Ficha de Leitura_ Produção de Presença – Hans U

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  • 7/25/2019 Ficha de Leitura_ Produo de Presena Hans U

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    GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio deJaneiro, RJ: Ed. PUC, 2010.

    Introduo

    A palavra presena no se refere (pelo menos, no principalmente) a umarelao temporal. Antes, referese a uma relao espacial com o mundo e seusobjetos. Uma coisa presente deve ser tangvel por mos humanas o queimplica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos.Assim, uso produo no sentido da sua raiz etimolgica (do latim producere),que se refere ao ato de trazer para diante um objeto no espao (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p. 13)

    produo de presena aponta para todos os tipos de eventos e processos nos

    quais se inicia ou se intensfica o impacto dos objetos presentes sobre corposhumanos (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.13)

    Todos os objetos disponveis em presena sero chamados, neste livro, ascoisas do mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.13)

    Ainda que possa defenderse que nenhum objeto do mundo pode estar, algumavez, disponvel de modo no mediado aos corpos e s mentes dos sereshumanos, o conceito coisas do mundo inclui, nessa conotao, uma referncia

    ao desejo dessa imediatez (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio deJaneiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.14)

    Se atribumos um sentido a alguma coisa presente, isto , se formarmos umaideia do que essa coisa pode ser em relao a ns mesmos, parece queatenuamos inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso corpo e osnossos sentidos. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.14)

    Metafsica referese a uma atitude, quer cotidiana, quer acadmica, que atribuiao sentido dos fenmenos um valor mais elevado do que sua presenamaterial; a palavra aponta, por isso, para uma perspectiva do mundo que

    pretende sempre ir alm (ou ficar aqum) daquilo que fsico(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de aneiro, R : 2010, . 14

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    Importa compreender que a nfase do livro em presena, produo e coisasdo mundo no condena nenhum modo de relao com o mundo que tome osentido como ponto de partida (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Riode Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.14)

    A satisfao desse desejo, porm, no dever acontecer por meio de umasimples substituio do sentido pela presena. Em ltima anlise, o que este

    livro defende uma relao com as coisas do mundo que possa oscilar entreefeitos de presena e efeitos de sentido. No entanto, s os efeitos de presenaapelam aos sentidos por isso, as reaes que provocam no tm nada a vercom Einfhlung, isto , com imaginar o que se passa no pensamento da outrapessoa (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 15)

    Materialidades/ O no hermenutico/ Presena: relatrio anedtico demudanas epistemolgicas

    1

    [concebemos] a experincia esttica como uma oscilao (s vezes, umainterferncia) entre efeitos de presena e efeitos de sentido (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p.22)

    Ambos os conceitos materialidades e comunicao pareciam prometer

    uma alternativa perpetuidade da interpretao e da narrativa sempre diferentedo passado (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.27)

    Espervamos tambm [] que a convergncia evidente entre materialidades ematerialismo comeasse por nos obrigar a uma fidelidade ao marxismo(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.28)

    Materialidades da comunicao, foi ento decidido [no volumeMaterialitt derKommunikation, de 1988], so todos os fenmenos e condies que contribuem

    para a produo de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p.28)

    a obra de Walter Benjamin, em vez de tentar ser filosfica, celebra o toquefsico imediato dos objetos culturais (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.29)

    Kittler [] oferecia uma tese psicohistrica para o domnio do paradigma dainterpretao nas Humanidades, alm de um estilo alternatico de pesquisa,sintetizado no conceito de psicofsica. Tal estilo de pesquisa estava relacionadoccom a questo do modo como as inovaes tecnolgicas e sua aplicao nainveno de novos meios de comujnicao haviam iniciado os movimentosintelectuais GUMBRECHT Hans. Produ o de Presen a. Rio de aneiro:

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    Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.29)

    Tambm queramos ter como aliado algum como Jacques Derrida, que, nocomeo do seu trajeto filosfico (uns bons vinte anos antes do nosso colquio),havia defendido que a indiferena sistemtica da exterioridade do significanteera uma das principais razes do predomnio devastador [] do logofonocentrismo na cultura ocidental. Em outras palavras, no levar em conta, porexemplo, a materialidade dos caracteres gravados em cera, papiro ou

    pergaminho era visto como condio histrica para o predomnio do sentido edo esprito na cultura do Ocidente (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena.Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.30)

    Wilhelm Dilthey, que a tradio alem rodeara com aura de fundados dasGeistwissenschaften, isto , precisamente da concepo de Humanidades nombito da qual se oficializara e sistematizara o predomnio da interpretao noincio do sculo XX, logo se transformou no bode expiatrio do discurso internoque se formava com rapidez entre ns. Vamos a hermenutica, a reflexofilosfica acerca das condies de interpretao, que Dilthey quisera fomentar,

    como sinnimo de interpretao (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena

    .Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.31)

    2

    O passo em direo s materialidades da comunicao abrira nossos olhospara uma multiplicidade de temas fascinantes, que poderiam ser resumidos(pelo menos aproximadamente) nos conceitos de histria dos media e culturado corpo. Nosso fascnio fundamental surgiu da questo de saber como osdiferentes meios as diferentes materialidades de comunicao afetariam osentido que transportavam. J no acreditvamos que um complexo de sentido

    pudesse estar separado da sua medialidade, isto , da diferena de aspecto entreuma pgina impressa, a tela de um computador ou uma mensagem eletrnica.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.32)

    Como o desconstrucionismo, por um lado, sempre insistira na impossibilidadede estabelecer estruturas estveis de sentido e, por outro, abandonara h algumtempo o interesse inicial pela exterioridade do significante, parecianos estarperdendo de vista as constelaes de problemas e interesses que conquistramossob a gide das materialidades da comunicao (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:

    2010, p.34)

    Quando em 1993 o autor escreveu um eplogo para a edio inglesa de umaseleo de ensaios dos volumes das Materialidades e Paradoxos, pela primeiravez lanou a ideia de que o maior interesse no seu ambiente intelectual se tinhaalterado da identificao do sentido (interpretao) para questes relacionadas

    com a emergncia do sentido em nvel historicamente especfico e em nvelmetahistrico (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.34)

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    Esse afastamento da interpretao parecia abrir novas perspectivas de reflexoe pesquisa, que o autor denominou provisoriamente de campo nohermenutico. Procurou estruturlo ao redor de quatro plos, correspondentes

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    ao que ele entendia do conceito de signo de Louis Hjelmslev. Hjelmslev articulaa distino estruturalista entre significante e significado (referese aosignificante como expresso e ao significado como contedo) com a distinoaristotlica entre substncia e forma. Os quatro conceitos resultantes dessacombinao so substncia de contedo, forma de contedo, substncia deexpresso e forma de expresso. Com substncia de contedo, Hjelmslevremete para o contedo do pensamento humano antes de qualquer intervenoestruturante (o conceito est perto do que poderamos chamar de imaginao

    ou o imaginrio). Forma de contedo, ao contrrio, no corresponderia anenhuma manifestao espacial de complexos de sentido, mas exclusivamenteaos contedos do pensamento humano em formas bem estruturadas (h umaafinidade bvia entre esse conceito e a noo de discurso de Foucault).Substncia de expresso seria o conjunto daqueles materiais por meio dos quaisos contedos podem se manifestar no espao mas prvios sua definiocomo estruturas: a tinta (e no a cor) seria uma substncia de expresso, como oseriam um computador ou um dispositivo tcnico. Finalmente, forma deexpresso seriam as formas e cores que cobrissem uma tela, os caracteres numapgina (e no a tinta), a imagem numa tela (em vez do computador visto como

    mquina)essa estruturao do campo no hermenutico sugeria uma sequncia muitoesquemtica de trs questes, que tornaria substancialmente mais complexa aprimeira verso da nossa questo acerca da emergncia do sentido. Essas trsquestes tematizavam (1) a emergncia das formas de contedo a partir dasubstncia de contedo; (2) a emergncia das formas de expresso a partir dasubstncia de expresso; finalmente, (3) a fuso das formas de contedo e dasformas de expresso em signos ou estruturas significantes mais amplas porexemplo, num texto escrito, num discurso ou num pictograma (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p.36)

    infelizmente, no deixava de ser verdade que a questo tripla acerca daemergncia do sentido, que o campo no hermenutico ajudara a formular, slevaria de algum modo, inevitavelmente a um conceito muito convencionalde signo e estruturas de sentido. Esses conceitos continuam a ser metafsicos,pos continuam a pressupor que a comunicao predominantemente acerca dosentido, acerca de algo espiritual que transportado e precisa ser identificadopara alm das superfcies puramente materiais do material (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p.37)

    o campo no hermenutico seria til para desenvolver novas respostas pergunta que havia estado no centro do paradigma das materialidades dacomunicao, ou seja, a questo (talvez ingnua) de como (se que de algummodo) a mdia e as materialidades de comunicao poderiam ter algum impactosobre o sentido que transportavam. S essa questo transcenderia a dimenso dometafsico, pois s ela abandonaria a lmpida separao entre a materialidade e osentido. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.37)

    [entendo] a palavra presena, nesse contexto, como uma referncia espacial. Oque presente para ns (muito no sentido da forma latinapraeessere) est nossa frente, ao alcance e tangvel para nossos corpos. Do mesmo, o autorpretendia usar a palavra produo na linha do seu sentido etimolgico. Se

    producere quer dizer, literalmente, trazer para diante, empurrar para frente,ento a ex resso rodu o de resen a sublinharia ue o efeito de

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    tangibilidade que surge com as materialidades de comunicao tambm umefeito em movimento permanente. Em outras palavras, falar de produo depresena implica que o efeito de tangibilidade (espacial) surgido com os meiosde comunicao est sujeito, no espao, a movimentos de maior ou menorproximidade e de maior ou menor intensidade. (GUMBRECHT, Hans. Produode Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.39)

    qualquer forma de comunicao implica tal produo de presena; []

    qualquer forma de comunicao, com seus elementos materiais, tocar oscorpos das pessoas que esto em comunicao de modos especficos e variados mas no deixa de ser verdade que isso havia sido obliterado (ouprogressivamente esquecido) pelo edifcio terico do Ocidente desde que ocogitocartesiano fez a ontologia da existncia humana depender exclusivamentedos movimentos do pensamento humano. (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.39)

    Hoje, qualquer reflexo vivel acerca da presena ter de quebrar a convenointelectual (que j est desaparecendo) psmoderna, segundo a qual todos osconceitos e argumentos aceitveis dever ser antissubstancialista. Em vez disso,uma reflexo sobre a presena considerar pertinente e inevitvel qualquertradio conceitual, a comear pela filosofia de Aristteles, que tenha a ver coma substncia e o espao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.39

    A poesia talvez seja o exemplo mais forte da simultaneidade dos efeitos depresena e dos efeitos de sentido nem o domnio institucional mais opressivoda dimenso hermenutica poderia reprimir totalmente os efeitos de presenada rima, da aliterao, do verso e da estrofe (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.40)

    as formas poticas esto numa situao de tenso, numa forma estrutural deoscilao com a dimenso do sentido (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.40)

    os efeitos da presena tm sido to completamente banidos que agoraregressam sob a forma de um intenso desejo de presena reforado ou atiniciado por muitos dos nossos meios de comunicao contemporneos. Nossofascnio pela presena ou seja, a tese final deste livro baseiase num desejo depresena que, no contexto da contemporaneidade, s pode ser satisfeito emcondies de fragmentao temporal extrema (GUMBRECHT, Hans. Produode Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.42)

    Metafsica: breve panorama do que ora est mudando

    1

    a posio central, institucionalmente incontestada, da interpretao ou seja,da identificao e da atribuio de sentido nas Humanidades pode sercomprovada pelo valor positivo que em nossas linguagens atribumos, mesmoautomaticamente, dimenso profundidade. Se dizemos que uma observao profunda, estamos a elogila, pois oferece um sentido novo, mais complexo e

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    . ,superficial, isso significa que lhe faltam essas qualidades, pois est implcitoque no consegue ir alm da ou por sob a primeira impresso produzida pelofenmeno em causa (normalmente, no imaginamos que alguma coisa oualgum no queira ter profundidade). (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.43)

    poderemos chamar de metafsica do cotidiano a convergncia desses e deoutros temas numa configurao de pressupostos inerentes nossa linguagemcomum. [] na sua forma institucionalizada, as Humanidades tm claramenteimplicaes metafsicas. Tanto a linguagem comum quanto aquilo que s vezeschamamos, um pouco pretensiosamente, de mtodos das Humanidadesimplicam que ir alm (meta) do puramente material (fsica) sempre bom.[] Isso pode ser entendido como resultado [] de vrios sculos de reflexosobre as estruturas do conhecimento e as condies de produo doconhecimento na cultura ocidental. Essa [] histria da metafsica o tema domeu segundo captulo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.44)

    2

    Renascimento e incio do perodo moderno, duas designaes que usamospara o perodo no qual comearei minha narrativa, so exemplosparticularmente ricos da divergncia entre uma autorreferncia culturalpredominante e a nossa retrospectiva histrica sobre a realidade dessa mesmacultura (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.46)

    Nesses sculos havia uma tradio iconogrfica que ainda mostrava o mundocomo uma superfcie plana sobre a qual erguiamse esferas como uma cpula.

    Essas cenas so apresentadas como se fossem vistas de uma perspectiva externa.Por vezes chegamos a ver, aparentemente desde fora, uma figura alegrica,representando a Humanidade [] Essa dupla inovao (isto , o Homem comoobservador externo do mundo e o Homem visto nessa posio) sintomtica deuma nova configurao da autorreferncia: os Homens comeam a entendersecomo excntricos ao mundo; tal posio difere da autorreferncia predominantedurante a Idade Mdia crist, em que o Homem se via como sendo parte de e

    todeado por um mundo resultante da Criao divina (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p.46)

    Uma segunda alterao em relao Idade Mdia tem a ver com a sugesto[] de que essa figura humana, em sua excentricidade relativa ao mundo, umaentidade intelectual e incorprea. [] a nica funo explcita que se lhe atribui observar o mundo, e para tal parecem ser suficientes faculdadesexclusivamente cognitivas. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.46)

    o mundo que o observador observava e interpretava era puramente material.

    Claro que essa dicotomizao entre espiritual e material est na origem deuma estrutura epistemolgica em que a filosofia ocidental se apoiaria de agoraem diante, o paradigma sujeito/objeto. (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.47)

    No realismo simblico, cada objeto que constitui o mundo tem um sentido

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    inerente, atribudo por Deus no ato da criao (GUMBRECHT, Hans. Produode Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.47)

    Para o novo tipo de autorreferncia, que defende que os seres humanos soexcntricos ao mundo, [] Tornase cada vez mais convencional pensar omundo dos objetos e do corpo humano como superfcies que exprimemsentidos mais profundos. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.48)

    A interpretao do mundo comea a ser entendida como uma produo ativade conhecimento acerca do mundo: vista, acima de tudo, como algo que extraisentidos inerentes dos objetos do mundo nesse aspecto est o passo decisivoem direo Modernidade (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.48)

    O pressuposto de que os fenmenos tm sentidos inerentes no se alterou nolimiar entre a cultura medieval e o incio da cultura moderna (s a partir dosculo XIX se passou a entender mais amplamente a interpretao como umaatribuio, e no como uma identificao, de sentido). Durante os sculos

    medievais, porm, a humanidade nunca fora entendida como produtora ativa deconhecimento. Pensavase que o conhecimento dos pormenores e de todas ascaractersticas da Criao s estaria disponvel por revelao divina.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.48)

    Acoplada a essa nova [moderna] autoatribuio, porm, apareceria a ideia de oser humano querer e ser capaz de mudar e transformar o mundo(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.49)

    um sujeito que se acredita capaz de produzir conhecimento tambm se sentircapaz de ocultlo e manipullo. significativo, nesse sentido, que a culturamedieval s tenha reconhecido a distino elementar entre verdade e mentira;

    nunca chegou a desenvolver conceitos correspondentes aos que entendemoscomo fico ou fingimento. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Riode Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.49)

    Maquiavel considerou Fernando de Arago o governante mais capaz de seutempo, pois o julgava capaz de fingir, ou seja, de cobrir suas intenes e planossob o manto de pretensas motivaes religiosas (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p.50)

    essa nova viso moderna [] pode ser descrita como uma interseo de doiseixos. Um eixo horizontal coloca em oposio o sujeito, observador excntrico eincorpreo, e o mundo, um conjunto de objetos puramente materiais, que incluio corpo humano. O eixo vertical ser, portanto, o ato de interpretar o mundo,por meio do qual o sujeito penetra na superfcie do mundo para extrair dele

    conhecimento e verdade, um sentido subjacente. Proponho que essa ciso demundo seja chamado de campo hermenutico. (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p.50)

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    O sacramento da eucaristia, isto , a produo da Verdadeira Presena de Deusna Terra entre os vivos, era sem dvida o ritual central da cultura medieval. Acelebrao da missa, naquele tempo, no era apenas uma comemorao daltima Ceia de Cristo com os seus discpulos: era um ritual por meio do qual averdadeira ltima Ceia, e, acima de tudo, o corpo de Cristo e o sangue deCristo poderiam tornarse realmente e de novo presentes. [] O sangue e ocorpo de Cristo se tornariam tangveis, como substncias, nas formas de po e

    vinho. O que d forma e justificao a esse entendimento prmoderno darelao entre o corpo de Cristo e o po, e entre o sangue e o vinho, o conceitoaristotlico de signo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.51)

    O signo aristotlico rene, ao invs, uma substncia (isto , aquilo que estpresente porque exige um espao) e uma forma (isto , aquilo que tornaperceptvel uma substncia), aspectos que incluem um conceito de sentido que estranho para ns. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.51)

    podemos afirmas, de uma perspectiva antropolgica, que a eucaristia catlicaprmoderna funcionava como um ato mgico, um ato por meio do qual umasubstncia distante no tempo e no espao se tornava presente (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p.52)

    Com intensos debates teolgicos, por vrias dcadas a teologia doprotestantismo redefiniu a presena do corpo e do sangue de Cristo como sendouma evocao do corpo e do sangue de Cristo sentidos. Assim, cada vez mais o na expresso este o meu corpo [hoc est enim corpus meum, que indicava a

    transubstanciao] passou a ser entendido como significa ou quer dizer o meucorpo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto:Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.52)

    [s no tempo de Calvino] se comeou a transformar numa distncia histricainultrapassvel a distncia temporal que separava cada missa e a ltima Ceia, oponto de referncia; aqui comeamos a entender que existe uma relao entre aconcepo emergente, especificamente moderna, da significao e a dimenso dahistoricidade (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.52)

    Assim como, na teologia do protestantismo, a substncia do corpo de Cristo e asubstncia do sangue de Cristo iam sendo substitudas pelo corpo e pelo sanguecomo sentido, no teatro a ateno dos espectadores passava dos corpos dosatores para os personagens que eles incorporavam. (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p.53)

    os corpos dos atores foram afastados do alcance dos espectadores. Em outraspalavras, no incio da modernidade, quando comea a ser decifrado o sentidoque est em jogo, tudo que tangvel, tudo que pertence materialidade dosignificante tornase secundrio e de fato afastado do palco da significao

    (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.53)

    Em contraste, grande parte do teatro na Idade Mdia parecia funcionar demodo muito diferente [:] descobriremos com frequncia que impossvelidentificar uma narrativa ou se a ual uer desenvolvimento ro ressivo de

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    uma ao, muito menos de personagens. (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.53)

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    Nas obras [de Corneille, Molire e Racine], a produo de complexidadesemntica era esmagadoramente predominante em detrimento de quaisquerefeitos de presena. Nas tragdias de Corneille ou de Racine, os atores

    dispunhamse em semicrculo no palco e recitavam textos muito abstratos, naforma pesada do verso alexandrino. Nenhum outro estilo teatral, antes oudepois, foi mais cartesiano do que o teatro clssico francs. Refirome aqui, claro, famosa reflexo de Ren Descartes contemporneo de Racine e deCorneille , o primeiro a tornar a ontologia da existncia humana, como rescogitans, explcita e exclusivamente dependente da capacidade de pensar; emconsequncia disso, ele subordinou no s o corpo humano mas todas as coisasdo mundo, como res extensae, ao pensamento. (GUMBRECHT, Hans. Produode Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.56)

    O nome de Descartes e o adjetivo cartesiano referemse aqui ao ponto final nodesenvolvimento, que durou um sculo, da histoire ds mentalits, umdesenvolvimento que se estende desde as primeiras manifestaes da culturarenascentista at a revelao total do campo hermenutico (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p.56)

    o que hoje chamamos Querelle ds anciens et ds modernes [dos anos 1700] foi umpasso frente para demonstrar as mltiplas conseqncias do campohermenutico. O que considero muito importante nessa Querelleno tanto seos diferentes intervenientes favoreciam uma ou outra protoforma, no que viria a

    ser um novo estilo de cultura histrica durante o sculo XVIII e,principalmente, no XIX. A caracterstica epistemolgica mais elementar e amais importante que acontecimentos como a Querellecomearam ainstitucionalizar na cultura ocidental moderna foi a prioridade da dimensotemporal sobre a dimenso espacial, numa cultura que deixara de centrarsenum ritual de produo de presena real, passando a se basear napredominncia do cogito predominncia que ainda haveria de se cristalizarnum ritual prprio. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.56)

    O Iluminismo foi uma poca em que a atividade humana na produo deconhecimento se transformou em condio para a aceitabilidade doconhecimento; ento, a atividade humana, como vontade de transformarativamente o mundo com base nessa reviso crtica do conhecimento, comeou adar forma esfera da poltica. Foi mais um passo [] no desdobramento dasimplicaes do campo hermenutico (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.57)

    o Iluminismo foi o pice da viso de mundo metafsica (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p.57)

    o conhecimento revelado e, pelo mesmo motivo, o conhecimento que erareconhecido como parte dessa tradio estavam sujeitos a um rigorosssimoprocesso de reviso. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.57)

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    A nsia de reunir o novo conhecimento e coloclo em circulao o maisamplamente possvel dez do sculo XVIII a grande era dos dicionrios eenciclopdias. [] As enciclopdias continham a expectativa utpica de que umdia o conhecimento sobre o mundo seria total, e esse conhecimento total seria oponto de partida para criar novas instituies sociais e polticas perfeitamenteadaptadas s necessidades da humanidade. (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.57)

    Nessa poca comeou a desenvolverse uma nova ideia acerca do espaopblico e da poltica. O espao pblico era visto como a esfera de deliberao emque todos os participantes abdicariam de seus interesses pessoais e de grupo,tendo em vista obter consenso (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Riode Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.58)

    o parlamento[:] lugar onde, supostamente, a competio de diferentes opiniesse transformaria em consenso e as diferentes vises de futuro convergiriam parauma viso nica (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.58)

    Na viso de mundo metafsica, [] a poltica parlamentar transformavasenum ritual to central e emblemtico como fora a eucaristia na culturamedieval. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.58)

    precisamente nessa poca [meados do sculo XVIII] surgem as primeirasfendas no edifcio da Modernidade. Vista a partir da histria da filosofiaocidental no sculo XIX, a obra de Immanuel Kant, por exemplo, aparece como

    um momento nico que expressa de modo emblemtico uma ambigidade: , aomesmo tempo, um avano culminante do pensamento iluminista e um sintomado comeo da dissoluo da epistemologia na qual o Iluminismo se baseou.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.58)

    Inicialmente, o pensamento de Kant parece ter sido provocado pela conscinciada distncia entre o sujeito e o mundo dos objetos, uma distncia que pareciasuficientemente grande para desafiar a hiptese filosfica contempornea sobreos modos de apropriao do mundo. Mas at mesmo os que defendem que Kant

    conseguiu eliminar essa dvida, ao demonstrar que as faculdades humanasbastavam para apreender o mundo, mesmo esses admitem que sua motivaoinicial surgiu das dvidas sobre a viabilidade do paradigma sujeito/objeto.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.59)

    os editores da Encyclopdie [Diderot e dAlembert] partiam de uma duplacomplementaridade. Esperavam que as contribuies dos diferentes autores decada entrada do Dictionnaire raisonn se conjugassem em descries unvocas doobjeto ou do conceito em causa; no anteviam tenses ou contradies. []Apesar disso, a realidade da publicao revelou que muitas entradas com

    autores mltiplos eram descries contraditrias ou mesmo contrrias dosobjetos e dos conceitos de que tratavam. Alm disso, a esperana dos editores deidentificar uma (e s uma) estrutura bsica para todo o mundo das coisas e suarepresentao por meio de elemtnos do conhecimento no se concretizou sequernoplano hipottico que, numa folha desdobrvel, precedia o primeiro volume da

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    ncyc op e, um qua ro con uso que s r u a os assun os sem qua querprincpio dominante de plausibilidade. (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.60)

    O conhecimento se tornou muito mais centrfugo do que seria de esperar, maso fascnio intelectual com o pensamento materialista e at mesmo a emergnciada esttica como subcampo da filosofia no sculo XVIII tornam claro que,contrariamente s premissas do campo hermenutico, a apropriao do mundopelo corpo humano, ou seja, pelos sentidos, reaparecia agora como alternativaepistemolgica. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.60)

    Michel Foucault demonstrou como, nessas condies do incio de uma crise darepresentao, a atividade de dar nome s coisas do mundo estava setransformando num empreendimento precrio e, por isso, obsessivo(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.60)

    num desenho de seus Caprichos, Francisco de Goya criou uma nova viso

    emblemtica do filsofo iluminista [dAlembert] quando, deliberadamente,jogou com a ambigidade semntica do famoso subttulo El sueo de La raznproduce monstruos [] Assim, elogia convencionalmente e, ao mesmo tempo,destrona grotescamente os poderes da razo. (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 61)

    5

    Durante a segunda dcada do sculo XIX, quando as sociedades europiasemergiram de quase trinta anos de revolues e reformas que tinham comeadocom a esperana de tornar verdadeiro o que o Iluminismo lhes prometera [] o

    mundo estava ou, no mnimo, ainda estava longe das generosas expectativaspropagadas pela gerao dos filsofos. [] mltiplos fenmenos seconjugavam para reforar aqueles sintomas, (inicialmente) isolados, deinconsistncia epistemolgica que identificamos na produo intelectual do finaldo sculo XVIII e para finalmente causar uma crise generalizada na viso demundo metafsica. Para uma descrio desse momento epistemologicamentedecisivo remeto ao livroAs palavras e as coisas, a inovadora obra de Foucaultsobre a crise de la reprsentation, e distino entre observadores de primeiraordem e observadores de segunda ordem, desenvolvida por Niklas Luhmann(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.

    PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 61)O papel do observador, surgido no incio da era moderna como elementochave do campo hermenutico, era apenas encontrar a distncia apropriada emrelao aos objetos, mas o observador de segunda ordem, que haveria de darforma epistemologia do sculo XIX, era um observador condenado mais doque privilegiado a observar a si mesmo no ato da observao (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p. 62)

    o observador de segunda ordem percebeu que cada elemento do conhecimento

    e cada representao que ele pudesse produzir dependeriam sempre,necessariamente, do ngulo especfico de observao. Assim, comeou a ver queexistia uma infinidade de descries para cada objeto potencial de referncia eessa proliferao, em ltima anlise, destrua a crena na estabilidade dosobjetos de referncia. Ao mesmo tempo, o observador de segunda ordem

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    , ,parte integral de qualquer observao do mundo. Essa outra consequncia dafuno do observador de segunda ordem [] levaria tambm a questionar apossvel compatibilidade entre um apropriao do mundo pelos conceitos (a quechamarei experincia) e uma observao do mundo pelos sentidos (a quechamarei percepo). (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 62)

    a soluo pode ser caracterizada como uma mudana de um estilo de

    representao do mundo em espelho (no qual cada conceito ou elemento doconhecimento supostamente correspondia a um nico fenmeno) para um estilono qual cada fenmeno seria identificado por meio de uma narrativa. Refirome,como bvio, aos discursos paralelos da filosofia da histria (de tipo hegeliano)e ao evolucionismo (de tipo darwiniano). (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 63)

    os discursos narrativos abrem um espao no qual a mukltiplicidade derepresentaes pode ser integrada e ganhar a forma de uma sequ^ncia.

    Juntamente com a filosofia da histria e o evolucionismo, o realismo literrio

    do sculo XIX foi outro discurso que produziu uma pletora de reaes aos

    desafios do novo multiperspectivismo na viso do mundo. (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p. 63)

    As diferentes perspectivas que (por exemplo) os protagonistas de Flaubertencarnam nunca acabam por juntarse numa viso homognea que seria o seumundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 63)

    [j] o problema da (no) compatibilidade de uma apropriao do mundo pormeio de conceitos e de uma apropriao do mundo por meio dos sentidos, noproduziu sequer a iluso de uma soluo. [] vemos apenas uma srieinfindvel de tentativas, s vezes violentas mas nunca eficazes, de juntar aexperincia e a percepo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 64)

    Algumas das primeiras dessas reaes podem resumirse na metfora de umadesregulao do signo. Por desregulao do signo entendase as vriasexperincias para tentar modificar a distino muito ntida, inerente ao campohermenutico, entre a superfcie puramente material do significante e aprofundidade puramente espiritual (ou conceitual) do significado.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 64)

    [Verlaine e Rimbaud] pretendiam investir de sentido, ou pelo menos de algunssentidos conotativos, as estruturas sonoras dos seus textos. Um poema como Umcoup de d, de Mallarm, parece sugerir que a disposio das palavras na pginapode corresponder ao seu sentido e ao seu som potencial. OprogrammMusikdeRichard Wagner, finalmente, props a insero de sentido nos sons e nos ritmosda msica de orquestra. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 64)o objetivo explcito da srie de vinte romances de mile Zola, lesRougonMarquart[era] explicar a histria de vrias geraes de uma famlia pelaconvergncia da sua disposio gentica e da influncia de ambientes sociaismlti los GUMBRECHT Hans. Produ o de Presen a. Rio de aneiro:

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    Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 64.

    Friedrich Nietzsce, que fascinou Heidegger como o ltimo metafsico (ou oprimeiro filsofo europeu a ultrapassar a metafsica), sempre elogiou aconcentrao acadmica no valor filolgico da superfcie dos textos e nasuperficialidade material das mscaras, expondo ao ridculo os esforos paraencontrar o sentido e a verdade ltimos por baixo ou atrs deles [] Antes deestabelecer os fundamentos da psicanlise como nico mtodo interpretativo na

    obraA interpretao dos sonhos, publicada em 1900, Sigmund Freud trabalharamais de uma dcada em vrios esquemas destinados a integrar o pensamentohumano na fisiolofia humana. Por fim, tal como outros pensadores do seutempo, Henri Brgson estava convencido de que a memria humana era umfenmeno que, conceitualmente dissecado, haveria de revelar as ligaes entre amente e o crebro. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 65)

    significativo que pensadores como Brgson, Freud e Nietzsche [] tenham

    lutado em seu tempo na maioria dos casos, em vo para obterrespeitabilidade acadmica. O mundo oficial das universidades seguiarapidamente em direo a solues radicais para reagir ao problema damediao entre experincia e percepo, solues que acabavam por sugerirformas diferentes de separao dessas duas dimenses. Em nvelepistemolgico, uma dessas solues era apontada pelo estilo filosfico fundadopor Edward Husserl, a que podemos chamar fenomenologia. Numa viragempolmica contra a crena ingnua dos cientistas naturais de que poderiamapreender as coisas do mundo, Husserl sugeriu (pelo menos muitos de seusleitores entenderam assim) que os objetos exteriores ao pensamento humanoeram pura e simplesmente inacessveis. Era um dos finais do paradigmasujeito/objeto, do campo hermenutico e da metafsica ocidental. A filosofiafenomenolgica em breve se concentraria exclusivamente nos esforosintrospectivos para descrever os mecanismos pelos quais o prprio pensamentohumano produz (constroi) vises do mundo exterior. Tornouse assim umamatriz de outros estilos ou escolas contemporneas [] que caracterizamoscomo construcionistas por causa do princpio geral de que tudo que analisamou com que se relacionam so construes (ou projees) da mente humana.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 66)

    Um passo institucional paralelo ocorreu na Universidade de Berlim durante altima dcada do sculo XIX. [] E, 1893, o filsofo William Dilthey conseguiuimpedir que a Universidade de Berlim contratasse Hermann Ebbinghaus, umeminente representante da psicologia cientfica, a quem acusava detransgresses para o campo da fisiologia. Precisamente dez anos depois,Dilthey e catorze dos seus colegas propuseram ao Ministrio da Cultura quetodos os estudiosos que praticavam aquele modo de pesquisa forreminstitucionalmente separados. Tal secesso (que acabaria por se concretizar) foi oincio da independncia institucional das Geistwissenschaften[cincias doesprito], um grupo de disciplinas que, na esteira do programa de Dilthey,

    concentrouse na interpretao como prtica nuclear e na hermenutica comoespao de reflexo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 66

    O preo que as Humanidades tiveram de pagar por esse passo foi evidente: aperda de todas as referncias do mundo que no fossem cartesianas nem

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    estivessem fundadas na experincia. (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 67)

    6

    Motivadas pela convergncia da recepo ampla (quase popular) eentusistica da fenomenologia de em toda Europa e da influncia institucionalde Dilthey e de sua escola, as Humanidades concentraramse mais do que nunca

    nas dimenses de sentido e na linguagem como lugares e instrumentos daconstruo do mundo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio deJaneiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 67)

    a fenomenologia, o construcionismo e os estudos culturais comparados, a novacrtica e o alto modernismo, em todas as suas variedades internas, como reaese movimentos intelectualmente revolucionrios, formavam apenas um de doisramos de reaes iniciadas pelos efeitos de longo prazo da crise epistemolgicado sculo XIX. Esse era o ramo a que ainda hoje se chama progressista. A outrasequncia de reaes relacionadas mesma origem caracterizavase por umsentimento comum de perda e por uma nostalgia daquela referncia ao mundo

    dos objetos, em cuja disponibilidade a metafsica acreditara to longa e tofortemente. Durante vrias dcadas, pesquisadores de diferentes reasapontaram, s vezes com gestos dramticos de lamento ou de remorso, a perdade uma (crena numa) referncia ao mundo. A filosofia analstica, no seu incioinstitucional, pretendia provar que se poderia atingir pelo menos um graumnimo de referncia ao mundo com a linguagem ou, pelo menos, com fraseselementares cuidadosamente engendradas. Ao mesmo tempo, mas tanto quantose possa imaginar divergindo da filosofia analtica nos seus estilos intelectuais,pensadores ferozes e artistas de gestos loucos, como Georges Bataille ou AntoninArtaud, acusavam a cultura ocidental de ter perdido o contato com o corpo

    humano. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 70)

    Nesse contexto, nenhum pensador foi mais longe na crtica e na reviso daviso de mundo metafsica do que Martin Heidegger. Iniciado com a publicaode Ser e tempoem 1929, esse esforo logo atraiu a ateno internacional.Heidegger substituiu o paradigma sujeito/objeto pelo novo conceito de sernomundo, que, por assim dizer, deveria devolver a autorreferncia humana aocontato com as coisas do mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena.Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 70)

    Contra o paradigma cartesiano, Heidegger reafirmava a substancialidadecorprea e as dimenses espaciais da existncia humana; ele comeou adesenvolver a ideia de um desvelamento do Ser (nesse contexto, a palavra Serreferese sempre a alguma coisa substancial) para substituir o conceitometafsico de verdade (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 70)

    7

    durante as primeiras dcadas do sculo XX houve dois tipos paralelos dereao perda da referncia ao mundo e da dimenso da percepo: as vrias

    formas de construcionismo, por um lado, e as diferentes tentativas de reaver areferncia e a percepo, por outr. O contraste e a tenso entre esses dois tiposveio a ser uma alternncia entre estilos intelectuais duros e suaves no mbitodas Humanidades por volta da dcada de 50. (GUMBRECHT, Hans. Produode Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 71)

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    Desde o final da dcada de 1950, porm, sucederamse ondas simultneas deparadigmas aparentemente mais duros. Entre eles, estava a recepo dosestudos literrios ao estruturalismo, lingstica cultural e ao chamadoformalismo russo. Pelo menos na ambio de ultrapassar a subjetividade dainterpretao pura, essas teorias corresponderam a um novo entusiasmo portodos os tipos de abordagens sociolgicas, incluindo as diferentes variedades domarxismo e da histria da recepo literria. S dez anos depois, nas dcadas de1970 e 1980, o ensino psmoderno da literatura, sob a influncia suavizanteda desconstruo e do novo historicismo, fez o que podia para tornar toingnuo quanto possvel o desejo anterior de rigor terico e metodolgico.Apesar de divergncias filosficas internas, a desconstruo e o novohistoricismo comearam por (diferentes) crticas ao estruturalismo (isto , a umparadigma duro), e tanto uma quanto o outro encontraram recepo mais frtilentre uma gerao de acadmicos da literatura que haviam sido educados noestilo interpretativo da nova crtica. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena.Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 72)

    J deve terse tornado evidente que entendo a alternncia entre prticas duras

    e suaves nas Humanidades como uma reao tardia ao trauma de nasceno dogrupo de disciplinas cujo principal ponto de convergncia e identidade era umaexcluso, nomeadamente a excluso das dimenses epistemolgicas dapercepo e da referncia. Mas essa tese ainda no uma resposta perguntacom a qual iniciei este captulo: por que estamos to ansios para ultrapassar ametafsica? Uma resposta que este captulo tornou possvel que ultrapassar ametafsica pode ser entendido, em retrospectiva, como uma tentativa de nosredimir da alternncia, em ltima anlise intil, entre prticas intelectuaissuaves e duras. Espero, portanto, que meu interesse na emergncia do sentidoe, acima de tudo, na oscilao entre efeitos de sentido e efeitos de presena, todiferente do tpico materialidades da comunicao, deixe de ser atribudoexclusivamente a uma ou a outra dessas polaridades [] Se no a soluo paracomo ultrapassar a metafsica ou para como abandonar a metafsica, pelomenos a interrupo da alternncia entre paradigmas duros e paradigmassuaves pode ser um modo de escapar da (ou de esquecer a metafsica) comocampo de foras intelectual. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 73)

    Para alm do sentido: posies e conceitos em movimento

    1

    [em Gramatologia, Derrida] escreve sobre a era do signo (penso que se refere aoque tenho chamado metafsica). [] lse que a era do signo talvez nuncavenha a ter umfim. O seu encerramentohistrico, porm, est traado(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 75)

    H bons argumentos para terminar com a era da polaridade entre o significantepuramente material e o significado puramente espiritual, mas no claro a

    partir do texto de Derrida, certamente no que de fato queiramos recorrer aesses argumentos de um modo que definitivamente significaria o fim dametafsica. [] quem ter pacincia suficiente infinita pacincia paraconcordar com Derrida? (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 76)

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    [Paul] De Man defendia que tinha terminado a iluso do que chamamos deleitura semitica mas, ao lamentar to fielmente a perda da referncia e dosentido estvel, tornou impossvel esqueclos (GUMBRECHT, Hans. Produode Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 76)

    Ora, o que significaria e o que implicaria pr fim era do signo? [e] o fimda metafsica? [] julgo que o para alm, em metafsica, s pode querer dizeralgo somado interpretao isso, claro, sem abandonar a interpretao como

    prtica intelectual elementar e provavelmente inevitvel. Seria o mesmo quetentar desenvolver conceitos que nos permitiriam, nas Humanidades, nosrelacionar com o mundo de um modo mais complexo do que a simplesinterpretao, o que, em si, j mais complexo do que a simples atribuio desentido ao mundo (ou, para usar uma topologia mais antiga, mais complexo doque extrair sentido do mundo) (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Riode Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 76)

    provavelmente no existe maneira de acabar com o domnio exclusivo dainterpretao, nem de abandonar a hermenutica e a metafsica nas

    Humanidades, sem recorrer a conceitos que os possveis inimigos intelectuaisno caracterizem polemicamente como substancialistas, ou seja, conceitos comosubstncia, presena e quem sabe at realidade e Ser (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p. 77)

    acreditar na possibilidade de nos referirmos ao mundo sem ser pelo sentidotornouse sinnimo do grau mais elevado de ingenuidade filosfica(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 77)

    Apesar de suas ideias revolucionrias e da crena de que possui o potencialintelectual para encerrar para sempre a era do signo, a desconstruo, emgrande medida, tem recorrida a um suave terror para consolidar a ordemvigente nas Humanidades (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 78)

    2

    neste captulo [] tento alcanar e pensar em uma camada nos objetosculturais, e em nossa relao com eles, que no a camada do sentido. []tambm ser bom lembrar algumas afinidades importantes no cenriocontemporneo das Humanidades (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena.Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 78)

    Na hermenutica atual, [Gianni] Vattimo pertence queles maximalistas queesto convencidos de que a crena [] em que a interpretao a nica maneirade nos relacionarmos com o mundo j atingiu h muito as cincias e, comoresultado, enfraqueceu todas as reivindicaes cientficas de facticidade: Omundo como conflito de interpretaes, e nada mais, no uma imagem domundo que tenha de ser defendida contra o realismo e o positivismo da cincia. a cincia moderna, herdeira e remate da metafsica, que transforma o mundo

    num lugar onde (j) no h fatos, apenas interpretaes (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p. 79)

    Vattimo talvez estivesse de acordo comigo sobre o que Heidegger quer dizercom histria do Ser mas nossas rea es a esse conceito no oderiam ser mais

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    divergentes. Eu pretendo virar a substancialidade do Ser contra a tese dauniversalidade da interpretao, enquanto Vattimo quer que o Ser (o desejo deSer?) desaparea por sob uma reiterao infindvel de interpretaes(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 80)

    Que Vattimo, alm disso, chame sua posio antipresena eantissubstancialista de leitura esquerdista de Heidegger revela o que pretendo

    dizer quando afirmo que a hermenutica e a interpretao, nos discurso dasHumanidades, esto protegidas por gestos de intimidao intelectual(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 80)

    [Umberto Eco] defendeu a anacrnica tese do regresso a uma forma deinterpretao textual que, em vez de ser uma produo infindvel de variantes,produzisse resultados definitivos ou pudesse ao menos resultar em critrios quepermitissem distinguir interpretaes melhores e interpretaes piores. Oslimites da interpretao, diz Eco [], coincide com os direitos do texto (o queno quer dizer os direitos do autor) (GUMBRECHT, Hans. Produo de

    Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 80)

    h razes para duvidar que tal retorno voluntrio ingenuidadeepistemolgica, em ltima anlise, possa ser vivel, depois de todas as crises nahistria da filosofia ocidental do sculo XX. Hoje, o paradigma sujeito/objetoque exclui qualquer simples referncia ao mundo e precisamente nesseparadigma que Eco no toca (ou inadvertidamente restaura) quando secompromete com os direitos do texto. Por isso, exatamente, creio quedeveramos tentar restabelecer o contato com as coisas do mundo fora doparadigma sujeito/objeto (ou numa verso modificada desse paradigma),tentando evitar a interpretao sem mesmo criticar a altamente sofisticada ealtamente autorreflexiva arte de interpretao que as Humanidades h muitoinstituram (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 81)

    Tambm por essa razo sinto forte afinidade com a premissa do livro de JeanLuc Nancy, The Birth to Presence[]: Chega um momento em que s se podesentir raiva, uma raiva absoluta, contra tantos discursos, tantos textos que notm outro objetivo seno fazer um pouco mais de sentido, ou refazer ouaperfeioar delicadas obras de significao (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 81)

    Nancy alude a uma concepo de presena que difcil ou impossvel reconciliar com a moderna epistemologia ocidental, pois torna a trazer adimenso de proximidade fsica e de tangibilidade (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p. 82)

    uma presena que escapa dimenso do sentido tem de estar em tenso com oprincpio da representao: [diz Nancy que] a presena no vem sem apagar apresena que a representao gostaria de designar (os seus fundamentos, a suaorigem, o seu tema) (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:

    Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 82)

    a presena no pode passar a fazer parte de uma situao permanente, nuncapode ser uma coisa a que, por assim dizer, nos possamos agarrar.

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    chamo de condies de temporalidade extrema. Para Nancy, a presena, pelomenos a presena nas condies contemporneas, o nascimento, a chegada

    que apaga a si mesma e devolve a si mesma (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 82)

    [Para Karl Heinz Bohrer], o sbito, o carter efmero de certos surgimentos epartidas, a caracterstica fundamental da experincia esttica, e ele se refere a

    isso como a negatividade esttica: a negatividade da conscincia da presenaevanescente. O que, nessas condies, se torna evidente no conceito deexperincia esttica segundo Bohrer obviamente a substncia, no o sentido.Mas parece ser exclusivamente a substncia do significante. Ao referirse, porexemplo, famosa reflexo de Kafka acerca da impresso que nele deixou umgrupo de atores judeus, Bohrer escreve que Kafka no l as expresses do atorem relao ao que o ator exprime (isto , o seu papel), l apenas a partir daexpresso (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 83)

    Uma forma maliciosa, reconheo de caracterizar o construtivismo seria

    dizer que uma verso gasta da premissa fenomenolgica segundo a qual spodem ser objeto de anlise filosfica os contedos da conscincia humana. Com

    base numa consequncia necessria dessa posio (ou seja, no postulado de queo que quer que identifiquemos como realidade/realidades s pode serabordado como projeo ou construo da nossa conscincia), acrescentado datese dupla, mais precria, de que nessas construes possvel identificar traosde uma conscincia partilhada por todos os seres humanos (o sujeitotranscendental), e que se podem encontrar tambm vestgios desses traospartilhados em todas as sociedades existentes (mundos da vida), oconstrutivismo acaba por concluir que todas as realidades que partilhamos com

    os outros seres humanos so construes sociais. Contrariando, penso, suasorigens filosficas, o construtivismo transformouse hoje na crena trivial de quetudo, desde sexo at paisagem, via cultura, est facilmente ao dispor davontade humana de mudar (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 85)

    a obra de Judith Butler, Bodies That Matter(1993) [], ao trazer para a discussoa materialidade do corpo e a inrcia que essa materialidade ope a qualquertipo de transformao, [] provocou o construtivismo como ponto de partidalargamente aceito nas discusses ento abertas na filosofia de gnero: o queproponho no lugar dessas concepes de construo um regresso noo de

    matria, no como stio ou superfcie, mas como processo de materializao queestabiliza ao longo do tempo para produzir o efeito de fronteira, fixidez esuperfcie que chamamos matria. Butler quer dizer que no basta uma simplesdeciso para alterar o gnero de uma pessoa []; so necessrias formas decomportamento e de ao, mantidas ao longo do tempo (nesse contexto, Butlerrecorre ao conceito de performance), capazes de moldar e de produzirdiferentes formas e identidades corporais (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 86)

    Ao concentrarse na questo de saber como a substncia corporal pode setransformar questo que, tanto quanto sei, nunca foi excluda por nenhumafilosofia que operasse com o conceito de substncia , Butler pretende provarque possvel abandonar a doxa construtivista sem abdicar do valor poltico dodireito e da capacidade de mudana do sujeito (GUMBRECHT, Hans. Produode Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 86)

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    Sob o termo aparncia, [Martin] Seel rene as condies com as quais omundo nos dado e apresentado aos sentidos humanos (outra palavra que eleusa no mesmo contexto Wahrnehmung, percepo). Como bvio, umaesttica da aparncia uma tentativa de nos devolver, conscincia e ao corpo, acoisidade do mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 88)

    o que quer que aparea est presente porque se oferece aos sentidos do ser

    humano. Existem dois aspectos a que ele d particular ateno. Em primeirolugar, a aparncia das coisas, para Seel, produz sempre uma conscincia daslimitaes do controle humano sobre tais coisas [Unverfgbarkeit]. Em segundolugar, e esta parece ser a questo central para a reflexo de Seel, procuraidentificar e compreender as condies e instrumentos com os quais possvelproduzir aparncia num ambiente social e cultural em que a atribuio desentido e no a percepo sensorial institucionalmente primordial(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 89)

    HansGeorg Gadamer, que, mais do que qualquer outro filsofo do nosso

    tempo, est associado hermenutica (incluindo sua reivindicao deuniversalidade) e interpretao como produo contnua de sentido, sugeriuque se desse maior reconhecimento ao no semntico, ou seja, s componentesmateriais dos textos literrios. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Riode Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 89)

    [Em entrevista recente, Gadamer elabora] uma posio que de fato desafia aassuno de que o sentido sempre e necessariamente a dimensopredominante na leitura de um poema:

    Mas poderemos de fato supor que a leitura desses textos uma leituraexclusivamente concentrada no sentido? No cantamos o texto [Is es nicht einsingen]? Ser que o processo pelo qual o poema fala s deve ser conduzido poruma inteno de sentido? No existe ao mesmo tempo uma verdade na suaperformance [eine Vollzugswahrheit]? esta, penso, a tarefa com que o poema nosconfronta

    Gadamer chama dimenso no hermenutica do texto literrio o seu volumee faz corresponder tenso entre as suas componentes semnticas e nosemnticas a tenso entre mundo e terra que Heidegger desenvolve no ensaio

    A origem da obra de arte. a sua componente terra que permite obra de arte ou

    ao poema firmar a si mesmo; a terra que d obra de arte existncia noespao. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 90)

    3

    do ponto de vista de Heidegger, a fenomenologia de Husserl era o ponto dechegada de uma trajetria filosfica milenar, na qual o paradigma sujeito/objeto ou seja, a configurao conceitual da contnua divergncia entre a existnciahumana e o mundo como esfera puramente material conduzira a culturaocidental a um estado extremo de alienao do mundo. Mais do que Husserl

    (que tinha boas razes para chamar cartesiana sua filosofia), Descartes era oobjeto explcito da crtica de Heidegger: por isso, Ser e tempoapresenta como

    pecados originais da filosofia moderna o fundamento cartesiano da existnciahumana no pensamento (e s no pensamento) e as subsequentes dissociaesentre a existncia humana e o espao e entre a existncia humana e a substncia.

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    Visto dessa perspectiva, o passo conceitual decisivo no livro de Heidegger ,como disse, a caracterizao da existncia humana como sernomundo, ouseja, como uma existncia que est sempre j em contato substancial, e, por isso,espacial com as coisas do mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena.Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 91)

    Sernomundo um conceito perfeitamente ajustado a um tipo de reflexo eanlise que tenta recuperar a componente de presena em nossa relao com as

    coisas do mundo. Nas pginas que se seguem, porm, eu gostaria de revelar acomplexidade de outro conceitochave de Heidegger [] o conceito de Ser []Espero que o esforo de revelar as vrias dimenses do conceito [] possaproduzir uma conscincia mais ntida de at onde deveria ir uma transformaoem nosso estilo conceitual atual se, de fato, quisssemos tentar desenvolver umdiscurso mais ajustado [ reflexo sobre a] presena (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p. 92)

    o Ser, na arquitetura da filosofia de Heidegger, toma o lugar da verdade (ou,para ser mais preciso, toma o lugar do contedo da verdade) que havia sido

    ocupado, desde o tempo de Plato [], pelas ideias. [] Heidegger fala daverdade como algo que acontece [ein Geschehen]. (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p. 93

    o Ser, enquanto est sendo revelado, por exemplo, numa obra de arte, no nem espiritual nem conceitual. Ser no um sentido. Ser pertence dimensodas coisas (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 93)

    a funo da obra de arte mostrar algo que tem o carter de coisa [] Se o sertem o carter de coisa, quer dizer que tem substncia e, por isso, ao contrrio dealgo puramente espiritual, ocupa espao (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 93

    Com o nosso questionar[, diz Heidegger, ]entramos numa paisagem; estardentro dessa paisagem um requisito fundamental para restabelecer oenraizamento do histrico Dasein. Ter uma substncia e, assim, ocupar espaoimplica a possibilidade de o Ser revelar um movimento: O Ser comophusis o

    balano em fuso. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 94)

    o movimento do Ser no espao acaba por se revelar multidimensional(tridimensional, para ser mais exato) e [], na sua total complexidade, essemovimento multidimensional explica o que Heidegger chama de acontecimentoda verdade. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 94)

    [Diz Heidegger:] Phusis o balano emergente, o sustersealiemsimesmo, aconstncia. Ideia, o aspecto como o que visto, a determinao do constantecomo aquilo que, e apenas na medida em que, se sustm do lado oposto ao ver.

    Mas Phusis como balano emergente tambm j aparecer. Certamente, justoque aparecer tenha dois sentidos. Primeiro, aparecer denota o evento autocoletorde fazercomquesesustenha e, assim, susterse no coligido. Mas aparecertambm quer dizer: uma coisa que j se sustm ali, para oferecer uma zona deentrada, uma superfcie, um olhar como um oferecerse para ser olhado.

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    Julgo que est correto associar a dimenso vertical [de balano] no movimento doSer ao simples fato de estar ali (mais exatamente, sua emergncia em estar ali eocupar um espao), ao passo que a dimenso horizontal [de ideia e aspecto]aponta para o Ser como estando a ser percebido, o que tambm quer dizer o Seroferecendose vista de algum (como uma aparncia e como um objeto, umacoisa que se move em direo a ou contra um observador). (GUMBRECHT,Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de

    Janeiro, RJ: 2010, p. 95)

    Heidegger sugere que o Ser se retira em vez de se oferecer a ns, de modo queas coisas que aparecem na retirada do Ser deixam de ter o carter de objetos.Estou convencido de que essa retirada parte do movimento duplo de reveloe retirada que, como vimos, constitui o acontecimento da verdade, e que aparte da revelao contm tanto o movimento vertical de balano (deemergncia e do seu resultado: estar ali), quanto o movimento horizontal deideia (como o que se apresenta, a aparncia). (GUMBRECHT, Hans. Produode Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 95)

    [o Ser] pretende referirse s coisas do mundo independentemente da (ou

    anteriormente ) sua interpretao e da sua estruturao por meio de uma redequalquer de conceitos histrica ou culturalmente especficos. Dito de outromodo, penso que o Ser se refere s coisas do mundo antes de elas se tornaremparte de uma cultura (ou, para usar a figura retrica do paradoxo, o conceitoreferese s coisas do mundo antes de elas fazerem parte de um mundo).(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 95)

    o Ser s ser Ser fora das redes da semntica e de outras distines culturais.Para que pudssemos ter a experincia do Ser, porm, este teria de atravessar olimiar entre, de um lado, uma esfera (que podemos pelo menos imaginar) livredas grelhas de qualquer cultura especfica e, de outro, as esferas bemestruturadas das diferentes culturas. Alm disso, para ser experimentado, o Serteria de tornarse parte de uma cultura. Assim que atravessar esse limiar, porm,deixar de ser, claro, Ser. Por isso, a revelao do Ser, no acontecimento daverdade, tem de se perceber a si mesma como um duplo movimento contnuo devir para diante (em direo ao limiar) e de se retirar (afastandose do limiar), derevelao e ocultao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 96)

    a mesma estrutura constitui a concepo mais ampla de Heidegger de uma

    Histria do Ser [Seingeschichte]. Se o Ser se revela ou no, no depende apenas da(maior ou menor) serenidade que cada Dasein capaz de investir. Dependetambm de cada momento especfico no tempo da Humanidade. Nesse sentido,Heidegger estava convencido, por exemplo, que a Grcia antiga tinha umapossibilidade incomparavelmente maior de estar presente na revelao do Ser

    do que, digamos, os habitantes do incio do sculo XX (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p. 96)

    [Recapitulemos] a funo do Dasein(palavra usada por Heidegger paradesignar a existncia humana) no acontecimento da verdade. [] Dasein no sinnimo das definies padro de sujeito ou subjetividade [que] pertence[m]ao contexto epistemolgico do paradigma sujeito/objeto. Dasein o sernomundo, isto , a existncia humana que est sempre j em contato funcional e

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    espacial com o mundo. O mundo com o qual o Dasein est em contato est aoalcancedamo, um mundo sempre j interpretado. Ao pressupor a situaode Sernomundo, Heidegger caracteriza a possvel contribuio do Dasein paraa revelao do Ser como serenidade [Gelassenheit], a capacidade de deixar que ascoisas aconteam. Ento, o impulso ou a iniciativa para a revelao do Ser (se que tais palavras so adequadas) parece vir do lado do Ser, no do lado doDasein. Assim, interessante que outra determinao da serenidade seja o seuestatuto de estar de fora da distino entre atividade e passividade. Na medida

    em que o Dasein, para Heidegger, tem de estarnomundo (e no pode, como umsujeito, estaremfrentedomundo), tambm plausvel que ele descreva aserenidade como a capacidade de abandonar quaisquer imaginao e projeotranscendentes. Claramente, o Dasein no deve ocupar uma posio que possaestar conectada manipulao, transformao ou interpretao do mundo.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 97)

    Eis um excerto deA origem da obra de arte[de Heidegger] que faz convergiralguns aspectos que tenho citado o acontecimento da verdade como um eventoque nos faz ver as coisas de um modo diferente do habitual, por exemplo, eesse modo diferente associado ao nada, isto , a uma dimenso de onde estoausentes todas as distines culturais:

    Ento, a arte o surgimento e o acontecimento da verdade. Mas ser ento que averdade surge do nada? De fato, assim , se por nada se entender a meranegao daquilo que , e se aqui pensarmos naquilo que como um objetopresente, no sentido comum, que a partir da surge luz e desafiado pelaexistncia da obra como s presumivelmente um ser verdadeiro. A verdade noresulta nunca de objetos que esto presentes e so comuns. Pelo contrrio, oabrirse do Aberto, o descerrar do que , acontece apenas enquanto projetada a

    abertura (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 98)

    Heidegger ocupa algumas pginas com a recordao de um antigo templogrego, e a que, na sua tentativa de caracterizar o Ser, desenvolve dois outrosconceitos, mundo e terra (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 99)

    Uma resposta complexa pergunta de como a presena do templo podecontribuir para provocar a revelao do Ser dada nas descries contrastantesde mundo e terra: O mundo a abertura autorreveladora dos trilhos largos

    de decises simples e essenciais no destino de um povo histrico. A terra avinda espontnea para diante daquilo que continuamente se autoisola e, nessamedida, d abrigo e esconderijo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena.Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 99)

    um aspecto muito importante e s vezes ignorado do texto de Heidegger [] aideia de que ver as coisas como fazendo parte do Ser, isto , independentementedas formas que se lhes impem as culturas historicamente especficas, no querdizer que essas coisas ou no tenham nenhuma forma ou tenham formasnecessariamente imutveis (eternas). Portanto, no deveremos concluir, porexemplo, que o Ser revelado a um antigo campons ou filsofo grego teria sido omesmo Ser que pode ser revelado a ns, dois milnios e meio mais tarde. Terrapoderia referirse a Ser como substncia, e mundo s configuraes e estruturasem mudana, das quais o Ser como substncia pode se tornar uma parte.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 102)

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    A outra soluo para o estatuto de mundo [] entende que, para Heidegger,o Ser revelase sempre e s na forma e na substncia (assim como contra ou pormeio da forma e da substncia) de coisas que fazem parte de culturas especficas(seres e mundos como configuraes de tais coisas). que, ao contrrio dasideias platnicas, o Ser no deve ser uma coisa geral, nem uma coisa metahistrica por sob ou atrs de um mundo de superfcies. Talvez seja simplesdefinilo como proponho: o Ser so as coisas tangveis, consideradas

    independentemente das situaes culturais especficas o que no simples defazer nem provvel de acontecer (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena.Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 102)

    Uma coisa parece certa, sejam quais forem nossas interpretaes de mundo.Sempre que uma situao cultural especfica desaparece (se o deus escapa dotemplo), as coisas pertencentes a essa situao deixam de poder ser o ponto departida para uma revelao do Ser, pois lhes falta mundo como dimensointegrante que parece darlhes vitalidade (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 103)

    Por mais provisria que seja minha tentativa de revelar a complexidade doconceito heideggeriano de Ser, no h dvida de que o conceito est muitoprximo do de presena (que procurei identificar, no incio deste captulo,como o ponto convergncia entre diferentes reflexes contemporneas, quetentam ir alm de uma epistemologia metafsica e de sentido). Ambos osconceitos [] implicam substncia; ambos esto relacionados com o espao;ambos podem se associar ao movimento (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 103

    o que propus chamar de os movimentos do Ser, na concepo heideggeriana,tornam impossvel pensar no Ser como algo estvel. O mais importante ponto deconvergncia, porm, a tenso entre o sentido (isto , aquilo que torna as coisasculturalmente especficas), de um lado, e a presena ou Ser, de outro.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 104)

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    tempo de romper com certos tabus discursivos [], de desenvolver conceitosque possam ao menos permitir apreender os fenmenos de presena, em vez des podermos passar ao largo dessa dimenso [:] a nica estratgia que poder

    nos ajudar a progredir nisso o recurso a culturas e discursos pr ou nometafsicos do passado (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 105)

    Por falta de conhecimento da cultura grega da Antiguidade, recorro, para meinspirar, cultura medieval e ao contraste entre a cultura medieval e o incio dacultura moderna (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 105)

    O que pretendo propor [] um conjunto de conceitos [] que nos ajude aultrapassar o estatuto exclusivo da interpretao nas Humanidades(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 105)

    apesar do princpio de que todos os discursos de autodescrio coletiva contm

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    e emen os e cu ura e sen o e e presena, es cer o supor que a gunsfenmenos culturais (por exemplo, os sacramentos da Igreja Catlica ou aracionalidade de atuais cultos afrobrasileiros) esto mais do lado da cultura depresena, ao passo que outros (como a antiga poltica de Roma ou a burocraciado incio do Imprio Espanhol) so predominantemente fundados na cultura desentido (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 106)

    Primeiro, a autorreferncia humana predominante numa cultura de sentido opensamento (poderamos dizer tambm a conscincia ou a res cogitans),enquanto a autorreferncia predominante numa cultura de presena o corpo(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 106)

    Segundo, [] a subjetividade ou o sujeito ocupam o lugar da autorrefernciahumana predominante numa cultura de sentido, enquanto nas culturas depresena os seres humanos consideram que seus corpos fazem parte de umacosmologia (ou de uma criao divina). Nesse caso, no se vem comoexcntricos ao mundo, mas como parte do mundo. [] Numa cultura de

    presena, alm de serem materiais, as coisas do mundo tm um sentido inerente(e no apenas um sentido que lhes conferido por meio da interpretao), e osseres humanos consideram seus corpos como parte integrante da sua existncia(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 107)

    Terceiro, o conhecimento, numa cultura de sentido, s pode ser legtimo se tiversido produzido por um sujeito no ato de interpretar o mundo [] Para umacultura de presena, o conhecimento legtimo se for conhecimento tipicamenterevelado. conhecimento revelado pelos(s) deus(ES) ou por outras variedadesdaquilo que se poder descrever como eventos de autorrevelao do mundo.[] o impulso para esses eventos de autorrevelao nunca vem do sujeito [] Oconhecimento resultante da revelao e do desvelamento, porm, [] no apenas conceitual. Pensar de acordo com o conceito heideggeriano de Ser devenos dar coragem para imaginar que o conhecimento revelado ou desveladopode ser a substncia que aparece, que se apresenta nossa frente (mesmo comseu sentido inerente), sem requerer a interpretao como transformao emsentido. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 108)Essas trs primeiras oposies [] tornam plausvel, quarto, que explcita ouimplicitamente cada cultura opere com concepes diferenciadas daquilo que

    entende por signo. claro que numa cultura de sentido o signo tem de terprecisamente a estrutura metafsica que Ferdinand de Saussure defende ser asua condio universal: a unio de um significante puramente material com umsignificado (ou sentido) puramente espiritual. Ora, importante acrescentarque, numa cultura de sentido, o significante puramente material deixa de serobjeto de ateno quando se identifica o seu sentido subjacente. Uma forma(para ns) muito menos familiar de signo [ a] definio aristotlica de signo,que j expliquei, segundo a qual um signo a juno de uma substncia (algoque exige espao) e uma forma (algo que torna possvel que a substncia sejapercebida). Este conceitosigno dispensa a distino clara entre o puramente

    espiritual e o puramente material nos dois lados do que se junta no signo.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 108)

    gostaria de mencionar minha recordao de um guia turstico no Japo, que,de ois de me ter descrito os si nificados recisos, um or um, de cada uma das

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    diferentes rochas num famoso jardim de pedras, acrescentou: Mas a belezadessas pedras tambm est em que elas esto sempre chegando perto do nossocorpo, sem nunca nos pressionarem. Um mundo assim, [] onde a verdadepode ser a substncia, ou seja, o mundo da cultura da presena, um mundo emque, quinto,os seres humanos querem relacionarse com a cosmologiaenvolvente por meio da inscrio de si mesmos, ou seja, de seus corpos, nosritmos dessa cosmologia. Numa cultura de presena, a vontade de desviar ou dealterar esses ritmos [] vista como sinal da inconstncia humana ou, pura e

    simplesmente, como pecado. Pelo contrrio, numa cultura de sentido, os sereshumanos tendem a ver a transformao (a melhora, o embelezamento, etc.) domundo como sua principal vocao. Aquilo que chamamos de motivao imaginar um mundo parcialmente transformado pelo comportamento humano,e qualquer comportamento orientado para realizar essas imaginaes umaao. Tais vises do futuro e tais tentativas de tornar reais essas vises surgem,tanto mais legtimas, quanto mais so fundadas num conhecimento do mundoproduzido pelo homem. O que mais chega perto de um conceito de ao numacultura de sentido , numa cultura de presena, o conceito de magia, ou seja, aprtica de tornar presentes coisas que esto ausentes [e viceversa]. Porm, a

    magia nunca apresenta a si mesma como fundada num conhecimento humano.Ao contrrio, ela depende de receitas [secretas ou reveladas], cujo contedomostrou fazer parte dos movimentos imutveis numa cosmologia em que osseres humanos se consideram integrados (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 109

    Se o corpo a autorreferncia predominante numa cultura de presena, ento,sexto, o espao ou seja, a dimenso que se constitui ao redor dos corpos deveser a dimenso primordial em que se negociem a relao entre os diferentesseres humanos e a relao entre os seres humanos e as coisas do mundo. Emcontrapartida, o tempo a dimensoo primordial em qualquer cultura desentido, pois parece existir uma associao inevitvel entre a conscincia e atemporalidade (lembrese o conceito husserliano de corrente de conscincia).Acima de tudo, porm, o tempo a dimenso primordial em qualquer culturade sentido pois leva tempo para concretizar as aes transformadoras por meio

    das quais as culturas de sentido definem a relao entre os seres humanos e omundo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 110)

    Ora, se o espao a principal dimenso pela qual numa cultura de presena, a

    relao entre os seres humanos, isto , entre corpos humanos, se constitui, ento,stimo, esta relao pode ser constantemente transformada (e de fato muitasvezes transformada) em violncia ou seja, na ocupao e no bloqueio doespao pelos corpos contra outros corpos. Para as culturas de sentido, emcontrapartida, habitual (talvez seja mesmo obrigatrio) adiar infinitamente omomento da verdadeira violncia e, assim, transformar a violncia em poder, oque poderemos definir como potencial para [violncia]. Quanto mais aautoimagem de determinada cultura corresponde tipologia da cultura desentido, mais ela tentar ocultar e at excluir a violncia como o mais avanadopotencial de poder. [Houve] historiadores e filsofos da nossa cultura que, nas

    dcadas mais recentes, confundiram relaes de poder com relaes definidaspela distribuio do conhecimento. Mas as linhas de distribuio doconhecimento s vo coincidir com as linhas de relaes de poder enquanto aslinhas de distribuio do conhecimento estiverem, em ltima anlise, cobertas,mesmo numa cultura de sentido, pelo potencial e pela ameaa da violnciafsica GUMBRECHT Hans. Produ o de Presen a. Rio de aneiro: Contra onto:

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    Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 111)

    Oitavo: numa cultura de sentido, o conceito de evento inseparvel do valor deinovao e, consequentemente, do valor de surpresa. Numa cultura de presena,porm, a inovao equivale sada necessariamente ilegtima dasregularidades de uma cosmologia e dos cdigos de conduta humana inerentes aessa cosmologia. Por isso, imaginar uma cultura de presena implica o desafiode imaginar um conceito de eventidade, desconectado da inovao e da

    surpresa. Tal conceito recordarnosia que at mesmo as transformaes emudanas regulares, que podemos prever e esperar, implicam um momento dedescontinuidade. Sabemos que, pouco depois das oito da noite, a orquestracomear a tocar a abertura de uma pea que tantas vezes ouvimos. Apesardisso, a descontinuidade que marca o momento em que produzem os sonsiniciais atingenos e produz um efeito de eventidade que no trans consigonem surpresa nem inovao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de

    Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 111)

    O exemplo de um evento de palco cnico levanos, nono, ao ldico e fico

    como conceitos por meio dos quais as culturas de sentido caracterizaminteraes em que os participantes tm uma ideia vaga, limitada ou nula dasmotivaes que lhes orientam o comportamento. Essa ausncia de (umaconscincia das) motivaes dos seus comportamentos a razo pela qual, emsituaes de jogo ou de fico, as regras sejam preestabelecidas ou definidas medida que decorre o jogo ocupam o lugar das motivaes dos participantes.Uma vez que as aes, definidas como comportamento humano estruturado pormotivaes conscientes, no tm lugar nas culturas de presena, estas no socapazes de produzir um equivalente dos conceitos de ldico ou de fico nemo contraste entre ldico/fico e a seriedade das interaes do cotidiano. Se,numa cultura de sentido, a seriedade das interaes do cotidiano encontra um

    contraste interno no jogo e na fico, as culturas de presena tm de sersuspensas durante perodos de tempo estritamente definidos sempre que

    queiram permitir uma exceo nos ritmos de vida fundados na cosmologia. essa a estrutura que os acadmicos, inspirados na obra de Mikhail Bakhtin,chamam metonimicamente de carnaval. (GUMBRECHT, Hans. Produo dePresena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 112)

    os debates parlamentares so um ritual adequado s culturas de sentido, aopasso que a Eucaristia um ritual prototpico das culturas de presena. [] Masqual ser o objetico de um ritual que produz a presena real de Deus se essa

    presena real de Deus j constitui um enquadramento geral, uma condio davida humana? A nica resposta que a celebrao da Eucaristia,cotidianamente, no s manter, como intensificar a j existente presena realde Deus. A noo de intensificao nos faz entender que nas culturas depresena no raro quantificar aquilo que no estaria disponvel paraquantificao numa cultura de sentido: [] emoes, por exemplo, ou asimpresses de proximidade, ou escalas de aprovao e de resistncia.(GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 113)

    Gostaria de concluir este captulo que dediquei s vrias tentativas deimaginar uma relao com os textos e com o mundo em geral que no seja umarelao exclusivamente interpretativa com outra tipologia. [] essa segundatipologia concentrase em diferentes tipos de apropriaodomundo pelos sereshumanos (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contra onto: Ed. PUC. Rio de aneiro, R : 2010, . 113

  • 7/25/2019 Ficha de Leitura_ Produo de Presena Hans U

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    Comer as coisas do mundo, o que inclui prticas de antropofagia e de teofagia,mascar a Madame Bovary, como Nietzsche um dia imaginou, ou comer o corpoe beber o sangue de Cristo pertencem a um modo bvio e crucial deapropriaodomundo [] sobre o qual, porm, no gostamos de falar [] Arazo mais bvia para essa antipatia no apenas intelectual a tenso entre anossa cultura como cultura predominantemente centrada no sentido, por umlado, e o comer o mundo como modo mais direto de nos tornarmos um s com

    as coisas do mundo na sua presena tangvel, por outro. (GUMBRECHT, Hans.Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ:2010, p. 114)

    em cada tipo de apropriaodomundo, aqueles que so os agentes deapropriao [] sentem o receio de se tornar objetos desse mesmo tipo deapropriao. Portanto, comer o mundo vai sempre provocar nos seres humanos,como partes corpreas do mundo, o medo de que eles prprios possam sercomidos. por isso que a maioria das sociedades faz do ato de comer carnehumana um tabu (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 114)

    Penetrar coisas e corpos ou seja, contato corporal e sexualidade, agrsso,destruio e assassnio constitui um segundo tipo de apropriaodomundo,no qual a fuso de corpos com outros corpos ou com coisas inanimadas sempre transitria e, por isso, abre necessariamente um espao de distncia aodesejo e reflexo. Penso que esse contexto explica por que a sexualidadepermite uma conotao to forte com a morte, com o arrebatar outro corpo ouser arrebatado por ele. Tal como no desejar a morte, essa conotao pode vir dodesejo de tornar eterna uma unio transitria. Mas tal como no temer a morte,parece ser desencadeada, mais uma vez, pelo medo de uma reviravolta. []

    Uma estratgia [] de defletir esse medo , claro, o hbito quasegeneralizadamente aceito em nossa cultura de espiritualizar a sexualidade at oponto em que ela se tor