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Fichamento Foucault. A arqueologia do saber - VI A descrio arqueolgica

VI A descrio arqueolgica

1

ARQUEOLOGIA E HISTRIA DAS IDIAS

Refletir sobre a

utilidade dessa anlise que, por um ato talvez muito solene, batizei

de "arqueologia".

Eu

havia partido de um problema relativamente simples: a escanso do

discurso segundo grandes unidades que no eram as das obras, dos

autores, dos livros ou dos temas. E eis que, com o nico fim de

estabelec-las, comecei a trabalhar toda uma srie de noes

(formaes discursivas, positividade, arquivo), defini um domnio

(os enunciados, o campo enunciativo, as prticas discursivas),

tentei fazer com que surgisse a especificidade de um mtodo que

no seria nem formalizador, nem interpretativo; em suma, apelei

para todo um aparelho, cujo peso e, sem dvida, bizarra

maquinaria so embaraosos, pois j existem vrios mtodos

capazes de descrever e analisar a linguagem, para que no seja

presuno querer acrescentar-lhes outro.

No fundo, talvez eu no passe de um

historiador das idias, mas envergonhado ou, se quiserem,

presunoso. Um historiador das idias que quis renovar

inteiramente sua disciplina; que desejou, sem dvida, dar-lhe o

rigor que tantas outras descries, bastante prximas, adquiriram

recentemente; mas que, incapaz de modificar realmente a velha

forma de anlise, incapaz de fazer com que transpusesse o limiar

da cientificidade (quer porque tal metamorfose jamais seja

possvel, quer porque no tenha tido foras para operar ele mesmo

essa transformao), declara, para iludir, que sempre fez e quis

fazer outra coisa.

Eu no teria o direito de estar

tranquilo enquanto no me separasse da "histria das idias",

enquanto no mostrasse em que a anlise arqueolgica se

diferencia de suas descries.

No fcil caracterizar uma disciplina como a histria das

idias: objeto incerto, fronteiras maldesenhadas, mtodos

A Arqueologia do Saber 155

tomados de emprstimo aqui e ali, procedimento sem retitude e

sem fixidez. Parece, no entanto, que podemos atribuir-lhe dois

papis. Por um lado, ela conta a histria dos elementos secundrios

e das margens.

a histria das idias se

dirige a todo esse insidioso pensamento, a todo esse jogo de

representaes que correm anonimamente entre os homens;

Anlise das opinies mais que do saber, dos erros mais que da

verdade; no das formas do pensamento, mas dos tipos de

mentalidade.

Mostra, em

compensao, como, pouco a pouco, as grandes figuras assim

constitudas se decompem: como os temas se desatam, seguem

sua vida isolada, caem em desuso ou se recompem de um novo

modo.

A histria das

156 Michel Foucault

idias , ento, a disciplina dos comeos e dos fins, a descrio das

continuidades obscuras e dos retornos, a reconstituio dos

desenvolvimentos na forma linear da histria.

mostra como o saber

cientfico se difunde, d lugar a conceitos filosficos e toma forma

eventualmente em obras literrias; mostra como problemas,

noes, temas podem emigrar do campo filosfico em que foram

formulados para discursos cientficos ou polticos; relaciona obras

com instituies, hbitos ou comportamentos sociais, tcnicas,

necessidades e prticas mudas; tenta fazer reviverem as formas

mais elaboradas de discurso na paisagem concreta, no ambiente de

crescimento e de desenvolvimento que as viu nascerem.

V-se bem como os dois papis da histria das idias se

articulam um com o outro. Em sua forma mais geral, podemos

dizer que ela descreve sem cessar - e em todas as direes em que

se efetua - a passagem da no-filosofia filosofia, da

no-cientificidade cincia, da no-literatura prpria obra. Ela

a anlise dos nascimentos surdos, das correspondncias

longnquas, das permanncias que se obstinam sob mudanas

aparentes, das lentas formaes que se beneficiam de um

sem-nmero de cumplicidades cegas, dessas figuras globais que se

ligam pouco a pouco e, de repente, se condensam na agudeza da

obra.

Gnese, continuidade, totalizao: eis os grandes temas da

histria das idias, atravs dos quais ela se liga a uma certa forma,

hoje tradicional, de anlise histrica.

Ora, a descrio arqueolgica

precisamente abandono da histria das idias, recusa sistemtica de

seus postulados e de seus procedimentos, tentativa de fazer uma

histria inteiramente diferente daquilo que os homens disseram.

Entre anlise arqueolgica e histria das idias, os pontos de

separao so numerosos.

Tentarei estabelecer, em seguida, quatro

diferenas que me parecem capitais: a propsito da determinao

de novidade; a propsito da anlise das contradies; a propsito

das descries comparativas; a propsito, enfim, da demarcao

das transformaes.

1. A arqueologia busca definir no os pensamentos, as

representaes, as imagens, os temas, as obsesses que se ocultam

ou se manifestam nos discursos, mas os prprios discursos,

enquanto prticas que obedecem a regras.

Ela no trata o discurso

como documento,

ela se dirige ao

discurso em seu volume prprio, na qualidade de monumento. No

se trata de uma disciplina interpretativa: no busca um "outro

discurso" mais oculto. Recusa-se a ser "alegrica".

2. A arqueologia no procura encontrar a transio contnua e

insensvel que liga, em declive suave, os discursos ao que os

precede, envolve ou segue. No espreita o momento em que, a

partir do que ainda no eram, tornaram-se o que so; nem

tampouco o momento em que, desfazendo a solidez de sua figura,

vo perder, pouco a pouco, sua identidade. O problema dela , pelo

contrrio, definir os discursos em sua especificidade; mostrar em

que sentido o jogo das regras que utilizam irredutvel a qualquer

outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor

salient-los.

3. A arqueologia no ordenada pela figura soberana da obra;

no busca compreender o momento em que esta se destacou do

horizonte annimo. No quer reencontrar o ponto enigmtico em

que o individual e o social se invertem um no outro. Ela no nem

psicologia, nem sociologia, nem, num sentido mais geral,

antropologia da criao.

A obra no para ela um recorte

pertinente, mesmo se se tratasse de recoloc-la em seu contexto

global ou na rede das causalidades que a sustentam. Ela define

tipos e regras de prticas discursivas que atravessam obras

individuais,

4. Finalmente, a arqueologia no procura reconstituir o que

pde ser pensado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos

homens no prprio instante em que proferiam o discurso;

Em outras palavras, no tenta repetir o que

foi dito, reencontrando-o em sua prpria identidade.

No pretende

se apagar na modstia ambgua de uma leitura que deixaria voltar,

em sua pureza, a luz longnqua, precria, quase extinta da origem

No o retorno ao prprio segredo da origem; a

descrio sistemtica de um discurso-objeto.

2

O ORIGINAL E O REGULAR

Em geral, a histria das idias trata o campo dos discursos

como um domnio de dois valores; todo elemento que a

demarcado pode ser caracterizado como antigo ou novo; indito ou

repetido; tradicional ou original; semelhante a um tipo mdio ou

desviante.

Descrevendo o primeiro, ela conta a histria das invenes, das

mudanas, das metamorfoses, mostra como a verdade se subtraiu

ao erro, como a conscincia despertou de seus sonos sucessivos,

como formas novas se ergueram, alternadamente, para nos dar a

paisagem que , agora, a nossa; cabe ao historiador reencontrar, a

partir desses pontos isolados, dessas rupturas sucessivas, a linha

contnua de uma evoluo. O outro grupo, ao contrrio, manifesta a

histria como inrcia e marasmo, como lento acmulo do passado

e sedimentao silenciosa das coisas ditas;

perdem importncia tambm a identidade de seu

autor, o momento e o lugar de seu aparecimento; em compensao,

sua extenso que deve ser medida: at onde e at quando eles se

repetem, por que canais se difundem, em que grupos circulam, que

horizonte geral delineiam para o pensamento dos homens, que

limites lhe impem e, caracterizando uma poca, como permitem

distingui-la das outras.

no primeiro, reconstitumos a

emergncia das verdades ou das formas; no segundo,

restabelecemos as solidariedades esquecidas e remetemos os

discursos sua relatividade.

Essa descrio das originalidades, se bem que

parea evidente, coloca dois problemas metodolgicos bem

difceis: o

A Arqueologia do Saber 161

da semelhana e o da sequncia.

Supe, na verdade, que se possa

estabelecer uma espcie de grande srie nica em que cada

formulao seja datada segundo marcos cronolgicos homogneos.

Ser na mesma srie e segundo o

mesmo modo de anterioridade que Saussure "precedido" por

Peirce e sua semitica, por Arnauld e Lancelot com a anlise

clssica do signo, pelos esticos e a teoria do significante? A

precedncia no um dado irredutvel e primeiro; no pode

desempenhar o papel de medida absoluta que permitiria avaliar

qualquer discurso e distinguir o original do repetitivo.

No basta a

demarcao dos antecedentes para determinar uma ordem

discursiva: ela se subordina, ao contrrio, ao discurso que se

analisa, ao nvel que se escolhe, escala que se estabelece.

Estendendo o discurso ao longo de um calendrio e dando uma

data a cada um de seus elementos, no se obtm a hierarquia

definitiva das precedncias e das originalidades; esta s se refere

aos sistemas dos discursos que tenta valorizar.

Em

que sentido e segundo que critrios pode-se afirmar: "isto j foi

dito"; "a mesma coisa j se encontra em tal texto"; "esta proposio

muito prxima daquela" etc.?

O que identidade, parcial ou total,

na ordem do discurso?

Sabemos que o fato de duas enunciaes

serem exatamente idnticas, formadas pelas mesmas palavras

usadas no mesmo sentido, no autoriza a que as identifiquemos de

maneira absoluta.

Ainda que encontrssemos em Diderot e

Lamarck, em Benoit de Maillet e Darwin, a mesma formulao do

princpio evolutivo, no poderamos considerar que se tratasse de

um nico e mesmo acontecimento discursivo que teria sido

submetido, atravs do tempo, a uma srie de repeties.

No h semelhana em si,

imediatamente reconhecvel, entre as formulaes: sua analogia

um efeito do campo discursivo em que a delimitamos.

No legtimo, pois, indagar queima-roupa, aos textos que

estudamos, sobre seu valor de originalidade e sobre os fragmentos

de nobreza que se medem aqui na ausncia de ancestrais.

Mas buscar no grande amontoado

do j dito o texto que se assemelha "antecipadamente" a um texto

ulterior, procurar por toda parte para encontrar, atravs da histria,

o jogo das antecipaes ou dos ecos, remontar at os germens

primeiros ou descer at os ltimos vestgios, ressaltar

alternadamente, a propsito de uma obra, sua fidelidade s

tradies ou sua parte de irredutvel singularidade, aumentar ou

diminuir sua cota de originalidade, dizer que os gramticos de

Port-Royal nada inventaram, ou descobrir que Cuvier tinha mais

predecessores do que se acreditava, so passatempos simpticos,

mas tardios, de historiadores de calas curtas.

A descrio arqueolgica se dirige s prticas discursivas a que

os fatos de sucesso devem-se referir, se no quisermos

estabelec-los de maneira selvagem e ingnua, isto , cm termos de

mrito.

No nvel em que se coloca, a oposio

originalidade-banalidade no , portanto, pertinente: entre uma

formulao inicial e a frase que - anos, sculos mais tarde - a

repetiu mais ou menos exatamente, ela no estabelece ne-

1. Foi dessa maneira que M. Canguilhem estabeleceu a sequncia das proposies

que, de Willis a Prochaska, permitiu a definio do reflexo.

nhuma hierarquia de valor; no faz diferena radical.

Procura

somente estabelecer a regularidade dos enunciados.

Regularidade

no se ope, aqui, irregularidade que, nas margens da opinio

corrente, ou dos textos mais frequentes, caracterizaria o enunciado

desviante (anormal, proftico, retardatrio, genial ou patolgico);

designa, para qualquer performance verbal (extraordinria ou

banal, nica em seu gnero ou mil vezes repetida)

Todo

enunciado portador de uma certa regularidade e no pode dela ser

dissociado.

No se deve, portanto, opor a regularidade de um

enunciado irregularidade de outro (que seria menos esperado,

mais singular, mais rico em inovaes), mas sim a outras

regularidades que caracterizam outros enunciados.

A arqueologia no est procura das invenes e permanece

insensvel ao momento (emocionante, admito) em que, pela

primeira vez, algum esteve certo de uma verdade;

O que busca nos

textos de Lineu ou de Buffon, de Petty ou de Ricardo, de Pinel ou

de Bichat, no estabelecer a lista dos santos fundadores; revelar

a regularidade de uma prtica discursiva que exercida, do mesmo

modo, por todos os seus sucessores menos originais, ou por alguns

de seus predecessores; prtica que d conta, na prpria obra, no

apenas das afirmaes mais originais (e com as quais ningum

sonhara antes deles), mas das que eles retomaram, at recopiaram

de seus predecessores.

[ENTENDI, MAS O QUE E COMO SERIA ISSO NA PRTICA?! PRECISO DE EXEMPLOS!!!!]

Uma descoberta no menos regular, do

ponto de vista enunciativo, do que o texto que a repete e a difunde;

Em tal

descrio, no se pode admitir uma diferena de natureza entre

enunciados criadores (que fazem aparecer alguma coisa nova, que

emitem uma informao indita e que so, de certa forma, "ativos")

e enunciados imitativos (que recebem e repetem a informao,

permanecem por assim dizer

164 Michel Foucault

"passivos"). O campo dos enunciados no um conjunto de plagas

inertes, escandido por momentos fecundos; um domnio

inteiramente ativo.

Essa anlise das regularidades enunciativas se abre em diversas

direes que talvez devam ser, um dia, exploradas com mais

cuidado.

1. Uma certa forma de regularidade caracteriza, pois, um

conjunto de enunciados, sem que seja necessrio - ou possvel -

estabelecer uma diferena entre o que seria novo e o que no seria.

Mas as regularidades - voltaremos a isso em seguida - no se

apresentam de maneira definitiva;

Temos, portanto, campos

homogneos de regularidades enunciativas (eles caracterizam uma

formao discursiva), mas tais campos so diferentes entre si. Ora,

no necessrio que a passagem a um novo campo de

regularidades enunciativas seja acompanhada de mudanas

correspondentes em todos os outros nveis dos discursos. Podemos

encontrar performances verbais que so idnticas do ponto de vista

da gramtica (vocabulrio, sintaxe e, de uma maneira geral, a

lngua); que so igualmente idnticas do ponto de vista da lgica

(estrutura proposicional, ou sistema dedutivo no qual se encontra

situada); mas que so enunciativamenie diferentes.

preciso,

pois, distinguir entre analogia lingustica (ou tradutibilidade),

identidade lgica (ou equivalncia) e homogeneidade enunciativa.

So dessas homogeneidades - e exclusivamente -que a arqueologia

se encarrega. Ela pode ver surgir uma prtica discursiva nova

atravs das formulaes verbais que permanecem linguisticamente

anlogas ou logicamente equivalentes (retomando, s vezes,

palavra por palavra, a velha teoria da frase-atribuio e do

verbo-ligao, os gramticos de Port-Royal abriram uma

regularidade enunciativa cuja especificidade a arqueologia deve

descrever)

No se pode mais dizer que uma descoberta, a

formulao de um princpio geral, ou a definio de um projeto,

inaugura - e de forma macia - uma fase nova na histria do

discurso.

No se deve mais procurar o ponto de origem absoluta,

ou de revoluo total, a partir do qual tudo se organiza, tudo se

torna possvel e necessrio, tudo se extingue para recomear.

Temos de tratar de acontecimentos de tipos e de nveis diferentes,

tomados em tramas histricas distintas;

modo algum que, de

agora em diante e por dcadas ou sculos, os homens vo dizer e

pensar a mesma coisa; no implica, tampouco, a definio,

explcita ou no, de um certo nmero de princpios de que todo o

resto resultaria como consequncia.

As homogeneidades (e

heterogeneidades) enunciativas se entrecruzam com continuidades

(e mudanas) lingusticas, com identidades (e diferenas) lgicas,

sem que umas e outras caminhem no mesmo ritmo ou se dominem

necessariamente. Entretanto, deve existir entre elas um certo

nmero de relaes e interdependncias cujo domnio, sem dvida

muito complexo, dever ser inventariado.

2. Outra direo de pesquisa: as hierarquias internas s

regularidades enunciativas. Vimos que todo enunciado se

relacionava a uma certa regularidade - que nada, por conseguinte,

podia ser considerado como pura e simples criao, ou maravilhosa

desordem do gnio.

Mas vimos, tambm, que nenhum enunciado

podia ser considerado como inativo e valer como sombra ou

decalque pouco reais de um enunciado inicial.

Todo o campo

enunciativo , ao mesmo tempo, regular e vigilante: insone; o

menor enunciado - o mais discreto ou banal - coloca em prtica

todo o jogo das regras segundo as quais so formados seu objeto,

sua modalidade, os conceitos

166 Michel Foucault

que utiliza e a estratgia de que faz parte. As

Pode-se, assim, descrever uma rvore de derivao enunciativa:

em sua base, os enunciados que empregam as regras de formao

em sua extenso mais ampla; no alto, e depois de um certo nmero

de ramificaes, os enunciados que empregam a mesma

regularidade, porm mais sutilmente articulada, mais bem

delimitada e localizada em sua extenso.

Podem-se, assim, descrever as

derivaes arqueolgicas da histria natural sem comear por seus

axiomas indemonstrveis ou seus temas fundamentais (por

exemplo, a continuidade da natureza) e sem tomar como ponto de

partida e como fio condutor as primeiras descobertas ou as

primeiras abordagens (as de Tournefort antes das de Lineu, as de

Jonston antes das de Tournefort). A ordem arqueolgica no nem

a das sistematicidades, nem a das sucesses cronolgicas.

Mas vemos abrir-se todo um domnio de questes possveis.

Por mais que essas diferentes ordens sejam especficas e tenham

cada uma sua autonomia, deve haver entre elas relaes e

dependncias.

importante, de

qualquer forma, no confundir os diversos ordenamentos; no

procurar em uma "descoberta" inicial, ou na originalidade de uma

formulao, o princpio de onde podemos tudo deduzir e derivar;

no procurar, em um princpio geral, a lei das regularidades

enunciativas ou das invenes individuais; no pedir derivao

arqueolgica que reproduza a ordem do tempo ou que revele um

esquema dedutivo.

Nada seria mais falso do que ver na anlise das formaes

discursivas uma tentativa de periodizao totalitria: a partir de um

certo momento e por um certo tempo, todo mundo pensaria da

mesma forma, apesar das diferenas de superfcie, diria a mesma

coisa, atravs de um vocabulrio polimorfo, e produziria uma

espcie de grande discurso que se poderia percorrer

indiferentemente em todos os sentidos.

Ao contrrio, a arqueologia

descreve um nvel de homogeneidade enunciativa que tem seu

prprio recorte temporal, e que no traz com ela todas as outras

formas de identidade e de diferenas que podem ser demarcadas na

linguagem;

Nas to

confusas unidades chamadas "pocas", ela faz surgirem, com sua

especificidade, "perodos enunciativos" que se articulam no tempo

dos conceitos, nas fases tericas, nos estgios de formalizao e

nas etapas de evoluo lingustica, mas sem se confundir com eles.

3

AS CONTRADIES

Sob todas essas

formas, a coerncia assim descoberta desempenha sempre o

mesmo papel: mostrar que as contradies imediatamente

170 Michel Foucault

visveis no so mais que um reflexo de superfcie; e que preciso

reconduzir a um foco nico esse jogo de fragmentos dispersos.

A

contradio a iluso de uma unidade que se oculta ou que

ocultada: s tem seu lugar na defasagem existente entre a

conscincia e o inconsciente, o pensamento e o texto, a idealidade

e o corpo contingente da expresso. De qualquer forma, a anlise

deve suprimir, sempre que possa, a contradio.

Ao fim desse trabalho, permanecem somente contradies

residuais - acidentes, faltas, falhas - ou surge, ao contrrio, como se

toda a anlise a isso tivesse conduzido, em surdina e apesar dela, a

contradio fundamental: emprego, na prpria origem do sistema,

de postulados incompatveis, entrecruzamento de influncias que

no se podem conciliar, difrao primeira do desejo, conflito

econmico e poltico que ope uma sociedade a si mesma; tudo

isso, ao invs de aparecer como elementos superficiais que

preciso reduzir, se revela finalmente como princpio organizador,

como lei fundadora e secreta que justifica todas as contradies

menores e lhes d um fundamento slido: modelo, em suma, de

todas as outras oposies.

Tal contradio, longe de ser aparncia

ou acidente do discurso, longe de ser aquilo de que preciso

libert-lo para que ele libere, enfim, sua verdade aberta, constitui a

prpria lei de sua existncia:

a partir dela que ele emerge; ao

mesmo tempo para traduzi-la e super-la que ele se pe a falar;

para fugir dela, enquanto ela renasce sem cessar atravs dele, que

ele continua e recomea indefinidamente, por ela estar sempre

aqum dele e por ele jamais poder contorn-la inteiramente que ele

muda, se metamorfoseia, escapa de si mesmo em sua prpria

continuidade. A contradio funciona, ento, ao longo do discurso,

como o princpio de sua historicidade.

A histria das idias reconhece, pois, dois nveis de

contradies: o das aparncias, que se resolve na unidade profunda

do discurso, e o dos fundamentos, que d lugar ao prprio discurso.

O discurso o caminho de

A Arqueologia do Saber 171

uma contradio a outra: se d lugar s que vemos, que obedece

que oculta. Analisar o discurso fazer com que desapaream e

reapaream as contradies; mostrar o jogo que nele elas

desempenham; manifestar como ele pode exprimi-las, dar-lhes

corpo, ou emprestar-lhes uma fugidia aparncia.

Para a anlise arqueolgica, as contradies no so nem

aparncias a transpor, nem princpios secretos que seria preciso

destacar.

So objetos a ser descritos por si mesmos, sem que se

procure saber de que ponto de vista se podem dissipar ou em que

nvel se radicalizam e se transformam de efeitos em causas.

Eis um

exemplo simples, e diversas vezes aqui mesmo citado: o princpio

fixista de Lineu foi contestado no sculo XVIII no tanto pela

descoberta da Peloria, que mudou somente suas modalidades de

aplicao, mas por um certo nmero de afirmaes

"evolucionistas" que se pode encontrar em Buffon, Diderot,

Bordeu, Maillet e muitos outros.

A arqueologia tenta mostrar como as duas afirmaes, a

fixista e a "evolucionista", tm seu lugar comum em uma certa

descrio das espcies e dos gneros: essa descrio toma por

objeto a estrutura visvel dos rgos (isto , sua forma, seu

tamanho, seu nmero e sua disposio no espao); e pode limit-lo

de duas maneiras (no conjunto do organismo, ou em alguns de seus

elementos, determinados seja por sua importncia, seja por sua

comodidade taxionmica); revela-se, ento, no segundo caso, um

quadro regular, dotado de um nmero de casos definidos,

constituindo, de alguma forma, o programa de toda criao

possvel (de modo que, atual, ainda

futuro, ou j desaparecido, o ordenamento das espcies e dos

gneros est definitivamente fixado); e, no primeiro caso, grupos

de parentesco que permanecem indefinidos e abertos, que esto

separados uns dos outros e que toleram, em nmero indeterminado,

novas formas to prximas quanto se queira das formas

preexistentes.

Fazendo assim com que a contradio entre duas

teses derive de um certo domnio de objetos, de suas delimitaes e

de seu esquadrinhamento, no a resolvemos; no descobrimos o

ponto de conciliao. Mas no a transferimos tampouco a um nvel

mais fundamental; definimos o lugar em que se d; fazemos

aparecer a ramificao da alternativa; localizamos a divergncia e

o lugar em que os dois discursos se justapem.

Tomando as contradies como objetos a ser descritos, a anlise

arqueolgica no tenta descobrir em seu lugar uma forma ou uma

temtica comuns, e sim determinar a medida e a forma de sua

variao.

Em relao a uma histria das idias que desejaria fundir

as contradies na unidade seminoturna de uma figura global, ou

transmut-las em um princpio geral, abstrato e uniforme de

interpretao ou de explicao, a arqueologia descreve os

diferentes espaos de dissenso.

Uma formao discursiva no , pois, o texto ideal, contnuo e

sem aspereza, que corre sob a multiplicidade das contradies e as

resolve na unidade calma de um pensamento coerente; no ,

tampouco, a superfcie em que se vem refletir, sob mil aspectos

diferentes, uma contradio que estaria sempre em segundo plano,

mas dominante.

antes um espao de dissenses mltiplas; um

conjunto de oposies diferentes cujos nveis e papis devem ser

descritos. A anlise arqueolgica revela o primado de uma

contradio que tem seu modelo na afirmao e na negao

simultnea de uma nica e mesma proposio, mas no para

nivelar todas as oposies em formas gerais de pensamento e

pacific-las fora por meio de um a priori coator. Trata-se, ao

contrrio, de demarcar, em uma prtica discursiva determinada, o

ponto em que elas se constituem, definir a forma que assumem, as

relaes que

176 Michel Foucault

estabelecem entre si e o domnio que comandara. Em suma,

trata-se de manter o discurso em suas asperezas mltiplas e de

suprimir, em consequncia disso, o tema de uma contradio

uniformemente perdida e reencontrada, resolvida e sempre

renascente, no elemento indiferenciado do logos.

4

OS FATOS COMPARATIVOS

A anlise arqueolgica individualiza e descreve formaes

discursivas, isto , deve compar-las, op-las umas s outras na

simultaneidade em que se apresentam, distingui-las das que no

tm o mesmo calendrio, relacion-las no que podem ter de

especfico com as prticas no discursivas que as envolvem e lhes

servem de elemento geral.

Bem diferente, ainda nisto, das

descries epistemolgicas ou "arquitetnicas" que analisam a

estrutura interna de uma teoria, o estudo arqueolgico est sempre

no plural: ele se exerce em uma multiplicidade de registros;

percorre interstcios e desvios; tem seu domnio no espao em que

as unidades se justapem, se separam, fixam suas arestas, se

enfrentam, desenham entre si espaos em branco.

Quando se dirige

a um tipo singular de discurso (o da psiquiatria na Histoire de la

folie ou o da medicina em Naissance de la clinique), para

estabelecer, por comparao, seus limites cronolgicos; tambm

para descrever, ao mesmo tempo que eles e em correlao com

eles, um campo institucional, um conjunto de acontecimentos, de

prticas, de decises polticas, um encadeamento de processos

econmicos em que figuram oscilaes demogrficas, tcnicas de

assistncia, necessidades de mo-de-obra, nveis diferentes de

desemprego etc.

Mas ele pode tambm, por uma espcie de

aproximao lateral (como em Les mots et les choses), utilizar

178 Michel Foucault

vrias positividades distintas, cujos estados concomitantes so

comparados durante um perodo determinado e confrontados com

outros tipos de discurso que tomaram o seu lugar em uma

determinada poca.

Quando se confronta a

gramtica geral, a anlise das riquezas e a histria natural na poca

clssica,

Tratava-se de fazer aparecer um conjunto bem determinado de

formaes discursivas, que tm entre si um certo nmero de

relaes descritveis.

No s admito que minha

anlise seja limitada, mas quero que seja assim e lho imponho.

O que entre eles seria

lacuna, esquecimento, erro, para mim excluso deliberada e

metdica.

Alm disso,

cada formao discursiva no pertence (de qualquer forma no

pertence necessariamente) a um nico desses sistemas, mas entra

simultaneamente em diversos campos de relaes em que no

ocupa o mesmo lugar e no exerce a mesma funo (as relaes

taxionomia-patologia no so isomrficas s relaes

taxionomia-gramtica; as relaes gramtica-anlise das riquezas

no so isomrficas s relaes gramtica-exegese).

no so isomrficas s relaes gramtica-exegese).

O horizonte ao qual se dirige a arqueologia no , pois, uma

cincia, uma racionalidade, uma mentalidade, uma cultura; um

emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de

cruzamentos no podem ser fixados de imediato. A arqueologia:

uma anlise comparativa que no se destina a reduzir a diversidade

dos discursos nem a delinear a unidade que deve totaliz-los, mas

sim a repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparao

arqueolgica no tem um efeito unificador, mas multiplicador.

2. Confrontando a gramtica geral, a histria natural e a anlise

das riquezas nos sculos XVII e XVIII, poderamos perguntar que

idias tinham em comum, nessa poca, linguistas, naturalistas e

tericos da economia; poderamos perguntar que postulados

implcitos supunham em comum, apesar da diversidade de suas

teorias, a que princpios gerais obedeciam, talvez silenciosamente;

poderamos perguntar que influncia a anlise da linguagem

exercera sobre a taxionomia, ou que papel a idia de uma natureza

ordenada tinha representado na teoria da riqueza; poderamos

estudar, igualmente, a difuso respectiva desses diferentes tipos de

discurso, o prestgio de cada um, a valorizao decorrente de sua

antiguidade (ou, ao contrrio, de sua data recente) e de seu maior

rigor, os canais de comunicao e as vias pelas quais se fizeram

as trocas de informao; poderamos, finalmente, reunindo anlises

inteiramente tradicionais, perguntar em que medida Rousseau havia

transferido, para a anlise das lnguas e sua origem, seu saber e

experincia de botnico; que categorias comuns Turgot tinha aplicado

anlise da moeda e teoria da linguagem e da etimologia; como a idia

de uma lngua universal, artificial e perfeita fora remanejada e utilizada

por classificadores como Lineu e Adanson. Todas essas questes,

certamente, seriam legtimas (pelo menos algumas delas...). Mas nem

umas nem outras so pertinentes ao nvel da arqueologia.

O que esta quer libertar , inicialmente - mantidas a especificidade e a

distncia das diversas formaes discursivas -, o jogo das analogias e das

diferenas, tais como aparecem no nvel das regras de formao. Isso

implica cinco tarefas distintas:

a) Mostrar como elementos discursivos inteiramente diferentes

podem ser formados a partir de regras anlogas (os conceitos da

gramtica geral, como os de verbo, sujeito, complemento, raiz, so

formados a partir das mesmas disposies, do campo enunciativo -teorias

da atribuio, da articulao, da designao, da derivao -que os

conceitos, entretanto bem diferentes e radicalmente heterogneos, da

histria natural e da economia); mostrar, entre formaes diferentes, os

isomorfismos arqueolgicos.

b) Mostrar at que ponto essas regras se aplicam ou no do mesmo

modo, se encadeiam ou no da mesma ordem, dispem-se ou no

conforme o mesmo modelo nos diferentes tipos de discurso definir o modelo arqueolgico de cada

formao

e) Mostrar como conceitos perfeitamente diferentes (como os de valor

e de carter especfico, ou de preo e de carter genrico) ocupam uma

posio anloga na ramificao de seu sistema de positividade -que so

dotados, assim, de uma isotopia arqueolgica- ainda que seu domnio de

aplicao, seu grau de formalizao, sobretudo sua gnese histrica, os

tornem totalmente estranhos uns aos outros.

d) Mostrar, em compensao, como uma nica e mesma noo

(eventualmente designada por uma nica e mesma palavra) pode

abranger dois elementos arqueologicamente distintos (as noes de

origem e de evoluo no tm nem o mesmo papel, nem o mesmo

182 Michel Foucault

lugar, nem a mesma formao no sistema de positividade da gramtica

geral e no da histria natural); indicar as defasagens arqueolgicos.

e) Mostrar, finalmente, como, de uma positividade a outra, podem ser

estabelecidas relaes de subordinao ou de complementaridade (assim,

em relao anlise da riqueza e das espcies, a descrio da

linguagem desempenha, durante a poca clssica, um papel dominante,

na medida em que ela a teoria dos signos de instituio que desdobram,

marcam e representam a prpria representao): estabelecer as

correlaes arqueolgicas.

de revelar o que as tornou possveis;

de demarcar os pontos em que se pde efetuar a projeo de um conceito

sobre outro, de fixar o isomorfismo que permitiu uma transferncia de

mtodos ou de tcnicas, de mostrar as vizinhanas, as simetrias ou as

analogias que permitiram as generalizaes; em suma, de descrever o

campo de vetores e de receptividade diferencial (de permeabilidade e de

impermeabilidade) que, para o jogo das trocas, foi uma condio de

possibilidade histrica.

3. A arqueologia faz tambm com que apaream relaes entre as

formaes discursivas e domnios no discursivos (instituies,

acontecimentos polticos, prticas e processos

A Arqueologia do Saber 183

econmicos). Tais aproximaes no tm por finalidade revelar

grandes continuidades culturais ou isolar mecanismos de

causalidade. Diante de um conjunto de fatos enunciativos, a

arqueologia no se questiona o que pde motiv-lo (esta a

pesquisa dos contextos de formulao); no busca, tampouco,

encontrar o que neles se exprime (tarefa de uma hermenutica); ela

tenta determinar como as regras de formao de que depende - e

que caracterizam a positividade a que pertence - podem estar

ligadas a sistemas no discursivos; procura definir formas

especficas de articulao.

Consideremos o exemplo da medicina clnica, cuja instaurao

no final do sculo XVIII contempornea de um certo nmero de

acontecimentos polticos, de fenmenos econmicos e de

mudanas institucionais. fcil suspeitar, pelo menos

intuitivamente, que existam laos entre esses fatos e a organizao

de uma medicina hospitalar. Mas como analis-los? Uma anlise

simblica veria, na organizao da medicina clnica e nos

processos histricos que lhe foram concomitantes, duas expresses

simultneas que se refletem e se simbolizam uma outra, que

funcionam reciprocamente como espelho, e cujas significaes so

tomadas em um jogo indefinido de remisses: duas expresses que

no exprimem nada mais que a forma que lhes comum. Assim, as

idias mdicas de solidariedade orgnica, de coeso funcional, de

comunicao tissular - e o abandono do princpio classificatrio

das doenas em proveito de uma anlise das interaes corporais -

corresponderiam (para refleti-las, mas tambm para nelas se mirar)

a uma prtica poltica que descobre, sob estratificaes ainda

feudais, relaes de tipo funcional, solidariedades econmicas,

uma sociedade cujas dependncias e reciprocidades deviam

assegurar, na forma da coletividade, o analogon da vida.

Uma

anlise causai, em compensao, consistiria em procurar saber at

que ponto as mudanas polticas, ou os processos econmicos,

puderam determinar a conscincia dos homens de cincia - o

horizonte e a direo de seu interesse, seu sistema de valores, sua

maneira de perceber as coisas, o estilo de sua racionalidade; assim,

em uma poca em que o capitalismo industrial comeava a

recensear suas necessidades de mo-de-obra, a doena tomou uma

dimenso social: a manuteno da sade, a cura, a assistncia aos

doentes pobres, a pesquisa das causas e dos focos patognicos

tornaram-se um encargo

184 Michel

coletivo que o Estado devia, por um lado, assumir e, por outro,

supervisionar. Da resultam a valorizao do corpo como

instrumento de trabalho, o cuidado de racionalizar a medicina pelo

modelo das outras cincias, os esforos para manter o nvel de

sade de uma populao, o cuidado com a teraputica, a

manuteno de seus efeitos, o registro dos fenmenos de longa

durao.

A arqueologia situa sua anlise em um outro nvel: os

fenmenos de expresso, de reflexos e de simbolizao so, para

ela, apenas os efeitos de uma leitura global em busca das analogias

formais ou das translaes de sentidos; quanto s relaes causais,

elas s podem ser assinaladas no nvel do contexto ou da situao e

de seu efeito sobre o sujeito falante; de qualquer modo, umas e

outras s podem ser demarcadas uma vez definidas as

positividades em que aparecem e as regras segundo as quais essas

positividades foram formadas.

O campo de relaes que caracteriza

uma formao discursiva o lugar de onde as simbolizaes e os

efeitos podem ser percebidos, situados e determinados. Se a

arqueologia aproxima o discurso mdico de um certo nmero de

prticas para descobrir relaes muito menos "imediatas" que a

expresso, mas muito mais diretas que as de uma causalidade

substituda pela conscincia dos sujeitos falantes.

Ela quer mostrar

no como a prtica poltica determinou o sentido e a forma do

discurso mdico, mas como e por que ela faz parte de suas

condies de emergncia, de insero e de funcionamento.

Vemos aparecer tambm a

relao entre a prtica poltica e o discurso mdico no status

atribudo ao mdico, que se torna o titular - no apenas

privilegiado, mas quase exclusivo - desse discurso, na forma de

relao institucional que ele pode ter com o doente hospitalizado

ou com sua clientela particular, nas modalidades de ensino e de

difuso que so prescritas ou autorizadas para esse saber.

Finalmente, podemos compreender tal relao na funo que

atribuda ao discurso mdico, ou no papel que dele se requer,

quando se trata de julgar indivduos, tomar decises

administrativas, dispor as normas de uma sociedade, traduzir - para

"resolv-los" ou mascar-los - conflitos de uma outra ordem,

apresentar modelos de tipo natural s anlises da sociedade e s

prticas que lhe so pertinentes.

No se trata, portanto, de mostrar

como a prtica poltica de uma dada sociedade constituiu ou

modificou os conceitos mdicos e a estrutura terica da patologia,

mas como o discurso mdico, como prtica que se dirige a um

certo campo de objetos, que se encontra nas mos de um certo

nmero de indivduos estatutariamente designados, que tem, enfim,

de exercer certas funes na sociedade, se articula em prticas que

lhe so exteriores e que no so de natureza discursiva.

Se, nessa anlise, a arqueologia suprime o tema da expresso e

do reflexo, se ela se recusa a ver no discurso a superfcie de

projeo simblica de acontecimentos ou de processos situados em

outra parte, no para encontrar um encadeamento causai que se

poderia descrever ponto por ponto e que permitiria relacionar uma

descoberta e um acontecimento, ou um conceito e uma estrutura

social.

a

descrio arqueolgica dos discursos se desdobra na dimenso de

uma histria geral; ela procura descobrir todo o domnio das

instituies dos processos econmicos, das relaes sociais nas

quais pode articular-se uma formao discursiva; ela tenta mostrar

como a autonomia do discurso e sua especificidade no lhe do,

por isso, um status de pura idealidade e

186 Michel Foucault

de total independncia histrica; o que ela quer revelar o nvel

singular em que a histria pode dar lugar a tipos definidos de

discurso que tm, eles prprios, seu tipo de historicidade e que

esto relacionados cora todo um conjunto de historicidades

diversas.

5

A MUDANA E AS TRANSFORMAES

Seria possvel fazer histria tradicional das idias

todas as crticas tericas que se quisesse ou pudesse: pelo menos

para si, ela tem de tomar por tema essencial os fenmenos de

sucesso e de encadeamento temporais, de analis-los conforme os

esquemas de evoluo e de descrever, assim, o desenrolar histrico

dos discursos.

A arqueologia, em compensao, parece tratar a

histria s para imobiliz-la. De um lado, descrevendo suas

formaes discursivas, abandona as sries temporais que a se

podem manifestar; busca regras gerais que valem uniformemente, e

da mesma maneira, em todos os pontos do tempo: no impe, a um

desenvolvimento talvez lento e imperceptvel, a figura coatora de

uma sincronia.

O discurso subtrado lei do devir e se

estabelece em uma intemporalidade descontnua. Imobiliza-se por

fragmentos: estilhaos precrios de eternidade. Mas, por mais que

se queira, diversas eternidades que se sucedem, um jogo de

imagens fixas que se eclipsam sucessivamente, tudo isso no

constitui nem um movimento, nem um tempo, nem uma histria.

por mais que as regras

estejam investidas em cada enunciado, por mais que, por

conseguinte, sejam reutilizadas em cada um, elas no se modificam

a cada oportunidade; podemos reencontr-las em atividade em

enunciados ou grupos de enunciados bem dispersos no tempo.

Alm disso, vimos que a ordem dos

enunciados segundo a derivao arqueolgica no reproduzia,

forosamente, a ordem das sucesses: podem-se encontrar em

Beauze enunciados arqueologicamente anteriores aos que se

encontram na Grammare de Port-Royal.

H, ento, em semelhante

anlise, uma suspenso das sequncias temporais - para sermos

mais exatos, do calendrio das formulaes. Mas a suspenso tem

precisamente por fim fazer aparecerem relaes que caracterizam a

temporalidade das formaes discursivas e a articulam em sries,

cujo entrecruzamento no impede a anlise.

a) A arqueologia define as regras de formao de um conjunto de

enunciados. Manifesta, assim, como uma sucesso de

A Arqueologia do Saber 189

acontecimentos pode, na prpria ordem em que se apresenta, tornar-se

objeto de discurso, ser registrada, descrita, explicada, receber elaborao

em conceitos e dar a oportunidade de uma escolha terica.

A arqueologia

analisa o grau e a forma de permeabilidade de um discurso: apresenta o

principio de sua articulao com uma cadeia de acontecimentos

sucessivos; define os operadores pelos quais os acontecimentos se

transcrevem nos enunciados.

Ela no contesta, por exemplo, a relao

entre a anlise das riquezas e as grandes flutuaes monetrias do sculo

XVII e do incio do sculo XVIII; tenta mostrar o que, dessas crises,

podia ser tido como objeto do discurso, como podiam elas estar a

conceitualizadas. como os interesses que se defrontavam no decurso

desses processos podiam a dispor sua estratgia. Ou, ainda, no afirma

que a clera de 1832 no tenha sido um acontecimento para a medicina:

mostra como o discurso clnico empregava regras tais que todo um

domnio de objetos mdicos pde ser, ento, reorganizado, que se pde

usar todo um conjunto de mtodos de registro e de notao, que se pde

abandonar o conceito de inflamao e liquidar, definitivamente, o velho

problema terico das febres.

Longe de ser indiferente sucesso, a

arqueologia demarca os vetores temporais de derivao.

A arqueologia no tenta tratar como simultneo o que se d como

sucessivo; no tenta imobilizar o tempo e substituir seu fluxo de

acontecimentos por correlaes que delineiam uma figura imvel. O que

ela suspende o tema de que a sucesso um absoluto: um encadeamento

primeiro e indissocivel a que o discurso estaria submetido pela lei de sua

finitude; e tambm o tema de que no discurso s h uma forma e um

nico nvel de sucesso

Ela substitui esses temas por anlises que fazem

aparecer, ao mesmo tempo, as diversas formas de sucesso que se

superpem nos discursos (e por formas no se deve entender

simplesmente os ritmos ou as causas, mas as prprias sries) e a maneira

pela qual se articulam as sucesses assim especificadas.

preciso, portanto,

para constituir uma histria arqueolgica do discurso, livrarmo-nos de

dois modelos que, por muito tempo sem dvida, impuseram sua imagem:

o modelo linear de ato da fala (e pelo menos uma parte da escrita) em que

todos os acontecimentos se sucedem, com exceo do efeito de

coincidncia e de superposio: e o modelo do fluxo de conscincia cujo

presente escapa sempre a si mesmo na abertura do futuro e na reteno do

passado.

O discurso, pelo menos tal como analisado pela

arqueologia, isto , no nvel de sua positividade, no uma

conscincia que vem alojar seu projeto na forma externa da

linguagem; no uma lngua, com um sujeito para fal-la. uma

prtica que tem suas formas prprias de encadeamento e de

sucesso.

A arqueologia fala - bem mais vontade do que a histria das

idias - de cortes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas de

positividade e redistribuies sbitas. Fazer a histria da economia

poltica era, tradicionalmente, procurar tudo que poderia ter

precedido Ricardo, tudo que poderia ter delineado antecipadamente

suas anlises, seus mtodos e suas noes principais, tudo que

poderia ter tornado suas descobertas mais provveis;

A arqueologia procede

inversamente; procura soltar todos os fios ligados pela pacincia

dos historiadores; multiplica as diferenas, baralha as linhas de

comunicao e se esfora para tornar as passagens mais difceis;

no tenta mostrar que a anlise fisiocrtica da produo preparava

a de Ricardo; no considera pertinente, a suas prprias anlises,

dizer que Coeurdoux havia preparado Bopp.

A que corresponde essa insistncia sobre as descontinuidades?

Na verdade, ela s paradoxal em relao ao hbito dos

historiadores

esse hbito - e sua preocupao com as

continuidades, passagens, antecipaes, esboos prvios -que,

muito frequentemente, representa o paradoxo.

Se h

um paradoxo da arqueologia, no no fato de que ela multiplicaria

as diferenas, mas no fato de que ela se recusa a reduzi-las -

invertendo, assim, os valores habituais.

Para a histria das idias, a

diferena, tal como aparece, erro ou armadilha; ao invs de se

deixar prender por ela, a sagacidade da anlise deve procurar

desfaz-la: encontrar sob ela uma diferena menor e, abaixo desta,

uma outra ainda mais limitada, e assim indefinidamente at o

limite ideal que seria a no-diferena da perfeita continuidade. A

arqueologia, em compensao, toma por objeto de sua descrio o

que habitualmente se considera obstculo: ela no tem por projeto

superar as diferenas, mas analis-las, dizer em que exatamente

consistem e diferenci-las.

1. A arqueologia, ao invs de considerar que o discurso feito apenas

de uma srie de acontecimentos homogneos (as formulaes

individuais), distingue, na prpria densidade do discurso, diversos planos

de acontecimentos possveis: plano dos prprios enunciados em sua

emergncia singular; plano de aparecimento dos objetos, dos tipos de

enunciao, dos conceitos, das escolhas estratgicas (ou das

transformaes que afetam as que j existem); plano da derivao de

novas regras de formao a partir de regras j empregadas - mas sempre

no elemento de uma nica e mesma positividade; finalmente, em um

quarto nvel, plano em que se efetua a substituio de uma formao

discursiva por outra (ou do aparecimento e do desaparecimento puro e

simples de uma positividade).

O aparecimento de uma nova

positividade no assinalado por uma frase nova - inesperada,

surpreendente, logicamente imprevisvel, estilisticamente desviante - que

viria inserir-se em um texto e anunciaria quer o comeo de um novo

captulo, quer a interveno de um novo locutor. Trata-se de um

acontecimento de tipo totalmente diferente.

O desaparecimento de uma positividade e a emergncia

de uma outra implica diversos tipos de transformaes. Indo das mais

particulares s mais gerais, pode-se e deve-se descrever como se

transformaram os diferentes elementos de um sistema de formao (quais

foram, por exemplo, as variaes da taxa de desemprego e das

necessidades de emprego, quais foram as decises polticas referentes s

corporaes e universidade, quais foram as novas necessidades e

possibilidades de assistncia no final do sculo XVIII - elementos que

entram no sistema de formao da medicina clnica); como se

transformaram as relaes caractersticas de um sistema de formao

(como foi modificada, por exemplo, em meados do sculo XVII, a relao

entre campo perceptivo, cdigo lingustico, mediao instrumental e

informao, que era utilizada pelo discurso sobre os seres vivos,

permitindo, assim, a definio dos objetos da histria natural); como as

relaes entre diferentes regras de formao foram transformadas (como,

por exemplo, a biologia modifica a ordem e a dependncia estabelecidas

pela histria natural entre a teoria da caracterizao e a anlise das

derivaes temporais); como, enfim, se transformam as relaes entre

diversas positividades (como as relaes entre filologia, biologia e

economia transformam as relaes entre gramtica, histria natural e

anlise das riquezas; como se decompe a configurao interdiscursiva

delineada pelas relaes privilegiadas entre essas trs disciplinas; como se

encontram modificadas suas relaes respectivas com a matemtica e a

filosofia;como se destaca um lugar para outras formaes discursivas e,

singularmente, para a interpositividade que tomar o nome de cincias

humanas).

Em vez de invocar a fora viva da mudana (como se esta

fosse seu prprio princpio), ou lhe procurar as causas (como se nunca

passasse de puro e simples efeito), a arqueologia tenta estabelecer o

sistema das transformaes em que consiste a "mudana"; tenta elaborar

essa noo vazia e abstrata para dar-lhe o status analisvel da

transformao.

3. Dizer que uma formao discursiva substitui outra no dizer que

todo um mundo de objetos, enunciaes, conceitos, escolhas tericas

absolutamente novas surge j armado e organizado em um

A Arqueologia do Saber 195

texto que o situaria de uma vez por todas;

mas sim que aconteceu uma

transformao geral de relaes que, entretanto, no altera forosamente

todos os elementos;

que os enunciados obedecem a novas regras de

formao e no que todos os objetos ou conceitos, todas as enunciaes

ou todas as escolhas tericas desaparecem.

Ao contrrio, a partir dessas

novas regras, podem ser descritos e analisados fenmenos de

continuidade, de retorno e de repetio:

O

problema para a arqueologia no negar tais fenmenos, nem querer

diminuir sua importncia; mas, ao contrrio, medi-los e tentar explic-los:

como pode haver permanncias ou repeties, longos encadeamentos ou

curvas que transpem o tempo.

A arqueologia no considera o contnuo

como o dado primeiro e ltimo que deve dar conta do resto; considera, ao

contrrio, que o mesmo, o repetitivo e o ininterrupto constituem um

problema tanto quanto as rupturas;

4. O aparecimento e a destruio das positividades, o jogo de

substituies a que do lugar no constituem um processo homogneo

que se desenrolaria, em toda parte, da mesma maneira. No se deve

acreditar que a ruptura seja uma espcie de grande deriva geral a que

estariam submetidas, ao mesmo tempo, todas as formaes discursivas:

a

ruptura no um tempo morto e indiferenciado que se intercalaria - no

mais que um instante - entre duas fases manifestas; no o lapso sem

durao que separaria duas pocas e desdobraria, de um lado e de outro

de uma falha, dois tempos heterogneos; sempre, entre positividades

definidas, uma descontinuidade especificada por um certo nmero de

transformaes distintas. Desse modo, a anlise dos cortes arqueolgicos

tem por propsito estabelecer, entre tantas modificaes diversas,

analogias e diferenas, hierarquias, complementaridades, coincidncias e

defasagens: em suma. descrever a disperso das prprias

descontinuidades.

A idia de um nico e mesmo corte que divide de uma s vez, e em

um momento dado, todas as formaes discursivas, interrompendo-as

com um nico movimento e reconstituindo-as segundo as mesmas regras,

no poderia ser mantida.

Da os fenmenos de "deslocamento segmentar" de

que se pode citar, pelo menos, um outro exemplo notrio: conceitos como

os de mais-valia ou de baixa tendencial da taxa de lucro, tais como se

encontram em Marx. podem ser descritos a partir do sistema de

positividade que j empregado em Ricardo: ora, esses conceitos (que

so novos, mas cujas regras de formao no o so) aparecem - no prprio

Marx - como referentes, ao mesmo tempo, a uma prtica discursiva

inteiramente diversa: so a formados segundo leis especficas, ocupam

outra posio, no figuram nos mesmos encadeamentos; essa positividade

nova no uma transformao das anlises de Ricardo; no uma nova economia poltica; um discurso cuja instaurao teve lugar

em virtude da derivao de certos conceitos econmicos, mas que, em

compensao, define as condies nas quais se exerce o discurso dos

economistas e pode, pois, valer como teoria e crtica da economia

poltica.

A arqueologia desarticula a sincronia dos cortes, como teria desfeito a

unidade abstrata da mudana e do acontecimento. A poca no nem sua

unidade de base, nem seu horizonte, nem seu objeto; se fala sobre ela,

sempre a propsito de prticas discursivas determinadas e como resultado

de suas anlises.

A poca clssica, que foi frequentemente mencionada

nas anlises arqueolgicas, no uma figura temporal que impe sua

unidade e sua forma vazia a todos os discursos; o nome que se pode dar

a um emaranhado de continuidades e descontinuidades, de modificaes

internas s positividades, de formaes discursivas que aparecem e

desaparecem.

Da mesma forma, a ruptura no , para a arqueologia, o

ponto de apoio de suas anlises, o limite que ela mostra de longe, sem

poder determin-lo nem dar-lhe uma especificidade: a ruptura o nome

dado s transformaes que se referem ao regime geral de uma ou vrias

formaes discursivas.

Assim, a Revoluo Francesa -j que foi em torno

dela que se centraram at aqui todas as anlises arqueolgicas - no

representa o papel de um acontecimento exterior aos discursos, cujo efeito

de diviso, para pensarmos como se deve, teria de ser reencontrado em

todos os discursos; ela funciona como um conjunto complexo, articulado,

descritvel, de transformaes que deixaram intactas um certo nmero de

positividades, fixaram, para outras, regras que ainda so as nossas e,

igualmente, estabeleceram positividades que acabam de se desfazer ou se

desfazem ainda sob nossos olhos.

6

CINCIA E SABER

Em uma palavra, qual

a relao entre arqueologia e anlise das cincias?

a) Positiuidades, disciplinas, cincias

A

arqueologia no descreve disciplinas. Estas, no mximo, em seu

desdobramento manifesto, podem servir de isca para a descrio

das positividades; mas no lhe fixam os limites: no lhe impem

recortes definitivos; no se encontram inalteradas no fim da

anlise; no se pode estabelecer relao biunvoca entre as

disciplinas institudas e as formaes discursivas.

Mas h mais:

recuando no tempo e procurando o que pde preceder nos sculos

XVII e XVIII a instaurao da psiquiatria, percebeu-se que no

havia nenhuma disciplina anterior: o que era dito das manias,

delrios, melancolias, doenas nervosas, pelos mdicos na poca

clssica no constitua de modo algum uma disciplina autnoma,

mas, no mximo, uma rubrica na anlise das febres, das alteraes

dos humores, ou das afeces do crebro. Entretanto, apesar da

ausncia de qualquer disciplina instituda, uma prtica discursiva

com sua regularidade e consistncia era empregada. Essa prtica

discursiva, certamente, era empregada na medicina, mas, de igual

modo, nos regulamentos administrativos, textos literrios ou

filosficos, casustica, teorias ou projetos de trabalho obrigatrio

ou de assistncia aos pobres.

Temos, ento, na poca clssica, uma

formao discursiva e uma positividade perfeitamente acessveis

descrio, s quais no corresponde nenhuma disciplina definida

que se possa comparar psiquiatria.

As formaes discursivas no so, pois, as cincias

futuras no momento em que, ainda inconscientes de si mesmas, se

constituem em surdina: no esto, na verdade, em um estado de

subordinao teleolgica em relao ortognese das cincias.

No se pode, ento, identificar as formaes discursivas nem s

cincias, nem s disciplinas pouco cientficas, nem s figuras que

delineiam de longe as cincias que viro, e nem, finalmente, a

formas que excluem, logo de incio, qualquer cientificidade.

b) O saber

As positividades no caracterizam formas de conhecimento -

quer sejam condies a priori e necessrias ou formas de

racionalidade que puderam, por sua vez, ser empregadas pela

histria.

Mas elas no definem, tampouco, o estado dos

conhecimentos em um dado momento do tempo: no estabelecem

o balano do que, desde aquele momento, pde ser demonstrado e

assumir status de aquisio definitiva;

Analisar positividades mostrar segundo que

regras uma prtica discursiva pode formar grupos de objetos,

conjuntos de enunciaes, jogos de conceitos, sries de escolhas

tericas.

trata-se dos elementos que devem ter

sido formados por uma prtica discursiva, para que, eventualmente,

se constitusse um discurso cientfico, especificado no s por sua

forma e seu rigor, mas tambm pelos objetos de que se ocupa, os

tipos de enunciao que pe em jogo, os conceitos que manipula e

as estratgias que utiliza.

Assim, a cincia no se relaciona com o

que devia ser vivido, ou deve s-lo, para que seja fundada a

inteno de idealidade que lhe prpria; mas sim com

o que devia

ser dito - ou deve s-lo -para que possa haver um discurso que, se

for o caso, responda a critrios experimentais ou formais de

cientificidade.

A esse conjunto de elementos, formados de maneira regular por

uma prtica discursiva e indispensveis constituio de uma

cincia, apesar de no se destinarem necessariamente a lhe dar

lugar, pode-se chamar saber.

Um saber aquilo de que podemos

falar em uma prtica discursiva que se encontra assim

especificada: o domnio constitudo pelos diferentes objetos que

iro adquirir ou no um status cientfico

(o saber da psiquiatria, no

sculo XIX, no a soma do que se acreditava fosse verdadeiro;

o conjunto das condutas, das singularidades, dos desvios de que se

pode falar no discurso psiquitrico);

H saberes que so independentes das cincias (que no so nem

seu esboo histrico, nem o avesso vivido); mas no h saber sem

uma prtica discursiva definida, e toda prtica discursiva pode

definir-se pelo saber que ela forma.

Enquanto a histria das idias encontra o ponto de equilbrio de

sua anlise no elemento do conhecimento (encontrando-se, assim,

coagida a reencontrar a interrogao transcendental), a arqueologia

encontra o ponto de equilbrio de sua anlise no saber - isto , era

um domnio em que o sujeito necessariamente situado e

dependente, sem que jamais possa ser considerado titular (seja

como atividade transcendental, seja como conscincia emprica).

Os territrios arqueolgicos podem

atravessar textos "literrios" ou "filosficos", bem como textos

cientficos. O saber no est contido somente em demonstraes;

pode estar tambm em fices, reflexes, narrativas, regulamentos

institucionais, decises polticas.

As cincias - pouco importa, no momento, a diferena entre os

discursos que tm presuno ou status de cientificidade e os que

apresentam realmente seus critrios formais - aparecem no

elemento de uma formao discursiva, tendo o saber como fundo.

c) Saber e ideologia

A cincia (ou o que passa por tal)

localiza-se em um campo de saber e nele tem um papel, que varia

conforme as diferentes formaes discursivas e que se modifica de

acordo com suas mutaes.

Aquilo que, na poca clssica, era

considerado como conhecimento mdico das doenas da mente

ocupava, no saber da loucura, um lugar muito limitado: no era

mais que uma de suas superfcies de afloramento entre muitas

outras (jurisprudncia, casustica, regulamentao policial etc.); em

compensao, as anlises psicopatolgicas do sculo XIX, que

tambm passavam por

conhecimento cientfico das doenas mentais, desempenharam um

papel muito diferente e bem mais importante no saber da loucura

(papel de modelo e de instncia de deciso).

a anlise arqueolgica, ao invs de

definir entre eles uma relao de excluso ou de subtrao

(buscando a parte do saber que se furta e resiste ainda cincia, e a

parte da cincia que ainda est comprometida pela vizinhana e

influncia do saber), deve mostrar, positivamente, como uma

cincia se inscreve e funciona no elemento do saber.

sem dvida a, nesse espao de ao, que se estabelecem e se

especificam as relaes da ideologia com as cincias.

A influncia

da ideologia sobre o discurso cientfico e o funcionamento

ideolgico das cincias

articulam-se onde a

cincia se destaca sobre o saber.

Se a questo da ideologia pode ser

proposta cincia, na medida em que esta, sem se identificar com

o saber, mas sem apag-lo ou exclu-lo, nele se localiza, estrutura

alguns de seus objetos, sistematiza algumas de suas enunciaes,

formaliza alguns de seus conceitos e de suas estratgias;

1. A ideologia no exclui a cientificidade. Poucos discursos deram

tanto lugar ideologia quanto o discurso clnico ou o da economia

poltica:

2. As contradies, as lacunas, as falhas tericas podem assinalar o

funcionamento ideolgico de uma cincia (ou de um discurso com

pretenso cientfica);

um discurso no anula forosamente sua relao com a

ideologia. O papel da ideologia no diminui medida que cresce o rigor e

que se dissipa a falsidade.

4. Estudar o funcionamento ideolgico de uma cincia para faz-lo

aparecer e para modific-lo

coloc-la novamente em questo como formao

discursiva; estudar no as contradies formais de suas proposies,

mas o sistema de formao de seus objetos, tipos de enunciao,

conceitos e escolhas tericas. retom-la como prtica entre outras

prticas.

d) Os diferentes limiares e sua cronologia

A propsito de uma formao discursiva, podem-se descrever diversas

emergncias distintas. O momento a partir do qual uma prtica discursiva

se individualiza e assume sua autonomia, o momento, por conseguinte,

em que se encontra em ao um nico e mesmo sistema de formao dos

enunciados, ou ainda o momento em que esse sistema se

transforma, poder ser chamado limiar de positividade.

e) Os diferentes tipos de histria das cincias

de formalizao.1

diferente a anlise histrica que se situa no limiar da

cientificidade e que se interroga sobre a maneira pela qual ele pde

ser transposto a partir de figuras epistemolgicas diversas. Trata-se

de saber, por exemplo, como um conceito - carregado ainda de

metforas ou de contedos imaginrios - se purificou e pde

assumir status e funo de conceito cientfico;

Nesse nvel, a

cientificidade no serve como norma: o que se tenta revelar, na

histria arqueolgica, so as prticas discursivas na medida em

que do lugar a um saber, e em que esse saber assume o status e o

papel de cincia. Empreender nesse nvel uma histria das cincias

no descrever formaes discursivas sem considerar estruturas

epistemolgicas; mostrar como a instaurao de uma cincia, e

eventualmente sua passagem formalizao, pode ter encontrado

sua possibilidade e sua incidncia em uma formao discursiva e

nas modificaes de sua positividade.

f) Outras arqueologias

Uma questo permanece em suspenso: seria possvel conceber

uma anlise arqueolgica que fizesse aparecer a regularidade de

um saber, mas que no se propusesse a analis-lo na direo das

figuras epistemolgicas e das cincias? A orientao voltada para a

episteme a nica que pode abrir-se arqueologia? Deve ser esta -

e exclusivamente - uma certa maneira de interrogar a histria das

cincias? Em outras palavras, limitando-se, at o momento,

regio dos discursos cientficos, a arqueologia tem obedecido a

uma necessidade que no poderia superar - ou tem esboado, em

um exemplo

216 Michel Foucault

particular, formas de

anlise que podem ter uma extenso

inteiramente diferente?

No momento, avancei muito pouco para responder

definitivamente a essa pergunta. Mas imagino de bom grado -

aguardando ainda numerosas experincias que seria preciso

empreender e muitas tentativas - arqueologias que se

desenvolveriam em direes diferentes. Consideremos, por

exemplo, uma descrio arqueolgica da "sexualidade". Vejo bem,

de agora em diante, como se poderia orient-la no sentido da

episteme: mostraramos de que maneira, no sculo XIX, se

formaram figuras epistemolgicas como a biologia ou a psicologia

da sexualidade; e por qual ruptura se instaurou, com Freud, um

discurso de tipo cientfico.

Mas percebo, tambm, uma outra

possibilidade de anlise: ao invs de estudar o comportamento

sexual dos homens em uma dada poca (procurando sua lei em

uma estrutura social, em um inconsciente coletivo, ou em uma

certa atitude moral), ao invs de descrever o que os homens

pudessem pensar da sexualidade (que interpretao religiosa lhe

davam, que valorizao ou que reprovao faziam recair sobre ela,

que conflitos de opinio ou de moral ela podia suscitar),

perguntaramos se, nessas condutas, assim como nessas

representaes, toda uma prtica discursiva no se encontra

inserida; se a sexualidade, fora de qualquer orientao para um

discurso cientfico, no um conjunto de objetos de que se pode

falar (ou de que proibido falar), um campo de enunciaes

possveis (quer se trate de expresses lricas ou de prescries

jurdicas), um conjunto de conceitos (que podem, sem dvida, ser

apresentados sob a forma elementar de noes ou de temas), um

jogo de escolhas (que pode aparecer na coerncia das condutas ou

em sistemas de prescrio).

Tal arqueologia, se fosse bem-sucedida

em sua tarefa, mostraria como as proibies, as excluses, os

limites, as valorizaes, as liberdades, as transgresses da

sexualidade, todas as suas manifestaes, verbais ou no, esto

ligadas a uma prtica discursiva determinada. Ela faria aparecer,

no certamente como verdade ltima da sexualidade, mas como

uma das dimenses segundo as quais pode ser descrita, uma certa

"maneira de falar"; e essa maneira de falar mostraria como ela est

inserida, no em discursos cientficos, mas em um sistema de

proibies e de valores.

Para analisar um quadro, pode-se reconstituir o discurso latente do

pintor; pode-se querer reencontrar o murmrio de suas intenes

que no so, em ltima anlise, transcritas em palavras, mas em

linhas, superfcies e cores; pode-se tentar destacar a filosofia

implcita que, supostamente, forma sua viso do mundo.

possvel, igualmente, interrogar a cincia, ou pelo menos as

opinies da poca, e procurar reconhecer o que o pintor lhes tomou

emprestado. A anlise arqueolgica teria um outro fim: pesquisaria

se o espao, a distncia, a profundidade, a cor, a luz, as propores,

os volumes, os contornos, no foram, na poca considerada,

nomeados, enunciados, conceitualizados em uma prtica

discursiva;

e se o saber resultante dessa prtica discursiva no foi,

talvez, inserido em

teorias e especulaes, em formas de ensino e

em receitas, mas tambm em processos, em tcnicas e quase no

prprio gesto do pintor.

Parece-me que se poderia fazer, tambm, uma anlise do

mesmo tipo a propsito do saber poltico. Tentaramos ver se o

comportamento poltico de uma sociedade, de um grupo ou de uma

classe no atravessado por uma prtica discursiva determinada e

descritvel. Essa positividade no coincidiria, evidentemente, nem

com as teorias polticas da poca, nem com as determinaes

econmicas: da poltica, ela definiria o que pode tornar-se objeto

de enunciao, as formas que tal enunciao pode tomar, os

conceitos que a se encontram empregados e as escolhas

estratgicas que a se operam.

Faramos aparecer, assim, um saber poltico que no da

ordem de uma teorizao secundria da prtica e que no ,

tampouco, uma aplicao da teoria.

A questo, por exemplo, no seria

determinar a partir de que momento aparece uma conscincia

revolucionria, nem que papis respectivos puderam desempenhar

as condies econmicas e o trabalho de elucidao terica na

gnese dessa conscincia: no se trataria de retraar a biografia

geral e exemplar do homem revolucionrio, ou de encontrar o

enraizamento de seu projeto; mas de mostrar como se formaram

uma prtica discursiva e um saber revolucionrio que esto

envolvidos em comportamentos e estratgias, que do lugar a uma

teoria da sociedade e que operam a interferncia e a mtua

transformao de uns e outros.

Pode-se responder, agora, pergunta que se propunha h pouco:

a arqueologia s se ocupa das cincias e nunca passa de uma

anlise dos discursos cientficos? E responder duas vezes no. O

que a arqueologia tenta descrever no a cincia em sua estrutura

especfica, mas o domnio, bem diferente, do saber.