Upload
others
View
2
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS - CCSA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - PPGD
MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL
RODRIGO SILVEIRA RABELLO DE AZEVEDO
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA: Um estudo de
sua relação e relevância para o Desenvolvimento.
NATAL
2014
2
RODRIGO SILVEIRA RABELLO DE AZEVEDO
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA: Um estudo de
sua relação e relevância para o Desenvolvimento.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito para a obtenção do título de
Mestre em Direito.
Orientador – Prof. Dr. Otacílio dos Santos
Silveira Neto
NATAL
2014
3
RODRIGO SILVEIRA RABELLO DE AZEVEDO
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA: Um estudo de
sua relação e relevância para o Desenvolvimento.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito para a obtenção do título de
Mestre em Direito.
Orientador – Prof. Dr. Otacílio dos Santos
Silveira Neto
Aprovado em: ___/___/____.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto
________________________________________________
Prof. Dr. Artur Cortez Bonifácio
________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Lopo Saraiva
4
Em memória, dedico este trabalho à
minha avó, a Professora Maria Luiza
Rabello, que me mostrou a verdadeira
paixão pela docência e desde cedo me
ensinou a importância dos valores
morais, da educação e do saber.
5
"Os males que a liberdade às vezes traz
são imediatos; são visíveis para todos, e
todos mais ou menos, os sentem. Os
males que a extrema igualdade produzir
só se manifestam pouco a pouco;
insinuam-se gradativamente no corpo
social; apenas de longe em longe nos é
dado vê-los e, no momento em que se
tornam mais violentos, o hábito já fez
com que não sintamos.”
Alexis de Tocqueville
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela vida, por meus dons, capacidades e por se fazer sempre notadamente
presente;
A minha mãe, Márcia Rabello, e minha irmã, Maíra Rabello, em memória, por serem
meus guias e inspiração em vida;
Ao meu Avô Fernando Rabello e ao meu Pai Waldermir Azevedo, pelo orgulho tantas
vezes demonstrado no olhar, pela compreensão do estresse tão frequentemente
vivenciado, pela presença diuturna, pela preocupação constante e pelo companheirismo
de sempre. Um muito obrigado aos meus heróis;
A meu orientador, Otacílio Silveira, por sua orientação acadêmica, por toda a paciência
demonstrada nos momentos de decisão, por todo o companheirismo e compreensão nos
momentos de nervosismo, por todo o incentivo nos momentos de decepção;
Ao Professor Artur Cortez Bonifácio, por sua amizade, pelo incentivo constante, por
todas as aulas que viravam conversas e por todas as conversas que viravam aulas;
A todos os professores do mestrado em Direito Constitucional da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, por toda a receptividade, suporte e zelo para com os discentes
e pelo brilhantismo compartilhado;
Aos amigos Professores Valfredo Aguiar e Rodrigo Reül, pelo incentivo e apoio, desde
os primeiros devaneios, na construção deste projeto de vida;
Aos amigos e sócios, integrantes do escritório Almeida, Cavalcanti, Motta e Rabello
Advogados, André Motta, André Cavalcanti, Emanuel Almeida, Rodrigo Motta,
Roberto Gurjão e Sérgio Dantas, pela preocupação, apoio, compreensão e amizade
despendidos neste período de dedicação ao mestrado;
A Jovana Vieira, por todo o amor e carinho ao longo deste árduo caminho que foi o
mestrado, além do conforto e incentivo nos momentos mais difíceis;
A minha avó Dona Terezinha, a Francimary Burity e a todos os meus familiares, pela
cobrança constante, pelo incentivo diário e por toda ajuda ofertada desde o processo
seletivo;
Aos tios e tias professores, Cursino Jacobina, Waldeneide Azevedo, Francisco Vieira,
Luciana Rabello, Marcelo Rabello, Célia Rabello e Valério Azevedo, pelo
acompanhamento e interesse no desenvolvimento da minha pesquisa e em meu êxito
profissional;
Aos amigos e irmãos da “Gang do Banguela”, Breno Lucena, Hugo Felinto, Tiago Leal,
Jimmy Oliveira, Danilo Oliveira, Bernardo Damião, Tiago Barroso, Bruno Victor,
Leonardo Victor, Rafael Lira, ainda aos amigos Rodolpho Martins, Marcel Joffilly e
Paulo Cleoblo, pelo orgulho sempre demonstrado e pela torcida pelo êxito deste projeto;
Aos “diferenciados”, Mateus Melo, Ricardo Duarte, Leonardo Medeiros, Fernando
Lucena, Fillipe Azevedo e Kathy Medeiros, por terem recebido este forasteiro, como se
irmão fosse, e por todos os momentos compartilhados e intensamente vividos;
E a todos os meus amigos que contribuíram, direta ou indiretamente, para a realização
deste trabalho.
7
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10
2. DEMOCRACIA E O PARADIGMA DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ....... 15
2.1 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E A CRISE DO MODELO
REPRESENTATIVO ..................................................................................................... 15
2.2 O PARADIGMA DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E A DEMOCRACIA
PARTICIPATIVA. ......................................................................................................... 28
2.3 INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO ............................................................................................. 36
3. FUNDAMENTOS DA TUTELA DA LIVRE CONCORRÊNCIA .................. 46
3.1 FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA IDEIA DE CONCORRÊNCIA ........... 46
3.2 FUNDAMENTOS DA TUTELA JURÍDICA DA LIVRE CONCORRÊNCIA .. 56
3.3 A DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO ................................................................................................................. 66
3.3.1 Tutela constitucional da livre concorrência ...................................................... 66
3.3.2 Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. ................................................ 75
4. A IDEIA DO DESENVOLVIMENTO ................................................................ 81
4.1 DESENVOLVIMENTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. .............. 81
4.2 CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO ............................................................ 86
4.3 A IDEIA DO DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE .......................... 103
5. RELAÇÃO ENTRE AS LIBERDADES DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E
FACILIDADES ECONÔMICAS COMO INSTRUMENTO PARA O
DESENVOLVIMENTO ............................................................................................. 111
5.1 DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E DESENVOLVIMENTO COMO
LIBERDADE DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA. ....................................................... 111
5.2 FACILIDADES ECONÔMICAS, TUTELA DA CONCORRÊNCIA E
DESENVOLVIMENTO. .............................................................................................. 117
5.3 A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E DEFESA DA
CONCORRÊNCIA COMO INSTRUMENTO AO DESENVOLVIMENTO. ............ 126
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 134
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 138
8
RESUMO
O trabalho apresenta um estudo sobre a relação entre democracia participativa e defesa
da livre concorrência e sua relevância para o desenvolvimento. O que se busca aqui é a
identificação de instrumentos jurídicos e institucionais, presentes no ordenamento
jurídico brasileiro, que venham se apresentar como de necessária expansão para que se
alinhem a fins desenvolvimentistas. O cerne teórico desta pesquisa se identifica nos
amplos e frequentes debates acerca do desenvolvimento e da relevante preocupação
acadêmica com este fenômeno. A proposta aqui elaborada se apresenta com caráter
interdisciplinar, englobando questões de direito constitucional, economia e teoria
política. Deste modo, leva-se em consideração a compreensão de que o
desenvolvimento não é um fenômeno que ocorre com exclusividade no campo
econômico, ou seja, é um fenômeno que se estende nas searas política e social, entre
outras possíveis percepções, o presente trabalho parte de uma análise da relação entre a
expansão de procedimentos de liberdade política em inter-relação necessária com
órgãos do Estado que favoreçam esta possibilidade. No caso do estudo aqui
desenvolvido, fora tratado o papel do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o
CADE, órgão responsável pela manutenção do mercado e defesa da livre concorrência.
Assim, foi feita uma análise da importância relacional entre a participação popular nas
decisões da administração públicas, neste caso, as decisões no sentido da defesa da
concorrência e sua relevância para o desenvolvimento. Importante pontuar que a
presente análise é estabelecida no campo teórico, levando em consideração o insipiente
desenvolvimento do fenômeno utilizado como exemplo, a saber, as consultas públicas.
É necessário observar que, em termos metodológicos, foram identificadas
separadamente as principais premissas aqui trazidas. Assim, foi realizada uma
abordagem individualizada da democracia participativa, da livre concorrência e sua
defesa e dos múltiplos conceitos de desenvolvimento. Ao final, fora explicada a questão
e estabelecida a questão que se constitui cerne deste estudo. Observe-se que o caráter
vanguardista da presente pesquisa resulta em uma análise propositiva de grande
amplitude. Envolvendo questões do âmbito jurídico, político e econômico..
Palavras-chave: democracia participativa; livre concorrência; desenvolvimento;
liberdade;
9
ABSTRACT
The paper presents a study on the relationship between participative democracy and
antitrust protection and its relevance to development. What is sought here is the
identification of legal and institutional Brazilian instruments , which will be presented
as needed for the expansion of developmental purposes . The theoretical core of this
research identifies the extensive and frequent debates about development and relevant
academic concern with this phenomenon. The proposal developed here presents as
interdisciplinary, encompassing issues of constitutional law, economics and political
theory. Thus, it consists in the understanding that development is not a phenomenon that
occurs exclusively in the economic field , ie , it is a phenomenon that spans the political
and social areas , among other possible perceptions , this study is an analysis of the
relationship between the expansion of political freedom and the necessary procedures of
interrelation with state bodies that encourage this possibility. For the study conducted
here, been treated the actuation of the “Conselho Administrativo de Defesa
Econômica”, known as CADE , the agency responsible for maintaining and regulating
market and antitrust in Brazil. Thus, an analysis was made of the relational importance
of popular participation in the public administration decisions. In this case, the decisions
related to antitrust and its relevance to development process. Important to emphasize
that this analysis is established in the theory field, considering the incipient
development of the phenomenon used as an example , namely , the public consultations
used by CADE. Also, It should be noted that in methodological terms were separately
identified the main assumptions brought here. Thus, an individualized approach to
participative democracy, of free competition and its defense and multiple development
concepts was performed. At the end, the question was explained and settled the point
that constitutes the core of this study. Observe that the avant-garde character of the
present research results in a propositional analysis of large amplitude. Issues involving
the legal, political and economic context.
Keywords: participative democracy; free competition; development; freedom;
10
1. INTRODUÇÃO
Aristóteles, ao afirmar que o homem se constituía um animal político por
natureza, presenteara o mundo com uma compreensão quase profética da relação natural
do homem com o que é público, o que é “de todos”, entendido em seu sentido lato.
Muito provavelmente, a questão acima, ainda hoje, provoque acalorados
debates filosóficos e profundas análises teórico-científicas no eterno anseio acadêmico
de buscar uma compreensão indubitável de afirmações subjetivas. Entretanto, ocorre
que a interpretação gramatical nos parece bastar neste introito momentaneamente
desenvolvido.
A participação do homem no que diz respeito aos interesses da coletividade é,
desde a Grécia antiga, observada como sendo característica das mais peculiares e
inerentes a sua condição. A democracia, sinonímica da possibilidade de participação dos
cidadãos nos assuntos que lhes interessavam em sua percepção coletiva, fora tratada em
estudos desenvolvidos ao longo de toda a história, se apresentando em constante
evolução e adaptação a cada realidade que se propunha a estudar.
Com o passar o tempo, a participação e o interesse político do homem se
expandiram de maneira que, além das questões eminentemente políticas, também,
questões econômicas e jurídicas passam a integrar o rol de suas preocupações.
A participação do homem em aspectos políticos, na atualidade, não é mais
encarada de maneira limitada às decisões meramente administrativas, mas, conforme se
faz presente nas mais diversas cartas políticas do ocidente, existe uma clara
preocupação com questões como participação popular direta no exercício legislativo e
nas políticas econômicas, visando melhor atender aos anseios e necessidades do cidadão
e da sociedade.
É no cenário atual, acima tratado, que o presente estudo se desenvolverá.
Visando a compreensão da inter-relação entre a participação popular nos processos
decisórios relativos à defesa da livre concorrência e sua relevância para o
desenvolvimento.
Antes de iniciarmos esta abordagem introdutória, é válida a lembrança de que
todos os três conceitos que serão abordados nos estudos que se seguem, se encontram
respaldados e previstos na Constituição Federal de 1988, dando ao presente trabalho a
11
sua evidente vinculação ao direito constitucional, além de sua profunda relevância e
vanguardismo, em termos de interdisciplinaridade.
Em continuidade à temática proposta, cumpre afirmar que não são novas as
teorias e a preocupação acadêmica com a questão do desenvolvimento econômico. É
sabido, pois, que há muito tempo se busca a compreensão acerca de questões relativas
ao desenvolvimento, partindo do próprio conceito, de como ocorre este processo e quais
os instrumentos necessários para a sua consecução, e se entendendo até percepções mais
amplas e complexas do fenômeno em questão.
Na acepção aqui defesa, rompemos com os conceitos que se restringem à seara
econômica, análogos à ideia de crescimento econômico, seguindo as tendências de
pensamento mais atuais, por entender que é impossível dissociar os aspectos
econômicos, políticos e sociais na persecução do desenvolvimento. Dentro desta
perspectiva, tomamos por fundamento propulsor desta pesquisa os postulados de
Amartya Sen em sua obra “desenvolvimento como liberdade”.
O economista indiano propõe e defende, em sua tese, que a liberdade deve ser
colocada no centro do processo de desenvolvimento, fazendo-se necessário o
afastamento dos obstáculos e limites às escolhas e oportunidades das pessoas.
Embora a perspectiva de expansão da liberdade individual possa ser entendida
de maneira extensa, Sen pontua cinco liberdades instrumentais tidas como principais
dimensões do desenvolvimento, ressaltando ao longo de sua obra que, além da
importância pontual do alargamento de cada uma dessas liberdades, a conjugação entre
uma ou várias também se revelam como processos de fundamental importância ao
desenvolvimento.
Eis que é precisamente neste ponto que se desenvolve este estudo.
Identificamos, ainda na obra base, a importância de uma abordagem relacional entre
duas das liberdades instrumentais propostas como instrumental ao desenvolvimento,
sendo, a expansão das liberdades políticas e das facilidades econômicas.
Ainda na delimitação temática, neste momento nos direcionamos para uma
análise do ordenamento jurídico brasileiro em busca de uma correlação plausível da
realidade com a aplicabilidade prática da teoria base.
Neste sentido, em se tratando da expansão das liberdades políticas, far-se-á
uma abordagem do déficit democrático e da crise da representatividade, em um
encaminhamento visando à compreensão efetiva do conceito de democracia e da
12
possibilidade de utilização de instrumentos de participação popular direta nos processos
decisórios da administração pública.
Sobre a questão democrática, com fulcro no senso comum, dizemos que se
entende que a Democracia pode ser sinteticamente e genericamente conceituada como
sendo o sistema de governo em que o poder emana do povo e deve ser exercido em
função do povo, de maneira direta ou indireta. Em resumo, portanto, seria o molde de
um sistema de governo onde o povo pode atuar diretamente nas decisões do Estado ou
expressar-se por meio de representantes escolhidos através de um sistema eleitoral.
Apesar da simplicidade conceitual aparente, a sua efetividade constitui uma
preocupação constante e recorrente estudada pela academia.
Pois bem, a presente análise se funda no fato de que a experiência provou a
impossibilidade de atingir-se um modelo de democracia perfeito. Contudo, em nossa
experiência constitucional recente, com o advento do texto constitucional de 1988,
observamos uma saudável preocupação do legislador constituinte com a expansão do
caráter democrático deste texto, reverenciando a democracia de maneira expressa ou
implícita (não à toa, restou conhecido na forma do clichê de “Constituição
Democrática”), de maneira que a doutrina parece uníssona ao tratar de um dito
“princípio democrático” presente ao longo de todo o texto.
Com fundamento no princípio constitucional da participação, a democracia
participativa ou deliberativa se caracteriza pelo exercício direto e pessoal nos atos do
governo e da administração pública. Como exemplo, podemos destacar as experiências
como o orçamento participativo, planejamento-cidadão, ouvidorias, audiências públicas,
etc..
A democracia participativa, indubitavelmente, se mostra como uma opção
viável e realista para o exercício da cidadania nos moldes avençados por nosso
ordenamento jurídico, necessitando apenas de um direcionamento que se adapte com a
realidade da administração pública brasileira. Sendo com base nesta percepção que será
feito o direcionamento deste trabalho e será tratada a questão democrática.
Em retorno ao tema central deste estudo, quanto à expansão das facilidades
econômicas, o ponto nefrálgico percebido na realidade brasileira e de relativo
vanguardismo teórico reside na defesa da livre concorrência como forma de preservar a
liberdade de mercado. Será feita, então, a delimitação temática no sentido de
compreender o conceito de livre concorrência e as funções da legislação antitruste, bem
como o funcionamento da autoridade estatal no sentido de preservar o mercado. Em
13
outras palavras, como funciona a atuação estatal visando preservar as condições de
liberdade dentro de um dado mercado.
Passada esta abordagem introdutória sobre os conceitos necessários para a
compreensão final da proposta aqui trazida, estudar-se-á a questão do desenvolvimento.
A evolução conceitual ao longo da história e sua relevância com o passar do tempo,
objetivando compreender de maneira plena o que é trazido em desenvolvimento como
liberdade.
Afinal, é amplamente sabido o fato de que, em termos econômicos, as teorias
são propostas em constante evolução e negação de valores anteriores, agindo em pleno
desenvolvimento teórico. Diante desta noção, resta justificado o modo como será
trabalhada a questão do desenvolvimento.
É válido frisar que em nosso ordenamento jurídico, o direito ao
desenvolvimento restou positivado e incorporado à vida jurídica nacional com a
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, onde
percebemos claramente que o documento de conformação do estado de direito
brasileiro, sabidamente transformador, se mostra, também, de maneira
desenvolvimentista.
Os professores Dimitri Dimoulis e Oscar Vilhena Vieira, por exemplo, em
estudo denominado “Constituição e Desenvolvimento” contabilizaram a presença do
termo “desenvolvimento” por 28 vezes ao longo do texto constitucional1. Observando
que embora não haja uma definição do que venha a ser o referido direito, não resta
dúvida da intenção do constituinte de promover variadas formas de desenvolvimento
humano2. Conforme se verá, o pensamento aqui proposto se alinha à esta percepção.
Assim, também se mostra de grande importância, a declaração do direito ao
desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) datada de 04 de dezembro
de 1986. É, neste documento, que se encontra o primeiro grande impulso internacional
1 “A consagração do termo nas normas constitucionais se dará com a profusão de referências que
encontramos nas Constituições transformadoras. Temos assim a fortíssima presença do termo nas
Constituições da Índia de 1950 (22 vezes), de Portugal de 1975 (28 vezes), do Brasil de 1988 (28 vezes),
da Colômbia de 1991 (58 vezes), da África do Sul (10 vezes) e da Venezuela (39 vezes)”. (DIMOULIS,
Dimitri. VIEIRA, Oscar Vilhena. Constituição e Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José Rodrigo (org).
Fragmentos para um dicionário crítico de direito de desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. P.54). 2 “[...]observa-se que o termo ‘desenvolvimento’ é acompanhado nas Constituições transformadoras de
variados adjetivos (econômico, social, cultural, tecnológico, regional, sustentável...), mostrando a
intenção constitucional de promover simultaneamente várias formas de desenvolvimento humano.”
(DIMOULIS, Dimitri. VIEIRA, Oscar Vilhena. Constituição e Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José
Rodrigo (org). Fragmentos para um dicionário crítico de direito de desenvolvimento. São Paulo: Saraiva,
2011. P.54).
14
com o intuito de definir e estimular o desenvolvimento. Restando, já no artigo 1º, §1º,
do referido diploma, definida e apontada a sua fundamentalidade, quando explicitado
que se trata de “direito humano inalienável3”.
Apesar da indubitável contribuição do referido diploma à afirmação do direito
ao desenvolvimento como direito fundamental, percebe-se que seu texto se apresenta
por demais vago e carente de critérios de aplicabilidade, que acabaram por ser
transportados para os textos constitucionais em que o desenvolvimento restou previsto.
Não restam dúvidas, pois, que o constituinte brasileiro, inspirado nos
movimentos mundiais no mesmo sentido, atribui alta carga de fundamentalidade e
relevância ao direito ao desenvolvimento.
Ao final, conforme já afirmado ao início, o que se propõe é compreender a
inter-relação entre os conceitos acima mencionados. Ou seja, como se relacionam as
liberdades políticas e facilidades econômicas com vistas ao desenvolvimento. Sendo
necessário, neste momento, o questionamento sobre a relevância da participação popular
em decisões do órgão estatal de defesa da concorrência e qual a relevância deste
processo ao desenvolvimento. Neste sentido, então, é que se desenvolve este estudo.
3 Artigo 1º §1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda
pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e
político, para ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
possam ser plenamente realizados.(Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento – 1986 - Adotada
pela Revolução n.º 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986.
Disponível em < http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-
sobre-o-direito-ao-desenvolvimento.html> )
15
2. DEMOCRACIA E O PARADIGMA DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
2.1 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E A CRISE DO MODELO
REPRESENTATIVO
Tempos verdadeiramente paradigmáticos são os vividos na democracia
brasileira, onde, tal como uma debutante se apresenta para a sua sociedade, o Brasil
busca o desenvolvimento constitucionalmente almejado e tenta encontrar seu lugar
dentre as grandes economias no cenário mundial.
Evidente que, onde a perfeição inexiste por ser de extrema utopia, ainda
estamos muito distantes de um modelo de pleno desenvolvimento digno de garantir as
almejadas e propagadas estabilidades democrática e econômica. Ainda que, conforme
reiteradamente afirmado na forma da verdade e clichê acadêmico, vivemos o maior
período de estabilidade democrática da história do nosso País, o que é certo é que não
passamos de uma ainda jovem democracia em busca de autoafirmação.
Interessante pontuar que, com relação ao desenvolvimento do nosso sistema
democrático, é patente a crise enfrentada pelo modelo representativo adotado em nosso
País. Possivelmente resultante da construção falha de um modelo partidário, igualmente
falho, sem carga valorativa e defesa ideológica que, alinhada a uma cultura de
corrupção, resultou na total descrença no referido modelo de representatividade e em
um poço de distância entre o povo, sua vontade, e a classe política, e a execução das
vontades ou visando a prestação das necessidades do povo.
Surge-nos, então, o problema propulsor da presente investigação. A definição
do que vem a ser este modelo de democracia representativa que, conforme amplamente
divulgado e profeticamente defeso, se encontra em um sinonímico processo falimentar.
Analisando, a posteriori, a gênese do ideal democrático, visando o estudo de
proposições pragmáticas que objetivem a utilização de instrumentos de participação
política direta e venham apresentar resultados de maior eficiência no tocante à
efetivação do modelo sustentado.
E eis que na problemática narrada, e objeto desta análise, nos deparamos com o
primeiro conceito de difícil precisão, mas de necessária delimitação. O ícone radical e
16
legitimador do poder democrático, qual seja, o povo e sua definição jurídica4. Isto, com
intuito de compreender o conteúdo material que preenche, embasa e nos fornece a ideia
da significação deste termo, resguardado constitucionalmente5 e embebido de todo o
poder, nos moldes dos Estados Democráticos contemporâneos, sem excetuar o Estado
brasileiro.
Friedrich Muller, em sua obra “Quem é o povo?6”, põe em discussão o que
define como sendo uma questão fundamental das democracias constitucionais, ou seja, a
definição do conceito de povo, conforme comumente trazido no seio das Constituições
contemporâneas. Seu trabalho tem origem na indagação filosófica de “[...] quem seria
esse povo, que legitima ‘democraticamente’ o poder7”. Em sequência,
complementarmente ao problema, ainda pontua a preocupação com o fato de que não
seria necessária apenas a invocação terminológica do povo, por parte de um documento
positivo constitucional, para real efetivação democrática. E ainda afirma, em
contraposição, “[...] que a descoberta sóbria de que o povo, com efeito, não exerce a
dominação ainda não deve deslegitimar o poder8”. Fazendo perceber, em suas
considerações introdutórias, as evidências da constatação de um esvaziamento
democrático dos ideais sustentáculos dos Estados constitucionais do século XX.
O referido estudo do catedrático da Universidade de Heidelberg apresenta a
preocupação e tem o intuito de compreender a acepção do termo povo em face da
justificativa de uma caracterização fruto da atribuição consentida de um, conforme
denomina, “poder-violência9” ao Estado, nos Estados democrático-constitucionais
4 Fábio Konder Komparato nos leva à reflexão ao afirmar com convicção que “sem essa distinção básica
é praticamente impossível compreender o princípio do funcionamento do regime democrático. A
conhecida fórmula de Lincoln, de que a democracia é o governo do povo pelo povo e em prol do povo, é
falsa: soberania não se confunde com governo. O grande defeito da democracia antiga foi justamente o
estabelecimento dessa confusão na prática; ao passo que a grande falsidade da democracia moderna é a
atribuição ao povo de uma soberania puramente teórica ou ornamental”. KOMPARATO, Fabio Konder.
Repensar a Democracia. LIMA, Martonio. ALBUQUERQUER, Paulo Antonio. Democracia, Direito e
Política. Florianopolis: Conceito Editoral, 2006. p. 193. 5 Conforme assevera o parágrafo único do art.1º da Constituição brasileira de 1988, aqui transcrito:
“Art.1º [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da
Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. 6 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 7 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 45. 8 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 45. 9 Em nota de tradução, Peter Naumann, o tradutor da obra em comento, assim pontua: “O termo alemão
utilizado pelo autor é Gewalt, que pode ser traduzido por violência e por poder. A ambivalência do termo
alemão revela uma ambivalência da própria realidade, à qual o termo se refere: o termo alemão admite,
por assim dizer, que o poder tem necessariamente uma conotação de violência, ainda que a ideia e a
práxis do Estado de Direito se empenhem em formalizar, vale dizer, racionalizar e assim tornar
17
contemporâneos. Em outras palavras, tomando por base o poder de interferência e de
gerência por parte do Estado, procura compreender o momento em que este poder fora
consentido, como ocorrera e qual o sujeito responsável por sua legitimação. Indo além
da mera exposição terminológica e iconoclasta dos textos constitucionais em que se
atribui o poder ao povo.
Muller enxerga que o termo povo se mostra de maneiras diversas e em
variados graus de “operações legitimatórias10”, podendo se apresentar, cambiando a
depender do âmbito de suas funções, “[...] como povo ativo11, como instância de
atribuição de tipo global12, como destinatário de padrões civilizatórios da cultura
constitucional democrática13, que envolvem direitos de resistência ao Estado e direitos
de prestações por parte dos mesmos14”.
Além das três instâncias legitimadoras retro trazidas, o doutrinador ainda
apresenta a ideia de povo como ícone. Nesta conotação, o conceito tem relação com a
percepção de uma instância metafísica, sacralizada e intocável que surge na transição de
uma condição pré-democrática para uma condição democrática e legitima o poder que
se constitui. Esta noção vem carregada de forte carga valorativa e ideológica que, levada
a extremos, acaba por afastar o conceito do povo do real, factível e tangível, adentrando
em território mítico e puramente abstrato, trazendo como séria consequência a
transparente e discutível essa violência constitutiva das relações sociais”. MULLER, Friedrich. Quem é o
povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 48. 10 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 75. 11 Sobre o conceito de povo ativo, Muller o tem na ideia de povo partícipe direta ou indiretamente do
processo democrático, elegendo representantes ou participando efetivamente da tomada de decisões.
Afirma que “a ideia fundamental da democracia é a seguinte: determinação normativa do tipo de convívio
de um povo pelo mesmo povo. Já que não se pode ter o autogoverno, na prática quase inexequível,
pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre
opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político.”
MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 53. 12 Muller também chama esta apresentação de povo como sendo o “povo legitimante”. Ou seja, o poder
onde se embasa o Estado democrático. Afirma que “parece plausível ver nesse caso o papel do povo de
outra maneira, como instância global da atribuição de legitimidade democrática, como povo legitimante.
É nesse sentido que são proferidas e prolatadas decisões judiciais em nome do povo”. MULLER,
Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 55. 13 Também chamado de povo participante, esta instância de legitimação se caracteriza por duas coisas,
quais sejam, o povo como participante do processo decisório e o povo como destinatário das ações furtos
das decisões tomadas pelo Estado. Muller assim pontua: “[...]em primeiro lugar procurando dotar a
possível minoria dos cidadãos ativos, não importa quão mediata ou imediatamente, de competências de
decisão e de sancionamento claramente definidas; em segundo lugar e ao lado desse fator de ordem
procedimental, a legitimidade ocorre pelo modo, mediante o qual todos, o ‘povo inteiro’, a população, a
totalidade dos atingidos são tratados por decisões e seu modo de implementação. Ambas, a decisão
(enquanto coparticipação do ‘povo’) e a implementação (enquanto efeitos produzidos ‘sobre o povo’)
devem ser questionadas democraticamente.” MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011. p. 67. 14 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 75.
18
possibilidade de que o poder-violência estatal o tome como inofensivo15 e irreal ou, na
expressão bem trazida por Muller, um “notre bon peuple16”.
A compreensão do conceito de povo adotando singularmente e exclusivamente
cada uma dessas instâncias legitimadoras é algo duramente criticado pelo autor. Em
verdade, a defesa apresentada e proposta pelo mesmo é a de que a definição do termo
deve ocorrer pela superação destas percepções de maneira distinta, abarcando um
sistema de “quanto mais... tanto mais17”. Nas palavras do doutrinador, “quanto mais o
‘povo’ for idêntico com a população no direito efetivamente realizado de uma sociedade
constituída, tanto mais valor de realidade e consequentemente legitimidade terá o
sistema democrático existente como forma18”. Em outras palavras, quanto mais a noção
de povo tenha relação com a generalidade ou inclusão do maior número de membros de
uma população nos processos decisórios de uma sociedade, cuja convivência ocorre de
maneira consentida, maior se mostrará a representatividade e legitimidade do sistema
democrático ali existente e, assim, a conjunção destas diferentes instâncias
legitimadoras e percepções do termo, superaria a mera iconização e aproximaria pontos
extremos presentes em um estado democrático e apresentados pelo catedrático como
sendo: o grupo popular, ou a “população integralmente politizada, aquecido até a
temperatura de fusão” e, seu oposto, a democracia de “cunho autoritário ou totalitário”,
“sem povo19” e inexistente materialmente. Ou seja, faz necessária a persecução de um
caminho intermediário onde o número total de integrantes de uma população
politicamente ativa e participativa legitimaria a utilização e efetivação do poder do
Estado de maneira não autoritária, mas, sim, consentida e limitada pela própria instância
legitimadora.
Denis Rosenfield apresenta uma visão mais pragmática do conceito de povo,
afirmando que “[...] o ‘povo’ se veria reduzido a uma maioria politicamente
determinada, formada por indivíduos que se constituem assim quando de um processo
eleitoral20”. O conceito de povo se definiria, nesta perspectiva, como sendo sinônimo de
15 “O poder-violência encara o povo de modo alienado; o povo encontra-se sob o poder-violência de um
Estado que mantém um povo para si – seu povo do ‘poder constituinte’, um ‘santinho de forte
luminosidade’.” MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.
63. 16 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 61. 17 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 95. 18 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 75. 19 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 95. 20 ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, Democracia e Capitalismo. Rio de Janeiro, Elsevier, 2010. p.
53.
19
uma maioria constituída no processo eleitoral, resumindo como maioria meramente
política, subsumindo no direito ao voto, sua única característica compartilhada, ou seja,
sem tomar por relevante qualquer identidade social ou econômica compartilhada.
Afirma, o professor, que “toda maioria política, obtida eleitoralmente, é tão transitória
como qualquer processo eleitoral21” e em que pese o fato de que qualquer democracia se
estabelece sobre um processo de maiorias que cambiam em momentos eleitorais
distintos, definidos em “[...]calendário eleitoral previamente estabelecido22”, não se
pode confundir conceitualmente ‘povo’ como sendo a maioria dos eleitores variáveis no
processo eleitoral, “[...] ela não pode tornar real uma ficção, sob pena de viver dos seus
próprios fantasmas. E o totalitarismo23 pode ser um dos seus efeitos fantasmáticos,
terrivelmente real24”.
Assiste razão a percepção apresentada por Rosenfield em relação à delimitação
conceitual de povo como sendo a maioria definida em um processo eleitoral, afinal, esta
identificação, em um sistema verdadeira e efetivamente democrático, deve ser,
necessariamente, mais abrangente, com vistas a não incorrer no perigo de mostrar-se
com viés totalitário, conforme defeso pelo professor. Entretanto, não concordamos com
a visão negativista sobre a impossibilidade de conseguir-se delimitar o conceito de
povo. Sendo, aqui, preferível a abordagem de Friedrich Muller onde, observe-se,
procurou demonstrar a existência de um povo real em um Estado democrático,
enxergado sob um viés central e intermediário entre a anarquia da desorganização de
um governo exercido diretamente pelo povo e o totalitarismo consentido e assentado no
desejo da maioria, reflexo no poder-violência (na terminologia utilizada por Muller) do
21 ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, Democracia e Capitalismo. Rio de Janeiro, Elsevier, 2010. p.
53. 22 ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, Democracia e Capitalismo. Rio de Janeiro, Elsevier, 2010. p.
53. 23 Complementarmente, e em contraposição à visão de Friedrich Muller, Denis Lerrer Rosenfield, sobre o
conceito de povo, afirma que a soberania deste conceito é a base da democracia totalitária. Pois, conforme
afirma, tal conceito se mostra carente de base real e sua definição encontra dificuldades “insuperáveis”.
Em suas palavras, “a democracia totalitária, por sua vez, está baseada no conceito de soberania do povo,
como se este fosse uma entidade real, que se manifestaria plenamente mediante uma elite partidária
dirigente. O conceito de povo é, fundamentalmente, um fato discursivo, carente de base real. Toda vez
que procurarmos determinar o que é o ‘povo’, encontraremos dificuldades insuperáveis, sobretudo se
acoplarmos a essa expressão a de governo, pois, aí sim, teremos a ficção presidindo os destinos de uma
nação. E quando a ficção aparece em nome de algo inexistente, ela se presta aos mais diferentes tipos de
manipulação, tendo como consequência a instauração de uma forma de dominação, que vive da criação de
fatos discursivos, também ditos demagógicos”. ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, Democracia e
Capitalismo. Rio de Janeiro, Elsevier, 2010. p. 52. 24 ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, Democracia e Capitalismo. Rio de Janeiro, Elsevier, 2010. p.
53.
20
Estado. Neste caso, reitere-se, o povo25 seria a totalidade de cidadãos, politicamente
ativos, com capacidade e possibilidade de legitimação através do processo democrático
do exercício do poder-violência por parte do Estado, limitado através do mesmo
expediente democrático.
Superada a indefinição conceitual do termo ‘povo’, retornemos, pois, ao objeto
ora em estudo, à democracia representativa e a patente crise do modelo de
representação. Pois bem, ainda nos dizeres de Muller, “a ideia fundamental da
democracia é a seguinte: determinação normativa do tipo de convívio de um povo pelo
mesmo povo26”. Afirma, com razão, que a prática de autogoverno é, em termos práticos,
quase inexequível e que a pretensão que existe é a de que a definição de um
ordenamento jurídico ocorra tomando por base a “[...]livre competição entre opiniões e
interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento
político27”. Assim, o regime de representação elimina, naturalmente, todas as formas de
imediatidade e, em tese, possibilita o bom debate visando a tomada de decisões que
satisfaça da melhor maneira os interesses do povo.
Pelo caráter da pesquisa aqui elaborada, se mostra desnecessária uma
abordagem profunda do caráter histórico da evolução da Democracia. Deste modo, nos
interessa apenas uma rápida observação de maneira a explicar o porquê de a mudança
da perspectiva democrática ao longo dos séculos ter ocorrido conforme se foi
aumentando o tamanho dos agrupamentos sociais.
Robert Dahl28 apresenta a evolução do pensamento democrático sobre quatro
pontos de vista paradigmáticos, sendo eles, (1) a democracia direta da Grécia antiga, (2)
a tradição republicana, fruto de Roma e das cidades-Estado italianas da Idade Média e
Renascença, (3) a ideia do Governo Representativo e suas instituições e, por fim, (4) a
igualdade política e a lógica do pensamento democrático-igualitário. Identificando, pois,
25 Trazemos como complemento as palavras de Joseph Schumpeter que assim assevera: “it will be
remembered that our chief troubles about the classical theory centered in the proposition that ‘the
people’ hold a definite and rational opinion about every individual question and that they give effect to
this opinion – in a democracy – by choosing ‘representatives’ who will see to it that opinion is carried
out. Thus the selection of the democratic arrangement which is to vest the power of deciding political
issues in the electorate. Suppose we reverse the roles of these two elements and make the deciding of
issues by the electorate secondary the election of the men who are to do the deciding. To put it differently,
we now take the view that the role of the people is to produce a government, or else an intermediate body
which in turn will produce a national executive or government. And we define: the democratic method is
that institutional arrangement for arriving at political decisions in which individuals acquire the power to
decide by means of competitive struggle for the people’s vote”. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism,
Socialism and Democracy. 3.ed. New York: Harper Perennial Modern Thought, 2008. p. 269. 26 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 53. 27 MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 53. 28 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. pgs. 17-34.
21
a democracia direta da Grécia antiga como sendo o ideal verdadeiramente
revolucionário para o surgimento da concepção de democracia que temos hoje em dia.
Nos atendo ao modelo grego, ilustra o autor que baseava-se na participação
direta dos cidadãos nas decisões tomadas em benefício das cidades-Estado, levando em
consideração que as diferenças entre os indivíduos não poderiam ser maiores do que a
concordância e aceitação da busca compartilhada pelo bem comum. Ou seja, na
democracia grega os cidadãos deveriam ser capazes de reunir-se e decidir diretamente
sobre leis e diretrizes da ação política29. Dahl continua a abordagem e afirma que além
das assembleias havia participação ativa dos cidadãos também na administração da
cidade, com ocupação de cargos por eleição ou por sorteio, representando o ideal grego
de perfeição do modelo direto de participação política.
Por sua vez, Norberto Bobbio, em sua publicação “Liberalismo e
Democracia30”, apresenta a divisão paradigmática dos ideais democráticos em
“democracia dos antigos e dos modernos31”. Em seu trabalho, afirma que a democracia
grega (ou democracia dos antigos) nos transmitiu, dentro da tipologia32 das formas de
governo, a noção de democracia como “[...]forma de governo dos muitos, dos mais, da
maiorias, ou dos pobres(...), em suma, segundo a própria composição da palavra, como
governo do povo, em contraposição ao governo de uns poucos33”. Este significado geral
de governo onde a titularidade do poder pertence ao povo permaneceu como sendo
sinônimo de democracia, mesmo com o passar dos séculos34, em que pese o fato de que
29 “Na visão grega da democracia, o cidadão é uma pessoa íntegra, para quem a política é uma atividade
social, natural, não separada nitidamente do resto da vida, e para quem o governo e o Estado – ou melhor,
a polis – não são entidades remotas e alheias, distantes de si. Ao contrário, a vida política é uma extensão
dessa pessoa e está em harmonia com ela. Os valores não são fragmentados, mas coesos: a felicidade está
vinculada à virtude, a virtude à justiça e a justiça, à felicidade.”. DAHL, Robert A. A Democracia e seus
críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. pgs. 26. 30 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011. 31 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011. p. 31-36. 32 Em sua obra “Estado Governo Sociedade”, Norberto Bobbio pontua que “com respeito ao seu
significado descritivo e segundo a tradição dos clássicos, a democracia é uma das três possíveis formas de
governo na tipologia em que as várias formas de governo são classificadas com base no diverso número
dos governantes. Em particular, é a forma de governo na qual o poder é exercido por todo o povo, ou pelo
maior número, ou por muitos, e enquanto tal se distingue da monarquia e da aristocracia, nas quais o
poder é exercido, respectivamente, por um ou por poucos”. BOBBIO, Norberto. Estado Governo
Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p.137. 33 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011. p. 31. 34 “Toda a história do pensamento político pode ser considerada como uma longa, ininterrupta e
apaixonada discussão em torno dos vários modos de limitar o poder: entre eles está o método
democrático. Um dos argumentos fortes em favor da democracia é que o povo não pode abusar do poder
contra si mesmo, ou, dito de outra forma, onde o legislador e o destinatário da lei são a mesma pessoa, o
primeiro não pode prevaricar sobre o segundo. O argumento utilitarista é o que se funda numa outra
máxima (menos sólida, pra dizer a verdade), aquela segundo a qual os melhores intérpretes do interesse
coletivo são os que fazem parte da coletividade e de cujo interesse se trata, isto é, os próprios
22
em muito se alterou o seu “significado valorativo35”, ou seja, a ponderação e
consequente valoração do modo como é exercido este poder.
Passada esta explanação, Bobbio identifica como sendo o grande paradigma
que modificara o entendimento sobre como ocorre o exercício democrático, ou a
passagem da “democracia dos antigos” para a “democracia dos modernos”, quando
nasce o Estado constitucional moderno. Assim, o modelo de exercício direto da
democracia passa a ser compreendido como insustentável em um Estado de grandes
proporções e, em decorrência dessa impossibilidade de atuação direta, surge a ideia de
representação como sendo o único modelo democrático possível frente às peculiaridades
do Estado moderno36. A soberania do povo, tanto na democracia direta dos antigos
quanto na democracia representativa ou indireta dos modernos, constitui-se como sendo
princípio supremo, diferindo apenas nas formas ou modalidades em que é exercida.
Em continuidade à dissertação sobre a representação, Bobbio pondera que um
dos fundamentos deste modelo de democracia se resume no fato de que “os
representantes eleitos pelos cidadãos estariam em melhores condições de avaliar quais
seriam os interesses gerais melhor do que os próprios cidadãos, fechados demais na
contemplação dos próprios interesses particulares37”. Neste sentido, o modelo de
democracia indireta ou representativa38 estaria mais coadunado com a efetivação do
princípio da soberania popular.
interessados: neste sentido, vox populi vox dei”. BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. São
Paulo: Paz e Terra, 2012. p.146. 35 “Seja o que for que se diga, a verdade é que, não obstante o transcorrer dos séculos e todas as
discussões que se travaram em torno da diversidade da democracia dos antigos com respeito à democracia
dos modernos, o significado descrito geral do termo não se alterou, embora se altere, conforme os tempos
e as doutrinas, o seu significado valorativo, segundo o qual o governo do povo pode ser preferível ao
governo de um ou de poucos e vice-versa. O que se considera que foi alterado na passagem da
democracia dos antigos à democracia dos modernos, ao menos no julgamento dos que veem como útil tal
contraposição, não é o titular do poder político, que é sempre o ‘povo’, entendido como o conjunto dos
cidadãos a que cabe em última instância o direito de tomar as decisões coletivas, mas o modo (mais ou
menos amplo) de exercer esse direito(...)”. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São
Paulo: Editora Brasiliense, 2011. p. 32. 36 Simone Goyard-Fabre afirma que “apoiando-se na idéia de soberania do povo e, correlativamente – já
que a democracia direta é impossível no mundo moderno -, no axioma da representação que faz com que
os governantes falem em nome dos cidadãos, o estado democrático apoia-se no sufrágio universal,
subentendendo-se que o princípio majoritário é a regra da representação parlamentar. A representação,
que pressupõe a concordância entre os atos dos representantes e a opinião dos representados, é , portanto
produtora da legitimidade dos governantes; nela, fala a ‘vontade geral’, de que a lei é a expressão”. In
GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 277-278. 37 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011. p.34. 38 Em conclusão ao capítulo em que trata da democracia dos antigos e dos modernos, Bobbio afirma que
“Se por democracia moderna entende-se a democracia representativa, e se à democracia representativa é
inerente a desvinculação do representante da nação com respeito ao singular indivíduo representado e aos
seus interesses particularistas, então a democracia moderna pressupõe a atomização da nação e a sua
recomposição num nível mais elevado e ao mesmo tempo mais restrito que é o das assembleias
23
Robert Dahl ao tratar do modelo representativo, identificando-o como cerne da
“segunda transformação” da Democracia, afirma que em termos práticos o modelo de
representação fora desenvolvido como “[...] uma instituição medieval de governo
monárquico e aristocrático” e não como sendo inventado por democratas originários,
como comumente se leva a crer. “Seus primórdios encontram-se, principalmente na
Inglaterra e na Suécia, nas assembleias convocadas pelos monarcas, ou às vezes pelos
próprios nobres, para tratar de assuntos de Estado importantes39”. Conforme se fazia
habitual, os convocados eram representantes de Estados diversos que iriam tratar com
os governantes os assuntos de interesse comum.
Ainda tomando por base a dissertação de Dahl, foi no século XVIII que o
ideário democrático de governo do povo poderia ser unido à prática, antes vista como
não democrática, de representação, dotando a democracia de “[...]uma forma e
dimensão totalmente novas40”. Foi assim que a representação ganhou ampla aceitação
por parte de democratas e republicanos, passando a ser enxergada como meio para
eliminação da limitação atribuída às dimensões territoriais dos Estados democráticos e
“[...] transformou a democracia, de uma doutrina adequada apenas para as cidades-
Estado pequenas e em rápida extinção, para uma doutrina aplicada aos grandes Estados
nacionais da era moderna41”.
Eis que, conforme se apura das teorias aqui apresentadas, a democracia
moderna toma a forma e absorve o sistema representativo como sendo o único meio
eficaz de efetivação do ideário embasado na soberania do “povo” nos Estados nacionais
modernos e contemporâneos. A escolha direta de representantes, incumbidos de
defender as necessidades e os anseios da população que os elegera, permanece, pois,
como modelo principal e de maior viabilidade ainda no século XXI.
Desnecessário memorar que o principal benefício advindo do modelo
representativo fora o alargamento e ampliação do governo e dos limites de atuação de
seu caráter democrático. Ou seja, “[...] o governo popular não precisou mais confinar-se
aos Estados menores, mas pôde, então, estender-se quase indefinidamente até incluir um
parlamentares. Mas tal processo de atomização é o mesmo processo do qual nasceu a concepção do
Estado liberal, cujo fundamento deve ser buscado, como se disse, na afirmação dos direitos naturais e
invioláveis do indivíduo”. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2011. p. 36. 39 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 43. 40 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 43. 41 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 44.
24
grande número de pessoas42”. Ainda, dentro da noção do Estado nacional, surgiram as
“[...]novas concepções de direitos pessoais, liberdade individual e autonomia pessoal43”
e, também, problemas de difícil solução nas limitações geográficas das cidades-Estado,
passaram a se apresentar de mais fácil solução, isto, com o aumento da interdependência
resultado de um governo amplo e representativo “[...]capaz de criar leis e regulamentos
para um território bem maior. Nesse sentido, a capacidade dos cidadãos para se
governar foi muito favorecida44”.
Entretanto, faz-se saber que, em que pese as inúmeras benesses que o sistema
representativo apresentou e desenvolveu ao longo da história moderna e contemporânea,
também fez surgir problemas inerentes e peculiares frutos de sua própria realidade.
Ainda nos dizeres de Dahl, ocorreu um surgimento de novas e altamente complexas
instituições políticas que acabaram por suplantar a assembleia soberana, tida por
elemento fundamental da democracia antiga. Tais instituições advindas com a
democracia representativa “[...] deixaram o governo tão longe do demos que é possível
alguém perguntar, com razão, como fizeram alguns críticos, se o novo sistema poderia
ser chamado pelo nome venerável de democracia45”.
Além da problemática narrada, as sociedades democráticas que frutificaram
dos ideais da representação desenvolveram um notável sistema de pluralismo político,
onde “associações políticas autônomas” são tidas como legítimas e necessárias ao
modelo de democracia de “grande escala46”. A consequência pesarosa, conforme
sustenta Dahl, restou no fato de que o conflito político, antes encarado como destrutivo,
passou a ser tido como “[...] uma parte normal, inevitável e até mesmo positiva da
ordem democrática47”. O autor afirma que a aceitação dos conflitos ideológicos como
sendo normais48 e parte integrante do modelo democrático de representação, acabou por
42 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 44. 43 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 45. 44 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 45. 45 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 45. 46 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 45. 47 DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 45. 48 “Na grande escala do Estado nacional, surgiram vários interesses e grupos de interesse. E esse grupos
diversos não foram, de forma alguma, uma bênção sem mistura de maldição. Enquanto na antiga visão o
faccionalismo e o conflito eram considerados destrutivos, na nova visão o conflito político passou a ser
considerado uma parte normal, inevitável e até mesmo positiva da ordem democrática.
Consequentemente, a antiga crença de que os cidadãos podem e devem buscar o bem público em vez de
seus objetivos particulares tornou-se mais difícil, se não impossível, de manter à medida que o ‘bem
público’ se fragmentou em interesses individuais e grupais”. DAHL, Robert A. A Democracia e seus
críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 45.
25
afastar a crença na busca por um bem público49 e comum50, conforme os ditames da
democracia antiga, passando a ser substituída por um conflito de interesses de grupos
antagônicos ou individuais. Onde restaria, nestes pontos, verdadeiros problemas a ser
superados no modelo de representação.
A preocupação demonstrada por Dahl ao tratar da distância entre os
representantes e os representados, ou a distância entre o governo e o demos, se mostra
de grande relevância, também, para o italiano Bruno Leoni em sua obra “a liberdade e a
lei51”. O autor busca apontar problemas relativos ao modelo de representação no tocante
ao conflito com a ideia de liberdade individual. Ou seja, quando um grupo é eleito em
determinado sistema representativo, todas as decisões tomadas tendem a atender aos
interesses da maioria que elegeu aquele mesmo grupo. Afirma que nenhum sistema
representativo pode atuar de maneira correta e adequada “[...] enquanto as eleições
acontecem com o objetivo de se atingir decisões de grupo através da maioria ou
qualquer outra regra cujo efeito seja exercer coerção sobre o indivíduo que está do lado
perdedor do eleitorado52”.
Ocorre que ao tomarmos em consideração as afirmações apontadas por Dahl,
em junção com a ideia da conduta antidemocrática de se levar em consideração apenas
os interesses de um grupo majoritário, percebe-se sem maiores esforços os traços
tirânicos que o modelo representativo pode, por vezes, adotar. Entretanto, por sua vez,
Leoni identifica como ponto chave de sua defesa do esvaziamento do caráter
democrático dos sistemas representativos que, este, se dá, também, no fato de que tais
sistemas “[...] da maneira como são em geral concebidos, nos quais eleição e
49 “Quando o público governa, ao há homem que não sinta o preço do bem estar público e que não
procure cativá-lo, atraindo para si a estima e a afeição daqueles em cujo meio devem viver. Várias das
paixões que revestem os corações e os dividem são então obrigadas a se retirar para o fundo da alma e ali
ocultar-se. O orgulho se dissimula; o deprezo não ousa vir à luz. O egoísmo tem medo de si mesmo. (...)
Assim, o país mais democrático da terra verifica-se ser aquele onde os homens mais aperfeiçoaram hoje
em dia a arte de procurar em comum o objeto dos seus comuns desejos e se aplicaram ao maior número
de objetos essa ciência nova”. TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 4.ed. São Paulo:
Itatiaia, 1998. p. 389-392. 50 Noberto Bobbio trata a ideia de associação supostamente inerente aos sistemas democráticos afirmando
que “[...]a democracia dos modernos é pluralista, vive sobre a existência, a multiplicidade e a vivacidade
das sociedades intermediárias. Mais que pela igualdade das condições, a sociedade americana
impressionou Tocquevile pela tendência que têm os seus membros de se associarem entre si com o
objetivo de promover o bem público, tanto que ‘independentemente’ das associações permanentes,
criadas pela lei sob o nome de comunas, cidades e condados, há uma multidão de outras que devem o
surgimento e o seu desenvolvimento tão-somente a vontades individuais’. E o associacionismo converte-
se num critério novo (novo com respeito aos critérios tradicionais, que sempre se fundaram
exclusivamente sobre o número dos governantes) para distinguir uma sociedade democrática de uma não
democrática(...)”.BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 152. 51 LEONI, Bruno. A Liberdade e a Lei. Porto Alegre: Instituto Liberal, 1993. 52 LEONI, Bruno. A Liberdade e a Lei. Porto Alegre: Instituto Liberal, 1993. p. 137.
26
representação estão vinculadas são incompatíveis com a liberdade individual, no sentido
da liberdade de escolher, conferir poder e instruir um representante53”.
Leoni sabiamente pontua que o modelo conforme sustentado e mantido em
muitos dos sistemas políticos contemporâneos, se apresenta “[...] esvaziando-se a
palavra do seu significado histórico e empregando-a como um slogan ou, como diriam
os filósofos analíticos ingleses, uma palavra ‘persuasiva’54”. Afirma que a propagação
da ideia de representação se mostra com uma conotação positiva no âmbito político,
entretanto, na prática ocorre um esvaziamento deste caráter verdadeiramente
representativo, fruto de questões inúmeras, tais quais, a desinformação por parte dos
cidadãos partícipes em um processo eleitoral55, a propagação enganosa de ideias em tese
defesas56 por parte dos representantes e seus partidos ou, simplesmente, a aceitação57 da
participação no processo eletivo como única e melhor maneira de se exercer seu direito
de participação política5859. Simone Goyard-Fabre nos aparece de maneira conclusiva ao
53 LEONI, Bruno. A Liberdade e a Lei. Porto Alegre: Instituto Liberal, 1993. p. 137. 54 LEONI, Bruno. A Liberdade e a Lei. Porto Alegre: Instituto Liberal, 1993. p. 138. 55 Leoni cita John Stuart Mill que, profeticamente, afirmara que “instituições representativas têm pouco
valor e podem ser um mero instrumento de tirania e intriga, quando os eleitores em geral não estão
suficientemente interessados em seu próprio governo a ponto de darem seu voto ou se, ao votar, não dão
seus sufrágios em favor dos interesses públicos, mas sim, os vendem por dinheiro ou votam em
conformidade com alguém que sobre eles tem controle ou cujas razões particulares aqueles desejam
favorecer. Eleições populares praticadas dessa forma, em vez de serem uma garantia contra a má
administração, são, ao contrário, uma engrenagem adicional em sua máquina”. MILL, John Stuart.
Considerations on representative government. LEONI, Bruno. A Liberdade e a Lei. Porto Alegre:
Instituto Liberal, 1993. p. 135. 56 “A história da representação, na vida política assim como na econômica, dá-nos uma lição que as
pessoas ainda não aprenderam. Existe, em meu país, um ditado, chi vuole vada, que significa que, se você
realmente quer algo, você tem de ir e ver por si mesmo o que deve ser feito, em vez de mandar um
mensageiro. É claro que sua ação pode não ter bons resultados, se você não é esperto, hábil ou
suficientemente bem informado para atingir o que deseja. E isso é o que os dirigentes privados e os
representantes políticos diriam, se ao menos se importassem em explicar às pessoas que representam
como as coisas estão realmente sento feitas”. LEONI, Bruno. A Liberdade e a Lei. Porto Alegre:
Instituto Liberal, 1993. p. 135. 57 Alexis de Tocqueville, em sua obra “A democracia na América” afirma profeticamente que “entre os
homens que por muito tempo viveram livres, antes de se tornar iguais, os instintos que a liberdade havia
infungido até certo ponto combatem os pendores que a igualdade sugere; e, embora entre eles o o poder
central aumente os privilégios, os particulares jamais perdem inteiramente a sua independência. Mas,
quando a igualdade vem a se desenvolver num povo que jamais conheceu ou que não mais conhece desde
muito a liberdade, assim como se está vendo no continente europeu, chegando os antigos hábitos da nação
a se combinar subitamente, por uma espécie de atração natural, com os hábitos e as doutrinas novas que o
estado social faz nascer, todos os poderes parecem espontaneamente convergir para o centro; aí se
acumulam com uma rapidez supreendente, e o Estado atinge de golpe os extremos limites de sua força ao
passo que os particulares se deixam cair subitamente até o último grau de fraqueza”. TOCQUEVILLE,
Alexis. A democracia na América. 4.ed. São Paulo: Itatiaia, 1998. p. 517. 58 O Professor André Ramos Tavares afirma que “a vontade de participar do poder, na democracia
representativa, nos moldes atuais, é restritivista, visto que cessa no momento em que ocorre o provimento
eleitoral. De maior duração e profundidade é a vontade de exercer o poder na democracia semidireta, na
qual se vai além do mero voto, galgando intersecções e imbricações necessárias com a esfera pública
representativa do exercício do poder pelos representantes do ‘soberano’ (povo)”. TAVARES, André
Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 1034.
27
afirmar que “[...] o poder democrático está habitado por uma crise fundamental, que
nada mais é que uma crise de identidade: o povo soberano não se reconhece mais no
aparelho do Estado que o governa60”.
Valemos-nos, por fim, dos ensinamentos do festejado professor Artur Cortez
Bonifácio que memora o fato de que o advento do Estado Democrático de Direito61 traz,
em sua gênese, a necessidade de um maior enfoque e valorização do homem e de sua
dignidade, de maneira que “à democracia formal, legal, representativa, abre-se à maior
amplitude de participação dos indivíduos e se enriquece em valor62”.
Diante do exposto, se denota uma relativa multiplicidade de motivos que
resultaram no iminente processo de falência do modelo representativo de democracia.
Sendo certa a resumida afirmação de que há um inegável distanciamento entre os
clamores e interesses do povo soberano e a estrutura governamental juntamente com os
representantes eleitos63. Partindo de uma conjugação teórica para dedução de tais fatores
em caráter pontual, identificamos, na teoria de Leoni, que esta distância em muito se dá
como resultado da apatia na participação do processo eleitoral e da desinformação dos
eleitores quanto à atuação dos representantes e os seus ideais defesos e, em
contraposição, o afastamento de ideais pretensamente defesos por parte dos
representantes, bem como uma ditadura das maiorias64 fruto, conforme já asseverado, da
59 “A tendência é aceitar as coisas como elas são, não só porque as pessoas não conseguem ver nada
melhor, mas também porque estão frequentemente desinformadas do que realmente está acontecendo. As
pessoas justificam a ‘democracia’ atual porque parece assegurar pelo menos uma vaga participação dos
indivíduos no processo de legislação e na administração de seu país – uma participação que, por mais
indefinida que seja, é considerada a melhor que se pode obter nessas circunstâncias”. In LEONI, Bruno.
A Liberdade e a Lei. Porto Alegre: Instituto Liberal, 1993. p. 138. 60 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 282. 61 Cumpre pontuar a perspectiva que o Professor Artur Cortez Bonifácio propõe em sua análise. Assim,
afirma que “[...] o Estado Democrático de Direito é a um só tempo, o Estado da Legalidade e o modelo de
Estado, o qual oportuniza a participação do povo no processo e decisão políticos, pelas formas permitidas
na Constituição, legitimando o exercício do poder”. BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito Constitucional
Internacional e a proteção dos direitos fundamentais. São Paulo: Método, 2008. p. 167. 62 BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito Constitucional Internacional e a proteção dos direitos
fundamentais. São Paulo: Método, 2008. p. 167. 63 “There is, first, no such thing as a uniquely determined commom good that all the people could agree
on or be made to agree on by the force of rational argument. This is due not primarily to the fact that
some people may want things other than the commom good but to the much more fundamental fact that to
different individuals and groups the commom good is bound to mean different things”. SCHUMPETER,
Joseph A. Capitalism, Socialism and Democracy. 3.ed. New York: Harper Perennial Modern Thought,
2008. 64 Nos parece interessante a defesa feita por Arend Lijphart sobre a ‘democracia do consenso’. Tomando
por base o fato de que “essas democracias precisam é de um regime democrático que estimule o
consenso, em vez da oposição; que promova a inclusão, em vez da exclusão, e que tente ampliar a maioria
governante, em vez de se satisfazer com uma pequena maioria: essa é a democracia do consenso(...)Em
lugar de concentrar o poder nas mãos da maioria, o modelo consensual tenta compartilhar, dispersar e
restringir o poder de várias formas”. LIJPHART, Arend. Modelos de Democracia. 3.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011. p. 53-54.
28
representação dos interesses do grupo majoritário que lograra êxito no processo
eleitoral. Por fim, cumpre lembrar que uma das causas, por sua vez trazidas por Dahl,
para a ocorrência do processo aqui citado, foi o desenvolvimento de instituições
políticas de tamanha complexidade que acabaram fomentando este distanciamento
reiteradamente afirmado. Motivo, este, para nós contrassensual, conforme se delineará
adiante, tomando por base o ponto de vista da utilização do aparato burocrático
governamental como instrumento de participação no processo político e consequente
reaproximação do conteúdo material da democracia, representado aqui como sendo o
paradigma da participação política.
2.2 O PARADIGMA DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E A DEMOCRACIA
PARTICIPATIVA.
Antes de adentramos precisamente na conceituação de democracia
participativa, conforme almejado e proposto no presente trabalho, e diferentemente da
perspectiva conceitual pretérita, nos parece interessante a abordagem do paradigma
democrático, cerne da participação política, tentando delimitar o conteúdo material
deste que é tido como princípio65 e direito fundamental de muitos dos ordenamentos
contemporâneos, incluindo o brasileiro.
A doutrina política nos apresenta que o conteúdo material da democracia se
resume na retórica dualidade entre liberdade e igualdade. Alexis de Tocqueville, tido
como o profeta da democracia, afirma, em sua obra atemporal “a democracia na
américa66”, que os povos democráticos tendem para um ideal em que liberdade e
igualdade se fundem, de maneira que seja possível a concorrência de todos os
interessados ao governo em igual direito de concorrer. “Neste caso, ninguém é diferente
de seus semelhantes, ninguém poderá exercer um poder tirânico; os homens serão
65 Sobre o princípio democrático, Ricardo Duarte Júnior afirma que “a vontade soberana do povo
(princípio democrático) está concentrada no princípio da legitimidade. Este princípio pode ser entendido
como a própria base de criação e validação do ordenamento jurídico, assim como tem o papel, em última
análise, de definir o interesse público, o qual deverá ser atendido pela ação administrativa [...] Ora, é
justamente na democracia a resposta encontrada para a pergunta ‘por que devemos obedecer ao Poder
(expressado através das normas jurídicas)?’. Um poder só passa a ser legítimo, pois entendemos que ele é
fruto, expressão da vontade geral. Se não fosse a soberania popular (a vontade geral – democrática), em
nada o ordenamento seria diferenciado das normas deontológicas de um grupo de assaltantes”. DUARTE
JR, Ricardo. Agência Reguladora, Poder Normativo e Democracia Participativa: Uma questão de
legitimidade. Curitiba: Juruá Editora, 2014. p. 55-56. 66 TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 4.ed. São Paulo: Itatiaia, 1998.
29
perfeitamente livres, porque serão todos inteiramente iguais; e serão todos perfeitamente
iguais porque serão inteiramente livres67”.
Observe-se que os ideais de igualdade defesos pelo francês se resumiam às
condições de participação política68. Esta visão é, também, apresentada por Noberto
Bobbio ao afirmar que a igualdade na liberdade é a única forma de igualdade entendida
como compatível e solicitada pela doutrina liberal, resumida na ideia de que “[...] cada
um deve gozar de tanta liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros,
podendo fazer tudo o que não ofenda a igual liberdade dos outros69”.
Conforme exposto, igualdade e liberdade, em uma verdadeira democracia,
seriam indissociáveis. Entretanto, a verdadeira democracia só ocorreria em uma
conjugação desses dois fatores, pois ambas as posições, se enxergadas em uma
perspectiva unilateral e dissociada, acabam por acarretar em males de difícil reparação
em uma sociedade democrática. Os efeitos negativos de um enfoque exclusivo na
liberdade seriam imediatos e perceptíveis, afetando a todos de certa maneira. Os males
do foco único na igualdade, por sua vez, seriam ainda mais nefastos, pois se
manifestariam de maneira lenta, penetrando gradualmente no corpo social e, no
momento em que aparecessem de maneira radical, a habitualidade faria com que não
fossem sentidos.
Sob esta perspectiva política, sintetizamos a visão do autor no sentido de que
ambos os caminhos, se levados ao extremo, são veementemente perigosos. Por isso sua
defesa no tocante à necessária associação entre liberdade e igualdade como verdadeiros
conteúdos materiais da democracia e fundamentais para a consecução de uma realidade
plenamente democrática. Destacando, destarte, a perigosa tendência de apego passional
à igualdade em detrimento da liberdade como sendo um relevante óbice ao
desenvolvimento pleno da democracia70. Neste sentido atenta ao fato de que as
67 TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 4.ed. São Paulo: Itatiaia, 1998. p. 383. 68 “Tal é a mais completa forma que poderia tomar a igualdade sobre a terra; mas existem mil outras que,
sem ser tão perfeitas não são menos caras a tais povos. A igualdade pode estabelecer-se na sociedade civil
e não reinar no mundo político. Pode-se ter o direito de se entregar aos mesmos prazeres, de entrar nas
mesmas profissões, de encontrar-se nos mesmos lugares; numa palavra, de viver da mesma maneira e de
procurar a riqueza pelos mesmos meios, sem tomar todos a mesma parte no governo. Pode estabelecer-se
mesmo uma espécie de igualdade no mundo político, embora não haja a liberdade política. Somos iguais
a todos os nossos semelhantes, menor um, que é, sem distinção o senhor de todos, e que toma igualmente,
entre todos, os agentes do seu poder”. TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 4.ed. São
Paulo: Itatiaia, 1998. p. 383-384. 69 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011. p.39. 70 Em sua análise sobre o desenvolvimento da democracia nos Estados Unidos da América, Tocqueville
observa que “a grande vantagem dos americanos é terem chegado à democracia sem ter de suportar
30
sociedades que vivem sob o endeusamento da igualdade71 tendem a amar o poder
central e de bom grado aumentar seus privilégios. Sendo, ainda maior, se por ocasião
este poder representar fielmente os interesses, resultando em uma confiança quase que
ilimitada72, ou uma verdadeira entrega da coisa pública73, o que de toda forma acabaria
por resultar em tirania, ao afastar a liberdade de concorrência e os instrumentos de
participação daqueles que estariam submetidos à sociedade democrática.
Conforme já abundantemente abordado no presente texto e concluso por
ocasião da abordagem da obra de Alexis de Tocqueville, podemos sintetizar o ideário
democrático na máxima de forma de organização estatal consubstanciada como sendo
fruto do poder natural e soberano do povo partícipe e integrante de um mesmo espaço
geográfico, submetido a uma mesma ordenação de convívio. Ou seja, em uma
democracia, todas as decisões devem partir do povo, de maneira direta, ou através de
representantes eleitos pelo mesmo, ponderando, em ambos os casos, o dissenso, visando
um governo consensual na multiplicidade de ideias e interesses presentes em todo e
qualquer agrupamento social, sob pena de contrariar os princípios que sustentam este
modelo de Estado.
Em adição, concordamos com a tese de que o conteúdo material que compõe a
democracia resulta no alinhamento e conjugação entre os princípios da liberdade e
igualdade, sob uma ótica hermenêutica em que o exercício da igualdade se limite às
equalização de condições e oportunidade de participação e a liberdade se apresente com
o viés de possibilidade de participação política, conforme ensinado por Bobbio74,
revoluções democráticas, e terem nascido iguais em vez de iguais se tornarem”. TOCQUEVILLE,
Alexis. A democracia na América. 4.ed. São Paulo: Itatiaia, 1998. p. 388. 71 Em adendo e por amor ao debate, nos parece interessante o que Robert Dahl afirma sobre a associação
entre Democracia e certos tipos de igualdade. Assevera que “a estreita associação entre a democracia e
certos tipos de igualdade nos leva a uma conclusão moral importante: se a liberdade, o desenvolvimento
pessoal e o avanço dos interesses compartilhado são bons objetivos, e se as pessoas intrinsecamente
iguais em seu valor moral, isso significa que as oportunidades para alcançar esses bens devem ser
distribuídas igualmente a todas as pessoas. Visto sob essa perspectiva, o processo democrático se justifica
não apenas por seus próprios valores últimos, mas também como um meio necessário para a justiça
distributiva”. DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 496. 72 In TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 4.ed. São Paulo: Itatiaia, 1998. p. 522. 73 Complementarmente, pontua o estudioso francês: "Na verdade, é difícil imaginar como poderiam
homens que renunciaram inteiramente ao hábito de se dirigir por si mesmos conseguir escolher bem
aqueles que os devem conduzir; e nada fará acreditar que um governo liberal enérgico e sábio jamais
possa sair do sufrágio de um povo de servos". TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América.
4.ed. São Paulo: Itatiaia, 1998. p. 533. 74 “Ideais liberais e método democrático vieram gradualmente se combinando num modo tal que, se é
verdade que os direitos de liberdade foram desde o início a condição necessária para a direta aplicação
das regras do jogo democrático, é igualmente verdadeiro que, em seguida, o desenvolvimento da
democracia se tornou o principal instrumento para a defesa dos direitos de liberdade. Hoje, apenas os
Estados nascidos das revoluções liberais são democráticos e apenas os Estados democráticos protegem os
31
preenchendo, assim, a essência do verdadeiro espírito democrático.
Complementarmente, cumpre apresentar a afirmação feita pelo italiano de que a fórmula
política de soberania popular cerne da democracia se mostra como o desenvolvimento
natural do Estado liberal, ou de um Estado mínimo, conforme a percepção moderna da
ciência política. Finaliza a apresentação deste entendimento afirmando que “o único
modo de tornar possível o exercício da soberania popular é a atribuição ao maior
número de cidadãos do direito de participar direta e indiretamente na tomada de
decisões coletivas75”. Podemos traduzir os entendimentos trazidos na seguinte fórmula:
a democracia só é possível com o aumento de liberdade política refletido no
consequente crescimento de igualdade de participação popular nos processos políticos
em uma acepção ampla76.
Partindo deste entendimento de democracia apresentando a liberdade como seu
princípio chave, Simone Goyard-Fabre pontua que tal liberdade não deve ser tratada
como um princípio abstrato vislumbrado em uma análise de direito natural atribuída por
um juízo racional. Em verdade, afirma, “para pensar os princípios da democracia, não
devemos nos afastar do concreto. Eles só têm pertinência e valor quando relacionados
com a efetividade democrática77”.
A teoria de Goyard-Fabre se desenvolve em uma apresentação racional do
método democrático, embasado na teoria democrática kelseniana78, tendo como ponto
direitos do homem: todos os Estados autoritários do mundo são ao mesmo tempo antiliberais e
antidemocráticos”. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2011. p. 44. 75 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011. p. 43. 76 Complementarmente, nos parece interessante a análise da relação entre democracia e liberalismo feita
por Bobbio ao afirmar que “esquematicamente [...] pode ser representada segundo estas três combinações:
a) liberalismo e democracia são compatíveis e, portanto, componíveis, no sentido de que pode existir um
Estado liberal e democrático sem, porém, que se possa excluir um Estado liberal não- democrático e um
Estado democrático não-liberal (o primeiro é o dos liberais conservadores, o segundo dos democratas
radicais); b) liberalismo e democracia são antitéticos, no sentido de que a democracia levada às suas
extremas consequências termina por destruir o Estado liberal (como sustentam os liberais conservadores)
ou pode se realizar plenamente os ideais liberais e apenas o Estado liberal pode ser a condição de
realização da democracia.” BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2011. p. 53. 77 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 306-307. 78 Interessa-nos trazer, complementarmente, a visão kelseniana sobre o conteúdo material do método
democrático. Observe-se que, semelhante ao defeso por Tocqueville e Noberto Bobbio, o professor
também considera a liberdade e a igualdade como “instintos primordiais do ser social”. Completa: “em
primeiro lugar, a reação contra a coerção resultante do estado de sociedade, o protesto contra a vontade
alheia diante da qual é preciso inclinar-se, o protesto contra o tormento da heteronomia. É a própria
natureza que, exigindo liberdade, se rebela contra a sociedade, parece tanto mais opressivo quanto mais
diretamente se exprime no homem o sentimento primitivo do valor, quanto mais elementar frente ao
mandante, ao que comanda, é o tipo de vida de quem é obrigado a obedecer: ‘ele é homem como eu,
somos iguais, então que direito tem ele de mandar em mim?’ Assim, a idéia absolutamente negativa e
com profundas raízes anti-heróicas de igualdade trabalha em favor de uma exigência igualmente negativa
32
culminante e final a análise do que a autora denomina como “novo paradigma”
democrático, consistindo, tal paradigma, na teoria do agir comunicacional de Jurgen
Harbermas.
A teoria democrática de Habermas se mostra deveras pertinente em sua ótica
racionalista, observando, conforme ensina Goyard-Fabre em análise do primeiro, que o
resultado do ordenamento democrático, consubstanciado na figura das normas jurídicas,
tem sua validade em relação de dependência com o “acordo com o mundo cotidiano
vivido79”, que é próprio da finalidade do agir comunicacional apresentada pelo autor.
Assim, é crucial que exista uma real discussão no sentido prático para que as normas
jurídicas tenham a possibilidade de atuar imperativamente. A autora sintetiza a posição
de Habermas afirmando que a proposta de um novo paradigma necessário à realidade
contemporânea, “depois da queda dos princípios do pensamento moderno, para a
refundação e a reconstrução do direito, é o recurso à razão processual de uma política
democrática deliberativa animada pela atividade comunicacional80”.
Interessa-nos a identificação do modelo teórico proposto por Jurgen Habermas
tomando por base o fato de que “[...] o processo de política deliberativa constitui o
âmago do processo democrático81”. De fato, há que se concordar com a ideia de
legitimação democrática através de uma construção normativa e governamental que seja
fruto direto de processos de comunicação racional presentes na sociedade. Frisando a
necessidade de observância de um modelo que busque a integração de ideias
divergentes, naturalmente presentes em uma sociedade plural, resultando no
desenvolvimento democrático consensual em moldes racionais oriundos do agir
comunicativo.
Habermas confere especial destaque à relevância da sociedade civil e seu papel
na construção democrática, observando que quando a sociedade toma consciência de
situações de crise pode assumir um papel destacadamente ativo e de resultados
significativos, transformando o modo de solucionar problemas abrangentes em todo o
de liberdade. Da ideia de que somos – idealmente – iguais, pode-se deduzir que ninguém deve mandar em
ninguém. Mas a experiência ensina que, se quisermos ser realmente todos iguais, deveremos deixar-nos
comandar. Por isso a ideologia política não renuncia a unir liberdade com igualdade. A síntese desses dois
princípios é justamente a característica da democracia [...]”. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. p. 27. 79 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 324. 80 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 324. 81 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia Volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p.
18.
33
sistema político82. Aduz que “as estruturas comunicacionais da esfera pública estão
muito ligados aos domínios da vida privada, fazendo com que a periferia, ou seja, a
sociedade civil, possua uma sensibilidade maior para os novos problemas[...]83” o que
resultaria na identificação e compreensão, destes, antes do próprio poder
governamental84.
Válida se mostra a identificação racional entre o agir comunicacional e o
campo jurídico, apresentada pelo doutrinador retro referido. Notória a defesa feita pelo
mesmo no sentido de uma postura que não se desprende da juridicidade em direção à
categorias metafísicas. Simone Goyard-Fabre, em sua análise da obra do autor, afirma
que “a postulação na qual ele baseia a mutação de princípios da democracia é clara:
como o direito é autônomo e só direito cria direito, é no próprio direito que residem às
bases fundadoras da democracia: comunicação e argumentação85”. Em que pese as
críticas86 elaboradas pela doutrinadora no tocante à visão de Habermas de que a
legitimação do direito ocorre precisamente através do processo democrático e não, na
82 Assim aduz Habermas: “Com efeito, apesar da diminuta complexidade organizacional, da fraca
capacidade de ação e das desvantagens estruturais, eles têm a chance de inverter a direção do fluxo
convencional da comunicação na esfera pública e no sistema político, transformando destarte o modo de
solucionar problemas de todo o sistema político”. HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia Volume
II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 115. 83 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia Volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p.
115. 84 Ao tratar da questão da identificação de problemas a serem colocados em pauta nos fluxos de
comunicação, Habermas identifica três modelos de iniciativa distintos, quais sejam, o “inside access
model (modelo de acesso interno), mobilization model (modelo de mobilização), outside initiative model
(modelo de iniciativa externa)”. Assim explica que “No primeiro caso, a iniciativa é dos dirigentes
políticos ou detentores do poder: antes de ser discutido formalmente, o tema segue o seu percurso no
âmbito do sistema político, sem a influência perceptível da esfera pública política ou até com a exclusão
dela. No segundo caso, a iniciativa também é do sistema político; porém, seus agentes são obrigados a
mobilizar a esfera pública, uma vez que necessitam do apoio de partes relevantes do público para atingir
um tratamento formal ou para conseguir a implementação de um programa já votado. Somente no terceiro
caso a iniciativa pertence às forças que se encontram fora do sistema político, as quais impõem o
tratamento formal utilizando-se da esfera pública mobilizada, isto é, da pressão de uma opinião pública”.
HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia Volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p.
113-114. 85 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 325. 86 “Que a obra de Kelsen tenha sido desprezada e que o livro de Habermas tenha tido sucesso não autoriza
a concluir que a fundação transcendental da democracia seja falsa e que o paradigma comunicacional seja
sinônimo de verdade. Quando a genealogia filosófica da democracia culmina no olhar crítico que se pode
lançar sobre ela, percebe-se que a consciência transcendental não está nem um pouco ameaçada de
autodestruição. Muito pelo contrário, ela fornece à arquitetônica e à normatividade da ordem jurídica as
condições que as tornam possíveis e válidas. É precisamente disso que a sociedade democrática precisa:
se é verdade que ela deve dar atenção à opinião pública, nem por isso deve submeter-se a ela; o
importante é que ela reconheça, junto com os direitos de cidadãos maiores e livres, as exigências de
princípio da ordem pública, sobre essa base, cabe a suas instituições efetuar a síntese entre ordem e
liberdade”. GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p.
336.
34
visão kelseniana de que tal legitimação decorre das normas coercitivas do poder do
Estado e da sanção como consequência da desobediência87.
As considerações feitas pela doutrinadora resultam em uma percepção
clarividente de que existe uma relação inflexível entre a política democrática e o “estado
de espírito das populações”, no sentido dos múltiplos riscos de desvio compatíveis com
“[...] os efeitos das pressões e das paixões populares, orquestradas por líderes ou
exploradas pela propaganda e pelos meios de comunicação88” com a possibilidade de
arrastar o método democrático “[...] para o lodaçal da demagogia e da desordem89”.
Assim, mesmo diante das considerações críticas aduzidas pela renomada
doutrinadora, nos parece incoerente com o ideário e método democrático os receios
resultantes do apego a uma tradição profundamente normativista apresentados pela
mesma. Outrossim, é válida a lembrança que a doutrina Habermasiana não se relaciona
com posições metafísicas e, sim, no modo como se mostra em toda sua construção,
tentando se afastar de tais questões, objetivando a construção do modelo democrático
fruto do agir comunicacional sob uma perspectiva puramente racional das relações
sociais, observando, evidentemente, o conteúdo jurídico daí resultante.
A perspectiva democrática deliberativa90 apresentada por Habermas na forma
de novel paradigma democrático se encontra amplamente respaldada na doutrina
moderna e contemporânea.
Interessante trazer a baila o relevante trabalho do renomado constitucionalista
brasileiro, Professor Paulo Bonavides, tratando da democracia participativa. Entretanto,
cumpre frisar a divergência político-econômico-ideológica existente entre a percepção
apresentada neste trabalho e a obra do professor. Em retorno à temática, Bonavides ao
tratar dos fundamentos teóricos da democracia participativa afirma que o fundamento
material deste método democrático tem relação com a ideia de participação do cidadão
na condução da sociedade em um ensaio vocacionado para a democracia direta. Afirma,
ainda, que não se trata precisamente de uma democracia direta nos moldes atenienses
mas, sim, uma conceituação semidireta da democracia, compreendendo uma
87 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 333. 88 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 337. 89 GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 337. 90 Bruno Leoni, em sua já abordada obra, trata da relação entre liberdade e vontade geral, onde, mesmo
condenando a coerção exercida pela lei em afirmação desta vontade comum, toma por princípio o fato de
que “[...] a liberdade individual pode ser consistente com os grupos de decisão e com as decisões de grupo
na medida em que estes reflitam os resultados de uma participação espontânea de todos os membros do
grupo na formação da vontade comum, por exemplo em um processo de formulação de leis independente
da legislação”. LEONI, Bruno. A Liberdade e a Lei. Porto Alegre: Instituto Liberal, 1993.p. 164.
35
intermediação estatal ajustada de acordo com as “[...]exigências e requisitos e
postulados de nossa época91”. Conclui fundamentando sua teoria na noção de
legitimidade afirmando que “governar é legislar, governo é legislatio; governa quem
legisla. Em se tratando, porém, de democracia há que atender a este requisito
fundamental: legisla quem tem legitimidade. E legitimidade quem a tem é o povo92”.
Meirelles Teixeira, com apego à denominação de democracia direta aponta
como vantagem da utilização de expedientes participativos em uma democracia o fato
de que há uma “[...] realização mais efetiva do princípio da identidade entre o povo e o
governo, a correção dos erros e das omissões dos corpos representativos, da corrupção
destes pelos grandes interesses que procuram dominar a vida política das nações93”,
aduzindo que além da fiscalização efetiva dos instrumentos representativos, ocorre com
maior eficiência um combate ao “conservantismo político94” que permanece no seio
burocrático e organicista governamental.
Ainda em complementação da nossa definição conceitual, André Ramos
Tavares, levando em consideração a insuficiência de um mandato eletivo na legitimação
de decisões políticas tomadas por parte dos representantes que exercem cargos de
governo, pontua que se faz necessário, também, que a decisão seja democrática e
frutificada de um controle democrático. A decisão dos escolhidos deve ser expressão da
vontade popular. Tal pressuposto resulta da percepção, aqui compartilhada e inúmeras
vezes trazida, de que a participação política é muito mais de a mera participação
eleitoral, em verdade, “a participação ‘muitas vezes é mais eficiente por outros meios’ e
a democracia pode consolidar-se independentemente da vontade majoritária ou até
contra ela9596”.
91 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. 3.ed. São Paulo:
Malheiros, 2008. p. 345. 92 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. 3.ed. São Paulo:
Malheiros, 2008. p. 345. 93 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Conceito, 2011. p. 443. 94 TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Conceito, 2011. p. 443. 95 Por amor ao debate, importante a noção que André Ramos Tavares trás, no bojo de sua obra, com
relação à preocupação de Diogo de Figueiredo Moreira Neto “no sentido de que ‘ a adoção temporã de
sofisticados institutos de participação, altamente demandantes de cultura política, poderá causar mais mal
do que bem. Despreparado, o povo, para manejar soberanamente esses instrumentos, ou acabará presa
fácil das militâncias organizadas ou arcará com os pesados custos da ineficiência ‘legitimada’. A
participação política não é, pois, uma panaceia. E continua: ‘e, surpreendentemente, os institutos de
participação política que deveriam servir à expansão e à afirmação da democracia, poderão se tornar
instrumentos de opressão de minorias oligárquicas ativistas ou de ‘legitimação’ dos oportunistas
ineficientes. E por ativista quis indicar não apenas o cidadão ativo, cuja participação é desejável, pelo que
isso significa como grau de politização, mas do cidadão arregimentado para excluir, pela sua atividade, a
participação dos contrários. Esse paradoxo sociológico do ‘ativismo’ sempre será um risco que a
36
Em síntese, conforme aqui trazido e defeso, o método democrático fundado nos
moldes da participação popular (restando denominado como democracia direta,
semidireta, participativa ou deliberativa) se mostra como sendo a verdadeira efetivação
do princípio democrático. Principalmente diante da verdadeira crise institucional
existente no método representativo democrático e do evidente distanciamento entre os
titulares do poder soberano e os que exercem as funções governamentais diversas,
conforme reiteradamente afirmado pela doutrina.
Para a melhor compreensão racional visando a aplicabilidade prática da teoria
proposta, nos parece interessante as restrições trazidas por Habermas em sua percepção
sobre o agir comunicacional enxergado como o frutífero método de deliberação política
em uma sociedade. Neste sentido, a ideia de estímulo à participação popular nas
decisões políticas, através de órgãos de governo articulados neste sentido, nos parece de
efetivação plenamente viável em um modelo estatal a exemplo do brasileiro.
2.3 INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
Existe uma evidente preocupação com a expansão do caráter democrático no
texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Isto sendo, em
observação ao fato de que o momento histórico da realização da assembleia constituinte
se mostrara nos dispositivos da carta política na forma do consequente reflexo da
necessidade de proteção dos anseios políticos e direitos fundamentais dos brasileiros,
duramente afetados nos anos de regime militar. O resultado deste então novel texto
constitucional restou conhecido e repetidamente referido como sendo a constituição
cidadã ou democrática. Nomenclatura reflexa tanto de seu modo de elaboração, quanto
da proteção dos cânones democráticos presente em toda a extensão de seu texto.
O regime democrático resta sobejamente tutelado no texto constitucional de
1988, seja na forma do princípio democrático explícito97 ou implícito, presente em
democracia oferece a ela própria”. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2010. p. 1141. 96 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1140. 97 Já em preâmbulo dispõe o constituinte sobre a instituição de um Estado democrático embasado pelo
texto que segue. O dispositivo inaugural do texto constitucional, por sua vez, trás em seu bojo o princípio
democrático como fundante da república federativa do Brasil. Ainda restando reiterado seu conteúdo, em
37
momentos diversos da lei maior, seja através da proteção do Estado Democrático de
Direito, nos instrumentos constitucionalmente previstos para a participação popular no
processo político decisório, ou, simplesmente, a partir da interpretação lógico-dedutiva
do sistema jurídico construído e constituído98.
Tenta-se, neste momento, compreender e explicar a democracia participativa
no ordenamento jurídico e político brasileiro, além do estabelecido em texto positivo
constitucional, ou seja, ultrapassando a compreensão restrita dos instrumentos de
participação direta previstos na Carta Magna, tomando por base a ideia de que a
ampliação dos instrumentos de participação em processos decisórios do poder público
se coaduna com a efetivação do que vem a ser o princípio democrático
constitucionalmente protegido.
Por oportuno, é importante memorar que, conforme ensina Artur Cortez, temos
um “sistema democrático misto”. Onde, por um lado observa-se o modelo
representativo e, de outra ponta, nos são facultados meios efetivos de participação
popular direta. O aclamado constitucionalista observa que ambas as formas são
fundamentais ao sistema democrático brasileiro dada a ineficiência apresentada pela
democracia representativa em preservar os ditames constitucionais99.
Diante do exposto e em construção didática, cumpre-nos memorar os
mecanismos de participação direta previstos expressamente em nossa carta política. É
certo que o legislador constituinte previra uma ampla gama de meios para que o cidadão
pudesse interver na esfera política, consubstanciados na forma de instrumentos de
intervenção democrática jurídico-processual100, direitos e deveres fundamentais101,
seu parágrafo único, ao atribuir a titularidade de todo o poder ao povo que o exerce através da eleição de
seus representantes. Vejamos o dispositivo em comento: “Art. 1º A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da
pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica
Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. 98 Interessante trazer a previsão de Meirelles Teixeira que já afirmava que “de um modo geral, pode-se
afirmar que os controles democráticos diretos correspondem plenamente às ideias e princípios
democráticos, constituindo desenvolvimento e aplicação lógica dos mesmos; que utilizados com certa
cautela, para as grandes questões de governo, poderão prestar excelentes serviços em qualquer país;
pequenas comunidades políticas, como, por exemplo, na esfera municipal, podem constituir excelentes
processos de educação política e de governo eficiente, de acordo com o interesse público”. TEIXEIRA,
J.H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Conceito, 2011. p. 444. 99 BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito Constitucional Internacional e a proteção dos direitos
fundamentais. São Paulo: Método, 2008. p. 170. 100 Como exemplo de instrumentos jurídico-processuais condizentes com o princípio democrático e
participação cidadão, lembra-se, com destaque, do mandado de injunção e da ação popular. O primeiro,
previsto no art. 5º, LXXII da Constituição Federal, “garante a toda pessoa a possibilidade de impetrar
38
espaço de participação nos processos de decisão e fiscalização governamental102 e, em
delimitação à nossa abordagem momentânea, os instrumentos de intervenção direta,
propriamente ditos, estabelecidos no art. 14103 da lei maior.
O dispositivo constitucional acima mencionado vem introduzir o capítulo
constitucional referente aos direitos políticos104. Em sua redação, em destaque oportuno,
temos a base do sistema democrático representativo quando da reafirmação da soberania
popular e seu exercício através da figura do direito/dever de sufrágio e, em ato contínuo,
os instrumentos, propriamente ditos, de participação popular direta, quais sejam, o
plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.
A esta possibilidade de conjugar o tradicional instituto do sufrágio, decorrente
do modelo de representação, com instrumentos de participação popular direta no
uma ação no caso de falta de norma regulamentadora, que torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais, ou as prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”
(LOPES, Ana Mária D’Ávila. A cidadania na Constituição Federal brasileira de 1988: redefinindo a
participação política. In Bonavides, Paulo. Lima, Francisco Gérson Marques de. Bedê, Fayga Silveira
(coord.). Constituição e Democracia. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 25.). Quanto à ação popular,
prevista no art. 5º, LXXIII da Lei Maior, afirma Ana Mária Lopes que “estabelece que qualquer cidadão
seja parte legítima para propor ação que vise a anular o ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de
que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico cultural”
(LOPES, Ana Mária D’Ávila. A cidadania na Constituição Federal brasileira de 1988: redefinindo a
participação política. In Bonavides, Paulo. Lima, Francisco Gérson Marques de. Bedê, Fayga Silveira
(coord.). Constituição e Democracia. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 26.). 101 Além dos próprios writs constitucionais já expressos, memora-se, em referência ao presente aspecto, o
direito de petição estabelecido no art. 5º, XXXIV, ‘a’, da carta política, visando à efetiva defesa de direito
individual, contra qualquer ato de ilegalidade ou abuso de poder. 102 Ana Mária D’Ávila Lopes nos apresenta um amplo rol de instrumentos de cidadania presentes na
Constituição Federal de 1988. De maneira exemplificativa, citamos a possibilidade de participação do
usuário na Administração Pública (art.37, §3º, CF), a fiscalização do contribuinte nas contas de seu
município (art. 31, §3º, CF), a participação de cidadãos no Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, XIII,
CF), no Conselho da República (art.89, VII) e no Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A,
VI, CF), dentre outros vastos direitos de participação e fiscalização trazidos no bojo do texto
constitucional. (LOPES, Ana Mária D’Ávila. A cidadania na Constituição Federal brasileira de 1988:
redefinindo a participação política. In Bonavides, Paulo. Lima, Francisco Gérson Marques de. Bedê,
Fayga Silveira (coord.). Constituição e Democracia. São Paulo: Malheiros, 2006. pgs. 25-27). 103 Aduz o caput e incisos do referido dispositivo: “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. (...)” In BRASIL. Constituição (1988). Constituição
da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. 104 Sobre a disposição constitucional dos Direitos Políticos, interessa-nos as considerações
complementares do Professor Celso Ribeiro Bastos ao afirmar que “no Estado de Direito o indivíduo tem
assegurada pela ordem jurídica uma certa gama de interesses relativos à propriedade, à liberdade, à
igualdade etc. São direitos oponíveis ao Estado e que visam a inibir sua atuação: têm, pois, um conteúdo
negativo. Entretanto, ao lado destes, co-existem no Estado democrático direitos assecuratórios da
participação do individuo na vida política e na estrutura do próprio Estado. Enquanto os primeiros visam
a proteger o indivíduo enquanto mero súdito do Estado, os segundos almejam assegurar ao cidadão acesso
à condução da coisa pública ou, se se preferir, à participação na vida política. Daí serem chamados
‘direitos políticos’, por abrangerem o poder que qualquer cidadão tem na condução dos destinos de sua
coletividade, de uma forma direta ou indireta, vale dizer, sendo eleito ou elegendo representantes próprios
junto aos poderes públicos”. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22.ed. São
Paulo: Malheiros, 2010. 403.
39
exercício do poder, restou a denominação, sobejamente trazida pela doutrina, de
democracia semidireta. Neste sentido, o Professor Paulo Bonavides105 apresenta como
sendo uma modalidade de alteração da democracia representativa com o intuito de
aproximá-la da democracia direta, uma vez que seu retorno pleno é entendido como
impossível diante do complexo Estado contemporâneo106.
Em contraposição à compreensão do sistema representativo como sendo um
modelo em que há a efetiva alienação do poder de governo pelo povo titular a
representantes escolhidos através do sufrágio, afirma-se que na democracia
semidireta107 esta “[...] alienação política da vontade popular faz-se apenas
parcialmente108”. Assim, conforme já abordado no presente trabalho, no modelo em
comento ocorre a comunicação entre o povo e seu governo, pragmaticamente realizada
através de instrumentos técnico-jurídicos previstos na legislação. Ainda, nas palavras de
Bonavides, “acrescenta-se portanto à participação política certa participação jurídica”,
reconhecendo ao povo esfera de competência e sujeitando atos ao “[...]seu indispensável
concurso”, observando as formalidades previstas no próprio ordenamento109.
Em retorno aos instrumentos técnico-jurídicos de participação previstos no
ordenamento positivo brasileiro110, convém fazermos uma rápida definição de seu
estatuto teórico.
Conforme visto no texto constitucional, entre os instrumentos previstos para a
efetivação da participação popular, o plebiscito e o referendo111 nos surgem como ideias
105 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. 106 Neste sentido, afirma o renomado professor Bonavides que “verifica-se com o Estado moderno a
impossibilidade irremovível de alcançar-se a democracia representativa para aproximá-la cada vez mais
da democracia direta. Mas do mesmo passo percebeu-se ser possível fundar instituições que fizessem do
governo popular um meio-termo entre a democracia direta dos antigos e a democracia representativa
tradicional dos modernos. Na democracia representativa tudo se passa como se o povo realmente
governasse; há, portanto a presunção ou ficção de que a vontade representativa é a mesma vontade
popular, ou seja, aquilo que os representantes querem vem a ser legitimamente aquilo que o povo haveria
de querer, se pudesse governar pessoalmente, materialmente, com as próprias mãos”. BONAVIDES,
Paulo. Ciência Política. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 295. 107 Complementarmente, sempre interessa trazer à baila os ensinamentos do professor Celso Ribeiro
Bastos que, em definição pontual, assim afirma: “Os instrumentos de democracia semidireta, portanto,
são a tentativa de dar mais materialidade ao sistema indireto. É tentar reaproximar o cidadão da decisão
política, sem intermediário”. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22.ed. São
Paulo: Malheiros, 2010. 405. 108 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 296. 109 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 296. 110 Complementarmente, sempre interessa trazer à baila os ensinamentos do professor Celso Ribeiro
Bastos que, em definição pontual, assim afirma: “Os instrumentos de democracia semidireta, portanto,
são a tentativa de dar mais materialidade ao sistema indireto. É tentar reaproximar o cidadão da decisão
política, sem intermediário”. Bastos. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22 ed. São Paulo:
Malheiros, 2010. p. 405.
40
correlatas. Bonavides assevera que são costumeiramente trazidos em conjunto e assim
apresentados pela doutrina por “[...] significar toda modalidade de decisão popular ou
de consulta direta do povo112”. Por sua vez, José Afonso da Silva pontua que são "[...]
consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância,
de natureza constitucional, legislativa ou administrativa113”.
Compreendendo que em ambos os modelos apresentados a participação do
povo ocorre através de consultas propostas pelo poder público, nos aparece de maneira
lógica a ideia de que não se trata de atuação manifestamente positiva, no sentido próprio
relativo à iniciativa da participação. O que, evidentemente, não diminui a importância
dos instrumentos aduzidos.
Em sua análise do texto constitucional de 1988, José Afonso114 nos estabelece
a diferença prática entre os institutos trazidos. Levando em consideração o fato de que
ambos são modelos de consulta à população, pontua que a diferença que se pode
estabelecer se dá com base no elemento temporal. Enquanto o plebiscito é convocado
anteriormente à elaboração de ato legislativo ou administrativo (onde, como
consequência, ocorre a aprovação ou denegação da proposta submetida), no referendo
temos um questionamento posterior a projetos de lei e emendas constitucionais já
aprovados (havendo, nesta hipótese, a ratificação ou rejeição do projeto).
Diante desta distinção, é possível afirmar que o plebiscito é um modo de
consulta em que se submete ao crivo popular uma questão política ou institucional,
antes da elaboração própria de texto legal, autorizando a formulação da medida posta
em debate, contrariamente à definição do referendo, onde ocorre a submissão de projeto
legal ao conhecimento e voto popular, de maneira que este aval seja exigência
fundamental para a aprovação do mesmo115.
A terceira modalidade trazida ainda no dispositivo constitucional ora
comentado é, em concordância com os ensinamentos de Bonavides, o que mais
111 Celso Ribeiro Bastos afirma resumidamente que “[...] no plebiscito há a manifestação popular, quando
o eleitorado decide, ou toma posição, diante de uma determinada questão. Assim, em termos práticos, é
feita uma pergunta à qual responde o eleitor”. Já sobre o referendo, ensina que “[...] é uma forma de
manifestação popular, em que o eleitor aprova ou rejeita uma atitude governamental”. Bastos. Celso
Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 405. 112 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 309. 113 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
p. 226. 114 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
p. 226. 115 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
p. 226.
41
corresponde à prática positiva de participação popular nos atos legislativos, entre os
institutos correlatos às práticas da democracia semidireta116. José Afonso da Silva
resume como sendo “[...] a forma de iniciativa legislativa pela qual se admite que o
povo apresente projetos de lei ao Legislativo, desde que subscrito por número razoável
de eleitores117 [...]”. Observe que o próprio texto constitucional, em seu artigo 61, §2º,
regula como ocorrerá a proposta de lei fruto da iniciativa popular, pontuando a
necessidade de, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuídos em pelos
menos cinco Estados, com não menos que três décimos por cento dos eleitores de cada
um deles118.
Uma observação válida é que a iniciativa popular não é uma transferência da
competência legislativa aos cidadãos, mas sim a faculdade conferida ao povo de
apresentar projeto de lei, de acordo com seus interesses próprios, a ser submetido ao
legislativo para o exercício de sua competência. É uma maneira que os cidadãos têm de
participar do processo legislativo fazendo uma proposta para que se legisle no sentido
pretendido, não usurpando a competência própria do poder legislativo, por evidente.
Diante da análise trazida, observa-se que ao adotar uma percepção
essencialmente vinculada ao texto frio da norma-regra de direito constitucional, poder-
se-ia dizer que a constituição brasileira e seu modelo assentado de democracia
representativa somente admitem a participação popular direta, nas decisões de governo,
nos três casos especialmente previstos no art. 14 da Constituição Federal de 1988.
Contudo, conforme já apresentado e sustentado no presente trabalho, não foram
poucos os instrumentos que o constituinte disponibilizou para a intervenção direta do
cidadão em atos governamentais. Assim, o legislador foi além da mera disponibilização
dos conhecidos mecanismos de participação semidireta, tendo restado e evidenciado a
tutela do direito de participação popular nos atos de governo consubstanciada sob a
forma autêntica de princípio constitucional.
116 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 311. 117 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
p. 226. 118 “Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao
Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos,
na forma e nos casos previstos nesta Constituição. (...)§ 2º - A iniciativa popular pode ser exercida pela
apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do
eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento
dos eleitores de cada um deles.” BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa
do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.
42
Assim, assiste razão a Professora Ana Maria D’Ávila Lopes quando, utilizando
a expressão cidadania como sinônimo de “[...] participação política ativa e direta do
indivíduo na vida de sua sociedade119[...]”, apresenta variados instrumentos
constitucionais que materializam e instrumentalizam esta participação popular, já
trazidos em nota no presente texto. Ademais, justifica sua exposição, e nos valemos dos
mesmos argumentos, afirmando que tal participação popular adquire a especial
relevância que tem, por constituir verdadeiro fundamento do Estado democrático
brasileiro120.
Artur Cortez Bonifácio também estabelece uma análise sobre o conceito de
cidadania previsto em texto constitucional, observando, ainda, a sua condição
principiológica. Memora que tal princípio se insere em um processo de construção,
assim como diversas outras previsões constitucionais, e que se relaciona com a garantia
à sociedade da mais ampla liberdade de participação, fruto do aperfeiçoamento da
democracia121.
A cidadania, conforme Paulo Lopo Saraiva, deve ser encarada sob a ótica
formal e a ótica material. Constituindo, a primeira, um atributo do cidadão e a segunda,
por sua vez, se dividindo em cidadania nominal, conforme o estabelecido pelo texto
constitucional e a cidadania real, vivida efetivamente na realidade prática122. Não sendo,
na visão do professor, compatíveis sob o prisma da subsunção123.
119 LOPES, Ana Mária D’Ávila. A cidadania na Constituição Federal brasileira de 1988: redefinindo
a participação política. In Bonavides, Paulo. Lima, Francisco Gérson Marques de. Bedê, Fayga Silveira
(coord.). Constituição e Democracia. São Paulo: Malheiros, 2006. Pg. 27 120 Trazemos à baila o teor da afirmação da Profa. Ana Mária D’Ávila Lopes que assim afirma: “A
concepção brasileira de cidadania como participação política ativa e direta do indivíduo na vida da sua
sociedade – e não apenas como o exercício do direito político de eleger e ser eleito – está ainda mais
contundentemente prevista no inc. II do art. 1º da Constituição Federal de 1988, no qual a cidadania é
vista como um dos fundamentos do Estado Democrático brasileiro. Sendo assim, a cidadania passa a ser
um direito que torna todo cidadão um protagonista na construção de sua própria história, e não apenas um
simples espectador. Nas palavras de José Afonso da Silva: ‘a atual Constituição amplia a cidadania,
qualificando e valorizando os participantes da vida do Estado, e reconhecendo a pessoa humana como ser
integrado na sociedade em que vive”. LOPES, Ana Mária D’Ávila. A cidadania na Constituição
Federal brasileira de 1988: redefinindo a participação política. In Bonavides, Paulo. Lima, Francisco
Gérson Marques de. Bedê, Fayga Silveira (coord.). Constituição e Democracia. São Paulo: Malheiros,
2006. pgs. 27-28. 121 BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de Petição: Garantia Constitucional. São Paulo: Método,
2004. p. 41. 122 “A cidadania real, no Brasil, não é ativa, é passiva. Todos dependem de tudo. A esmagadora maioria
do povo é composta de Expectadores (aqueles que aguardam algo) e de Espectadores (aqueles que vêem
as coisas)”. SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Acadêmica,
1995. p. 40. 123 SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Acadêmica, 1995. p.
40.
43
Assim, nesta visão, a participação política adquire, então, os contornos do
verdadeiro direito fundamental que constitui, apesar de sua não inclusão formal e
expressa no Título II da Constituição Federal de 1988.
Valemos-nos, ainda, dos argumentos apresentados por Ana Mária Lopes
quando observa que dentre os variados fundamentos para a compreensão do direito à
participação política como direito fundamental, a sua correspondência substancial com a
definição de direitos fundamentais é a mais relevante.
Conforme ensina a renomada professora, os direitos fundamentais são
compreendidos como normas jurídicas presentes em um ordenamento positivo-
constitucional, que tem por função refletir “[...]os valores mais essenciais de uma
sociedade, visando proteger diretamente a dignidade humana, na busca pela legitimação
da atuação estatal124”.
Observando particularmente o direito fundamental em comento, e realizando
uma análise tomando por base o conceito acima apresentado, se denota que quanto à
necessidade de se fazer presente em dispositivo constitucional, memoramos sua
positivação explícita quando do estabelecimento da cidadania como fundamento do
Estado brasileiro, além, por óbvio, dos inúmeros instrumentos democráticos em que
repousa implicitamente. No tocante à sua valoração dada a essencialidade à sociedade,
o fato de constituir expressamente um fundamento do Estado presente em carta política,
já nos remete à sua função norteadora de todo o ordenamento jurídico e político. Em
relação à relação entre o direito de participação política e proteção à dignidade da
pessoa humana, o ideal corresponde ao fato de que a proteção individual do vago
princípio só pode ocorrer quando os cidadãos possam participar e tomar decisões que
atinjam sua esfera de direitos e sua vida nas esferas pública e privada. Por fim, quanto
ao enquadramento como atividade que legitima juridicamente a atuação estatal,
redundante observar que tal possibilidade de participação constitui-se como crucial
mecanismo de controle da atuação do Estado, observando diretrizes e limites para sua
atuação125.
O ponto fundamental para a compreensão do aqui exposto reside no
entendimento abrangente do princípio democrático no ordenamento brasileiro. Levando
124 LOPES, Ana Mária D’Ávila. A cidadania na Constituição Federal brasileira de 1988: redefinindo
a participação política. In Bonavides, Paulo. Lima, Francisco Gérson Marques de. Bedê, Fayga Silveira
(coord.). Constituição e Democracia. São Paulo: Malheiros, 2006. pg. 29. 125 LOPES, Ana Mária D’Ávila. A cidadania na Constituição Federal brasileira de 1988: redefinindo
a participação política. In Bonavides, Paulo. Lima, Francisco Gérson Marques de. Bedê, Fayga Silveira
(coord.). Constituição e Democracia. São Paulo: Malheiros, 2006. Pg. 29.
44
em consideração que, em que pese o fato de o texto constitucional de 1988 estabelecer
expressamente instrumentos de participação política semidireta, encontra-se
expressamente ao longo de seus dispositivos e nas suas bases principiológicas a
possibilidade de ampliação dos meios de participação política popular no governo a que
se submete.
É de grande pertinência pontuar e necessário repetir que o que se propõe no
presente estudo é uma maior valorização do povo, titular efetivo do poder no Estado
democrático, de maneira que haja uma ampliação de sua participação efetiva no
governo, embasada e amparada por princípios e dispositivos constitucionais. Ademais,
importa afirmar a sinonímia das nomenclaturas aqui utilizadas, ou seja, a doutrina aqui
trabalhada utiliza as definições de princípio democrático, princípio da participação
política126 e cidadania de maneira plenamente análoga, o que justifica a adoção dos
termos cunhados pelos autores estudados conforme foram aqui introduzidos.
O modelo democrático representativo, apesar de sua fundamentalidade nos
Estados modernos, se tomado de maneira purista se mostra insuficiente para a real
efetivação da democracia em seu significado mais original. Diante desta percepção, a
própria Constituição Federal de 1988 estabeleceu as variadas possibilidades de
expansão do caráter democrático no Estado brasileiro127.
Observe-se que não se trata necessariamente de um modelo de democracia em
que a participação popular é fundamental a todos os atos de governo. Entretanto,
também é desarrazoado um apego estritamente legalista no sentido de compreender
como sendo os únicos instrumentos de participação existentes na ordem jurídica
brasileira, aqueles inseridos no art. 14 da Constituição Federal. Em verdade, conforme
exposto a participação popular (ou cidadania) configura um positivado fundamento da
república, compreendido como direito fundamental e desenvolvido em referência direta
ao próprio princípio democrático. Sendo, assim, a participação popular, um direito do
126 De maneira simplificativa, José Afonso da Silva pontua que “o princípio participativo caracteriza-se
pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo”. SILVA, José Afonso
da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 141. 127 O Professor Paulo Cruz e a professora Grazielle Xavier pontuam brilhantemente que “a democracia
deve servir, antes de tudo, para que a sociedade evolua, para que a diversidade de opções políticas e não
políticas (culturais, relacionais, territoriais, sindicais, étnicas, de idade, etc.), se possam se movimentar o
mais livremente possível, enriquecendo a complexidade da comunidade. Como na própria natureza, a
biodiversidade, neste caso social, deve ser estimulada, de modo a acolher todo tipo de iniciativas e assim
fazer avançar o conjunto com as que se consideram mais válidas. Isto implica em diversos mecanismos e
instrumentos de validação, adaptados às peculiaridades de cada iniciativa, segundo o âmbito e o momento
determinado”. CRUZ, Paulo Márcio; XAVIER, Grazielle. Democracia Transnacional. XVII Congresso
Nacional do CONPEDI. 2008. Salvador. Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI.
Florianópolis: Fundação Boteaux. p. 2624.
45
povo e um dever que o Estado deve assumir de maneira à, sempre que possível,
possibilitar tal exercício. Afinal, a expansão do caráter democrático de uma nação se
mostra fielmente vinculada ao pleno desenvolvimento da mesma, conforme ver-se-á por
oportuno.
46
3. FUNDAMENTOS DA TUTELA DA LIVRE CONCORRÊNCIA
3.1 FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA IDEIA DE CONCORRÊNCIA
Para a análise final pretendida no presente trabalho, torna-se crucial um estudo
individualizado de cada conceito necessário para a formação da ideia central, por
derradeiro, aqui defesa. Neste sentido, passada a abordagem inicial sobre o paradigma
democrático e com vistas ao resultado pretenso, urge abordarmos os conceitos relativos
ao paradigma da livre concorrência, sua tutela jurídica, respaldo constitucional e
legislação brasileira no tocante à matéria.
Observe-se que a atualidade da temática aumenta sua relevância de maneira
considerável, sendo necessário pontuar que inexiste, ainda hoje, um consenso no tocante
aos verdadeiros bens jurídicos que restam protegidos em decorrência de tal proteção.
Também pairando em debate questões relacionadas aos objetivos e a real finalidade
prática da tutela jurídica da concorrência e que acabam por orientar as políticas de
defesa da concorrência, conforme se verá adiante.
Sobre a questão da tutela jurídica da concorrência, ou das normas antitruste no
geral, cumpre observar que tal ordenamento “[...] toma por base teorias econômicas
elaboradas para explicar e prever o funcionamento dos mercados a partir de sua
estrutura [...] 128”. Sendo neste sentido, que se propõe o estudo trazido no presente
tópico.
Passada a tratativa inicial, a primeira abordagem que aparece como necessária
é a definição técnico-econômica do que venha a ser a concorrência. Ou seja, qual o
significado conceitual deste bem ao qual nos interessa sua tutela jurídica e proteção
constitucional?
A concorrência é um processo que deriva diretamente da existência do
mercado. É resultante do mesmo e necessidade fundamental para a sua manutenção,
levando em consideração que o seu definhamento acaba por finalizar, também, a ideia
de mercado.
128 NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Regulação e o Direito da Concorrência. In SUNDFELD, Carlos
Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 163.
47
Quanto ao conceito de concorrência propriamente dito129, o professor Vasco
Rodrigues observa que é comum, em se tratando do ideário difuso propagado entre as
pessoas, a noção de concorrência simplificadamente associada aos mercados em que
“[...] uma forte rivalidade entre os vendedores se manifesta através de mudanças de
preços, campanhas publicitárias, lançamento de novos produtos e da utilização activa de
outros instrumentos para aumentar vendas130”.
É válido afirmar que não deixa de ser racional, tal ponderação, em que pese
não nos ser útil para uma avaliação científica e identificação correta do objeto do
presente estudo.
Concorrência, conforme ensina o professor André Elali, é uma adaptação da
expressão latina concurrentia e carrega em si a relação com a ideia de rivalidade entre
uma pluralidade de pessoas ou forças que se enfrentam na busca de um mesmo espaço
ou objetivo. No contexto aqui pretenso, por óbvio, buscamos uma compreensão
aplicada à situação de uma multiplicidade de agentes econômicos que buscam interagir
a fornecer seus produtos em um determinado mercado, com fulcro em um processo
regular e irrestrito131.
O conceito acima se mostra útil para nos fornecer a base do que segue em
estudo. Entretanto, para compreender com precisão o conceito de livre concorrência,
aplicado as condições de um mercado real132, deve-se abordar a noção de concorrência
perfeita. Sendo, esta, o modelo teórico-econômico utilizado para entender o fenômeno
do abuso de poder econômico e, consequentemente, do afastamento da concorrência.
129 “Conceito de caráter mais econômico do que jurídico, a livre concorrência expressa seu sentido pelo
simples teor das suas palavras: um livre concorrer, concorrer livremente, ou mesmo liberdade para
concorrer. Trata-se de um status libertatis, mais uma das liberdades garantidas pela constituição, dessa
vez em relação a comportamentos dentro da perspectiva mercadológica, ao lado da livre iniciativa,
liberdade do exercício de trabalhos ou profissões e o livre exercício de atividades econômicas.”.
SANTOS Jr, Fernando Lucena Pereira dos. Imunidade Recíproca e Livre Concorrência:
Considerações acerca de sua fruição por empresas estatais. 2013. 135 f. Dissertação (Mestrado em
Constitução e Garantia de Direitos) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013. 130 RODRIGUES, Vasco. Análise Económica do Direito: Uma Introdução. Coimbra: Almedina, 2007.
p. 157. 131 ELALI, André. Incentivos Fiscais Internacionais: Concorrência fiscal, mobilidade financeira e
crise do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 96. 132 Ana Maria de Oliveira Nusdeo ensina que “a primeira justificativa das teorias econômicas para a
existência de regras de proteção da concorrência é a comparação do funcionamento dos mercados
conforme sua organização numa estrutura de monopólio, oligopólio ou de concorrência perfeita,
denominados, normalmente, de mercados perfeitamente competitivos. Note-se que esses últimos são uma
abstração teórica, dificilmente encontrada na realidade, construídos pela teoria econômica para servir de
paradigma, visando à explicação do comportamento dos agentes em concorrência e os benefícios dessa
para a sociedade. Esse conceito contrapõe-se ao de mercados monopolizados, os quais impõem custos aos
consumidores e à Sociedade em geral, devendo, por essa razão, ter sua formação coibida ou sua conduta
regulada”. NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Regulação e o Direito da Concorrência. In SUNDFELD,
Carlos Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 163.
48
Assim, em continuidade, o professor lusitano afirma que tais situações retro
mencionadas não são precisamente o objeto de estudo da ciência econômica. Esta
partiria da ideia, já mencionada, do modelo hipotético denominado concorrência
perfeita. Tal definição, devendo ser preenchida por quatro condições específicas que
vêm a compor seu conceito.
Tais condições são, nos ensinamentos do professor lusitano, a homogeneização
do produto, a perfeita disponibilização das informações relativas ao produto visando à
tomada de decisões, a perfeita mobilidade dos fatores e, por fim, o fato de que “[...] cada
agente, consumidor ou vendedor, assegura uma pequena fração da quantidade total
transacionada pelo que tem a expectativa de que as suas decisões não tenham impacto
sobre o preço vigente133”.
Em rápida explicação adicional sobre os pontos apresentados, cumpre observar
que quando é abordada a ideia de homogeneização do produto, se está falando de uma
percepção em que os consumidores se tornam indiferentes quanto ao produto que
pretendem adquirir, isto como resultante do fato deste se apresentar sob o mesmo preço
e mesmas condições. Sobre a segunda característica apontada, ou seja, a
disponibilização de informações relativas ao produto, há vinculação com a ideia de que
em um mercado de concorrência perfeita, todas as informações sobre o produto, de
relevância para a tomada de decisão, são perfeitamente fornecidas pelo vendedor e
conhecidas pelo consumidor. Por último, explica-se o conceito de perfeita mobilidade
dos fatores, entendendo-se como sendo a situação em que “[...]as empresas instaladas no
mercado podem ajustar livremente a quantidade utilizada de cada factor produtivo e
mesmo encerrar, se o mercado não for atractivo, sem perderem o valor dos recursos
aplicados na sua actividade134”.
Conclui, Vasco Rodrigues, sua abordagem das características do regime de
concorrência perfeita, dando o devido enfoque na relação entre o conceito abordado e o
preço do produto, praticado no mercado135. Assim, da análise dos elementos
133 RODRIGUES, Vasco. Análise Económica do Direito: Uma Introdução. Coimbra: Almedina, 2007.
p. 158. 134 RODRIGUES, Vasco. Análise Económica do Direito: Uma Introdução. Coimbra: Almedina, 2007.
p. 158. 135 O professor Vasco Rodrigues pontua, ainda, que “os pressupostos da homogeneidade do produto e de
perfeita informação implicam que cada comprador compre a quem venda mais barato, uma vez que o
consumidor conhece todos os preços praticados e não tem preferência pelos produtos de nenhum
vendedor. Assim sendo, um vendedor que pretenda ter procura pelo seu produto não pode praticar um
preço mais alto do que seus concorrentes. Consequentemente, todos os vendedores que conseguem
vender, fazem-no ao mesmo preço. Num mercado perfeitamente concorrencial vigora a lei do preço
único! Adicionalmente, o pressuposto relativo à pequena dimensão dos agentes implica que o preço
49
constitutivos do conceito de concorrência perfeita, observa-se que o preço se apresenta
único, não determinado por nenhum comprador ou vendedor em específico, de modo
que em um modelo de concorrência perfeita o resultado acaba sendo um lucro baixo ou
mínimo, dito normal, por parte das empresas.
Em que pese a forte identificação com a abordagem feita pelo doutrinador retro
estudado, cumpre uma rápida delimitação das diferentes abordagens do conceito ora
tratado, observando que a base mantém-se a mesma, com variações mínimas nas
definições trazidas.
Assim, em continuidade, o professor Fabio Nusdeo136, ainda sobre o conceito
de concorrência perfeita, ensina que são sete os requisitos essenciais para que se
caracterize tal regime. Observe-se a visão ampla que o renomado professor tem do
fenômeno, se comparado com o que aduz Vasco Rodrigues.
Para ele, seria necessária a existência de uma interação recíproca entre um
grande número de compradores e vendedores, a atomização do mercado,
homogeneização dos produtos dispostos no mercado, mobilidade dos agentes e fatores,
pleno acesso às informações relevantes por parte dos agentes, ausência de economias de
escala e de externalidades.
O economista argentino Martin Krause137 afirma que o modelo de concorrência
perfeita é um modelo de equilíbrio geral, sendo o modelo ideal de mercado, em que se
fazem necessárias cinco condições, sendo elas, a multiplicidade de pequenos produtores
em relação ao mercado total, homogeneidade dos produtos vendidos, plena informação
por parte dos participantes sobre as condições do mercado, a utilização das mesmas
tecnologias e tipos de organização empresarial e, por fim, a possibilidade de livre
entrada e saída do mercado138.
praticado vai resultar da interacção entre todos os compradores e vendedores, não tendo nenhum deles a
capacidade para, por si só, o alterar: sendo muito pequeno em relação à dimensão do mercado, cada
produtor consegue escoar tudo que produz sem que o preço desça e, em contrapartida, uma redução não
se repercute numa subida do preço; da mesma forma, a quantidade comprada por cada um dos
compradores não é suficientemente significativa para ter qualquer impacto tangível no preço”.
RODRIGUES, Vasco. Análise Económica do Direito: Uma Introdução. Coimbra: Almedina, 2007. p.
159. 136 NUSDEO, Fabio. Curso de Economia. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 267. 137 KRAUSE, Martin Enrique. Economia, Instituciones y Politicas Publicas. Buenos Aires: La Ley,
2011. 138 Assim ensina Krause: “Como se menciona antes, el equilibrio general es un ‘equilibrio competitivo’,
es decir, demanda de una determinada configuración del mercado, llamada normalmente ‘competencia
perfecta’. Este es también un modelo ideal de mercado donde se cumplen las siguientes condiciones: 1.
Todos los productores son pequeños en relación al mercado total por lo que sus decisiones respecto a la
cantidad a producir no tienen un efecto en el precio. Por eso son ‘tomadores de precios’, es decir,
simplemente registran em precio de mercado para tomar su decisión pero no pueden influirlo. 2. Todos
50
Ainda, cumpre trazer a baila o importante estudo do Professor Sérgio Varella
Bruna139, em que aborda minuciosamente o fenômeno do poder econômico. Ao tratar o
modelo de concorrência perfeita, observa que os fenômenos que marcam o modelo
teoricamente preconizado são, em primeiro lugar, a pressuposição de uma
“multiplicidade” no número de vendedores e compradores em um determinado
mercado, resultando na insignificância da participação individual de cada um destes, no
sentido da consequente incapacidade influenciar o preço de mercado. Com especial
enfoque, também, menciona a necessidade que existe de que o produto seja
absolutamente homogêneo (requisito abordado igualmente por todos os teóricos aqui
mencionados). Por fim, ensina, ainda, que deverão estar presentes dentre os requisitos
para o regime em comento, também, a perfeita mobilidade dos fatores de produção, o
amplo acesso as informações concernentes ao mercado, a inexistência de economias de
escala, a instantaneidade dos ajustes feitos no mercado que acabam por gerar
desigualdade e a ausência do fenômeno das externalidades140.
Em que pese as abordagens aqui apresentadas não terem se mostrado de
maneira uníssona quanto aos requisitos que conformam o modelo de concorrência
perfeita, identificamos precisamente as quatro características inicialmente trazidas no
presente trabalho em todos os esquemas teóricos ora propostos.
Em análise dos requisitos apontados, para atingir-se tal modelo, podemos
sintetizar que se mostram como reflexo da necessidade de plena igualdade nas
condições existentes no mercado para que se possa atingir o modelo paradigma.
A análise segue de maneira pontual.
O processo de atomização aparece como impedimento ideal de que exista um
excesso de poder econômico concentrado, seja de compra ou de venda, que venha a
desregular o mercado. Tomando por este quesito, a concorrência é perfeita, pois
nenhum agente partícipe do mercado se apresenta com poder suficiente para desregular
los productores venden un producto homogéneo, que no se diferencia del de sus competidores. 3. Existe
información perfecta por parte de todos los participantes respecto a las condiciones del mercado, tanto
presentes como futuras. 4. Todos utilizan la misma tecnología, el mismo tipo de organización
empresarial, todos alcanzan la misma tasa de ganancias. 5. Existe libre entrada y salida de mercado”.
KRAUSE, Martin Enrique. Economia, Instituciones y Politicas Publicas. Buenos Aires: La Ley,
2011.p. 44-45. 139 BRUNA, Sérgio Varela. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. 140 BRUNA, Sérgio Varela. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 26-
28.
51
ou “[...] afetar de forma sensível os volumes oferecidos ou procurados e, portanto,
incapaz de modificar o preço de equilíbrio ou de mercado141”.
Quanto à ideia de que o produto deve ser homogêneo, entre as teorias
abordadas identificamos o simplismo do professor Vasco Rodrigues ao sintetizar tal
característica meramente na paridade de preços142 e o extremismo de Sérgio Bruna que,
indo além da questão de uniformidade dos preços, entende que não deve haver diferença
alguma entre os produtos ofertados, abrangendo, além da questão do preço,
características específicas como qualidade, apresentação e as próprias marcas industriais
ou comerciais, o que, segundo o mesmo, geraria a incompatibilidade com o modelo143.
Em percepção própria, tal homogeneidade pode ser entendida como sendo um meio
termo entre os conceitos transcritos, ou seja, ultrapassando a restrição à igualdade dos
preços, os produtos devem ser iguais no sentido de apresentar características físicas e de
funcionamento iguais, além da evidente igualdade nos padrões de sua publicidade.
Apresentadas tais condições de igualdade, desnecessário temer a existência de
diferentes marcas de indústria e/ou comércio, afinal, esta diversidade é resultante
natural da existência do mercado.
Em se tratando da plena disponibilização de informações sobre o produto
colocado no mercado, há uma uníssona compreensão de que este requisito mostra sua
fundamentalidade na defesa do conhecimento de todas as informações que envolvem a
tomada de decisões dentro de um mercado, tais como as características de um produto e
seu preço. Observando, como pontua Krause144, que sejam estas informações presentes
ou futuras.
Por fim, dentre os quatro requisitos principais para o regime de concorrência
perfeita, seguindo o padrão de condições indicado por Vasco Rodrigues, a perfeita
mobilidade dos fatores de produção condensa a noção de que todos os produtores
tenham acesso à matéria prima, insumos e tecnologia necessários à produção de seus
141 BRUNA, Sérgio Varela. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 26. 142 “Num mercado de concorrência perfeita, os consumidores não têm preferência pelos produtos de
nenhum vendedor: se todos praticassem o mesmo preço, os consumidores sentir-se-iam indiferentes sobre
a quem comprar”. RODRIGUES, Vasco. Análise Económica do Direito: Uma Introdução. Coimbra:
Almedina, 2007. p. 158. 143 “[...]o produto ofertado deve ser também absolutamente homogêneo, sem qualquer diferença entre os
bens produzidos pelos diversos produtores, não só em relação a preço, mas também em relação a
características como qualidade e apresentação, o que faz com que a identificação dos produtos por marcas
de comércio ou indústria seja incompatível com o modelo, ainda que a qualidade dos produtos seja
idêntica.” BRUNA, Sérgio Varela. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
p. 27. 144 KRAUSE, Martin Enrique. Economia, Instituciones y Politicas Publicas. Buenos Aires: La Ley,
2011.p. 45.
52
produtos. O argentino Martin Krause145 acrescenta ainda que tenham o mesmo tipo de
organização empresarial e que alcancem os mesmos ganhos. Seguindo, assim, a regra da
necessidade de igualdade de condições dentre os participes do mercado para que se
possa estabelecer o regime de concorrência perfeita.
Assim, aparte as variações aqui mostradas, em síntese dos requisitos trazidos,
nos valemos dos ditos do professor Sérgio Varella Bruna ao afirmar em suma
conclusiva que “a conjugação de todos estes fatores nos revelará que todos os
consumidores são rigorosamente iguais entre si, no melhor estilo liberal clássico, muito
embora, às vezes, pequenas diferenças entre eles sejam admitidas146”.
Sérgio Bruna relaciona, de maneira dramático-literária, a figura do produtor,
em regime de concorrência perfeita, a um escravo submetido ao mercado. Observando
sua incapacidade de influenciar o mesmo e sua total submissão aos seus ditames. Sendo
ele, “[...] forçado a produzir em conjunto com seus concorrentes, tanto quanto seja
possível, a fim de reduzir a escassez ao mínimo, segundo as possibilidades econômicas
materiais existentes147”. Sendo sua remuneração a mínima necessária, ou apenas a
utilizada para que o produtor se mantenha e continue em exercício da atividade.
Os professores Armando Castelar Pinheiro e Jairo Saddi, por sua vez, ensinam
que a competição é o reflexo de uma disputa entre empresas com o objetivo de vender
seus produtos pelo máximo número possível de clientes e compradores. Reiteram que
para a existência da concorrência, se faz necessário que o mercado tenha um relativo
volume de produtores e compradores que não difiram muito entre si (ideia sintética de
concorrência perfeita), atuando de maneira independente. Neste sistema, vendedores e
compradores não podem deter poder de mercado suficiente para a determinação
unilateral e coordenada das condições de bens e serviços que serão comercializados no
mercado148.
Cumpre a observação de que o regime de concorrência perfeita, em que pese
sua surreal possibilidade de existência no mundo fático, é utilizado de maneira
paradigmática pelos economistas por ser reflexo de um padrão de extrema igualdade e,
consequentemente, de manutenção do mercado e autocontrole interno de suas estruturas.
145 KRAUSE, Martin Enrique. Economia, Instituciones y Politicas Publicas. Buenos Aires: La Ley,
2011.p. 45. 146 BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 28. 147 BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 31. 148 PINHEIRO, Armando Castelar. SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005. p. 355.
53
Ou seja, neste modelo hipotético, os competidores estão presos a todas as regras que
fundamentam a existência deste mercado perfeito.
Entretanto, ainda visando à compreensão da necessária tutela da concorrência
aqui proposta, fundamental a observação do mercado em seu outro extremo. Sabendo
ser o modelo de concorrência perfeita o seu antagonista, em outro viés encontramos o
monopólio.
Ao contrário da situação retratada anteriormente, no regime de monopólio um
só produtor detém todo o controle da oferta. Ou seja, “corresponde a uma situação na
qual apenas uma pessoa ou uma empresa se apresenta como vendedora de um dado
produto149”.
Em regime de monopólio, aquele que detém tal poder tem plena possibilidade
de controle da quantidade de mercadoria que será ofertada. Assim, consequentemente,
haverá também uma influência direta nos preços dos produtos. Martin Krause memora
que existe uma diferença entre os preços de concorrência e os preços de monopólios,
sendo os últimos relativamente superiores em razão do fato de que existe certa
elasticidade na demanda150.
Sérgio Varella Bruna sintetiza afirmando que “[...] em situação de monopólio,
a sociedade é submetida a uma escassez artificial, provocada pelo monopolista, que
controle totalmente a oferta, a fim de maximizar seus lucros151”. Ou seja, os preços de
monopólio são resultantes de um limite em que o produtor diminui a oferta do produto,
aumentando os preços no limite que possibilite o aumento dos seus lucros. Frisando este
detalhe de que tal aumento de preços ocorre em proporção lógica com o aumento de
lucros.
Ainda, em situação semelhante em se tratando de domínio e detrimento de
poder de mercado, encontramos a figura dos Oligopólios, sendo entendido como o
regime em que existe um número reduzido de vendedores no mercado.
Nesta situação, cada um conhece as decisões que os outros vendedores tomam,
influenciando suas próprias decisões, ao mesmo tempo em que as decisões dos outros
149 NUSDEO, Fabio. Curso de Economia. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 273. 150 “Un monopolio es el resultado de que un individuo o empresa obtenga un control total de un recurso
de forma tal que no hay un proveedor alternativo ni tampoco un bien o servicio substituto que pueda
reemplazarlo. Lo que nos preocupa en este caso es que el monopolista pueda aprovechar su situación
para obtener ‘precios de monopolio’, superiores a los precios de ‘competencia’. Esto no quiere decir,
por supuesto, que pueda cobrar cualquier precio, sobre todo cuando enfrenta una demanda con cierta
elasticidad, es decir, que ante un aumento del precio reduce la cantidad demandada”. KRAUSE, Martin
Enrique. Economia, Instituciones y Politicas Publicas. Buenos Aires: La Ley, 2011.p. 46. 151 BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 34.
54
vendedores influenciam as suas próprias152. Sérgio Bruna ensina que em caso de poucos
participantes no mercado, encontramos duas hipóteses de conduta, sendo elas, a
independência e o conluio153.
A hipótese da independência se mostra autoexplicativa. Nesta possibilidade
inexistem acordos entre os oligopolistas, cada um agindo de maneira independente no
mercado ao não levar em consideração a possível reação que suas atitudes levariam ao
rival. Sendo, nesta hipótese, possível uma concorrência saudável entre os partícipes do
mercado.
Por outro lado, a hipótese de conluio se refere precisamente à possibilidade
que existe de tais produtores se unirem em cartel, acertando e unificando os preços que
serão praticados no mercado. Nesta situação os efeitos serão semelhantes aos de um
monopólio154. Ou seja, um aumento de preços provocado pelo abuso de poder
econômico ou, em outras palavras, pela maior concentração do poder de mercado155.
152 KRAUSE, Martin Enrique. Economia, Instituciones y Politicas Publicas. Buenos Aires: La Ley,
2011.p. 46. 153 BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 44. 154 Neste ponto é interessante trazer os ensinamentos dos professores Mario Luiz Possas, Jorge Fagundes
e João Luiz Pondé em estudos realizados sob o enfoque da teoria de Joseph Schumpeter. Afirmam, assim,
que “[...] embora, como já anotado, abordagens mais antigas ou mais ligeiras tendam a reduzir ambas as
situações à simples e estaticamente indesejável existência de poder de mercado, a tradição antitruste, ao
contrário, tende a adotar o critério de ‘mal menor’ para o oligopólio, em princípio, com razão. Não por
uma comparação direta e estática entre número de participantes (‘mais’ é preferível a ‘menos’), mas por
uma distinção qualitativa entre essas duas formas de mercado. Como nota Williamson, ‘é ingênuo
considerar oligopolistas como monopolistas em parceria, em qualquer sentido abrangente, especialmente
se possuem produtor diferenciados, têm diferentes situações de custos [...] e claramente carecem de um
aparado de coordenação oligopolística’. Como as contribuições modernas à teoria da organização
industrial tem mostrado, esforços de colusão tácita (a fortiori cartéis) são muito complexos e não raro
mal-sucedidos, devido às dificuldades de prevenir free riding e de coordenar preços focais ou sob
liderança. De um ponto de vista dinâmico Schumpeteriano, porém, é importante aduzir a extrema
dificuldade, senão, impossibilidade, nos oligopólios cujos padrões de concorrência envolvam dinamismo
inovativo, de prevenir esforços competitivos inovativos ricais; em síntese, o surgimento de ‘free riders’
inovativos, por assim dizer, capazes de boicotar esforços de coordenação voltados à estabilização das
estruturas de mercados vigentes”. POSSAS, Mario Luiz. FAGUNDES, Jorge. PONDÉ, João Luiz.
Política Antitruste: Um enfoque Schumpeteriano. In POSSAS, Mario Luiz (Coord.). Ensaios sobre
Economia e Direito da Concorrência. São Paulo: Singular, 2002. p. 20-21. 155 Sobre esta questão, Sérgio Bruna afirma que “o preço em regime de oligopólio, embora não tão alto
como de monopólio, tende a ser superior ao que se estabeleceria em regime de concorrência pura. Isto se
clarifica mais ainda na medida em que consideremos os oligopolistas capazes de antecipar a reação de
seus concorrentes, efetivos ou potenciais. Quando poucos concorrentes estão no mercado e sabem que
uma baixa individual de preços irá causar a mesma atitude dos rivais, com perdas mútuas, o oligopolista
tenderá a não tomar a iniciativa de baixar seus preços. Os oligopolistas tenderão, assim, ainda que
tacitamente, a estabelecer seus preços em um nível superior ao de mercado em concorrência perfeita, mas
provavelmente inferior ao de monopólio, por temerem o acesso de empresas o acesso de empresas
concorrentes”. BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2001. p. 47.
55
Além do monopólio e do oligopólio156, a doutrina também nos aponta a
concorrência monopolística, sendo este um modelo em que as vendas se mostrariam
condicionadas por novéis fatores. São eles: as variações de preço, as variações na
natureza do produto ou as variações de publicidade.
Neste regime, os mercados de cada concorrente se mostram, de certa maneira,
isolados uns dos outros. Aparecendo, assim, não apenas um mercado para todos os
produtores, mas vários mercados com estreita relação157.
Krause afirma que, neste modelo, existem muitos vendedores de produtos que
não se mostram como sendo substitutos iguais. Enxerga que as condições de
concorrência, aqui, se parecem com as condições de concorrência perfeita, em que pese
as possibilidades que tem o produtor no manejo abusivo da oferta e do preço do
produto158.
Em sua abordagem, Fabio Nusdeo denomina tal conceito de concorrência
imperfeita, resumindo que se caracteriza por possuir um número elevado de
compradores e vendedores. Entretanto, não possui os demais requisitos da concorrência
perfeita, exemplificando com a homogeneização dos produtos e atomização do
mercado. Assim, levando em consideração que inexistem tais requisitos, “[...] a procura
não se apresenta fluida, mas sim viscosa [...]”, ou seja, os consumidores tendem a
procurar fornecedores específicos, em função de fatores diversos, como localização
física, marca, publicidade ou qualquer outro fator159.
Diante do aqui trazido, é perceptível a multiplicidade de fatores que podemos
abordar quando tratamos do conceito de concorrência. Poderíamos, caso fosse
precisamente o objeto do presente estudo, abordar diversos outros fenômenos pontuais
que influenciam diretamente este processo, o que não nos cumpre por delimitação
temática.
156 Interessante trazer abordagem feita por Calixto Salomão Filho ao explicar que “frequentemente
confundido e mal interpretado é o comportamento concorrencial dos oligopolistas. Não por acaso. Na
verdade, os oligopólios, estruturas de mercado em que pequeno número de concorrentes detém a
totalidade ou a maioria da participação no mercado, tem comportamento concorrencial muito peculiar. A
razão é simples. As participações no mercado próximas e relevantes em relação ao total de mercado das
várias empresas fazem com que o comportamento de uma tenha efeitos importantes sobre a outra. Uma
empresa é dependente do comportamento da outra, no sentido de que variações na quantidade produzida e
preço de uma empresa podem influenciar decisivamente a lucratividade e o faturamento da outra. Por essa
razão a competição, possivelmente feroz, faz com que uma empresa deva acompanhar de perto e por
vezes imitar o comportamento da outra”. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Concorrência. São
Paulo: Malheiros, 2002. p. 153. 157 BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 40. 158 KRAUSE, Martin Enrique. Economia, Instituciones y Politicas Publicas. Buenos Aires: La Ley,
2011.p. 46. 159 NUSDEO, Fabio. Curso de Economia. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 269.
56
É difícil precisar e prever os comportamentos de um mercado real. Entretanto a
ideia de concorrência perfeita, em que pese o fato de constituir-se parâmetro para
análise, não se mostra como sendo o objetivo final das atividades de regulação da ordem
econômica no sentido de tutela da concorrência. Isto por razões diversas de evidente
significado dentro do contexto real dos mercados160.
O que se defende neste estudo e será pontuado oportunamente é que a
concorrência almejada, objeto de tutela jurídica estatal161, seja a que proporcione maior
ganho social, político e econômico conforme os objetivos específicos de cada Estado e
suas previsões jurídicas e políticas públicas.
Assim, de acordo com o professor Sérgio Bruna, “[...]diante de um caso
concreto, definir qual seja o nível de ‘concorrência desejável’, é tarefa jurídica, já que o
que se visa é regular comportamentos162”. Desta maneira, analisaremos a questão da
concorrência desde os fundamentos do direito antitruste, até os aspectos constitucionais
e legais brasileiros em se tratando do direito concorrencial.
3.2 FUNDAMENTOS DA TUTELA JURÍDICA DA LIVRE CONCORRÊNCIA
Neste momento da presente análise, será feito um estudo dos fundamentos e
objetivos da tutela da concorrência, trazidos em momentos diversos pela doutrina na
abordagem do antitruste.
160 Sobre a questão da concorrência e o funcionamento eficiente dos mercados, o argentino Leonardo
Orlanski assevera que “El funcionamento eficiente del mercado requiere, entonces, que el derecho
asegura la competencia. Si bien, como habrá de verse, lós regímenes regulatórios pueden ser diseñados
para imitar la competencia cuando ésta no existe, es muy probable que los resultados no sean igualmente
satisfactorios, en especial, por los problemas de información imperfecta y por la presión de grupos de
interés sobre las potenciales rentas de la actividad. Es más, los costos de adquisición y análisis de la
información, en fefinitiva, tendrán que ser pagados por los consumidores”. ORLANSKI, Leonardo.
Competencia y Regulación. Buenos Aires: Ad Hoc, 2006. p. 36. 161 “Nesta seara, portanto, o Estado reconhece a importância do mercado, admite que ele tem falhas e,
consciente, atua como seu guardião e da competição entre os agentes nele atuantes”. TAVARES, André
Ramos. A intervenção do Estado no Domínio Econômico. In CARDOZO, José Eduardo. QUEIROZ,
João Eduardo. SANTOS, Márcia (Org.). Curso de Direito Administrativo Econômico. Vol. II. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 194. 162 Assim afirma o nobre Professor: “[...]poder-se-ia dizer que a ‘concorrência desejável’ seria aquela que
proporcionasse maior ganho social (e não só econômico), ainda que efetivamente isto representasse a
existência de pouca ou de nenhuma concorrência em determinado mercado. Isso implica dizer que a
valoração dos interesses sacrificados seria menor do que a dos interesses atendidos, o que justificaria tal
sacrifício”. BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2001. p. 71.
57
Entretanto, introdutoriamente, cumpre trazermos os ensinamentos da
Professora Paula Forgioni163, apresentados em seus estudos acerca da evolução histórica
deste ramo do direito. Por não constituírem, os aspectos históricos, os objetos precisos
do presente trabalho, serão feitas apenas algumas sintéticas e importantes observações.
Sendo assim, a doutrinadora afirma que em se tratando da evolução histórica
da concorrência, “[...] uma fase de desenvolvimento não supera a precedente [...]164”.
Desta maneira, entende-se que as fases pelas quais o direito concorrencial passou
convivem em seu seio, não sendo, pois, excludentes, mas sim, interligadas e
complementares entre si165.
A referida professora identifica três principais vetores do direito concorrencial
partindo da evolução histórica. O primeiro vetor que resultou desta compreensão a a
partir da análise temporal, se constitui na compreensão do antitruste como sendo uma
determinação de regras impostas aos agentes econômicos no mercado, visando regular
os seus comportamentos, tendo como base razões práticas e com o objetivo de
resultados eficazes, imediatos e sem “distorções tópicas”.
O segundo vetor apresentado se relaciona com a ideia de o antitruste seria
resultado de um sistema de produção ótimo. Este, pressupondo a regulamentação do
comportamento dos agentes envolvidos. Nesse sentido, o direito concorrencial é visto
como elemento estrutural do próprio sistema. Parte do mesmo. Aqui se entende a
concorrência em seu sentido técnico fornecido pela ciência econômica, além de
compreender que tal tutela visa à proteção e garantia do próprio sistema.
Por fim, o terceiro vetor identificado pela professora retro mencionada se
subsume na ideia de que a regulamentação do comportamento dos agentes econômicos
163 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.36-37. 164 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.36. 165 Luis Fernando Schuartz assim pontua, sobre as razões do Direito da Concorrência: “Ao falar das
‘razões do Direito da Concorrência’ eu me refiro, antes de mais nada, aos argumentos substantivos que
podem ser apresentados perante um público racional para a defesa da legitimidade das normas que
integram o seu âmbito. [...] isto significa exatamente o mesmo que mostrar, de modo justificado, os
‘fundamentos de validade’ deste ramo do direito. É claro que ao apresentar os argumentos que, a meu ver,
devem ser tratados como suficientes para assegurar a racionalidade das normas jurídicas referidas, não se
está dizendo que a consideração pretérita destas razões por quem quer que seja deva ser tratada como um
fator explicativo central – ou até mesmo secundário – para a gênese histórica do Direito Concorrencial
vigente. A hipótese aqui é outra, a saber que é possível, por assim dizer, ‘contar uma estória’ ou então
‘construir uma narrativa’ a respeito do desenvolvimento do Direito da Concorrência como se as normas
vigentes fossem o resultado de um processo de aprendizado racional, em que a etapa atual – encarnada no
direito vigente – representaria a solução de problemas não solucionados na etapa a ela anterior”.
SCHUARTZ, Luís Fernando. O Direito da Concorrência e seus fundamentos. In POSSAS, Mario Luiz
(Coord.). Ensaios sobre Economia e Direito da Concorrência. São Paulo: Singular, 2002. p. 43.
58
dentro do mercado ultrapassa a importância de manutenção do sistema econômico e
atinge uma função instrumental identificada na implementação de políticas públicas que
visem, também, a condução do próprio sistema. Observe-se que aqui a ideia do segundo
vetor resta expandida. A tutela da concorrência, antes vista como necessário para a
manutenção do sistema, neste momento, se mistura com a noção de políticas públicas
direcionadas e conduzidas por tal tutela.
Compreendidas as percepções apontadas por Forgioni como de fundamental
destaque dentro de uma compreensão generalista da evolução histórica do antitruste,
cumpre trazermos à baila e identificarmos tais noções com as três principais escolas do
pensamento antitruste. Tendo, estas, apresentado teorias de destaque sobre a função e
embasamento da tutela concorrencial. Observando que toda a compreensão do
ordenamento concorrencial norte-americano166 e europeu perpassa por tais
entendimentos. Com base nestes estudos, tentar-se-á compreender, por fim, o
pensamento brasileiro sobre a tutela da concorrência.
Neste ponto, introduzimos e identificamos sumariamente os preceitos das
escolas de Harvard e de Chicago nos Estados Unidos e de Freiburg na Alemanha, como
sendo imprescindíveis para a real compreensão do fenômeno aqui analisado.
Introdutoriamente, nos valemos da observação, feita por Forgioni, afirmando
que a legislação antitruste assume funções diversas nos diferenciados sistemas jurídicos
e momentos históricos em que aparece. Ponderando que “discussões excessivamente
gerias sobre os objetivos da Lei Antitruste, sem que sejam referidos o país, a lei e o
166 Sobre as maiores contribuições do antitruste norte-americano, Kovacic e Shapiro observam:
“Economists have made two major contributions to the U.S. antitrust regime. The firs is to make the case
for competition as the superior mechanism for governing the economy. Throughout the 20th century,
America’s antitrust laws have coexisted uneasily with policies that favor extensive government
intervention in the economy through planning, ownership, or sweeping controls over prices and entry.
Economists have informed the debate about the relative merits of competition bt illuminating the costs of
measures that suppress rivalry with the ostensible aim of serving public interest. The second significant
contribution of economists has been to guide the formation of antitrust policy. Economic learning has
exerted an increasing impact on antitrust enforcement. In the first half of the 20th century, one finds little
direct impact of economic research on the major court cases. The influence increases in the century’s
second half, but usually with a lag. Today, the links between economics and law have been
institutionalized with increasing presence of an economic perspective in law schools, extensive and
explicit judicial reliance on economic theory, and with the substantial presence of economists in the
government antitrust agencies. The availability of new data sources like electronic point-of-purchase
data, the refinement of flexible game-theoretic models, and the new emphasis on innovation assures that
robust arguments over the proper content of competition policy will flourish into the 21st century”.
KOVACIC, William E. SHAPIRO, Carl. Antitrust Policy: A Century of Economic and Legal
Thinking. American Economic Association, Nashville, v. 14, n. 1, Winter 2000. Disponível em: <
http://faculty.haas.berkeley.edu/shapiro/century.pdf> Acesso em: 20 dez. 2013. p. 58-59.
59
momento de que se trata, são, de certa maneira, estéreis167”. Diante disto, o que se
pretende aqui é apenas demonstrar uma abordagem geral dos importantes e influentes
pensamentos acima expostos, de maneira a introduzir a oportuna análise do antitruste
brasileiro no subtópico vindouro.
A primeira escola que destacamos nesta abordagem, é a escola de Harvard, que
teve suas ideias utilizadas de maneira “[...] predominante durante as décadas de 1950 e
1960 [...]168” e propunha que o principal objetivo resultante da existência do antitruste
seria meramente a existência da concorrência e a diminuição da concentração de poder
entre os partícipes do mercado, conforme aduz Rafael Rocha Macedo em trabalho
dissertativo169.
Os principais expoentes e defensores desta escola fundamentavam a defesa na
busca do que chamavam de workable competition170, relacionado com a problemática da
quantidade de agentes.
Tomando por base a máxima de que “[...] o mercado será competitivo quando
os competidores atuem independente uns dos outros, sem qualquer sorte de acordo171”,
a busca por esta concorrência desejável se daria de maneira estrutural, levando em conta
questões como número de produtores em concorrência e o tamanho de barreiras de
entrada no mercado. Tem-se aí a ideia basilar de que “[...] quanto maior for o número de
produtores, mais intensa será a concorrência: a coordenação das atitudes individuais
será tanto mais difícil quanto maior for o número de competidores172”. Na ótica do
número de concorrentes, quanto menores forem os obstáculos para a entrada de novos
competidores, será mais fácil atingir-se resultados próximos aos competitivos.
Paula Forgioni, por sua vez, ensina que a Escola de Harvard (ou os
estruturalistas, conforme também é denominada), “[...] parte do pressuposto de que
empresas com poder econômico usa-lo-ão para implementar condutas
167 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
p.160. 168 MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de políticas
públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 43. 169 MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de políticas
públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008. 170 Sérgio Bruna diz que este conceito de workable competition não se mostra como sendo um conceito
preciso. Pontuando que “na sua delimitação, haverá com certeza uma grande medida de subjetividade”.
BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 63. 171 BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 65. 172 BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 66.
60
anticompetitivas173” e que, por esta razão deveriam ser evitadas as concentrações
econômicas excessivas “[...] que acabam por gerar disfunções prejudiciais ao próprio
fluxo das relações econômicas174”.
Em ato contínuo, sobre o modelo proposto de workable competition defeso
pela escola em comento, assevera que este se sustenta na manutenção ou aumento do
número de agentes econômicos no mercado, com uma preferência a uma estrutura mais
“pulverizada” visando à diminuição de disfunções.
A professora afirma, por fim, que “um de seus principais pilares repousa na
crença de que a conduta do agente econômico [...] está diretamente ligada à estrutura de
mercado. Em três palavras ‘estrutura-conduta-performance’175.” .176
Os estruturalistas da Escola de Harvard entendiam que as “restrições verticais”
não se mostravam benéficas à estrutura do mercado, levando em consideração a
tendência de o agente econômico abusar de sua posição dominante dentro do mercado,
fundamentando que a tarefa do direito antitruste seria, unicamente, a reprimenda destas
estruturas de concentração.
Eis que é a partir da década de 1980 que a Escola de Chicago atinge seu auge,
em contraposição à tradição estruturalista de Harvard. Isto em decorrência da
discordância aos preceitos de que a concentração econômica seria um mal per se, um
mal por si só.
Em oposição, afirmam os neoclássicos177 de Chicago que a “[...] concentração
em si não é um mal, desde que fundamentada na ‘eficiência produtiva’, decorrente da
173 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.166. 174 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.166. 175 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.166-167. 176 Complementarmente, trazermos o ensinamento dos Professores Armando Castelar Pinheiro e Jairo
Saddi. Afirmam, acerca deste modelo estruturalista de estrutura-conduta-desempenho (em sua obra
utilizam este termo) que tal modelo “[...] é o principal instrumento conceitual a embasar a discussão sobre
a defesa da concorrência. O objetivo das políticas de competição, como discutimos, é garantir o adequado
desempenha das empresas e, consequentemente, atingir maior eficiência da economia. A suposição básica
é que esse desempenho depende diretamente do comportamento ou conduta das empresas. A conduta dos
participantes em um mercado (esforço, políticas de preço, propaganda, etc.), por sua vez, é influenciada
por sua estrutura (número de empresas, barreiras à entrada, etc.).”. PINHEIRO, Armando Castelar.
SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 361. 177 Sobre esta matiz neoclássica, o Professor Calixto Salomão Filho afirma que “o elemento central e bem
conhecido da teoria econômica neoclássica é o problema da alocação de recursos. Segundo os
neoclássicos, os recursos devem ser alocados da forma mais eficiente para a sociedade. Daí a preocupação
central com a eficiência econômica. Mas não só. Uma teoria que se preocupa primordialmente com a
alocação de recursos tem necessariamente que se propor a reproduzir as condições de mercado. É preciso
prever como se comportará e quais os resultados do intercâmbio econômico. Não por acaso, portanto, os
61
habilidade de produzir com custos menores, presumindo uma consequente redução de
preços ao consumidor [...]”, aumentando o nível de produtividade, qualidade dos
produtos e, por conseguinte, o bem-estar da sociedade178.
A Escola de Chicago [...] traz para o antitruste, de forma indelével, a análise
econômica [...]179” e coloca a eficiência180 no pedestal de objetivo supremo dentro desta
tradição, enxergando-a como “[...] um valor que não apenas se sobrepõe, mas elimina
qualquer outro objetivo que o direito da concorrência possa ter, inclusive a própria
existência da concorrência181”. A busca pela eficiência se torna, então, o verdadeiro
objetivo e finalidade do antitruste.
Com a égide da Escola de Chicago, as antigas percepções dos estruturalistas
são superadas. De maneira que “[...] as concentrações (e o poder econômico que delas
deriva) não são vistas como mal a ser evitado, os acordos verticais passam a ser
explicados em termos de economia de custos de transação, eficiências e ganhos para
consumidores182”.
A economia se mistura ao Direito, visando uma melhor compreensão de um
fenômeno originalmente relacionado àquela ciência. Isto resulta no fato de que a Escola
de Chicago se apresenta de modo extremamente tecnicista183.
neoclássicos recorrem à teoria marginalista. Nela, encontram respaldo para suas necessidades de
construção teórica”. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Concorrência. São Paulo: Malheiros,
2002. p. 56. 178 MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de políticas
públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 45. 179 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.169. 180 Dois conceitos que surgem com fundamental importância dentro da Escola de Chicago são os de
eficiência produtiva e eficiência alocativa. Carolina Munhoz ensina que o significado eficiência produtiva
“[...] está ligado à operação da técnica produtiva instalada numa unidade produtiva determinada, num
nível próximo o bastante do rendimento máximo permitido, em tese, por dada tecnologia. Trata-se de um
conceito técnico , que em termos econômicos ‘equivale a operar sobre uma dada função de produção (e
não abaixo dela) e, ao fazê-lo, minimizar custos de produção’. Em outras palavras, ele expressa o efetivo
uso dos recursos pelas empresas. [...] eficiência alocativa, relacionada com a distribuição dos recursos na
sociedade, ou seja, verificar se os recursos existentes estão empregados nas atividades que os
consumidores mais apreciam ou necessitam. Não há qualquer relação com o problema da distribuição de
renda ou riqueza” MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e
Desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora S.A, 2006. p. 112. 181 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A, 2006. p. 112. 182 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.170. 183 Rafael Macedo bem afirma que “a Escola de Chicago, ao defender a análise econômica, adquire um
caráter tecnicista, haja vista que pretende aplicar a teoria econômica em um ambiente de mercado que não
é perfeito, nem previsível”. MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de
implementação de políticas públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação
(Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p.
46.
62
Ao trazer conceitos e noções da Economia diretamente para a análise do
antitruste, fundamentando todos os possíveis posicionamentos em ponderações e
análises econômicas, dota a questão concorrencial de um caráter eminentemente
racional.
Além do mais, observe-se que os defensores desta corrente teórica se
posicionam veementemente contra o excesso de intervenção estatal. Sendo justificável e
necessária a atuação estatal apenas quando, com base na compreensão sob a regra da
razão184, resta comprovado o efetivo prejuízo ao mercado e sua estrutura.
Elisa Silva de Assis Ribeiro, em estudo sobre controle de condutas, resume que
“A Escola de Chicago introduz na aplicação das leis antitruste a importante contribuição
da análise econômica do Direito como instrumento de interpretação e, mais ainda, a
concepção de que algumas condutas ilícitas per se podem gerar ganhos de
eficiência185”. Sendo, sob tais premissas, injustificável a excessiva e indevida
intervenção estatal, conforme enxergavam os estruturalistas.
Em síntese, não é desnecessário repetir que, na visão da Escola de Chicago, os
atos de concentração não constituem um mal por si, decorrente de sua mera existência.
Os adeptos desta corrente entendem que quando a conduta anticoncorrencial gera
ganhos em termos de eficiência, não há motivo para a reprimenda ou intervenção
estatal, pois se tem em conta que a eficiência é o fim último da matéria antitruste186.
184 Neste ponto cabe fazermos uma importante distinção terminológica. A doutrina uníssona aponta duas
modalidades de interpretação do antitruste, sendo a regra da ilicitude per se e a regra da razão. A regra da
ilicitude per se é identificada em sua relação com os argumentos defesos pelos estruturalistas e
“[...]fundamenta-se na existência de algumas condutas cujos efeitos anticompetitivos são patentes,
dispensando-se a análise de suas consequências, sendo consideradas, portanto ilícitas. Tais condutas são
previamente definidas como abusivas. Nesse caso, basta a certeza de que a conduta realmente ocorreu,
por parte do aplicador da lei, para a configuração da infração” . Quando à regra da razão, conforme já
abordado no presente texto, temos uma estrita vinculação com o tecnicismo e racionalismo neoclássico da
Escola de Chicago. Nestes termos, é possível afirmar que tal modelo “nada mais é que a possibilidade de
uma avaliação valorativa do caso concreto em relação à lei, para decidir, em primeiro lugar, pela
existência de uma limitação à concorrência. Na presença dessa limitação, devem ser considerados os
benefícios que podem advir de atos anticompetitivos”. RIBEIRO, Elisa Silva de Assis. O Controle das
Condutas – Infrações à Concorrência. In OLIVEIRA, Amanda Flávio (Coord.). Direito Econômico –
Evolução e Institutos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. p. 128. 185 RIBEIRO, Elisa Silva de Assis. O Controle das Condutas – Infrações à Concorrência. In
OLIVEIRA, Amanda Flávio (Coord.). Direito Econômico – Evolução e Institutos. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2009. p. 129. 186 Uma interessante maneira de pensar a visão neoclássica nos é fornecida pela Professora Carolina
Munhoz, que toma por base seus estudos em Bork. A mesma assim estabelece: “Se por um lado o
antitruste, na visão neoclássica, tem uma preferência pela prosperidade material, de outro essa preferência
não se traduz em qualquer forma de preocupação com as formas pelas quais essa prosperidade é utilizada
e distribuída”. MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento.
São Paulo: Lex Editora S.A, 2006. p. 113.
63
Também, não se pode passar despercebida contribuição do apego à
racionalidade propagado pelos teóricos de Chicago, ao trazer a economia para a
discussão antitruste. Nos dizeres de Rafael Rocha de Macedo a Escola de Chicago “[...]
trouxe uma importante inovação para o antitruste, qual seja a inserção dos critérios
econômicos e econométricos para a análise do Direito da Concorrência187”.
Sendo que fora justamente este apelo excessivamente racional que resultara o
ponto em que repousaram as principais críticas feitas a esta corrente.
A professora Forgioni afirma que “[...] a busca por segurança e previsibilidade
jurídica constitui perigoso incentivo para que o estudioso do antitruste caia na armadilha
da análise econômica do direito [...] 188”. A ciência econômica, com suas fórmulas e
preceitos estabelecidos, é questionada por se mostrar insuficiente para resolver os casos
concretos e mutáveis que a vida apresenta.
Contudo, pontua que mesmo com as criticas lançadas à Escola de Chicago, a
teoria econômica continua útil para a análise do direito da concorrência. Afinal, muitos
dos fenômenos passíveis de regulação são explicados e estudados pela economia, se
apresentando como “[...] poderoso e indispensável instrumento na mão do jurista189”.
Observe-se, é um dentre vários instrumentos passíveis de utilização pelo jurista.
É de grande relevância fazer uma ponderação final acerca do fundamento do
antitruste norte-americano na última década do século XX, quando o excessivo
racionalismo dos adeptos da análise econômica proposta por Chicago se mostrou
enfraquecido. William Kovacic e Carl Shapiro190, em artigo onde apresentam estudo da
política antitruste no último século, observam que o antitruste nos anos mais recentes
aumentou seu foco sob a perspectiva da inovação, sendo, segundo os estudiosos, uma
lenta reação às proposições feitas pelo economista Joseph Schumpeter, ainda em
meados do século passado, sobre o processo de destruição criativa191.
187 MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de políticas
públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 46. 188 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.174. 189 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.175. 190 KOVACIC, William E. SHAPIRO, Carl. Antitrust Policy: A Century of Economic and Legal
Thinking. American Economic Association, Nashville, v. 14, n. 1, Winter 2000. Disponível em: <
http://faculty.haas.berkeley.edu/shapiro/century.pdf> Acesso em: 20 dez. 2013. p. 57 191 Em síntese extraída da própria obra de Schumpeter: “The fundamental impulse that sets and keeps the
capitalist engine in motion comes from the news consumers’ goods, the new methods of production or
transportation, the new markets, the new forms of industrial organization that capitalist enterprise
creates. […]This process of creative destruction is the essential fact about capitalism. It is what
64
Entretanto, mesmo diante desta posição, o maior contraponto à Escola de
Chicago vem com a Escola de Freiburg (Alemanha) ou Escola Ordo-liberal. Teoria
cujos ideais propostos e defesos se apresentaram como fundamentais para o processo de
formação da União Européia192.
As primeiras proposições desta corrente surgem da necessidade vivida na
Alemanha do início do século XX de um quadro institucional que tivesse por objetivo a
proteção da concorrência.
Carolina Munhoz ensina que os principais autores desta Escola “[...] opuseram-
se à atribuição de um papel ativo e intervencionista para o Estado em relação à
concorrência, dirigindo sua atenção para a moldura institucional dos mercados
competitivos, ou a ordem da economia193”. Em que pese ter sido uma teoria bastante
influente em todas as searas da economia alemã, sua relevância, com o passar do tempo,
fora se restringindo às questões relativas à concorrência.
Um conceito fundamental para a teoria em análise é a noção de ordem
concorrencial. A preocupação que batiza a teoria tem por fundamento a necessidade de
se estabelecer um conjunto de regras jurídicas em que as decisões são tomadas
capitalism consists in and what every capitalist concern has got to live in.[…] The first thing to go is the
traditional conception of the modus operandi of competition. Economists are at long last emerging from
the stage in which price competition was all they saw. As soon as quality competition and sales effort are
admitted into the sacred precincts of theory, the price variable is ousted from its dominant position.
However, it is still competition within a rigid pattern of invariant conditions, methods of production and
forms of industrial organization, in particular, that practically monopolizes attention. But in capitalist
reality as distinguished from its textbook picture, it is not that kind of competition which counts but the
competition from the new commodity, the new technology, the new source of supply, the new type of
organization (the largest scale unit of control for instance) – competition which commands a decisive
cost or quality advantage and which strikes not at the margins of the profits and the outputs of the
existing firms but at their foundations and their very lives. This kind of competition is a much more
effective than the other as bombardment is in comparison with forcing a door, and so much more
important that it becomes a matter of comparative indifference whether competition in the ordinary sense
functions more or less promptly; the powerful lever that in the long run expands output and brings down
prices is in any case made of other stuff”. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, Socialism and
Democracy. 3.ed. Nova York: Harper Perennial Modern Thought, 2008. p. 83-84. 192 Rafael Macedo observa que esta fundamentalidade se deu “[...] por se tratar de uma ‘união econômica’
e não de uma ‘união política’, não dispunha de um poder estatal organizado e comum, com força
suficiente para fiscalizar ou dirigir a atividade econômica em âmbito comunitário. Naquele contexto, fez-
se necessário criar um mecanismo de autocontrole de mercado, de modo a possibilitar a efetivação das
liberdades comunitárias de circulação de mercadorias. Assim, emergiu-se uma preocupação fundamental,
qual seja a garantia das condições estruturais da concorrência. Na União Européia, o Direito da
Concorrência veio constituir um corpo de regras mínimas com o objetivo de garantir a igualdade de
condições de concorrência entre os agente econômicos atuante em um determinado ambiente de
mercado”. MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de
políticas públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito
Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 47. 193 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A, 2006. p. 120.
65
individualmente e “[...] cujas ações são controladas e coordenadas pela concorrência no
mercado”.
Esta escola se funda no princípio de que “[...] uma economia de mercado
requer uma ordem concorrencial bem desenhada e continuamente policiada, pois
contém em seu bojo uma tendência à autodestruição”. O grande receio apresentado por
seus defensores se consubstancia no fato de que os agentes de mercado tendem a
desvirtuá-lo através da centralização, visando aliviar as pressões causadas pela
concorrência194.
Levando em consideração a preocupação com todo o processo competitivo em
si e com a liberdade e possibilidade de competição no mercado, demonstrada pelos
ordo-liberais, Rafael Macedo assevera que a escola “[...] propunha uma moldura
institucional de mercado competitivo [...]195”, tornando desnecessária a intervenção
excessiva por parte do Estado no mercado.
Conforme já visto, a teoria Ordo-liberal se mostra como fruto de uma profunda
desconfiança com o mercado e o poder privado, através da capacidade de concentração
e dominação econômica que pode resultar na própria destruição do mercado. Bem
observa Munhoz que tal fenômeno é acentuado “[...] especialmente quando há uma
fusão entre interesses públicos e privados196”.
Pontue-se que a defesa proposta por esta Escola não se dá no controle estatal
total da ordem concorrencial, mas, sim, apenas na manutenção das estruturas desta
ordem em específico.
Pode-se dizer que a discordância com a Escola de Chicago se dá em dois
pontos principais. Sendo o primeiro relacionado à ideia de bem-estar. Ou seja, os
neoclássicos têm como objetivo a maximização do bem-estar do consumidor, enquanto
os ordo-liberais compreendem que este bem-estar almejado se refere à pressupostos
meramente teóricos, sendo cambiáveis e não possibilitando uma verdadeira
compreensão.
Em uma segunda discordância, temos o próprio conceito de concorrência que
cada Escola abordada adota para fundamentar sua teoria. Enquanto a doutrina de
194 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A, 2006. p. 120-121. 195 MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de políticas
públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 47. 196 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A, 2006. p. 122.
66
Chicago defende a eficiência como finalidade máxima do processo concorrencial, a
Escola de Freiburg entende que é impossível prever e atribuir qualquer tipo de objetivo
ao Direito da Concorrência. Isto com base no fato de que “[...] o sistema concorrencial
não é do tipo no qual todos os efeitos podem ser previstos, selecionando-se apenas os
desejáveis, para orientar tanto a elaboração quanto a aplicação da lei197”.
A presente exposição fora feita observando as principais teorias expoentes da
questão da tutela da concorrência (direito concorrencial ou direito antitruste). É
pertinente afirmar que a preocupação do presente tópico não é a defesa manifesta de um
dentre os modelos teóricos definidos, mas a apresentação de tais visando clarificar as
influências do sistema de defesa da concorrência brasileiro, que será estudado no tópico
seguinte, com objetivo de uma compreensão futura da relação entre o direito
concorrencial brasileiro e sua própria política desenvolvimentista.
3.3 A DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
3.3.1 Tutela constitucional da livre concorrência
É fato que não se pode abordar a defesa da concorrência no ordenamento
jurídico brasileiro sem fazer a correta apreciação e abordagem constitucional. Diante
desta perspectiva, cumpre iniciarmos o presente tópico em rápida delimitação do que é a
Constituição Econômica na perspectiva do constitucionalismo brasileiro.
Como bem afirma o professor José Afonso da Silva198, se mostra sem propósito
e profundamente infrutífera uma longa busca por uma definição extremamente precisa
sobre o que vem a ser este conceito, sendo justificável tal postura diante do fato que
inexiste doutrina unânime quanto a esta definição.
Uma observação que deve ser feita antes de se incorrer na seara conceitual ora
pretensa, tem relação pontual à divergência teórica, supramencionada, residente na
delimitação deste conceito. Em simples palavras, a doutrina é amplamente divergente
197 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A, 2006. p. 124. 198 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
67
no que se refere ao âmbito em que a Constituição Econômica se situa199. Se este
conceito se enquadra apenas no âmbito formal ou, também, no âmbito material da
Constituição200.
O Professor Fabiano Mendonça, em estudo sobre a hermenêutica constitucional
da ordem econômica, observa que, partindo do ponto de vista formal-jurídico, as
dificuldades de definição do conceito de ordem econômica residem no fato de que se
referem à perspectiva macro do conjunto de normas que versam sobre o “trato das
trocas econômicas”. Eis, então, o motivo pelo qual há de se falar em “ordem econômica
formal constitucional”, visando uma maior precisão terminológica201.
Neste sentido, a abordagem que aqui se delimite se dará sobre esta ideia de
Constituição econômica formal que “[...] compreende somente normas de conteúdo
econômico incluídas no texto constitucional202”.
Em adendo, o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, partindo do seu
genial simplismo, aduz, por sua vez, que “a Constituição econômica formal é o conjunto
de normas que, incluídas na Constituição, escrita, formal do Estado, versam o
econômico203”.
Nas considerações do renomado constitucionalista José Afonso da Silva, a
constituição econômica formal é entendida como a “[...] parte da Constituição que
interpreta o sistema econômico, ou seja, que dá forma ao sistema econômico, que, em
199 André Ramos Tavares ao tentar conceituar a ideia de Constituição Econômica, menciona a divergência
teórica entre o professor José Afonso da Silva e o professor Vital Moreira. Enquanto aquele entende a
Constituição econômica em seu caráter formal, ou seja, como sendo uma parte da Constituição que dispõe
sobre o sistema econômico. Este a entende em um caráter mais amplo, ou seja, a Constituição econômica
seria um conjunto de preceitos e instituições jurídicas que ultrapassam ou não a Constituição formal. Não
há, pois, na visão de Vital Moreira uma necessária vinculação com o texto positivado. TAVARES, André
Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 76. 200 O Professor José Afonso da Silva introduzindo a sua análise do texto constitucional de 1988 ensina
que “reconheçamos valor ao conceito de Constituição econômica, desde que não pensemos que as bases
constitucionais da ordem econômica é que definem a estrutura de determinado sistema econômico, pois
isso seria admitir que a Constituição formal (superestrutura) constitua a realidade material (Constituição
material: infraestrutura). Mas também não se trata de aceitar um determinismo econômico mecânico
sobre a realidade jurídica formal. Se esta é forma, torna evidente que recebe daquela os fundamentos de
seu conteúdo. Mas a forma também influi na modelagem da matéria”. SILVA, José Afonso da.
Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 733. 201 MENDONÇA, Fabiano André de Souza. Hermenêutica Constitucional da Ordem Econômica
Regulatória: Princípios. In MENDONÇA, Fabiano. FRANÇA, Vladimir. XAVIER, Yanko. Regulação
econômica e proteção dos direitos humanos: Um enfoque sob a óptica do direito econômico.
Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008. p. 16. 202 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Editora Método,
2011. p. 76. 203 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 32.ed. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 350.
68
essência, é capitalista204”. Observe-se que não se defende aqui uma abordagem distinta
entre o que classificamos como constituição econômica e os demais dispositivos da
Constituição, ou da Constituição política como preferem alguns autores (a exemplo o
próprio José Afonso da Silva).
Seguindo esta mesma percepção, Gilberto Bercovici ensina, fundando sua
defesa em Natalino Irti, que “[...] não se deve romper com a unidade da Constituição e
decompô-la em uma pluralidade de núcleos isolados e autônomos205”.
Assim, entende-se que a Constituição é composta de vários núcleos e áreas
diversas que devem ser encaradas e interpretadas, sistematicamente, como resultado de
uma soma ideológica constitucional206. As bases para a política econômica do Estado
aparecem como fruto dessa interpretação conjunta proporcionada pela Lei Maior.
O espanhol Ariño Ortiz afirma que o que se entende por Constituição
econômica (sinônimo de modelo econômico da Constituição) é o conjunto de
princípios, critérios, valores e regras fundamentais que orientam a vida econômica e
social de um dado país, observando a ordem e disposição no texto constitucional.
Completando seu entendimento ao afirmar que a ordem econômica constitucional não é
um elemento autônomo do todo constitucional, mas, sim, uma parte fundamental da
estrutura da Lei Maior.
A Constituição econômica é vista, complementarmente, como sendo uma
referência de maior amplitude quando se relaciona com a ideia do modelo de sociedade
e de Estado que o texto fundamental tutela e estabelece207, assim, o econômico se insere
plenamente no contexto de formação política e jurídica.
204 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
p.723. 205 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
13. 206 Neste ponto, é interessante trazer a abordagem crítica feita pelo próprio professor Gilberto Bercovici.
Assevere-se que a ideia aqui proposta e defesa, de unidade da Constituição econômica dentro do contexto
constitucional como um todo, é ponto refutado pela Escola Ordo-liberal. Nas palavras do autor, ao
introduzir o ponto defendido: “Ainda em torno destas premissas, não utilizaremos a visão, a nosso ver
equivocada, dos autores da escola ordo-liberal de Freiburg. Estes teóricos entendem que existe uma
dualidade entre Constituição da Economia e Constituição do Estado. A Constituição Econômica é
entendida como autônoma à Constituição Política do Estado. Além da dualidade da Constituição, os ordo-
liberais, em um sentido muito próximo de Carl Schmitt, ainda defendem a necessidade de a Constituição
Econômica fundar-se na decisão da forma pura e fundamental da economia, cujas alternativas se
reduzem, para eles, à economia de mercado ou à economia planejada e dirigida”. BERCOVICI, Gilberto.
Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 12. 207 “Se entiende por ‘Constitución económica’ (o ‘modelo económico de la Constitución´) el conjunto de
principios, criterios, valores y reglas fundamentales que presiden la vida económico-social de un país,
según un orden que se encuentra reconocido en la Constitución. Este ‘orden económico constitucional’
nos es una pieza aislada, sino un elemento que hace parte de la estructura básica de la ley fundamental.
Además, hay que enmarcar la Constitución económica dentro de un contexto de mayor amplitud: el
69
Diante da acepção aqui trazida, há de se mencionar os elementos em que é feita
tal análise.
Neste ponto, segue-se a abordagem delimitada e bem fundamentada por André
Ramos Tavares, identificando como elementos que devem ser trazidos na Constituição
econômica: a base do sistema econômico, os direitos que possibilitam e legitimam a
atuação dos agentes econômicos, o conteúdo e os limites desses direitos e “[...] das
responsabilidades que são inerentes ao exercício da atividade econômica no país, bem
como a finalidade que se pretende com determinado sistema” 208.
Sendo, para a finalidade do presente estudo, a Constituição Econômica
compreendida e estudada em seu aspecto formal. Esta análise repousa nos dispositivos
que a Lei Fundamental apresenta de maneira positivada, visando o estabelecimento e
embasamento, a definição e a tutela da ordem econômica brasileira.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê, nos arts. 170
a 192, a tutela da ordem econômica209, onde “[...] sistematizar os dispositivos relativos à
configuração jurídica da economia e à atuação do Estado no domínio econômico,
embora estes temas não estejam restritos a este capítulo do texto constitucional210”.
Em que pese o rico material passível de análise, presente na Constituição
econômica brasileira211. O direcionamento aqui pretenso repousa precisamente no art.
170 do texto constitucional212, onde restam dispostos os princípios fundamentais da
ordem econômica213.
modelo de sociedad (una sociedad libre) y la idea de Estado (‘Estado social y democrático de Derecho’,
Estado autonómico’) que se quiere garantizar a través de la Constitución”. ORTIZ, Gaspar Ariño.
Principios de Derecho Público Económico. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003. p. 175. 208 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Editora Método,
2011. p. 79. 209 Neste ponto, não se podia deixar de pontuar a crítica implícita no trabalho do professor Paulo Lopo
Saraiva ao tratar os dispositivos da constituição econômico como a “(des)organização econômica e
social”. SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Acadêmica,
1995. p. 95. 210 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
30. 211 Gilberto Bercovici observa que “além destes princípios estruturantes, a Constituição de 1988 engloba
dispositivos que tratam da ordem econômica no espaço e no tempo. A projeção da ordem econômica e
seus conflitos no espaço estão configurados nas disposições sobre política urbana (arts. 182 e 183) e sobre
política agrícola e fundiária e reforma agrária (arts. 184 a 191). A projeção da ordem econômica no tempo
está disposta no art. 192, que dispõe sobre o ‘sistema financeiro nacional, estruturado de forma a
promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as
partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito’ e inclusive ‘sobre a participação do capital
estrangeiro nas instituições que o integram’.”. BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e
Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 31. 212 “Os denominados princípios da ordem econômica devem ser interpretados e aplicados conjuntamente,
de forma sistemática, porque influenciam o modo de atuação do Estado Regulador e dos agentes
econômicos, tutelando tanto os elementos vinculados ao regime de produção capitalista quanto aqueles
70
Sendo esta ordem, como assevera o próprio texto da Lex mater, “[...]fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa [...]”, tendo como finalidade
“[...] assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]”.
Estabelece, em seguida, a necessidade de observância dos princípios da soberania
nacional, da propriedade privada, da função social da propriedade, da livre
concorrência, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, busca do pleno
emprego, da redução das desigualdades regionais e sociais e do tratamento favorecido
para as empresas de pequeno porte que tenham sede e administração no Brasil214.
Entre os princípios fundamentais da ordem econômica estabelecidos pelo
legislador constituinte, elege-se, para o presente estudo, o princípio da livre
concorrência como objeto das presentes ponderações. Já tendo sido feita, no presente
trabalho, a análise econômica do conceito de concorrência e o estudo quanto aos
objetivos do direito concorrencial ao longo de uma evolução histórica.
A livre concorrência é erigida a princípio constitucional da ordem
econômica215. Sendo compreendida, inclusive, como “[...]verdadeiro instrumento de
realização dos objetivos do Estado216”. Entretanto, qual o significado deste princípio e
qual o real bem objetivado e efetivamente tutelado com esta previsão constitucional?
socialmente relevantes, numa escala de conciliação que tende a permanecer”. ELALI, André. Incentivos
Fiscais Internacionais: Concorrência fiscal, mobilidade financeira e crise do Estado. São Paulo:
Quartier Latin, 2010. p. 95-96. 213 Sobre a Constituição Econômica, Fabiano Mendonça afirma que “a expressão, tal qual emerge do
Texto Constitucional, ora se refere ao mundo do ser (art. 170), ora tem acepção mais direta com o mundo
do dever ser (art. 173, §5º). Na verdade, tal se deve ao fato de, no primeiro modo, fazer referência,
gramaticalmente, a como deveria ser a sociedade, numa redação apofântica e afirmativa”. MENDONÇA,
Fabiano André de Souza. Hermenêutica Constitucional da Ordem Econômica Regulatória:
Princípios. In MENDONÇA, Fabiano. FRANÇA, Vladimir. XAVIER, Yanko. Regulação econômica e
proteção dos direitos humanos: Um enfoque sob a óptica do direito econômico. Fortaleza: Fundação
Konrad Adenauer, 2008. p. 16. 214 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal. 215 Complementarmente, trazemos as ponderações de Rafael Macedo: “Um dos alicerces da estrutura
liberal da economia e intimamente relacionado com o princípio da livre iniciativa, o direito a livre
concorrência aparece pela primeira vez sob a roupagem de garantia constitucional em 1988. Busca-se
adotar um modelo de mercado no qual os agentes econômicos ou empresas podem competir entre si, em
um regime de iniciativa privada, sem que nenhum deles goze de superioridade decorrente de privilégios
jurídicos, ou situações econômicas derivadas do abuso do poder econômico ou da prática de condutas
infratoras à ordem econômica. A livre concorrência provoca efeitos em diversos setores da vida
econômica, tanto no preço das mercadorias ou serviços, quanto na qualidade dos mesmos. Deste modo, a
atividade concorrencial busca otimização dos recursos econômicos, na medida em que por intermédio da
concorrência recíproca, evitam-se os lucros arbitrários e os abusos de poder econômico. Trata-se na
verdade de princípio que visa preservar mercados e a própria ordem capitalista”. MACEDO, Rafael
Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de políticas públicas para o
desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) –
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 59. 216 ELALI, André. Incentivos Fiscais Internacionais: Concorrência fiscal, mobilidade financeira e
crise do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 65.
71
Um primeiro questionamento que surge da fria interpretação do dispositivo
decorre do possível entendimento enganoso que este princípio pode carregar.
Ricardo Seibel de Freitas Lima, tomando por base a interpretação meramente
gramatical, observa que o vocábulo livre é facilmente relacionável com a ideia de
inexistência de restrições. Como resultado, poder-se-ia compreender que o princípio da
livre concorrência não imporia, ao ordenamento jurídico brasileiro, quaisquer limites ou
restrições no âmbito concorrencial brasileiro217. Interpretação que se mostraria
completamente equivocada.
Por outro lado, ainda na linha do autor retro mencionado, a partir do
entendimento de que livre concorrência não é uma disputa ilimitada, tampouco se pode
compreender que restrições possam ser impostas sem limites, afinal, se assim fosse,
“[...] não faria sentido falar em livre concorrência como princípio, nem em livre
iniciativa como fundamento da ordem econômica218”.
Na linha intermediária aqui almejada, trazemos a conceituação do professor
João Bosco Leopoldino da Fonseca. O renomado doutrinador afirma que a Constituição
Federal afirma a sua opção pelo regime de economia de mercado e, como consequência
desta escolha, carrega como princípio o que chama de “[...] a mola básica que rege
aquele tipo de organização da economia”.
Continua, ponderando que a garantia de liberdade concorrencial adotada no
texto de 1988, não mais se relaciona com a busca pela concorrência perfeita e
atomizada, proposta pelo liberalismo tradicional, “[...] mas um equilíbrio entre os
grandes grupos e um direito de estar no mercado também para pequenas empresas219”.
Além da óbvia e uníssona menção de que o princípio da livre concorrência é
intrínseco ao regime capitalista e à economia de mercado220, André Ramos Tavares
explica o princípio em comento em um posicionamento, também, centralizado.
217 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Livre concorrência e o dever de neutralidade tributária. 2005.
143 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2005. p. 24. 218 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Livre concorrência e o dever de neutralidade tributária. 2005.
143 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2005. p. 25. 219 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.
94. 220 Neste mesmo sentido, não é demais trazer os ensinamentos do Professor Leonardo Figueiredo que
afirma que o princípio da livre concorrência “é um dos alicerces da economia liberal, sendo corolário da
livre-inicativa, isto é, só existirá a livre concorrência onde o Estado garante a livre iniciativa.
Concorrência é a ação competitiva desenvolvida por agentes que atuam no mercado de forma livre e
racional. Isto é, trata-se da disputa saudável por parcela do mercado entre agentes que participam de uma
mesma etapa em ciclo econômico”. FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico.
3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 67.
72
Afirmando que “[...] é a abertura jurídica concedida aos particulares para competirem
entre si, em segmento lícito, objetivando o êxito econômico pelas leis de mercado e a
contribuição para o desenvolvimento nacional e a justiça social221”.
Não restam dúvidas, pois, quanto à definição conceitual do princípio aqui
estudado. Conforme já fora abordado ao longo deste capítulo, trata-se de um princípio
fundador e fundamental da economia no regime capitalista.
Diante do exposto, tem-se por livre concorrência a ampla possibilidade de
atuação no mercado e permanência nele, sendo vedado, constitucionalmente o abuso de
poder econômico.
Não é desnecessário repetir que a proteção da concorrência é condição e
instrumento para a própria manutenção do mercado.
Conforme já fora mencionado no presente trabalho, os indivíduos em condição
de plena liberdade tendem a se comportar de forma monopolista ou diminuir a
incômoda concorrência dentro do mercado.
Ao analisarmos o princípio constitucional da livre concorrência sob esta ótica
retro trazida, compreendemos sua fundamentalidade, pois sua previsão delimita o modo
comportamental da ordem econômica e da ordem política, ao se relacionar com as
políticas públicas e os limites da intervenção estatal.
Entretanto, cumpre observar, que tal princípio não existe apenas para proteger
o mercado e sua estrutura.
A doutrina é iterativa ao mencionar que este princípio possui, como outra face,
a defesa e o favorecimento do consumidor em seus objetivos. Entendido, este, como
“[...] ente principal das relações de consumo travadas no cenário de desenvolvimento
econômico de um País222”.
O Professor Celso Ribeiro Bastos, sobre a relação entre tutela da concorrência
e proteção do consumidor, enxerga que é justamente com base na concorrência que os
consumidores se veem seguros para que possam consumir produtos de qualidade, com
preços justos. Aduzindo, também, o fato de que para os que exploram a atividade
221 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Editora Método,
2011. p. 256. 222 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Editora Método,
2011. p. 258.
73
econômica, é uma forma de serem recompensados pela maior capacidade, empenho e
dedicação em comparação com seus concorrentes223.
Além das importantes ponderações conceituais trazidas e da natureza dúplice
do princípio em comento, tratemos, ainda, a intrínseca relação entre os princípios da
livre concorrência e da livre iniciativa.
Eros Roberto Grau, em sua famosa obra sobre a ordem econômica na
Constituição de 1988, identifica que ambos os princípios são resultantes do princípio da
liberdade de iniciativa econômica, originário do édito de Turgot, de 9 de fevereiro de
1776224.
Tal princípio se dividia em liberdade de indústria (englobando a faculdade de
criação e exploração de uma atividade econômica e a não sujeição à atividade estatal,
apenas quando lei impusesse) e liberdade de concorrência (abarcando a possibilidade de
conquistar a clientela, a proibição de formas de atuação que deturpassem o processo
concorrencial e a neutralidade estatal em igualdade condições dos concorrentes)225.
Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência são, assim, os alicerces
da ordem econômica liberal, conforme estabelecido na Constituição brasileira de 1988.
Não há como pensar na existência de livre concorrência onde inexiste livre iniciativa,
em que pese à recíproca não se mostrar verdadeira. A livre concorrência se apresenta de
maneira agregada à livre iniciativa e que resulta na ampla possibilidade de
desenvolvimento do mercado226.
Tratando de mais uma abordagem fundamental para a compreensão da tutela
constitucional do princípio da livre concorrência, faz-se necessário trazer o que dispõe a
Constituição econômica em seu art. 173, §4º.
No mencionado parágrafo, o legislador constituinte prevê a possibilidade de
repressão legal das condutas de abuso de poder econômico, sendo, este, aquele que “[...]
vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário
dos lucros227”.
223 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.
643. 224 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros,
2010. p. 204. 225 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros,
2010. p. 205. 226 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.
643. 227 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal.
74
O constituinte foi além da mera previsão principiológica da livre concorrência
como fundamento da ordem econômica brasileira, assegurando e programando, além
disso, a sua tutela legal através de lei que tivesse por objetivo a repressão aos eventuais
abusos de poder econômico que viesse ferir a ordem concorrencial228.
Maria Tereza Mello e Mario Possas atribuem grande importância ao
dispositivo e elegem a fundamentação do referido artigo como sendo o principal
imperativo de defesa da concorrência no Brasil. Legando ao princípio expresso no art.
170 uma função de mera idealização referente ao modelo de funcionamento do mercado
brasileiro previsto no texto constitucional229.
O professor José Afonso da Silva ensina, sendo menos radical em sua
exposição que os autores supra referidos, que os dois dispositivos são complementares
em seu objetivo compartilhado. Ambos têm por finalidade a defesa do sistema de
mercado e da livre concorrência contra a tendência “[...] açambarcadora da
concentração capitalista230”.
Sobre a temática, o professor Eros Grau ensina que “[...] não há oposição entre
o princípio da livre concorrência e aquele que se oculta sob a norma do §4º do art. 173
do texto constitucional [...] em verdade, por que dele é fragmento, compõe-se do
primeiro231”. O jurista observa que o que se constitui regra, e não exceção, no regime
jurídico econômico brasileiro é o poder econômico232.
228 Trazemos à baila os ensinamentos do professor Eros Roberto Grau. Sobre tal fenômeno normativo,
afirma que “de uma banda porque a concorrência livre – não liberdade de concorrência, note-se – somente
poderia ter lugar em condições de mercado nas quais não se manifestasse o fenômeno do poder
econômico. Este, no entanto – o poder econômico – é não apenas um elemento da realidade, porém um
dado constitucionalmente institucionalizado, no mesmo texto que consagra o princípio. O §4º do art. 173
refere ‘abuso do poder econômico’. Vale dizer: a Constituição de 1988 o reconhece. Não que não devesse
fazê-lo, mesmo porque a circunstância de não o ter reconhecido não teria o condão de bani-lo da
realidade. Apenas, no entanto, tendo-o reconhecido, soa estanha a consagração principiológica da livre
concorrência. Para que tal não ocorresse, em presença da consagração do princípio, haveria mencionado o
§4º de dispor: ‘a lei reprimirá os abusos decorrentes do exercício da atividade econômica...’. O que, não
obstante – repito – seria inteiramente em vão: nem por isso o poder econômico deixaria de se manifestar
no mundo real – mundo do ser – a braçadas”. GRAU. Eros Roberto. A ordem econômica na
Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 209. 229 MELLO, Maria Tereza Leopardi. Direito e Economia na Análise de Condutas Anticompetitivas. In
POSSAS, Mario Luiz (Coord.). Ensaios sobre Economia e Direito da Concorrência. São Paulo:
Singular, 2002. p. 136. 230 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros,
2012.p. 728. 231 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros,
2010. p. 210. 232 Interessa-nos trazer a observação do renomado jurista quanto a função de tal organização do mercado.
Em que pese a defesa aqui apresentada de que a tutela da concorrência se mostra em natureza dúplice,
responsável pela defesa do consumidor e pela proteção da sua estrutura própria, o jurista se posiciona
dizendo que, dado o fato de que o poder econômico é regra no Brasil, “frustra-se, assim, a suposição de
que o mercado esteja organizado, naturalmente, em função do consumidor. A ordem privada, que o
75
Observe-se, diante do aqui apresentado, que a Constituição não veda o poder
econômico em si. Muito pelo contrário, ela reconhece sua existência no mundo fático.
Ou seja, a existência do poder econômico por si, não é inconstitucional. Em verdade,
ocorre que “o legítimo uso do poder econômico não sofre nem poderia sofrer qualquer
tipo de restrição, sendo essencial tanto ao regime liberal da iniciativa privada, quanto ao
desenvolvimento do país233”.
Entretanto, o constituinte tentou limitar esta posição dominante ao estabelecer
a proibição ao seu abuso. Ou seja, o art.173, §4º da Constituição Federal, além de
complementar e gerar a possibilidade de instrumentalização da defesa da concorrência,
reconhecendo a existência do fenômeno do poder econômico, objetiva a reprimenda dos
excessos ocorridos em seu eventual abuso, levando em consideração que tal exercício
de poder se encontra limitado pelos interesses da sociedade e que não pode, tal poder,
limitar a liberdade de iniciativa e participação no mercado de outros agentes
econômicos de menor poderio.
Ocorrido o excesso e o abuso do poder econômico, caberá ao Estado, a
intervenção no domínio econômico, visando a repressão de tais atos e a coibição dos
abusos.
Esta intervenção, atualmente, se vê regulada pela lei 12.529 de 30 de novembro
de 2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e disciplina a
prevenção e repressão contra infrações cometidas contra a ordem econômica. A lei da
concorrência será nosso objeto de discussão no subtópico que se segue.
3.3.2 Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
Conforme previsto em disposição na Lei Maior, em termos
infraconstitucionais, a livre concorrência encontra todo o seu sustentáculo legal descrito
na lei 12.529/11 que dispõe sobre e disciplina todo o Sistema Brasileiro de Defesa da
Concorrência – SBDC. É na referida lei que encontramos a previsão dos órgãos
conforme, é determinada por manifestações que se imaginava fossem patológicas, convertidas porém, na
dinâmica de sua realidade, em um elemento próprio a sua constituição natural”. GRAU. Eros Roberto, A
ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 210. 233 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Editora Método,
2011. p. 262.
76
responsáveis pela fiscalização e repressão, as infrações, penas e o rito processual
administrativo.
De maneira geral, cumpre afirmar, que o instrumento legal em comento alterou
a antiga lei da concorrência, Lei 8.884/94, e é considerada um marco histórico234 na
política brasileira de defesa da concorrência. Observando que a partir deste instrumento
legal restaram afirmados o SBDC propriamente dito, bem como a tutela legal material
de defesa da concorrência e a própria efetividade da norma constitucional programática
retro mencionada. Também, restaram consolidadas as funções de investigação e decisão
do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, órgão responsável pela
regulação e defesa da concorrência, conforme abordaremos em momento oportuno.
É pertinente a afirmação de que, em que pese a regulamentação legal da
concorrência no ordenamento brasileiro não ser nenhuma novidade. Foi apenas a partir
do ano de 1994, conforme assevera Paulo Furquim de Azevedo235, que ocorreram as
mudanças emblemáticas que resultaram no modelo de atuação do Estado na economia
no modo que se compreende atualmente.
O autor ensina que a primeira e frustrada tentativa de se implementar uma
legislação antitruste no Brasil data de 1945 e visava limitar a atuação dos monopólios e
o abuso de poder econômico de maneira generalista.
Entretanto, foi apenas com a promulgação da Lei 4.137 de 1962 que houve um
direcionamento correto para a defesa da concorrência. Foi neste diploma que restou
instituída a criação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o principal
organismo público de defesa da ordem concorrencial. Ainda, além da preocupação
desde antes demonstrada quanto aos monopólios e abuso do poder econômico, este
diploma trazia em seu texto punições previstas aos infratores da concorrência236.
Levando em consideração que a economia brasileira funcionava com base no
protecionismo e na coordenação estatal237, em detrimento do próprio modelo
234 Sobre as alterações, Vinícius Marques de Carvalho afirma que “são introduzidas profundas alterações
no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência tal como conhecemos hoje. Tais alterações são
abrangentes, e envolvem não só a mudança no desenho institucional do SBDC, como também
modificações substanciais nas suas principais áreas de atuação: a análise de estruturas, a análise de
condutas e o exercício da advocacia da concorrência.” CARVALHO, Vinícius Marques de. Outros. Nova
lei de defesa da concorrência comentada. São Paulo: RT, 2012. p.31. 235 AZEVEDO, Paulo Furquim. Análise Econômica da Defesa da Concorrência. In TIMM, Luciano
Benetti (Org.). Direito e Economia no Brasil. São Paulo: Ed. Atlas, 2012. P. 270. 236 AZEVEDO, Paulo Furquim. Análise Econômica da Defesa da Concorrência. In TIMM, Luciano
Benetti (Org.). Direito e Economia no Brasil. São Paulo: Ed. Atlas, 2012. P. 270. 237 Em relação à necessidade brasileira de possuir uma legislação própria de defesa da concorrência,Paulo
Furquim Azevedo pondera que “este movimento legislativo não era original e não parece ter sido
77
concorrencial, apenas com a mudança neste perfil de intervenção estatal no mercado e
uma demanda por instituições de mercado, é que foi possível que a defesa da
concorrência efetivamente ocorresse.
Diante do exposto, “com a Lei 8.884, de 1994, os órgãos responsáveis pela
defesa da concorrência foram dotados de instrumentos para uma ação mais efetiva238”.
Ocorreu, a partir deste momento legislativo, a transformação do CADE em autarquia
com relativa autonomia para julgamentos tratando infrações à ordem econômica.
Além do CADE, outros órgãos desempenhavam funções complementares na
defesa da concorrência, a exemplo da Secretaria de Direito Econômico (SDE) e da
Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), esta, vinculada ao Ministério da
fazenda.
Passada essa compreensão pretérita, surge no ordenamento brasileiro a Lei
12.529 de 30 de Novembro de 2011, ou a nova lei de defesa da concorrência, após
profundas discussões em âmbito legislativo, sendo fruto do PL 3.937 de 2004.
Em sua análise doutrinária, Vinícius Marques de Carvalho observa que as
alterações introduzidas com o novel diploma legal são substancialmente abrangentes e
“[...] envolvem não só a mudança no desenho institucional do SBDC, como também
modificações substanciais nas suas principais áreas de atuação: a análise de estruturas, a
análise de condutas e a advocacia da concorrência239”.
Paula Forgioni240, por sua vez, afirma que em termos materiais poucas foram as
mudanças apresentadas pela novel legislação, tendo sido mantidos os critérios que
derivado de uma demanda da sociedade brasileira à época. É usual associar as origens da legislação
antitruste ao Sherman Act, em 1890, nos EUA, ou ao Canadá, em 1889, por meio do Act for the
Prevention and Suppression of Combinations formed in Restraint of Trade. Ambas são peças que
compartilhavam o objetivo de impor limites ao poder até então irrestrito das grandes corporações e dos
trustes, que ganharam relevância após o final da Guerra Civil americana, em meio a profundas mudanças
institucionais e tecnológicas experimentadas pela sociedade norte americana. [...] O quadro no Brasil era
bastante distinto. A política industrial predominante no pós-guerra era de proteção comercial e de
coordenação das ações empresarias sob a tutela do Estado, que interferia em planos de investimentos e,
em diversos mercados, regulava o tipo de produto, a quantidade produzida e até o preço praticado. Em
outras palavras, à época da criação do CADE, a economia brasileira desenvolvia-se tendo por base a
proteção e a coordenação, e não a concorrência. O elemento estranho nessa composição de políticas era o
CADE, que por aproximadamente três décadas manteve-se quase anônimo, se não uma contradição com o
contexto institucional da época”. AZEVEDO, Paulo Furquim. Análise Econômica da Defesa da
Concorrência. In TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito e Economia no Brasil. São Paulo: Ed. Atlas,
2012. P. 269-270. 238 AZEVEDO, Paulo Furquim. Análise Econômica da Defesa da Concorrência. In TIMM, Luciano
Benetti (Org.). Direito e Economia no Brasil. São Paulo: Ed. Atlas, 2012. P. 270. 239 CARVALHO, Vinícius Marques de. Outros. Nova lei de defesa da concorrência comentada. São
Paulo: RT, 2012. p.31. 240 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.123-124.
78
configuravam a determinação das práticas empresariais consideradas ilícitas. Entretanto,
variadas foram as inovações trazidas com a nova lei.
Seguindo os critérios da professora, destacamos os seguintes aspectos trazidos
na nova lei de defesa da concorrência.
A priori, uma importante mudança ocorrida se deu com a reestruturação do
Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência dotando o Conselho de Administrativo de
Defesa da Concorrência de maiores poderes e maior autonomia, tendo a antiga
Secretária de Defesa Econômica sido incorporada à estrutura do CADE241. Este “[...]
passou a ser composto por dois órgãos principais: Tribunal Administrativo e
Superintendência Geral242”. Sendo, o primeiro, responsável pelo julgamento de
acusações de infrações à ordem econômica e atos de concentração. Enquanto o segundo,
responsável por investigação e instrução dos atos passíveis de apreciação pelo tribunal.
Ainda, conforme a autora, cumpre destacar a existência do Departamento de
Estudos Econômicos e sua responsabilidade na elaboração de análises e pareceres para o
embasamento e fundamentação da atividade do CADE.
A segunda inovação apontada pela professora se refere à imposição de dever,
por parte das empresas, de apresentação dos atos de concentração previamente à sua
concretização, de maneira que sem a devida aprovação do órgão, tais operações não
podem ocorrer.
Ainda, a professora aduz, como passíveis de destaque, o aumento do poder da
Administração Pública, a modificação da forma de cálculo das multas por infração à
ordem econômica e o aumento dos recursos materiais disponíveis ao SBDC, sendo esta
última resultante do aumento de cargos específicos e com exercício prioritário no
CADE.
A doutrina encara as modificações feitas com a Lei 12.529/2011 como
verdadeiros marcos paradigmáticos na defesa da concorrência no ordenamento jurídico
brasileiro. Sendo compreendida como construtora de um meio muito mais eficiente para
implementação de uma política brasileira de defesa da concorrência.
241 Observe-se que a Lei de defesa da concorrência organiza o SBDC em dois órgãos: o Conselho
Administrativo de Defesa da Concorrência – CADE, que é uma autarquia especial vinculada ao
Ministério da Justiça, e a Secretária de Acompanhamento Econômico – SEAE, vinculada ao Ministério da
Fazenda. Forgioni afirma que “na verdade, no âmbito do direito concorrencial, as competências da SEAE
são bastante restritas, limitando-se praticamente à advocacia da concorrência. O grande protagonista da
matéria é o CADE, ‘entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional’.” FORGIONI, Paula.
Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p.126-127. 242 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.124.
79
Ao afirmar esta nova fase inaugurada com a promulgação do referido texto
legal, Vinícius Carvalho afirma que os avanços apresentados se iniciam na própria
disposição da política de defesa da concorrência no próprio SBDC. Observando que
além dos inegáveis avanços em termos estruturais e institucionais, também houve
avanços na perspectiva de direito material que, segundo o autor, eram objetos de
frequentes discussões no regime da legislação anterior243.
Além do mais, se vislumbra a possibilidade de a política de defesa da
concorrência se mostrar cada vez mais reflexa além da esfera exclusivamente
administrativa, através de uma maior coordenação entre a repressão às infrações contra
a ordem econômica nas esferas penal e cível.
Não restam dúvidas acerca da ampla gama de possibilidades que a nova lei de
defesa da concorrência constrói e faculta desenvolver em se tratando de uma educação
voltada à concorrência e uma defesa da concorrência cada vez mais eficiente.
Entretanto, é necessário ponderar algumas preocupações relevantes e naturais
decorrentes do surgimento deste novo paradigma.
Uma primeira preocupação que se demonstra com relação à própria análise dos
avanços trazidos. É salutar atentar para o fato de que tais instituições seguem o fluxo
das políticas públicas e suas finalidades com base nesta função pública. Diante deste
ponto, “é útil ter em mente que a opção por um dado desenho institucional costuma ser
o resultado de escolhas entre as diferentes formas de concretizar e harmonizar três
grandes objetivos fundamentais244”.
Vinícius Carvalho afirma que tais objetivos são “[...] o adequado e eficiente
cumprimento da função pública, controlar o exercício da atividade estatal em vista do
respeito aos direitos e garantias individuais e legitimar a atuação estatal face as
necessidades de interferência dos indivíduos” 245.
Observando o autor retro, de maneira otimista, que o processo de elaboração do
novo SBDC se demonstra bastante positivo por ser reflexo de um amplo processo de
escolha fruto de substanciais debates que contaram com a participação de variados tipos
de profissionais.
243 CARVALHO, Vinícius Marques de. Outros. Nova lei de defesa da concorrência comentada. São
Paulo: RT, 2012. p.31. 244 CARVALHO, Vinícius Marques de. Outros. Nova lei de defesa da concorrência comentada. São
Paulo: RT, 2012. p.32. 245 CARVALHO, Vinícius Marques de. Outros. Nova lei de defesa da concorrência comentada. São
Paulo: RT, 2012. p.32.
80
Forgioni, por sua vez, afirma que é necessário dotar o CADE de mais recursos
materiais de maneira mais franca, com base na crescente demanda resultante do
crescimento do mercado interno.
Ainda, critica a preocupação e dispêndio de tempo excessivo que o órgão
demonstra com análise de atos de concentração econômica que, segundo a mesma, “[...]
muito raramente apresentam problemas concorrenciais relevantes246”. Espera que o
órgão em comento passe a ser mais combativo sobre os abusos de poder econômico e
posição dominante, além de outras práticas que se apresentam lesivas ao consumidor e
ao próprio mercado.
Indubitável, pois, diante da abordagem aqui feita, que a nova lei da defesa da
concorrência se mostra como um verdadeiro marco paradigmático na tutela do princípio
constitucional da livre concorrência e na vedação ao abuso do poder econômico. Eis que
se trata do instrumento, previsto pelo legislador constituinte, que define e estrutura o
antitruste no ordenamento jurídico brasileiro.
Na perspectiva apresentada, a nova lei de defesa da concorrência se constitui
como sendo um sistema reestruturado visando seu fortalecimento e consolidação em
consonância com os anseios da sociedade e do mercado conforme se encontram na
atualidade.
Percebe-se, entretanto, que se mostra fundamental a coordenação com políticas
públicas que venham a afirmar ainda mais a necessidade de concorrência para atingir-se
objetivos como a defesa do consumidor, a maior eficiência do mercado em si e, por fim,
atendendo políticas públicas desenvolvimentistas. Sendo, justamente, nesse último
ponto desenvolvida a continuação do presente trabalho.
246 FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p.124.
81
4. A IDEIA DO DESENVOLVIMENTO
4.1 DESENVOLVIMENTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
A Constituição Federal de 1988 se mostra com caráter indubitavelmente
desenvolvimentista247, sistematizando dispositivos, conforme já fora abordado no
presente trabalho, em que busca estruturar jurídica e politicamente o sistema econômico
e a própria atuação do Estado nestes domínios. Tendo por nítido objetivo a
transformação das estruturas sociais sob fulcro de uma economia de mercado visando o
bem-estar social e a defesa de direitos fundamentais.
Já em seu preâmbulo248, a Carta Magna atribui ao desenvolvimento a patente
de valor supremo almejado e assegurado pelo texto constitucional que ali se inicia e
delineia. Sendo necessário explicar a ideia de valor supremo presente no texto da Lei
Maior, nos valemos dos ensinamentos do Professor José Afonso da Silva ao observar
que tais valores restados positivados “[...] cumprem função de generalizador, de
qualificador universal ou operador total, valem para a classe do termo referido249”. O
desenvolvimento se mostra como verdadeiro objetivo do Estado democrático ali
estabelecido.
Mais adiante, com real caráter jurídico, no art. 3º, II, o constituinte elege o
desenvolvimento como sendo objetivo fundamental da República Federativa do
247 Os professores Manoel Peixinho e Suzani Andrade Ferraro memoram que “o modelo brasileiro de
desenvolvimento – instrumentalizado pelo planejamento – busca minimizar as diferenças econômicas e
sociais, locais, regionais e nacionais (desenvolvimento equilibrado), no sentido de promover as bases e
condições para uma intervenção desenvolvimentista dirigida”. PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO,
Suzani Andrade. Direito ao desenvolvimento como direito fundamental. In: XVI Congresso Nacional
do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte: Fundação Boiteux, 2007. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf>. Acesso em: 7 jan.
2014. p. 6967. 248 Eis o preâmbulo da Constituição Federal de 1988: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos
em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.” BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa
do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. 249 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
p. 25.
82
Brasil250. O artigo em comento tem relação direta com as promessas estabelecidas no
preâmbulo, dando caráter efetivamente obrigatório ao valor que fundara a carta política.
Neste sentido, fundamental frisar que, diferentemente das constituições anteriores,
quando o conceito de desenvolvimento estava estritamente vinculado à ordem
econômica, ao deslocar sua posição a objetivo fundamental da república251, temos uma
perspectiva mais ampla do que venha a ser desenvolvimento252 (em consonância com a
compreensão mais atual do termo, conforme se verá por oportuno). A posição afirmada
pelo legislador ultrapassa a ideia de mero crescimento econômico253, vinculando o
conceito, também, a questões sociais, culturais e políticas254.
Rafael Macedo, ainda, nos complementa ao afirmar que esta elevação do
desenvolvimento à condição de valor supremo e objetivo fundamental da República
brasileira, se encontra em estreito alinhamento com o fato óbvio de que a Carta Magna
de 1988, como todo processo de rompimento com uma ordem constitucional anterior,
rejeita a realidade até então vigente e visa reestruturar e remoldar a estrutura econômica
do País. Sendo, tal característica, perfeitamente consonante com o caráter dirigente ou
programático da Lei Maior, ao eleger finalidades a serem perseguidas pelo Estado255.
Ainda sobre a abordagem desenvolvimentista e seu enfoque dado pela
Constituição Federal, interessante partir da observação aduzida por André Ramos
Tavares. Neste sentido, memora a fundamentalidade do desenvolvimento nacional como
objetivo do texto político e assevera que “obviamente que tal meta insere-se no contexto
250 Conforme a redação do art. 3º, II, da CRFB/88: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: (...)II - garantir o desenvolvimento nacional;(...)”. BRASIL. Constituição
(1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. 251 Nos interessa, visando a efetiva compreensão da temática, o que ensina o professor José Afonso da
Silva: “Não se trata de objetivos de governo, mas do Estado Brasileiro, denominado ‘República
Federativa do Brasil’. Cada governo pode ter metas próprias de sua ação, mas elas têm que se harmonizar
com os objetivos fundamentais aí indicados. Se apontarem em outro sentido, serão inconstitucionais”.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p.
48. 252 André Ramos Tavares assevera que “o desenvolvimento do Estado passa prioritariamente pelo
desenvolvimento do homem, de seu cidadão, de seus direitos fundamentais. Sem ele, o mero avanço
econômico pouco significará, apenas fará sentido para poucos”. TAVARES, André Ramos. Direito
Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Método, 2011. p. 63. 253 “É neste sentido também que se fala, hoje, num direito ao desenvolvimento como forma de direito
fundamental de terceira geração voltado para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, ‘direito
humano inalienável em virtude do quê toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar
do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados’.” SILVA, José Afonso
da. Comentário Contextual à Constituição. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 49. 254 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
p. 48-49. 255 MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de políticas
públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008. p. 111-112.
83
econômico da Constituição, embora nele não se esgote, já que o desenvolvimento há de
ser buscado igualmente em outras órbitas, como a social, a moral, a política e outras256”.
Sobre o aspecto econômico, a Constituição, conforme ensina o professor André
Elali, propõe uma busca pelo desenvolvimento através da mudança efetiva na situação
da economia nacional. Tomando como objetivo um estado em que haja equilíbrio entre
produção, distribuição e consumo das riquezas. Sendo impossível, na visão do
doutrinador, que o Estado seja considerado desenvolvido, se possui em sua estrutura
social as vertentes extremas e simultâneas de riqueza e pobreza257.
Assim, o entendimento acima transcrito nos servira apenas de ilustrativo para
uma obviedade a ser memorada de que todo o direcionamento do texto constitucional,
com especial destaque para a Constituição Econômica, deve se dar em função e com o
objetivo à uma interpretação pautada no desenvolvimento. Sendo desnecessário
memorar que a própria Constituição Econômica, já abordada neste trabalho, também,
deve seguir este processo hermenêutico. O desenvolvimento é enxergado na presente
abordagem como a razão de ser do Estado, de modo que caso a atividade estatal destoe
desse objetivo, haverá uma ferida frontal ao texto constitucional258.
Calixto Salomão Filho nos complementa, no retro afirmado, ponderando que os
princípios do art. 170 da Constituição Federal representam, senão, opções econômicas
básicas oferecidas à sociedade. Por conseguinte, a definição e opção no modo de segui-
las se dá através da interpretação e aplicação concreta dos princípios, quando ocorre a
verdadeira relação do seu conteúdo259.
Importante frisar que o desenvolvimento abordado em texto constitucional não
se restringe nos dispositivos trazidos até o presente momento, tendo sido, estes,
abordados por tratar de um espectro mais amplo do estudo aqui desenvolvido. Assim
sendo, por questão didática e complementar, pontuemos os demais dispositivos
presentes na Constituição Federal de 1988 que trazem em seu texto a preocupação
256 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Método, 2011. p.
132. 257 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica: Um exame da tributação como instrumento
de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora,
2007. p. 68. 258 OLIVEIRA, Diogo. MENDONÇA, Fabiano. XAVIER, Yanko. A governança pública e o Estado
regulador brasileiro na efetivação do direito fundamental ao desenvolvimento. In MENDONÇA,
Fabiano. FRANÇA, Vladimir. XAVIER, Yanko (Org.). Regulação econômica e proteção dos direitos
humanos: Um enfoque sob a óptica do direito econômico. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008.
p. 72. 259 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimento. In SALOMÃO FILHO, Calixto
(coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 40.
84
desenvolvimentista. Memoramos, neste sentido, os arts. 21, IX e XX, art. 43, caput, §
1º, I e II, art. 48, IV, art. 58, § 2º, VI, art. 151, I e art. 174, § 1º260.
Em nosso embasamento teórico para a discussão desenvolvimentista que segue,
cumpre trazermos à baila, também, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento da
Organização das Nações Unidas. Documento em que fora estabelecido o conceito de
desenvolvimento entendido em sua acepção mais ampla.
Em sua redação inicial, a declaração observa que o desenvolvimento tem por
objetivo o incremento do bem-estar da população como um todo e dos indivíduos, assim
respeitos, levando em consideração sua participação ativa e significativamente, fundada
na liberdade, ao processo de desenvolvimento. Estabelece, complementarmente, o art.
1º, ponto 1 da declaração, que “o direito ao desenvolvimento é um direito humano
inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a
participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político261”.
Além de restar previsto o entendimento do desenvolvimento visto como direito
fundamental em seu sentido mais amplo, ou seja, levando em consideração as múltiplas
faces deste processo, a declaração ainda atribui ao Estado a função importante neste
processo de busca pelo Desenvolvimento, através da formulação de políticas públicas
visando a sua condução e aprimoramento. Destarte, observa-se que esta ampla
260 “Art. 21. Compete à União: IX – elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenamento do
território e de desenvolvimento econômico e social; XX – instituir diretrizes para o desenvolvimento
urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos; (...) Art. 43. Para efeitos
administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social,
visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais. , § 1o. Lei complementar disporá
sobre: I – as condições para integração de regiões em desenvolvimento; II – a composição dos
organismos regionais que executarão, na forma da lei, os planos regionais, integrantes dos planos
nacionais de desenvolvimento econômico e social, aprovados juntamente com estes. (...) Art. 48. Cabe ao
Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos
arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: IV –
planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento; (...) Art. 58. O Congresso
Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as
atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. § 2o Às comissões,
em razão da matéria de sua competência, cabe: VI – apreciar programas de obras, planos nacionais,
regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer (...) Art. 151. É vedado à União: I –
instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou
preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a
concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico
entre as diferentes regiões do País;(...) Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade
econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,
sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. .§ 1o A lei estabelecerá as
diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e
compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.” BRASIL. Constituição (1988).
Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. 261 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento.
Viena, 04 dez 1986. Disponível em: < http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao-
Desenvolvimento/declaracao-sobre-o-direito-ao-desenvolvimento.html>. Acesso em: 08 dez 2013.
85
concepção do desenvolvimento foi inspiradora à Carta Magna de 1988, estando em
estreita ligação com a mesma.
Contudo, apesar da preocupação evidente do legislador constituinte em restar
amplamente tutelada a questão do desenvolvimento, o mesmo não demonstrou
preocupação com a definição instrumental necessária à efetivação ou à condução do
processo. Restando, o desenvolvimento constitucionalmente tutelado, como sendo
reflexo da Constituição em sua natureza programática262.
Apesar da sua incompleta concretude, parece evidente que o direito ao
desenvolvimento congrega e sintetiza em si os direitos fundamentais, “[...] na exata
medida em que aglutina a possibilidade de o ser humano realizar integralmente as suas
potencialidades em todas as áreas do conhecimento263”. O direito ao desenvolvimento
seria, então, um marco da nova compreensão conjuntural dos direitos fundamentais,
tendo como fundamento basilar o acesso e a participação em políticas públicas,
conforme se verá adiante.
Interessante pontuar que, em que pese esta fundamentalidade do direito ao
desenvolvimento, em termos pragmáticos, a retomada da discussão desenvolvimentista
no Brasil é claro resultado da crise enfrentada pelo Estado brasileiro. Não há como,
pois, pensar em desenvolvimento sem a devida reflexão sobre os rumos tomados pelo
País, nestes termos, após a Carta Magna de 1988. É salutar a observação introdutória de
que as crises enfrentadas pelo Estado brasileiro só serão superadas com uma efetiva
reestruturação do Estado, tomando como finalidade a real consecução dos objetivos
traçados pela Constituição Federal e a efetividade plena do direito fundamental ao
desenvolvimento264.
262 Rafael Macedo observa que “em crítica às normas programáticas, Carl Schmitt afirmava que a
Constituição de Weimar, também dirigente, embora contivesse uma série de decisões políticas
fundamentais ao povo alemão, possuía em seu texto uma série de compromissos que constituíam na
prática, um adiamento de decisão. Esses compromissos, denominados de compromissos dilatórios
(dilatorischen Formelkompromib), eram resultados de disputas partidárias que somente adiariam a
decisão sobre determinados temas”. MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento
de implementação de políticas públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação
(Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.
p. 114. 263 OLIVEIRA, Diogo. MENDONÇA, Fabiano. XAVIER, Yanko. A governança pública e o Estado
regulador brasileiro na efetivação do direito fundamental ao desenvolvimento. MENDONÇA,
Fabiano André de Souza. Hermenêutica Constitucional da Ordem Econômica Regulatória:
Princípios. In MENDONÇA, Fabiano. FRANÇA, Vladimir. XAVIER, Yanko (Org.). Regulação
econômica e proteção dos direitos humanos: Um enfoque sob a óptica do direito econômico. Fortaleza:
Fundação Konrad Adenauer, 2008. p. 71. 264 BERCOVICI, Gilberto. Desenvolvimento, Estado e Administração Pública. In CARDOZO, José
Eduardo. QUEIROZ, João Eduardo. SANTOS, Márcia (Org.). Curso de Direito Administrativo
Econômico. Vol. II. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 39.
86
Entretanto, em retorno à clara indefinição conceital, cumpre tratarmos no
tópico vindouro as múltiplas teorias acerca do desenvolvimento, desde sua compreensão
liberal clássica ao entendimento pós-liberal do desenvolvimento como liberdade, na
busca de uma proposta teórica condizente com o ordenamento constitucional vigente.
4.2 CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO
Diante do exposto e em continuidade à busca dos resultados pretensos no
presente estudo desenvolver-se-á, neste tópico, uma abordagem teórica visando
delimitar um conceito de desenvolvimento que se mostre atual e aplicável à realidade
brasileira.
O conceito de desenvolvimento, entre os doutrinadores, se mostra de maneira
uníssona como de difícil precisão. Analogamente ao que ocorre com as demais ideias
expostas no presente trabalho (o significado de democracia e livre concorrência e suas
múltiplas facetas ao longo da história), a definição aqui pretensa é encarada, também, de
maneira diversa frente a realidades históricas distintas e necessidades contrastantes,
cambiáveis em relação ao tempo e ao espaço. Afinal, cada economia enfrente problemas
próprios e específicos decorrentes de suas próprias peculiaridades.
Inicialmente, com base na percepção apontada acima, a Professora Mônica
Teresa Costa Sousa observa que algumas mudanças ocorreram na ciência econômica e
sua compreensão, até que se chegasse efetivamente à problemática do
Desenvolvimento. Em que pese o fato de que a preocupação com questões inerentes ao
estudo econômico existir desde a antiguidade, a economia só passara a ser encarada
como ciência independente a partir do século XVII. A Economia Política, por sua vez,
se tornaria ciência autônoma apenas a partir dos pressupostos de Adam Smith265.
Como precursores da preocupação com o desenvolvimento, Carolina Munhoz
aponta os autores mercantilistas e os fisiocratas que, conforme afirma, “[...] dedicaram
parte de suas reflexões para as causas da riqueza de uma nação266”.
Os mercantilistas sustentavam a ideia de que a riqueza de uma nação se
estabelecia no fluxo de metais preciosos, com especial destaque no ouro e na prata.
265 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 32. 266 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 20.
87
Sendo fundamental a atuação do Estado com o intuito de se obter uma balança
comercial positiva. Esta percepção resultara em um franca expansão do comércio
internacional e, por conseguinte, um maior crescimento econômico. Entretanto, em
virtude da inexistência da ideia de criação de novas riquezas e do fato de que tal ideário
resultara, naturalmente, no intenso protecionismo interno, o desenvolvimento restara
prejudicado. A professora retro mencionada complementa afirmando que a excessiva
intervenção estatal na economia, decorrente da responsabilidade de acumulo de ouro e
prata, “[...] acabou se traduzindo na proteção da indústria e do comércio externo, em
detrimento das atividades agropecuárias267”.
A resposta à forma de atuação estatal mercantilista268 se deu com o surgimento
dos fisiocratas franceses, que combatiam a doutrina em comento e propunham que a
atuação do Estado se desse de maneira mais liberal269.
Assim, a análise fisiocrata ultrapassava o enfoque meramente comercial,
enxergando também o processo produtivo em si, “[...] pois entendiam que o comércio e
a indústria apenas transformavam valores, enquanto apenas a agricultura poderia gerar o
produto líquido270”. Diante desta percepção, se contrapunham ao fato de que a atuação
estatal prejudicava a agricultura ao privilegiar apenas o comércio e a indústria,
enfatizando que a “[...] promoção da agricultura, cujo aumento de produtividade poderia
impulsionar o crescimento do resto da economia271”.
A professora Mônica Sousa, em sua análise, observa que o grande equívoco da
escola fisiocrata fora enxergar como sendo a classe produtiva, apenas aquela ligada à
267 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 30-31. 268 A Professora Mônica Sousa afirma, como contraponta, que “com efeito, o Mercantilismo assegurou
não o desenvolvimento amplo das metrópoles, mas a acumulação de riqueza por parte do Estado e de
poucos financiadores da atividade comercial, vez que grande parte da população estava imersa em um
estado de pobreza pouco melhor ao do Feudalismo. Porém, a classe trabalhadora não estava mais adstrita
à terra e podia oferecer sua força de trabalho a qualquer empreendedor; se lhe restasse a condição de
mendicância, poderia contar com o amparo do Estado, de forma precária. Além disso, é durante o período
mercantilista que se afirma a evolução do capitalismo e se destaca a figura do comerciante”. SOUSA,
Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 39. 269 Ainda, afirma Mônica Sousa que a fisiocracia “[...] é a primeira escola econômica a acolher o
liberalismo (neste sentido, como liberdade de empreendimento, concorrência e iniciativa) e o
individualismo como valores essenciais. Os fisiocratas, cidadãos franceses liderados por François
Quesnay, depreenderam estudos acerca da vida econômica da época (entre 1756 e 1778). Influenciaos
pelo Racionalismo, fazem-se ouvidos e encerram suas ideias na determinação de uma ordem econômica
natural solidamente vinculada à terra”. SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento.
Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 40. 270 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 31. 271 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 31.
88
agricultura. Agindo com menosprezo em relação à importância da indústria e do
beneficiamento de bens. Por outro lado, continua, “[...] além de consolidar os princípios
do direito à propriedade e da liberdade econômica como essenciais ao processo de
desenvolvimento econômico [...]272”, a escola fisiocrata fora a primeira a fundamentar a
Ciência Econômica.
Também em contraposição ao mercantilismo, com um ideário semelhante ao
esposado pelos franceses da escola fisiocrata, o escocês Adam Smith se mostra o
primeiro a desenvolver a teoria desenvolvimentista e, em seus pensamentos, tem-se o
marco inicial da economia política. Deste modo, em sua célebre obra “A Riqueza das
Nações”, datada de 1776, apresenta a ideia de que o trabalho produtivo se constituiria
como elemento fundamental no processo de aumento de riqueza nacional, sendo, tal
modalidade de trabalho, o que resulta na produção de um excedente de valor sobre o
custo da produção273.
O renomado economista brasileiro, Celso Furtado, afirma que a obra do
escocês se ocupa vastamente do estudo da produção. Partindo, o mesmo, de um
questionamento sobre o motivo pelo qual cresce o produto social. Neste norte, “atribui a
causa desse fenômeno à divisão do trabalho, à qual empresta três virtudes: aumento de
destreza no trabalho, economia de tempo e possibilidade do uso de máquinas274”. Tal
divisão do trabalho, na obra de Smith, se originaria de uma tendência humana natural de
negociar e trocar coisas por outras275. Desta forma, “como o trabalhador não pode
produzir todos os bens necessários à sua sobrevivência, produz aqueles para os quais
possui habilidade ou recursos produtivos, adquirindo os que não pode produzir276”.
Nesta visão, o desenvolvimento dos mercados e sua maior amplitude
possibilitariam a maior especialização do processo produtivo e a determinação do nível
de lucros, acumulação e velocidade do progresso técnico. O acúmulo de capital
272 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 42. 273 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 31. 274 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
31. 275 Celso Furtado condena as conclusões chegadas por Adam Smith sobre a suposta tendência natural do
homem pele comércio. Após sua exposição supra transcrita, complementa afirmando que “depois dessa
saída tão feliz, a análise de Smith baixa bruscamente de nível: afirma que a divisão do trabalho é
resultado da ‘propensão do homem para comerciar’ e que o tamanho do mercado limita a divisão do
trabalho. Caímos, assim, num círculo vicioso, pois o tamanho do mercado depende do nível de
produtividade, este última da divisão do trabalho, a qual por seu lado depende do tamanho do mercado”.
FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p. 31. 276 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 31.
89
resultaria, por sua vez, na demanda de trabalho e na sua oferta em longo prazo. O
aumento dos salários aumentaria o tamanho do mercado, facilitaria a divisão do trabalho
e resultaria no reinício do processo de crescimento277278.
O modelo apresentado não vê obstáculos e toma impulso na poupança e sua
transformação em investimentos279. Assim, em síntese, o processo de desenvolvimento
se relacionaria com uma preocupação com o que a doutrina chama de “estado
estacionário280”. Sendo necessário que se elevasse o bem-estar da sociedade antes que a
economia encontrasse este estado ao qual se caminhava progressivamente.
Oportunamente retornaremos ao cerne das ideias de Adam Smith e sua
importância para as modernas concepções de desenvolvimento. Entretanto, no presente
momento, foram observadas as ideias que precederam os estudos sobre o
desenvolvimento, bem como o marco teórico do surgimento da economia política e dos
estudos sobre o desenvolvimento na obra de Adam Smith.
É evidente que ao longo da evolução histórica da ciência econômica, vários
foram os teóricos e as teorias que se preocuparam com o ideário relacionado ao
desenvolvimento como objeto de estudo. Entretanto, dado o conceito aqui pretenso e o
objeto final do presente estudo, apenas nos interessa pontuar rapidamente os principais
expoentes neste sentido.
277 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 32. 278 Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer pontua que “a concepção clássica de desenvolvimento está
intimamente relacionada com o crescmento econômico. Assim, em tal perspectiva interessa
fundamentalmente a riqueza global gerada no país, sendo essencial a acumulação de capital por meio da
poupança interna e externa. Ademais, tal concepção preconiza um modelo único de desenvolvimento,
sustentando que os países têm que passar por determinados estágios para alcançar a condição de
desenvolvidos”. PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José
Rodrigo (org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo:
Saraiva, 2011. p. 17. 279 Mônica Sousa explicando Adam Smith, afirma que “importante contribuição de Smith para a teoria
econômica é a relevância atribuída pelo autor à divisão do trabalho, essencial para a promoção da riqueza
das nações e do bem-estar coletivo. A divisão do trabalho não decorre da sabedoria humana, mas sim de
uma característica essencial do homem, a propensão para a troca. Nesta divisão repousa a certeza do
progresso da sociedade. Em vez de contar apenas com suas habilidades pessoais, cada indivíduo pode
adquirir uma parcela de produção dos talentos de outros indivíduos, na medida de suas necessidades,e o
efeito material da divisão do trabalho é o aumento de produtividade. Quando se deseja algo, e para que se
possa obter o que se deseja, pode-se oferecer algo em troca. A diversidade da produção e dos ofícios
proporciona a distribuição de riqueza até as camadas mais baixas da população; a relação entre trabalho e
riqueza é muito estreita, pois uma vez que a riqueza nacional aumente, cresce também a procura por
trabalhadores”. SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora,
2011. p. 54-55. 280 Podendo ser compreendida como a situação em capital, população e produto param de crescer gerando
a queda de salários e taxas de lucro.
90
A doutrina, também, atribui certo destaque às teorias levantadas por David
Ricardo, economista da Escola Liberal Clássica, cuja obra sofrera profunda influência
da obra de Adam Smith, tendo sido seu principal discípulo.
Sua teoria complementa e aperfeiçoa o que estabelecera Smith. Ou seja, apesar
de também tratar a questão do desenvolvimento e da formação da riqueza nacional, não
se limita nestes tópicos e teoriza, também, sobre a questão de distribuição de riqueza
entre capitalistas, trabalhadores e proprietários de terras, além da determinação de leis
que tivessem por objetivo tutelar tal distribuição.
Com relação aos estudos sobre a questão do desenvolvimento em si, Mônica
Sousa afirma que Ricardo, tratando o desenvolvimento, em analogia ao conceito de
crescimento econômico, “[...] sustentava que este não poderia ser promovido apenas
pela agricultura, pois esta atividade era incapaz de, exclusivamente, prover alimentos
suficientemente baratos para os trabalhadores281”. Deste modo, defendia que a maior
concentração de renda deveria ocorrer nas mãos dos capitalistas, levando-se em
consideração que estes seriam responsáveis por aumentar a oferta de trabalho, gerando,
assim, crescimento econômico. Nos dizeres da professora, esta lógica se justificaria pois
“o aumento da capacidade de produção, que era gerado pelo acúmulo de renda dos
capitalistas, diminuiria constantemente o preço dos bens produzidos, aumentando-se,
assim a riqueza nacional282”.
Complementarmente, aqui se vale do que ensina Carolina Munhoz, afirma que
a grande preocupação de Ricardo seria a determinação de leis que tivessem por objetivo
regular a distribuição do produto entre as partes da relação econômica (capitalistas,
trabalhadores e proprietários de terras) na forma de renda, lucros e salário. Tal
distribuição, assim, “[...] dependeria principalmente da fertilidade do solo, da
acumulação de capital e do crescimento demográfico283”. Partia o economista do
pressuposto de que as proporções da produção seriam fixas e que a acumulação de
capital resultaria na contratação de trabalhadores, sendo o contrário também defeso.
Em síntese necessária, a doutrina clássica de David Ricardo284 sustenta que o
desenvolvimento ocorre em observância a dois aspectos essenciais. Sendo eles, a
281 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 69. 282 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 69. 283 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 33. 284 Cumpre trazer em termos técnicos econômicos, a explicação do economista Celso Furtado em análise
da obra de Ricardo. Afirma que “Ricardo, grande ideólogo da classe industrial inglesa, argumentava que a
renda da terra tendia a crescer toda vez que se utilizavam terras de inferior qualidade. Por outro lado,
91
divisão do trabalho e a busca e o respeito aos interesses individuais. Ambos convergem,
por fim, no interesse comum e no bem-estar da sociedade, tendo em vista que “[...] o
bom funcionamento do sistema econômico não depende da boa vontade, mas de
vantagens que o indivíduo espera obter com o seu trabalho285”.
Interessante afirmar que a obra de Ricardo influenciara profundamente o
Marxismo, ao mesmo tempo em que se mostrava como o economista preferido de
grandes liberais.
Sobre a relevância das obras de economia clássica para o desenvolvimento da
teoria marxista, Karl Marx em sua análise sobre a estrutura e crises do sistema
econômico, discutiu, também, a ideia do crescimento econômico capitalista e do seu
funcionamento. Figurando em polo contrário das doutrinas econômicas, “[...] o autor
entendia que a trajetória temporal de crescimento se dava com declínio da taxa de lucro
e com conflito distributivo286”.
Em sua teoria, a mercadoria passa a ser enxergada como um objeto útil para si
(valor de uso) e útil para outrem (valor de troca), e o trabalho passa a ser analisado
como uma mercadoria comprável. O trabalho é, em Marx, tão importante quanto se
apresenta na análise de Smith. Entretanto, ao passo que, para este, o trabalho era tido
como expressão máxima da liberdade e do interesse próprio. Para aquele é encarado
como mercadoria explorada no sistema capitalista287.
Carolina Munhoz ensina que a análise marxista se constrói tendo por base a
teoria do valor-trabalho, onde a quantidade de trabalho realizado para a produção de um
bem se constitui como a base para o seu valor de troca. Assim, ao mensurar-se o
trabalho como sendo um valor, toda a renda que não decorresse dele, seria condenável.
seguindo o ‘princípio de Malthus’, dizia que a população tendia a crescer sempre que o salário operário
subia de nível – como ocorria nos países de colonização recente – os salários eram altos e os lucros,
elevados. O ritmo de acumulação teria que ser grande e a renda do solo, baixa. Salários altos
significavam, entretanto, crecimento rápido da população e utilização de terras de qualidade inferior.
Crescendo o preço dos alimentos, aumentava o custo da mão de obra ao mesmo tempo que subia a renda
da terra. Dessa forma, a produtividade média da população ocupada tendia a baixar ao mesmo tempo que
a renda da terra se elevava. Os salários desciam ao nível de subsistência e os lucros tendiam a
desaparecer. Com esse modelo Ricardo estabelecia dois princípios de grande alcance prático. O primeiro
era que a elevação dos salários pressupunha uma acumulação de capital, não podendo ser feita com
sacrifício dos lucros dos empresários; o segundo era que a classe de proprietários de terras constituía um
peso social crescente, o qual só podia ser reduzido mediante uma política de livres impostações de
produtos agrícolas”. FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2009. p. 32. 285 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 70. 286 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 37. 287 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 71.
92
Pois consubstanciaria fruto da exploração da classe operária288. A este excedente restou
a denominação de mais valia.
A visão de Marx não se mostrava em nada otimista289. Entendia que o processo
de crescimento de uma economia capitalista só poderia ocorrer com o desemprego
decrescente dos trabalhadores, aliado, ainda, a concentração de renda e riqueza.
Condenava, ainda, o próprio processo de evolução tecnológica, sob a ótica de que este
fenômeno geraria maior evolução para o capital constante (representando o valor dos
meios de produção) e agravaria a situação dos trabalhadores em si.
Celso Furtado observa que Marx chega à conclusão, que embasa
filosoficamente sua obra, de que “[...] a produção dos meios de subsistência do homem
é um fato social do qual decorrem as relações de produção determinadas e necessárias e
que essas relações correspondem ao grau de desenvolvimento das forças produtivas290”.
Diante deste posicionamento, a teoria do autor se desenvolve no sentido de identificar as
relações de produção que se mostram como fundamentos do sistema capitalista e
determinar fatores que agem no sentido de desenvolvimento de tais forças produtivas,
em outras palavras, fatores que sejam utilizados para a superação deste sistema
econômico.
Entretanto, apesar dos esforços do teórico, e da confusão que possa causar a
análise do desenvolvimento das forças de produção em detrimento de uma efetiva teoria
do desenvolvimento, Furtado pondera que “[...] sua preocupação está voltada para a
busca da ‘lei que move o sistema capitalista’ e não propriamente para o
‘desenvolvimento’ de um sistema econômico291”.
288 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 37. 289 Afirma Carolina Munhoz, em sua abordagem sobre a teoria marxista que “evolução e crescimento
seriam então fenômenos de desequilíbrio, decorrentes do progresso técnico, que também produz
modificações nas relações de produção. O progresso técnico gera períodos de prosperidade, e as
contradições internas do modo de produção causam crises dentro do sistema capitalista, que são cada vez
mais longas, formando uma trajetória cíclica. As crises geram conflitos entre os agentes econômicos –
trabalhadores e capitalistas – que influenciam o desempenho futuro da economia. Dentro desse processo,
a procura por soluções para esses conflitos leva à modificação das estruturas sociais e econômicas. ‘O
caráter contraditório da expansão capitalista está na ampliação dos meios de produção, com a deterioração
simultânea do poder de compra dos trabalhadores’. E é justamente o aumento cada vez maior dessa
contradição que acarreta na dissolução dessa relação, o que implica que os meios de produção, segundo
Marx, tornem-se sociais, coletivos e gerais. Em outras palavras, a tendência do sistema é de se destruir no
longo prazo, dando origem à sociedade socialista.” MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre
Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora S.A., 2006. p. 40. 290 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
37. 291 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
45.
93
Assim, retorna-se ao ponto já trazido no presente estudo, da compreensão de
Marx que o desenvolvimento do sistema capitalista acabaria por levar,
automaticamente, à sua superação292.
Em contraposição à visão pessimista de Marx, os economistas da escola
neoclássica se apresentavam com uma visão deveras otimista do processo de condução
do sistema capitalista e, por conseguinte, do processo desenvolvimentista ancorado
neste regime.
Celso Furtado ensina que o enfoque neoclássico se frutificou como resultante
de esforços para contornar as dificuldades criadas pela teoria marxista, ao teorizar sobre
a relação valor-trabalho. Tendo sido, esta teoria, a bandeira levantada pelo movimento
socialista em sua batalha contra o sistema capitalista293.
Ensina o professor que a teoria do desenvolvimento passível de extração dentre
os pressupostos desta escola é de simples delimitação e síntese, seguindo a fórmula de
que o aumento da produtividade do trabalho é resultante da maior acumulação de
capital, sendo esta, por sua vez, relacionada com a dependência da “[...] taxa antecipada
de remuneração dos novos capitais e do preço de oferta da poupança294”. O acúmulo de
capital e o consequente aumento de salários apresenta a tendência de aumentar a
participação dos trabalhadores assalariados no produto e, por conseguinte, reduzir a taxa
de rentabilidade do capital. Como resultado da diminuição do “preço de procura” do
capital, “[...] haveria desestímulo à poupança e consequentemente redução no ritmo de
acumulação de capital295”. Assim, observa que o desenvolvimento na perspectiva dos
neoclássicos se subsume na ideia de afastamento do ponto ou da posição de equilíbrio,
sendo, este, apenas um instrumento de análise para tais teóricos.
O economista conclui sua abordagem sobre a referida escola, afirmando que o
pensamento neoclássico seria “maximizador”. Ou seja, o seu grande diferencial reside
292 Neste sentido, complementa Celso Furtado que “essa é uma tese filosófica, decorrente da conjunção
que faz Marx da dialética hegeliana com as doutrinas socialistas francesas, por ele absorvidas ainda em
sua juventude. Do grande esforço que fez Marx para fundamentar na análise econômica essa tese
filosófica, resultou a sua tese de acumulação capitalista. Parecia ter ele consciência de que era possível
formular uma teoria mais ampla do desenvolvimento econômico, mas limitou a sua atenção ao caso
específico do ‘movimento da sociedade capitalista’.” FURTADO, Celso. Desenvolvimento e
Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p. 45. 293 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
59. 294 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
62. 295 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
62.
94
nas ideias de que todos os agentes tendem a maximizar ou otimizar a posição em que se
encontram296.
Em continuidade à abordagem da escola neoclássica, Carolina Munhoz resume
que para os adeptos desta teoria o crescimento econômico, confundido com
desenvolvimento, “[...] geraria distribuição de equitativa para todos os agentes
econômicos segundo sua contribuição ao processo produtivo, e os frutos do progresso
técnico seriam distribuídos aos proprietários dos fatores de produção297”, segundo sua
produtividade.
Ainda, afirma que esta abordagem toma por base seis pressupostos teóricos
bem definidos, a saber: a concorrência perfeita e plena disponibilidade de emprego em
todos os mercados, a economia fechada e sem governo, a função de produção com
rendimentos constantes variando os fatores simultaneamente e rendimentos decrescentes
quando se altera apenas um fator, a economia produzindo um único bem (que engloba
fatores de capital fixo, trabalho e terra), e, por fim, a homogeneidade dos fatores,
passíveis de divisão e imperfeitamente substituíveis entre si298.
Observe-se que, em que pese o excessivo otimismo que marcava a doutrina
neoclássica, ainda permanecia, em seu corpo, a indistinção entre crescimento
econômico e desenvolvimento econômico. Nesta seara, se apresenta com especial
destaque (e enorme contribuição dentro da teoria neoclássica) a “Teoria do
Desenvolvimento Econômico” de Joseph Schumpeter.
Schumpeter, em sua obra, além de diferenciar o crescimento econômico do
efetivo processo desenvolvimentista299, pondera que o elemento essencial na busca do
desenvolvimento é a inovação300. Assim, a economia de um país seria marcada por
296 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
67. 297 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 35. 298 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 36. 299 “O Economista também se preocupa com o aspecto qualitativo, uma vez que entende que o
desenvolvimento não equivale apenas ao crescimento econômico decorrente do aumento da população e
da riqueza. Trata tais fenômenos como simples mudanças nos dados. Preocupa-se efetivamente com os
fenômenos qualitativamente novos, que realmente tragam mudanças. Assim, a inovação surge na teoria
schumpeteriana como um impulso interno capaz de propiciar ciclos que culminem em desenvolvimento, e
não mera mudança de dados (ou seja, aumento da população e da riqueza).” PFEIFFER, Roberto Augusto
Castellanos. Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). Fragmentos para um dicionário
crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 20. 300 Schumpeter afirmar que “entendermos por ‘desenvolvimento’, portanto, apenas as mudanças da vida
econômica que não lhe forem impostas de fora, mas que surjam de dentro, por sua própria iniciativa. Se
se concluir que não há tais mudanças emergindo na própria esfera econômica, e que o fenômeno que
chamamos de desenvolvimento econômico é na prática baseado no fato de que dos dados mudam e que a
95
ciclos diversos, variáveis entre intensa atividade e estagnação (este último resultaria em
“estado estacionário” da sociedade, onde oferta e demanda se equivaleriam). O processo
de desenvolvimento ocorreria com o surgimento de um processo de inovação, podendo
ser uma descoberta científica ou tecnológica, um novo processo produtivo ou
produto301.
A grande contribuição da teoria schumpeteriana reside na mudança de enfoque
na abordagem. Sua preocupação toma corpo na capacidade que o empresário tem de
transformar o processo produtivo302, sendo o empreendedor a principal força dos
processos de crescimento econômico e desenvolvimento.
Apesar de considerar as ponderações desenvolvimentistas schumpeterianas
como insatisfatórias na explicação deste processo303, Furtado memora que “observando
o processo econômico basicamente do lado da produção, Schumpeter encontrou-se em
magnífica posição para perceber a importância do progresso tecnológico como fator
dinâmico da economia capitalista304”. Sendo, conforme afirma, neste ponto que resulta a
tamanha atualidade desta teoria no campo econômico.
Sintetizando a teoria em comento, Carolina Munhoz assevera que a mesma se
dava de maneira cíclica, constituindo-se basicamente em quatro fases. Seriam a
economia se adapta continuamente a eles, então diríamos que não há nenhum desenvolvimento
econômico. Pretenderíamos com isso dizer que o desenvolvimento econômico não é um fenômeno a ser
explicado economicamente, mas que a economia em si mesma sem desenvolvimento, é arrastada pelas
mudanças do mundo à sua volta, e que as causas e portanto a explicação do desenvolvimento devem ser
procuradas fora do grupo de fatos que são descritos pela teoria econômica. Nem será designado aqui
como um processo de desenvolvimento o mero crescimento da economia, demonstrado pelo crescimento
da população e da riqueza. Pois isso não suscita nenhum fenômeno qualitativamente novo, mas apenas
processos de adaptação da mesma espécie que as mudanças nos dados naturais. Como desejamos dirigir
nossa atenção para outros fenômenos, consideraremos tais incrementos como mudanças de dados”.
SCHUMPETER, Joseph. A Teoria do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Abril cultural, 1982. p.
47. 301 PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.).
Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 19. 302 Roberto Pfeiffer afirma que “na teoria de Schumpeter há grande destaque para a figura do
empreendedor, ou seja, o agente econômico dotado de liderança e pioneirismo que, ao introduzir uma
inovação, perturba o equilíbrio do fluxo circular, sendo, assim, o motor do desenvolvimento econômico”.
PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.).
Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 19. 303 O renomado economista brasileiro assevera que “uma teoria do desenvolvimento deve ter por base
uma explicação do processo de acumulação de capital, Schumpeter criou dificuldades à percepção de
conjunto do problema. A teoria das inovações é de enorme importância mas conduz a equívoco pretender
formulá-la independente da teoria de acumulação de capital. Ora, o processo de acumulação de capital
não pode ser explicado mediante uma formulação puramente abstrata, pois está intimamente ligado ao
sistema de organização da produção, às formas de distribuição e utilização da renda, enfim, à estrutura
econômica.” FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto,
2009. p. 75-76. 304 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
70.
96
ascensão, quando o produto atinge seu nível máximo, a recessão, quando tem início o
declínio do nível de atividade (posterior ao pico), a depressão, representando a queda do
nível do produto até o seu ponto mínimo e, por fim, a recuperação, quando o processo
ascendente se reinicia, sendo, este último ponto, o processo de recuperação e
desenvolvimento da economia305.
Conforme já afirmado, a teoria de Joseph Schumpeter fornece à teoria do
desenvolvimento e à ciência econômica grandes contribuições ao atribuir valor ao
empreendedor. Assim, no processo de desenvolvimento se encontra um relevante
espaço para a inovação, o progresso tecnológico e a capacitação e treinamento da mão
de obra. O desenvolvimento mostra-se, aqui, como um processo alternante e cíclico, não
sendo permanente, mas motivado pelas próprias necessidades da economia quando se
encontrasse em seu ciclo de depressão.
Outra abordagem teórica de profundo valor para o estudo do desenvolvimento
fora realizada pelo economista John Maynard Keynes, este, contemporâneo de Joseph
Schumpeter.
O cenário histórico da Grande Depressão306, ocorrida na década de 1930, se
mostrou como o impulso necessário para a propagação da teoria Keynesiana em “A
teoria geral do emprego, do juro e da moeda”. Nesta obra, o economista delimita sua
teoria em sentido contrário ao laissez-faire pregado pela economia liberal clássica e
passa a defender uma intervenção do Estado visando conduzir a economia e o mercado.
Defendia que “[...] o Estado deveria regular a atividade econômica, complementando a
iniciativa privada na questão dos investimentos e suavizando as flutuações econômicas,
o que evitaria a estagnação em longo prazo307”.
Keynes focou sua obra em uma abordagem “[...] macroeconômica do pleno
emprego, nos fatores do crescimento do investimento e nos seus impactos sobre a renda
305 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 42. 306 Sobre este aspecto histórico, a professora Mônica Teresa Costa Sousa afirma que a teoria de Keynes
fora elaborada tendo como palco a Europa do primeiro pós-guerra, quando “os Estados davam mais
importância às indenizações pagas pelos vencidos que aos rumas da economia. As finanças públicas
estavam desarticuladas e o comércio foi fatalmente atingido pela guerra. O laissez-faire agonizava, e uma
intervenção do Estado parecia inevitável. Já agitado pelo confronto armado que mal acabara, o mundo se
depara com uma crise econômica sem precedentes, que inicialmente abala o mercado e a economia
americana, mas que se espalha por outros países. A Grande Depressão culmina com a quebra da Bolsa de
Valores de Nova York, em 1929, e de acordo com Keynes, houve uma superprodução geral da economia,
que fez com que as ações das empresas cotadas na bolsa apresentassem um valor nominal em relação à
realidade empresarial. Este aumento da produção ocasionou a tão conhecida “quebra da bolsa de valores”,
e, como quase sempre acontece, afetou os países mais pobres”. SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e
Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 73. 307 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 73.
97
e o emprego308”. O objetivo final de sua teoria consistia em descobrir as causas para os
câmbios no volume de emprego em dados momentos. Sendo tal análise relevante, pois
facilitaria a própria delimitação do nível de atividade na economia, tomando por base
que em curto prazo emprego e produção são conceitos estritamente vinculados309.
Sua proposta desenvolvimentista se sustentava na premissa de que caberia ao
Estado a função de regular a economia310, evitando a estagnação a longo prazo, ao
procurar suavizar as flutuações econômicas, complementando a iniciativa privada com
relação à investimentos.
Ato contínuo, em nossa percepção histórica das teorias desenvolvimentistas,
convém destacar os câmbios ocorridos no período posterior à segunda guerra mundial,
pontualmente nas décadas de 60 e 70, quando os países subdesenvolvidos passaram a
reivindicar, em um cenário amplo internacional, maior ajuda e colaboração dos países
desenvolvidos. A América latina se apresentava em uma realidade complexa, em
virtude de fatores diversos que afetavam diretamente a economia e o nível de
desenvolvimento dos países. Assim, os estudos econômicos mudaram o foco de suas
preocupações e passaram a pesquisar a origem e como se dava o subdesenvolvimento,
ao invés de se concentrar na abordagem causal do desenvolvimento.
Dentre estas correntes que estudavam o fenômeno do subdesenvolvimento,
podemos destacar os trabalhos da Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe, conhecida por CEPAL, órgão da Organização das Nações Unidas que tinha por
objetivo pesquisar e elaborar estudos sobre o crescimento e desenvolvimento da região.
O Professor Gilberto Bercovici ensina que para a CEPAL, o desenvolvimento e
as políticas para sua implementação devem ter por fundamento uma interpretação
autêntica e realística da América Latina, não podendo limitar-se à cópia de modelos
308 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 43. 309 Neste ponto, Celso Furtado afirma que “aqui encontra Keynes, uma das chaves para o problema do
desemprego: a diversidade entre os motivos que induzem a poupar e aqueles que levam a inverter.
Sempre que numa economia o impulso para inverter não seja suficientemente forte para absorver toda
poupança que se forma, haverá desemprego”. FURTADO, Celso. Desenvolvimento e
Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p. 78. 310 Neste ponto, interessante trazer complementação feita pela professora Carolina Munhoz. Afirma que
fora esta questão da intervenção estatal na economia que resultara na maior controvérsia à época, “[...]
pois defendia o autor que se o governo de um país deseja o pleno emprego, seria necessário promover o
investimento em negócios, principalmente através da redução da taxa de juros, ou então do encorajamento
do aumento de consumo, especialmente por meio de uma política de tributação destinada a melhorar a
distribuição de renda. Outra alternativa seria o governo, ele mesmo, tomar a iniciativa de grandes
despesas de investimento público, através, por exemplo, de grandes obras. Isso implicaria, bem
reconheceu o autor, numa ação governamental em escala e forma nunca antes vistas.” 310 MUNHOZ,
Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora
S.A., 2006. p. 44.
98
externos. Pontua, ainda, que o ideário cepalino de Estado como promotor do
desenvolvimento, realizado através do planejamento com grande destaque à integração
do mercado interno e à “[...]internalização dos centros de decisão econômica311”, além
do discurso de reformismo social, foram integralizados e incorporados pelos
desenvolvimentistas brasileiros312.
Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer observa que existem duas correntes na
tradição cepalina. A primeira, denominada de estruturalista313, defende a ideia de que as
estruturas influenciam o desenvolvimento, e este não se resumiria ao crescimento
econômico, mas, igualmente à distribuição de renda. A segunda corrente, por sua vez,
também enxerga o desenvolvimento de maneira conjunta e integrada, sob uma
perspectiva econômica e sociológica, observando a questão da dependência econômica
sob uma perspectiva de distinção entre países de centro e de periferia314.
Em retorno ao primeiro e mais difundido315 conceito, o estruturalismo, segundo
Bercovici, “[...] busca destacar a importância dos ‘parâmetros não-econômicos’, ou seja,
devem-se compreender as estruturas sociais para se entender o comportamento das
variáveis econômicas, especialmente nas economias subdesenvolvidas316”. Calixto
Salomão Filho pontua que para seus defensores seria impossível imaginar que uma
mesma teoria econômica, criada e aplicada na realidade de países desenvolvidos,
pudesse ser transposta para os países subdesenvolvidos. Inclusive, observa, o
311 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
48. 312 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
48. 313 Continua sua abordagem, afirmando que os defensores da corrente “[...]preconizam a modificação
estrutural da matriz econômica dos países subdesenvolvidos. Constatam, assim, que a maior parte de tais
países (em especial na América Latina) possuía uma estrutura econômica baseada na especialização em
exportação de matérias-primas (commodities) produzidas em latifúndios e uma estrutura social dominada
por uma pequena classe alta e diminuta classe média, com baixo nível de consumo. Defendem, desse
modo, mudanças que conduzam ao desenvolvimento ‘para dentro’, constituída principalmente pela
substituição das importações e internalização dos circuitos de reprodução e realização de valor”.
PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.).
Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 21. 314 “Tal vertente alude à noção de dependência e de subdesenvolvimento, que não seria apenas uma etapa,
mas um grau ou diferenciação do sistema produtivo. Defende, assim, a tese de que entre os países
desenvolvidos e os subdesenvolvidos não há uma ‘simples diferença na etapa ou estágio de sistema
produtivo, mas também de função ou posição dentro de uma mesma estrutura econômica internacional de
produção e distribuição’.” PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In
RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito e
desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 21. 315 Calixto Salomão Filho a chama de “grande marco do pensamento cepalino”. SALOMÃO FILHO,
Calixto. Regulação e Desenvolvimento. In SALOMÃO FILHO, Calixto (coord.). Regulação e
Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 34. 316 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
48.
99
subdesenvolvimento não seria uma fase do desenvolvimento, mas uma condição
determinada pelo próprio processo desenvolvimentista e industrial do sistema
capitalista317.
Em se tratando da proposta de política desenvolvimentista levantada pela
CEPAL, o professor Bercovici ensina que os estudos promovidos pela comissão, sob a
tutela de Raúl Prebisch, concluíram que o crescimento dos países latino-americanos
teria sido impulsionado pelo aumento persistente nas exportações. Entretanto, não
haveria mais a alternativa de a América Latina continuar crescendo com aumento de
exportações, o que resultou na defesa da industrialização como sendo o único meio para
os países se desenvolverem e aproveitarem as vantagens do progresso. Assim, caberia
ao Estado a condução do processo de industrialização sob a forma de política
desenvolvimentista318.
Em síntese conclusiva, Mônica Sousa afirma que o pensamento cepalino
relativo aos estudos referentes às políticas de promoção do desenvolvimento se resume
em quatro fases bem definidas temporalmente. Uma primeira fase, ocorrida nos anos
1950, quando existia um claro foco nas políticas de industrialização e substituição de
importações. Uma segunda fase ocorrida entre 1960 e 1970, com a proposta das
reformas estruturais que tivessem por objetivo o estímulo do processo de
industrialização. Um terceiro período, no início dos anos 1980, em que a comissão
estabelece o foco na “[...] problemática da divida externa e de sua superação, mediante
políticas de ajuste com promoção de crescimento econômico319”. E, por fim, um quarto
momento, em que a CEPAL direciona suas preocupações para questões referentes ao
comércio internacional e ao novo institucionalismo320, além do desenvolvimento
sustentável.
317 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimento. In SALOMÃO FILHO, Calixto
(coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 34. 318 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
50. 319 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 77. 320 Apesar de já abordado no capítulo anterior, cabe repisar os conceitos da nova economia institucional.
Neste sentido, tal escola “acentua a importância das instituições na promoção do desenvolvimento
econômico. A corrente questiona alguns dos postulados mais importantes da escola neoclássica. [...]
acentua a questão da racionalidade limitada. [...] destaca que os agentes econômicos enfrentam limitações
em sua capacidade de coletar e processar informações, sendo incapazes de antecipadamente prever e
estabelecer medidas corretivas para todo evento que possa ocorrer no curso das transações econômicas.
[...] também, acentua a importância dos custos de transação que são os recursos econômicos empregados
para planejar, adaptar e monitorar as interações entre os agentes econômicos”. PFEIFFER, Roberto
Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). Fragmentos para um
dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 21-22.
100
Parece unânime, entre os doutrinadores, a importância dos estudos feitos pela
CEPAL e sua relevância para a compreensão da América Latina dentro do cenário
econômico mundial321. Em que pese a compreensão defesa no presente trabalho, de que
tal abordagem já se encontra defasada e superada, conforme ver-se-á adiante.
Importa, ainda, trazermos algumas perspectivas apresentadas pela doutrina
brasileira sobre o fenômeno desenvolvimentista. Neste sentido, o Professor Gilberto
Bercovici, seguindo a tradição cepalina, compreende e defende a importância de uma
forte participação do Estado no processo desenvolvimentista. Afirma que o grande
entrave ao desenvolvimento no Brasil decorre da inefetividade do Direito estatal, “[...]
com o Estado bloqueado pelos interesses privados322”. Assim, em sua visão, seria
necessário um fortalecimento do Estado frente aos interesses privados visando uma
integração igualitária do povo na sociedade.
Defende, ainda, a necessidade de fortalecimento do Estado objetivando a
resistência ao que chama “efeitos perversos” da Globalização, através do controle dos
supostos desequilíbrios gerados por tal processo. Concluindo seu ponto de vista, ao
afirmar que “[...] a falta de integração social, econômica e política continua exigindo
uma atuação do Estado, inclusive para a conclusão do projeto de formação nacional,
ultrapassando a barreira do subdesenvolvimento323”.
O professor Fabio Nusdeo afirma que o processo de desenvolvimento pode ser
definido como sendo “[...] um processo no qual, permanentemente, a quantidade de
bens e serviços de que pode se utilizar uma dada comunidade cresce ao longo do tempo
em proporção superior ao seu incremento demográfico324”. Nusdeo distingue o
desenvolvimento econômico do crescimento econômico observando que, este último,
também se refere ao crescimento da disponibilidade de bens e serviços, entretanto, tal
321 “A principal peculiaridade do Estado latino-americano é, para a CEPAL, seu caráter periférico. O
capitalismo periférico, segundo Raúl Prebisch, é fundado na desigualdade, que tem sua origem na
apropriação doo excedente econômico pelos detentores da maior parte dos meios de produção. Sua
especificidade deve-se ao transplante de padrões de consumo, técnicas, ideologias, cultura e instituições
dos centros para uma estrutura social totalmente diferente. O caráter periférico do Estado latino-
americano implica, ainda, o fato de este Estado estar submetido a fatores ‘externos’ que afetam a sua
atuação, com a presença de importantes núcleos de poder internos cujas decisões estão orientadas para o
exterior. A tarefa do Estado latino-americano é, para a CEPAL, superar esta condição periférica”.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
52. 322 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
66. 323 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
66. 324 NUSDEO, Fabio. Desenvolvimento Econômico. In SALOMÃO FILHO, Calixto (coord.). Regulação
e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 16.
101
aumento não resulta em nenhuma mudança estrutural e qualitativa na economia. O
processo de crescimento seria apenas um surto ou um ciclo, enquanto o processo de
desenvolvimento prescinde de estabilidade para que possa ocorrer.
Em seus estudos sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento, Celso Furtado
observa que a mera análise econômica não se mostra suficiente para explicar o processo
de desenvolvimento, em que pese a relevância da mesma na identificação de
mecanismos do processo de desenvolvimento econômico. Estes mecanismos constituem
considerável parte de seus estudos325.
O renomado economista brasileiro afirma que o desenvolvimento econômico
toma por base e “[...] consiste na introdução de novas combinações de fatores de
produção que tendem a aumentar a produtividade do trabalho326”. Com o aumento da
produtividade, presume-se o aumento da renda real social (quantidade de bens e
serviços à disposição da população), que resulta, por sua vez, no aumento das
remunerações. Com tal aumento, por fim, há como resultado uma mudança na estrutura
de procura. Conclui o professor que “[...] no estudo do desenvolvimento econômico é,
portanto, de importância fundamental conhecer o mecanismo do aumento da
produtividade e a forma como reage a procura à elevação do nível de renda real327”.
Por sua vez, Calixto Salomão aponta que o desenvolvimento se mostra como
um processo de “autoconhecimento da sociedade”, superando as ideias de crescimento
ou de um agrupamento institucional que tivesse por objetivo resultados determinados.
No processo defeso pelo professor, a sociedade deve descobrir os valores
almejados aplicáveis ao campo econômico. Assim, nesta ótica, as sociedades
desenvolvidas seriam as que têm pleno conhecimento de suas preferências econômicas.
Tal posicionamento significa “[...] dar prevalência à discussão sobre as formas
específicas para cada sociedade de autoconhecimento e autodefinição das instituições e
valores mais apropriados ao seu desenvolvimento econômico-social328”. Destarte,
325 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
84. 326 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
86. 327 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.
86. 328 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimento. In SALOMÃO FILHO, Calixto
(coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 32.
102
Salomão denomina a ideia central de conhecimento econômico como “democracia
econômica”329.
Um ponto comum identificado nas doutrinas brasileiras sobre o
desenvolvimento pode ser o constante diálogo e forte influências com as concepções
cepalinas já estudadas. Aparece, como ponto comum defeso pelos doutrinadores, a ideia
de forte intervenção estatal e centralização das decisões econômicas sob a tutela do
Estado.
Em que pese as insistentes críticas aqui cabíveis ao excesso de Estado e de
centralização na economia. Tomemos por foco o ideal, também compartilhado entre os
doutrinadores aqui trazidos, de que o processo de desenvolvimento não pode se resumir
no crescimento econômico.
As perspectivas atuais em relação ao processo de desenvolvimento são amplas
em sua abordagem, de maneira à compreender o processo como uma conjugação de
fatores determinantes no meio econômico, social e político330.
Conforme bem pontua Roberto Pfeiffer, embasado por Bresser Pereira, o
desenvolvimento deve ser entendido como a conjugação e transformação dos fatores
supramencionados que, por sua vez, aumentam a qualidade e padrão de vida da
população. Devendo ser, ainda, “[...] sustentável e autônomo, caso contrário será um
mero surto de crescimento econômico, sem capacidade de se autoalimentar331”. As
teorias que se baseiam nesta concepção abrangente de desenvolvimento, tomam por
fulcro, necessariamente, a sociedade capitalista e exigem mobilidade social para que
possam se realizar.
O próprio professor Fabio Nusdeo, já tratado no presente tópico, afirma que as
políticas econômicas que visam o desenvolvimento devem se apresentar com alguns
objetivos distintos e componentes do desenvolvimento. Toma por exemplo “[...] a
329 Leonardo Figueiredo aponta a democracia econômica como sendo um princípio que, também, se
sintetiza na ideia de garantia da “participação ativa de todos os segmentos sociais da Nação na
propositura de suas políticas públicas de planejamento econômico, a saber, Poder Público, agentes
econômicos e consumidores, garantindo-se, na medida do possível, a harmonização de todos os interesses
envolvidos sem que haja preponderância de um sobre os demais”. FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu.
Lições de Direito Econômico. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 330 “O estado desenvolvido é marcado pela estrutura harmônica entre o padrão de modernização e a
proteção dos valores coletivos. Busca-se ao mesmo tempo o crescimento, com a liberdades das atividades
econômicas, desde que tal conviva com a proteção do consumidor, do meio ambiente, do trabalho, da
educação de todos etc.”. ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica: Um exame da
tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades
regionais. São Paulo: MP Editora, 2007. P. 69 331 PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.).
Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 23.
103
defesa da concorrência, das relações de consumo do meio ambiente, do emprego e da
estabilidade monetária332”. Devendo ser, tais objetivos, permanentemente perseguidos
pelas políticas econômicas desenvolvimentistas.
A apresentação das ideias desenvolvimentistas, conforme tratado no presente
item se mostra, na perspectiva deste estudo, como fundamental para a compreensão
factual de que não existe unanimidade quanto às questões do desenvolvimento, isto
posto abarcando desde o conceito até o ideário político sobre a sua busca.
Inclina-se, na presente pesquisa, à defesa de um modelo onde existe uma
menor, porém, mais pontual intervenção estatal na economia e na sociedade visando a
construção das bases desenvolvimentistas no sentido mais atual de desenvolvimento
como sendo um processo amplo, não restrito apenas aos caracteres econômicos.
Nesta seara, a defesa aqui proposta reside na teoria do economista Amartya
Sen, publicada em sua obra “Desenvolvimento como liberdade”. Em sua tese, o
economista entende que o desenvolvimento é um processo que ocorre em decorrência
da expansão de liberdades individuais, não se restringindo ao aspecto meramente
econômico. Assim, à sua importante contribuição é dedicado o próximo item.
4.3 A IDEIA DO DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE
Em Desenvolvimento como liberdade333, constatamos que o conceito chave no
processo de desenvolvimento se relaciona com a expansão das liberdades individuais334.
Ou seja, o indiano Amartya Sen rompe com a tradicional vinculação entre a ideia de
desenvolvimento como sendo o mero aumento de renda335, apegando-se a uma noção de
expansão das liberdades individuais que, a primeira vista, aparenta ser deveras abstrata e
imprecisa. Contudo mostra-se, ao longo de sua obra, factível e relevante, construindo
um verdadeiro tratado ideológico sobre o desenvolvimento.
332 NUSDEO, Fabio. Desenvolvimento Econômico. In SALOMÃO FILHO, Calixto (coord.). Regulação
e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 24. 333 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2009. 334 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2011. p. 87. 335 “A liberdade não pode produzir uma visão de desenvolvimento que se traduza prontamente em
alguma ‘fórmula’ simples de acumulação de capital, abertura de mercados, planejamento econômico
eficiente (embora cada uma dessas características específicas se insira no quadro mais amplo).” SEN,
Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 336.
104
Mônica Costa afirma que a teoria proposta pelo economista indiano se aparta
do assistencialismo estatal, elaborando uma proposta que a professora denomina pós-
liberal, onde o processo de desenvolvimento envolve “[...] ações combinadas de agentes
públicos e privados, voltadas para a capacitação do indivíduo e ampliação de suas
liberdades, que devem ser asseguradas e garantidas em seu grau máximo336”.
Na visão ora abordada, existe um entendimento de que a partir do momento em
que ocorre a supressão de determinadas limitações individuais, ou seja, um aumento da
liberdade individual, encontrar-se-á o cerne e ponto determinante para a promoção do
desenvolvimento. Este ponto central, a que Sen denomina de “princípio organizador”
constitui-se como uma constante busca e preocupação no processo de desenvolvimento
sob a ótica de aumento das liberdades337, aliada ao comprometimento social visando a
concretização dos mesmos338.
Nesta teoria, o individuo se apresenta como principal agente econômico e
político, bem como grande interessado na questão do desenvolvimento. Entretanto, faz-
se necessário que se utilize de políticas públicas e de redes de segurança financiadas
pelo próprio Estado, dotando, este, também de responsabilidade quanto à questão
desenvolvimentista339.
Observe-se que há, no abordado supra, uma diferença de grau de
intervencionismo em comparação à concepção cepalina. Enquanto os estudiosos do
CEPAL defendiam uma franca e ampla intervenção do Estado na economia, de maneira
à atuar como promotor do desenvolvimento. Aqui, temos uma intervenção pontual e
mínima, fruto de uma teoria manifestamente liberal.
Carolina Munhoz memora que, em que pese o fato de o enfoque da teoria em
comento divergir das visões restritivas do desenvolvimento, no sentido de identificação
336 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2011. p. 88. 337 Complementarmente, Roberto Pfeiffer assevera que “a avaliação do desenvolvimento deve ser feita
tomando em consideração o alargamento das liberdades, que se dá por meio da remoção de obstáculos
que limitam as escolhas e oportunidades de muitas pessoas, que procuram viver melhor e por mais tempo.
A eficácia do desenvolvimento depende, assim, da ação livre das pessoas.” PFEIFFER, Roberto Augusto
Castelllanos. Desenvolvimento. In Rodriguez, José Rodrigo (organizador). Fragmentos para um
dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. p.24. 338 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 336. 339 Sobre esta postura ideológica, Mônica Sousa classifica as ideias de Sen como sendo “uma proposta
pós-liberal de desenvolvimento”, afirmando que “o pós-liberalismo atribuído a Sen permite tanto a ênfase
na liberdade do acesso aos mercados e na exploração de recursos naturais capazes de promover o
desenvolvimento (daí a importância do sistema multilateral de comércio e das questões relacionadas ao
meio ambiente no processo de desenvolvimento) como na ampla participação social e política, sem deixar
de levar em consideração a necessidade de políticas públicas de caráter individual mínimo e
temporalmente limitadas, considerando os indivíduos como agentes capazes, não apenas como
recebedores passivos de benefícios públicos.” SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e
Desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2011. p. 89.
105
do desenvolvimento como o Produto Nacional Bruto (PNB) ou o aumento de rendas
pessoais, não significa que tais mensurações sejam irrelevantes, entretanto, são apenas
componentes do aspecto global do desenvolvimento340. O próprio Amartya Sen afirma
que “o desenvolvimento tem de estar relacionado, sobretudo com a melhora da vida que
levamos e das liberdades que desfrutamos341”, ultrapassando as visões técnicas
limitadas em números e estatísticas.
A liberdade é encarada, nesta perspectiva desenvolvimentista, em sua natureza
dúplice, ou seja, se apresenta com dois papéis: como sendo a principal finalidade e o
principal meio para a consecução do desenvolvimento. Denominados, também, como
“papel constitutivo” e “papel instrumental” do desenvolvimento.
A liberdade entendida em seu papel constitutivo se apresenta relacionada à
“[...] importância da liberdade substantiva no enriquecimento da vida humana342”.
Explicando o conceito, Sen afirma que as liberdades substantivas são aquelas
vinculadas a capacidades elementares (como, por exemplo, evitar privações como fome,
subnutrição e morte prematura). Nesta perspectiva, o desenvolvimento é o meio pelo
qual se expandem as liberdades humanas, devendo a avaliação se basear nessa
consideração. Acrescenta que “o processo de desenvolvimento, quando julgado pela
ampliação da liberdade humana, precisa incluir a eliminação da privação dessa
pessoa343”. Tais liberdades são, portanto, importantes em sua mera existência, sendo
desnecessário que sejam avaliadas em decorrência de sua contribuição relacionada à
outras características do desenvolvimento344.
Por sua vez, “o papel instrumental da liberdade concerne ao modo como
diferentes tipos de direitos, oportunidades e intitulamentos contribuem para a expansão
da liberdade humana em geral e, assim, para a promoção do desenvolvimento345”. Nesta
percepção, a liberdade é enxergada como meio de promoção do desenvolvimento.
Observa o economista que, para além da óbvia compreensão de que a expansão de
liberdades contribui para o processo desenvolvimentista, a verdadeira eficácia desta
perspectiva instrumental ocorre na inter-relação das diferentes liberdades entre si, ou
seja, “[...] um tipo de liberdade pode contribuir imensamente para promover liberdades
340 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 79-80. 341 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 29. 342 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 52. 343 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 53. 344 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 84. 345 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 54.
106
de outros tipos. Portanto, os dois papéis estão ligados por relações empíricas, que
associam um tipo de liberdade a outros346”.
A perspectiva da expansão das liberdades individuais, apresentada na obra,
considera particularmente como sendo cinco, as principais liberdades instrumentais na
promoção do desenvolvimento, sendo elas: as liberdades políticas, as facilidades
econômicas, as oportunidades sociais, a garantia de transparência e a segurança
protetora ou segurança social.
Trataremos pontualmente cada uma das liberdades elencadas, visando uma
breve e ampla compreensão prévia, objetivando adentrarmos na perspectiva buscada
neste estudo.
Em retorno à temática, as liberdades políticas são apresentadas, na teoria aqui
estudada, em seu sentido mais amplo. Observe-se que a vinculação da participação
política ao conceito de desenvolvimento se mostra em algumas outras teorias
desenvolvimentistas atuais com grande grau de relevância. Entretanto, a abordagem de
Sen consegue estabelecer com maior precisão esta função que as liberdades políticas
têm em relação ao desenvolvimento.
Nesta perspectiva, as liberdades políticas são encaradas como reflexo das
oportunidades que as pessoas têm de determinar os seus governantes e os princípios e
fundamentos que julguem importantes nesta determinação. Ainda, vincula-se com as
possibilidades de se fiscalizar e criticar as autoridades, ter liberdade de expressão
política, mídia sem censura, multiplicidade de partidos políticos, entre outros. Aqui,
incluem-se os direitos políticos em seu sentido democrático mais abrangente347.
A segunda liberdade instrumental apontada como fundamental ao processo de
desenvolvimento resta sintetizada na acepção de facilidades econômicas. Este conceito
se relaciona com as oportunidades e facilidades encontradas pelos indivíduos na
utilização de recursos econômicos com finalidade de consumo, produção ou troca.
Levando em consideração o fato de que “os intitulamentos econômicos que uma pessoa
tem dependerão dos seus recursos disponíveis, bem como das condições de troca, como
os preços relativos e o funcionamento dos mercados348”, Amartya Sen observa que o
processo de desenvolvimento econômico aumenta a renda e riqueza de um país de
346 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 54. 347 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 55. 348 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 55.
107
maneira que, como consequência, se reflete no aumento de intitulamentos349
econômicos da população.
As oportunidades sociais são, para o estudioso, o que a sociedade estabelece
como relevante em áreas que têm influência direta na liberdade substantiva do individuo
e na melhora de sua qualidade de vida, a exemplo de questões como saúde e educação.
Pondere-se que estas disposições, além de sua fundamentalidade à vida privada das
pessoas, se mostram de grande importância para uma maior e mais efetiva participação
dos cidadãos em questões econômicas e políticas, afinal, uma questão relacionada à
falta de educação formal, por exemplo, pode ser uma séria barreira para a compreensão
do processo econômico ou para a participação eficaz no processo político.
Em se tratando das garantias de transparência, quarta categoria apresentada
pelo teórico, afirma-se que carregam o significado da “[...] liberdade de lidar com os
outros sob garantias de dessegredo e clareza350”. Esta condição se dá tomando por base
uma perspectiva transacional em que as pessoas necessitam ter confiança ao estabelecer
relações. O papel instrumental desta liberdade, conforme afirma Sen, se mostra inibidor
de questões como corrupção, irresponsabilidade financeira e transações ilícitas.
Por último, o conceito de segurança protetora é reflexo da necessidade de que
seja proporcionada uma rede de segurança social à população, que venha impedir que
mudanças no modus operandi do sistema econômico resultem em drásticas mudanças
materiais e grandes privações afetem a vida da população. Segundo Sen, “a esfera da
segurança protetora inclui disposições institucionais fixas, como benefícios aos
desempregados e suplementos de renda regulamentares para os indigentes[...]351”, além
de outras medidas cabíveis em casos pontuais que acarretem grandes privações.
A base desta teoria desenvolvimentista consiste em colocar, efetivamente, a
liberdade como centro do processo de desenvolvimento.
349 O termo intitulamento é uma tradução do termo em inglês entitlement utilizado por Amartya Sem em
outra obra sua denominada “Hunger and Public action”. O termo se refere ao “[...]conjunto de pacotes
alternativos de bens que podem ser adquiridos mediante o uso dos vários canais legais de aquisição
facultados a essa pessoa. E uma economia de mercado com propriedade privada, o conjunto do
entitlement de uma pessoa é determinado pelo pacote original de bens que ela possui (denominado
‘dotação’) e pelos vários pacotes alternativos que ela pode adquirir, começando com cada dotação inicial,
por meio de comércio e produção (denominado seu ‘entitlement de troca’). Uma pessoa passa fome
quando seu entitlement não inclui, no conjunto [que é formado pelos pacotes alternativos de bens que ela
pode adquirir], nenhum pacote de bens que contenha uma quantidade adequada de alimento”. SEN,
Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 54. 350 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 56. 351 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 57.
108
Diferentemente dos pensamentos centrados na fundamentalidade do Estado
neste processo, na perspectiva da liberdade há uma crucial e fundamental necessidade
de participação das pessoas na delimitação e conformação do seu destino. Não se
quedando, apenas, como destinatárias finais de laboriosos programas de
desenvolvimento estabelecidos pelo Estado. Aqui, Estado e população se mostram
como pilares distintos e complementares na condução do processo de desenvolvimento.
Ponto de fundamental destaque na teoria ora abordada, reside nas questões
relativas à relação entre o interesse individual e o raciocínio socialmente responsável.
Melhor explicando, em sua teoria Amartya Sen, ao tratar a questão do individualismo,
“refuta a pretensão de que os seres humanos são totalmente movidos pelo auto-
interesse, pois apesar deste constituir uma motivação importante, é possível verificar a
existência de diversas ações diárias que refletem valores com componentes
sociais[...]352”. São tais valores que levam o individuo além do comportamento
meramente egoístico.
A importância desta percepção mencionada acima se relaciona ao conceito
clássico de capitalismo e à aplicabilidade da teoria no sistema. Ou seja, a noção
generalizada aborda o regime capitalista como sendo um sistema que se baseia
exclusivamente na ganância dos partícipes. Entretanto, é patente que para o
funcionamento da econômica capitalista, de maneira eficiente, exista um primoroso
sistema de valores e normas. Observe-se que, “[...] o funcionamento de mercados bem
sucedidos se deve não apenas ao fato das trocas serem permitidas, mas ainda à
existência de instituições solidariamente alicerçadas[...] 353”. Tais instituições, segundo
Carolina Munhoz em sua análise da obra, como a proteção eficaz de direitos
compactuados contratualmente e dos valores éticos presentes no comportamento das
partes, resulta, como exemplo, na negociação contratual sem que seja necessário o
constante litígio judicial visando o cumprimento do acordo. Neste sentido, “o
desenvolvimento e o uso da confiança na palavra e na promessa das partes envolvidas
podem ser um ingrediente importantíssimo para o êxito de um mercado354”.
352 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 90. 353 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 90. 354 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 299.
109
Amartya Sen, com inspiração nos teóricos liberais clássicos355, reconhece a
existência de uma esfera de valores no âmbito capitalista. Entretanto, pondera a
necessidade de certa relutância dado o excesso de otimismo em tais teorias, memorando
que “apesar de sua eficácia, a ética capitalista é, na verdade, muito limitada em alguns
aspectos, ligados particularmente a questões de desigualdade econômica, proteção
ambiental e necessidade de diferentes tipos de cooperação que atuem externamente ao
mercado356”. Observando que os grandes problemas enfrentados pelo sistema capitalista
na atualidade se relacionam com o excesso de desigualdades e o desenvolvimento da
noção de bens públicos.
Entretanto, ainda nesta seara, levando em conta a ideia de que o capitalismo se
mostrou exitoso na transformação do nível comum e geral de prosperidade econômica
sob a fundamentação de princípios e normas comportamentais que resultaram em
econômicas e eficazes transações de mercado, se mostra, pois, confiante na
compatibilidade de tal mecanismo com um vasto conjunto de valores que se integrem e
levem em consideração os problemas supra mencionados, indo “[...] além dos limites do
mecanismo de mercado puro357”. Na visão defesa, é de suma importância o
reconhecimento da compatibilidade do mecanismo de mercado e de uma vasta gama de
valores que se complementam e ultrapassam as bases institucionais do mercado puro.
Podemos concluir que o desenvolvimento, na ótica da liberdade, constitui um
processo de transformação da sociedade em que o indivíduo desempenha uma função
primordial. É através dele que são modificadas as estruturas existentes e proporcionadas
as mudanças que ultrapassam a produção econômica, refletindo, também, nas questões
políticas e sociais. Com a expansão da capacidade das pessoas, sendo a liberdade aqui
entendida em sua perspectiva instrumental, para que ocorra essa expansão e ausência de
privações, é promovido o processo de desenvolvimento, onde a liberdade aqui resultante
se mostra em seu conceito constitutivo.
355 Neste sentido Mônica Costa destaca uma profunda influência de Adam Smith na obra do economista
Indiano: “A sociedade de mercado prescrita por Adam Smith garantiria a opulência da nação, é fato. Mas
muitos conceitos tangentes precisam ser trabalhados e implementados para que essa sociedade promova o
bem-estar comum a partir da divisão do trabalho e do comércio. Uma coesa organização da sociedade
civil, instituições públicas sólidas e confiáveis, um Estado forte, mas não autoritário ou centralizador,
garantidor de direitos individuais e de participação social, um eficiente e independente sistema judiciário
e uma forte base ética comportamental seriam as condições mínimas para o que se pode conceber como
desenvolvimento para Adam Smith. Com a leitura dos textos de Amartya Sen, percebe-se que é nítida a
influência das ideias de Smith sobre o economista indiano”. SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e
Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 85. 356 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 299. 357 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 303.
110
Nesta perspectiva de liberdades instrumentais, no presente tópico foram
abordadas as cinco principais liberdades estudadas por Sen. Observe-se, entretanto, que
seu estudo não se resume à abordagem pontual de cada uma. Sendo, também,
fundamental, a compreensão conjugada entre as mesmas, sob uma ótica de cooperação
para o desenvolvimento uma das outras. Eis que é esta ideia que será abordada no tópico
vindouro.
111
5. RELAÇÃO ENTRE AS LIBERDADES DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E
FACILIDADES ECONÔMICAS COMO INSTRUMENTO PARA O
DESENVOLVIMENTO
5.1 DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E DESENVOLVIMENTO COMO
LIBERDADE DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA.
Diante do exposto no capítulo pretérito, a presente abordagem tem
continuidade tomando por fundamento o ideário apresentado por Amartya Sen em
desenvolvimento como liberdade.
Partindo da ideia de expansão de liberdades instrumentais como meio para a
consecução do desenvolvimento, neste momento abordar-se-á a questão da liberdade de
participação política, a importância da democracia e sua relevância para o
desenvolvimento, conforme preconizado pelo economista indiano.
O papel que a ordem jurídica em sua dimensão macro é, sem dúvidas, de
grande valia e relevância na busca pelo direito ao desenvolvimento. Sendo aqui defeso,
que a ordem jurídica tem como objetivo principal a promoção do desenvolvimento na
perspectiva da liberdade. Em outras palavras, como direito que será pretendido e
buscado em decorrência da “[...] existência de liberdades reais e instrumentais que
possibilitam se chegar ao patamar desenvolvimentista de uma sociedade, seja ela
baseada em uma localidade, em um Estado, ou mesmo a sociedade internacional358”.
É necessário compreender a importância que a construção da ordem jurídica,
através de um processo resultante do diálogo com os anseios da população, nos moldes
democráticos, tem nesta perspectiva teórico-desenvolvimentista. A liberdade política
constitui, assim, um dos núcleos do regime democrático, a base da legitimidade do
poder conferido ao Estado359.
Em sua análise pontual e específica nessa seara, Sen parte de uma constatação
importante para a defesa feita neste estudo. Afirma que “não é difícil pensar que
concentrar-se na democracia e na liberdade política é um luxo que um país pobre ‘não
358 OLIVEIRA, Diogo. MENDONÇA, Fabiano. XAVIER, Yanko. A governança pública e o Estado
regulador brasileiro na efetivação do direito fundamental ao desenvolvimento. In MENDONÇA,
Fabiano. FRANÇA, Vladimir. XAVIER, Yanko (Org.). Regulação econômica e proteção dos direitos
humanos: Um enfoque sob a óptica do direito econômico. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer,
2008. p. 77. 359 DUARTE JR, Ricardo. Agência Reguladora, Poder Normativo e Democracia Participativa: Uma
questão de legitimidade. Curitiba: Juruá, 2014. p. 209.
112
pode se dar’.360”. Em outras palavras, em países subdesenvolvidos, a democracia é algo
facilmente relegado ao segundo plano de preocupações, afinal as privações relacionadas
diretamente a questões econômicas se mostram aparentemente mais urgentes em ser
lidadas361. Esta percepção foi defendida por vários países em desenvolvimento
fundando-se na retórica de que é mais válido eliminar a pobreza e a miséria, do que
garantir liberdades políticas e direitos civis aos cidadãos, afinal, estes são enxergados
como de pouca utilidade à população mais pobre.
Ponderável, pois, ser temerária a posição defesa pelos países em
desenvolvimento, conforme acima transcrito. A abordagem necessária para a
compreensão de quais são as verdadeiras necessidades econômicas de uma população
deve ser feita levando em consideração a liberdade política que a população venha a ter
para expressar suas necessidades. Tal entendimento envolve a observação de “[...]
amplas inter-relações entre as liberdades políticas e satisfação de necessidades
econômicas362”.
Amartya Sen observa que a intensidade das necessidades econômicas, em
verdade, majora a urgência da ampliação das liberdades políticas. Observando a questão
da relevância da urgente expansão de liberdades políticas e direitos civis sobre três
aspectos distintos. Sendo, a importância direta dos reflexos na vida humana (aqui se tem
uma relação com a capacidade básica de participação política e social), o “[...] papel
instrumental de aumentar o grau que as pessoas são ouvidas quando expressam e
defendem suas reivindicações de atenção política363”. E, por fim, o papel construtivo ao
conceituar as necessidades (a ideia, neste ponto, se vincula à compreensão de quais
sejam as necessidades econômicas em questão)364.
360 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 174. 361 Nos interessa trazer a abordagem feita pelo Economista, afirmando que “concepções como essas são
apresentadas com muita frequência em debates internacionais. Por que se preocupar com a sutileza das
liberdades políticas diante da esmagadora brutalidade das necessidades econômicas intensas? Essa
questão, bem como outras afins que refletem dúvidas quanto à urgência da liberdade política e direitos
civis, tomou vulto na conferência de Viena sobre direitos humanos, realizada em meados de 1993, e
delegados de vários países argumentaram contra a aprovação geral de direitos políticos e civis básicos em
todo planeta, particularmente no Terceiro Mundo. Em vez disso, afirmou-se, o enfoque teria de ser sobre
‘direitos econômicos’ relacionados a importantes necessidades materiais”. SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 174. 362 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 175. 363 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 175. 364 Conforme assevera Ricardo Duarte em seu estudo sobre a obra: “A democracia em seu sentido
formal/procedimental consistiria nas liberdades políticas (instrumentais), enquando a no sentido material,
nas liberdades substantivas”. DUARTE JR, Ricardo. Agência Reguladora, Poder Normativo e
Democracia Participativa: Uma questão de legitimidade. Curitiba: Juruá, 2014. p. 209.
113
Observe-se que, apesar da afirmação feita no início do parágrafo anterior, o
regime democrático não pode ser encarado como um antídoto automático. As
oportunidades conferidas pela liberdade política precisam ser devidamente aproveitadas
e de maneira positiva para que o efeito almejado, qual seja, o desenvolvimento, seja
efetivamente alcançado. Carolina Munhoz, ponderando, em Sen, a dependência em
relação ao modo como tal liberdade é exercida, afirma que “seu uso é condicionado
pelos valores e prioridades dos indivíduos, assim como pelo uso que é feito das
oportunidades de articulação e participação disponíveis365”.
Nos países desenvolvidos, entre os argumentos contrários à proposta de um
avanço desenvolvimentista em que se observe de imediato, também, as liberdades
políticas e os direitos civis, são apontados por Sen em três direções distintas. Em um
primeiro entendimento, a liberdade de participação política e a ampla garantia de
direitos tolhem o crescimento e o desenvolvimento econômico. Um segundo
entendimento tenta demonstrar que se fosse facultado às pessoas em condição de
pobreza escolher entre a democracia e a satisfação de suas necessidades econômicas,
escolheriam a segunda opção. “Assim, por esse raciocínio, existe uma contradição entre
a prática da democracia e a sua justificação: a opinião da maioria tenderia a rejeitar a
democracia – dada essa escolha366”. Por último, o terceiro pensamento consiste no fato
de que o enfoque democrático, ou seja, a valorização excessiva das liberdades políticas
e direitos civis seria uma prioridade particular do mundo ocidental, contrariando os
valores e práticas asiáticos que, em tese, seriam voltados com maior enfoque para
questões de ordem e disciplina, em detrimento de liberdades substantivas propriamente
ditas.
Partindo dos argumentos apontados como sendo os comumente encontrados
em sentido contrário à expansão das liberdades políticas, o economista indiano observa
que, em se tratando do argumento da suposta incompatibilidade entre liberdade política
e crescimento ou desenvolvimento econômico, há poucas evidências no sentido de que
governos autoritários em que há supressão de direitos civis sejam verdadeiramente
efetivos na promoção do maior crescimento econômico. Em verdade, inexistem maiores
estudos empíricos que venham a se mostrar complementares no debate.
365 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 89. 366 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 176.
114
Entretanto, na visão aqui abordada, o processo se mostra complexo e
conjugado, ou seja, levando em consideração o fato de que “[...] existe agora um
razoável consenso quanto a uma lista geral de ‘políticas úteis’[...]367” no processo de
crescimento econômico. Entre estas, memoramos a abertura à concorrência, a utilização
dos mercados internacionais, o aumento do nível de alfabetização e educação formal
escolar, entre outros. O que é interessante, pois, nestes dados, é que nenhum se mostra
como de fundamental necessidade de manutenção por um regime autoritário, sendo
todos perfeitamente compatíveis com o sistema democrático. Ainda nesta discussão, é
fundamental lembrar-se do “[...] impacto da democracia e das liberdades políticas sobre
a vida e as capacidades do cidadão368”.
Nesta seara, Mônica Costa em seus estudos sobre a teoria aqui analisada,
complementa observando que “a centralização política é temerosa tanto porque nega aos
interessados imediatos a possibilidade de discutir suas necessidades reais, e assim
permitir que privações mais imediatas sejam superadas369”.
Ou seja, se o povo detém liberdade política de maneira à pressionar os
governos visando reivindicar questões que julguem necessárias, a resposta será
consideravelmente mais célere. Trata-se aqui do papel instrumental da liberdade
política.
Conforme observou Ricardo Duarte em seus estudos, a grande novidade trazida
por Amartya Sen em sua análise valorativa sobre as liberdades políticas se deu ao
enxergar a democracia em um conceito micro, pautado na individualidade presente na
liberdade necessária a qualquer pessoa para participar da vida política da sociedade em
que se encontra. Esta proposta, se afasta, então, do ideário que tem a democracia em sua
percepção macro, enxergando o povo como um ser uno e representado pelo conjunto da
sociedade370.
No capítulo anterior já fora abordado o conceito de liberdade instrumental e
fora feita uma rápida explicação sobre como se enquadravam as liberdades políticas
dentro deste rol de liberdades instrumentais. Repisemos, pois, a questão em comento.
Neste norte, importa memorarmos o fato de que as liberdades políticas são
valoradas com razão pela sociedade. Conforme afirma Sen, como criaturas sociais que
367 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 177. 368 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 178. 369 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 99. 370 DUARTE JR, Ricardo. Agência Reguladora, Poder Normativo e Democracia Participativa: Uma
questão de legitimidade. Curitiba: Juruá, 2014. p. 209-210.
115
somos, é perfeitamente aceitável que as pessoas “[...] valorizem a participação irrestrita
em atividades políticas e sociais371”. Outrossim, a devida formação e construção dos
valores individuais resulta de um processo comunicativo e de diálogo aberto e
constante, tendo as liberdades políticas função central no desenvolvimento deste
processo.
É, no ponto em questão, que Amartya Sen utiliza um de seus argumentos
famosos na defesa da referida liberdade instrumental. Sapientemente assegura que “[...]
nenhuma fome coletiva substancial jamais ocorreu em nenhum país independente com
uma forma democrática de governo e uma impressa relativamente livre372”.
Passando à abordagem sobre o papel construtivo da liberdade política, ou seja,
o papel finalista desta, retornamos ao argumento já trazido neste estudo, ou seja, tem-se
que as pressões naturais do modelo democrático resultem em respostas à questões
relativas à necessidades econômicas de maneira mais ágil, além da própria definição do
que venham a ser tais necessidades373. Assim, “os direitos políticos incluindo a
liberdade de expressão e discussão, são não apenas centrais na indução de respostas
sociais a necessidades econômicas, mas também centrais para a conceituação das
próprias [...]374”.
A presente exposição, tomando por base o ideário proposto na obra
desenvolvimento como liberdade, traz a noção de expansão das liberdades políticas
como instrumental do desenvolvimento. Entretanto, o conceito aqui abordado de
liberdades políticas abarca, além da própria ideia de participação popular democrática,
se relaciona, também, com direitos políticos e civis relativos à questão democrática.
Neste sentido, em direcionamento à delimitação temática proposta e
devidamente embasada, encaremos, pois, a ideia de liberdades políticas sob o enfoque
restrito na democracia participativa e sua expansão como instrumental do processo de
desenvolvimento.
371 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 179. 372 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 180. 373 Mônica Costa afirma que “as necessidades econômicas e a superação das privações fomentam a
importância da liberdade de participação política e da democracia. [...] A democracia é essencial, mas
assim como os mercados, por si só não supera problemas tangenciais ao processo de desenvolvimento. Os
sistemas democráticos ainda que mais favoráveis a este processo que os regimes totalitários, são
condicionados por valores e pelo uso das oportunidades disponíveis. É justamente neste ponto que se
tornam importantes as garantias de transparência como liberdades inerentes ao processo de
desenvolvimento”. SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora,
2011. p. 100. 374 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 181-
182.
116
Não deixando de mencionar a observação feita por Amartya Sen de que
“´[...]as liberdades políticas e as liberdades formais são vantagens permissivas, cuja
eficácia depende do modo como são exercidas375”, é preciso que a análise seja feita
pontualmente em uma abordagem da prática democrática. Ainda, levando em
consideração e seguindo a compreensão de que a democracia é uma relevante criadora
de oportunidades.
Conforme já fora tratado no presente trabalho, há uma patente crise no modelo
democrático de representação adotado no Estado brasileiro. Se mostrando cada vez mais
necessária uma abertura democrática voltada e direcionada para a participação popular.
O princípio democrático, entendido em sua relação com a organização da
titularidade e exercício do poder estatal, prescinde da existência de mecanismos que
possibilitem que os indivíduos exerçam suas liberdades políticas, participando dos
processos de decisão, controlando-os, legitimando, em suma, o poder político. Assim,
“a democracia consiste em um processo dinâmico, inerente a uma sociedade aberta e
ativa, a qual permite ao detentor do poder a possibilidade de desenvolvimento integral
liberdade de participação crítica no processo político, condições de igualdade [...]376”,
sendo tal igualdade expandida para questões de natureza econômica, política e social.
Valemos-nos, por fim, do que afirma o Professor Artur Cortez, este modelo de
Estado é um modelo de inclusão e justiça em que se faz necessária a participação ativa
dos órgãos dos poderes constituídos na condução de uma renovação cultural através
dessa ação estatal, modificando as bases sociais através da educação, no sentido aqui
proposto, conforme se verá, uma educação econômica377.
É, neste sentido, que a compreensão aqui trazida toma por enfoque a expansão
das liberdades políticas em analogia com o modelo de democracia participativa. Ou
seja, partindo da utilização de instrumentos constitucionalmente previstos para a
participação direta no governo, além da participação política facultada nos mais
diversos órgãos da administração. Defende-se, como instrumento do desenvolvimento, a
efetivação do direito à participação política através de um modelo de democracia
participativa, onde o cidadão encontra espaço para reivindicar interesses individuais,
coletivos e/ou difusos.
375 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 182. 376 DUARTE JR, Ricardo. Agência Reguladora, Poder Normativo e Democracia Participativa: Uma
questão de legitimidade. Curitiba: Juruá, 2014. p. 210. 377 BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito Constitucional Internacional e a proteção dos direitos
fundamentais. São Paulo: Método, 2008. p. 172.
117
Em nossa curta vivência e experiência com tal abertura política, tal espaço se
vê aberto, através dos variados mecanismos existentes e previstos no ordenamento
jurídico378. Em que pese a pouca difusão e efetiva participação, não podemos olvidar a
previsão de instrumentos como os orçamentos participativos, as audiências públicas,
consultas públicas, iniciativa popular na proposição de leis, referendos e plebiscitos. Os
instrumentos mais conhecidos e utilizados neste modelo, onde sua efetivação ocorre por
diversos meios perante a administração pública (com especial relevo nas agências
reguladoras) e o poder legislativo.
A presente análise é desenvolvida no sentido de que “a liberdade política é
auxiliar na realização de outras liberdades, como a possibilidade de acesso aos
mercados379”. Sendo, também, como já dito, fundamental na compreensão de quais as
necessidades econômicas sentidas pela população visando o desenvolvimento de
políticas públicas e a condução do aparato estatal com fulcro em uma realidade sentida e
comunicada.
Visando compreender a crucial inter-relação entre a democracia participativa e
as liberdades e facilidades econômicas como instrumental ao desenvolvimento, será
feita uma análise, também, da importância dos mercados e de sua proteção para o
processo em comento.
5.2 FACILIDADES ECONÔMICAS, TUTELA DA CONCORRÊNCIA E
DESENVOLVIMENTO.
378 Se mostram com profunda relevância as considerações da professora Daniella Maria dos Santos Dias
ao afirmar que: “Em âmbito interno, como forma de enfrentar os fenômenos econômicos e políticos
produzidos pela globalização, o Estado precisa redimensionar seus fins e suas instituições jurídico-
políticas, assim como resgatar o sentido da política, da democracia e da cidadania. A necessidade de
novas instituições e de novas organizações em âmbito nacional que possam abordar e solucionar as
problemáticas presentes é pauta obrigatória para o enfrentamento desta crise paradigmática por que passa
o Estado Democrático de Direito haja vista a insuficiência dos modelos organizativos e de suas
instituições para solucionar os problemas da atualidade. [...] O redimensionamento das funções estatais
depende de mudanças paradigmáticas a se consolidar sob uma nova cultura jurídica, uma nova forma de
perceber, de compreender, de interpretar e de solucionar os problemas em âmbito estatal. A crise da
democracia deve ser enfrentada com mais democracia!”. DIAS, Daniella Maria dos Santos. Democracia
e Desenvolvimento Sustentável. In: XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte:
Fundação Boiteux, 2007. Disponível
em:<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/daniella_maria_dos_santos_dias.pdf>. Acesso
em: 5 jan. 2014. p. 1469. 379 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 99.
118
Neste ponto, analisaremos com maior profundidade o desenvolvimento sob a
perspectiva da expansão das liberdades e facilidades econômicas. Repisemos, pois, este
conceito.
Ao tratar a ideia de facilidades econômicas, Amartya Sen se refere às
oportunidades e possibilidades que um indivíduo tem de participar efetivamente do
mercado, se utilizando de recursos econômicos com propósitos de consumo, produção e
troca. Tem-se, aqui, um conceito amplo referente às múltiplas possibilidades que um
cidadão tem (ou deveria ter) de participar efetivamente do mercado, seja como
consumidor, seja como produtor interessado.
Endossando a afirmativa anterior, cumpre memorar, com base nas
considerações já feitas no capítulo pretérito, que é justamente no ideário clássico sobre a
liberdade de troca e transação como liberdade fundamental e de relevante valorização
por parte das pessoas, que restam propostas, pela primeira vez, as ideias relativas à
relação entre a contribuição do mecanismo de mercado e sua importância para o
crescimento econômico380.
Quanto à inafastabilidade do ideário econômico clássico na presente análise,
Sen afirma com muita propriedade que “a necessidade de um exame crítico dos
preconceitos e atitudes político-econômicas tradicionais nunca foi tão grande381”.
Pondera com sensibilidade que, na atualidade, existem grandes preconceitos com
relação às teorias, como, por exemplo, a mal vista questão do mercado puro. Sugere que
tais pensamentos pré-concebidos devem ser devidamente investigados, ponderados, e
parcialmente rejeitados, se incoerentes os argumentos. A proposta aqui desenvolvida,
não se presta em reviver os mesmos erros percebidos no passado, mas, sim, apresenta-se
com o enfoque de aproveitar o melhor em cada abordagem e se utilizar de tais méritos.
380 De maneira complementar, é necessário trazer as ponderações do Professor Otacílio dos Santos
Silveira Neto sobre o marco teórico em comento, observando que “são inegáveis as conquistas da
economia mundial advindas do liberalismo econômico. Não há registro de outro período econômico tão
inovador e de tamanha expansão da economia mundial quanto o período liberal. As bases da economia
que temos nos dias atuais, tanto no Brasil, como no restante do mundo, foram moldadas a partir das
concepções liberais do século XIX. Aliás, mudanças significativas na sociedade como o acesso das
pessoas aos bens de consumo de massa (as chamadas sociedades de consumo), o surgimento dos
automóveis, o crédito financeiro, as conquistas da medicina, como a vacina, a descoberta da luz elétrica,
do avião, as grandes invenções da química, tudo isso foi conquistado dentro do período do liberalismo. A
própria Revolução Francesa, por sinal, que é um dos marcos do Estado democrático moderno e que
influenciou profundamente inúmeras outras constituições ao redor do mundo, tem seu nascedouro junto
com o período liberal”. SILVEIRA NETO. Otacílio dos Santos. A instrumentalidade da atividade
financeira do Estado como indutora do desenvolvimento econômico: O papel dos incentivos fiscais
na promoção da livre concorrência e da livre iniciativa. In Revista de Direito Público da Economia
– RDPE. Belo Horizonte, ano 11, n.41, jan. / mar. 2013. p. 127. 381 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 136.
119
Em se tratando da presente abordagem sobre a questão do mecanismo de
mercado, Mônica Sousa afirma que “quando há a opção estatal pelo mercado, por si só
há a opção pela liberdade, pois um dos primeiros desdobramentos da liberdade é no
campo econômico382”. Então, o argumento mais imediato em favor da liberdade de
mercado se relaciona com a própria fundamentação teórica deste conceito. Contudo, a
experiência histórica ensina que tal princípio não pode ser desmedido, havendo uma
necessidade de preservação de condições de equidade, ou seja, no sentido de assegurar a
igualdade de oportunidades de participação neste mercado.
Compreendendo a multiplicidade dos fatores envolvidos e a relevância das
facilidades econômicas (no conceito trazido por Amartya Sen) em relação ao processo
de desenvolvimento, aliada, também, à necessidade de uma delimitação temática
visando a boa condução dos estudos aqui desenvolvidos, optou-se por um enfoque na
questão da expansão da liberdade de concorrência, através do seu controle e
manutenção, como um marco teórico desenvolvimentista. Sendo, por evidente,
precedido e sempre abordado juntamente com a questão, intrinsecamente vinculada, da
liberdade de mercado em sentido amplo.
É válido ponderar, de início, que apesar da tão grande importância do acesso e
participação nos mercados, considerável parte da população enfrenta sérias privações
relacionadas à efetiva vivência orientada ao mercado, vivendo inteiramente a margem
das sociedades direcionadas neste sentido e, por consequência, não participando do
processo de desenvolvimento. O que justifica, pois, a defesa das políticas públicas aqui
propostas, conforme ver-se-á adiante.
Quanto à relevância dos mercados, deve ser dado o devido reconhecimento ao
fato de que a mera liberdade de transação já se mostra com importância fundamental no
processo desenvolvimentista, independente dos resultados que venha a produzir.
Não afastando, por óbvio, a análise de quais são as consequências desta
participação. Sen sugere que a abordagem deve ser feita de maneira integrada,
considerando ambas as situações de grande importância nesta compreensão. Ou seja,
tanto a liberdade de participação em seu sentido instrumental, quanto o necessário
exame das consequências da participação efetiva no mercado, sendo, ambas,
importantes para a análise do direito concorrencial com vistas ao desenvolvimento.
382 SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 96.
120
Não é desnecessário memorar que quando é feita uma análise de mercado,
busca-se compreender suas formas reais, ou seja, as possíveis imperfeições e
circunstancias fáticas que o conduzem, em uma tentativa de entender as influências que
possibilitem efetivamente ou possam impor limitações aos seus próprios mecanismos383.
Assim, diante do exposto, a liberdade de mercado conjuga a liberdade de
acesso ou iniciativa juntamente com a liberdade de permanecer nestes e atuar em regime
de concorrência. Ora, se inexiste facilidade econômica de ingresso no mercado ou se a
livre iniciativa não vem acompanhada de um mínimo de segurança contra atitudes
desleais e anticompetitivas, haveria apenas um fértil terreno para condutas que
proporcionassem o retrocesso em termos de desenvolvimento.
É importante frisar que o presente trabalho não aparta e nem se afasta da
importância e eficiência que os mercados mostram na promoção do crescimento
econômico, entretanto, com vistas ao equilíbrio econômico e social clamado pelos
Estados modernos, existe a necessidade de uma ação interventiva do poder estatal no
domínio econômico, visando promover a melhor distribuição das benesses da produção
entre os partícipes deste sistema384.
Aqui, toma-se como base o fato de que a análise de mercado não depende
apenas do que eles podem fazer para beneficiar a vida dos indivíduos que dele se
valham, mas, também, do que é facultado e permitido que se faça dentro desta estrutura,
e sua importância ao desenvolvimento.
Daí, então, é compreendida a necessidade da intervenção estatal no âmbito do
mercado como propulsora deste processo. Cumprindo observar que dificilmente um
processo desenvolvimentista pode abdicar da realidade do livre mercado, entretanto, a
bem da boa condução da coisa pública, percebe-se a patente necessidade de uma
intervenção mínima com fulcro no “[...]custeio social, da regulamentação pública ou da
boa condução dos negócios do Estado quando eles podem enriquecer – ao invés de
empobrecer – a vida humana385”.
383 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 141. 384 SILVEIRA NETO. Otacílio dos Santos. A instrumentalidade da atividade financeira do Estado
como indutora do desenvolvimento econômico: O papel dos incentivos fiscais na promoção da livre
concorrência e da livre iniciativa. In Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo
Horizonte, ano 11, n.41, jan. / mar. 2013. p. 127. 385 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 22.
121
Eis que a intervenção estatal386 na liberdade de mercado se apresenta como
crucial opção para a manutenção e preservação desta mesma liberdade387 e, por
conseguinte, como um instrumento desenvolvimentista, na visão aqui abordada e
defesa, do desenvolvimento como liberdade.
É evidente que a interferência estatal resultante na proteção e defesa da
concorrência não está relacionada (nem deve ser) com questões de desincentivo ao
desenvolvimento e à concorrência positiva. Apenas se trata de uma postura necessária
por parte do estado, que visa preservar “as regras do jogo” de mercado. Que proíba o
abuso do poder econômico e as demais várias condutas desleais previstas em lei e
possíveis nas relações mercadológicas. Não sendo, pois, uma intervenção exagerada e
plenamente controladora, mas, sim, uma intervenção que surge da necessidade de
preservação de condições mínimas que garantam a existência desta própria liberdade
instrumental.
Neste patamar, em retorno aos conceitos abordados no capítulo relativo ao
antitruste, de maneira sintética podemos afirmar que o princípio da livre
concorrência388, assim denominado pela doutrina brasileira, e erigido a tal posto no
texto constitucional pátrio de 1988, é a abertura que dispõem os particulares para que
possam competir entre si, de maneira lícita, visando êxito econômico com base na
legislação pertinente e visando o desenvolvimento nacional e a justiça social389. É,
conforme visto, um princípio adotado pela Constituição como sendo o propulsor que
rege a economia de mercado brasileira, garantindo equilíbrio entre os interesses
386 “O papel do Estado como regulador da atividade de mercado é longe de ser desnecessário. Não há na
obra de Adam Smith a defesa do completo afastamento do Estado da sociedade de mercado; a ingerência
pública é necessária para a garantia das liberdades, inclusive a de mercado e para a sua administração.”
SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2011. p. 96. 387 Complementarmente, Mônica Sousa citando Albuquerque assevera que “quando há opção estatal pelo
mercado (respeito à propriedade privada, garantia da livre iniciativa), por si só há a opção pela liberdade
pois um dos primeiros desdobramentos da liberdade é no campo econômico.” SOUSA, Mônica Teresa
Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2011. p. 96. 388 De maneira diversa à compreensão usual, Eros Roberto Grau pondera que “a afirmação,
principiológica, da livre concorrência no texto constitucional é instigante. De uma banda porque a
concorrência livre – não liberdade de concorrência, note-se – somente poderia ter lugar em condições de
mercado nas quais não se manifestasse o fenômeno do poder econômico. Este, no entanto – o poder
econômico – é não apenas um elemento da realidade, porém um dado constitucionalmente
institucionalizado, no mesmo texto que consagra o princípio.[...] De outra banda, é ainda instigante a
afirmação do princípio porque o próprio texto constitucional fartamente o confronta.” GRAU, Eros
Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 13.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. 389 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Método, 2011. p.
256.
122
monopolísticos de grupos privados e os interesses do empreendedor individual de
permanecer no mercado390.
É de se observar que o estudo aqui desenvolvido se apega a uma questão de
aparente contradição, apesar de sua plena possibilidade de justificativa. Conforme já
tratado em nossa abordagem sobre a livre concorrência, a gênese do antitruste é a
garantia da liberdade concorrencial e da livre escolha pelos partícipes do mercado.
Entretanto, restou explicada a necessidade de uma tutela estatal, através de políticas
publicas, que venha a manter a estrutura de mercado, de maneira que restem aliados os
aspectos da liberdade de ingresso e concorrência, além da possibilidade de
desenvolvimento de políticas públicas que venham a cumprir objetivos sociais e
econômicos391.
Em se tratando desta relação própria entre tutela da concorrência e
desenvolvimento de políticas públicas, pontua Rafael Macedo que, mesmo
considerando a defesa da concorrência substancialmente uma política pública “[...] a
complexidade das relações que gravitam em torno do Estado, impõe por vezes que a
política concorrencial ceda a outros imperativos, como por exemplo, o desenvolvimento
econômico392”. É, então, com base nesta compreensão que se delineia o presente
trabalho, ou seja, a defesa aqui proposta se dá na perspectiva de políticas públicas
relacionadas à defesa da concorrência com vistas ao desenvolvimento393.
Sobre o conceito de políticas públicas, Maria Paula Dallari Bucci afirma que
“devem ser vistas como processo ou conjunto de processos que culminam na escolha
nacional e coletiva de prioridades, para a definição de interesses públicos reconhecidos
390 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.
95. 391 Em termos complementares, o professor André Elali observa que “o direito concorrencial, dada a
importância que alcançou, tornou-se instrumento central da política econômica tantos dos países
desenvolvidos quanto dos em desenvolvimento. Assim, afigura-se correta a afirmação de que a
concorrência se tornou uma dimensão essencial do mercado, resultando a liberalização do mercado na
necessidade de serem postas em prática políticas e leis da concorrência sólidas e eficazes, já que
constituem os instrumentos essenciais para se assegurarem o bom funcionamento do mercado e a
proteção dos consumidores”. ELALI, André. Incentivos Fiscais Internacionais: Concorrência fiscal,
mobilidade financeira e crise do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 98. 392 MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de políticas
públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e
Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 115. 393 “Tendo-se em mente os objetivos da Lei Antitruste, aparece clara, conjuntamente com o aspecto
instrumental desse tipo de norma, sua aptidão para servir à implementação de políticas públicas,
especialmente de políticas econômicas entendidas como ‘meios de que dispõe o Estado para influir de
maneira sistemática sobre a economia. Ou seja, o antitruste já não é encarado apenas em sua função de
eliminação dos efeitos autodestrutíveis do mercado, mas passa a ser considerado instrumento ou meio de
que dispõe o Estado para conduzir e conformar o sistema”. FORGIONI, Paula. Fundamentos do
Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p.188.
123
pelo direito394”. Complementarmente, em se tratando das políticas públicas para a
promoção da concorrência, Carolina Munhoz afirma que “[...] é preciso, em primeiro
lugar, que ela seja elaborada e implementada de forma clara e coerente, além de
compatível com a matriz institucional existente395”.
É necessário frisar que a mera existência de uma legislação antitruste não
sustenta o sistema concorrencial por si, nem refletem naturalmente no processo de
desenvolvimento. É fundamental, pois, que haja condições estruturais, jurídicas e
econômicas, que, aliadas à legislação concorrencial, garantirão o processo
competitivo396397.
Além disso, conforme afirma Bercovici, “[...] não é possível compreender o
papel do Estado no processo de desenvolvimento exclusivamente pelas políticas
públicas”. Em outras palavras, assevera o doutrinador que a existência das políticas da
concorrência, por si só, não tem como consequência, necessariamente, o
desenvolvimento. Apesar de se mostrarem de fundamental importância neste processo.
Ademais, importa trazer a opinião do professor Ivo Waisberg que demonstra
certa preocupação com a pressão exercida pelos países desenvolvidos sobre os países
em desenvolvimento no tocante à necessidade de elaboração de legislações antitruste. O
que resulta, por vezes, no fato de a legislação concorrencial se afastar da questão central
desenvolvimentista, o que é um erro. Afinal, do mesmo modo como já fora abordado no
capítulo relativo ao estudo do antitruste, “copiar leis de concorrência desconsiderando
as necessidades particulares dos seus estágios de desenvolvimento pode impedi-los de
crescer social e economicamente398”.
394 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002.
APUD MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de
políticas públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito
Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 116. 395 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 151. 396 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 151. 397 “Há que se ter em conta que o livre jogo do mercado apresenta falhas relevantes, que podem
comprometer uma bem sucedida estratégia de desenvolvimento. Em muitos setores, em virtude da
intensidade da escala de produção, dos custos elevados de investimento ou dos riscos e incertezas
associados à atividade empresarial, os agentes privados são carentes de impulso governamental para
empreenderem os seus planos de investimento. Na ausência destas medidas, a falta de incentivos pode
cercear o desempenho de atividades que são essenciais para a sustentabilidade do crescimento econômico
do país. É justamente desta premissa que deve partir o desenho de uma política industrial, que nada mais
é que um mecanismo de correção e fomento de mercados”. CARVALHO, Vinícius Marques de. Outros.
Nova lei de defesa da concorrência comentada. São Paulo: RT, 2012. p. 24. 398 WAISBERG, Ivo. Direito e Política da Concorrência para os Países em Desenvolvimento. São
Paulo: Lex Editora S.A., 2006. p. 42.
124
A defesa feita pelo autor segue a linha teórica aqui abordada, no que se refere à
promoção de políticas públicas desenvolvimentistas que se alinhem com os interesses
do mercado na defesa de suas estruturas.
Uma observação de grande relevância, ainda nos ensinamentos de Waisberg, se
refere ao que denomina “princípio do desenvolvimento”, assim, entende que tal
princípio “[...] permite que as decisões sejam tomadas caso por caso, levando-se em
consideração um equilíbrio de várias políticas e o efeito nos aspectos econômicos e
sociais399”.
Não se trata, entretanto, de compreender o direito concorrencial em um caráter
flexível e em desrespeito à legislação positiva400. Mas, sim, entender a livre
concorrência, constitucionalmente prevista, sob o prisma do desenvolvimento, como
objetivo fundamental da república, conforme fora devidamente tratado401.
A abordagem casuística no tocante às políticas públicas desenvolvimentistas,
também, é um ponto de interseção com a análise antitruste. Neste sentido, sendo
realizados estudos fundados nas regras concorrenciais em paralelo à análise do caso
concreto, onde serão ponderados os efeitos resultantes da aplicação ou não aplicação da
legislação no caso, sempre observando a relação entre os resultados ali previstos e o
desenvolvimento econômico e social402.
Em rápida síntese das ideias aqui propostas, foi abordada a perspectiva de
Amartya Sen de que, entre as liberdades instrumentais cuja expansão constitui o meio
para o desenvolvimento, as facilidades econômicas se mostram na dianteira com sua
relação bem estabelecida com o crescimento econômico.
399 WAISBERG, Ivo. Direito e Política da Concorrência para os Países em Desenvolvimento. São
Paulo: Lex Editora S.A., 2006. p. 49. 400 Sobre a legislação concorrencial, Vinicius Carvalho afirma que “tem como sua principal característica
a flexibilidade de seus dispositivos. Fusões, aquisições e cooperações entre empresas podem ser
aprovadas pelo CADE, caso apresentem benefícios econômicos, como a possibilidade de gerarem
aumento de produtividade ou desenvolvimento tecnológico – todos esses objetivos típicos de uma política
industrial”. CARVALHO, Vinícius Marques de. Outros. Nova lei de defesa da concorrência
comentada. São Paulo: RT, 2012. p. 28. 401 “Assim, a multiplicidade da questão concorrencial, que possibilita que esta seja arrolada como política
pública, e ao mesmo tempo como garantia de manutenção sistêmica, decorre necessariamente do seu
impacto em outras variadas esferas da vida econômica e social, como no pleno emprego, das relações de
consumo, e sobretudo, no desenvolvimento”. MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência:
Instrumento de implementação de políticas públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163
f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São
Paulo, 2008.p. 116. 402 WAISBERG, Ivo. Direito e Política da Concorrência para os Países em Desenvolvimento. São
Paulo: Lex Editora S.A., 2006. p. 50.
125
A livre concorrência desponta aqui como sendo uma facilidade econômica
cujas políticas públicas constituem um evidente estímulo ao desenvolvimento403. Nesta
perspectiva, identificamos o aparente contrassenso residente na necessidade da
intervenção estatal para a expansão da liberdade de competir. Explicando, conforme já
fora estudado, o laissez-faire do liberalismo clássico permite que partícipes do mercado
se utilizem de estratagemas de abuso de poder econômico que resultem na quebra da
noção estrutural do mercado livre. Assim sendo, compreende-se que há um claro papel
do Estado na manutenção desta ordem livre.
Ocorre que, a manutenção da liberdade de competir em um mercado, não
necessariamente acarreta em um processo desenvolvimentista eficaz, o que justifica a
utilização do sistema estatal de tutela da concorrência, fundando-se no princípio do
desenvolvimento, e se efetuando através de políticas públicas que atuem como incentivo
ao processo aqui almejado.
As políticas públicas da concorrência apresentadas com finalidades de
desenvolvimento nos aparecem como verdadeiras opções de aplicabilidade da teoria
desenvolvimentista proposta por Amartya Sen.
Outro ponto de fundamental observância na abordagem da tutela da
concorrência se funda na ideia de que as necessidades econômicas da população que
embasam, também, as políticas públicas devem ser perfeitamente compreendidas. A
este conceito, o professor Calixto Salomão, denomina “democracia econômica404”. Ou
seja, a permissão e incentivo da difusão do conhecimento econômico e a possibilidade
de exigir dos órgãos públicos o suprimento dos anseios da sociedade.
403 Cumpre trazer as conclusões chegadas por Rafael Macedo: “As políticas de concorrência também são
benéficas sob o ponto de vista do desenvolvimento econômico doméstico, à medida que oferece
oportunidades para novos empreendedores. Um mercado desprovido de barreiras à entrada artificiais,
possibilita o surgimento a qualquer momento, de novas empresas, o que também reflete positivamente na
geração de empregos e aumento da renda. Além dos benefícios já enumerados, outro identificável é
possibilidade do aumento da arrecadação de tributos pelo Estado, nas hipóteses de aumento de quantidade
de agentes atuantes no mercado. Se a adoção de políticas de concorrência é importante ou pelo menos,
constitui mecanismo capaz de aprimorar o processo de desenvolvimento em razão dos benefícios
identificáveis no mercado doméstico, a mesma afirmação pode ser feita no âmbito internacional, isso
porque as relações de mercado operam-se em escala global, inclusive sob a forma de competição entre
países, onde a difusão de valores como a liberalização e abertura de mercados são fatores de grande
relevância”. MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação de
políticas públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Direito
Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.p. 120. 404 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimento. In SALOMÃO FILHO, Calixto
(coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 32.
126
É, então, nesta relação entre duas das liberdades instrumentais apontadas por
Sem (expansão das liberdades políticas e facilidades econômicas) que o presente estudo
tem sua continuidade.
5.3 A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E DEFESA DA
CONCORRÊNCIA COMO INSTRUMENTO AO DESENVOLVIMENTO.
Novamente, far-se-á necessário que seja apresentada a perspectiva do
desenvolvimento como liberdade. Partindo da proposta da expansão das liberdades
instrumentais, conforme já trazida, Sen também observou a necessidade de que tais
liberdades se inter-relacionassem e se complementassem visando o aumento das
capacidades das pessoas. Isto significa, em outras palavras, que as liberdades podem se
suplementar mutuamente e reforçar umas às outras. Sendo importante compreender esta
perspectiva ao estudar as políticas de desenvolvimento405, o que faremos no presente
tópico.
A proposta de conectar as liberdades instrumentais, sabidamente distintas entre
si, se funda na compreensão de que tais “[...] direitos, oportunidades e intitulamentos
possuem fortes encadeamentos entre si, que podem se dar em diferentes direções406”. O
processo de desenvolvimento ocorre, de maneira propensamente mais exitosa, através
dessas inter-relações.
O reflexo desta percepção se mostra na necessidade de desenvolver e manter
uma multiplicidade de instituições para que ocorra o pleno funcionamento das
liberdades mencionadas. Amartya Sen cita, como exemplos, “[...] sistemas
democráticos, mecanismos legais, estruturas de mercado, provisão de serviços de
educação e saúde, facilidades para a mídia e outros tipos de comunicação, etc.407”. A
natureza de tais instituições poderia se desenvolver através de iniciativa pública, privada
ou instituições de características mescladas e distintas, como ONG’s e cooperativas.
Uma das propostas centrais trazidas na obra, ora abordada, é a de que os fins e
meios do desenvolvimento exigem que a liberdade seja encarada de maneira
405 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 57. 406 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 71. 407 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 71.
127
centralizada na análise das políticas de desenvolvimento408. Tendo o indivíduo uma
importância crucial neste processo, sendo necessário que a população participe e seja
plenamente ativa nos processos que envolvem seu próprio destino, não se conformando
em uma posição passiva. Na condução do processo desenvolvimentista, então, é
necessário que Estado e sociedade sejam participantes efetivos através de seus papéis
amplos no “[...] fortalecimento e expansão das capacidades humanas409”.
Conforme já trazido, este estudo se desenvolve no tocante à expansão das
liberdades políticas relacionada à expansão das facilidades econômicas e sua relevância
ao desenvolvimento. Os conceitos aqui estudados se resumem na democracia
participativa aplicável na defesa da livre concorrência como sendo instrumental ao
processo de desenvolvimento.
O professor Calixto Salomão Filho corrobora com a defesa aqui trazida,
afirmando que a aplicação democrática, em matéria econômica, vista apenas sob os
cânones do modelo representativo não se mostra plenamente eficaz. Propondo que o
processo de decisão econômica tenha expansão na sociedade, sendo permitida e
incentivada a difusão do conhecimento nesta matéria. Relevando, também, a
importância dos princípios instrumentais da ordem econômica previstos no texto
constitucional410.
Por sua vez, em uma abordagem mais específica à questão da concorrência,
Carolina Munhoz defende que, levando em consideração o fato de “a promoção da
concorrência envolver, normalmente, aparições institucionais e afirmações públicas para
divulgar e defender posições favoráveis à concorrência411”, a melhor forma de se
estabelecer uma política da concorrência visando o desenvolvimento seria através do
estímulo e incentivo ao debate, além do fornecimento de informações com precisão e
408 Amartya Sen defende a necessidade de uma abordagem múltipla do desenvolvimento, partindo da
análise das dificuldades e êxitos ocorridos em diferentes países nas últimas décadas. Enxergando que tais
questões têm estreita relação com um fundamental equilíbrio do papel exercido pelo governo e demais
instituições políticas e sociais, em relação ao funcionamento e papel dos mercados. Defende que “é
preciso haver uma abordagem integrada e multifacetada visando a um progresso simultâneo em diferentes
frentes, incluindo diferentes instituições que se reforçam multuamente”. SEN, Amartya.
Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 152. 409 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 71. 410 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimento. In SALOMÃO FILHO, Calixto
(coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 40. 411 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 158.
128
difusão do conhecimento econômico, resultando, por conseguinte, em um processo de
decisões melhor e mais informado412.
O caráter teórico do presente estudo leva a crer que o ideário aqui proposto se
mostra inaplicável na realidade do ordenamento brasileiro. Entretanto, a proposta aqui
trazida condiz com as possibilidades que o modelo de regulação brasileiro apresenta. O
que se observa, em verdade, é a existência da possibilidade de participação popular na
administração pública, em nosso estudo através da autoridade concorrencial, de maneira
que se tenha um respaldo popular nas decisões promovidas por tais entes.
Neste sentido, a professora Munhoz defende que a autoridade concorrencial
estimule o debate público, fornecendo informações que visem promover o entendimento
do papel da concorrência na economia e os benefícios de sua aplicação. Ou seja, propõe
uma atuação Estatal (através do órgão regulador ou autoridade concorrencial) no sentido
de instrumentalizar a população para a compreensão do processo econômico (ampliando
a possibilidade de efetiva participação dos indivíduos), de maneira que estejam
municiados, os mesmos indivíduos, para tomar as melhores decisões, em matéria
econômica, através da participação democrática413.Esta perspectiva acompanha o que
existe de mais moderno na seara do Direito Administrativo Econômico, correspondendo
ao ideário da democratização da administração pública. Em outras palavras, há neste
tópico uma defesa à questão da participação popular na estrutura organizacional e
procedimental de “gestão da res publica”414.
Em continuidade à defesa aqui proposta, é necessário observar o importante
papel desempenhado pelas agências reguladoras na promoção das liberdades
instrumentais aqui estudadas, tanto na perspectiva de uma abertura para a participação
democrática na administração pública, quando para asseverar e garantir a liberdade de
mercado.
412 Complementa a professora, afirmando que “a promoção da cultura da concorrência é importante pois
constitui uma forma de fortalecer as instituições ligadas à concorrência, e permite a implementação de
condições que conduzem a uma estrutura de mercado mais competitiva. Isso pode se dar de diversas
formas. É importante promover a conscientização não apenas dos agentes no mercado, mas também da
população em geral, sobre o que constitui a concorrência, quais são os seus benefícios e as implicações de
medidas que dificultam o processo competitivo. É o caso, por exemplo, da explicitação dos efeitos e reais
custos que uma barreira comercial pode causar sobre a concorrência, ou dos direitos que assistem aos
prejudicados por uma prática restritiva do comércio”. MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito,
Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora S.A., 2006. p. 164.. 413 MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e Desenvolvimento. São Paulo:
Lex Editora S.A., 2006. p. 164. 414 SANTOS, André Luiz Lopes dos. CARAÇATA, Gilson. A consensualidade e os canais de
democratização da Administração Pública. In CARDOZO, José Eduardo. QUEIROZ, João Eduardo.
SANTOS, Márcia (Org.). Curso de Direito Administrativo Econômico. Vol. I. São Paulo: Malheiros,
2006. p. 793.
129
Neste patamar, o Conselho Administrativo de defesa da Econômica – CADE –
conforme já visto, a entidade brasileira responsável pela tutela da concorrência, prevê,
como instrumento de participação popular, que afeta diretamente suas decisões, as
consultas públicas, que acabam por constituir um importante e valioso instrumento de
defesa da concorrência. Sendo, tal expediente de participação popular, ainda mais
valioso em virtude do seu facílimo acesso através de sítio eletrônico.
Sobre este meio de participação, cumpre pontuar que as consultas públicas são
importantes políticas públicas que visam estabelecer uma ligação entre a sociedade e a
classe representativa, permitindo que os cidadãos participem da formulação de outras
políticas públicas, através da participação direta reflexa no envio de opiniões. Constitui
um sistema que permite a discussão da coisa pública de maneira ágil e pouco custosa.
O avanço da internet e a realidade digital vividos na contemporaneidade são
grandes aliados para a promoção de políticas públicas de participação popular nas
decisões dos órgãos da administração pública, por constituírem meios onde inexistem
barreiras e que se dotam de uma publicidade e acessibilidade deveras relevante.
André Santos e Gilson Caraçato observam que tal modalidade participativa
vem ganhando espaço notório nos atuais moldes da administração pública brasileira, se
relacionando com os temas atinentes à ação normativa das agências reguladoras.
Pontuando, também, com grande destaque, que existe uma absurda disparidade relativa
à capacitação técnica do povo no geral com relação aos efetivos partícipes e envolvidos
diretamente com o objeto regulado.
É notório, entretanto, que o desconhecimento sobre tais ferramentas impera em
uma sociedade em que o profundo desinteresse político ainda é marca. Além do mais,
dado o caráter não vinculante do resultado de tais consultas, é possível que haja um
reflexo na credibilidade de tais expedientes perante a mínima parcela da população que
demonstra o interesse em participar e fiscalizar atentamente os órgãos representativos.
Discussão que não nos cumpre nesta oportunidade.
Em retorno à realidade aqui estudada, as consultas públicas no CADE
revestem-se de caráter democrático, inclusive, com possibilidade de participação na
edição de seu próprio regimento interno. Conforme se constata da consulta nº 01/2012
que, em face da entrada em vigor da nova lei da concorrência, abria oportunidade para
que fossem enviadas contribuições415 que objetivassem a elaboração do regimento
415 Consulta Pública n.º 01/2012
Período para contribuições: de 19/03/2012 a 19/04/2012
130
interno do CADE, da resolução sobre o pedido de aprovação dos atos de concentração
econômica e sobre a resolução que disporá acerca do procedimento sumário para análise
de atos de concentração. Ou seja, inclusive as questões de controle interno do órgão são
postas em aberto para contribuição popular, o que representa um relevante ganho para a
própria democracia.
Aqui, uma importante crítica e ressalva acerca das consultas públicas no
CADE, esta, que se refere à publicidade de seus resultados. Ou seja, apesar da facilidade
encontrada para a participação na formulação de políticas de defesa da concorrência, a
transparência discricionária do órgão inexiste, o que afeta consideravelmente sua
credibilidade democrática.
Mesmo assim a vasta gama de consultas públicas já realizadas pelo CADE nos
fornece uma boa noção em termos práticos de como funciona a relação entre liberdades
políticas e liberdades econômicas visando o desenvolvimento, tema abordado no
presente estudo.
Bastante abrangentes são as temáticas em que há possibilidade de realizarem-se
consultas públicas no CADE. Em uma análise detalhada das consultas já conclusas,
encontramos desde questões referentes a resoluções até questões de definição de
conceitos relevantes para a defesa da concorrência no cenário brasileiro.
Faz-se mister uma ponderação de que a experiência brasileira nesta seara é
muito recente e, ainda, não tão difundida. Entretanto, a perspectiva e expectativa dos
estudiosos da concorrência é de que haja um fortalecimento crescente do Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência, com respaldo, tanto administrativo quanto
judicial.
Endereço eletrônico para recebimento de contribuições: [email protected]
O Presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade, tendo em vista a proximidade da
entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011 e a necessidade de regulamentação infralegal de diversos
procedimentos previstos no referido diploma, comunica que se encontram disponíveis na internet, para
consulta pública, no endereço eletrônico www.cade.gov.br, os seguintes documentos:
a) Proposta de Regimento Interno, a ser aprovada nos termos do art. 9º, inciso XV, da Lei nº
12.529/2011;
b) Proposta de Resolução que dispõe sobre o Pedido de Aprovação dos Atos de Concentração Econômica,
nos termos do art. 53, caput, da Lei nº 12.529/2011;
c) Proposta de Resolução que dispõe sobre o Procedimento Sumário para Análise de Atos de
Concentração, nos termos do art. 53, caput, e do art. 54, inciso I, da Lei nº 12.529/2011
O período de consulta pública será de 30 (trinta) dias, com término em 19 de abril de 2012.
As contribuições devem ser enviadas, por escrito, ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica -
Cade, no endereço Setor Comercial Norte – SCN – Quadra 02 – Projeção C – CEP 70712-902 – Brasília
– DF, contendo referência expressa no envelope “Consulta Pública n.º 01/2012”, ou pelo endereço
eletrônico [email protected].
131
A título exemplificativo, quanto à nossa pouca experiência, cumpre tratar,
apesar de aparentemente simples, a deveras relevante consulta nº 02/2010416 que tratava
da padronização das ementas dos processos administrativos do CADE. Esta resolução
resultou na facilidade de compreensão das temáticas julgadas e a consequente busca
jurisprudencial. Observe-se, também, sua importância ao conjugar-se com os resultados
da consulta de nº01/2010417 que tratou da desnecessidade de publicação do inteiro teor
do acórdão dos julgados, visando maior celeridade processual na defesa da
concorrência.
Em termos práticos, ambas as consultas facultaram ao órgão a possibilidade de
maior agilidade com relação aos julgados, digam-se, administrativos, dotando de maior
eficiência os processos de defesa da concorrência, não deixando de facultar à sociedade
a preferência por eficiência ou maior segurança por parte dos réus nestes tipos de
processo.
Outra interessante consulta pública que nos fornece a ideia da dimensão deste
expediente para aliar os interesses públicos aos interesses do mercado, se vê na consulta
nº01/2012418, em sua segunda parte, que questiona e pondera o conceito de “ramo de
416 Consulta Pública n.º 02/2010
O PRESIDENTE DO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA, no uso de suas
atribuições, tendo em vista o disposto no art. 31 da lei n. 9.784/99, comunica que se encontra disponível
na internet, no endereço eletrônico http://www.cade.gov.br, proposta de Resolução que “Estabelece a
padronização de ementas de julgamentos realizados perante o CADE e dá providências”.
A alteração visa à padronização de ementas de julgamentos realizados perante o CADE de modo a
contribuir para a produção estatística sobre a atividade do órgão e para a pesquisa jurisprudencial.
O período de consulta pública será de 30 (trinta) dias, com término no dia 19 de abril de 2010, inclusive, a
fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam oferecer contribuições, sempre por escrito e enviadas ao
Conselho Administrativo de Defesa Econômica, no endereço Setor Comercial Norte – SCN – Quadra 02
– Projeção C – CEP 70712-902 – Brasília – DF, contendo referência expressa no envelope ‘Consulta
Pública n.º 02/2010 – Ementas’, ou ainda pelo endereço eletrônico ‘[email protected]’. 417 Consulta Pública n.º 01/2010
O PRESIDENTE DO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA, no uso de suas
atribuições, tendo em vista o disposto no artigo 175, parágrafo 2º, do Regimento Interno deste Conselho,
aprovado pela Resolução CADE n.º 45, de 28 de março de 2007, comunica que se encontra disponível na
internet, no endereço eletrônico http://www.cade.gov.br, proposta de Resolução que “Aprova a Emenda
Regimental nº 01/2010, que elimina a obrigatoriedade de elaboração de acórdãos de julgamentos pelo
CADE e dá providências”.
A alteração visa à eliminação da necessidade de elaboração de acórdão de processos julgados no CADE,
dentro de uma perspectiva de economicidade, celeridade processual e desburocratização dos processos
perante o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
O período de consulta pública será de 30 (trinta) dias, com término no dia 08 de março de 2010, inclusive,
a fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam oferecer contribuições, sempre por escrito e enviadas ao
Conselho Administrativo de Defesa Econômica, no endereço Setor Comercial Norte – SCN – Quadra 02
– Projeção C – CEP 70712-902 – Brasília – DF, contendo referência expressa no envelope ‘Consulta
Pública n.º 01/2010 – Emenda Regimental’, ou ainda pelo endereço eletrônico
‘[email protected]’. 418 O Presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade, tendo em vista a proximidade
da entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011 e a necessidade de regulamentação infralegal de diversos
132
atividade empresarial” previsto na nova lei da defesa da concorrência. Abre-se a
possibilidade, neste caso, de participação popular que influenciará diretamente nas
decisões a partir de uma pacificação do conceito em consulta. É de se observar, na
consulta em questão, a diferença entre os temas abordados na mesma consulta quando
em sua primeira parte419, tratou do novo regimento interno do CADE baseado na lei
12.529/11, já trazido por nós em citação prévia.
Vê-se, claramente, que os objetivos das consultas públicas não repousam
apenas em questões organizacionais, mas, sim, em diversos assuntos relevantes para a
coletividade sejam de maneira direta ou indireta.
É grande a relevância das consultas públicas do CADE para a relação entre
democracia participativa (sob a capa da expansão das liberdades políticas) e defesa da
concorrência (entendendo como liberdade de mercado e expansão das facilidades
econômicas), ao se vislumbrar a facilidade de comunicação existente nas referidas
consultas e sua relevância e pertinência temática para a defesa da concorrência.
Conforme verificado no presente trabalho, não nos restam dúvidas que a
relação entre liberdades políticas e liberdades de mercado são extremamente relevantes
para o processo de desenvolvimento. A perspectiva por nós trazida foi apresentada na
consubstanciação desta relação através da participação popular nas decisões que
envolvem problemas relativos à defesa da concorrência, tomando como exemplo a
atuação do CADE.
Em que pese à recente idealização da democracia participativa e o princípio da
participação popular como instrumentos para efetivação do princípio democrático, e sua
ainda prematura aplicabilidade prática, verifica-se uma mudança paradigmática na
postura da sociedade no tocante a necessidade de se compreender e participar mais
ativamente das decisões políticas tomadas pelos representantes.
O espelho por nós encontrado não poderia ser melhor. É no CADE que a figura
das consultas públicas se mostra como um tímido instrumento de participação popular
procedimentos previstos no referido diploma, comunica que se encontra disponível na internet, para
consulta pública, no endereço eletrônico www.cade.gov.br, o seguinte documento:
a) Proposta de Resolução que especifica o conceito de “ramo de atividade empresarial”, previsto no art.
37, inciso I, da Lei no 12.529/2011;
O período de consulta pública será de 30 (trinta) dias, com término em 22 de abril de 2012.
As contribuições devem ser enviadas, por escrito, ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica -
Cade, no endereço Setor Comercial Norte – SCN – Quadra 02 – Projeção C – CEP 70712-902 – Brasília
– DF, contendo referência expressa no envelope “Consulta Pública n.º 01/2012”, ou pelo endereço
eletrônico [email protected].
133
que, apesar de mostrar-se ainda desconhecida, começa a ganhar corpo com o
fortalecimento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência alterado pela lei
12.519/11.
Foi com base nas propostas apresentadas que se desenvolveu o presente
trabalho. Defendeu-se uma necessária vinculação entre os dois tipos de liberdades
apresentados, com fulcro na teoria de Amartya Sen, visando uma expansão dessas
liberdades para o processo de desenvolvimento.
Assim, se constata que a expansão das liberdades políticas, através da efetiva
participação nas decisões do CADE por meio das consultas públicas, atua
conjuntamente na expansão das facilidades econômicas, através da defesa da
concorrência, no caso analisado. Sendo a participação popular importante para
descrever e definir quais os valores, as vontades ou os anseios sociais em relação ao
próprio sistema de mercado. Dotando, inclusive, de carga social, o demonizado sistema,
ao tentar dar uma forma ao mercado em que haja respaldo popular e justiça social.
134
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o aqui exposto, algumas considerações se fazem necessárias
para clarificar o entendimento pretendido. Sendo, entretanto, necessária uma rápida
lembrança sobre os conceitos apresentados.
Em se tratando da primeira delimitação temática aqui apresentada, referente ao
fenômeno democrático, foram pontualmente tratados os seguintes aspectos: a crise da
representatividade, democracia participativa e a abertura constitucional visando à
expansão do princípio democrático. Memoramos tais peculiaridades fundamentais para
a compreensão ampla deste estudo.
Partindo da exposição sobre o conceito de “povo”, restou compreendido que a
definição adotada e necessária para o entendimento dos rumos do estudo aqui
desenvolvido, seria a de que, esta entidade, consistiria na totalidade de cidadãos
politicamente ativos e capazes de participar da escolha de representantes que atuariam
no controle do poder estatal, legitimados pela escolha majoritária da população.
Por conseguinte, o regime democrático representativo, em seu ideário mais
basilar, é entendido como o regime político em que o povo escolhe seus representantes
através do voto, os legitimando ao exercício do poder administrativo e legislativo.
A evidente crise do modelo representativo em decorrência da ruptura dos
fundamentos que justificam o regime democrático, tais como efetiva representação e
confiabilidade, enseja a possibilidade de uma abordagem com vistas à expansão do
caráter participativo nas relações entre Estado e cidadãos, que sejam de seu interesse ou
que afetem diretamente a qualidade de vida destes últimos.
Eis que nos surge com relevante viabilidade, o modelo democrático
participativo. Justificado, neste estudo, com fundamento no cerne filosófico do sistema
democrático. O modelo de democracia participativa, aqui defeso, se consubstancia em
plena analogia com a expansão das liberdades políticas e das possibilidades de
participação popular nas decisões do Estado.
Com base no que se afirma acima e sabendo que a Constituição Federal de
1988 prevê em inúmeros dispositivos a possibilidade de utilização de instrumentos de
caráter democrático e dos mais diversos matizes, identificamos o princípio democrático
participativo legitimador para a participação popular em decisões e questões de
135
relevância apresentadas por órgãos da administração pública, conforme ao final se
propõe.
No segundo momento deste trabalho, em que pese a presumível e aparente falta
de conexão com a questão pretérita, é trazido ao debate uma abordagem da livre
concorrência, seu conceito em termos econômicos, a fundamentação teórica do
antitruste e as previsões jurídico-constitucionais e infraconstitucionais de sua tutela.
Ressalta-se, neste momento, que o modelo teórico construído no capítulo
referente se deu visando explicar a importância da tutela estatal do mercado, através de
políticas públicas de manutenção e preservação da livre concorrência.
Tal percepção se funda nas inúmeras benesses resultantes de um mercado em
que existe plena possibilidade de ingresso e permanência. Ponderando que as atitudes
que se coloquem em sentido contrário a tal liberdade sejam veementemente rechaçadas
por uma legislação protetora deste ambiente em si, com objetivo de manter a sua própria
estrutura de funcionamento eficiente.
Neste ponto, é percebida a importância das políticas da concorrência que
norteiam o direito antitruste. Através de uma abordagem onde restou conhecida a
moderna compreensão da importância deste tipo de tutela jurídica e a realidade
brasileira em se tratando do Direito concorrencial.
Assim, novamente, foi identificado o perfil constitucional da tutela da
concorrência. Conforme estudado, a Constituição Federal de 1988 dispõe em seu texto o
que restou conhecido como “constituição econômica”. Delimitação constitucional que
reflete a importância do fenômeno econômico na condução dos objetivos políticos do
Estado, previstos na Carta Magna. Restando, então, estabelecida fundamentalidade da
defesa da concorrência para o sistema econômico e político brasileiro.
A terceira etapa deste estudo consistiu na abordagem específica da questão do
desenvolvimento. Sendo abordado, tal conceito, com fulcro na multiplicidade de
interpretações presentes em toda a doutrina econômica e jurídica.
Seguindo a compreensão de que o fenômeno do desenvolvimento deve ser
compreendido em abrangência, não se restringindo à mera compreensão econômica,
mas, também, ao desenvolvimento em um sentido político e social, identificamos na
teoria proposta pelo economista indiano Amartya Sen, conceitos que julgamos
fundamentais no estudo deste processo.
No ideário proposto pelo teórico, o desenvolvimento é um processo amplo que
ocorre em expansão das liberdades que uma pessoa é capaz de usufruir. Neste sentido, a
136
liberdade é encarada como objetivo central do desenvolvimento e, também, como
principal meio para a consecução deste processo.
Levando em consideração o papel instrumental da liberdade, ou seja, a sua
utilização como principal meio no processo desenvolvimentista, Sen propõe cinco
liberdades instrumentais cuja expansão considera fundamental no processo estudado,
sendo, conforme já exposto, as liberdades políticas, facilidades econômicas, as
oportunidades sociais, a transparência e a segurança protetora ou segurança social.
Com base no exposto acima, o processo de desenvolvimento deve contar com a
expansão de cada uma das liberdades instrumentais apontadas, observando que as suas
inter-relações se mostram de grande importância neste processo encarado de maneira
global.
Assim, partindo da noção de inter-relação entre a expansão das liberdades
políticas e das facilidades econômicas, enxergando-as de maneira conjunta, é que se
desenvolveu este trabalho.
Explicamos, a expansão das liberdades políticas foi aqui tratada sobre a forma
de democracia participativa. Sabe-se, por óbvio, que a noção de liberdades políticas é
mais abrangente que o conceito trazido. Entretanto, diante da necessidade metodológica
de uma abordagem verdadeiramente propositiva, foi estabelecida esta identificação
conceitual.
Sendo, a democracia participativa um modo de aumento e expansão das
possibilidades que um cidadão tem de participar do governo a que se submete, é patente
que sua efetiva aplicação resultará na expansão da liberdade instrumental em comento.
Em se tratando das facilidades econômicas, conforme foi estudado, encontra-se
uma ampla gama de conceitos que se enquadram nesta definição. Conforme visto,
tratamos em particular a questão da livre concorrência.
Apesar da aparente contradição entre intervenção estatal e manutenção de uma
ordem livre, a visão aqui trazida compreende que um dos modos em que ocorre a
expansão das facilidades econômicas é através da tutela do antitruste. Isto se justifica,
pois, há como resultado, uma maior liberdade de participação e permanência no
mercado, afinal, existe a tutela jurídica e institucional que age contra atitudes desleais
vindas dos próprios participes deste sistema.
Eis que o questionamento final para a compreensão da temática reside em
como pode ocorrer esta inter-relação tão necessária ao desenvolvimento.
Explica-se levando em conta a realidade brasileira.
137
Conforme visto, no Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica –
CADE – é o órgão estatal responsável pela defesa de mercado e, consequentemente, da
concorrência.
Apesar do novel aspecto institucional conferido ao CADE pela Lei 12.519/11,
um interessante instrumento é utilizado pelo órgão, qual seja, as consultas públicas que
visam tomar conhecimento da percepção da população e dos interessados nas questões
referentes ao órgão e à defesa da concorrência.
É, então, partindo da identificação desta possibilidade em específico que
fazemos a efetiva relação com o aspecto teórico aqui trazido. Ou seja, as consultas
públicas realizadas pelo órgão concorrencial nos aparecem como exemplo de
instrumento útil à visão de desenvolvimento aqui abordada.
Neste sentido, a percepção da expansão das liberdades políticas
consubstanciada sob a forma de participação popular nas decisões de governo é
instrumentalizada no corpo das consultas públicas elaboradas pelo CADE. Por sua vez,
o órgão é responsável pela expansão das facilidades econômicas, ao manter livre o
sistema concorrencial. Em inter-relação, as consultas públicas se mostram como uma
forma relacional entre ambas as liberdades, sendo, a difusão deste meio e do
conhecimento econômico importantes instrumentos na busca pelo desenvolvimento.
Restando, então, neste ponto a relevância e fundamentalidade da presente
proposta: a importância da difusão das consultas públicas do CADE como instrumento
de promoção do desenvolvimento, encarado por três óticas distintas, a possibilidade e
liberdade de participação popular na decisão estatal, a própria instrumentalidade da
defesa da concorrência e a relação crucial ao desenvolvimento, ainda observada em sua
importância na construção do conhecimento econômico e político.
138
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Paulo Furquim. Análise Econômica da Defesa da Concorrência. In
TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito e Economia no Brasil. São Paulo: Ed. Atlas,
2012.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22.ed. São Paulo:
Malheiros, 2010.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo:
Malheiros, 2005.
_____________. Desenvolvimento, Estado e Administração Pública. In CARDOZO,
José Eduardo. QUEIROZ, João Eduardo. SANTOS, Márcia (Org.). Curso de Direito
Administrativo Econômico. Vol. II. São Paulo: Malheiros, 2006.
BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
_____________. Liberalismo e Democracia. 6.ed. São Paulo: Editora Brasiliense,
2011.
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. 3.ed. São
Paulo: Malheiros, 2008.
_____________. Ciência Política. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 295.
BONAVIDES, Paulo. Lima, Francisco Gérson Marques de. Bedê, Fayga Silveira
(coord.). Constituição e Democracia. São Paulo: Malheiros, 2006.
BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito Constitucional Internacional e a proteção dos
direitos fundamentais. São Paulo: Método, 2008.
_____________. Direito de Petição: Garantia Constitucional. São Paulo: Método,
2004.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal.
BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de Novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro
de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a
ordem econômica; altera a Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei no
139
3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de
julho de 1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei no
9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Portal do planalto:
Legislação. 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2011/Lei/L12529.htm> . Acesso em: 02 de dez de 2013.
BRUNA, Sérgio Varela. O Poder Econômico. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2001.
CARVALHO, Vinícius Marques de. Outros. Nova lei de defesa da concorrência
comentada. São Paulo: RT, 2012.
CRUZ, Paulo Márcio; XAVIER, Grazielle. Democracia Transnacional. XVII
Congresso Nacional do CONPEDI. 2008. Salvador. Anais do XVII Congresso
Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boteaux.
DAHL, Robert A. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
DIAS, Daniella Maria dos Santos. Democracia e Desenvolvimento Sustentável. In:
XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte: Fundação Boiteux,
2007. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/daniella_maria_dos_santos_dias.
pdf>. Acesso em: 5 jan. 2014.
DUARTE JR, Ricardo. Agência Reguladora, Poder Normativo e Democracia
Participativa: Uma questão de legitimidade. Curitiba: Juruá Editora, 2014.
ELALI, André. Incentivos Fiscais Internacionais: Concorrência fiscal, mobilidade
financeira e crise do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
__________. Tributação e Regulação Econômica: Um exame da tributação como
instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades
regionais. São Paulo: MP Editora, 2007.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 32.ed. São
Paulo: Saraiva, 2006.
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. 3.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010.
FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 6.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010.
140
FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012.
FURTADO, Celso. Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. São Paulo:
Abril cultural, 1983.
____________. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2009.
GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia?. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São
Paulo: Malheiros, 2010.
HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia Volume II. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997.
KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KOMPARATO, Fabio Konder. Repensar a Democracia. LIMA, Martonio.
ALBUQUERQUER, Paulo Antonio. Democracia, Direito e Política. Florianopolis:
Conceito Editoral, 2006.
KOVACIC, William E. SHAPIRO, Carl.Antitrust Policy: A Century of Economic
and Legal Thinking. American Economic Association, Nashville, v. 14, n. 1, Winter
2000. Disponível em: < http://faculty.haas.berkeley.edu/shapiro/century.pdf> Acesso
em: 20 dez. 2013.
KRAUSE, Martin Enrique. Economia, Instituciones y Politicas Publicas. Buenos
Aires: La Ley, 2011.
LEONI, Bruno. A Liberdade e a Lei. Porto Alegre: Instituto Liberal, 1993.
LIJPHART, Arend. Modelos de Democracia. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Livre concorrência e o dever de neutralidade
tributária. 2005. 143 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
LIMA, Martonio. ALBUQUERQUE, Paulo Antonio. Democracia, Direito e Política.
Florianopolis: Conceito Editoral, 2006.
141
LOPES, Ana Mária D’Ávila. A cidadania na Constituição Federal brasileira de
1988: redefinindo a participação política. In Bonavides, Paulo. Lima, Francisco
Gérson Marques de. Bedê, Fayga Silveira (coord.). Constituição e Democracia. São
Paulo: Malheiros, 2006.
MACEDO, Rafael Rocha. Direito da Concorrência: Instrumento de implementação
de políticas públicas para o desenvolvimento econômico. 2008. 163 f. Dissertação
(Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie,
São Paulo, 2008.
MENDONÇA, Fabiano André de Souza. Hermenêutica Constitucional da Ordem
Econômica Regulatória: Princípios. In MENDONÇA, Fabiano. FRANÇA, Vladimir.
XAVIER, Yanko. Regulação econômica e proteção dos direitos humanos: Um
enfoque sob a óptica do direito econômico. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer,
2008.
MELLO, Maria Tereza Leopardi. Direito e Economia na Análise de Condutas
Anticompetitivas. In POSSAS, Mario Luiz (Coord.). Ensaios sobre Economia e
Direito da Concorrência. São Paulo: Singular, 2002.
MULLER, Friedrich. Quem é o povo?. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, Livre Concorrência e
Desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora S.A, 2006.
NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Regulação e o Direito da Concorrência. In
SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 163.
NUSDEO, Fabio. Curso de Economia. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2010.
___________. Desenvolvimento Econômico. In SALOMÃO FILHO, Calixto (coord.).
Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002.
OLIVEIRA, Amanda Flávio (Coord.). Direito Econômico – Evolução e Institutos.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.
OLIVEIRA, Diogo. MENDONÇA, Fabiano. XAVIER, Yanko. A governança pública
e o Estado regulador brasileiro na efetivação do direito fundamental ao
desenvolvimento. In MENDONÇA, Fabiano. FRANÇA, Vladimir. XAVIER, Yanko
(Org.). Regulação econômica e proteção dos direitos humanos: Um enfoque sob a
óptica do direito econômico. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008.
142
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento. Viena, 04 dez 1986. Disponível em: <
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-
sobre-o-direito-ao-desenvolvimento.html>. Acesso em: 08 dez 2013.
ORLANSKI, Leonardo. Competencia y Regulación. Buenos Aires: Ad Hoc, 2006.
ORTIZ, Gaspar Ariño. Principios de Derecho Público Económico. Bogotá:
Universidad Externado de Colombia, 2003.
PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO, Suzani Andrade. Direito ao
desenvolvimento como direito fundamental. In: XVI Congresso Nacional do
CONPEDI, 2007, Belo Horizonte: Fundação Boiteux, 2007. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf>.
Acesso em: 7 jan. 2014.
PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In RODRIGUEZ, José
Rodrigo (org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito e
desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011.
PINHEIRO, Armando Castelar. SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2005.
POSSAS, Mario Luiz (Coord.). Ensaios sobre Economia e Direito da Concorrência.
São Paulo: Singular, 2002.
POSSAS, Mario Luiz. FAGUNDES, Jorge. PONDÉ, João Luiz. Política Antitruste:
Um enfoque Schumpeteriano. In POSSAS, Mario Luiz (Coord.). Ensaios sobre
Economia e Direito da Concorrência. São Paulo: Singular, 2002.
RIBEIRO, Elisa Silva de Assis. O Controle das Condutas – Infrações à
Concorrência. In OLIVEIRA, Amanda Flávio (Coord.). Direito Econômico –
Evolução e Institutos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. p. 128.
RODRIGUES, Vasco. Análise Económica do Direito: Uma Introdução. Coimbra:
Almedina, 2007.
RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito
e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011.
ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, Democracia e Capitalismo. Rio de Janeiro,
Elsevier, 2010.
143
SANTOS, André Luiz Lopes dos. CARAÇATA, Gilson. A consensualidade e os
canais de democratização da Administração Pública. In CARDOZO, José Eduardo.
QUEIROZ, João Eduardo. SANTOS, Márcia (Org.). Curso de Direito Administrativo
Econômico. Vol. I. São Paulo: Malheiros, 2006.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimento. In SALOMÃO FILHO,
Calixto (coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002.
SALOMÃO FILHO, Calixto (coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo:
Malheiros, 2002.
_____________. Regulação e Concorrência. São Paulo: Malheiros, 2002.
SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora
Acadêmica, 1995.
SANTOS Jr, Fernando Lucena Pereira dos. Imunidade Recíproca e Livre
Concorrência: Considerações acerca de sua fruição por empresas estatais. 2013.
135 f. Dissertação (Mestrado em Constitução e Garantia de Direitos) – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
SCHAPIRO, Mario G.; TRUBEK, David M. Redescobrindo o direito e
desenvolvimento: experimentalismo, pragmatismo democrático e diálogo
horizontal. In SCHAPIRO, Mario G.; TRUBEK, David M. (orgs). Direito e
desenvolvimento: um diálogo entre os BRICS. São Paulo: Saraiva, 2012.
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, Socialism and Democracy. 3.ed. New York:
Harper Perennial Modern Thought, 2008.
____________. A Teoria do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Abril cultural,
1982.
SCHUARTZ, Luís Fernando. O Direito da Concorrência e seus fundamentos. In
POSSAS, Mario Luiz (Coord.). Ensaios sobre Economia e Direito da Concorrência.
São Paulo: Singular, 2002.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras,
2009.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo:
Malheiros, 2012.
144
SILVEIRA NETO. Otacílio dos Santos. A instrumentalidade da atividade financeira
do Estado como indutora do desenvolvimento econômico: O papel dos incentivos
fiscais na promoção da livre concorrência e da livre iniciativa. In Revista de Direito
Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, ano 11, n.41, jan. / mar. 2013.
SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá Editora,
2011.
SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo:
Malheiros, 2006.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva,
2008.
______________. Direito Constitucional Econômico. 3.ed. São Paulo: Editora
Método, 2011.
______________. A intervenção do Estado no Domínio Econômico. In CARDOZO,
José Eduardo. QUEIROZ, João Eduardo. SANTOS, Márcia (Org.). Curso de Direito
Administrativo Econômico. Vol. II. São Paulo: Malheiros, 2006.
TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo:
Conceito, 2011.
TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito e Economia no Brasil. São Paulo: Ed. Atlas,
2012.
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 4.ed. São Paulo: Itatiaia, 1998.
WAISBERG, Ivo. Direito e Política da Concorrência para os Países em
Desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora S.A., 2006.