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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
FEMINICÍDIO. VIDA DAS MULHERES IMOLADAS NO ALTAR DO
PATRIARCADO.
Ana Liési Thurler
Resumo: A sociedade brasileira ingressa no século XXI intensificando as perversidades nas violências contra as
mulheres. Acontecem os estupros — coletivos, corretivos — com crueldade inédita e, muitas vezes, com a
morte dessas mulheres. Na primeira década deste século, tivemos no Brasil o extermínio de 47 mil mulheres. É
uma guerra, um femigenocídio (Segato, 2016). E a vítima é uma vítima sacrificial. A vida é precária, mas, em
nossa sociedade sexista, a precariedade é desigualmente distribuída. A possibilidade da manutenção da vida
depende, das condições sociais e políticas, e não somente de um impulso interno de viver. Esse é um caminho
possível para a compreensão da biopolítica do feminicídio (Butler, 2016).
O termo feminicídio surge no Tribunal Internacional sobre Crimes Contra a Mulher, realizado em Bruxelas, em
março de 1976. Somente em 2015, o Brasil terá a Lei do Feminicídio. Foi necessário inscrever o termo
feminicídio no texto da lei, mas a lei só pode funcionar quando se enraíza e se incorpora à cultura e à vida
social. Está em curso um debate tímido, sobre esse crime letal que, mesmo sendo sexual, não tem intenção
sexual.
O feminicídio é o descarte, a expulsão da mulher de espaços vitais. Feminicídios ocorrem na intimidade e no
espaço público, como o caso de mulheres líderes comunitárias (casos de Dorothy Stang e Margarida Alves). Em
um e outro caso, o feminicídio é tutelado pelo Estado, omisso ou negligente.
Palavras-chave: Feminicídio, vidas precárias, patriarcado.
É em um quadro de violências contra as mulheres marcadas por grande crueldade que
o Brasil entra no terceiro milênio. Os estupros — coletivos, corretivos — com perversidades
requintadas são, não raras vezes, acompanhados com a morte dessas mulheres violadas.
Em termos de dimensões, a desafiante questão dos assassinatos de mulheres no país é
preocupante. Em 2014, sofreram mortes violentas 4.757 brasileiras, significando 13 vítimas
por dia. Praticamente metade delas, jovens mulheres (49,7%) na faixa etária entre 10 e 29
anos (IPEA e FBSP, 2016:06). E, ainda: “Estes dados (...) olhados em conjunto com os da
Central do Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República: no mesmo ano, de um total de 52.957 denunciantes de violência, 77% afirmaram
ser vítimas semanais de agressões, e em 80% dos casos o agressor tinha vínculo afetivo com a
vítima (...) 80% dessas vítimas possuem filhos, e 64% destes presenciaram ou também
sofreram violência” (Idem, p. 29).
O altar do patriarcalismo armado para a imolação das mulheres
No Brasil, as leis se multiplicam, mas as violências aumentam tanto quantitativamente,
quanto na intensificação das perversidades — nas violências em geral e contra as mulheres
em particular. “Conforme o Instituto Sangari, nos últimos 30 anos foram assassinadas no país
2
perto de 91 mil mulheres, sendo que 43,5 mil só na primeira década deste século” (Brasil,
2013:19). É uma guerra, um femigenocídio. Cada vítima é uma vítima sacrificial. A crueldade
exercida sobre o corpo das mulheres atinge, com sua truculência, a sociedade inteira. Tais atos
de crueldade são epifenômenos de uma realidade que pode ser inferida e postulada, ocultando
uma realidade submersa com uma estrutura de relações, que reclamam uma interpretação.
Enfim, sob fenômenos de intensa violência — não pontuais, não acidentais, não dispersos,
nem eventuais — há uma estrutura oculta a ser desvelada (Segato, 2013).
Para tornar inteligíveis dados que chamam a atenção pela crueldade não explicável,
Segato destaca duas intenções expressivas. Primeiramente, a exemplaridade — atemorizante,
paralizante —, minando toda disposição de desobediência. E o que se espetaculariza com
esses castigos exemplares é a extrema insensibilidade diante do sofrimento do outro. Enfim,
“as estratégias psíquicas e físicas de dessensibilização são essenciais na preparação dos
homens para a guerra. (...) Exibição de masculinidade, de capacidade letal, ausência absoluta
de sensibilidade compassiva. É essa a masculinidade necessária para acionar o crime
organizado. São análogas as estruturas da máfia e da masculinidade” (Segato, 2013:56). As
práticas cruéis, violentas contra as mulheres cumprem também uma segunda intenção
expressiva: a função pedagógica. Inspirada em Arendt (em “Origens do Totalitarismo” ao
focalizar o nazismo fala em “Pedagogia da Traição”), Segato cunha a expressão “Pedagogia
da Crueldade”, essencial ao mercado e ao capital nesta fase de seu desenvolvimento, forjando
corpos dóceis demandados tanto pelo mercado, quanto pelo capital.
Há a realidade de uma segunda economia, com capital de origem criminosa, com
importância enorme, representando ao menos o dobro da primeira economia, aquela
contabilizável, controlável, visível. O Estado dedica grande parte de sua “violência legítima”,
atuando mediante agentes de segurança pública, para proteger a propriedade e a vida contra a
violência ilegítima.
A informalidade divulgada é a de periféricos, pobres, não brancos. Mas a “segunda
economia”, a grande informalidade, diz respeito a banqueiros, grandes empresários, políticos,
gente branca e de “boas famílias”1. São prestigiados bancos do norte que lavam o dinheiro
sujo acumulado na segunda economia.
1 No Brasil, essa dupla realidade em relações promíscuas e indicando processo semelhante de
mafialização, tem sido desnudada em acontecimentos com repercussão nacional, que não
tardam em desaparecer dos noticiários. Em novembro de 2013, a Polícia Federal apreendeu,
no município de Afonso Cláudio no Espírito Santo, um helicóptero pertencente à empresa
Limeira Agropecuária, com 450kg de cocaína, do Deputado Estadual de MG, Gustavo
Perrella (Solidariedade), filho do Senador Zezé Perrella (PDT/MG). Disponível em
3
Chegamos a uma clara duplicação do Estado e na aceitação da intocabilidade e
funcionalidade da “segunda realidade”. (...) Novas formas de conflitualidade
tornam-se portas de acesso para controlar em mão dupla as duas realidades.(...)
Estamos desafiados a pensar grande, sem nos conformar com o varejo dos
epifenômenos oferecidos pela mídia (SEGAT0, p. 61 a 63).
Essa “segunda economia” com capital de origem criminosa se expandiu. Segato dirá
que México se “juanizou” (aludindo a todo processo de mafialização, violência cruel e
feminicídios na Ciudad Juarez, na fronteira norte daquele país). Países da América Latina se
mexicanizaram. Enfim, essa realidade de uma “duplicação” do Estado se expandiu pelas
Américas. As vulnerabilidades do Estado aumentam pelos espaços abertos ao oportunismo da
expansão do capital em suas duas realidades.
Nesse quadro de novas conflitualidades nas periferias de nossas grandes cidades, a
racionalidade é outra, violações e feminicídios são vividos como crimes de guerra, em uma
desconstrução e reconstrução das masculinidades. O mandato de violação e morte do
patriarcalismo emana da confraria masculina para o violador comum. E o homem que ataca,
deseja e precisa de pertencimento em uma corporação armada. Para isso é necessário
demonstrar capacidade de exercícios de crueldade, força psicológica, não se vulnerabilizar.
As organizações criminais se empenham em extinguir as oportunidades baseadas na
solidariedade e nas organizações comunitárias, que buscam politizar bairros e periferias,
construir coletividades que praticam a reciprocidade, economia popular. Enfim, alternativas
de sobrevivência para pessoas que recusam a violência e a morte como projeto de vida.
Nesse quadro de duplicação do Estado — situação examinada por Segato (2013, 2016)
com perspicácia e maestria — os feminicídios proliferam. O termo feminicídio surge em
março de 1976, em Bruxelas, no Tribunal Internacional sobre Crimes Contra a Mulher. É o
assassinato de mulheres por sua condição de gênero, em um contexto de desigualdades, de
disseminação e banalização da violência. Esses assassinatos não são casos isolados, mas uma
forma extrema de violência sexista. São fenômenos culturais e sociais, resultando em mortes
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/11/25/pf-apreende-450-kg-de-
cocaina-em-helicoptero-da-familia-perrella.htm
Em 25 de junho de 2017, a FAB interceptou, no Estado de Goiás, um avião bimotor com 500
kg de cocaína. Esse avião decolou da Fazenda Itamarati Norte, propriedade do Ministro da
Agricultura Blairo Maggi (senador licenciado do PP/MT). Disponível em
www.brasil.elpais.com/brasil/2017/06/26/politica/1498506161_256460.html Acessos em
13.06.2017.
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evitáveis. Pasinato registra também o vínculo desses fenômenos com a violação dos Direitos
Humanos:
Alguns trabalhos reconhecem e classificam as mortes de mulheres como a violação
máxima de direitos humanos das mulheres, por tratar da eliminação da vida, principal
bem jurídico protegido pelos sistemas jurídicos nacionais e internacionais (IIDH,
2006:15). Essa definição de diferentes formas de violência contra as mulheres como
violação aos direitos humanos é relativamente recente e ganhou destaque a partir da
Conferência de Direitos Humanos (Viena, 1993). Essa abordagem permite que se
denuncie a violência contra as mulheres como um problema público e político,
reconhecendo sua prática como crime contra a humanidade. Permite também cobrar
dos Estados o cumprimento de compromissos que assumiram ao assinar e ratificar as
convenções internacionais de proteção dos direitos das mulheres, para erradicar, punir
e prevenir todas as formas de violência e discriminação contra as mulheres
(PASINATO, 2011).
A conexão dos feminicídios com a violação dos Direitos Humanos das mulheres traz
os benefícios apontados por Pasinato, na citação acima. Interpreto que tanto o patriarcalismo,
quanto contextos sociais, culturais e econômicos ligados ao neoliberalismo e à hegemonia do
capital são questões estruturantes de nossas sociedades latino-americanas. Portanto, não nos
encontramos diante de uma disjuntiva, em que deveríamos eleger uma ou outra alternativa.
Tanto a permanência do patriarcado, quanto o capitalismo em sua fase atual, criando
adversidades nas condições sociais, culturais e econômicas das mulheres, explicam os altos
índices e a perversidade dos feminicídios.
Somente em 2015, o Brasil aprovou a Lei do Feminicídio, Lei nº 13.104/2015,
alterando o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940). O feminicídio passa a
qualificar o crime de homicídio, buscando tipificá-lo, retirar da invisibilidade essa forma letal
de violência de gênero, banir a impunidade, responsabilizar o Estado. O homicídio assim
qualificado passa a constituir um crime hediondo (Lei nº 8.072/1990), como é o caso do
estupro e do genocídio, entre outros (Agência Patrícia Galvão, 2016). Conforme o Código
Penal, o feminicídio é “o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo
feminino”, isto é, quando o crime envolve “violência doméstica e familiar — conforme define
a Lei Maria da Penha — e/ou situações de menosprezo ou discriminação à condição de
mulher”, com pena prevista para o homicídio qualificado de reclusão de 12 a 30 anos.
Foi necessário inscrever o termo feminicídio no texto da lei. Entretanto, a lei só pode
funcionar quando se enraíza e se incorpora à cultura e à vida social. Está em curso em nosso
país um debate ainda muito tímido, sobre esse crime letal que, mesmo sendo sexual, não tem
intenção sexual.
O feminicídio — conforme as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e
Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres - Feminicídios (ONU
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Mulheres et allii, 2016) — pode envolver violência doméstica e familiar, violência sexual,
tráfico de mulheres para fins de exploração sexual e a exploração sexual de meninas e
adolescentes e, também, ocorrer em circunstâncias associadas à disputa de terras e confrontos
entre quadrilhas. Autores do feminicídio tanto podem ser parceiros ou ex-parceiros afetivos,
quanto serem grupos ligados a redes de prostituição e tráfico de pessoas, tráfico de drogas ou
outras formas de crime organizado e disputas pela terra. Com o documento Diretrizes
Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes
Violentas de Mulheres – Feminicídios, instituições (como a ONU/Mulheres e a SPM/PR)
pretenderam incluir a perspectiva de gênero tanto na fase da investigação policial e do
processo judicial, quanto do julgamento das mortes violentas de mulheres. O femigenocídio
no Brasil está ligado às desigualdades de gênero, no caso de ocorrências no contexto afetivo,
envolvendo violência doméstica e familiar. Os designados feminicídios íntimos representam
ao menos metade das mulheres assassinadas por marido, ex-marido, namorado ou ex-
namorado. Mas os outros 50% dos casos têm a ver com diversos outros fatores. Uma vez ser
nossa realidade marcada pela mutação perversa de diferenças em desigualdades, as mulheres
estão expostas não só a discriminações baseadas nos papéis de gênero, mas também à classe
social, idade, raça, cor e etnia, deficiências, regionalidades. As mulheres sofrem diferentes
riscos de ter seus corpos violados e suas vidas eliminadas. A vida é precária, mas, em nossa
sociedade sexista, a precariedade é desigualmente distribuída. A possibilidade da manutenção
da vida depende, das condições sociais e políticas, e não somente de um impulso interno de
viver. Esse é um caminho possível para a compreensão da biopolítica do feminicídio (Butler,
2016).
Meneghel e Larme (2017), a partir da participação no Fórum em Buenavetura,
Colômbia, oferecem um depoimento sobre quanto opressões coloniais incidem sobre corpos
racializados, generificados, emudecidos. Em Buenaventura, a violência não é de caráter
interpessoal, mas uma violência do Estado, do projeto capitalista. A população negra que lá se
instalou permanece protegida pela Cordilheira dos Andes. Essa região só passou a ser
disputada na segunda metade do século XX, entre as FARC e o governo central. Grupos
paramilitares também passaram a atuar na região, pretendendo desterritorializar essa
população. Muitos desaparecimentos, violência sexual e feminicídios nesse processo. “Na
disputa territorial, há uma guerra contra as mulheres que se tornam vitimas sacrificiais, sua
morte representa a quebra da espinha dorsal da população a ser subjugada, a ser
desterritorializada. (...) Os grupos que não interessam ao capital são liminados e os corpos de
6
“algumas mulheres” (negras, pobres, migrantes, descartáveis) são alvos de política de
terror”(p.119).
A primeira vez que a Colômbia reconheceu um feminicídio foi em 2015 e ainda de
caráter privado. O feminicídio é arma do imperialismo, uma tática de guerra. Os feminicídios
atingem, principalmente, mulheres negras, indígenas, pobres. É uma estratégia de dominação,
de inversão do capitalismo patriarcal, racista e necrófilo. Feminicídio íntimo é o cometido por
homem com quem a vítima tem ou teve uma relação íntima, familiar, de convivência ou afins.
Incluem os crimes cometidos por parceiros sexuais ou homens com quem tiveram outras
relações interpessoais — maridos, companheiros, namorados, em relações atuais ou passadas.
Apresento três casos ocorridos no Distrito Federal, no Brasil, em 2016.
Em março, Jane Carla Fernandes Cunha, 20 anos, moradora em Samambaia Sul, foi
assassinada por Jhonata Pereira Alves, com se relacionou durante seis anos. Jane já havia
denunciado o ex-companheiro que foi enquadrado na Lei Maria da Penha.
Em setembro, a mnicure Eliane Vieira de Paula, 42 anos, foi morta facadas pelo
marido Beny Vieira de Paula. O crime aconteceu no domicílio do casal, em Ceilândia e foi
presenciado por um primo da vítima.
Em novembro, Tatiane Leal Ribeiro, 38 anos, foi assassinada a facadas pelo ex-
companheiro Ronaldo Andrade Almeida, em Samambaia. A filha mais velha de Tatiane
presenciou o crime. Tatiane já havia feito um Boletim de Ocorrência contra seu agressor, em
2013 (Campos, 2017).
Feminicídio do Estado: O caso emblemático da paraibana Margarida Alves
No dia doze de agosto/ do ano oitenta e três /parece que a natureza /se descuidou ou não sei / fazendo
com que MARGARIDA / víssemos pela última vez. (....)
Estando na sua casa / conversando com o marido / foi visto por um vizinho /
quando chegou um bandido / chegando deixar deu corpo / sem vida no chão caído (...)
O Rio Grande do Norte / E Pernambuco também / o povo da Paraíba/ de Itambé e Belém /
sentiram esse drama triste / por tanto lhe querer bem.2
2 Margarida, de Raimundo Francisco de Lima, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Pedro,
Rio Grande do Norte. In Woortmann, Ellen F. et allii, 2007.
7
Feminicídios ocorrem na intimidade e no espaço público, como o caso da líder
sindicalista Margarida Maria Alves. Em um e outro caso, o feminicídio é tutelado pelo
Estado, omisso ou negligente. O feminicídio é o descarte da mulher de espaços vitais. É a
expulsão da mulher de territórios que, na perspectiva patriarcalista, não lhe são devidos. O
feminicídio é a eliminação, pelo assassinato, da mulher que está “fora do lugar”.
Contextualizo, registro e analiso o caso emblemático de feminicídio da paraibana Margarida
Maria Alves, ocorrido em 1983, em Alagoa Grande, a 113 km de João Pessoa. Ela ousou,
pioneiramente, assumir em 1970, a diretoria e logo a presidência do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais no interior da Paraíba, nordeste brasileiro.
Os trabalhadores do campo estiverem em situação de desigualdade de direitos
relativamente aos trabalhadores urbanos, mas lutaram e se organizaram mesmo antes da
aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1º.05.1943 (DL nº 5.452). O Sindicato
dos Trabalhadores Rurais pioneiro foi criado em Campos, no Rio de Janeiro, em 1938. Nos
anos 1950 chegaram a 48 Sindicatos, mesmo que somente oito eram reconhecidos pelo
Ministério do Trabalho (Romão de Souza Ferreira, 2006). As Ligas Camponesas surgiram nos
estados de Minas Gerais e Goiás, nos anos 50 do século passado e, logo, em estados do
nordeste como Paraíba e Pernambuco. As oligarquias rurais ampliaram suas representações no
Congresso Nacional, buscando, assim, impedir que direitos sociais, trabalhistas, direito à
sindicalização se estendessem aos trabalhadores e trabalhadoras rurais que se organizavam
pelo país. “Em março de 1963, o presidente da República, João Goulart, lança a Lei nº 4.214,
conhecida como Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo aos/às trabalhadore/as rurais os
direitos sindicais e previdenciários garantidos aos trabalhadores e trabalhadoras urbanos Mas,
para a sua implementação efetiva, a luta ainda se daria até os dias atuais” (id., p. 53).
Já em 1962, um ano antes da criação da CONTAG – Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura, uma grande liderança feminina se engajou na Liga Camponesa
8
de Sapé, na Paraíba, assim que seu marido, criador dessa Liga, João Pedro, foi assassinado:
Elizabeth Teixeira. (Gomes da Silva, 2008).
Margarida Maria Alves (1933-1983), também paraibana, nasceu e viveu em Alagoa
Grande. Inseriu-se no Sindicato Rural desse município, primeiramente como tesoureira e,
após, como presidenta, durante 12 anos, até 1982. Foi uma das fundadoras do CENTRU –
Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural, durante sua gestão. Sofreu feminicídio
em frente a sua casa, diante de seu marido e de seu filho, em 12 de agosto de 1983. Acabara
de completar 50 anos de idade no dia 05 de agosto. O mandante do crime hediondo foi o
usineiro Zito Buarque que ordenou ao genro, a execução de Margarida. Essa data foi
declarada “Dia Nacional Contra a violência no campo e a Reforma Agrária”. A morte de
Margarida não amenizou a determinação das mulheres rurais pelas lutas por direitos. Muito ao
contrário. Margarida Alves inspirou-as e incentivou-as a se organizarem mais e mais. Gomes
da Silva assim explica: “A denominação da Marcha como Marcha das Margaridas foi uma
forma de tornar pública a situação das desigualdades nas quais vivem as trabalhadoras rurais,
evidenciar as diversas formas de violências enfrentadas e a situação de pobreza na qual vivia a
maioria das mulheres (p. 90).”
A primeira Marcha das Margaridas foi em agosto de 2000, reunindo mais de 20 mil
trabalhadoras rurais em Brasília. A chamada adotada foi 2000 razões para marchar contra a
fome, a pobreza e a violência sexista. “Seus eixos de discussão incluíram temas como a terra,
o trabalho, os direitos sociais, a autodeterminação e a soberania afirmados na Carta da Marcha
Mundial (que ocorreu pela primeira vez em Québec, no Canadá, e em que a Marcha das
Margaridas se inspirou). A questão central apresentada neste documento era um diagnóstico
da situação em que vivia o campo e as consequências na vida das mulheres” (idem, 2008:91).
Em 2003, ocorreu a segunda Marcha das Margaridas, com a participação de mais de 30 mil
trabalhadoras rurais. Teve como chamada “2003 razões para marchar por terra, água,
salário, saúde e contra a violência”. A terceira Marcha das Margaridas foi em 2007, em 21 e
22 de agosto e teve como chamada Construindo 2007 razões para marchar contra a fome, a
pobreza e a violência sexista. A última Marcha das Margaridas foi em 2011, nos dias 16 e 17
de agosto, com a chamada 2011 razões para marchar por desenvolvimento sustentável com
Justiça, autonomia, igualdade, liberdade.
9
As trabalhadoras rurais denunciam mortes de companheiras como Antônia Flor3 do
estado do Piauí e Maria da Penha Nascimento, também do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Alagoa Grande na Paraíba, na década de 1980. Penha faleceu em 16.03.1991, em
desastre de carro mal explicado, próximo à data do depoimento que daria, na condição de
testemunha-chave do feminicídio de Margarida Alves, de quem foi companheira de lutas no
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande.
Dorothy Mae Stang (07.07.1931/12.02.2005) nasceu em Ohio (EUA) veio para o
estado de Pará. Esteve entre os fundadores da primeira escola de formação de professores na
rodovia transamazônica. Defendeu dois projetos de desenvolvimento sustentável em terras
governamentais, ocupadas por pecuaristas: Esperança e Virola Jatobá. O que a irmã pretendia
era negociar o assentamento de sem-terras em troca da preservação de grande parte da
floresta. Para deter esse projeto da missionária, fazendeiros liderados por Reginaldo Pereira
Galvão e Vitalmiro Bastos de Moura contrataram três jagunços para assassinarem a religiosa
(Alfonsín, 2016). A missionária foi assassinada em 12 de fevereiro de 2005, às 7h30m, aos 73
anos, com um tiro da cabeça e cinco pelo corpo, em uma estrada de difícil acesso, a 53 km da
sede do município de Anapu. Pelo crime, Reginaldo, um dos líderes dos fazendeiros foi
condenado a 30 anos de prisão, mas após recurso, aguarda o resultado em liberdade.
Vitalmiro, o outro mandante, foi condenado em 2007 e absolvido em 2008, mas foi a mais
dois julgamentos e condenado a 30 anos de prisão. Por problemas cardíacos, atualmente
cumpre pena em prisão domiciliar, em Altamira (PA).
Há, ainda, os três executores do crime. Clodoaldo Batista foi condenado a 18
anos de prisão e cumpre pena em regime semiaberto em um centro de recuperação em Belém.
Rayfran das Neves Sales foi o autor dos disparos, condenado a 27 anos de prisão, cumpriu
nove anos e passou ao regime de prisão domiciliar. Em outubro de 2014, foi acusado de novo
homicídio e voltou a ser detido. O intermediário Amair Feijoli Cunha recebeu uma
3 Antônia Flor, trabalhadora rural em Piripiri, foi vítima da pistolagem, em um conflito agrário que se
estendeu por mais de meio século. Posseira em Gameleira, onde vivia e trabalhava, sofreu diversas
tentativas de despejo. Octogenária, foi assassinada por jagunços, em sua casa, em 1º.12.1984. Os
assassinos pediram comida. Dona Antônia ofereceu beiju com café. Ao virar-lhes as costas foi crivada
de balas. Uma anciã perdeu a vida por uma pequena gleba de terra em um país de dimensões
continentais. Mas a terra foi desapropriada e ficou para seus herdeiros. O Sindicato dos/as
Trabalhadores/s Rurais de Piripiri conseguiu aprovação para a construção de um assentamento na
região da Gameleira. Das 39 casas previstas, 27 já foram construídas. Uma das construções será um
memorial dedicado à Antônia Flor e será um espaço para reuniões dos assentados. Reconhecimento à
resistência de uma trabalhadora rural do Piauí, que contribuiu nas lutas por terra, para quem nela vive
e trabalha.
10
condenação a 17 anos de prisão. Está cumprindo prisão domiciliar em Tailândia, no sudeste
do Pará (Chagas, 2015).
O feminicídio da missionária teve grande repercussão e barrou o avanço dos
madeireiros ao oeste amazônico. Os crimes continuavam, mas os defensores da floresta
passaram a ser executados em pequenas cidades da região, em bares, na rua. Jane Dwyer,
também missionária, diz sobre essa estratégia: “Eles inventam. Matar na cidade é estratégico.
Dizem que é por causa de mulher, bebida, vingança. Não é. É por terra.”
Os feminicídios de Margarida Maria Alves e Dorothy Stang transformaram o luto em
luta por justiça. Essas mortes têm sido politizadas e geraram um comprometimento dessas
comunidades com a preservação de suas memórias. Elas foram inspiradoras e suas vidas não
podem ser esquecidas.
Estado e grande parte da sociedade, entretanto, continuam aceitando os crimes
hediondos de feminicídios. Continuam a tolerá-los, tornando-se, assim, cúmplices por ação ou
omissão, das crescentes agressões letais contra as mulheres. Estado e sociedade convivem
hoje com um quadro degradante de femigenocídio.
Os Estados latino-americanos devem promover a reconstituição dos tecidos
comunitários agredidos e desintegrados pela intervenção colonial. O Estado capaz de frear a
expansão mafiosa é o que devolve espaços comunitários e garante mecanismos de deliberação
interna, de criação e implementação de projetos populares. Somente um Estado restituidor da
cidadania comunitária é o que vai promover efetivas transformações e reduzir as violências
em geral e os feminicídios em particular.
Referências:
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http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/feminicidio/http://www.agenciapatriciagalva
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União Cia Editora, João Pessoa (PB), 1984.
11
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BUTLER, Judith. Quadros de Guerra. Quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio
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Femicide. The life of women immolated upon the altar of patriarchy.
Abstract: Brazilian society enters the 21st century intensifying the perversions of violence
against women: rapes – collective and corrective – with unheard of cruelty which many times
result in the women’s death. During the first decade of this century 47,000 women were
exterminated. It is a war, a femigenocide (Segato, 2016). The victim is a sacrificial one. Life
is precarious, but in our sexist society improper conditions of living are unequally distributed.
The possibility of sustaining life depends on social and political conditions and not only on an
internal impulse to survive. This is one possible way to understand the bio-politics of
feminicide (Butler, 2016).
The term feminicide emerged at the International Court of Crimes against Women in
Brussels, in March, 1976. Only as recently as 2015 did Brazil enact the Law of Feminicide. It
was necessary to include the word “feminicide” in the text of the law. The law, however, can
only begin to be enforced when it becomes rooted in and part of the culture and social life. An
ongoing, though timid, debate within the country has been occurring, concerning this lethal
crime which, although sexual, has no sexual intention.
Feminicide is the trashing, the expulsion of women in vital spaces. Feminicide occurs in
intimate and public spaces, as in the cases of community leaders (see for example, the cases
of Dorothy Stang and Margarida Alves). Always the State is responsible for feminicide, by
omission or negligence.
Keywords: femicide, precarious lives, patriarchy