Família Egito Antigo

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  • A ORGANIZAO FAMILIAR NO ANTIGO EGITO:

    UM ESTUDO ATRAVS DE FONTES DO REINO MDIO (c. 2040-1640 a.C.)1

    Liliane Cristina Coelho2

    Resumo: Os estudos sobre a sociedade egpcia so baseados em diversos tipos de fontes, que vo desde os artefatos recuperados em escavaes arqueolgicas, at aquelas relacionadas a remanescentes de casas e cidades da Antiguidade. Com relao famlia, as estelas funerrias, erigidas para preservar a memria e garantir provises de alimentos para os mortos, esto entre os principais documentos. Contudo, existem papiros, como um encontrado na cidade de Kahun, que contm a relao de membros de uma casa, num dado momento. Esses, pertencentes principalmente ao perodo conhecido com Reino Mdio (c. 2040-1640 a.C.), trazem informaes importantes sobre a famlia egpcia, e sobre a extenso do ncleo familiar. Assim, neste artigo, apresentaremos alguns dados obtidos sobre a organizao familiar atravs da anlise de estelas funerrias, bem como faremos uma breve explanao sobre o papiro de Kahun, por meio de sua traduo. Palavras-chave: Egito Antigo; Sociedade; Famlia; Reino Mdio. Abstract: The studies about the Egyptian society are based on diverse types of sources, which go since the artifacts recouped in archaeological digs, until those related the remainders of houses and cities of the Antiquity. With regard to the family, funerary stelae, erected to preserve the memory and to guarantee food provisions for deceased, are between main documents. However, there are some papyruses, as an example found in the city of Kahun, which contain the relation of members of a house, in a brief moment. These, pertaining mainly to the period known as Middle Kingdom (c. 2040-1640 B.C.), bring important information on the Egyptian family, and the extension of the familiar nucleus. Thus, in this paper, we will present some data gotten on the familiar organization through the analysis of funerary stelae, as well as we will make one brief explanation on the papyrus of Kahun, through the examination of its translation. Key words: Ancient Egypt; Society; Family; Middle Kingdom.

    Introduo:

    Presentes em grande quantidade nas colees egiptolgicas de todo o mundo, as

    estelas funerrias constituam um artefato importante para o tmulo de um egpcio antigo.

    Tais monumentos trazem, em princpio, trs elementos essenciais para assegurar a vida aps a

    morte. Primeiramente, aparecem as inscries, sendo que a mais importante delas a frmula

    de oferendas, que garante as provises para o morto. Em segundo lugar, h oraes, o nome e

    o ttulo do falecido, datas e informaes genealgicas. Por ltimo, como terceiro elemento, h

    a representao do morto diante de uma mesa recoberta de alimentos, elemento fundamental

    para que ele possa viver eternamente. As estelas no estavam apenas acessveis elite, mas a

    1 Este artigo foi publicado originalmente nos Anais da VII Jornada de Histria Antiga: Vida, Morte e Magia no Mundo Antigo. Referncia: COELHO, L. C. . A Organizao Familiar no Antigo Egito: um Estudo Atravs de Fontes do Reino Mdio (2040-1640 a.C.). In: VII Jornada de Histria Antiga: Vida, Morte e Magia no Mundo Antigo. Rio de Janeiro : Editora da UERJ, 2007. v. 1. p. 97-104. 2 Graduada em Histria pelo Centro Universitrio Campos de Andrade. Especialista em Literatura Brasileira e Histria Nacional pela UTFPR. Mestre em Histria Antiga pela UFF. Integrante do Projeto de Pesquisa Interinstitucional Egiptomania no Brasil: sculos XIX e XX Paran.

  • uma grande parcela das camadas intermedirias, cujos indivduos tinham condies de

    pagar pelo trabalho de confeco do monumento. Assim, so fontes valiosas para estudos

    sobre a sociedade do antigo Egito.

    Da mesma forma, a sociedade egpcia nos legou alguns papiros, pertencentes

    principalmente ao perodo conhecido como Reino Mdio (2040-1640 a.C.)3, mais

    especificamente s XII (1991-1783 a.C.) e XIII (1783-1640 a.C.) Dinastias, que trazem a

    relao de pessoas, aparentadas ou no ao proprietrio, que viviam em uma casa. Estes, assim

    como as estelas funerrias, so fontes fundamentais para o conhecimento da organizao

    familiar no Egito antigo, e sobre a extenso da famlia egpcia.

    Com base nesses documentos, e verificando a possibilidade de reunirmos um corpus

    documental acessvel atravs de publicaes ou por meio de peas mantidas em museus

    brasileiros, desenvolvemos um projeto de estudo que visa a investigao da organizao

    familiar no Egito, durante o perodo conhecido como Reino Mdio. Dentre os objetivos dessa

    pesquisa esto a anlise da extenso do ncleo familiar, o modo como cada personagem

    representada e sua respectiva posio no contexto familiar, a partir de seus ttulos.

    Como metodologia para a anlise das estelas funerrias, empreendemos um estudo

    iconogrfico, baseado em uma ficha de anlise proposta pelo Prof. Dr. Ciro Flamarion

    Cardoso. Para a leitura das imagens e dos respectivos gestos ser utilizada a metodologia de

    Richard Wilkinson, a qual consiste, em linhas gerais, em uma interpretao das figuras a

    partir da escrita egpcia. Assim, as imagens so lidas como se fossem sinais hieroglficos.

    Para a anlise do papiro, foi realizada a leitura de sua traduo para a lngua portuguesa,

    realizada pelo Prof. Dr. Ciro Cardoso, bem como daquela publicada em ingls, no final do

    sculo XIX, por F. Ll. Griffith, e os comentrios contidos em sua obra.

    A famlia:

    Os antigos egpcios no estabeleciam uma distino clara entre meio familiar, meio

    social e meio profissional. Muitas vezes, seus colegas de trabalho so seu pai, seus filhos,

    seus irmos e cunhados, e ainda vizinhos e amigos (VALBELLE, 1990). Era comum para as

    famlias de trabalhadores habitarem em um bairro especfico, dedicado a uma profisso, ou

    ainda em uma vila de operrios. Dessa maneira, as melhores informaes que se tm sobre a

    famlia no antigo Egito so as que se encontram em documentos provenientes dessa camada

    3 As datas seguem a cronologia proposta por BAINES, J. & MLEK, J. O mundo egpcio: deuses, templos e faras. Madri: Ediciones del Prado, 1996. v.1. p.36.

  • intermediria da populao, situao bem diferente daquela dos camponeses, cujos registros

    so praticamente inexistentes (CAMINOS, 1994).

    Os egpcios no conheciam uma palavra especfica para designar a famlia, apesar de

    dar grande importncia ao ncleo familiar. Estudos realizados sobre o tema nos mostram que

    havia uma relao bastante contgua entre os membros mais prximos, ou seja, o pai, a me e

    os filhos, enquanto que com outros parentes essa relao seria mais distante, ou frouxa

    (ANDREU, 2005). Palavras que normalmente utilizamos para descrever os parentes prximos

    (tio, tia, primo, entre outras) so desconhecidas na lngua egpcia. Entretanto, os egpcios

    recorreram a expresses compostas para expressar relaes mais complexas. Por exemplo,

    para mencionar av escrevia-se pai do pai. Assim, essa forma nos leva a um modo

    particular de expresso cultural que faz uma ligao direta entre as geraes. Ou seja, se o

    indivduo tem um filho, este ser tambm filho de seu pai.

    A educao era, at uma determinada idade, uma obrigao da me. A partir dessa

    idade, no caso dos meninos, passava a ser uma obrigao do pai, a quem eles acompanhavam

    no trabalho como ajudantes ou sucessores (WENZEL, 2001). No caso de seguirem uma

    profisso diferente daquela de seu pai, eram enviados para escolas, que geralmente se

    situavam prximas aos templos, para aprender uma nova profisso. Idia essa que aparece

    sugerida na Stira das Profisses, texto datado originalmente da XII Dinastia, no qual um pai,

    chamado Khti, viaja com seu filho Ppy, para deix-lo na escola dos livros.

    Era funo do pai garantir o sustento da famlia, e dar exemplo aos filhos para que,

    desde jovens, tivessem a mesma idia de ncleo familiar e, assim, fundassem sua prpria

    famlia. Mas, aos filhos, cabia a funo de assistirem aos seus pais, tanto na velhice, quanto

    aps a morte, uma vez que esses seriam tambm os responsveis pela manuteno do culto

    funerrio aos seus progenitores (BREWER & TEETER, 1999; ANDREU, 2005).

    Assim como na vida diria a unidade familiar era importante, conforme fica evidente

    atravs da anlise dos textos presentes nos papiros, essa tambm o seria na vida aps a morte,

    o que demonstrado pelas representaes dos membros familiares nos monumentos

    funerrios, dentre os quais figuram as estelas, um dos objetos de nosso estudo.

  • As estelas funerrias:

    As estelas funerrias aqui apresentadas pertencem coleo Museu Nacional.

    Optamos por esses exemplares por serem considerados mais significativos, dentro do corpus

    documental analisado, para o estudo das relaes familiares no Egito do Reino Mdio.

    Descrio da Estela de Werhap-Renefseneb4

    Figura 1: Estela de Werhap-Renefseneb. Fonte: KITCHEN, K. A.; BELTRO, M. da C. Catalogue of the Egyptian collection in the Nacional Museum, Rio de Janeiro. Warminster: Aris & Phillips Ltda, 1990, v.2, p.4.

    Na luneta, h o cartucho com o prenome de Amenemhat IV, ladeado por duas

    representaes de um chacal deitado sobre um pavilho divino. Acima das figuras, h um

    disco solar alado. As legendas ao lado de cada uma das representaes de Anbis ou

    Uapuauet o identificam como Senhor do Territrio Sagrado; que fica sobre sua montanha.

    Abaixo, h duas linhas de texto, que devem ser lidas da direita para a esquerda.

    4 Os nomes e ttulos presentes nas estelas foram consultados nas tradues presentes em KITCHEN, K. A.; BELTRO, M. da C. Catalogue of the Egyptian collection in the Nacional Museum, Rio de Janeiro. Warminster: Aris & Phillips Ltda, 1990, v.1.

  • No registro principal, Werhap-Renefseneb est sentado em uma cadeira com pernas de

    leo e encosto baixo. Essa posio, seguindo a metodologia proposta por Wilkinson, pode ser

    lida como o hierglifo que significa nobre. Werhap-Renefseneb aparece com uma peruca

    curta, que cai por trs dos ombros, com um colar largo e um saiote triangular curto. Sua mo

    esquerda est posicionada sobre o peito. Embaixo da cadeira h uma criana, identificada

    como seu filho, Renseneb. frente do morto h a representao de uma mesa de oferendas

    onde se vem uma pata dianteira de um bovdeo, molhos de cebolas, pes cnicos e redondos,

    a cabea de um bovdeo, pedaos de carne, cestos com frutas e uma ave. Sob a mesa, h outra

    criana, identificada como filho de Werhap-Renefseneb, Werhap Junior, e dois vasos de

    libao. direita da mesa, h dois homens, um dos quais carrega um pedao de carne, que

    oferece ao morto. Este est representado com um saiote triangular curto, e com um colar

    largo. A legenda o identifica como o sobrinho de Werhap-Renefseneb, Amenemhat-

    Senebhenaef. O outro homem, cujo grau de parentesco com o morto no revelado, porta

    uma peruca curta, que lhe cai pelos ombros, um colar largo e um saiote longo.

    No segundo registro, esto representados trs homens e trs mulheres, sentados, tendo

    ao centro um menino, em p. A criana identificada como Hor, e a mulher que aparece a sua

    frente est nomeada como sua me, Setamon As outras mulheres, assim como os homens, no

    tm seus graus de parentesco com o morto explicitados no monumento, conforme

    demonstram as legendas que os identificam.

    No ltimo registro esto representados trs homens e cinco mulheres, tambm

    sentados. Nas legendas que os identificam no possvel levantar o seu grau de parentesco

    com Werhap-Renefseneb.

    Descrio da Estela de Resu

    A estela comea com quatro linhas de texto, sendo que a primeira deve ser lida do

    centro para a esquerda e para a direita, e as seguintes da direita para a esquerda. No registro

    principal, Resu est representado sentado em uma cadeira com encosto baixo e pernas na

    forma de patas de leo, segurando prximo face uma flor de ltus. sua frente, h uma

    mesa de oferendas, sobre a qual h um molho de cebolas, trs pes cnicos e trs redondos, e

    um pato. Embaixo da mesa h um vaso de cerveja e um vaso alongado. No lado direito da

    estela, aparece uma mulher sentada, representada em escala menor que a do homem, e que

    identificada pela legenda como a Senhora da casa Sat-Neb-Seshenu.

  • Figura 2: Estela de Resu. Fonte: KITCHEN, K. A.; BELTRO, M. da C. Catalogue of the Egyptian collection in the Nacional Museum, Rio de Janeiro. Warminster: Aris & Phillips Ltda, 1990, v.2, p.12.

    Abaixo do registro principal h mais uma linha de texto, que deve ser lida da direita

    para a esquerda, e que identifica os personagens figurados no registro inferior. Neste, esto

    representados trs homens sentados, todos com flores de ltus prximas face. Os dois

    primeiros so identificados, pelas legendas, como irmos de Resu, respectivamente Akhef e

    Impi. O outro no tem o seu grau de parentesco com o morto explicitado no monumento.

    A estela termina com duas linhas de texto, onde so relacionados nomes de pessoas

    que podem ou no fazer parte do crculo familiar de Resu. Podem ser servos ou amigos do

    morto, ou mesmo familiares mais distantes, pois tais textos no deixam clara a sua relao

    com o morto.

  • Descrio da Estela de Montu-Sekher

    Figura 3: Estela de Montu-Sekher. Fonte: KITCHEN, K. A.; BELTRO, M. da C. Catalogue of the Egyptian collection in the Nacional Museum, Rio de Janeiro. Warminster: Aris & Phillips Ltda, 1990, v.2, p.28.

    Na luneta, h a representao de dois olhos de Hrus, ladeados por chacais deitados

    sobre pavilhes divinos, identificados como Uapuauet do Sul e Uapuauet do Norte. Abaixo,

    h trs linhas de texto, que devem ser lidas da esquerda para a direita.

    A estela est quebrada, faltando-lhe uma parte da poro direita. No registro superior,

    v-se o morto sentado, representado com uma peruca que chega aos ombros e um saiote.

    sua frente h uma mesa de oferendas onde se vem dois pes cnicos e um redondo, e um

    mao de cebolas. frente da mesa de oferendas, no lado direito, h uma figura masculina,

    representada com um saiote triangular curto, e com uma das mos levantadas, em posio que

    pode ser lida segundo o hierglifo oferecer, conforme a metodologia proposta por

    Wilkinson. A legenda revela que se trata de um filho de Montu-Sekher, identificado como

    Montuhotep. Outra legenda, danificada em sua parte final, revela que a figura perdida a de

    uma mulher, identificada como a esposa do morto, Renseneb.

    No registro inferior, esquerda, h a representao de um homem sentado, trazendo

    em uma das mos uma flor de ltus. A legenda o identifica como o funcionrio menor,

    Poshi. sua frente, h, como na cena anterior, uma mesa de oferendas, atualmente

  • fragmentada, onde se vem um po cnico e um po redondo. frente da mesa, um homem,

    identificado como filho de Poshi, Iwfseneb, est representado com uma das mos elevadas,

    em sinal de oferecimento.

    A famlia nas estelas funerrias:

    A partir das anlises efetuadas, pode-se verificar que o ncleo familiar sempre

    organizado a partir do proprietrio da estela, sendo que em dois dos casos aqui mostrados os

    donos aparecem em destaque, fato que est diretamente relacionado sua importncia social.

    No caso da estela de Montu-Sekher, o dono tambm aparece em destaque, mas h

    outra personagem, Poshi, que representado com a mesma importncia social do morto.

    Embora a inscrio principal esteja direcionada a Montu-Sekher, a estela dividida em duas

    cenas anlogas, o que pode representar que Poshi era uma pessoa muito ligada ao morto, ou

    que a estela foi erigida em honra aos dois personagens.

    A importncia dos proprietrios das estelas de Resu e Werhap-Renefseneb

    demonstrada pela forma como os dois so representados. Os dois aparecem sentados em

    cadeiras de encosto baixo, posio essa que pode ser lida conforme o hierglifo nobre. Os

    outros personagens representados aparecem em escala menor, estando, na estela de Resu,

    todos sentados, e na de Werhap-Renefseneb apenas trs em p, dentre os quais uma criana.

    No que se refere representao da famlia, algumas informaes interessantes podem

    ser retiradas dos monumentos. Em primeiro lugar, em relao me do morto. Apesar de esta

    ser uma representao comum nas estelas funerrias, apenas na estela de Resu h uma suposta

    figurao da me, sendo esta apenas nomeada na estela de Werhap-Renefseneb e ausente no

    monumento dedicado a Montu-Sekher. O fato, porm, de se representar ou nomear, na

    maioria das vezes, apenas a me, no sendo freqente o aparecimento do nome do pai, mostra

    uma caracterstica importante na sociedade egpcia: a linhagem familiar mostrada, na maior

    parte das vezes, pelo nome da me. Numa anlise realizada em 27 estelas funerrias,

    observou-se esta caracterstica em 19 delas.

    Outra observao importante relacionada s pessoas que so representadas nas

    estelas funerrias. Nos casos aqui analisados, aparecem parentes como a me, irmos, irms,

    filhos e at mesmo sobrinhos. Cada monumento deve ser analisado separadamente, pois

    apresenta caractersticas distintas que merecem ser discutidas. Vale lembrar que os egpcios

    no tinham em sua lngua palavras especficas para tio, ou sobrinho, por exemplo, e que

  • tais relaes eram escritas como irmo de seu pai ou filho de sua irm, e por isso

    ocupariam grandes espaos nos monumentos.

    Na estela de Werhap-Renefseneb quem aparece fazendo a oferta de um pedao de

    carne para o morto, funo relacionada ao filho mais velho, o seu sobrinho Amenemhat-

    Senebhenaef. Isso pode estar relacionado a dois fatores: ou ao proprietrio da estela ter

    morrido jovem, sem filhos, ou ao fato de seu filho mais velho ser muito pequeno para carregar

    essa oferenda. O outro homem representado no registro principal no tem seu grau de

    parentesco com o morto definido, o que pode ter acontecido devido falta de espao no

    monumento para que essa relao fosse explicitada, ou ao fato de ser ele um amigo ou servo

    do falecido. As duas crianas representadas nesse primeiro registro no so identificadas

    claramente como filhos do morto, mas isso pode ser deduzido em funo de sua proximidade

    com o mesmo.

    interessante observar, ainda com relao a esse monumento, que existe a

    representao de seis homens e oito mulheres nos registros inferiores, alm de uma criana.

    De todas essas pessoas, apenas uma mulher tem seu grau de parentesco com o morto

    identificado, sendo esposa de seu irmo, me do jovem que faz a oferenda de carne, e da

    criana representada. Os outros podem ser, conforme discutido anteriormente, parentes que

    no tiveram explicitadas as suas relaes, ou amigos e servos do proprietrio da estela.

    A estela de Resu apresenta uma caracterstica um pouco diferente em relao de

    Werhap-Renefseneb. Em primeiro lugar, porque a me do morto supostamente representada,

    e depois por haver apenas um personagem que no tem um grau de parentesco com o falecido

    explicitado. Nesse monumento, figuram no registro inferior trs personagens masculinas,

    sendo dois irmos de Resu e um escriba, que provavelmente seja um amigo, devido ao ttulo

    atribudo ao morto. Porm, tal personagem pode tambm ser um parente distante, cuja relao

    com Resu no foi especificada.

    O monumento dedicado a Montu-Sekher, dentre eles, o que traz menos informaes

    sobre a famlia do morto. Nessa estela, esto representados apenas a esposa e o filho, tanto de

    Montu-Sekher, quanto de Poshi. No h referncia s mes ou a irmos e outros parentes de

    nenhum dos dois, configurando um caso em que apenas o ncleo familiar, formado por pai,

    me e filho representado.

  • O Papiro de Kahun

    Figura 4: O Papiro de Kahun. Fonte: GRIFFITH, F. Ll. (ed.). The Petrie Papyri: Hieratic papyri from Kahun

    and Gurob. London: Bernard Quaritch, 1898. pl. IX.

    Este documento faz parte de um lote de papiros selados encontrados em uma das

    residncias de Kahun. Foi encontrado durante as escavaes efetuadas por W. M. Flinders

    Petrie na cidade de Kahun, entre os anos de 1888 e 1890, juntamente com outros do mesmo

    perodo. Kahun, ou Senusret-hotep (Senuosret est satisfeito), como era chamada na

    antiguidade, est localizada no Fayum, prximo a um dos canais que levam a gua do Nilo

    para a regio. A cidade foi construda para abrigar os construtores da pirmide de Senuosret

    II, em Lahun, e os sacerdotes responsveis pelo seu culto funerrio (DAVID, 1986). Alguns

    autores, como Eric Uphill (1988), no entanto, consideram que a localidade tenha sido

    utilizada como residncia real por esse fara.

    A cidade de Kahun foi habitada por um perodo de aproximadamente cem anos. O

    abandono de algumas casas antes desse perodo nos legou muitos artefatos, como ferramentas

    em bronze, assim como documentos escritos, como os papiros, que nos ajudam a reconstruir a

    histria daquela cidade. Segundo os relatos de Petrie (s/d), muitas casas foram utilizadas,

    depois de abandonadas, como tumbas para enterramentos de crianas. Estas eram inumadas

    com oferendas, como jias e outros artefatos. Tambm proveniente de Kahun, de uma

    dessas casas, o primeiro modelo de equipamento utilizado para fazer fogo pelos egpcios.

    Os vestgios mais interessantes, contudo, so os papiros encontrados na cidade, e que

    do pistas sobre o cotidiano da populao. Antes dessa descoberta, havia apenas cinco

  • papiros datados desses primeiros tempos da histria egpcia (PETRIE, s/d), e esses puderam

    juntar-se aos j conhecidos como um recurso adicional s novas pesquisas. Os papiros de

    Kahun foram posteriormente traduzidos e comentados por F. Ll. Griffith, e publicados sob o

    ttulo de The Petrie Papyri: Hieratic papyri from Kahun and Gurob (1898).

    A importncia do papiro aqui apresentado, em particular, est no fato de que este traz

    um inventrio dos membros de uma famlia, em um dos estgios de habitao das residncias

    de Kahun. Com a leitura desse documento, possvel levantar uma genealogia, ainda que

    incompleta, para a famlia de Snefru. Esto relatados, no papiro, os nomes de seu pai, sua

    me, das avs paterna e materna, e de trs de suas tias, irms de seu pai.

    Estas informaes, ainda, podem ser complementadas atravs do estudo de outros

    fragmentos encontrados juntamente com este traduzido, e que complementam a genealogia de

    Snefru. Nas mesmas pranchas onde esto representadas as fotografias e as transcries para a

    escrita hieroglfica do documento I.3 de Kahun, contam outros dois documentos, I.4 e I.5, que

    contm inventrios das pessoas que viviam na mesma casa, em diferentes pocas. Esses

    fragmentos, com certeza pertencentes tambm famlia de Snefru, complementam a sua

    genealogia, e ajudam a compreender as mudanas no ambiente familiar em funo, por

    exemplo, da morte do av de Snefru, que pode ter resultado na ida de sua av paterna e de

    suas tias para a casa de seu pai.

    Demonstra-se, assim, a importncia desse tipo de documento para uma melhor

    compreenso da extenso da famlia egpcia, que transita entre nuclear e extensa em uma

    mesma casa e em uma mesma gerao.

    Consideraes finais:

    O estudo aqui apresentado demonstra a possibilidade de uso das estelas funerrias e

    dos papiros jurdicos como fontes para a pesquisa sobre a sociedade no antigo Egito. A

    representao da famlia nas estelas, bem como a nomeao de membros que vivem em uma

    casa, podem ser utilizados para uma melhor compreenso dessa comunidade como um todo.

    Existem muitas lacunas no estudo realizado, mas estas podero ser preenchidas no seu

    devido tempo, atravs do estudo de outras estelas dedicadas aos mesmos proprietrios. Isso

    porque, fazendo parte de um cenotfio ou uma capela em Abydos, existiriam possivelmente

    trs estelas funerrias dedicadas a cada proprietrio, alm de uma mesa de oferendas e uma

    esttua da pessoa que mandou erigir o memorial. Cada um desses artefatos, desse modo, pode

    conter informaes que preenchem os espaos deixados pelo estudo de um objeto nico. Isso

  • demonstrado pelo estudo realizado por Kitchen (KITCHEN & BELTRO, 1990) com

    algumas das estelas pertencentes coleo do Museu Nacional, que tm suas complementares

    pertencentes a colees de outros museus.

    Contudo, segundo Simpson (1974), no possvel afirmar que todas as estelas que se

    convencionou dizer que so de Abydos realmente so. Segundo ele, apenas aquelas escavadas

    por Mariette, e que foram direcionadas para o Museu do Cairo, com certeza tm essa

    procedncia. Quanto s restantes, s possvel afirmar que so de Abydos se possurem a

    seguinte frmula: Eu constru minha capela no Terrao do Grande Deus. Em sua obra,

    Simpson faz um inventrio das estelas pertencentes a museus europeus e que foram adquiridas

    entre os anos de 1820 e 1827, e que teriam como procedncia incerta os cenotfios e capelas

    de Abydos. Dentre estas, existem algumas que so dos mesmos proprietrios de algumas das

    estelas funerrias pertencentes coleo do Museu Nacional, o que as colocaria no rol das

    estelas provenientes de Abydos.

    Ainda segundo Simpson, as informaes provenientes das estelas funerrias podem ser

    complementadas com o estudo de outros monumentos dedicados s mesmas pessoas. Essa

    uma tarefa difcil, mas que com certeza tem grande utilidade para o entendimento da

    organizao familiar no Egito antigo, durante o perodo conhecido como Reino Mdio (2040-

    1640 a.C.).

    Para auxiliar nesse entendimento, surgem os papiros com inventrios das pessoas que

    viviam em uma casa, e que formavam, assim, uma unidade domstica. Esses papiros, segundo

    Valbelle (1998), so exclusivos do Reino Mdio, e trazem informaes importantes sobre a

    famlia egpcia. Dessa forma, so documentos importantes para o levantamento do nmero de

    membros de uma famlia, e para a verificao de informaes como a existncia de famlias

    nucleares no antigo Egito.

    As informaes obtidas a partir desse material demonstram que possvel realizarem-

    se estudos sobre o antigo Egito no Brasil, e que tais pesquisas so viveis. Fontes primrias de

    estudo, como as estelas funerrias, podem ser obtidas atravs de catlogos de museus, ou

    mesmo atravs da internet, nos sites dos museus a que pertencem as peas.

    Referncias Bibliogrficas

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