justiça, que as referendará, e passarão a ter efeito de título executivo extrajudicial nos termos da lei processual civil.

Art. 14. Se o idoso ou seus familiares não possuírem condições econômicas de prover o seu sustento, impõe-se ao Poder Público esse provimento, no âmbito da assistência social.

CAPÍTULO IV

Do Direito à SaúdeArt. 15. É assegurada a atenção

integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e

191

ESTATUTO DO IDOSO

contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.

§ 1º A prevenção e a manutenção da saúde do idoso serão efetivadas por meio de:

I – cadastramento da população idosa em base territorial;

II – atendimento geriátrico e geron-tológico em ambulatórios;

III – unidades geriátricas de referên-cia, com pessoal especializado nas áreas de geriatria e gerontologia social;

IV – atendimento domiciliar, inclu-indo a internação, para a população que dele necessitar e esteja impossibilitada de se locomover, inclusive para idosos abriga-dos e acolhidos por instituições públi-cas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e eventualmente conveniadas com o Poder Público, nos meios urbano e rural;

V – reabilitação orientada pela geri-atria e gerontologia, para redução das seqüelas decorrentes do agravo da saúde.

§ 2º Incumbe ao Poder Público for-necer aos idosos, gratuitamente, medica-mentos, especialmente os de uso continu-ado, assim como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilita-ção ou reabilitação.

§ 3º É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade.

§ 4º Os idosos portadores de defi-ciência ou com limitação incapacitante terão atendimento especializado, nos ter-mos da lei.

Art. 16. Ao idoso internado ou em observação é assegurado o direito a acompanhante, devendo o órgão de saúde proporcionar as condições adequadas para a sua permanência em tempo integral, segundo o critério médico.

Parágrafo único. Caberá ao profis-sional de saúde responsável pelo trata-mento conceder autorização para o acom-panhamento do idoso ou, no caso de impossibilidade, justificá-la por escrito.

Art. 17. Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.

Parágrafo único. Não estando o idoso em condições de proceder à opção, esta será feita:

I – pelo curador, quando o idoso for interditado;

II – pelos familiares, quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contactado em tempo hábil;

III – pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador ou familiar;

IV – pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá comunicar o fato ao Ministério Público.

Art. 18. As instituições de saúde devem atender aos critérios mínimos para o atendimento às necessidades do idoso, promovendo o treinamento e a capacitação dos profissionais, assim como orientação a

192

IDÉIAS & LEIS

cuidadores familiares e grupos de auto-ajuda.

Art. 19. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra idoso serão obrigatoriamente comunicados pelos profissionais de saúde a quaisquer dos seguintes órgãos:

I – autoridade policial;

II – Ministério Público;

III – Conselho Municipal do Idoso;

IV – Conselho Estadual do Idoso;

V – Conselho Nacional do Idoso.

CAPÍTULO V

Da Educação, Cultura, Esporte e LazerArt. 20. O idoso tem direito a educação,

cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem sua peculiar condição de idade.

Art. 21. O Poder Público criará oportunidades de acesso do idoso à educação, adequando currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais a ele destinados.

§ 1º Os cursos especiais para idosos incluirão conteúdo relativo às técnicas de comunicação, computação e demais avanços tecnológicos, para sua integração à vida moderna.

§ 2º Os idosos participarão das comemorações de caráter cívico ou cul-tural, para transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da preservação da memória e da identi-dade culturais.

Art. 22. Nos currículos mínimos dos diversos níveis de ensino formal serão inseridos conteúdos voltados ao processo de envelhecimento, ao respeito e à valorização do idoso, de forma a eliminar o preconceito e a produzir conhecimentos sobre a matéria.

Art. 23. A participação dos idosos em atividades culturais e de lazer será proporcionada mediante descontos de pelo menos 50% (cinqüenta por cento) nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer, bem como o acesso preferencial aos respectivos locais.

Art. 24. Os meios de comunicação manterão espaços ou horários especiais voltados aos idosos, com finalidade informativa, educativa, artística e cultural, e ao público sobre o processo de envelhecimento.

Art. 25. O Poder Público apoiará a criação de universidade aberta para as pessoas idosas e incentivará a publicação de livros e periódicos, de conteúdo e padrão editorial adequados ao idoso, que facilitem a leitura, considerada a natural redução da capacidade visual.

CAPÍTULO VI

Da Profissionalização e do TrabalhoArt. 26. O idoso tem direito ao exercício

de atividade profissional, respeitadas suas condições físicas, intelectuais e psíquicas.

193

ESTATUTO DO IDOSO

Art. 27. Na admissão do idoso em qualquer trabalho ou emprego, é vedada a discriminação e a fixação de limite máximo de idade, inclusive para concursos, ressalvados os casos em que a natureza do cargo o exigir.

Parágrafo único. O primeiro critério de desempate em concurso público será a idade, dando-se preferência ao de idade mais elevada.

Art. 28. O Poder Público criará e estimulará programas de:

I – profissionalização especializada para os idosos, aproveitando seus potenci-ais e habilidades para atividades regulares e remuneradas;

II – preparação dos trabalhadores para a aposentadoria, com antecedên-cia mínima de 1 (um) ano, por meio de estímulo a novos projetos sociais, con-forme seus interesses, e de esclarecimento sobre os direitos sociais e de cidadania;

III – estímulo às empresas privadas para admissão de idosos ao trabalho.

CAPÍTULO VII Da Previdência SocialArt. 29. Os benefícios de aposentadoria

e pensão do Regime Geral da Previdência Social observarão, na sua concessão, critérios de cálculo que preservem o valor real dos salários sobre os quais incidiram contribuição, nos termos da legislação vigente.

Parágrafo único. Os valores dos bene-fícios em manutenção serão reajustados na mesma data de reajuste do salário-mínimo, pro rata, de acordo com suas respectivas datas de início ou do seu último reajusta-

mento, com base em percentual definido em regulamento, observados os critérios estabelecidos pela Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.

Art. 30. A perda da condição de segurado não será considerada para a concessão da aposentadoria por idade, desde que a pessoa conte com, no mínimo, o tempo de contribuição correspondente ao exigido para efeito de carência na data de requerimento do benefício.

Parágrafo único. O cálculo do valor do benefício previsto no caput observará o disposto no caput e 2º do art. 3º da Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999, ou, não havendo salários-de-contribuição recolhidos a partir da competência de julho de 1994, o disposto no art. 35 da Lei nº 8.213, de 1991.

Art. 31. O pagamento de parcelas relativas a benefícios, efetuado com atraso por responsabilidade da Previdência Social, será atualizado pelo mesmo índice utilizado para os reajustamentos dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, verificado no período compreendido entre o mês que deveria ter sido pago e o mês do efetivo pagamento.

Art. 32. O Dia Mundial do Trabalho, 1º de Maio, é a data-base dos aposentados e pensionistas.

CAPÍTULO VIII

Da Assistência SocialArt. 33. A assistência social aos

idosos será prestada, de forma articulada, conforme os

194

IDÉIAS & LEIS

princípios e diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, na Política Nacional do Idoso, no Sistema Único de Saúde e demais normas pertinentes.

Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas.

Parágrafo único. O benefício já con-cedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.

Art. 35. Todas as entidades de longa permanência, ou casa-lar, são obrigadas a firmar contrato de prestação de serviços com a pessoa idosa abrigada.

§ 1º No caso de entidades filantrópi-cas, ou casa-lar, é facultada a cobrança de participação do idoso no custeio da entidade.

§ 2º O Conselho Municipal do Idoso ou o Conselho Municipal da Assistência Social estabelecerá a forma de participação prevista no § 1º, que não poderá exceder a 70% (setenta por cento) de qualquer benefício previdenciário ou de assistência social percebido pelo idoso.

§ 3º Se a pessoa idosa for incapaz, caberá a seu representante legal firmar o contrato a que se refere o caput deste artigo.

Art. 36. O acolhimento de idosos em situação de risco social, por adulto ou núcleo familiar, caracteriza a dependência econômica, para os efeitos legais.

CAPÍTULO IX

Da Habitação Art. 37. O idoso tem direito a moradia

digna, no seio da família natural ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares, quando assim o desejar, ou, ainda, em instituição pública ou privada.

§ 1º A assistência integral na modalidade de entidade de longa permanência será prestada quando verificada inexistência de grupo familiar, casa-lar, abandono ou carência de recursos financeiros próprios ou da família.

§ 2º Toda instituição dedicada ao atendimento ao idoso fica obrigada a manter identificação externa visível, sob pena de interdição, além de atender toda a legislação pertinente.

§ 3º As instituições que abrigarem idosos são obrigadas a manter padrões de habitação compatíveis com as necessidades deles, bem como provê-los com alimentação regular e higiene indispensáveis às normas sanitárias e com estas condizentes, sob as penas da lei.

Art. 38. Nos programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos, o idoso goza de prioridade na aquisição de imóvel para moradia própria, observado o seguinte:

195

ESTATUTO DO IDOSO

I – reserva de 3% (três por cento) das unidades residenciais para atendimento aos idosos;

II – implantação de equipamentos urbanos comunitários voltados ao idoso;

III – eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas, para garantia de acessibilidade ao idoso;

IV – critérios de financiamento compatíveis com os rendimentos de aposentadoria e pensão.

CAPÍTULO X

Do Transporte Art. 39. Aos maiores de 65 (sessenta

e cinco) anos fica assegurada a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semi-urbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares.

§ 1º Para ter acesso à gratuidade, basta que o idoso apresente qualquer documento pessoal que faça prova de sua idade.

§ 2º Nos veículos de transporte coletivo de que trata este artigo, serão reservados 10% (dez por cento) dos assentos para os idosos, devidamente identificados com a placa de reservado preferencialmente para idosos.

§ 3º No caso das pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará a critério da legislação local dispor sobre as condições para exercício da gratuidade nos meios de transporte previstos no caput deste artigo.

Art. 40. No sistema de transporte coletivo interestadual observar-se-á, nos termos da legislação específica:

I – a reserva de 2 (duas) vagas gratuitas por veículo para idosos com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos;

II – desconto de 50% (cinqüenta por cento), no mínimo, no valor das passagens, para os idosos que excederem as vagas gratuitas, com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos.

Parágrafo único. Caberá aos órgãos competentes definir os mecanismos e os critérios para o exercício dos direitos previstos nos incisos I e II.

Art. 41. É assegurada a reserva, para os idosos, nos termos da lei local, de 5% (cinco por cento) das vagas nos estacionamentos públicos e privados, as quais deverão ser posicionadas de forma a garantir a melhor comodidade ao idoso.

Art. 42. É assegurada a prioridade do idoso no embarque no sistema de transporte coletivo.

TÍTULO III

Das Medidas de Proteção

CAPÍTULO I

Das Disposições GeraisArt. 43. As medidas de proteção ao

idoso são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

196

IDÉIAS & LEIS

I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II – por falta, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de atendimento;

III – em razão de sua condição pessoal.

CAPÍTULO II

Das Medidas Específicas de ProteçãoArt. 44. As medidas de proteção ao

idoso previstas nesta Lei poderão ser aplicadas, isolada ou cumulativamente, e levarão em conta os fins sociais a que se destinam e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Art. 45. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 43, o Ministério Público ou o Poder Judiciário, a requerimento daquele, poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

I – encaminhamento à família ou curador, mediante termo de responsabili-dade;

II – orientação, apoio e acompanha-mento temporários;

II – requisição para tratamento de sua saúde, em regime ambulatorial, hospitalar ou domiciliar;

IV – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e trata-mento a usuários dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou à pessoa de sua convivência que lhe cause perturbação;

V – abrigo em entidade;

VI – abrigo temporário.

TÍTULO IV

Da Política de Atendimento ao Idoso

CAPÍTULO I

Disposições GeraisArt. 46. A política de atendimento

ao idoso far-se-á por meio do conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Art. 47. São linhas de ação da política de atendimento:

I – políticas sociais básicas, previstas na Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994;

II – políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que necessitarem;

III – serviços especiais de prevenção e atendimento às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;

IV – serviço de identificação e localização de parentes ou responsáveis por idosos abandonados em hospitais e instituições de longa permanência;

V – proteção jurídico-social por enti-dades de defesa dos direitos dos idosos;

VI – mobilização da opinião pública no sentido da participação dos diversos segmentos da sociedade no atendimento do idoso.

197

ESTATUTO DO IDOSO

CAPÍTULO II

Das Entidades de Atendimento ao IdosoArt. 48. As entidades de atendimento

são responsáveis pela manutenção das próprias unidades, observadas as normas de planejamento e execução emanadas do órgão competente da Política Nacional do Idoso, conforme a Lei nº 8.842, de 1994.

Parágrafo único. As entidades governamentais e não-governamentais de assistência ao idoso ficam sujeitas à inscrição de seus programas, junto ao órgão competente da Vigilância Sanitária e Conselho Municipal da Pessoa Idosa, e em sua falta, junto ao Conselho Estadual ou Nacional da Pessoa Idosa, especificando os regimes de atendimento, observados os seguintes requisitos:

I – oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança;

II – apresentar objetivos estatutários e plano de trabalho compatíveis com os princípios desta Lei;

III – estar regularmente constituída;

IV – demonstrar a idoneidade de seus dirigentes.

Art. 49. As entidades que desenvolvam programas de institucionalização de longa permanência adotarão os seguintes princípios:

I – preservação dos vínculos famili-ares;

II – atendimento personalizado e em pequenos grupos;

III – manutenção do idoso na mesma instituição, salvo em caso de força maior;

IV – participação do idoso nas ativi-dades comunitárias, de caráter interno e externo;

V – observância dos direitos e garan-tias dos idosos;

VI – preservação da identidade do idoso e oferecimento de ambiente de res-peito e dignidade.

Parágrafo único. O dirigente de insti-tuição prestadora de atendimento ao idoso responderá civil e criminalmente pelos atos que praticar em detrimento do idoso, sem prejuízo das sanções administrativas.

Art. 50. Constituem obrigações das entidades de atendimento:

I – celebrar contrato escrito de presta-ção de serviço com o idoso, especificando o tipo de atendimento, as obrigações da entidade e prestações decorrentes do con-trato, com os respectivos preços, se for o caso;

II – observar os direitos e as garantias de que são titulares os idosos;

III – fornecer vestuário adequado, se for pública, e alimentação suficiente;

IV – oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade;

V – oferecer atendimento per-sonalizado;

VI – diligenciar no sentido da preser-vação dos vínculos idados à saúde, con-forme a necessidade do idoso;

IX – promover atividades educacio-nais, esportivas, culturais e de lazer;

X – propiciar assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças;

198

IDÉIAS & LEIS

XI – proceder a estudo social e pes-soal de cada caso;

XII – comunicar à autoridade com-petente de saúde toda ocorrência de idoso portador de doenças infecto-contagiosas;

XIII – providenciar ou solicitar que o Ministério Público requisite os documen-tos necessários ao exercício da cidadania àqueles que não os tiverem, na forma da lei;

XIV – fornecer comprovante de depósito dos bens móveis que receberem dos idosos;

XV – manter arquivo de anotações onde constem data e circunstâncias do atendimento, nome do idoso, responsável, parentes, endereços, cidade, relação de seus pertences, bem como o valor de con-tribuições, e suas alterações, se houver, e demais dados que possibilitem sua iden-tificação e a individualização do atendi-mento;

XVI – comunicar ao Ministério Público, para as providências cabíveis, a situação de abandono moral ou material por parte dos familiares;

XVII – manter no quadro de pessoal profissionais com formação específica.

Art. 51. As instituições filantrópicas ou sem fins lucrativos prestadoras de serviço ao idoso terão direito à assistência judiciária gratuita.

CAPÍTULO III

Da Fiscalização das Entidades de AtendimentoArt. 52. As entidades governamentais

e não-governamentais de atendimento ao idoso serão fiscalizadas pelos Conselhos

do Idoso, Ministério Público, Vigilância Sanitária e outros previstos em lei.

Art. 53. O art. 7º da Lei nº 8.842, de 1994, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 7º Compete aos Conselhos de que trata o art. 6º desta Lei a supervisão, o acompanhamento, a fiscalização e a avaliação da política nacional do idoso, no âmbito das respectivas instâncias político-administrativas.”

Art. 54. Será dada publicidade das prestações de contas dos recursos públicos e privados recebidos pelas entidades de atendimento.

Art. 55. As entidades de atendimento que descumprirem as determinações desta Lei ficarão sujeitas, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal de seus dirigentes ou prepostos, às seguintes penalidades, observado o devido processo legal:

I - as entidades governamentais:

a) advertência;

b) afastamento provisório de seus dirigentes;

c) afastamento definitivo de seus diri-gentes;

d) fechamento de unidade ou inter-dição de programa;

II – as entidades não-governamentais:

a) advertência;

b) multa;

199

ESTATUTO DO IDOSO

c) suspensão parcial ou total do repasse de verbas públicas;

d) interdição de unidade ou suspen-são de programa;

e) proibição de atendimento a idosos a bem do interesse público.

§ 1º Havendo danos aos idosos abrigados ou qualquer tipo de fraude em relação ao programa, caberá o afastamen-to provisório dos dirigentes ou a interdição da unidade e a suspensão do programa.

§ 2º A suspensão parcial ou total do repasse de verbas públicas ocorrerá quan-do verificada a má aplicação ou desvio de finalidade dos recursos.

§ 3º Na ocorrência de infração por entidade de atendimento, que coloque em risco os direitos assegurados nesta Lei, será o fato comunicado ao Ministério Público, para as providências cabíveis, inclusive para promover a suspensão das atividades ou dissolução da entidade, com a proibição de atendimento a idosos a bem do interesse público, sem prejuízo das providências a serem tomadas pela Vigilância Sanitária.

§ 4º Na aplicação das penalidades, serão consideradas a natureza e a gravi-dade da infração cometida, os danos que dela provierem para o idoso, as circunstân-cias agravantes ou atenuantes e os ante-cedentes da entidade.

CAPÍTULO IV

Das Infrações AdministrativasArt. 56. Deixar a entidade de atendi-

mento de cumprir as determina-ções do art. 50 desta Lei:

Pena – multa de R$ 500,00 (quinhen-tos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais), se

o fato não for caracterizado como crime, podendo haver a interdição do estabeleci-mento até que sejam cumpridas as exigên-cias legais.

Parágrafo único. No caso de inter-dição do estabelecimento de longa per-manência, os idosos abrigados serão trans-feridos para outra instituição, às expensas do estabelecimento interditado, enquanto durar a interdição.

Art. 57. Deixar o profissional de saúde ou o responsável por estabelecimento de saúde ou instituição de longa permanência de comunicar à autoridade competente os casos de crimes contra idoso de que tiver conhecimento:

Pena – multa de R$ 500,00 (quinhen-tos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais), apli-cada em dobro no caso de reincidência.

Art. 58. Deixar de cumprir as determinações desta Lei sobre a prioridade no atendimento ao idoso:

Pena – multa de R$ 500,00 (quinhen-tos reais) a R$ 1.000,00 (um mil reais) e multa civil a ser estipulada pelo juiz, con-forme o dano sofrido pelo idoso.

CAPÍTULO V

Da Apuração Administrativa de Infração às Normas de Proteção ao IdosoArt.59. Os valores monetários expres-

sos no Capítulo IV serão atuali-zados anualmente, na forma da lei.

Art. 60. O procedimento para a imposição de penalidade administrativa por infração às normas de proteção ao idoso

200

IDÉIAS & LEIS

terá início com requisição do Ministério Público ou auto de infração elaborado por servidor efetivo e assinado, se possível, por duas testemunhas.

§ 1º No procedimento iniciado com o auto de infração poderão ser usadas fórmulas impressas, especificando-se a natureza e as circunstâncias da infração.

§ 2º Sempre que possível, à verifica-ção da infração seguir-se-á a lavratura do auto, ou este será lavrado dentro de 24 (vinte e quatro) horas, por motivo justifi-cado.

Art. 61. O autuado terá prazo de 10 (dez) dias para a apresentação da defesa, contado da data da intimação, que será feita:

I – pelo autuante, no instrumento de autuação, quando for lavrado na presença do infrator;

II – por via postal, com aviso de rece-bimento.

Art. 62. Havendo risco para a vida ou à saúde do idoso, a autoridade competente aplicará à entidade de atendimento as sanções regulamentares, sem prejuízo da iniciativa e das providências que vierem a ser adotadas pelo Ministério Público ou pelas demais instituições legitimadas para a fiscalização.

Art. 63. Nos casos em que não houver risco para a vida ou a saúde da pessoa idosa abrigada, a autoridade competente aplicará à entidade de atendimento as sanções regulamentares, sem prejuízo da iniciativa e das providências que vierem a ser adotadas pelo Ministério

Público ou pelas demais instituições legitimadas para a fiscalização.

CAPÍTULO VI

Da Apuração Judicial de Irregularidades em Entidade de Atendimento Art. 64. Aplicam-se, subsidiariamente,

ao procedimento administrativo de que trata este Capítulo, as disposições das Leis nº 6.437, de 20 de agosto de 1977, e 9.784, de 29 de janeiro de 1999.

Art. 65. O procedimento de apuração de irregularidade em entidade governamental e não-governamental de atendimento ao idoso terá início mediante petição fundamentada de pessoa interessada ou iniciativa do Ministério Público.

Art. 66. Havendo motivo grave, poderá a autoridade judiciária, ouvido o Ministério Público, decretar liminarmente o afastamento provisório do dirigente da entidade ou outras medidas que julgar adequadas, para evitar lesão aos direitos do idoso, mediante decisão fundamentada.

Art. 67. O dirigente da entidade será citado para, no prazo de 10 (dez) dias, oferecer resposta escrita, podendo juntar documentos e indicar as provas a produzir.

Art. 68. Apresentada a defesa, o juiz procederá na conformidade do art. 69 ou, se necessário, desig-

201

ESTATUTO DO IDOSO

nará audiência de instrução e julgamento, deliberando sobre a necessidade de produção de outras provas.

§ 1º Salvo manifestação em audiên-cia, as partes e o Ministério Público terão 5 (cinco) dias para oferecer alegações finais, decidindo a autoridade judiciária em igual prazo.

§ 2º Em se tratando de afastamen-to provisório ou definitivo de dirigente de entidade governamental, a autoridade judiciária oficiará a autoridade administra-tiva imediatamente superior ao afastado, fixando-lhe prazo de 24 (vinte e quatro) horas para proceder à substituição.

§ 3º Antes de aplicar qualquer das medidas, a autoridade judiciária poderá fixar prazo para a remoção das irregulari-dades verificadas. Satisfeitas as exigências, o processo será extinto, sem julgamento do mérito.

§ 4º A multa e a advertência serão impostas ao dirigente da entidade ou ao responsável pelo programa de atendimen-to.

TÍTULO V

Do Acesso à Justiça

CAPÍTULO I

Disposições GeraisArt. 69. Aplica-se, subsidiariamente, às

disposições deste Capítulo, o procedimento sumário previsto no Código de Processo Civil, naquilo que não contrarie os prazos previstos nesta Lei.

Art. 70. O Poder Público poderá criar varas especializadas e exclusivas do idoso.

Art. 71. É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância.

§ 1º O interessado na obtenção da prioridade a que alude este artigo, fazendo prova de sua idade, requererá o benefí-cio à autoridade judiciária competente para decidir o feito, que determinará as providências a serem cumpridas, anotan-do-se essa circunstância em local visível nos autos do processo.

§ 2º A prioridade não cessará com a morte do beneficiado, estendendo-se em favor do cônjuge supérstite, companheiro ou companheira, com união estável, maior de 60 (sessenta) anos.

§ 3º A prioridade se estende aos pro-cessos e procedimentos na Administração Pública, empresas prestadoras de serviços públicos e instituições financeiras, ao aten-dimento preferencial junto à Defensoria Publica da União, dos Estados e do Distrito Federal em relação aos Serviços de Assistência Judiciária.

§ 4º Para o atendimento priori-tário será garantido ao idoso o fácil acesso aos assentos e caixas, identificados com a destinação a idosos em local visível e caracteres legíveis.

CAPÍTULO II

Do Ministério PúblicoArt. 72. (VETADO)

Art. 73. As funções do Ministério Público, previstas nesta Lei, serão exercidas nos termos da respectiva Lei Orgânica.

202

IDÉIAS & LEIS

Art. 74. Compete ao Ministério Público:

I – instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso;

II – promover e acompanhar as ações de alimentos, de interdição total ou parcial, de designação de curador especial, em circunstâncias que justifiquem a medida, e oficiar em todos os feitos em que se discu-tam os direitos de idosos em condições de risco;

III – atuar como substituto processual do idoso em situação de risco, conforme o disposto no art. 43 desta Lei;

IV – promover a revogação de instru-mento procuratório do idoso, nas hipóte-ses previstas no art. 43 desta Lei, quando necessário ou o interesse público justificar;

V – instaurar procedimento adminis-trativo e, para instrui-lo:

a) expedir notificações, colher depoi-mentos ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado da pes-soa notificada, requisitar condução coerci-tiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar;

b) requisitar informações, exames, perí-cias e documentos de autoridades munici-pais, estaduais e federais, da administração direta e indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias;

c) requisitar informações e documen-tos particulares de instituições privadas;

VI – instaurar sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, para a apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção ao idoso;

VII – zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados ao idoso, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis;

VIII – inspecionar as entidades públi-cas e particulares de atendimento e os programas de que trata esta Lei, adotando de pronto as medidas administrativas ou judiciais necessárias à remoção de irregu-laridades porventura verificadas;

IX – requisitar força policial, bem como a colaboração dos serviços de saúde, educacionais e de assistência social, públi-cos, para o desempenho de suas atri-buições;

X – referendar transações envolvendo interesses e direitos dos idosos previstos nesta Lei.

§ 1º A legitimação do Ministério Público para as ações cíveis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mes-mas hipóteses, segundo dispuser a lei.

§ 2º As atribuições constantes deste artigo não excluem outras, desde que com-patíveis com a finalidade e atribuições do Ministério Público.

§ 3º O representante do Ministério Público, no exercício de suas funções, terá livre acesso a toda entidade de atendimen-to ao idoso.

Art. 75. Nos processos e procedimentos em que não for parte, atuará obrigatoriamente o Ministério Público na defesa dos direitos e interesses de que cuida esta Lei, hipóteses em que terá vista dos autos depois das partes, podendo juntar documentos, requerer diligências e produção de outras provas, usando os recursos cabíveis.

203

ESTATUTO DO IDOSO

Art. 76. A intimação do Ministério Público, em qualquer caso, será feita pessoalmente.

Art. 77. A falta de intervenção do Ministério Público acarreta a nulidade do feito, que será declarada de ofício pelo juiz ou a requerimento de qualquer interessado.

CAPÍTULO III

Da Proteção Judicial dos Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Indisponíveis ou Homogêneos Art. 78. As manifestações processuais

do representante do Ministério Público deverão ser fundamentadas.

Art. 79. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados ao idoso, referentes à omissão ou ao oferecimento insatisfatório de:

I – acesso às ações e serviços de saúde;

II – atendimento especializado ao idoso portador de deficiência ou com limi-tação incapacitante;

III – atendimento especializado ao idoso portador de doença infecto-conta-giosa;

IV – serviço de assistência social visando ao amparo do idoso.

Parágrafo único. As hipóteses previs-tas neste artigo não excluem da proteção judicial outros interesses difusos, coletivos, individuais indisponíveis ou homogêneos, próprios do idoso, protegidos em lei.

Art. 80. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do domicílio do idoso, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalva-das as competências da Justiça Federal e a competência origi-nária dos Tribunais Superiores.

Art. 81. Para as ações cíveis fundadas em interesses difusos, coletivos, individuais indisponíveis ou homogêneos, consideram-se legitimados, concorrentemente:

I – o Ministério Público;

II – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

III – a Ordem dos Advogados do Brasil;

IV – as associações legalmente constituídas há pelo menos 1 (um) ano e que incluam entre os fins institu-cionais a defesa dos interesses e direitos da pessoa idosa, dispensada a autorização da assembléia, se houver prévia autorização estatutária.

§ 1º Admitir-se-á litisconsórcio faculta-tivo entre os Ministérios Públicos da União e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta Lei.

§ 2º Em caso de desistência ou aban-dono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado deverá assumir a titularidade ativa.

Art. 82. Para defesa dos interesses e direitos protegidos por esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ação pertinentes.

Parágrafo único. Contra atos ilegais ou abusivos de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições

204

IDÉIAS & LEIS

de Poder Público, que lesem direito líquido e certo previsto nesta Lei, caberá ação man-damental, que se regerá pelas normas da lei do mandado de segurança.

Art. 83. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não-fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento.

§ 1º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, na forma do art. 273 do Código de Processo Civil.

§ 2º O juiz poderá, na hipótese do § 1º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente do pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 3º A multa só será exigível do réu após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado.

Art. 84. Os valores das multas previstas nesta Lei reverterão ao Fundo do Idoso, onde houver, ou na falta deste, ao Fundo Municipal de Assistência Social, ficando vinculados ao atendimento ao idoso.

Parágrafo único. As multas não recolhidas até 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da decisão serão exigi-das por meio de execução promovida pelo Ministério Público, nos mesmos autos, facultada igual iniciativa aos demais legiti-mados em caso de inércia daquele.

Art. 85. O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte.

Art. 86. Transitada em julgado a sentença que impuser condenação ao Poder Público, o juiz determinará a remessa de peças à autoridade competente, para apuração da responsabilidade civil e administrativa do agente a que se atribua a ação ou omissão.

Art. 87. Decorridos 60 (sessenta) dias do trânsito em julgado da sentença condenatória favorável ao idoso sem que o autor lhe promova a execução, deverá fazê-lo o Ministério Público, facultada, igual iniciativa aos demais legitimados, como assistentes ou assumindo o pólo ativo, em caso de inércia desse órgão.

Art. 88. Nas ações de que trata este Capítulo, não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas.

Parágrafo único. Não se imporá sucumbência ao Ministério Público.

Art. 89. Qualquer pessoa poderá, e o servidor deverá, provocar a iniciativa do Ministério Público, prestando-lhe informações sobre os fatos que constituam objeto de ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção.

Art. 90. Os agentes públicos em geral, os juízes e tribunais, no exercício de suas funções, quando tiverem conhecimento

205

ESTATUTO DO IDOSO

de fatos que possam configurar crime de ação pública contra idoso ou ensejar a propositura de ação para sua defesa, devem encaminhar as peças pertinentes ao Ministério Público, para as providências cabíveis.

Art. 91. Para instruir a petição inicial, o interessado poderá requerer às autoridades competentes as certidões e informações que julgar necessárias, que serão fornecidas no prazo de 10 (dez) dias.

Art. 92. O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer pessoa, organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias.

§ 1º Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas as diligências, se con-vencer da inexistência de fundamento para a propositura da ação civil ou de peças informativas, determinará o seu arquiva-mento, fazendo-o fundamentadamente.

§ 2º Os autos do inquérito civil ou as peças de informação arquivados serão remetidos, sob pena de se incorrer em falta grave, no prazo de 3 (três) dias, ao Conselho Superior do Ministério Público ou à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público.

§ 3º Até que seja homologado ou rejeitado o arquivamento, pelo Conselho Superior do Ministério Público ou por Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público, as associações legiti-

madas poderão apresentar razões escritas ou documentos, que serão juntados ou anexados às peças de informação.

§ 4º Deixando o Conselho Superior ou a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público de homologar a pro-moção de arquivamento, será designado outro membro do Ministério Público para o ajuizamento da ação.

TÍTULO VI

Dos Crimes

CAPÍTULO I

Disposições GeraisArt. 93. Aplicam-se subsidiariamente,

no que couber, as disposições da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.

Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal.

CAPÍTULO II

Dos Crimes em EspécieArt. 95. Os crimes definidos nesta Lei

são de ação penal pública incondicionada, não se lhes aplicando os arts. 181 e 182 do Código Penal.

Art. 96. Discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias,

206

IDÉIAS & LEIS

aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania, por motivo de idade:

Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

§ 1º Na mesma pena incorre quem desdenhar, humilhar, menosprezar ou dis-criminar pessoa idosa, por qualquer motivo.

§ 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço) se a vítima se encontrar sob os cuidados ou responsabilidade do agente.

Art. 97. Deixar de prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, em situação de iminente perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua assistência à saúde, sem justa causa, ou não pedir, nesses casos, o socorro de autoridade pública:

Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

Parágrafo único. A pena é aumenta-da de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

Art. 98. Abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado:

Pena – detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa.

Art. 99. Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a

condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado:

Pena – detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano e multa.

§ 1º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

§ 2º Se resulta a morte:

Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.

Art. 100. Constitui crime punível com reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa:

I – obstar o acesso de alguém a qualquer cargo público por motivo de idade;

II – negar a alguém, por motivo de idade, emprego ou trabalho;

III – recusar, retardar ou dificultar atendimento ou deixar de prestar assistên-cia à saúde, sem justa causa, a pessoa idosa;

IV – deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida na ação civil a que alude esta Lei;

V – recusar, retardar ou omitir dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil objeto desta Lei, quando requi-sitados pelo Ministério Público.

Art. 101. Deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial

207

ESTATUTO DO IDOSO

expedida nas ações em que for parte ou interveniente o idoso:

Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

Art. 102. Apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa da de sua finalidade:

Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.

Art. 103. Negar o acolhimento ou a permanência do idoso, como abrigado, por recusa deste em outorgar procuração à entidade de atendimento:

Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

Art. 104. Reter o cartão magnético de conta bancária relativa a benefícios, proventos ou pensão do idoso, bem como qualquer outro documento com objetivo de assegurar recebimento ou ressarcimen-to de dívida:

Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa.

Art. 105. Exibir ou veicular, por qualquer meio de comunicação, informações ou imagens depreciativas ou injuriosas à pessoa do idoso:

Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.

Art. 106. Induzir pessoa idosa sem discernimento de seus atos a outorgar procuração para fins de administração de bens ou deles dispor livremente:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

Art. 107. Coagir, de qualquer modo, o idoso a doar, contratar, testar ou outorgar procuração:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

Art. 108. Lavrar ato notarial que envolva pessoa idosa sem discernimento de seus atos, sem a devida representação legal:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

TÍTULO VII

Disposições Finais e TransitóriasArt. 109. Impedir ou embaraçar ato do

representante do Ministério Público ou de qualquer outro agente fiscalizador:

Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

Art. 110. O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 61. ....................................................

II - .....................................................

h) contra criança, maior de 60 (sessenta) anos, enfermo ou mulher grávida;

.................................................................”

“Art. 121. ..................................................

§ 4º No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a

208

IDÉIAS & LEIS

pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.

...................................................................

“Art. 133. ..................................................

§ 3º ...................................................

III – se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos.”

“Art. 140. .........................................

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

..................................................................

“Art. 141. .........................................

IV – contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência, exceto no caso de injúria.

..........................................................

“Art. 148. .........................................

§ 1º...................................................

I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge do agente ou maior de 60 (sessenta) anos.

..................................................................

“Art. 159...........................................

§ 1º Se o seqüestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas, se o seqüestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido por bando ou quadrilha.

..........................................................

“Art. 183...........................................

III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.” (NR)

“Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo:

......................................................” ;

Art. 111. O art. 21 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, Lei das Contravenções Penais, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:

“Art. 21.............................................

Parágrafo único. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos.” (NR)

Art. 112. O inciso II do § 4º do art. 1º da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 1º .............................................

§ 4º ..................................................

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;

......................................................” ;

Art. 113. O inciso III do art. 18 da Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, passa a vigorar com a seguinte redação:

209

ESTATUTO DO IDOSO

“Art. 18.............................................

III – se qualquer deles decorrer de associação ou visar a menores de 21 (vinte e um) anos ou a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos ou a quem tenha, por qualquer causa, diminuída ou suprimida a capacidade de discernimento ou de autodeterminação:

......................................................” ;

Art. 114. O art. 1º da Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 1º As pessoas portadoras de deficiência, os idosos com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, as gestantes, as lactantes e as pessoas acompanhadas por crianças de colo terão atendimento prioritário, nos termos desta Lei”.(NR)

Art. 115. O Orçamento da Seguridade Social destinará ao Fundo Nacional de Assistência Social, até que o Fundo Nacional do Idoso seja criado, os recursos necessários, em cada exercício financeiro, para aplicação em programas e ações relativos ao idoso.

Art. 116. Serão incluídos nos censos demográficos dados relativos à população idosa do País.

Art. 117. O Poder Executivo encaminhará ao Congresso Nacional projeto de lei revendo os critérios de concessão do Benefício de Prestação Continuada previsto na Lei Orgânica da Assistência Social, de forma a garantir que o acesso ao direito seja condizente com o estágio

de desenvolvimento sócio-econômico alcançado pelo País.

Art. 118. Esta Lei entra em vigor decorridos 90 (noventa) dias da sua publicação, ressalvado o disposto no caput do art. 36, que vigorará a partir de 1º de janeiro de 2004.

Brasília, 1º de outubro de 2003; 182º da Independência e 115º da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Márcio Thomaz Bastos

Antonio Palocci Filho

Rubem Fonseca Filho

Humberto Sérgio Costa Lima

Guido Mantega

Ricardo José Ribeiro Berzoini

Benedita Souza da Silva Sampaio

Álvaro Augusto Ribeiro Costa

210

IDÉIAS E LEIS

Vida Nova para os Idosos

A mudança do perfil demográfico atualmente observado na população bra-sileira, que aos poucos vai fazendo o Brasil perder aquela marca que o caracterizava como um “país de jovens” e nos inserin-do entre aquelas nações desenvolvidas, que já a partir do século 19 começaram a aumentar a expectativa de vida de suas populações – pelo desenvolvimento tec-nológico, pela melhoria da qualidade de vida, das condições sanitárias, de trabalho, de moradia, pelo avanço da medicina, uso de vacinas e medicamentos e uma nutri-ção mais adequada – de certa forma nos motiva como povo, mas seguramente não chega a nos orgulhar como cidadãos.

Durante todo o século passado, a expectativa de vida da população brasilei-ra saltou de pouco mais de 33 anos para até 70 anos de idade para as mulheres e próximo de 65 anos para os homens. Esse rápido envelhecimento da nossa popula-ção, além de ser uma novidade, pegou a sociedade como um todo de surpresa, e o mais grave, completamente despreparada para se relacionar com as pessoas mais idosas. O resultado desse despreparo vem sendo estampado quase diariamente em nossos meios de comunicação, ao registrar a crescente violência a que vêm sendo submetidos nossos idosos.

(*) O Senador Paulo Paim é o autor do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003).

* PAULO PAIM

Jó e suas filhas - William Blake

211

O Brasil é um país onde a marginaliza-ção dos idosos tem raízes antigas e estão se aprofundado com o passar do tempo. No mercado de trabalho, eles são prematura-mente excluídos, estão abalados em sua auto-imagem e sobrevivência pelo des-caso do governo e muitas vezes carecem do amparo da família. Lamentavelmente, é preciso reconhecer que em nosso país o idoso está sendo marginalizado. Ele é despedido, abandonado, excluído, rejei-tado, roubado, violentado e morto. Pobre ou rico, dotado de cultura ou ignorante, o idoso é vítima e pouco reclama da vio-lência que sofre. Não denuncia os maus-tratos porque, na maioria dos casos, divide com seus algozes o mesmo teto. Não raro sua própria renda lhe é subtraída pelos próprios filhos, netos ou sobrinhos, que estabelecem uma verdadeira rotina de violência sob a proteção dos laços fami-liares.

Isso torna “invisível” a agressão con-tra o idoso, que tem medo de denunciar e ser mandado para um asilo, ou procura a todo custo evitar que o assunto ultrapasse os limites do lar. Por medo ou até mesmo por amor aos seus descendentes, os idosos guardam em segredo a violência de que são vítimas.

As estatísticas das entidades que atendem pessoas da terceira idade indicam que, no ano passado, cerca de 15 mil bra-sileiros e brasileiras com mais de 60 anos foram vítimas de espancamentos, torturas, abusos sexuais e, em muitos casos, indu-zidos ao suicídio. Nos hospitais públicos, 32% dos idosos atendidos foram vítimas de algum tipo de agressão, praticada, em 90% dos casos, dentro de casa, pelos seus próprios parentes.

A busca de solução para esses problemas nos inspirou a propor ao

Congresso Nacional o Estatuto do Idoso, projeto de nossa iniciativa apresentado em 1997, quando do exercício do mandato de deputado federal, e transformado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, em vigor desde 1º de janeiro de 2004.

De uma proposta original de cerca de 40 artigos, o projeto mereceu a criação de uma Comissão Especial do Estatuto do Idoso, onde recebeu e teve aprovado o brilhante substitutivo do relator Silas Brasileiro, de 123 artigos.

A Comissão Especial do Idoso viajou muito por este País para ouvir a sociedade e também os idosos, de forma individual.Seu trabalho nos proporcionou momentos de tristeza e alegria.

De tristeza, ao perceber que o aban-dono, as agressões, as apropriações dos bens dos idosos são alarmantes. Um dado que nos deixou ainda mais perplexos é que a agressão, em 90% dos casos, vem da própria família.

Mas tivemos também momentos de alegria, ao ver o brilho no olhar, nos cabe-los prateados de homens e mulheres, o brilho da esperança, do otimismo, não se deixando derrotar pelos pessimistas ou pelo medo da realidade em que vivem.

O texto final do Estatuto é fruto dos trabalhos dessa Comissão, de seminários e de um trabalho conjunto de parlamenta-res, especialistas, profissionais das áreas de saúde, do direito e da assistência social, e de entidades e organizações não-gover-namentais voltadas para a defesa dos direi-tos e da proteção aos idosos. Ele se propõe a alterar esse quadro atual da situação do idoso, em que se destacam a negligência, o descaso e a violência a que são subme-tidos.

212

IDÉIAS E LEIS

Sua elaboração foi imaginada como um recurso pleno para os idosos, aposen-tados ou não. O Estatuto define o idoso brasileiro como aquele que alcançou os 60 anos de idade. Estabelece como dever da família, da comunidade, da sociedade em geral, e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetiva-ção dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberda-de, à dignidade, ao respeito e à convivên-cia familiar e comunitária.

Considera a velhice um direito perso-nalíssimo e a sua proteção, uma obrigação social. Garante ao idoso a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um enve-lhecimento saudável e em condições de dignidade.

O Estatuto assegura ao idoso a liber-dade, o respeito e a dignidade como pes-soa humana. A obrigação de alimentar o idoso deve ser solidária e as transações relativas a alimentos poderão ser celebradas perante o Promotor de Justiça e passarão a ter efeito de título executivo extrajudicial nos termos da Lei de Processo Civil.

O documento prevê o respeito à inserção do idoso no mercado de trabalho e à profissionalização, tendo em vista suas condições físicas, intelectuais e psíquicas, pois eles podem e devem contribuir com a sua experiência para o crescimento do País. O acesso à cultura, ao esporte e ao lazer está presente com propostas e pro-gramas voltados para esta fase da vida. Estão também asseguradas políticas de prevenção, promoção, proteção e recupe-ração da saúde do idoso.

O Estatuto estabelece o direito à saúde integral do idoso, que prevê: progra-mas de assistência médica e odontológica;

atenção às doenças específicas dos idosos; vacinas para prevenção; cadastramento da população idosa; atendimento domi-ciliar, quando necessário; fornecimento gratuito de medicamentos (inclusive próte-ses, habilitação ou reabilitação); vedação da cobrança diferenciada nos planos de saúde, em razão da idade; assistência ime-diata e prioritária onde está assegurada a atenção integral, bem como políticas de prevenção, promoção, proteção e recupe-ração da saúde do idoso.

No capítulo reservado à Previdência Social, prevê-se a vinculação das aposen-tadorias e pensões ao salário-mínimo; a garantia de um salário-mínimo para todo o idoso que a renda mensal per capita da família não ultrapasse o piso salarial (hoje é 1/4 do salário-mínimo); a garantia de que o aposentado receba sempre o mesmo número de salários-mínimos que recebia na época em que se aposentou. Estabelece o Dia Internacional do Trabalho – 1º de maio – como data-base dos aposentados e pensionistas.

O Estatuto garante ao idoso, a partir dos 65 anos de idade, que não possua meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, o benefício mensal de um salário-mínimo. Assegura o direito à moradia digna, no seio da família natural ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares, quando assim o dese-jar, ou, ainda, em instituição pública ou privada.

O Estatuto do Idoso também garante aos maiores de 65 anos de idade a gratui-dade nos transportes coletivos públicos, urbanos e semi-urbanos. Para acesso a essa gratuidade, é suficiente a apresentação de documento de prova de identidade.

O Estatuto do Idoso amplia os direi-tos presentes na Lei nº 8.842/94 - Política

213

PAULO PAIM

Nacional do Idoso. Esta Lei é fundamental, mas o novo diploma a amplia, quando tipifica os crimes e define as penas para todos os que desrespeitarem o idoso. No novo diploma, a política de atendimento ao idoso será feita por meio do conjunto articulado de ações governamentais e não- governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Poderíamos destacar todos os artigos desse Estatuto como sendo fundamentais, pois cada um é o resultado de uma gran-de reflexão e observação da realidade em que vive o idoso brasileiro. É também uma proposta ousada que amplia direitos e leva para o futuro melhores condições de vida à terceira idade.

Segundo o IBGE, entre 1991 e 2000, o contingente de pessoas com 60 anos ou mais subiu de 10,7 milhões para 14,5 milhões,um aumento de 35,5% em uma década. Nos próximos 20 anos, os ido-sos brasileiros poderão ultrapassar os 30 milhões de pessoas e deverão representar quase 13% da população. Trata-se da maior massa de idosos de uma geração de brasileiros. A proporção de idosos está crescendo mais rapidamente que a de crianças. Em 1980, existiam cerca de 16 idosos para cada 100 crianças. Em 2000, essa relação praticamente dobrou, passando para quase 30 idosos por 100 crianças. O quadro é similar para toda a América Latina. Hoje, aproximadamente 41 milhões de pessoas têm mais de 60 anos no continente. Elas serão 98 milhões, em 2025, e 184 milhões, em 2050.

Pesquisa recente do Ipea aponta a crescente importância dos idosos brasilei-ros no sustento de suas famílias. Resultado do progressivo desemprego de filhos e netos, são os avós que cada vez mais, com suas pensões, mantêm o resto da família.

Há menos idosos abaixo da linha de pobre-za do que em qualquer outra faixa etária. Em apenas 4% dos domicílios do país, eles vivem como dependentes. Em 22%, chefiam a casa, muitas vezes, repleta de descendentes. Em 70% dos domicílios de idosos foi verificada a presença de filhos. Pesquisa conduzida por Paulo Saad, do Programa de Envelhecimento da Divisão de População das Nações Unidas, mostrou que, em Fortaleza, 52% dos idosos entrevis-tados ajudavam os filhos financeiramente.

Esses números ratificam o levanta-mento Perfil dos Idosos Responsáveis pelos Domicílios no Brasil - elaborado pelo IBGE a partir dos dados do Censo de 2000. O levantamento conclui que a população com mais de 60 anos conquistou, na última década, uma maior importância econômica. Em 2000, 62,4% desse con-tingente mantinha a condição de chefe de família, no Brasil. Em 1991, esse percentu-al se limitava a 60,4%.

Um estudo de Vânia Cristina Liberato, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mostra que, em 1978, 26% dos aposentados e 13% das aposentadas mora-dores de regiões urbanas continuavam com algum tipo de ocupação. Em 1999, essas taxas subiram para 33% e 21%, respectivamente. O trabalho mostra que a atividade do aposentado aumenta com seu grau de escolaridade.

O Brasil é um país que envelhece a passos largos. Entretanto, a infra-estrutura para responder às demandas da população de idosos em termos de instalações, pro-gramas e mesmo adequação urbana das cidades, está muito aquém do desejável.

A região Sudeste concentra a maior parte da população de idosos. Segundo o mapa elaborado pelo censo 2000, 6,37% da população residente no Sudeste é com-

214

posta por pessoas com 65 anos ou mais. Seguido pela região Sul (6,22%), Nordeste (5,85%), Centro-Oeste (4,27%) e Norte (3,64%). No entanto, a região Centro-Oeste se destaca pelo maior crescimento relativo (30,58%) na proporção, nessa faixa etária.

Mas o Sul tem a maior proporção de idosos. As cidades campeãs são Colinas e Santa Tereza, ambas no Rio Grande do Sul. A primeira tem 15,60% da população com idade igual ou superior a 65 anos. Na segunda, o percentual é de 15,21%. No pólo extremo estão dois municípios do Mato Grosso. União do Sul e Sapezal têm a menor proporção de pessoas com idade avançada: 0,64% e 0,98%, respectivamente.

Um país com população concentrada nas cidades e número cada vez maior de idosos. Esse será o retrato do Brasil, em 2015, traçado a partir do Relatório do Desenvolvimento Humano 2001, que projetou as tendências do crescimento demográfico do país.

A taxa de crescimento anual da população brasileira (1,1%) deverá acompanhar a média mundial, estimada em 1,2% para o período de 1999 a 2015. É um percentual três vezes maior que o dos países com elevado percentual de desenvolvimento humano, que se situa em 0,4%. A população do Brasil, que tem 170 milhões de habitantes, deve alcançar os 201,4 milhões em 2015.

O crescimento da população urbana, tendência mundial, também se acentuará no Brasil. O percentual de 80,7% da população que hoje vive em centros urbanos brasileiros deve subir para 86,5%. No mundo, a estimativa é mais modesta: de 46,5% para 53,2%.

O número de brasileiros de até 15 anos, que em 1999 correspondiam a 29,3%

da população, deve baixar para 24,3%. A taxa de fertilidade feminina também deve acompanhar a queda, declinando de 4,7% para 2,3%. Em contrapartida, a expectativa é de que a população de idosos aumente. Hoje, os idosos correspondem a 5% dos habitantes. Em 2015, deverão ser 7,3%.

Esses números falam por si e nos apresentam o grande desafio que é a questão do idoso. Será que os jovens têm plena consciência de que serão os idosos de amanhã? Será que entendem que a forma de tratamento que dispensam hoje aos mais velhos é a mesma que lhes está reservada no futuro? Tenho dito que se não aprendermos a respeitar nosso pai, nosso avô, nosso bisavô, não mereceremos respeito no futuro.

A vida, na sua sabedoria, nos ensina que os mais velhos são os mais sábios. A sabedoria milenar diz que “a vida é fruto da energia do Universo”.

Essa energia acompanha a Lei de Causa e Efeito. O caminho que precisamos construir é o da generosidade. É o da solidariedade entre as gerações. Até porque, o jovem de hoje será o idoso de amanhã.O Estatuto do Idoso tem o sentido de dar cidadania plena à nossa velhice.

É esta população que passa a ser assistida com a transformação em lei do Estatuto do Idoso. Uma população que muitas vezes deveria já estar descansando, mas que ainda participa da promoção do nosso desenvolvimento.

E que nem por isso é compreendida. Na verdade, é agredida nos seus direitos mais básicos. Até pelo despreparo de uma sociedade que não soube conviver com o rápido envelhecimento de sua população, mas que agora, com o Estatuto do Idoso, terá de rever atos, comportamentos, e mudar o seu trato com os mais velhos.

IDÉIAS E LEIS

215

O Acesso do Idoso ao Judiciário

Somente após o país completar qui-nhentos anos, vem a lume uma Lei que ampara os idosos brasileiros, denominada Estatuto do Idoso, materializado pela Lei nº 10.741/03, a qual possui uma similitu-de com aquela que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, qual seja, tramitou por mais de sete anos na Casa Legislativa.

O Estatuto do Idoso ingressa no orde-namento jurídico nacional com o com-promisso de traçar uma linha divisória no comportamento de todos os cidadãos, agentes públicos e privados em face aos idosos. A nova Lei explicita as regras programáticas constantes no art. 230 da Constituição, dispondo, nos termos do art. 2º, que devem ser assegurados aos idosos

*Ministra do Superior Tribunal de justiça.

DAVID FLEISCHER** FÁTIMA NANCY ANDRIGHI IDÉIAS E LEIS

A Morte de Fogo - Paul Klee

216

“todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberda-de e dignidade”; o art. 3º explicita a quem incumbe garantir com absoluta prioridade, referidos deveres: à família, à comunidade, à sociedade e ao Poder Público.

A Lei que dispõe sobre o Estatuto do Idoso está estruturada em sete Títulos a saber: Título I – Das Disposições Preliminares; Título II – Dos Direitos Fundamentais, este composto de dez Capítulos; Título III – Das Medidas de Proteção, subdividido em dois Capítulos; Título IV – Da Política de Atendimento ao Idoso, com seis Capítulos; Título V – Do Acesso à Justiça, disciplinado em três Capítulos; Título VI – Dos Crimes, com dois Capítulos; e Título VII – Das Disposições Finais e Transitórias, enfeixando 118 artigos.

Este singelo ensaio tem a finalidade de planear, sem pretensão de oferecer soluções, e, apenas a título de sugestão, apontar as imprescindíveis providências a serem tomadas pelas administrações de todos os tribunais com o objetivo de cumprir a contento o Título V do Estatuto do Idoso, que garante o acesso à Justiça.

O dever de facilitar ao idoso o acesso ao Poder Judiciário mereceu destaque em Título específico, “Do acesso à Justiça”, porque, sem dúvida, é uma das questões relevantes na vida de todos os cidadãos e, com muito mais ênfase, na de nossos idosos.

Os obstáculos enfrentados para solucionar problemas de natureza jurídica, bem como a demora na tramitação e julgamento dos processos, podem causar males psicossomáticos à saúde dos litigantes, conseqüência comprovada

cientificamente, decorrentes da aflição e da angústia geradas durante a infindável espera na definição da pendenga judicial.

Urge reconhecer que o idoso brasileiro passa por inumeráveis dificuldades e impedimentos quando busca exercer seus direitos por meio do processo judicial. O tormento principia pelas dificuldades mais elementares que são a busca e a obtenção de orientação jurídica segura e adequada. O ajuizamento de um processo exige condições econômicas para custeá-lo, caso contrário dependerá da assistência judiciária gratuita, cujo trabalho será feito pelas Defensorias Públicas estaduais.

Não se pode ignorar a insegurança e também o sentimento de inferioridade que transpassam o coração de um idoso quando depende da assistência judiciária gratuita para ajuizar ação ou se defender em juízo. Muito embora se reconheça o esforço hercúleo despendido pelos Defensores Públicos no exercício da suas funções, é sabido que não conseguem atender satisfatoriamente a avalanche de demandas a que são submetidos. Essa ineficiência se deve à precariedade das instalações, à falta de instrumentos de trabalho e, principalmente, ao insuficiente número de defensores. Sobre esse órgão, tão importante para a concretização do direito de acesso à Justiça, é importante frisar que a instalação e a manutenção são incumbências exclusivas do Poder Público, deveres até agora não cumpridos satisfatoriamente.

Ainda a propósito do papel das Defensorias Públicas, é preciso fazer um intenso e eficiente trabalho de esclarecimento à população em geral e, no caso, especialmente aos idosos que não puderem custear um processo, de que

IDÉIAS E LEIS

217

FÁTIMA NANCY ANDRIGHI

sempre dependerão das providências, do trabalho prévio dos Defensores Públicos. É preciso continuamente avisar todo idoso que os juízes só podem agir no sentido de dar-lhe proteção e tomar providências em defesa dos seus direitos, a partir do momento em que forem provocados por meio de requerimentos dos Defensores Públicos ou Advogados.

De todo o exposto, ficam para nós a reflexão e o questionamen-to acerca da possibilidade de ser cumprido satisfatoriamente o Título V do Estatuto, por-quanto os idosos dependerão do indispensável trabalho prévio de outros segmentos jurídicos para fazer chegar às mãos do juiz uma peti-ção inicial, uma resposta ou um pedido de providên-cia acautelatória.

Restrito o nosso exame apenas às questões jurídicas no campo cível, observa-se, no art. 69 do Estatuto do Idoso, a opção do legislador em não adotar o procedimento sumário como rito obrigatório para todos os litígios que envolverem partes ou ter-ceiros idosos, indicando sua aplicação em caráter subsidiário, de forma meramente residual, ou no vácuo de norma específica, acrescida a ressalva de inaplicabilidade quando contrariar os prazos previstos na referida Lei.

Considerando que o procedimento sumário se caracteriza pela concentra-ção de atos processuais embutidos numa mesma fase do processo, visando assegu-rar-lhe celeridade sem omitir nenhum ato processual, o que viria a ferir o princípio constitucional do devido processo legal,

pensamos que a aplicação na forma subsi-diária subtrairá inúmeros benefícios à cele-ridade. Carreando apenas um exemplo, indicamos o proveito do pedido contra-posto a ser formulado na contestação, evi-tando um segundo processo para alcançar eventual direito do réu em face do autor.

Na verdade, o Estatuto do Idoso, em matéria processual, não instituiu nenhuma

norma singular que agilize o processo e o procedimento, apenas repetin-

do, no art. 71, a prioridade na tramitação e cumprimento de diligências judiciais em que figure como parte ou inter-veniente pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos, em qualquer instân-cia. Desse benefício, ressal-te-se, os idosos já desfrutam há algum tempo, mas, reco-nhecidamente, ele se mos-tra insuficiente para alcan-çar o objetivo da aceleração necessária à marcha pro-

cessual.

É justificado o receio porque sequer se garantiu, por

exemplo, o cumprimento de uma sentença condenatória com a exigên-

cia prévia de depósito do valor devido ou com a antecedente entrega da coisa como condição “sine qua non” para que a parte vencida possa interpor recurso, tampouco se eliminou o efeito suspensivo dos mesmos. Essas são apenas duas regras processuais que, se adotadas, provocariam uma verdadeira revolução na proteção dos direitos dos idosos litigantes, sem esquecer o caráter didático que produziria na inter-posição de recursos.

Impõe-se, porém, louvar a proficien-te disciplina direcionada às ações referen-

“Não se pode ignorar

a insegurança e também o sentimen-

to de inferioridade que transpassam o coração de um idoso quando depende da assistên-cia judiciária gratuita para ajuizar ação

ou se defender em juízo”.

218

tes aos interesses difusos, coletivos e indi-viduais, indisponíveis ou homogêneos, por ter ampliado sobremaneira a legiti-midade para a propositura de tais ações, providência que fortalecerá a defesa do direito dos idosos, salientando-se o expressivo aumento do alcance do trabalho preventivo a ser implementado pelos membros do Ministério Público. O Estatuto do Idoso depositou nas mãos do Ministério Público a esperança de concretização da tutela de seus direitos, valendo para os dignos integrantes dessa instituição as mesmas considerações feitas às iniciativas que deverão ser tomadas pelos Defensores Públicos. Temos a cer-teza de que eventuais omissões advindas das dificuldades de operacionalização das Defensorias Públicas poderão, a contento, ser supridas pelos ilustres membros do Ministério Público.

Enriquece o Estatuto do Idoso a dis-posição contida no art. 70, que permite ao Poder Público “criar varas especializa-das e exclusivas do idoso”, porque essa providência poderá atenuar os efeitos da ausência de regras processuais adequadas para a necessária agilização dos processos. Todavia, verifica-se que a criação das varas especializadas é, pela Lei, facultativa, o que causa inevitável inquietação, porque a decisão sempre dependerá da política de administração de cada tribunal.

Como se vê, destas singelas obser-vações, muitas dúvidas, carências, dificul-dades e falhas tendem a minar o imposter-gável cumprimento do Estatuto do Idoso, mas, humildemente, reconhecemos não ter a resposta que produza o efeito dese-jado para tamanha esperança plantada no coração dos nossos idosos. Vale ressaltar, para nossa meditação, que muitas vezes não é necessária uma nova Lei para que os direitos sejam garantidos; é muito mais

eficiente uma união de esforços, nos pla-nos espiritual e material, o que requer uma mudança na mente e no coração.

Não queremos com esse atino, com esse discernimento, até porque foram fei-tas apenas algumas observações na área cível, produzir arrefecimento no ânimo de trabalhar vigorosamente em comunhão com todos os segmentos jurídicos exigidos para a eficaz salvaguarda dos direitos dos idosos. O que se pretende é a remoção de eventuais obstáculos, a fim de distanciar o Estatuto do Idoso da linha conceitual de uma Lei programática para ser, efetivamen-te, uma Lei pragmática.

Para nós, juízes, fica, mais uma vez, a crucial incumbência de, mesmo com ins-trumento processual obsoleto, não permitir que a espera de obtenção do direito de todos os idosos ultrapasse o plano da vida terrena, rogando ao Alto que sempre nos inspire para o despertar da parcela de justi-ça divina que, tenho certeza, está ínsita no coração de cada juiz brasileiro.

IDÉIAS E LEIS

219

Palavras& História

Discurso do Deputado Ulysses Guimarães na instalação da Assembléia Nacional Constituinte, em 2 de fevereiro de 1987, e o comentário de Luiz Gutemberg

Acervo - Câmara dos Deputados

220

OS PROFETAS DO AMANHÃ

Prudente de Morais, meu conterrâ-neo e convizinho, pois o meu Rio Claro é coirmão de sua Piracicaba, assumia a Presidência da Assembléia Nacional Constituinte em 21 de novembro de 1890, no Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.

A 2 de fevereiro eu a assumo, em Brasília, como mandamento da Assembléia Nacional Constituinte de 1987.

Rogo a Deus que meu ofício de coor-denador isento da elaboração constituinte seja modelado na austeridade e na compe-tência do exemplar republicano.

Sou-lhes muito obrigado por me tra-zerem, do povo brasileiro, esta nova tarefa. Irei cumpri-la, como tantas outras com que fui encarregado, com os haveres de minha experiência e o ânimo de todas as horas.

O homem público é o cidadão de tempo inteiro, de quem as circunstâncias exigem o sacrifício da liberdade pesso-al, mas a quem o destino oferece a mais confortadora das recompensas: a de servir à Nação em sua grandeza e projeção na eternidade.

Ulysses Guimarães, ao lado do Dep. Paes de Andrade, na tarde da instalação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987. (Acervo - Câmara dos Deputados)

ULYSSES GUIMARÃES

221

Srs. Constituintes, esta assembléia reúne o melhor do povo brasileiro. Muitos de nós voltamos a Brasília com o man-dato parlamentar reafirmado; outros, em número maior, chegam ao Congresso pela primeira vez.

Aos velhos amigos, companheiros de tantas jornadas de resistência democrática, o meu abraço de reencontro. Aos que se juntam a nós, trazendo o vigor da Nação rejuvenescida pela esperança, quero sau-dar o grande futuro que o Brasil entremos-tra nesta soleira do século XXI.

É um parlamento de costas para o passado, este que se inaugura hoje para decidir o destino constitucional do País.

Temos nele uma vigorosa bancada de grupos sociais emergentes, o que lhe confere nova legitimidade na representa-ção do povo brasileiro.

Quero manifestar minha particular alegria de ver aqui tantas mulheres. Sua participação na vida política dá à demo-cracia a sua verdadeira dimensão. O reconhecimento de igualdade de direitos e de deveres entre homens e mulheres constitui a grande revolução dos tempos modernos. Iguais na inteligência e na capacidade de fazer, as mulheres superam muitas vezes os homens na sensibilidade diante do sofrimento do povo e na dedica-ção aos marginalizados pela sociedade.

Esta bancada feminina é a maior de nossa história parlamentar, mas muito pequena ainda. Espero que as mulheres assumam a sua responsabilidade política e ocupem, cada vez mais, o espaço que é de seu direito e dever ocupar.

Noto, também, e com a mesma alegria, a presença de constituintes bem jovens. Sou dos que confiam na inteligên-cia e no trabalho dos moços. A história

parlamentar brasileira guarda a memória de um jovem deputado que, na opinião de muitos brasileiros, foi o maior pensador político do Império: Aureliano Cândido de Tavares Bastos, que chegou à Câmara aos vinte e um anos e nos deixou estudos econômicos e políticos de surpreendente atualidade.

Srs. Constituintes, esta assembléia reúne-se sob um mandato imperativo: o de promover a grande mudança exigida pelo nosso povo. Ecoam nesta sala as reivindi-cações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.

Estes meses vividos pelo povo brasi-leiro, desde que nos reunimos em Goiânia e em Curitiba a fim de exigir eleições diretas para a Presidência da República, demonstraram que o Brasil não cabe mais nos limites históricos que os exploradores de sempre querem impor. Nosso povo cresceu, assumiu o seu destino, juntou-se em multidões, reclamou a restauração democrática, a justiça social e a dignidade do Estado.

Estamos aqui para dar a essa von-tade indomável o sacramento da lei. A Constituição deve ser - e será - o instru-mento jurídico para o exercício da liber-dade e da plena realização do homem brasileiro.

Do homem brasileiro como ser con-creto, e não do homem abstrato, ente imaginário que habita as estatísticas e os compêndios acadêmicos. Do homem homem, acossado pela miséria, que cum-pre extinguir, e com toda a sua potenciali-dade interior, que deve receber o estímulo da sociedade, para realizar-se na alegria do fazer e na recompensa do bem-estar.

O homem, qualquer homem, é por-tador do universo inteiro na irrepetível e singular experiência da vida.

222

OS PROFETAS DO AMANHÃ

Por isso, de todos deviam ser os bens da natureza e a oportunidade de deixar, na memória do mundo, a marca de sua passagem, com a obra das mãos e da inte-ligência.

Toda a história política tem sido a da luta do homem para realizar, na Terra, o grande ideal de igualdade e fra-ternidade.

Vencer as injustiças sem violar a liberdade pode parecer programa para as sociedades da utopia, como tantos sonhadores escreve-ram, antes e depois de Morus, mas na realidade é um pro-jeto inseparável da existência humana e que se cumpre a cada dia que passa.

Os momentos de despotismo, com todo o assanho dos tiranos, são eclíp-ticos. Prevalece a incessante expedição da humanidade para a realização do reino de Deus entre os homens, conforme a grande esperança cristã.

Conduzir essa cami-nhada é tarefa da política. Sem esse ideal maior, a política desce de sua grandeza à superfície das dis-putas menores, do jogo ridículo do poder pessoal, da acanhada busca de glórias pálidas e efêmeras.

Srs. Constituintes, a grande maioria desta Casa representa a incontível reivin-dicação de coragem reformadora, exposta

na campanha das diretas. Ela resulta da primeira manifestação eleitoral ampla do nosso povo depois daquele movimento, excetuando-se as eleições municipais, de interesse localizado, que se deram em 1985.

A ampla maioria de que dispo-mos nesta Casa constitui garantia

bastante de que faremos uma Constituição para a liberda-

de, para a justiça e para a soberania nacional.

A liberdade não pode ser mero apelo da retórica política. Ela deve exercer-se dentro daqueles velhos princípios que impõem como único limite à liberdade de cada homem o mesmo direito à liberdade dos outros homens. Assim vemos a ação reguladora do Estado na atividade econômica. A livre iniciativa, necessária

ao desenvolvimento do País, deverá exer-

cer-se sem o sacrifício dos trabalhadores, e a

riqueza não poderá acu-mular-se, ao mesmo tempo

em que aumentam a miséria e a fome, em benefício dos privile-

giados.

A liberdade é também uma questão de justiça. Ela não pode continuar sendo, como as outras coisas, um bem de merca-do. Em nossa sociedade injusta só pode ter liberdade aquele que dispõe de dinheiro para comprá-la.

“Do homem brasileiro como ser

concreto, e não do homem abstrato, ente imaginário que

habita as estatísticas e os com-pêndios acadêmicos. Do homem homem, acossado pela miséria, que cumpre extinguir, e com toda a sua potencialidade interior, que deve receber o estímulo da socie-dade, para realizar-se na alegria do fazer e na recompensa do bem-estar.

O homem, qualquer homem, é portador do uni-

verso inteiro na irrepetível e singular experiência

da vida”.

223

ULYSSES GUIMARÃES

A justiça para os que trabalham deve começar pelo salário. Não existe no mundo de hoje, salvo em alguns países emergen-tes da África, sociedade que seja tão cruel com os trabalhadores.

Salários justos exigem uma política que combine o desenvolvimento econô-mico com a estabilidade monetária. A inflação, sendo fonte de injustiça – uma vez que os assalariados são os mais inde-fesos diante dos seus efeitos perversos – é também dela conseqüência.

Todos os nossos problemas procedem da injustiça. O privilégio foi o estigma dei-xado pelas circunstâncias do povoamento e da colonização, e de sua perversidade não nos livraremos sem a mobilização da consciência nacional.

O privilégio começa na posse da terra, no início repartida, pelos favores reais, entre as oligarquias imigradas. Essas mesmas oligarquias acostumaram-se ao trabalho escravo e dele não querem abrir mão. Como bem nos apontou mestre Afonso Arinos de Melo Franco, as senzalas do século passado estão hoje nas favelas. Nas favelas e nos subúrbios que amonto-am os trabalhadores modernos, brancos, pretos, mestiços - mas todos legatários da condenação de servir e sofrer.

Não é só a injustiça interna que dá origem aos nossos dramáticos desafios. É também a espoliação externa, com a insâ-nia dos centros financeiros internacionais e os impostos que devemos recolher ao império, mediante a unilateral elevação das taxas de juros e a remessa ininterrupta de rendimentos. Trata-se da mais brutal valia internacional que nos é expropriada na transferência líquida de capitais.

Não entendem os insensatos que somos, no Terceiro Mundo, também sen-zalas dos países mais poderosos, e que só

seremos realmente livres do saque quando distribuirmos a renda pelo menos com eqüidade e, desta forma, dermos dignida-de ao convívio social interno.

A modernização autônoma da eco-nomia não pode continuar sendo impedi-da por uma estrutura social arcaica, que se amarra praticamente nas Ordenações Filipinas.

Modernizar a economia é torná-la competitiva, com o emprego racional de todos os recursos disponíveis, a começar pelo solo. A terra não pode ser mera reser-va de valor para os que especulam com o seu preço, porque só nela os homens encontram a vida. Não podemos pensar em distribui-la apenas. É nossa obrigação fazê-la produtiva. Sempre que o direito de propriedade se opuser ao interesse nacio-nal, que prevaleça o interesse da Nação.

A propriedade é um dos mais antigos direitos do homem, e é em razão disso mesmo que a ética religiosa recomenda distribui-la.

Para sentir-se senhor de si mesmo, cada homem necessita de chão e teto, e a razão natural não admite que sobrem tetos e glebas a uns, quando milhões e milhões de outros nascem e morrem entre paredes alheias ou ao relento. Não podemos pen-sar no liberalismo clássico, que deixa às livres forças do mercado o papel regulador de preços e salários, em uma época de economia internacionalizada e de cartéis poderosos.

Se o Governo deve intervir no pro-cesso econômico, que a sua ação busque a paz social. Ali, de onde se ausenta a consciência ética, deve impor-se o poder arbitral do Estado.

Liberdade dos cidadãos e justiça nas relações econômicas entre patrões e empregados são condições indispensáveis

224

OS PROFETAS DO AMANHÃ

ao fortalecimento das nações em seu con-vívio no mundo. Enganam-se os governos que aspiram ao respeito internacional, se lhes falta o respeito de seu povo.

Quando as elites políticas pensam apenas na sobrevivência de seu poder oli-gárquico, colocam em risco a soberania nacional.

A segurança será sempre precária onde houver o clamor dos oprimidos. Nenhum país será suficientemente pode-roso, se poderosa não for a coesão entre os seus habitantes. Uma casa dividida não saberá opor-se com êxito ao assalto dos inimigos.

Liberdade, soberania, justiça. Sobre estas idéias simples construíram-se as maiores nações da História. Elas serão o âmago da nossa razão comum no tra-balho de dotar a Nação de uma legítima Carta Política.

Srs. Constituintes, dois foram e con-tinuam sendo os destinos que grandes pensadores políticos do passado escolhe-ram para o Brasil: o da liberdade política e o da Federação. Os primeiros homens públicos brasileiros já entendiam ser o sistema federal o exigido para a adminis-tração do País.

Pensavam em Federação os mem-bros da comissão encarregada de redigir a proposta do texto de nossa primeira Carta Política, em 1823. Nas discussões do art. 2º do texto, Ferreira França propôs que o Império do Brasil compreendesse confe-deralmente as províncias. Respondendo a quem considerava perigosa a menção, Carneiro da Cunha argumentava que o sistema poderia vir a ser “o vínculo mais forte da união eterna das províncias”.

Malograda a idéia diante das razões expostas por Nicolau Vergueiro

e da dissolução posterior da Assembléia Constituinte, ela retornaria, com força, nas vésperas do movimento de 7 de abril que levou D. Pedro I à abdicação.

Pregou-se, naquela hora oportuna, a descentralização do Governo, mediante uma federação monárquica, conforme expressão do seu maior defensor, o jorna-lista político Antônio da Fonseca.

A mesma idéia que esteve na raiz do Ato Adicional de 1834 quase levara a uma Constituição republicana, em julho de 1832, na antecipação de um movi-mento que só teria logro 57 anos mais tarde.

Federação e democracia continuam sendo as reivindicações nacionais maio-res e nossa assembléia não poderá deixar estas questões ao relento. Elas devem ser enfrentadas com a coragem necessária. Incluo-me entre os que, como Carneiro da Cunha, consideram a autonomia fede-rativa a base da unidade nacional. Esta autonomia reclama, em primeiro lugar, uma justa apropriação tributária. Só há unidade entre entidades de igual direito e não pode a União transformar-se, como se transformou, em poder isolado das rea-lidades estaduais.

A Federação, golpeada pelo Estado Novo, foi praticamente destruída nos recentes anos de arbítrio. Cumpre-nos restaurá-la em toda a sua plenitude, tor-nando realidade um ideal que nasceu com a própria independência.

A razão da liberdade esteve sempre presente, como o ânimo maior de nossa formação histórica. Sempre associamos a liberdade do País à liberdade de seus cidadãos. Mas a liberdade não é um valor absoluto, que se conquista com o mero gesto da vontade. Ela se constrói a cada dia, na medida em que se constroem as

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ULYSSES GUIMARÃES

nações. Para que se goze de liberdade, é preciso, antes de mais nada, que se tenha a consciência de sua necessidade e o sen-timento moral de sua importância.

No versículo da Bíblia está decreta-do que Deus criou a terra para que nela o homem trabalhasse, e não a saqueasse e violentasse, ameaçando a qualidade da vida, que deve ter no estatuto cívico supremo seu guardião.

Esses valores do espírito se fazem com a educação. “Conhecer é ser livre”, dizia um dos gran-des apóstolos da América, José Martí. Isso coloca as tarefas da educação pública na urgência de nossas preocupações. A cidadania começa no alfabeto.

Não há um só exemplo de nação forte sem bom sistema de educação.

O poderio dos Estados Unidos e o apego de seus cidadãos à Lei Constitucional têm origem no zelo com que os primeiros colonos cuidaram da educação.

Dezesseis anos depois do desembar-que, era criado o Colégio de Harvard e, em 1647, todas as povoações com mais de cinqüenta casas eram obrigadas a ter uma escola básica, e as com mais de cem moradias, uma escola secundária.

E qual é a nossa realidade?

Srs. Constituintes, estou convencido de que esta é uma excepcional oportu-nidade histórica de dar ao País a mais nacional de suas Constituições. Quando uso o termo, uso-o na convicção de que

as nossas Cartas anteriores foram redigi-das na adolescência da Pátria, quando buscávamos nos Estados estrangeiros o modelo para as instituições do País.

Não podemos negar a experiência dos outros povos quanto aos mecanismos da administração política, mas é conve-niente encontrar, em nossa própria inte-ligência e vivência, processos novos de desenvolvimento jurídico e social.

Uma Constituição é tanto mais legítima quanto mais ampla

for a discussão de seus ter-mos. Peço-lhes permissão

para citar um trecho do discurso que o saudo-so estadista Tancredo Neves pronunciou, neste mesmo recinto, quando o convoca-mos para ser o candi-dato à Presidência da República.

“As Constituições” - dizia o meu compa-

nheiro e grande amigo - “não são obras literárias,

nem documentos filosóficos.

Elas não surgem do espírito cria-dor de um homem só, por mais privilegia-do em sabedoria seja esse homem.

Tampouco podem ser a codificação de propósitos de um ou outro grupo que exerça influência, legítima ou ilegítima, sobre a Nação.

A Constituição é uma Carta de com-promissos assumidos livremente pelos cidadãos, em determinado tempo e socie-dade”.

O compromisso maior da Carta que redigiremos é com o futuro. Esse futuro está aí, apressado, chamando-nos e exi-

OS PROFETAS DO AMANHÃ

“A segu-rança será sempre

precária onde houver o clamor dos oprimidos.

Nenhum país será suficiente-mente poderoso, se poderosa não for a coesão entre os seus habitantes. Uma casa dividi-

da não saberá opor-se com êxito ao assalto dos

inimigos“.

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OS PROFETAS DO AMANHÃ

gindo os nossos esforços urgentes para recebê-lo sem transtornos maiores. Há cinqüenta anos apenas o Brasil iniciava, com timidez, o processo de moderniza-ção industrial. Mais de setenta por cento de sua população vivia no campo. Poucas eram as estradas que uniam os centros de produção aos portos marítimos e depen-díamos da importação de quase tudo. Com enormes esforços – esforços sobretu-do dos trabalhadores – conseguimos erigir o maior parque industrial do Hemisfério Sul, levantar cidades, desbravar sertões, atualizar o nosso saber e impor-nos ao respeito internacional. Deixamos a ini-bição histórica, que limitava, na prática, a ocupação do Território com uma ima-ginária Linha de Tordesilhas, e rasgamos as estradas que nos permitem, hoje, ir de qualquer cidade a outra sobre rodas. Ainda assim, temos que multiplicar os nossos esforços para chegar ao próximo século em condições de vencer os seus desafios.

Partindo da razão básica – que é a de transformar todos os brasileiros em cidadãos, com a realização da justi-ça social –, deveremos combater certos comportamentos que nos atrasam. É pre-ciso – e é essa uma tarefa constitucional – modernizar a legislação econômica, de maneira a impedir a danosa especulação financeira pelos agentes privados, incen-tivar a iniciativa econômica individual, que não encontra espaço em um Estado cartorial, aliado das grandes corporações empresariais, e promover a modernização dos processos de produção, com o desen-volvimento de novas técnicas.

Ao lado da educação – e dela inse-parável –, exige-se uma política nacional de desenvolvimento científico e tecnoló-gico. Tanto quanto do capital – ou mais

do que dele –, os povos necessitam do conhecimento sobre a natureza e dos meios de colocá-lo a serviço do seu bem-estar e segurança.

Não podemos submeter o nosso des-tino aos que buscam contê-lo, impedindo-nos de fabricar instrumentos modernos e de promover, com a nossa própria inteli-gência, o seu desenvolvimento.

Concluíam os gregos, naquele esplêndido século V antes de Cristo, dando origem à concepção ocidental da lei, que “o homem é a medida de todas as coisas”.

Retorno assim à minha preocupação original. É para o homem, na fugacidade de sua vida, mas na grandeza de sua sin-gularidade no universo, que devem vol-tar-se as instituições da sociedade.

Elas devem respeitá-lo e promover o crescimento de sua personalidade, a partir do momento em que nasce. Isso significa lutar contra a vergonha que são as altas taxas de mortalidade infantil e prestar efetiva assistência às famílias. Tais providências não podem ser vistas com o velho espírito do paternalismo, como se o Estado fosse instituição apenas dos ricos e exercesse a caridade em favor dos pobres. A assistência do Estado é um serviço que ele presta aos cidadãos e estes, quando dela necessitem, não devem suplicá-la, mas, sim, exigi-la, como um direito irre-cusável. Assistir não é amparar nem pro-teger. É cumprir uma tarefa inerente ao Estado.

Não é preciso lembrar a dolorosa situação das crianças abandonadas. É este um tema do qual só podemos falar com a cabeça baixa, os olhos no chão.

Devemos crescer, e crescer cada vez mais, é verdade. Mas o nosso crescimento

227

ULYSSES GUIMARÃES

de nada valerá se o fizermos sem ter o homem brasileiro como seu módulo.

Construir estradas, abrir portos, desbravar sertões, escavar minas, plantar milhões e milhões de hectares – como tantos fizeram – aumenta o Produto Interno Bruto, mas não significa, por si só, estabelecer a independência ou garantir a soberania de um país. As estradas e os portos também podem ser construídos para favorecer o saque das riquezas nacionais. De nada adianta exportar milhões e milhões de toneladas de grãos se eles faltarem à mesa daqueles que os plantaram, colheram e os transportaram até o mar.

Fazer um país crescer é fazê-lo crescer dentro de si mesmo, é fazê-lo crescer em cada um de seus cidadãos. O que significa aumentar a produção se ela estiver destinada a servir aos outros e não ao nosso próprio povo?

Srs. Constituintes, esta é a grande hora de nossa geração. Devemos ocupá-la com o grave sentimento do dever e a consciência de que seremos responsáveis, diante do futuro, pelo que decidirmos aqui.

Temos, em nossas mãos, a soberania do povo. Ele nos confiou a tarefa de construir, com a lei, o Estado democrático, moderno, justo para todos os seus filhos. Um Estado que sirva ao homem e não um Estado que o submeta, em nome de projetos totalitários de grandeza.

Para isso estamos aqui.

Volto a agradecer a confiança que os constituintes, em nome do povo, me outorgaram.

Dirijo-me particularmente aos companheiros do meu partido, o PMDB, a

nossos aliados do PFL e aos companheiros de todos os partidos que votaram em meu nome.

Às demais legendas, principalmente da Oposição, dou a garantia de que serei, nesta presidência, o coordenador imparcial dos trabalhos constituintes.

Como nos recomendou Tancredo, não vamos nos dispersar.

Juntos, soubemos ter paciência e coragem.

Juntos, não nos faltará a necessária competência.

Haveremos de elaborar uma Constituição contemporânea do futuro, digna de nossa pátria e de nossa gente. Para isso, iremos vencer os desafios econômicos, políticos e sociais. Seremos os profetas do amanhã.

A voz do povo é a voz de Deus. Com Deus e com o povo venceremos, a serviço da Pátria, e o nome político da Pátria será uma Constituição que perpetue a unidade de sua geografia, com a substância de sua história, a esperança de seu futuro e exorcize a maldição da injustiça social.

228

PALAVRAS & HISTÓRIA

Receitas Tropicalistas de Constituição pelo Mestre

Constituinte Ulysses Silveira Guimarães

Se os especialistas em política fos-sem menos cientistas e mais cronistas, e se os exegetas dos textos constitucionais fossem menos etimólogos e mais histo-riadores – hipóteses totalmente absurdas, pois desmontariam labirintos acadêmicos,

ricos pareceristas perderiam sua clientela e volumosas coleções de livros deixariam de ser editadas – as constituições seriam melhor compreendidas, os povos melhor governados e, principalmente, a Justiça, melhor distribuída.

* Jornalista

Ulysses Guimarães no dia da promulgação da nova Constituição Brasileira, em 05 de Outubro de1988. (Acervo Câmara dos Deputados)

LUIZ GUTEMBERG

229

Pelo menos, no caso da Constituição do Brasil de 1988.

Quem tiver dúvidas, experimente uma leitura do discurso de 2 de fevereiro de 1987, do deputado Ulysses Guimarães, na instalação da Assembléia Nacional Constituinte, que ele presidiria.

Era a inauguração de uma das aven-turas parlamentares mais alegres, confusas, autênticas e tecnicamente desvairadas de assembléias constituintes, através dos tem-pos, em todos os povos.

Uma constituinte que começou se recusando a simplesmente tomar conhe-cimento de anteprojetos oferecidos. Até mesmo um texto completo, elaborado e discutido por uma grande comissão de representantes de todos os setores da sociedade, de que fizeram parte homens e mulheres de “notável saber”, nomeados pelo Presidente José Sarney. Tinha sido presidida pelo senador Afonso Arinos, orgulhoso por repetir a façanha do pai, Afrânio Melo Franco, que exerceu papel idêntico com relação à Constituição de 1934. Por acaso, as duas comissões cons-titucionais, a de 1933 e a 1986, haviam se reunido, com um intervalo de mais de meio século, na mesma sala do Palácio do Itamaraty, no Rio. Pois, a Assembléia Constituinte de 1986 não tomou conhe-cimento da tradição dos Melo Franco. Orgulhosamente, partiu do nada. Durante um ano e oito meses, os constituintes bra-sileiros, através de sucessivos estágios que, teoricamente, asseguraram a participação nos trabalhos de elaboração de 100% dos 513 deputados e 61 senadores que a com-punham, foram autores desde o primeiro croquis à redação final dos 245 artigos, mais 70 das Disposições Transitórias.

Quem os lê hoje,– depois de 15 anos, já emendados 42 vezes, em alguns

pontos que pareciam pétreos em 1988, como o monopólio estatal do petróleo, revogado - dificilmente compreenderá o exato sentido e intenção de muitos artigos. Essa preocupação, dispensada por juris-tas, advogados e juízes, para quem basta a letra fria, a expressão vernácula, para erigir teorias, parece seguir o simplismo do “vale o escrito” dos bicheiros cariocas. Desprezam como anedóticas, reles preo-cupação de leigos, revelações sobre o que há de humanidade, demagogia, cacoetes pessoais, compromissos paroquiais com grupos de eleitores e, até, insanidade, por trás de alguns artigos emblemáticos e, às vezes, intencionalmente ambíguos. Que falta lhes fazem a História, ou ao menos, uma crônica impressionista, uma análise jornalística!

Como testemunha – com relação a alguns temas, posso dizer, privilegiada, pois muitas vezes tomei café da manhã com o velho Ulysses na residência oficial da Península dos Ministros, em Brasília, pude assistir, à mesa, o planejamento das jornadas diárias das votações, estabele-cido em discussões de que sempre par-ticipavam o jurista Miguelzinho Reale, o deputado Nelson Jobim e o secretário da Mesa, Paulo Afonso, seus colaboradores mais constantes. Ulysses exercia o papel do Presidente da Constituinte, ora como um patriarca (pela ascendência de auto-ridade tribal), ora como um maestro (pois conduzia com rédea curta o andamento e o timbre que julgava adequados a cada tema, como se regesse uma peça sinfôni-ca).

Tanto que o discurso inaugural da Constituinte, por Ulysses, é uma espécie de guia de orquestra para entendimento do texto. A abertura é uma evocação biográ-fica, em três tempos. Lembra seu “barro

230

PALAVRAS & HISTÓRIA

municipal” – como gostava de dizer, repe-tindo Ribeiro Couto – Rio Claro; a herança cultural e histórica, na evocação do pau-lista Prudente de Morais, de Piracicaba (cidade irmã de Rio Caro) e, que presidiu a primeira Constituinte da República, em 1890, mas a retórica bacharelesca repete o estilo clássico da colocação de pronomes dos oradores das Arcadas do Largo de São Francisco, contida na afirmação, na pri-meira pessoa do presente indicativo:

“Sou-lhes muito obrigado por me trazerem, do povo brasileiro, esta nova tarefa.”

Tendo feito essa introdução em qua-tro parágrafos, declamados com pausas que tanto os solenizava como os diversi-ficava, no quinto, desfraldaria a infalível saudação ao povo, à imprensa e autorida-des e “pede passagem” – dos carros abre alas dos velhos préstitos – e como fará na promulgação, a 5 de outubro de 1988. Agora, porém, a saudação é exclusiva aos Senhores Constituintes, “o melhor do povo brasileiro”. Os ungidos pelo voto popular, a quem atribuía poderes extraordinários, não por fantasia, mas por “fé e ciên-cia”, como repetia. Entre os “criadores” da humanidade, privilegiava os fazedores de constituições e ordenamentos jurídi-cos, especialmente o romano Ulpiano, do Corpus Júris Civiles. Tanto que não foi por acaso, senão por paixão à primeira vista pelo Direito Romano, que, mal chegado a São Paulo e precisando ganhar dinheiro para completar a modesta mesada paterna, havia se tornado professor de latim.

Talvez por isso, por cultuar a lei erudita, e esperando que a constituição que se iria elaborar fosse uma expressão jurídica perfeita, não refletisse sobre a heterogeneidade filosófica da Assembléia Constituinte, a não ser como expressão

democrática. Não refletia e, se pensava, jamais confessou, sobre como promover uma definição ideológica que promovesse uma equalização das desigualdades inte-lectuais e morais, próprias da autêntica representação popular, acentuada no Brasil pelo vício histórico da descontinuidade da prática representativa. Em um século de República, duas longas e perversas ditadu-ras disseminaram a demagogia paternalis-ta, o conformismo com as desigualdades sociais, a injustiça como regra, e todas as formas de dominação econômica e degra-dação cultural e política. Em vez desses escombros, ele preferia admitir romanti-camente que o mandato transforma, puri-fica e inspira, e que a democracia tem mecanismos mágicos. Ele mesmo, que se classificava como pertencente ao “gênero parlamentar, espécie deputado” não dis-farçava a confiança nas assembléias. Por isso, saudava, nos Senhores Constituintes, os veteranos, parlamentares reeleitos; os estreantes; as mulheres – “esta bancada feminina é a maior de nossa história par-lamentar”; os líderes sindicais e populares, que para ele são representantes de “grupos sociais emergentes”; os jovens, que ainda chama de moços – como Rui Barbosa e o sambista Lupiscínio Rodrigues: “Sou dos que confiam na inteligência e no trabalho dos moços”.

Depois de usar a saudação como um maestro que define os naipes da sua orquestra, introduz o coro, que entoa o tema que escolheu para a nova constitui-ção. Mudança.

“A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar”

É a vez dos metais para uma evoca-ção épica das manifestações de rua que marcaram o verdadeiro levante popular, que aproveitou os estertores da ditadura,

231

LUIZ GUTEMBERG

e de que ele se sentia condutor com seu “emedebê”, como dizia.

Evoca as cidade dos dois primeiros comícios que deflagraram a avalanche da campanha das “Diretas Já”, onde a vibra-ção popular primeiro saiu às ruas claman-do pela redemocratização:

- Goiânia!

- Curitiba!

Arremata tudo como preconizar a postura da assembléia:

- “É um parlamento de costas para o passado, este que se inaugura hoje para decidir o destino constitucional do País”.

Seguem-se os princípios, as três pedras angulares sobre as quais pretendia alicerçar a constituição: liberdade, justiça e soberania nacional.

Estava concluída a apresentação.

O plano de discurso de Ulysses, que ele costumava formular esquemati-camente em tiras de papel, que chamava de “tripas”, antes de lhes dar forma final, ou apenas para orientar os improvisos, e de que encontrei algumas amostras entre seus papéis, seguia o que chamava de “trilha euclideana: o ambiente, a terra, o homem e as peripécias”. No caso do discurso inaugural da Constituinte, enten-da-se por “peripécias” o longo e eclético conjunto de temas que uma constituição deve abarcar. Um texto que deve ser político, em primeiro lugar; abrangente por natureza; conter princípios que não deixe órfão nenhum aspecto das relações possíveis numa sociedade; juridicamente irrepreensível, equânime, auto-aplicável e, principalmente, que se preste à distribui-ção da Justiça.

Ulysses sentiu dificuldades em fixar esses espaços estanques e, perdido, foi

e voltou várias vezes, repetiu-se, deu a impressão de ter feito uma colagem alea-tória. Como precisou trabalhar com mui-tas notas e textos enviados por amigos – que infelizmente não identificou – adap-tou conceitos técnicos de economia com que não tinha familiaridade. Sua prosódia bacharelesca tinha repertório para qual-quer situação. Assim, depois de falar de industrialização, infra-estrutura rodoviá-ria, especulação financeira, repetindo uma série de lugares comuns, como se tivesse perdido o fôlego ou o fio da meada, diz:

“Concluíam os gregos, naquele esplêndido século V antes de Cristo, dando origem à concepção ocidental da lei, que “o homem é a medida de todas as coisas”

Evidentemente perdido, reencontra-se:

“Retorno assim à minha preocupa-ção original. É para o homem, na fuga-cidade de sua vida, mas na grandeza da sua singularidade no universo, que devem voltar-se as instituições da sociedade”.

Velho político, literalmente – ele estava naquele momento com 71 anos - ele quer conciliar sua longa biografia com um momento explícito de futurologia, pois declara a pretensão de que a nova carta constitucional contenha antevisões que a tornem longeva, “contemporânea do futuro.” Logo ele, que protagonizou a instabilidade política da sociedade brasi-leira, desde que iniciou sua carreira sob a Constituição de 1946, que chamava de saudosa, no tom de pesar de quem perdeu uma madrinha generosa e sábia. Fato pouco conhecido, Ulysses quase fun-dou um culto à maneira positivista à Constituição de 1946, de que promoveu, na gráfica do IBGE, a primeira edição popular de uma Constituição brasileira com grande tiragem, quando Presidente

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PALAVRAS & HISTÓRIA

da Câmara pela primeira vez, em 1956. Havia até uma edição em miniatura, de que guardo o seu exemplar, que encon-trei, depois da sua morte, no escritório da casa na rua Campo Verde, em São Paulo. Não era uma paixão gratuita, pois foi para complementá-la – com a preocupação de decodificá-la nos limites regionais – que teve seu primeiro mandato, em 1947, como deputado estadual constituinte em São Paulo. Deputado federal a partir de 1950, seria eleito, em 1956, aos 40 anos, Presidente da Câmara, nº 2 na lista de sucessão do Presidente da República. Em 1987, estava na sua nona reeleição como deputado federal e há 40 anos não havia passado um único dia sem mandato par-lamentar. Tinha sobrevivido, sempre no mesmo partido, o PSD, às crises políticas que abalaram o regime da Constituição de 46 - o suicídio de Vargas, em 1954 (em que teve papel de protagonista como membro da CPI da Última Hora), o con-tra-golpe de 11 de novembro de 1955, a renúncia de Jânio e a posse de Jango (de que foi protagonista como membro do Ministério parlamentarista de Tancredo Neves, ocupando a pasta da Indústria e Comércio) e, finalmente, o golpe de 64, com a instauração da ditadura militar, com que se conformaria inicialmente. Aí, depois de uma tentativa frustrada de fazer política, confiando na boa-fé do presi-dente Castelo Branco e em suas ingênuas tentativas de reduzir o golpe a uma rápida intervenção cirúrgico-militar, compreen-deu que prevaleceria a violência do grupo fascista. Recolheu-se silente e até amea-çado de cassação, para se transformar, a partir de 1970, como presidente do MDB, no principal articulador da oposição civil que chegaria ao poder em 1985, com José Sarney, pela morte do presidente eleito Tancredo Neves.

Com a memória de todas essas experiências e, principalmente, com a rica crônica dos últimos 15 anos de luta contra a ditadura – às vezes sutil; nou-tras, vigorosas; de repente excessiva-mente prudente; súbito, agressiva e até temerária, quando comparou o presidente Geisel ao ditador ugandense Idi Amin Dada – Ulysses Guimarães administrou os conflitos ideológicos, verdadeiros e artificiais, que explodiam na oposição. MDB, depois PMDB, foram uma frente única e compulsória da oposição. Não havia outros espaços, sob a ditadura, para fazer política, e o partido era uma espécie de Arca de Noé. Todos, por bem ou mal, tinham que se submeter à convivência. Para Ulysses, que sempre desdenhou a radicalização, não era difícil exercer a tolerância. Como pessedista, e a ideologia do PSD era o exercício do poder confor-me as circunstâncias, toda convivência era possível. (Como gostava de lembrar, Juscelino, cuja campanha presidencial liderou em São Paulo, em 1955, foi elei-to com o apoio negociado do Partido Comunista, a que prometeu a legalidade e relações com a URSS. Ao mesmo tempo, patrocinou o financiamento dos inte-gralistas de Plínio Salgado, com o obje-tivo de fazê-lo receber votos em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, que iriam fatalmente para seu principal competidor, Juarez Távora. A única forma de esterilizar essa votação era viabilizar a candidatura Plínio Salgado, que cumpriu o seu papel: os votos de Plínio Salgado, somados aos de Juarez, teriam derrotado Juscelino.) A experiência do velho PSD, segundo dizia, era uma vacina contra pre-conceitos e radicalismos. Foi assim que os tratou no PMDB. As esquerdas, que se intitulavam “autênticos”, embora não faltassem direitistas de todos os matizes

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LUIZ GUTEMBERG

entre os “moderados”. O denominador comum era a oposição à ditadura.

Na abertura da Constituinte, Ulysses não faz uma única referência à questão ideológica, que ainda era muito forte. Nada indicava, àquela altura, que o Muro de Berlim estivesse prestes a cair, e, junto com ele, a URSS e o comunismo internacional, o que só aconteceria em 1989. Vê-se, numa leitura distante das circunstâncias de 1987, que ele acena para todo mundo, ora mais à esquerda, falando de liberdade (“é preciso que se tenha a consciência de sua necessidade e o sentimento moral da sua importân-cia”), ora mais à esquerda, falando de propriedade (... “um dos antigos direitos do homem, é em razão disso mesmo que a ética religiosa recomenda distribui-la”) até, em evidente desespero, zigueza-guear como os eloqüentes personagens de Glauber Rocha em “Terra em Transe”. Embrenha-se por um labirinto de dilemas, perde a linha de Ariadne, ouve os urros do monstro devorador dos que hesitam e, sem resposta, termina com uma interroga-ção. Vejamos:

“Construir estradas, abrir portos, desbravar sertões, escavar minas, plantar milhões e milhões de hectares – como tan-tos fizeram – aumenta o Produto Interno Bruto, mas não significa, por si só, estabe-lecer a independência ou garantir a sobe-rania de um país. As estradas e os portos podem ser construídos para favorecer o saque das riquezas nacionais. De nada adianta exportar toneladas e toneladas de grãos se eles faltarem à mesa daqueles que os plantaram, colheram e transportaram até o mar. Fazer um país crescer é fazê-lo crescer em cada um dos seus cidadãos. O que significa aumentar a produção, se ela estiver destinada a servir aos outros e não ao nosso próprio povo?”

Um exemplo primário, do ponto de vista formal da ciência política, do desafio que se apresentava à constituinte, mas absolutamente consentâneo com a mentalidade da assembléia a que Ulysses se dirigia.

Uma pesquisa que envolvesse teste-munhos insuspeitos de assembléias polí-ticas brasileiras (aleatoriamente, tomei as resenhas do Senado do Império, de Machado de Assis, que não era uma cons-tituinte, mas se comportava como tal, sob a bonomia de Sua Majestade, o Imperador, na eterna tentativa de regulamentar dispo-sitivos constitucionais, como a mudança da capital para o Planalto Central; memó-rias da Constituinte de 1934, do deputado alagoano Emílio de Maya e os registros de João Almino, sobre a Constituinte de 46, em “Democratas Autoritários”) mostrará que os usos e costumes, temas e circuns-tâncias, foram sempre diversos, mas há um traço especial, original, absolutamen-te diverso, em atitude e resultados, que não se vê nas experiências constituintes de outros povos.

As peculiaridades das assembléias brasileiras são a preocupação de ruptura e inovação; o contraste entre a sabedoria e a improvisação, espírito público e a demagogia populista, entre as preten-sões de eternidade e a mais escrachada efemeridade. Como definir tão difusas características? Nos anos 30, a sociologia de Gilberto Freire, recém chegado da Universidade do Texas e desafiando as visões clássicas de definição dos efeitos sociais, políticos, econômicos e estéticos da miscigenação brasileira, era simples-mente rotulada de ecologia. Antes que o próprio Gilberto a denominasse lusotropi-cologia. Ulysses não chegou a definir sua oratória, mas seu discurso inaugural da Assembléia de 1987, que vale como intro-

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dução à história e ao texto da Constituição de 88, certamente admitiria tratar-se de uma típica experiência tropicalista.

Até mesmo porque uma constitui-ção não é uma constituição, mas sem-pre a Constituição. O substantivo comum “constituição” é dessas palavras que designam abstrações, pois não existe um modelo, um paradigma. Não há uma constituição “de referência” a que se possa recorrer e apresentar, como os con-tratos padrão em que se precisa apenas preencher espaços em branco, assiná-los, datá-los, e ei-lo, personalizado,produzindo efeitos singulares, tendo perdido seu cará-ter de fórmula.

Por isso, não há constituições, plural de constituição, pois são singulares, expressam as latitudes e longitudes, momentos e povos que a escreveram e promulgaram. Podem até figurar numa coleção de textos políticos e jurídicos, mas será lida, sempre, como uma notícia das excentricidades do povo que, em dado momento, a adotou.

Foi mais ou menos isso que Ulysses queria dizer, e disse, aos seus colegas da Assembléia Constituinte de 1986. Mas, assim como nem sempre a objetividade e o despojamento são o caminho mais curto da compreensão de uma mensagem, ele buscou a forma de expressão adequada. Com sua experiência acumulada de 40 anos de vida parlamentar, e sendo um homem de virtudes histriônicas e grande sensibilidade, forjou, apressadamente o discurso com que assumiu a presidência da Constituinte. Sua regra era o improviso, mas seus discursos lidos também eram, virtualmente, improvisos. Partia de um rascunho manuscrito, depois trabalhava sobre uma versão datilografada por uma secretária, na qual fazia alterações e,

finalmente, durante a leitura, que desejava que fosse uma interpretação de ator, puro teatro, profanava temerariamente seus próprios textos com chistes e referências de ocasião, que os taquígrafos anotavam, às vezes sobre cópias dos textos lidos.

Este discurso de 2 de fevereiro de 1987, para ser evocado dignamente e mais justamente entendido e glorificado como peça de oratória, merecia um tratamento de poema de Mário de Andrade (penso nos coros de “Nas Enfibraturas do Ipiranga”), apoiado por uma vibrante “Invocação da Pátria”, de arrebatamento cívico, em andamento de dobrado de Villa Lobos, de que se valeu Joaquim Pedro de Andrade em “Macunaíma”. A platéia, dominada pelo irresistível otimismo e confiança com que Ulysses falava da sua gente, sentir-se-ía, como de fato se sentiu, arrebatada e sem perceber que ele apenas lhes reproduzia o pensamento, tal como encerrou o discurso, arrebatado e tropicalista:

“A voz do povo é a voz de Deus. Com Deus e o povo venceremos, a serviço da Pátria, e o nome político da Pátria será uma Constituição.”

O tropicalismo não é uma opção estética ou comportamental, mas a forma de pensamento e expressão do povo brasileiro. Todas as contradições históricas, contrastes culturais, diferenças regionais e, principalmente, as conexões surgidas da convivência dos grupos étnicos, sociais, religiosos, econômicos e políticos através dos tempos, cabem nessa salada. São os valores e códigos, tão imprecisos quanto verdadeiros, pretendendo desafiar e reinventar relações jurídicas, sociais e políticas. Exatamente como Ulysses Guimarães anteviu a Constituição de 1988 ao inaugurar a assembléia que redigiria.

PALAVRAS & HISTÓRIA

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ImagemHistórica

Pedro Karp Vasquez

Reprodução

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IMAGEM HISTÓRICA

Arsênio da Silva

Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1864. Coleção Dona Thereza Christina Maria da Fundação Biblioteca Nacional.

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Brilhante composição, essa imagem é o mais antigo exemplo de documen-tação fotográfica de um acontecimento oficial de relevância nacional efetuado no Brasil: o casamento da princesa Isabel, herdeira do trono, destinada a ser a ter-ceira governante do Império fundado por seu avô, Dom Pedro I, a 7 de setembro de 1822.

Pouquíssimo conhecida, essa ima-gem, tão admirável sob o ponto de vista da concepção visual, é representativa sob diversos outros pontos de vista, a começar pelo estritamente técnico. Foi realizada com o trabalhoso e complicado processo de colódio úmido, que exigia o emulsionamento da placa com o material fotossensível, instantes antes da realiza-ção da exposição, obrigando o fotógrafo a instalar um laboratório portátil no próprio local de tomada da fotografia. O negativo resultante tinha o formato de 17,2 x 20, 3 cm, sendo copiado – segundo o processo mais empregado no Brasil neste período – por contato direto sobre papel albu-minado. Ou seja: sem o auxílio de um ampliador, com o negativo sendo com-primido sobre o papel fotográfico com o auxílio de uma prensa especialmente concebida para este fim.

Conforme a perfeição técnica desta fotografia demonstra de forma cabal, o esquecido Arsênio da Silva – cuja assi-natura e endereço são visíveis nos cantos inferiores da imagem – era um exce-lente fotógrafo, com total domínio de seu instrumento de trabalho. Contudo, a iluminação inadequada para a prática fotográfica não permitiu que Arsênio da Silva registrasse o casamento propriamen-

te dito, realizado na Capela Imperial, no sábado, 15 de outubro de 1864. Assim, a cerimônia ficou perpetuada graças ao tra-balho de artistas como o aquarelista Jean Jules Le Chevrel e o pintor Pedro Américo de Figueiredo e Melo.

O próprio Arsênio da Silva também era pintor, tendo sido – conforme infor-mou o respeitado historiador e crítico de arte, Quirino Campofiorito – o responsá-vel pela introdução no Brasil da técnica de pintura em gouaches. Inovação que lhe valeu, de princípio, grande considera-ção – foi premiado nas Exposições Gerais da Academia de Belas Artes em 1861, 1862 e 1863 – e, depois, inúmeros dis-sabores. Isso porque, dotado de sensibi-lidade excessiva, raiando a instabilidade emocional, Arsênio se ressentiu profun-damente quando viu desfeito o sonho de acesso ao corpo docente da Academia Imperial das Belas-Artes. Derrotado pela conspiração dos medíocres, sempre tão operosos quando confrontados à genia-lidade, Silva afastou-se de seus colegas futriqueiros, abandonando o fazer artís-tico para morrer em solitário ostracismo. A esse respeito, é eloqüente o relato de Mello Morais Filho:

“A intriga e a inveja cerrando-lhe as portas [da Academia], Arsênio Silva teve de recuar, e espraiando em derredor de si olhares de desânimo, apercebeu que as demais se haviam fechado para ele, e que, ao desamparo do gosto pela arte, a miséria seria uma conseqüência lógica, uma companheira inevitável dos dias futuros.

E, por um instante, sacudindo guizos de uma alucinação transitória, o excelso

* Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

*PEDRO KARP VASQUEZ

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IMAGEM HISTÓRICA

pintor de gouaches, o vendedor de telas esplêndidas a 5.000 réis, faz aquisição de uma cabeça que fala a Saturnino da Veiga, de um realejo e de um cosmorama, seguindo pelas estradas da província do Rio, assim transformado em saltimbanco de feira”.

Dono de um talento e de uma sensi-bilidade superiores, Arsênio da Silva, como outros tantos luminares da arte, sucumbiu ante a avassaladora destrutividade das miudezas comezinhas do cotidiano. Assim, abandonando o saber artístico tradicio-nal, acumulado em mais de três anos de estadia na Europa, em fins da década de 1850, quan-do transitou por Roma, Milão, Florença, Pisa, Turim e Paris, Arsênio da Silva optou pela fotografia muito provavelmente em 1863, data de sua última participação na Exposição Geral da Academia de Belas Artes.

Artista consumado e dedicado, assimilou de imediato as exigências técnicas do novo métier, a ponto de ter o privilégio de foto-grafar o casamento da princesa Isabel. Esse trabalho agradou tanto o imperador Pedro II que este lhe franqueou, em seguida, as portas do Palácio Imperial e Petrópolis, até então focalizado apenas por Revert Henrique Klumb, um habitué da casa, posto que professor de fotografia, tanto da imperatriz Thereza Christina quanto da princesa Isabel.

Nascido na província de Pernambuco, a 29 de abril de 1833, e falecido na pro-víncia da Bahia, a 11 de fevereiro de 1883, Arsênio da Silva teve trajetória meteórica, porém, fulgurante. Predestinado ao pio-

neirismo, documentou uma Congada em torno de 1865, que, se não for o primeiro registro desta manifestação popular para-religiosa de inspiração africana, é, com toda a certeza, o mais antigo e perfei-to exemplo de registro fotográfico proto-antropológico do que hoje qualificamos de evento “folclórico”.

Curiosa e tristemente, a princesa Isabel e o conde d’Eu – motivadores desta obra-prima fotográfica de Silva – também foram vítimas da inveja, da maledicên-cia e da incompreensão de interesseiros que, medindo o mundo com a escala da

própria pequenez, eram incapazes de enxergar a grandeza alheia. O casa-mento documentado nesta imagem floresceu feliz – numa época em que eram raros os casamentos feli-zes – por quase seis déca-das, encerrando-se apenas com a morte da princesa, a 14 de novembro de 1921. Sobreviveu, portan-to, às agruras da Guerra

do Paraguai (de cuja fase final, entre 30 de março de 1869 e 1º de março de 1870, o conde d’Eu foi o comandante-em-chefe do Exército brasileiro); às inúmeras pressões políticas; às dificuldades de procriação da princesa (quase morta por dois abortos espontâneos); e ao exílio injusto imposto pelos militares republicanos empenhados em impedir o acesso ao trono da princesa Isabel após a morte de seu pai, que parecia se avizinhar a olhos vistos.

Com efeito, esta não tardou, suce-dendo de apenas dois anos ao advento da República, ocorrendo em Paris, a 5 de dezembro de 1891. Infelizmente, a miopia de seus contemporâneos não os deixou

Reprodução

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PEDRO KARP VASQUEZ

perceber a enorme importância da prin-cesa Isabel, uma das nove mulheres que, em todo o mundo, durante todo o decurso do século XIX, foram governantes de seus países.

Antes do fim do Império, a princesa Isabel voltaria a congregar no Largo do Paço expressiva multidão, ao assinar a Lei Áurea, no domingo 13 de maio de 1888. Só que desta feita a multidão se reuniu diante da fachada do prédio – oculta na fotografia de Arsênio da Silva – que dá frente para o mar e a atual Praça XV de Novembro, cuja estação de “ferry-boats” é visível ao fundo, à esquerda.

O Largo do Paço, tão importante para nossa história – o Dia do Fico, 9 de janeiro de 1822, de Dom Pedro I (imediato prenunciador do surgimento do Império brasileiro), foi protagonizado aí, na sétima janela (da esquerda para a direita), logo antes do pórtico de entrada – foi igualmen-te importante para a história da fotografia brasileira. Com efeito, o abade francês Louis Compte, ao introduzir a daguerreoti-pia no Brasil, o fez aí, no Largo do Paço.

Colocando-se em posição parale-la, porém oposta à de Arsênio da Silva – ou seja, mais perto do mar e distante da rua Direita (atual Primeiro de Março) – Compte focalizou a mesma fachada lateral do Paço Imperial e mais duas belas construções excluídas desta composição de Silva: o chafariz de Mestre Valentim (ainda remanescente) e o Mercado da Praia do Peixe (situado onde hoje se ergue a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro). Republicanizado, pour ainsi dire, o Largo do Paço (não mais Imperial) manteve a majestade, protagonizando, em 1894, um grande evento cívico que deu ensejo a uma igualmente grande documentação fotográfica de Juan Gutierrez: a inaugu-

ração da imponente estátua eqüestre do general Osório – erguida na área central vazia nesta fotografia de Arsênio da Silva – como parte dos festejos comemorativos do quinto aniversário da Proclamação da República.

Decorrido um século e uma década, essa imagem magistral, tão importante pelo tanto que nela se vê, quanto pelo tanto que nela não se vê, ressurge agora, como um belo convite para se repensar a história. Ou diversas histórias: a história do Brasil, a história da fotografia, e a história de Arsênio. Este esquecido Silva pernam-bucano, entre tantos outros esquecidos Silvas pernambucanos, que, talvez agora que um Silva pernambucano comanda o país dos Silvas de todos os quadrantes, terá sua fabulosa contribuição devidamente reconhecida.

Reprodução

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(*) Historiador e Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados

Todos sabemos que a História é um processo de construção coletiva, em que interagem diferentes atores sociais. No entanto, não podemos desprezar a ação do indivíduo no processo histórico. A Historiografia brasileira sempre primou pela narrativa dos fatos protagonizados pelos homens. Na história oficial do país quase não há lugar para as mulheres, negros, índios, trabalhadores e outras ditas minorias sociais – os chamados “excluídos da história”, expressão cunhada pela histo-riadora francesa Michelle Perrot2. Na ver-dade, construiu-se no Brasil uma história assexuada, onde as questões de gênero3 só muito recentemente passaram a fazer parte do território epistemológico dos historia-dores e cientistas sociais.

Segundo Izilda S. de Matos, “a expan-são dos estudos que incorporam a mulher e a abordagem de gênero na história loca-liza-se no quadro das transformações por que vem passando a história nos últimos

tempos, sendo possível afirmar que, por razões internas e externas, esses estudos emergiram da crise dos paradigmas tradi-cionais da escrita da história, que requeria uma completa revisão dos seus instrumen-tos de pesquisa. Essa crise de identidade da história levou à procura de “outras histórias”, o que levou a uma ampliação do saber histórico e possibilitou uma aber-tura para a descoberta das mulheres e do gênero4.”

O presente texto, neste primeiro número da Revista Plenarium, pretende resgatar a participação e luta das mulhe-res no processo histórico nacional, dando ênfase à política institucional, mais pre-cisamente no campo dos direitos políti-cos. Nada mais oportuno pois, neste ano, comemoramos o “Ano da Mulher”, institu-ído pela Lei nº 10.745, de 20035.

Para tanto, escolhemos o perfil his-tórico-biográfico e parlamentar da pri-meira Deputada Federal do Brasil e de

* RICARDO ORIÁ1PERFIL

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toda a América Latina, eleita pelo voto popular para a Assembléia Constituinte de 1933. Estamos nos referindo à educadora e médica paulista CARLOTA PEREIRA DE QUEIRÓS (1892-1982). Antes, porém, de traçarmos esse perfil, mister se faz uma breve análise da árdua e longa luta das mulheres brasileiras pelo exercício de seus direitos políticos, cuja expressão maior se traduz no voto e que só foi alcançado em 1932, com a promulgação do Código Eleitoral.

A CONQUISTA DO VOTO FEMININO

Em virtude da cultura política predo-minante no País, de caráter personalista e patrimonialista, costuma-se colocar muitas

vezes o direito de voto como uma con-cessão dos governantes e assim passa-se a idéia de que “Getúlio Vargas deu à mulher brasileira o direito de votar”. A história não é bem essa. A conquista do voto feminino foi resultado de um processo de lutas, avanços e recuos, que se inicia por volta dos anos 10 do século passado.

Em 1910, seguindo uma tendência mundial do movimento sufragista, a pro-fessora carioca Deolinda Daltro funda o Partido Republicano Feminino, defenden-do o direito de voto para as mulheres e a abertura dos cargos públicos a todos os brasileiros, indistintamente.

A década de 20 do século passado assistiu importantes movimentos de con-testação à ordem vigente. Somente no

Carlota Pereira de Queiroz na Assembléia Constituinde de 1934. (Acervo Câmara dos Deputados)

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PERFIL

ano de 1922, tivemos importantes acon-tecimentos que colocavam em xeque a República Velha, a saber: Semana de Arte Moderna, Movimento Tenentista e funda-ção do Partido Comunista do Brasil. Nesse contexto, não podemos esquecer a emer-gência do movimento feminista, tendo à frente a professora Maria Lacerda de Moura e a bióloga Bertha Lutz, que fundaram a Liga para a Emancipação Internacional da Mulher, um grupo de estudos cuja finali-dade era a luta pela igualdade política das mulheres.

Posteriormente, Bertha Lutz6, que irá ser a segunda mulher a ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados, cria a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, considerada a primeira socie-dade feminista brasileira. Essa organização tinha como objetivos básicos: “promover a educação da mulher e elevar o nível de instrução feminina; proteger as mães e a infância; obter garantias legislativas e prá-ticas para o trabalho feminino; auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha de uma profissão; estimular o espí-rito de sociabilidade e cooperação entre as mulheres e interessá-las pelas questões sociais e de alcance público; assegurar à mulher direitos políticos e preparação para o exercício inteligente desses direi-tos; estreitar os laços de amizade com os demais países americanos.” 7

A 1ª Constituição Republicana, ape-sar de ter instituído o voto secreto e uni-versal, continuou alijando as mulheres do direito de participação na vida política do país. O direito de voto para as mulheres só se tornou realidade após a Revolução de 30, que derrubou as oligarquias do coman-do decisório do país. Antes disso, pelo seu pioneirismo, merece registro a legislação estadual do Rio Grande do Norte que pos-

sibilitou o voto das mulheres já em 1928. Quando assumiu o cargo de Presidente do Estado, Juvenal Lamartine solicitou aos deputados estaduais que elaborassem uma nova lei eleitoral que assegurasse o direito de voto às mulheres. Foi sancionada a Lei nº 660, de 25 de outubro de 1927, que regulava o serviço eleitoral no estado e estabelecia que no Rio Grande do Norte não haveria mais distinção de sexo para o exercício do voto e como condição básica de elegibilidade. Nesse mesmo dia, a professora potiguar, Celina Guimarães Viana, natural de Mossoró, entrou com uma petição ao juiz eleitoral solicitando sua inscrição no rol dos eleitores daquele município.

“Celina fincou o marco da vanguar-da política feminina na América do Sul, tornando realidade o voto feminino no Brasil.” 8 Após esse ato, várias mulheres riograndenses solicitaram seu alistamento eleitoral e por ocasião das eleições para o Senado, em 1928, 15 mulheres votaram no Rio Grande do Norte. Fato interessante ocorreu posteriormente, quando da diplo-mação do senador José Augusto Bezerra de Medeiros no Congresso Nacional. No ato de sua diplomação, os votos das 15 mulheres não foram computados por serem considerados “inapuráveis” pela Comissão de Poderes do Legislativo Federal. Em protesto a esse ato arbitrário e que revela o preconceito reinante à época acerca do acesso da mulher à participação políti-ca, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino lançou um Manifesto à Nação.

Vargas era simpatizante à causa femi-nista, sobretudo no tocante ao direito de voto. Assim, em 1932, foi promulgado o novo Código Eleitoral, de cuja comissão de redação Bertha Lutz havia participado, e que finalmente assegurou o direito de voto às mulheres brasileiras.

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RICARDO ORIÁ

UMA VOZ DE MULHER NA CONSTITUINTE

“Além de representante feminina, única nesta Assembléa, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira, integrada nos destinos do seu paiz e identi-ficada para sempre com os seus problemas (...). Num momento como este, em que se trata de refazer o arcabouço das nossas leis, era justo, portanto, que a mulher tam-bém fosse chamada a collaborar.”

(Trecho do discurso de Carlota P. de Queirós).

No dia 13 de março de 1934, uma voz feminina se fez ouvir, pela primeira vez, no plenário do Palácio Tiradentes, sede da Câmara dos Deputados e dos trabalhos da Assembléia Constituinte. Tratava-se de Carlota Pereira de Queirós, uma médica paulista e primeira deputada federal do Brasil, eleita pelo voto popular.

Nascida na capital paulista, em 13 de fevereiro de 1892, Carlota era filha de José Pereira de Queirós e de Maria de Azevedo Pereira de Queirós. Pertencia, portanto, a uma família tradicional das elites locais, sendo seu avô paterno um rico proprietário de terras em Jundiaí, membro do Partido Republicano Paulista e um dos fundadores do jornal “A Província de São Paulo” (hoje, jornal “Estado de São Paulo”).

Carlota fez seus estudos iniciais na então Escola Normal da Praça e em 1909 recebeu seu diploma de professora. Convidada pelo Diretor da Escola Normal, passa a trabalhar neste mesmo estabele-cimento de ensino, sendo inspetora pri-mária. Em 1912, torna-se professora do jardim de infância, cargo que manterá por dez anos. Até o início da década de 20, Carlota acumulou várias atividades ligadas

à educação. Desiludida com o magistério, Carlota dá uma guinada em sua vida pesso-al e profissional ao ingressar na Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, em 1920. Em 1923, ela decide trocar de facul-dade e inscreve-se no Curso de Medicina do Rio de Janeiro, formando-se em 1926, com a tese “Estudos sobre o Câncer”. Recebeu, por seus estudos na área, o Prêmio Miguel Couto. Nesse mesmo ano, assumiu a direção do laboratório da clíni-ca pediátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo e viaja, em 1928, comissionada pelo governo paulista, à Suíça onde fará seus estudos de dietética infantil.

Profissionalmente, Carlota, mesmo ingressando posteriormente na vida polí-tica, terá sempre uma atuação destacada na área médica, tornando-se a primeira mulher a integrar a Academia Nacional de Medicina, em 1942, e ocupando o cargo de Presidente da Associação Brasileira de Mulheres Médicas (ABMM), no período de 1961 a 1967.

Sua participação na política se deu a partir da Revolução Constitucionalista de 1932, quando São Paulo pega em armas contra a excessiva concentração de pode-res nas mãos de Getúlio e exige um novo ordenamento constitucional para o País. “Nesse contexto, a duração imprevista da Revolução de 1932 (quase três meses), onde os paulistas acabam lutando sozi-nhos contra o governo central, improvi-sando forças e munições, abre às mulheres das elites uma chance única de exercício intensivo da cidadania.” 9

Carlota organiza, juntamente com setecentas mulheres, o Departamento de Assistência aos Feridos (DAF), subordi-nado ao Departamento de Assistência à População Civil, dirigido por Olívia Guedes Penteado.

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A Revolução de 32 é derrotada pelo governo central. No entanto, são convoca-das eleições para a elaboração de um novo texto constitucional. Como as principais lideranças políticas do Partido Republicano Paulista (PRP) e do Partido Democrático (PD) encontravam-se no exílio, formou-se a “Chapa Única por São Paulo Unido!”, que escolhe vinte e dois nomes ligados aos dois partidos. O nome de Carlota surge por recomendação da Associação Comercial, respaldado pela Associação Cívica Feminina e pela Federação dos Voluntários, grupo de oficiais e suboficiais paulistas que haviam participado do movi-mento revolucionário de 32.

Contando com o apoio da elite local, no qual sobressaem os nomes de Olívia Penteado e Pérola Byington, suas ami-gas íntimas, Carlota inicia sua campanha. É lançado o manifesto “Mensagem da Mulher Paulista” na imprensa local, solici-tando do segmento feminino o apoio à sua candidatura.

No dia 3 de maio de 1933, reali-zam-se as eleições em dois turnos para a Assembléia Constituinte. Carlota é elei-ta com 5.311 votos no primeiro turno, e 176.916 no segundo. Empossada em novembro do mesmo ano, Carlota Pereira de Queirós será primeira e única mulher a sentar-se entre 253 deputados federais.

No processo constituinte, Carlota participou dos trabalhos da Comissão de Educação e Saúde onde elaborou o pri-meiro projeto sobre a criação de serviços sociais no país. Sua iniciativa colaborou para o estabelecimento da obrigatoriedade de verbas destinadas à assistência social, possibilitando, assim, a construção da Casa do Jornaleiro e do laboratório de biologia infantil, anexo ao Serviço de Menores.

Já promulgada a nova Constituição, Carlota é reeleita na legenda do Partido Constitucionalista de São Paulo para uma das 34 cadeiras da bancada paulista na Câmara dos Deputados. Nessa eleição, ela recebe 1.899 votos no primeiro turno e é a segunda mais votada no segundo turno, com 228.190 votos.

Como deputada federal, Carlota posi-cionou-se contrária à proposta da então deputada Bertha Lutz sobre a criação de um “Departamento Nacional da Mulher”, no contexto da “Comissão Especial de Elaboração do Estatuto da Mulher”. Segundo ela, o modelo burocrático pro-posto para esse órgão acarretaria superpo-sição de atribuições e competências com três Ministérios da Administração Pública Federal. Em seu lugar, ela propôs que o Departamento a ser criado ficasse subordi-nado ao Ministério da Educação e Saúde. Outro ponto de discordância entre as duas parlamentares acerca da criação do órgão devia-se ao fato de que Carlota se mostrava contrária à idéia de que os cargos do referi-do Departamento fosse preenchido apenas por mulheres. Segundo ela, essa proposta continha um viés nitidamente sexista. Em decorrência das divergências entre Carlota e Bertha, o projeto do Estatuto da Mulher avançou muito pouco e foi atropelado pela implantação do Estado Novo.

Carlota permaneceu na Câmara dos Deputados até 1937, quando o golpe de estado impetrado por Getúlio determinou o fechamento de todas as casas legisla-tivas do país. Foi o mais longo recesso parlamentar de nossa história. Durante o Estado Novo (1937-1945), Carlota lutou ativamente pela redemocratização do país. Tentou retornar à Câmara dos Deputados, candidatando-se em 1945 pela União Democrática Nacional (UDN), mas não

PERFIL

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RICARDO ORIÁ

se elegeu. Com o golpe de 1964, Carlota posicionou-se a favor da tomada do poder pelos militares.

Embora ausente da política insti-tucional, Carlota continuou prestando relevantes serviços na área da medicina e assistência social. Organizou o primeiro curso de serviço social do país ao lado de outras mulheres e continuou inte-grando importantes associações femini-nas. Publicou as seguintes obras: “Sistema Froebel e Montessori” (1920); “Estudos sobre o Câncer” (1926); “Diário de um Tropeiro” (1937); “Exame hematológico e medicina social” (1940); “Exame de hemorragias nas tonsilectomias” (1940); “Das vantagens de generalização do exame hematológico e sua aplicação em medici-na social” (1941); “Um fazendeiro paulista no século XIX” (1965) e “Vida e morte de um capitão-mor” (1969).

Carlota veio a falecer em São Paulo, aos noventa anos de idade, deixando um importante legado na luta pela conquista da cidadania feminina no Brasil. Seu nome inspirou a criação, no âmbito da Câmara dos Deputados, do Diploma Mulher Cidadã Carlota Pereira de Queirós, instituído pela Resolução nº 3, de 200310. Essa homenagem será conferida anualmente a cinco mulheres, em diferentes áreas de atuação, que tenham contribuído para o pleno exercício da cidadania, na defesa dos direitos da mulher e questões de gênero. É o reconhecimento do Poder Legislativo ao papel da mulher na vida política nacional, mediante o resgate da memória de sua primeira parlamentar – CARLOTA PEREIRA DE QUEIRÓS.

A Mulher em uma Pintura da Grécia Clássica. Autor desconhecido.

246

PERFIL

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. SP: Paz e Terra, 1988.

2. MATOS, Maria Izilda S. de. “Outras histórias: as mulheres e estudos de gênero – percursos e possibilidades” In: Gênero em Debate. Trajetória e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997, p. 86.

3. TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense, 1993, Col. Tudo é História.

4. PINTO, Célia Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. SP: Fundação Perseu Abramo, 2003, Col. História do Povo Brasileiro.

5. AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? RJ: DP & A, 2003.

6. SCHPUN, Mônica Raisa. “Carlota Pereira de Queiroz: uma mulher na política” IN: Revista Brasileira de História – órgão oficial da Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH/ED. Unijuí. Vol. 17. nº 33, 1997

7. DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. RJ: Jorge Zahar Ed., 2000.

8. DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO BRASILEIRO PÓS-1930. Fundação Getúlio Vargas – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (FGV-CPDOC), 2000.

NOTAS1 Historiador e Advogado. Ex-professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da UFC. Atualmente, é Consultor Legislativo da área de educação e cultura da Câmara dos Deputados.2 PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros, SP: Paz e Terra, 1998. Ver também, da mesma, historiadora a coleção por ela dirigida juntamente com George Duby “A História das Mulheres” (5 vols.). São Paulo: EBRADIL, 1991.3 Estamos utilizando a expressão gênero para se referir à construção social do feminino e do masculino. Não há, pois, como fazer apenas uma história da mulher sem questionar a relação desta com o homem e de como, no decorrer da história, se construiu a noção de feminino e masculino.4 MATOS, Maria Izilda S. de. “Outras histórias: as mulheres e estudos de gênero- percursos e possibilidades” In: Gênero em Debate. Trajetória e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997, p. 86.5 A Lei nº 10.745, de 9 de outubro de 2003, é oriunda de um projeto de lei, de autoria da deputada Laura Carneiro (PFL-RJ) e, além de definir o ano de 2004 como “Ano da Mulher”, remete ao Poder Público a promoção na divulgação e comemoração dessa efeméride, mediante a realização de programas e atividades, com envolvimento da sociedade civil, visando estabelecer condições de igualdade e justiça na inserção da mulher na sociedade brasileira. A partir desta lei, a Câmara dos Deputados resolveu constituir uma Comissão Especial com a finalidade de definir a atuação desta Casa Legislativa nas ações destinadas a implementar as providências referidas nesse dispositivo legal.6 Berta Lutz foi a segunda mulher a assumir um mandato de deputada federal, em 28 de julho de 1936, na vaga deixada pelo deputado titular, Cândido Pessoa, que falecera. 7 TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense, 1993, Col. Tudo é História, p. 44.8 DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. RJ: Jorge Zahar Ed., 2000, p. 148.9 SCHPUN, Mônica Raisa. “Carlota Pereira de Queiroz: uma mulher na política” IN: Revista Brasileira de História- órgão oficial da Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH/ED. Unijuí,. vol. 17. nº 33, 1997, p. 174.10 O Projeto de Resolução foi uma iniciativa da deputada Laura Carneiro (PFL-RJ) na presente legislatura.

PERFIL

Charge

• Bordal Pinheiro por Paulo Caruso

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CHARGE

249

Ares de janota no início, quando da sua vinda ao Brasil, em 1875, um “clone” de Chaplin; depois, à época de seu retorno a Portugal, onde se torna pintor, gravador, escultor e ceramista renomado, ficou mais parecido com um dos vilões do Carlitos, gordo, com bigodões virado pra cima nas extremidades, e monóculo que espreita-va com seu olhar, apoiado sobre largas bochechas.

Raphael Bordalo Pinheiro foi, diga-mos assim, o segundo caricaturista no Brasil nos primórdios da nossa imprensa; o primeiro foi o italiano Ângelo D´Agostini.

Contratado para trabalhar em “O Mosquito”, durante cinco anos vai fusti-gar com suas caricaturas o modo de vida deste lado de cá do Atlântico, sendo um dos responsáveis pela entrada de José do Patrocínio no jornalismo.

Inicialmente afável, bem recebido pelo concorrente Agostini através de dese-nhos estampados na Revista Ilustrada, sau-dando sua chegada, vai, mais tarde, entrar em conflito com o italiano que não o perdoava pelo fato de exercer, além da caricatura, sua atividade de importador e ensacador de carnes, lingüiças, pra falar mais claro.

* PAULO CARUSO

* Cartunista

Isso lhe valeu uma guerra aberta com caricaturas nas revistas e jornais da época em que ambos se acusavam das mais tor-pes baixezas morais e estéticas, e Bordalo chegou a retratar o oponente como um Pinócchio pendurado num varal.

A ilustração que mais me chamou a atenção quando passeei pelos arredo-res da encantadora vila de Cascais, em Portugal, foi a de dois coveiros (um deles é a sua cara) conversando, enquanto enter-ram para sempre a tão falada liberdade de imprensa.

Publicada em “O Antonio Maria”, em outubro de 1881, esse fac-simile decora a parede de meu estúdio e muito me ensina sobre a atualidade do mestre Bordalo num tema tão caro a nós todos, praticantes do ofício de exercer nossa liberdade pela cari-catura.

A liberdade de imprensa é constan-temente ameaçada, seja pela ditadura das baionetas ou dos seus interesses econômi-cos, mas, hoje em dia, principalmente pela ditadura do “politicamente correto”.

Cabe a nós sepultá-la, porém, como sabemos, não vamos perder a piada por isso...

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HISTÓRIA DA HISTÓRIA * SEBASTIÃO NERY

AndradaAntonio Carlos Ribeiro de Andrada

Machado e Silva, um dos três heróicos irmãos Andradas da Independência (os outros eram José Bonifácio e Martim Francisco) era o presidente da Assembléia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil, instalada, em 3 de maio de 1823, onde hoje é o Palácio Tiradentes, no Rio (sede da Assembléia Legislativa do Estado).

Em 12 de novembro de 1823, com a Constituinte reunida e ele presidindo, Antonio Carlos viu o Imperador Dom Pedro I chegar à frente das tropas e cercar o edifício. Preso, pegou o chapéu e saiu com os dois irmãos, também constituintes, e outros, todos presos.

Lá fora, vê o Imperador. Tira o cha-péu e cumprimenta. Não o Imperador, mas um canhão. E seguiu em frente.

Alkmin

(*) Jornalista

FolclorePolítico

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FolclorePolítico

Na tribuna da Câmara, Carlos Lacerda, líder da UDN, desancava o governo de Juscelino. Alkmin, líder do governo, levantou-se com um jornal dobrado na mão:

“Deputado Carlos Lacerda, não era isso que V. Excia escrevia no ano passa-do em seu jornal, a Tribuna da Imprensa, sobre esse mesmo assunto”.

Lacerda perturbou-se, continuou, mudou de tema. Quando desceu, pediu o jornal a Alkmin.

Era O Globo.

Magalhães - I

Magalhães Pinto tinha come-çado a armar sua candidatura à presi-dência da UDN. A “Banda de Música” (Lacerda, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto, Adauto Cardoso, Oscar Correa) era con-

tra. E planejaram a primeira jogada contra Magalhães: eleger Baleeiro líder da banca-da na Câmara.

Lacerda foi encarregado de ir conver-sar com Magalhães:

“Nosso candidato é o Aliomar”.

“Sou contra. O Aliomar é muito talentoso, muito brilhante, mas não une o partido”.

“Magalhães, é por isso que acusam você de adesista. Você não quer um líder combativo. Quer um acomodado e isso não podemos aceitar”.

“Não se trata disso, Carlos. É que tenho outro candidato”.

“Quem?”

“Você. Por que não? Você não tem sido outra coisa na UDN senão líder. Meu candidato é você”.

Lacerda saiu, Magalhães ficou rindo:

“Estou só pensando na cara do Aliomar e do Adauto quando o Carlos contar a conversa”.

Lacerda foi líder e Magalhães presi-dente.

Magalhães - IIUm dia, Lacerda atacou violenta-

mente Magalhães pela TV. No dia seguin-te, encontraram-se em um banheiro do Congresso:

“Magalhães, fui muito agressivo com você ontem, me desculpe”.

“Nada disso, Carlos. Não aceito essas desculpas. Você me ataca pela TV e pede desculpas no mictório? Volta à TV e peça desculpas lá. Atacou na TV, conserte na TV”.

Lacerda pediu desculpas na TV.

252

HISTÓRIA DA HISTÓRIA

Pedro AleixoJosé Aparecido de Oliveira e eu con-

versávamos com Pedro Aleixo, já doente, alquebrado, em um hotel do Rio, sobre os sortilégios da política:

“Doutor Pedro, o senhor era presi-dente da Câmara dos Deputados aos 34 anos, Getúlio fechou o Congresso em 37. Depois, o senhor era vice-presidente de Costa e Silva, em 69, ele teve derrame, o senhor foi impedido de assumir”.

“Pois é, Aparecido, ninguém esco-lhe o lugar onde o raio cai. Ele caiu duas vezes em cima de mim”.

Lacerda - IQuando tentaram cassar o man-

dato de Carlos Lacerda, no governo de Juscelino, por ter divulgado um telegrama cifrado do Itamaraty, ele falou doze horas seguidas na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. E contou:

“Não era permitido falar tanto tempo. Mas, o presidente da Comissão era o baiano Oliveira Brito, do PSD. Arranjei um funcionário da Câmara que, de vez em quando, com o pretexto de trazer água, dissolvia umas bolinhas para ele ficar tranqüilo, meio sonolento. E ele, sonolento, não via o tempo passar e eu continuava lendo e falando”.

Lacerda - IIEloy Dutra elegeu-se deputado do

PTB da Guanabara combatendo Lacerda. Na primeira sessão, Lacerda na tribuna, Eloi pede um aparte, Lacerda concede, ouve em silêncio, vai em frente:

“Continuando a parte séria de meu discurso...”

Eloy protestou, o presidente Ranieri Mazzilli lembrou a Lacerda que, pelo regi-mento, ele devia responder. Respondeu:

“Responderei, senhor presidente, de acordo com o regimento. Deputado, retire-se de meu discurso!”

Lacerda - IIIO deputado cearense Bonaparte, que

tomou posse de smoking, ficou uma fera porque Lacerda falou em “cearenses con-trabandistas”:

“Deputado Carlos Lacerda, a banca-da do Ceará protesta!”

“Deputado Bonaparte, eu não disse que os cearenses são contrabandistas. Eu disse que há cearenses que fazem contra-bando. Entre os quais, data venia, incluo V. Excia.”

253

SEBASTIÃO NERY

Lacerda - IVClemes Sampaio, do PTB da Bahia,

estava na tribuna:

“Segundo Adam Smith, a lei do mer-cado...”

Lacerda pediu um aparte:

“V. Excia cometeu um equívoco. A tese da lei do mercado não é de Adam Smith, mas do famoso economista inglês Window.”

“Ilustre líder Carlos Lacerda, agra-deço a contribuição de V. Excia a meu discurso.”

“Senhor deputado, Window não é economista inglês nem de país nenhum. Window é apenas janela em inglês.”

Clemes se perdeu todo.

NereuNereu Ramos, de Santa Catarina,

presidente e patriarca do Congresso, sábio de antiqüíssimas lições, um Magalhães Pinto ainda mais feio, só usava borboleta. E só ele as usava, em todo o Congresso.

Um dia, chega de Minas, carregado de votos e de literaturas, o deputado Mário Palmério. E de gravata-borboleta. Nereu convidou-o para ir ao gabinete:

“Deputado, o senhor usa gravata- borboleta? Gosta mesmo de usá-las?”

“Gosto muito, presidente.”

“Então tome esta caixa. São minhas gravatas - borboleta. Ou só eu uso ou não uso.”

Não houve jeito de Palmério conser-tar a situção, deixando de usar. Nereu não concordou. Nunca mais usou gravata-bor-boleta. Ou só ele ou nada.

Mangabeira

Mangabeira estava na tribuna da Câmara, pedem-lhe um aparte.

“Meu filho, seu nome?”

“Fernado Ferrari, líder da bancada do PTB.”

“Pobre país de líderes mal saídos das fraldas.”

Tenório - ITenório Cavalcanti, da UDN do Rio,

valente e ágil, falava na Câmara:

“O Brasil precisa cultuar seus heróis, como João Fernandes Vieira, morto na Guerra do Paraguai.”

Geraldo Mello Mourão aparteia:

“Deputado, há um engano. João Fernandes Vieira é herói da guerra contra os holandeses. Não esteve na guerra do Paraguai.”

“Esteve em espírito, deputado.”

Tenório - IINa tribuna da Câmara, que Tenório

citou Rui Barbosa. Luís Viana aparteou:

254

HISTÓRIA DA HISTÓRIA

“Deputado, escrevi a biografia de Rui, li toda a sua obra e não me lembro disso a que V. Excia está se referindo.”

“Ora, deputado Luís Viana. O conse-lheiro Rui Barbosa conversava muito.”

ZezinhoA Câmara tinha três Jorge Curi: Jorge

Curi, da UDN do Paraná; Jorge Said Curi, do PTB do Estado do Rio e Athiê Jorge Curi, do PDC de São Paulo. Uma confusão permanente. Jorge Curi do Paraná fez uma questão de ordem:

“Senhor Presidente, quem deve usar o nome Jorge Curi?”

José Bonifácio, o Zezinho Bonifácio, sorriu lá de cima:

“Ora, deputado, não fique preocu-pado. Cada estado tem o Jorge Curi que merece.”

ÚltimoOscar Correia, bravo deputado da

UDN de Minas, debatia na Câmara com Último de Carvalho, do PSD de Minas, manhoso e sábio. Oscar Correia pedia definições, Último enrolava. Oscar ficou irritado:

“V. Excia não se define nunca. Fica dando uma no cravo e outra na ferradu-ra.”

“Também pudera! V. Excia não fica com o pé quieto!”

Benedito - IJuracy Magalhães, líder da UDN,

também da tribuna, atacava o governo de Juscelino. Benedito Valadares, líder do PSD, fora do plenário. Cinha Melo, do Amazonas, vice-líder do PSD, não sabia se

aparteava ou esperava Benedito. Foi cha-mar o líder na sala do cafezinho:

“Benedito, o Juracy está arrastando o governo.”

“Está bem, está bem.”

“Está atacando pessoalmente o Presidente.”

“Está bem, está bem.”

“Até palmas já houve para ele. Você não pode ficar aqui, Benedito. Você é o líder, tem que ir apartear o Juracy.”

“Ô Cunha Melo, me diz uma coisa. Quem é que sabe quando eu devo falar? Sou eu ou o Juracy?” Juracy falou, acabou, o assunto também. E Benedito, no cafe-zinho.

Benedito - IIBenedito ia entrando no Congresso,

passava o quase deputado Clovis Stenzel, cumprimentou-o. Benedito pergunta a um jornalista:

“Quem é aquele?”

“É o Clovis Stenzel, suplente do Rio Grande do Sul.”

“Ih, tenho pavor de suplente!”

E saiu ligeiro.

Benedito - IIIBenedito estava no Congresso,

já em adiantado estado de esclerose, entra Leandro Maciel, de Sergipe, cumprimenta-o:

“Bom dia, Benedito!”

“Bom dia!”

Leandro saiu, Benedito ficou olhando: “Quem é aquele índio?”

Leandro tinha mesmo cara de índio.

*As ilustrações que constam nesta sessão (Folclore Político) foram retirados com a devida autorização do autor do livro, Sebastião Nery - Folclore Político / 1950 – Histórias, e são de autoria dos Chargistas: Henfil, Nassara, Lan, Fafs e Osvaldo Pavanelli.

255

SEBASTIÃO NERY

Leituras

Alca: O Gigante e os Anões.Tullo Vigevanii e Marcelo Passino Mariano

SP - Editora SENAC/2003

Por Paulo Roberto Almeida

256

LEITURAS

A Alca do Gigante e a Alca dos Anões: Incompatibilidade de

Gênios

A Alca, pelo menos no Brasil, parece ter-se convertido numa espécie de “rogue concept”, ou seja, no vilão do momento. De fato, esse mero projeto se apresenta como uma perspectiva temida (para alguns, ele já seria uma realidade), ao mesmo tempo

em que como um destino recusado, e isso pelas mais variadas correntes de opinião, englobando profissionais do antiimperia-lismo e bispos da CNBB, políticos auto-proclamados nacionalistas e industriais protecionistas, sindicalistas tradicionais e ecologistas pós-modernos.

* Diplomata

LEITURAS * PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

257

Mesmo economistas, usualmente tidos como ponderados, têm recorrido a conceitos como “dominação hegemônica”, “assimetria de poder”, “desmantelamento industrial”, que não costumam freqüentar seu discurso, normalmente circunspecto. Não se passa, aliás, uma semana, sem que algum artigo vitriólico, descrevendo o saco de maldades embutido no futu-ro acordo hemisférico, seja publicado em algum jornal de circulação nacional, aproveitando, o autor, para cobrar do par-tido atualmente majoritário (e no poder) as dubiedades ou hesitações em relação a esse antigo projeto de “anexação” da economia brasileira ao território de caça do novo império.

Com tal exibição de paixões eco-nômicas e de fúrias políticas, fica difícil manter um debate racional sobre a mais importante proposta de integração conti-nental desde a primeira conferência inter-nacional americana, realizada na capital do (então nascente) império, em 1889-1890. No entanto, esse mesmo caráter controverso indica que estamos neces-sitando de bons estudos e de pesquisas rigorosas, como forma de devolver um certo equilíbrio a esse debate, que não pode, obviamente, ficar entregue a “parti-pris” redutores ou simplismos ideológicos, obscurecendo uma avaliação ponderada sobre a importância da Alca e seu possí-vel papel no futuro das relações hemisfé-ricas e para o próprio processo brasileiro de inserção econômica internacional (que não pode ser confundido como um iti-nerário para o desenvolvimento, o que a Alca não pode fazer sozinha).

O livro de Vigevani e de Mariano vem justamente preencher essa função

de ampliação (racional) e de balizamento (conceitual) desse importante debate para o Brasil e o Mercosul, e que vinha sendo impossibilitado pelo festival de superficia-lismo até aqui disponível para o grande público. Como apresentação sistemática da estrutura e das etapas seguidas até aqui pelo processo da Alca e como discus-são dos problemas enfrentados pelas três dezenas de “anões” em face do gigante hemisférico, o livro cumpre amplamente esse papel didático-analítico, dispondo de inegáveis méritos recapitulativos, ade-mais de uma rara capacidade (para os padrões do debate intelectual no Brasil) de colocar, no tocante à questão da Alca, senão todas as respostas que poderiam esperar seus leitores, pelo menos todas as perguntas pertinentes que podem ser feitas em relação a esse objeto. A despeito de uma concentração na ciência políti-ca, em contraposição ao que seria uma exposição basicamente econômica, cabe desde já descrever o livro e louvar-lhe as qualidades enquanto primeiro exemplo de avaliação abrangente do “problema” da Alca no e para o Brasil.

Trata-se de obra relativamente modesta (150 páginas de texto, em for-mato reduzido) para a complexidade da tarefa, mas que atende à finalidade de apresentar o que é o projeto da Alca e de introduzir a questão de como ela pode-ria impactar o Brasil e o Mercosul. Após um capítulo introdutório (“Esclarecendo dúvidas”), essencialmente conceitual, o livro se compõe de três grandes capítulos substantivos, cujos títulos são auto-expli-cativos: “Origem e desenvolvimento da Alca”, “Por que ‘o gigante e os anões’?” e “O Brasil e suas opções”. Um capítulo conclusivo retoma as principais questões

258

LEITURAS

abordadas ao longo do texto, comple-tando-se o livro com uma cronologia, um glossário de siglas e de organizações internacionais e regionais, bem como por uma relação de fontes adicionais de con-sulta na internet e uma bibliografia não exaustiva.

O tom geral do discur-so é razoavel-mente crítico em relação à Alca, como são, em geral, as poucas ilustrações sele-cionadas prova-velmente pelo editor: três car-toons típicos do jornalismo brasi-leiro (nos temas clássicos da cobi-ça imperialista e das desigualda-des de riqueza e poder entre o Norte e o Sul) e uma foto de uma grande “Marcha contra a Alca” (na qual figuram vários expoentes do atual governo). Não se poderia mesmo esperar ilustrações e fotos favoráveis à Alca, ou, em geral, manifestações a favor do livre-comércio, pois essa seria uma realidade impossível em qualquer país do mundo atual, no qual há uma quase una-nimidade da opinião pública contrária à liberalização comercial, ao mesmo tempo em que os governos tentam, por vezes de forma discreta e desajeitada, privatizar alguns mamutes, abrir a economia e atrair investimentos estrangeiros.

Não deve causar espanto, assim, o fato de que a maior parte das análises relativas à Alca apresentem, invariavel-mente, essa visão crítica do processo, como aliás revelado no próprio subtítulo do livro: “anões”. Por que exatamente um julgamento severo, de maneira preventiva,

contra a Alca, com base na desigualdade de base dos par-ceiros envolvi-dos, ao mesmo tempo em que, também invaria-velmente, esses opositores jul-gam de modo muito benigno (e de forma algo míope, eu pode-ria acrescentar) o mesmo pro-jeto de livre-comércio em curso de nego-ciação entre o Mercosul e a

UE? Por acaso, as chamadas “assimetrias estruturais” são menos relevantes neste caso, quando a UE ostenta aproximada-mente o mesmo gigantismo em termos de PIB e de comércio exterior que os EUA, sendo aliás muito menos atraente dos pontos de vista da composição do inter-câmbio e do protecionismo e do subven-cionismo revoltantes na área agrícola?

A despeito dessa característica comum à maior parte das análises rela-tivas à Alca conduzidas no Brasil, o livro de Vigevani e Mariano constitui, até aqui, a mais completa exposição do processo

259

PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

negociador hemisférico, desde suas ori-gens até as recentes tomadas de posição do novo governo brasileiro. Nele se dispõe de uma recapitulação cuidadosa de todos os encontros mantidos a partir da reunião de cúpula de Miami, em 1994, quando foi lançada a idéia de um acordo de livre-comércio hemis-férico para ser implementado a partir de 2005 (são examina-dos inclusive os precedentes, sob a forma da “Iniciativa para as Américas”, lançada em 1990 por Bush pai, e que con-duziria ao acor-do do Nafta, tão vilipendia-do quanto está sendo hoje sua extensão conti-nental).

De fato, o capítulo sobre “Origem e desenvolvimen-to da Alca” apresenta um relato fatual, honesto e objetivo (às vezes transcreven-do até o aborrecido da linguagem oficial dos comunicados presidenciais, ademais da estrutura negocial em cada etapa), de cada um dos encontros de cúpula e ministeriais ocorridos desde 1994. Não se descarta, outrossim, a visão crítica, já que o pressuposto das “bondades” do livre-comércio está sempre sendo confrontado às suas limitações objetivas em termos de desenvolvimento econômico e social para todos.

Trata-se, portanto, em primeiro lugar, de uma referência útil a todos aqueles que necessitam ou desejam saber de onde veio e como caminhou, até aqui, esse pro-blemático processo de integração (à falta de se poder dizer, com precisão, o que acontecerá com ele na fatídica data de

2005). O con-ceito de inte-gração é, aliás, definido no pri-meiro capítulo como um meio de se alcançar objetivos consi-derados estraté-gicos e que não seriam atingidos isoladamente. Os governos podem utilizar-se desse método para minimizar riscos ou produ-zir aumento de ganhos econô-micos.

Para os EUA, segundo o livro (p. 14), a proposta da Alca está a meio caminho da busca de “desenvolvimento econômico” – o que pode parecer incongruente, na medida em que não há, propriamente, referência mais avançada de desenvolvimento do que o próprio país – e do fortalecimento de seu “papel hegemônico”, segundo a “lógica da globalização” (o que sem dúvida corresponde à visão que se tem externamente dos “objetivos estratégicos” dos EUA). Para outros, numa estratégia mais defensiva, como por exemplo ou do novo presidente brasileiro, o reforço do

260

LEITURAS

Mercosul deve servir para “uma negocia-ção soberana diante da proposta da Alca” (p. 15), o que também está conforme a visão que se costuma ter, no Brasil, dos desafios do projeto hemisférico para uma economia percebida como frágil e des-preparada.

Essa dupla visão é, aliás, confirmada em diversas passa-gens do capítulo “Origem e desen-volvimento da Alca”, de resto mais expositivo do que propria-mente discus-sivo. As razões que impulsio-naram os EUA a propor esse pro-jeto teriam sido a necessidade de preservar sua “ s u p r e m a c i a econômica que parecia ameaça-da pelo avanço de alemães e japoneses” e o desejo de impulsionar a “globalização dos mercados” (p. 22). Como reação a essa ofensiva, os autores acreditam que os governos do Brasil e da Argentina decidi-ram aprofundar e acelerar o processo de integração bilateral começado nos anos 1980 e que receberia, a partir de 1991, o formato quadrilateral do Mercosul, apre-sentado como uma escolha de suas elites políticas e econômicas. Os autores evi-denciam a nítida relutância do governo e das lideranças políticas brasileiras em relação ao projeto da Alca, com base no

fato, obviamente manifesto, de que a con-veniência de se criar, ou não, uma área de livre-comércio hemisférica “nunca che-gou a ser objeto de debate nacional signi-ficativo” (p. 43).

Aqui parece residir a questão básica que angustia a maior parte dos observa-

dores isentos, ou pretensamente imparciais, em relação à Alca: não se sabe, de fato, se ela será, ou não, boa para o Brasil, dada a ausência de debates ade-quados e, mais ainda, de estu-dos satisfatórios. Existem, obvia-mente, aqueles que respondem de imediato pela negativa, e até se permitem fazer plebiscitos com perguntas

manifestamente capciosas (como as que vinculam a existência da Alca a uma ame-aça à soberania nacional), assim como existem aqueles (poucos) que respondem positivamente, com base numa simples constatação de que uma maior exposição ao comércio internacional melhorará os índices de competitividade da economia brasileira, além de ampliar o acesso ao maior mercado do planeta. Não se pode dizer que o livro tenha respondido cla-ramente a essa questão – o que seria de todo modo impossível de se fazer em bases puramente hipotéticas, pois que

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tudo depende da Alca que se logre forma-lizar – mas ele abre, pelo menos, algumas avenidas de discussão sobre o assunto (como na discussão sobre as condições de acesso a mercados e, mais importante, sobre as normas regulatórias desse aces-so).

O capí-tulo principal, entretanto, vem já marcado por uma certa pre-disposição nega-tiva ao referi-rem-se, os auto-res, ao “gigante” (apenas os EUA) e aos “anões” (todos os demais), quando isso não parece tão claro a partir de uma análise desagregada das várias interfaces da integração. Se colocarmos lado a lado o PIB individual (e nominal) de cada um desses atores, parece claro que as discrepâncias são incomensuráveis e talvez mesmo insuperáveis. Diferenças de tamanho, porém, nunca aboliram, ao que se sabe, o princípio das vantagens comparativas, que continua tão válido agora como nos tempos de David Ricardo, podendo, se tanto, produzir ganhos de escala que nunca são absolutos em vista de outras variáveis envolvidas na escala de competitividade.

De resto, o tão alardeado gigantismo das “megacorporações norte-americanas” – argumento, aliás, muito pouco utilizado

em relação às “megaempresas européias” – não parece sustentar-se em várias áreas de nítida competitividade brasileira (não apenas nas áreas labor-intensive, diga-se de passagem), com base em tecnologias tão ou mais avançadas do que aque-las existentes nos EUA – em siderurgia

ou agribusiness, por exemplo – ou em muitos outros terrenos nos quais podem ser mobilizados nossos imensos recursos natu-rais, os preços menores de vários insumos (terra, energia, mão-de-obra) ou a própria inova-ção e engenho-sidade brasileira (apesar de haver muito pouca confiança em nossas virtudes).

Se não fosse assim, por que exata-mente os lobbies no Congresso americano foram tão ativos e se apressaram em colo-car limites ou várias condicionalidades no mandato que aprovou a capacidade nego-ciadora do Executivo para a atual rodada de acordos comerciais? Se a assimetria é tão brutal, como explicar esses surtos de protecionismo setorial que, de resto, se exercem com igual acuidade no caso da Europa e de outros parceiros da OMC? Com apenas 1% do comércio internacio-nal (e algo equivalente nas importações totais dos EUA), o Brasil pode não ser um global player, como alardeado de

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forma permanente por nossos negociado-res, mas certamente não é o “anão” que se pretende mostrar em termos de poder de barganha e de vantagens competitivas. No frigir dos ovos, inclusive, nosso poder negociador é bem maior do que a mera expressão do nosso PIB, quando confron-tado ao do gigante.

Questão de tamanho à parte, o cerne da discus-são neste capítulo refere-se às dife-renças de condi-ções econômicas entre os parceiros da Alca, problema que tende a ser respondido pelos autores mediante a invocação das sérias dificulda-des ocorridas nos países latino-ame-ricanos nas duas últimas déca-das, em especial daqueles que teriam aberto suas econo-mias e seguido o receituário neoliberal.

A liberalização eventualmente patro-cinada pela Alca tenderia a acentuar, nessa visão, essas dificuldades, em especial em termos de desigualdades e precarização das condições de trabalho (p. 88). Ora, não é certo que a liberalização comercial agrave as condições macroeconômicas de um país, como o provaria o caso do Chile, um dos países mais assumidamente neoliberais e, ao mesmo tempo, detentor de uma das maiores taxas de crescimento com estabilidade da região.

Os autores também retomam, no debate de uma Alca “ideal”, alguns dos temas caros ao governo brasileiro, ante-rior e sobretudo atual no que concerne, por exemplo, à transferência (presumi-damente induzida) de tecnologia ou à existência de mecanismos compensató-rios das desigualdades estruturais. Nesse

último aspecto, existe a tendên-cia a se invocar o exemplo europeu e seus alegados fundos corretores de desvantagens, e se pretende que os EUA assumam esse papel de dis-pensador líquido de recursos, de know-how e de benesses para os mais pobres, de modo geral (entre os quais suposta-mente se inclui-ria o Brasil).

Na verdade, os autores reconhe-cem que diferenças entre países “não são obstáculos intransponíveis para a cons-tituição de blocos econômicos” (p. 98), mas voltam a dizer, no capítulo sobre “O Brasil e suas opções”, que “deixado livre, o mercado rege-se de acordo com suas próprias motivações, não tende neces-sariamente a equilibrar benefícios, pode manter ou aumentar as assimetrias e pode levar ao acúmulo de poder nas mãos dos que já o detêm” (p. 120). A recomen-dação, portanto, seria uma acumulação preliminar de capacitação tecnológica e econômica, se possível “no sentido de

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atribuir ao Estado a capacidade de pro-mover o desenvolvimento” (idem). Trata-se da velha tese, conhecida em nossa história, que recomenda que, em face de um desafio, postergue o quanto puder a solução do problema – abolição do tráfi-co, eliminação da escravidão, por exem-plo – até conse-guir juntar forças para enfrentar o valentão da escola.

E s t o u o b v i a m e n t e exagerando na caracterização do que seria uma posição atentis-ta ou meramen-te postergadora defendida por certos países, mas é o que julgo perceber na seguinte pas-sagem em que os autores apresentam a doutrina do livre-comércio de David Ricardo: “Essa lei (sic) seria verdadeira se a alocação dos fatores se desse num quadro de con-dições semelhantes. Quando esse quadro de referência básico não existe, para que o livre-comércio produza resultados satis-fatórios para todos os países interessados, são necessárias medidas não de mercado, mas que viabilizem previamente um nível mínimo de igualdade de condições, ainda que a longo prazo” (p.127).

Ora, a experiência histórica ensina que a “lei” funciona justamente porque as condições são diferentes e, se se preten-desse uma igualdade prévia entre os par-

ceiros, nunca ocorreria intercâmbio. Não se compreende aliás, como e em que uma integração com a UE seria mais vantajosa, dadas a existência das mesmas assimetrias estruturais e uma composição dos fluxos de comércio ainda menos diversificada do que aquela incidente no plano hemis-

férico.

Não se pode obvia-mente deixar de reconhecer as fortes assimetrias existentes ou as fragilidades lati-no-americanas, mas considerar, como fazem os autores, que “A eventual debi-lidade da posi-ção brasileira, assim como da de outros países latino-america-nos, reside na

fragilidade das políticas estatais” (p. 136), significaria admitir que apenas depois de muito planejamento indicativo, de fortes investimentos estatais e de “políticas cor-retivas” esses países estariam prontos para enfrentar um projeto como o da Alca. A mesma visão, segundo a agenda brasileira descrita pelos autores, que tende a pedir “metas de ajuste nos setores mais sensí-veis; negociar políticas compensatórias; e definir um ritmo mais lento para que as modificações necessárias sejam imple-mentadas” (p. 139), explica os medos ancestrais brasileiros de ter de enfrentar antes do tempo uma realidade que se crê desconhecida e ameaçadora.

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A solução consiste, invariavelmente, em apontar para a falta de um “projeto nacional” e em recomendar assim que o Estado, devidamente dotado de “planeja-mento estratégico”, assuma o papel con-dutor no fortalecimento da capacidade negociadora externa. Nem adianta, nessas circunstâncias, invocar uma bela frase do tipo “o Mercosul é destino e a Alca uma mera opção”, pois as invocações impres-sionísticas não resolvem alguns dos proble-mas básicos do Brasil: a falta de confiança em sua própria capacidade negociadora e a decisão de, por uma vez, enfrentar a realidade, em lugar de ficar eternamente postergando os embates.

O presente livro sobre a Alca e o “anão brasileiro” não responde, como se

disse, a todos os problemas colocados ao Brasil e ao Mercosul nesse debate relevante para o futuro do País e do bloco sub-regional, mas ele permite colocar, de maneira inteligente, todas as perguntas pertinentes para que esse debate possa ser feito com o mínimo de teologia e de ideologia, e com o máximo de racionalidade e de refinamento analítico. Em ambiente bibliográfico extremamente rarefeito sobre a questão, ele constitui uma publicação doravante indispensável para uma discussão bem informada sobre um projeto que está praticamente batendo na porta do futuro imediato.

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