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Artigo Anuário de Literatura Volume 15 Número 02 FAREWELL: ÚLTIMO SORTIMENTO DE MEMÓRIAS Márcio Roberto Soares Dias Professor Adjunto UESB

FAREWELL: ÚLTIMO SORTIMENTO DE MEMÓRIAS · 2019. 6. 20. · do poema ³A ilusão do migrante´, reunido em Farewell, será, aqui, guiada por versos que Drummond escreveu em momentos

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Artigo Anuário de Literatura, ISSNe: 2175-7917, vol. 15, n. 2, 2010

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Anuário de Literatura Volume 15 Número 02

FAREWELL: ÚLTIMO

SORTIMENTO DE MEMÓRIAS

Márcio Roberto Soares Dias

Professor Adjunto – UESB

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FAREWELL:

THE LAST STOCK OF MEMORIES

RESUMO: Este artigo analisa o estatuto do migrante em Carlos

Drummond de Andrade a partir da leitura do poema “A ilusão do

migrante”, reunido em Farewell.

PALAVRAS-CHAVE: Migrante; Lírica e sociedade; Carlos Drummond

de Andrade.

ABSTRACT: This article analyzes the migrant statute in Carlos

Drummond de Andrade having as basis the reading of the poem “A ilusão

do migrante”, from the book Farewell.

KEYWORDS: Migrant; Lyrics and society; Carlos Drummond de

Andrade.

DOI: 10.5007/2175-7917.2010v15n2p148

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A poesia memorialista de Carlos Drummond de Andrade, em

diferentes momentos, apresenta tons e disposições afetivas bem díspares. Há,

por exemplo, na série Boitempo uma determinação biográfica desprovida da

angústia ou da severidade crítica que se percebem nos versos publicados entre

as décadas de 1930 e 1950. Antonio Candido (cf. 2004) levanta a hipótese de

que o enérgico intuito autobiográfico da poesia drummondiana não se mostra,

em Boitempo, crivado pela desconfiança, pelo sentimento de culpa e pelo

esforço sistemático do poeta em buscar a compreensão de sua própria

personalidade, como ocorre na maior parte da sua escrita anterior. O cunho

autobiográfico manifestado naquela série é, segundo Candido, fruto

exatamente da abdicação, ainda que parcial, ao intenso individualismo em

prol de uma objetividade que observa, reflete e sonda com tranquilidade a si

mesmo como elemento do mundo.

A relativa serenidade memorialística de Boitempo, no entanto,

revela-se, com a publicação de Farewell, apenas um entreato na poesia

drummondiana. De fato, o intenso individualismo de Drummond, em parte

interrompido naquela série, volta a mostrar, na coletânea última, todo o vigor

de antes, trazendo consigo as antigas tensões que sempre afligiram o poeta e

que, de resto, constituem a matriz das perplexidades ou inquietudes tão bem

aludidas por Antonio Candido (cf. 2004). É verdade também que, como nota

Alcides Villaça, Farewell não pretendeu, no seu todo, ter a determinação das

coletâneas publicadas nos decênios de 1930 e 1950, cuja grande marca foi a

presença de um relacionamento tenso entre o eu e o mundo — tensão que,

diga-se, jamais bloqueou o processo de amalgamação desses dois elementos.

No entanto, Farewell traz consigo uma espécie de panorama novo através do

qual aqueles momentos anteriores se prestam a novas leituras. Villaça tem

razão, portanto, ao afirmar que o sentido do adeus lírico de Drummond “é

discreta mas cerimoniosamente remetido à significação integral da

caminhada; é a face última, que encerra uma sucessão de personae figuradas

pelo caminho” (VILLAÇA, 2006, p. 139). Na verdade, o ensaísta segue a

mesma linha de raciocínio de Mirella Vieira Lima (1997, p. 79-860, que, em

artigo sobre o último livro de Drummond, já afirmara que muitos poemas de

Farewell constituem novas leituras de textos anteriores, submetidos agora a

uma nova ótica. Uma ótica possível apenas de ser oferecida por alguém que

se predispõe analisar a condição humana a partir de um ponto de vista bem

sui generis. De acordo com a ideia central de Mirella Vieira Lima, o poeta

mineiro, talvez para assegurar a qualidade de um olhar extremamente agudo e

perspicaz sobre a vida, não hesita “em criar, em Farewell, uma persona lírica

que se posiciona como „aprendiz de morto‟”, julgando e condenando a

totalidade da existência. Assim, o olhar do poeta se posta de maneira a tomar

a mais extremada das distâncias — a distância proporcionada apenas pela

morte — para, somente então, poder revelar com mais eficácia a vida com

seus enganos e prodígios. Trata-se de um olhar que, mesmo postado no ponto

mais remoto, não se afasta do presente, mas o contamina com os vestígios da

morte, exatamente devido à sua própria condição de sujeito que sente a vida

em vias de dissipação. Assim, embora irreversivelmente ligado ao presente,

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emerge de Farewell um memorialismo cuja marca é o tom circunspecto que

anuncia, sem pieguice, a retirada peremptória e última. Ou, ainda nas palavras

de Villaça, um “memorialismo (...) de quem se dispõe à despedida definitiva,

soturna e sem tragédia — como convém ao poeta de Claro enigma, que ora

reafirma, de modo irrecorrível, o postulado schopenhaueriano da unificação

universal do sofrimento” (2006, p. 139). Em parte por essas razões, a análise

do poema “A ilusão do migrante”, reunido em Farewell, será, aqui, guiada

por versos que Drummond escreveu em momentos anteriores de sua vida. O

poema de Farewell, por sua vez, também iluminará a leitura de “Prece de

mineiro no Rio”, que faz parte de A vida passada a limpo.

Apesar de a memorialística do poeta mineiro tomar corpo durante o

período em que vive na cidade do Rio de Janeiro e de muitos de seus textos líricos

fincarem suas bases nesse espaço (como é o caso de “Coração numeroso”, “Edifício

esplendor”, “Noturno à janela do edifício”, “A bruxa”, “Privilégio do mar”,

“Inocentes do Leblon”... e daí por diante), pouquíssimos são os poemas que elegem

essa cidade como motivo de lembrança. Talvez apenas um — “Elegia carioca”, do

livro Discurso de primavera e algumas sombras. Ou seja, a condição espacial e

temporal que envolve o acúmulo de experiência durante o período em que vive no

Rio de Janeiro proporciona ao poeta o olhar avaliador dirigido ao passado vivido em

Minas Gerais. Justamente essa oscilação entre esses mundos (Rio de Janeiro/Itabira)

e esses tempos (presente/passado) cria, por vezes, a impressão de que o poeta vive

uma dupla condição: a do eterno hóspede em terra alheia e a do filho pródigo

irremediavelmente privado de uma casa paterna, para onde pudesse retornar. Por

isso, a opção de, neste capítulo, tomar como objeto de análise dois poemas em que

se estabelece uma espécie de confronto entre o mundo urbano do Rio de Janeiro e o

universo provinciano do interior de Minas Gerais. A cidade do Rio de Janeiro aqui

tratada não será aquela percebida na vivência direta e apenas filtrada pela linguagem.

Será o Rio que se aloja na memória do poeta como elemento privilegiado no

confronto com um mundo que, na dimensão existencial, está superado.

O MIGRANTE BLOQUEADO

A ilusão do migrante

Quando vim da minha terra,

se é que vim da minha terra

(não estou morto por lá?),

a correnteza do rio

me sussurrou vagamente

que eu havia de quedar

lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos

no entrecerrar-se da tarde,

pareciam me dizer

que não se pode voltar,

porque tudo é consequência

de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim

de algum para outro lugar,

o mundo girava, alheio

à minha baça pessoa,

e no seu giro entrevi

que não se vai nem se volta

de sítio algum a nenhum.

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Que carregamos as coisas,

moldura da nossa vida,

rígida cerca de arame,

na mais anônima célula,

e um chão, um riso, uma voz

ressona incessantemente

em nossas fundas paredes.

Novas coisas, sucedendo-se,

iludem a nossa fome

de primitivo alimento.

As descobertas são máscaras

do mais obscuro real,

essa ferida alastrada

na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra,

não vim, perdi-me no espaço,

na ilusão de ter saído.

Ai de mim, nunca saí.

Lá estou eu, enterrado

por baixo de falas mansas,

por baixo de negras sombras,

por baixo de lavras de ouro,

por baixo de gerações,

por baixo, eu sei, de mim mesmo,

este vivente enganado, enganoso.

(ANDRADE, 2002, p. 25-26)

Em “A ilusão do migrante” o motivo literário da figura do migrante

é construído sobre dúvidas. Há dúvida a respeito da integridade interior do

poeta, sobre a sua ligação com o mundo provinciano de onde provém e, por

extensão, sobre a sua relação com a cidade do Rio de Janeiro, lugar

voluntariamente escolhido para habitar. A própria afirmação feita no primeiro

verso do poema (“Quando vim de minha terra”), dando conta de seu

afastamento da terra natal, é posta sob suspeita no verso seguinte, através de

uma oração intercalada iniciada pela condicional “se”, indicadora de dúvida e

incerteza.

Com efeito, a estruturação frásica das quatro primeiras estrofes

demonstra a intenção deliberada de passar a ideia da fragmentação interior do

poeta, ser dividido entre dois mundos e dois tempos. Note-se que a própria

organização sintática das duas primeiras estrofes exibe, de chofre, essa ideia.

O verso “Quando vim de minha terra”, ao articular-se como oração

subordinada que circunscreve o tempo ou o momento em que os eventos

descritos nos versos da primeira e da segunda estrofe ocorreram, indica a

princípio dois fatos: primeiro, o eu lírico propõe-se a evocar lembranças que

envolveram um determinado evento de sua vida transcorrido num passado

mais ou menos remoto, logo o poema acaba por tomar contornos de texto

memorialístico; segundo, ao evocar as impressões que provavelmente

cercaram o evento de sua retirada em definitivo da terra natal — retirada

sempre posta em dúvida no plano afetivo —, de modo a engendrar alguma

reflexão sobre sua relação com o antigo lar, o eu lírico acaba também por

meditar sobre suas relações com a cidade que voluntariamente escolheu para

viver, o Rio de Janeiro.

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No plano semântico, os treze versos iniciais constroem a ideia de

que, no nível subjetivo, é impossível a um indivíduo, profundamente

arraigado em determinado ambiente afetivo-cultural, abandonar o lugar de

suas origens de forma, por assim dizer, absoluta, e abraçar um novo espaço

sociocultural. Por conseguinte, algo que seria questão pacífica — o dado

biográfico da mudança de Drummond para o Rio de Janeiro; mais ainda: o

afastamento definitivo ocorrido a partir de 1954, data da última visita a

Itabira — começa a ser questionado. Assim, por meio da memória, é tecido

um outro nível autobiográfico, uma espécie de biografia da emoção; essa

última sempre apontando para a impossibilidade de abandonar as raízes.

No poema, a reavaliação do passado suscitada pela memória revela

que os sinais da impossibilidade da retirada absoluta já estavam anunciados

no próprio evento da partida. Mas a percepção do poeta, embotada no

passado inclusive pelos sentimentos que o acompanhavam durante a

cerimônia da despedida, não se mostrara capaz de captar os profundos

significados daquele instante, transmitidos ao espírito por intermédio do vago

e pouco nítido murmúrio suave do fluxo das águas (“a correnteza do rio/me

sussurrou vagamente/que eu havia de quedar/lá donde me despedia”); de

igual modo, não foi captado o sentido exato das vozes emanadas da paisagem

(“os morros [...] pareciam me dizer”), dissolvendo-se com o final da tarde.

Embora ouvissem, os ouvidos do poeta não estavam aptos a discernir e a

interpretar os sons que lhe chegavam, provenientes da natureza. Com efeito, a

personificação dos elementos da natureza (a correnteza do rio e os morros

que verbalizam uma mensagem ao poeta) aponta para uma mitificação da

paisagem de origem, muito embora o poeta moderno já não conseguisse ouvir

nem rios, nem montes, nem qualquer outro elemento natural. Na verdade,

mais uma vez Drummond se depara com a sua condição de poeta moderno e

a apresenta como falha. Trata-se da dificuldade de encontrar na natureza uma

linguagem compreensível e compreensiva em relação à própria alma.

De qualquer forma, em “A ilusão do migrante”, a mitificação da

paisagem rural de Minas sustenta-se na negação do tempo cursivo, eleito pela

modernidade. O rio que ali se apresenta traz o reverso da tradicional

representação do tempo heraclitiano. Em Heráclito, a correnteza anuncia o

tempo sequencial, fundado na cadeia do antes-e-depois, um tempo

irreversível, cuja qualidade distintiva fundamental é a ininterrupta e eterna

promoção de mudanças. Para o filósofo de Éfeso, a essência das coisas é o

permanente fluir (GUERRA; CARVALHO, 2002, p. 32). Mas a correnteza

do rio que fala ao poeta desmente a mudança e o permanente fluir das coisas

e do tempo. Segundo Mircea Eliade (1993, p. 135-137), na consciência mítica

está contida a possibilidade do eterno retorno, isto é, uma forma de

renovação, de reafirmação com os laços que unem o homem ao imperecível,

à unidade original. Nas sociedades “arcaicas”, a repetição sacraliza e torna o

fato mais “real” por meio de sua dupla inserção no tempo efêmero e no

eterno. A ideia do eterno retorno, a circularidade, tem sempre o mesmo

objetivo de anular a mudança e a extinção, revogando a irreversibilidade

temporal (KANGUSSU, 2008, p.137). É nesse sentido que a paisagem

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itabirana parece querer comunicar ao poeta a perenidade de um tempo

paradisíaco em que o equilíbrio vigorava; ou, como nos fala Octavio Paz

(1984, p.31), “a idade feliz do princípio, regida pela harmonia entre o céu e a

terra”. Mas, a partir da terceira estrofe, o eu lírico abandona definitivamente o

espaço mítico, onde a natureza tem o dom da revelação.

Abraçando a Modernidade laica e cética, o eu lírico cai de forma

inapelável em um mundo que, girando alheio, não lhe fala diretamente. Nesse

mundo, sobressai uma concepção de tempo linear — cristã e depois moderna.

Octavio Paz lembra que o cristianismo trouxe a ruptura dos ciclos,

instaurando a ideia de finitude e irreversibilidade temporal. Com isso, o

caráter heterogêneo do tempo é acentuado, ou seja, cada momento

transcorrido torna-se diferente do precedente e, por conseguinte, se opõe ao

eterno retorno. O tempo, em seu contínuo dividir-se, cria uma linearidade

cujo traço característico é a mudança. Na consciência mítica, a vida social

não é histórica, mas ritual; ou seja, não é constituída de mudanças, mas se

traduz na “repetição rítmica do passado intemporal”. Na concepção cristã, o

tempo é o suceder histórico — um processo irreversível que, desencadeado

no plano profano, laico e secular, traz consigo o permanente fluxo de

mudanças. De acordo com Paz,

A queda de Adão significa a ruptura do paradisíaco presente

eterno: o começo da sucessão é o começo da cisão. (...) [A]

contínua mudança é a marca da imperfeição, o sinal da Queda.

Finitude, irreversibilidade e heterogeneidade são manifestações

da imperfeição: cada minuto é único e distinto porque está

separado, cortado da unidade. História é sinônimo de queda.

(1984, p. 32)

Efetivamente, em “A ilusão do migrante”, o mundo moderno

permite à consciência do poeta uma visão parcial do transcorrer indiferente e

irreversível do fluxo temporal (“o mundo girava, alheio/à minha baça

pessoa/e no seu giro entrevi”). Mas, mesmo vendo parcialmente, o poeta

consegue divisar a história como uma degradação do tempo original, um

lento mas inexorável processo de decadência, que culmina na morte. De fato,

a persona lírica que habita as páginas de Farewell, em sua condição de

sujeito que sente a vida em vias de dissipação, perscruta, com a eficácia de

um Brás Cubas, a vida no que ela tem de sublime e de enganador (LIMA,

1997, p. 81), enxergando o ilusório das mudanças que o irrefreável fluxo do

tempo traz.

O fluir do tempo mostra-se inexorável, porém traz consigo o

necessário distanciamento temporal que, por um lado, evidencia o estado de

ruína das coisas do passado, mas, por outro, torna o indivíduo mais apto a

reavaliar e a formar uma nova compreensão de sua história. Os anos parecem

legar a Drummond a capacidade de, já no fim da vida, voltar o seu olhar para

o passado e elaborar a certeza de que a condição “de um certo nascer ali”, isto

é, de ter suas raízes fincadas em determinado solo, sentencia o indivíduo a

carregar consigo por toda a vida, como uma espécie de fardo, o passado e as

tralhas que o compõem: ecos de um tempo ido fazendo-se sempre presentes

como se habitassem dentro dos tecidos mais recônditos de nosso organismo,

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emoldurando nossa vida como “rígida cerca de arame”. Por essa óptica, o

passado não só parece estar aprisionado no mais íntimo do ser, como também

parece acorrentar às origens, tornando o ser cativo. Tudo isso é representado

na forma de rumores vindos de longe, que assombram todo o momento da

existência: “e um chão, um riso, uma voz/ressona incessantemente/em nossas

fundas paredes”.

Cravado nas regiões mais recônditas da psique, esse passado mostra-

se como mais uma versão daquele tempo imemorial durante o qual se deu o

longo processo de arraigamento do universo mineiro na intimidade. Esse

processo e esse tempo foram, aliás, aludidos de maneira bem categórica no

poema “Carrego comigo”, reunido na coletânea A rosa do povo: “Carrego

comigo/há dezenas de anos/há centenas de anos/o pequeno embrulho//(...)//Já

não me recordo/onde o encontrei./Se foi um presente/ou se foi furtado”.

Os vinte e três quartetos estruturados em versos em redondilha

menor de “Carrego comigo” deixam claro que, no pequeno volume carregado

pelo poeta, existe um cabedal. Decerto, trata-se do mesmo cabedal que legou

os traços descritos em “Confidência do itabirano” — a cabeça baixa e o

orgulho férreo, a timidez mineira, os traços de gauche... Ou seja, os versos

referem-se aos próprios elementos que ajudaram a forjar a identidade mineira

do poeta. Como assevera o psicanalista alemão Erik Homburger Erikson

(1998, p. 65), em seu livro O ciclo de vida completo, a identidade é uma

construção psíquica que surge como uma “configuração desenvolvente”, isto

é, um arranjo estrutural que incorpora, de forma progressiva, necessidades

peculiares e individuais, capacidades eleitas pelo indivíduo, identificações

significativas, defesas efetivas, sublimações bem-sucedidas e papéis

consistentes. Mas tudo isso somente pode vir à tona a partir da acomodação e

do ajuste recíprocos das potencialidades individuais com as concepções de

mundo e os sistemas de ideias religiosas ou políticas sustentados por um

grupo social de qualquer natureza. Ou seja, da interação, nem sempre

pacífica, entre o indivíduo e o grupo social ao qual ele pertence. Isso explica

por que o pequeno volume de “Carrego comigo”, aludindo à identidade

mineira do poeta, pesa-lhe sobre os ombros com o ônus de um mundo, o

mundo provinciano da Itabira das primeiras décadas do século XX. Por isso,

em alguns momentos, o eu lírico mostra-se tentado a desfazer-se do “fardo”,

lançando-o no primeiro fosso ou incinerando-o de modo a não restar dele

qualquer vestígio, nem história, nem remorso: “(...) o embrulho pesa./Vem a

tentação/de jogá-lo ao fundo/da primeira vala”. Mas o poeta sabe: desfazer-se

do embrulho (de sua identidade) significa desfazer-se de si mesmo.

De fato, essa carga parece advir da interação espinhosa que se

estabelece entre uma subjetividade forte (as potencialidades individuais

referidas por Erikson) e as concepções de mundo e as ideias religiosas

recebidas durante os anos de formação de Drummond. Assim, a identidade

mineira — o pesado pacote, não obstante leve como uma sombra, um riso ou

uma voz — revela-se como espécie de lastro existencial que acaba por

conduzir a vida do poeta:

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Ai, fardo sutil

que antes me carregas

do que és carregado,

para onde me levas?

(...)

Perder-te seria

perder-me a mim próprio.

Sou um homem livre

mas levo uma coisa.

Se, em “Carrego comigo”, Drummond sabe da impossibilidade de,

por vontade própria, desfazer-se de sua identidade mineira, em a “A ilusão do

migrante”, a proximidade da morte radicaliza essa certeza a ponto de o poeta

constatar que nem mesmo o tempo, que a tudo corrói, tem o poder de

instaurar a separação definitiva entre o migrante e suas raízes identitárias. No

âmago da emoção, a viagem de partida nunca ocorreu. A consciência da

profundidade e da extensão de suas ligações com a cidade onde nasceu,

Drummond deixou bem clara em sua última entrevista:

Tenho uma profunda saudade e digo mesmo: continuo

morando em Itabira, através das minhas raízes e,

sobretudo, através dos meus pais e dos meus irmãos, todos

nascidos lá e todos já falecidos.

É uma herança atávica profunda que não posso esquecer.

(ANDRADE, 1994, p. 37-38)

Certamente, nem mesmo o tempo pôde corroer essa ligação “atávica

profunda” com a cidade do interior de Minas Gerais. Ao contrário, parece que

o tempo e a distância cristalizaram-na. Nesse ponto, a cidade do Rio de

Janeiro acaba por desempenhar um papel preponderante nas relações do poeta

com o seu passado. Em “A ilusão do migrante”, a presença silenciosa da

capital fluminense surge trazendo consigo o presente, evocado através da

movimentação que assola a urbe moderna, representada pela agitada torrente

de “novas coisas” que se sucedem numa espécie de continuum. Se antes o

mundo, no seu giro indiferente, já havia revelado, por um lado, a possível

inconsistência da hipótese do rompimento radical com o passado e com as

raízes, agora parece trazer consigo, por outro lado, o fluir imperturbável do

tempo e este, a torrente incessante de sucessos que engolfam o passado a

ponto de quase tirar a atenção do poeta para a necessidade premente que tem

sua poesia de cultivar e nutrir-se do alimento da memória1: “Novas coisas,

sucedendo-se,/iludem a nossa fome/de primitivo alimento”. Nutrida pela

emoção, a memória constitui, ela própria, uma realidade subjetiva — e, por

isso, obscura (“do mais obscuro real”), uma vez que habita as profundezas do

interior do poeta. Por conseguinte, a presença silenciosa do Rio de Janeiro

parece, a princípio, obliterar a manifestação do passado. Os sempre

frequentes estímulos e apelos do presente dissimulam aquela realidade

1 A memória é explicitamente referida, no poema “Remissão” (Claro enigma), como

alimento da poesia de Drummond: “Tua memória, pasto de poesia”.

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esconsa, mas, como constata Drummond, não conseguem extirpá-la, visto

que, há muito, esse real obscuro já se propagou como chaga sobre o corpo

íntimo: “essa ferida alastrada/na pele de nossa alma”. Em suma, o suceder de

coisas novas, ponto axial da modernidade, não se mostra suficiente para

saciar a avidez emocional, direcionado ao alimento primitivo. A modernidade

mostra-se, portanto, como ilusão e engano; suas contínuas transformações e

contínuas descobertas apenas mascaram a realidade obscura e estável que jaz

escondida abaixo da epiderme. A emoção, que ficou ligada ao passado,

contém em si uma verdade decisiva para o poeta lírico. Essa verdade não se

refere nem tanto à origem, mas ao vazio (a “ferida”) instaurado pela ausência

dessa origem e alastrado na alma. Como já havia constatado em “Carrego

comigo”, Drummond tem ciência de que sufocar essa realidade obscura

significa estrangular a si mesmo: “Perder-te seria/perder-me a mim próprio”.

“A ilusão do migrante” parece conter em si aquilo que Franklin

Leopoldo e Silva — num ensaio em que estabelece relações entre Henri

Bergson e Marcel Proust, no que respeita algumas considerações sobre a

apreensão do tempo — constatou acerca da obra Em busca do tempo perdido:

a presença de um certo “aprendizado sobre a realidade” (SILVA, 1992, p.

149). Não exatamente no mesmo sentido que esta adquire nos romances de

formação, em que geralmente são narradas as descobertas graduais da própria

consciência e da realidade externa. A aprendizagem drummondiana diz

respeito à captação de dimensões afetivas e emocionais como definidoras do

sujeito e da única biografia dotada de consistência. No entanto, em Farewell,

livro centrado na imagem da morte, também essa realidades consistente está

sob ameaça de extinção. Por conseguinte, sendo ela própria uma instância que

resiste ao desgaste do tempo, a memória irá sucumbir a ele. O eu emocional,

tendo resistido à partida, surge morto, desde o terceiro verso. Isso significa

que a aprendizagem de si e do mundo realiza-se, sob o poder do tempo.

Como a Recherche proustiana, esta aprendizagem é “temporalmente

qualificada como dissolução, como degradação do ser, como constatação

fundamental da inscrição de todos os entes na finitude” (SILVA, 1992, p.

149). Consequentemente, trata-se de um aprendizado que concebe as coisas

prevendo de antemão a sua extinção, ou seja, que percebe a morte como

verdade extrema do desenredo da vida. Esse conhecimento conduz o poeta

mineiro irremediavelmente à percepção de si mesmo como um ser

transpassado ou cindido por dois tempos e dois mundos — por isso

experimenta na alma e no corpo a dor provocada pela desarmonia entre

passado e presente.

A procura fáustica de Drummond pelo conhecimento (a

aprendizagem sobre a realidade) leva-o à conclusão de que não apenas o

mundo pretérito da província está morto. No presente vivido na cidade

grande, o poeta depara-se com a constatação de que ele próprio, ou melhor,

aquele que ele foi um dia, parece estar morto e enterrado por lá, na velha

Itabira (“Lá estou eu, enterrado”), como estão mortas todas as coisas daquele

lugar e daquele tempo. Quem escreve o poema durante o agora e no aqui da

cidade moderna já é um outro. Trata-se de alguém que, conhecendo a

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realidade exterior e sabendo do “obscuro real” da sua própria subjetividade,

deliberadamente dissimula sua desiludida certeza para em seguida revelá-la a

si mesmo e aos outros. Mas, nesse ato, ocorre o inusitado: o poeta recria e dá

novamente vida ao eu e à cidade de um outro tempo para, através deles ou

por meio da referência a eles, dar à luz o texto poético.

Note-se que o poeta diz “Quando vim da minha terra/não vim, perdi-

me no espaço”. O segundo desses dois versos aparentemente encerra a

negação do que é afirmado no anterior, como se fosse preciso atestar o

abandono da terra natal para, em seguida, corrigir-se e negá-lo. Na verdade,

as imagens seguintes apontam para uma convivência entre diversas personae.

Drummond fala de um eu que deixou Itabira e de outro que nunca a

abandonou. A presença dessa duplicidade de personae, aliás, não é algo

inédito na sua obra poética. Na coletânea Claro enigma, ela já está presente

no poema “Sonetilho do falso Fernando Pessoa”: Onde nasci, morri./Onde

morri, existo./E das peles que visto/muitas há que não vi”.

Nesses versos, anuncia-se a ambiguidade que estará presente em “A

ilusão do migrante”: nascimento/morte/existência. Para esclarecê-la, é

necessário levar em conta, antes de mais nada, o fato de que, no “Falso

sonetilho de Fernando Pessoa”, o poeta joga com as noções de tempo e

espaço, lançando-as sempre numa espécie de vazio em que vigora a

indeterminação: o advérbio “onde”, embora indique uma circunstancia de

lugar, não alude a coordenadas espaciais mais específicas; os verbos no

pretérito perfeito carecem de um modificador temporal que precise o

momento mais ou menos exato em que os fatos (nascimento e morte)

ocorreram. No entanto, levando-se em conta que Drummond constantemente

traz para sua poesia elementos biográficos, e tendo em mente a imbricação

entre as noções de tempo e espaço, não é desarrazoado sugerir que, no

primeiro verso, a circunstancia de lugar que relaciona os dois verbos (nascer e

morrer), ambos conjugados no pretérito perfeito, reporta-se ao espaço vivido

da Itabira da infância. O segundo verso situa, no lugar da morte, o curso de

uma existência. Assim, se o morrer aparece como ação conclusa — como

sugere o verbo no pretérito perfeito —, a existência é referida como fluxo

que, tendo começado em algum instante do passado, permanece e alcança o

momento em que o poema é composto (é isso, pelo menos, o que dá a

entender o verbo existir conjugado no presente do indicativo: “existo”).

Drummond faz conviver e dialogar, dentro do seu poema, dois eus: um, que

vive no presente, e outro que, mesmo morto, vive e habita, fantasmático, o

espaço da antiga cidadezinha do interior mineiro. O poeta, inclusive, não

elimina a possibilidade de ocorrência de outros eus ou personae líricas ao

longo de sua obra. Ao contrário, ele explicitamente alude a essa

possibilidade: “E das peles que visto/muitas há que não vi”.

No poema de Farewell, Drummond deixa para a última estrofe a

expressão categórica da presença dessa pluralidade de personae. Abolindo a

expressão “se é que” indicadora de dúvida (“Quando vim da minha terra/se é

que vim da minha terra”), passa a falar de forma peremptória e,

transformando a ambiguidade em insólita certeza, afirma, sem hesitação, a

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sua perda: “Quando vim da minha terra,/não vim, perdi-me no espaço,/na

ilusão de ter saído”. Desse modo, ao afirmar “quando vim”, o poeta não

deixa dúvida de ter realizado a ação de, em certo momento de sua vida, ter

saído de determinado lugar e chegado a outro. O paradoxo é que a própria

afirmação, sendo introduzida por um advérbio de tempo, adquire a função de

localizar temporalmente uma outra ação, a de não ter vindo. Assim, a segunda

declaração, muito embora veicule uma negação, não anula a primeira, que,

todavia, especifica a circunstância temporal em que a segunda sucede. Ambas

as situações ocorrem, e de forma concomitante: o poeta veio e não veio de

sua terra natal; partindo, ele permaneceu. Ora, um tal paradoxo somente pode

ser compreendido quando se aventa a possibilidade da existência de diversos

eus ou personae que vivem simultaneamente no “obscuro real” do poeta. Do

contrário, o paradoxo se enrijece e se imobiliza na forma de uma contradição

simplista. Por conseguinte, Drummond pode referir a si próprio em tom

confessional, mas também com distância — espacial e psicológica: “Lá estou

eu”. Consequentemente, se em determinado momento parece brotar de sua

voz uma modulação trágica (“Ai de mim, nunca saí.”), o jogo de aproximação

e distanciamento, proporcionado pelo recurso de juntar no mesmo poema um

eu que fala e um outro eu de quem se fala, neutraliza o páthos que

virtualmente estaria contido na confissão. Mesmo a corrosão que o tempo

opera sobre sua história mineira — da qual restam apenas despojos ou

entulhos, resíduos do passado que, como escombros, parecem sepultar, na

pequena cidade do passado, a vida de quem habita o presente da cidade

grande — é constatada apenas com alguma emoção.

Esse duplo movimento descrito pelo eu lírico de Farewell — deixar

a terra natal e nela permanecer — traduz dois sentimentos. Drummond trata

ambiguamente o rompimento com a origem, como culpa e libertação. Em “A

ilusão do migrante”, o eu lírico intenta libertar-se das marcas do passado

provinciano — intento expresso em “Carrego comigo” na forma de uma

tentação, a de lançar o embrulho no primeiro fosso “(Vem a tentação/de jogá-

lo ao fundo/da primeira vala”), ou de queimá-lo, dispersando suas cinzas ao

vento. Ora, uma vez definido o desejo de rompimento como uma tentação, ou

seja, como um impulso para a prática de alguma coisa censurável ou não

recomendável, um outro sentimento acaba por vir à tona, o sentimento de

culpa (o remorso) de um dia ter pretendido libertar-se de suas origens (“Ou

talvez queimá-lo:/cinzas se dispersam/e não ficam sombra/sequer, nem

remorso”). No entanto, em “A ilusão do migrante”, essa culpa avulta com

tamanha intensidade, a ponto de parecer irremissível. Como bem colocou

Vagner Camilo:

À culpa experimentada como produto do afastamento ou da

negação dos desígnios e valores do clã mineiro soma-se agora a

consciência de que é ilusória toda tentativa de se desvencilhar

deles, visto agirem em cadeia, naturalizados em tara congênita.

Não é apenas a ideia de que os antepassados, embora mortos,

vivem em nós, independente de nossa vontade (...), mas também

a de que nossas ações e nosso destino são traçados por eles,

mesmo quando nos acreditamos o mais afastados deles. (2001, p.

263)

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Segundo a tese defendida por Camilo, as raízes da culpa

drummondiana estão visceralmente ligadas à maneira como a subjetividade

lírica construída pelo próprio poeta inseriu-se na dinâmica social. Uma

subjetividade engendrada a partir de um caráter dúplice: o “filho de

fazendeiro, formado nos valores irremissíveis do clã mineiro”, e o “poeta ou

intelectual (no sentido amplo do termo), que deles se afasta pela cultura

livresca”. Do interior de uma subjetividade que acolhe esses dois contrários,

deriva um sentimento de culpa bastante complexo: ora é a consciência crítica

do intelectual participante que condena sua reincidência nos ritos e valores do

clã mineiro, com tudo o que ele representa; ora é o sentimento do filho de

fazendeiro que censura sua traição aos valores familiares. Esse sentimento de

culpa começa a tomar corpo e densidade na poesia de Drummond somente a

partir de 1940, quando é publicado Sentimento do mundo. Nesse livro, surge a

percepção de que já estão fincadas as bases do crescente distanciamento

instaurado entre o poeta e o mundo provinciano do interior mineiro: a

mudança em caráter permanente para a cidade do Rio de Janeiro, a

investidura na carreira de funcionário público, a demanda de participação do

artista e do intelectual na história.

Há na condição do eu lírico de “A ilusão do migrante” algo que

lembra a figura trágica do Judeu Errante (aquele que, segundo a lenda,

testemunhou Cristo e o ofendeu durante o seu martírio, sendo por isso

condenado a errar para sempre, sem direito à própria morte que perdeu, no

instante da afronta)2 — notadamente no que diz respeito a certa ambiguidade

desta personagem, realçada fundamentalmente a partir do século XVII e

difundida no século XIX através das então populares estampas coloridas

denominadas de Imagens de Epinal.3 De acordo com Marie-France Rouart,

foi comum, nesse período, a representação desta figura ora como o homem

submetido ao constante fluxo da mudança espacial, que, cruzando diferentes

terras e mares, nunca se detém em parte alguma; ora como o ancião

experiente que, sempre rodeado de pessoas, narra os episódios de suas

andanças e responde às perguntas dos que lhe ouvem as narrativas

(ROUART, 2005, p. 665-672). Estas duas imagens, no entanto, acabaram por

se fundir na medida em que o tratamento artístico da lenda, por esse tempo,

2 O mito do Judeu Errante surgiu na Idade Média e faz parte dos mais remotos ciclos

de tradições orais cristãs. Até onde se sabe, foi fixado em linguagem escrita pela

primeira vez no século XIII por um monge beneditino, Mathieu Paris, na Inglaterra.

O mito relata a história de um contemporâneo de Jesus Cristo, um judeu conhecido

como Ahasverus, estabelecido em Jerusalém. Consta que no dia da crucificação,

quando Jesus Cristo passava pela porta do estabelecimento do judeu (um curtume,

uma oficina de sapateiro ou uma carpintaria), o peso do madeiro que levava aos

ombros fez-lhe vergar. Ahasverus, empurrando-o, bradou-lhe que não parasse ali,

que não descansasse, que fosse andando até à colina, onde deveria ser crucificado.

Como castigo, Ahasverus teria sido condenado a vagar pelo mundo, sem nunca

morrer, até a volta do Cristo no Juízo Final. Embora envelhecesse, a cada cem anos,

ele voltaria à idade que tinha no tempo da crucificação. 3 As Imagens de Epinal (L'imagerie d'Épinal) são estampas coloridas divididas em

pequenos quadros (geralmente em número de doze e com texto sob cada um deles)

que narram, por meio de imagens, que nem sempre mantêm uma sequência rígida,

acontecimentos históricos e bíblicos e contos populares. As Imagens de Epinal são

consideradas as precursoras das histórias em quadrinhos modernas.

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propôs uma estrutura totalizante. Para nossa análise, evidentemente, não nos

interessa discutir o mérito religioso do pecado perpetrado pela personagem.

Importa mais analisar a forma peculiar da expiação da culpa. É justamente

nesse ponto que o mito do Judeu Errante estabelece certa comunicação com

“A ilusão do migrante”.

Está claro que o sentimento de culpa do eu lírico de Farewell não

apresenta qualquer conotação religiosa. Sua falta sobressai no instante da

partida, momento em que perde sua identidade com a paisagem de origem.

Deste momento em diante, tem como destino sobreviver fantasmaticamente

em outras paragens para expiar — purgando e falando do seu castigo, como o

Ahasverus descrito nas Imagens de Epinal — a traição que cometeu. E para

falar de sua condição, Drummond precisa cavar o solo da memória,

revolvendo camadas depositadas pelo tempo. Nesse esforço, encontra a si

mesmo irremediavelmente sepultado, como um morto-vivo, sob as ruínas de

um mundo findo: “Lá estou eu, enterrado/por baixo de falas mansas,/por

baixo de negras sombras,/por baixo de lavras de ouro,/por baixo de

gerações,”. Sua palavra evoca e invoca um mundo extinto. Nesse trabalho de

purgação, o passado insinua-se, infiltra-se no presente, na forma de vozes

aparentemente silenciadas pelo tempo, de imagens obscuras, de riquezas

dissipadas, de genealogias perdidas, acordando uma subjetividade quase

esquecida: “Lá estou eu, enterrado/(...)/por baixo, eu sei, de mim mesmo”.

Desse modo, o ato de purgação do poeta, ao se efetivar por intermédio da

memória e da palavra — que, “no fundo inseparáveis, são a condição de

possibilidade do tempo reversível” (BOSI, 1992, p. 28) —, consegue realizar

aquilo que somente o mito poderia ser capaz: a anulação do tempo. Como nos

diz Alfredo Bosi,

O tempo em que se dizem os mitos e o tempo em que se cultuam

os mortos também se caracterizam por ser uma com-posição de

recorrências e analogias. A sua nota principal é a reversibilidade.

Reversibilidade que é estrutural, pois abraça retornos internos.

(...) A reiteração dos movimentos, feita dentro do sujeito, faz

com que este perceba que o que foi pode voltar: com essa

percepção e com o sentimento da simultaneidade que a memória

produz (...) nasce a ideia do tempo reversível. O tempo reversível

é, portanto, uma construção da percepção e da memória: supõe o

tempo como sequência, mas o suprime enquanto o sujeito vive a

simultaneidade. O mito e a música, que trabalham a fundo a

reversibilidade, são “máquinas de abolir o tempo”, na feliz

expressão de Lévi-Strauss. Ora, a condição de possiblidade do

mito e da música é a memória, aquela memória que se dilata e se

recompõe, e à qual Vico chama de fantasia. A memória vive do

tempo que passou e, dialeticamente, o supera. (BOSI, 1992, p. 27.

[Grifos do autor])

A memória, portanto, ao anular o caráter irreversível do tempo,

revela a profunda ilusão do eu lírico. De fato, a reavaliação do passado, feita

pela memória, mostra que o ato migratório foi nulo. Nesse sentido, a própria

passagem do tempo, desde o momento da retirada, mostra-se inconsistente.

Na reavaliação do poeta, o que de fato mostra consistência é o real obscuro e

profundo. Ou melhor, é a falta desse real, marcada na existência emocional

como uma ferida aberta, isto é, como perda de potência, como limite e

castração. No “balanço” da vida — e Farewell é essa espécie de exame

escrupuloso de toda uma vida — o real obscuro e profundo é um morto diante

do qual a emoção para sempre estancou. Negando a consistência da migração

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no plano emocional, o poeta nega consistência à vida que viveu e, em última

estância, contamina com essa visão a própria história brasileira do século XX,

em sua passagem do mundo arcaico rural para a modernidade urbana4. A

ocorrência sucessiva do novo — princípio fulcral do mundo moderno —

parece sempre ter estado ali como ilusão: ela jamais conseguiu aplacar a

necessidade do primitivo alimento, apenas iludiu a fome.

Certamente, a memória, como o mito, trabalha com o movimento de

retorno. Drummond tem consciência de que a reversibilidade temporal tanto

pode responder a uma demanda da memória, quanto a uma vontade

mitopética. A possibilidade do tempo que retrocede revalida a aliança do ser

humano com uma imperecível origem. No mundo moderno, a memória é uma

tentativa humana de sair do tempo heraclitiano, tempo da mudança, da

necessidade. E o canto lírico, ao lançar mão da memória ou da vontade

mitopoética, constitui-se também como esforço de fuga ao tempo profano, ou

como tentativa de inserção desse tempo no não-tempo do mito. Em “Prece de

mineiro no Rio”, poema reunido na coletânea A vida passada a limpo, o

poeta, convertido em um tipo de suplicante, invoca a tradição (no sentido

4 Nesta afirmação, remeto a análise do texto lírico de Drummond à observação que

Octavio Paz faz, no prefácio de Os filhos do Barro, sobre o estatuto do poema na

modernidade. Paz define o poema como um artefato constituído da linguagem, dos

ritmos, das crenças e obsessões do poeta e da sociedade. Na verdade, é resultado de

uma história e de uma sociedade, conquanto seu modo de ser histórico seja

paradoxal e contraditório. Assevera Paz que o “poema é uma máquina que produz

anti-história, ainda que o poeta não tenha essa intenção” (p. 11). Isto porque o ato

poético fundamenta-se em uma inversão ou conversão do fluir temporal. Se não

detém o tempo, o poema o contradiz e o transfigura. (cf.: PAZ, 1984, p. 11)

benjaminiano do termo)5 de Minas Gerais, personificada na forma de um

espírito, o “Espírito de Minas”, rogando-lhe que esta venha realizar a difícil

tarefa de impedir ou amenizar a corrosiva ação do tempo histórico sobre o

espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro e sobre a própria existência do

suplicante.

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5 Ou seja, “tradição” não como a persistência de velhas formas, mas como um

elemento vital da cultura cujo conteúdo é desvinculado do continuum histórico para,

através do ato comunicativo de transmissão da experiência, apresentar-se inserido no

presente — tempo este construído enquanto processo de desarticulação e

reconstituição da tradição.

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