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1 FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DE SÃO PAULO FACIS Helena Aparecida Verderamis Sellani, Maria Inez Collado e Paulo Rogério Sellani A sombra na contemporaneidade Considerações sobre a influência da sombra no processo de gestão e nas relações de trabalho ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOLOGIA JUNGUIANA São Paulo 2012

FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DE SÃO PAULO FACIS · 5 SUMÁRIO Resumo ... Capítulo 1 A estrutura da ... pessoas: teoria das relações humanas e suas implicações – motivação

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FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DE SÃO PAULO

FACIS

Helena Aparecida Verderamis Sellani, Maria Inez Collado e Paulo Rogério Sellani

A sombra na contemporaneidade

Considerações sobre a influência da sombra no processo de gestão e nas relações de trabalho

ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOLOGIA JUNGUIANA

São Paulo 2012

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Helena Aparecida Verderamis Sellani, Maria Inez Collado e Paulo Rogério Sellani

A sombra na contemporaneidade

Considerações sobre a influência da sombra no processo de gestão e nas relações de trabalho

Monografia apresentada à FACIS como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Psicologia Junguiana.

São Paulo 2012

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“Uma liderança, de fato, consiste em abordar a alma de uma pessoa, e dar-lhe asas.”

Anselm Grün

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RESUMO

Este trabalho aborda, do ponto de vista da psicologia analítica, de Carl

Gustav Jung, a interferência da sombra na complexa dinâmica das relações de

poder que se desenvolvem dentro das organizações, afetando o relacionamento

entre líderes e liderados. Seu objetivo, portanto, foi compreender a influência da

sombra nas relações de trabalho no mundo contemporâneo e suas

consequências no processo de gestão. Para tanto, foi realizado, por meio de

revisão bibliográfica, um resumo dos principais conceitos de Jung sobre o

funcionamento do psiquismo e também da teoria geral de administração.

Constatou-se, por meio da análise realizada, que a influência da sombra está

sempre presente, uma vez que faz parte da personalidade humana, porém sua

interferência pode ser potencializada pelos estilos de liderança adotados pelos

líderes e organizações.

Palavras-chave: Sombra. Psique. Organização. Liderança. Trabalho.

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SUMÁRIO

Resumo .......................................................................................................................4

Introdução ...................................................................................................................7

Capítulo 1

A estrutura da psique e sua dinâmica .......................................................................11

1.1 A consciência e suas funções .......................................................................12

1.1.1 Funções ectopsíquicas da consciência e tipologia psicológica ....................13

1.1.2 Funções endopsíquicas da consciência .......................................................18

1.2 O inconsciente ..............................................................................................19

1.2.1 O inconsciente pessoal e os complexos .......................................................20

1.2.2 O inconsciente coletivo, os arquétipos e instintos ........................................22

1.3 Persona, anima e animus .............................................................................23

1.4 A sombra ......................................................................................................28

1.4.1 A sombra pessoal .........................................................................................28

1.4.2 A sombra coletiva .........................................................................................30

1.4.3 A sombra no trabalho ...................................................................................30

Capítulo 2

O homem e as organizações ....................................................................................33

2.1 Teorias Administrativas .................................................................................38

2.1.1 Teoria das relações humanas .......................................................................40

2.1.1.1 Teorias de lideranças segundo a Teoria das relações humanas .................43

2.1.2 Teoria Comportamental da Administração ...................................................44

2.1.3 Teoria Estruturalista da Administração .........................................................47

2.1.3.1 Características necessárias do Homem organizacional ...............................48

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Capítulo 3

A sombra e as organizações.....................................................................................50

Capítulo 4

Conclusão..................................................................................................................55

Referências................................................................................................................58

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INTRODUÇÃO

Jung nos deixou mais que uma obra, deixou um legado, que quebra

paradigmas e mostra-se cada vez mais atual à medida que o tempo passa. Seus

conceitos e ideias talvez nunca tenham feito tanto sentido quanto para nossa

sociedade atual, carente e doente, ao mesmo tempo em que desperta e vívida em

busca de, senão respostas, ao menos direções e caminhos.

Hillman (1981) citado por Silveira (2012, p. 25) utilizou-se de uma bonita

metáfora para mostrar uma preocupação mais ampla em relação à teoria de Jung ao

dizer que a psicoterapia junguiana deve atravessar o rio em direção às ruas. Este

autor enxerga que ela pode ir além da clínica, ou seja, deve deixar os consultórios e

situar-se mais genericamente na vida.

Deste ponto de intersecção emergiram nossos questionamentos e motivação

para ampliar nossa compreensão sobre um assunto palpitante em nossas realidades

profissionais, já que somos, afinal, parte de organizações diferentes entre si, uma

escola, um hospital e uma organização não governamental, e exercemos a função

de líderes nestes ambientes. Talvez nossas próprias sombras tenham deixado se

tocar por uma nesga de luz ao propormos o tema em questão, já que, como nos

ensina a psicologia analítica, o inconsciente é poderoso e encontra maneiras de

tocar o ego, em busca da ampliação da consciência.

Portanto, o presente trabalho, realizado por uma assistente social, um médico

e uma pedagoga, se propõe ao seguinte objetivo: compreender a influência da

sombra nas relações de trabalho no mundo contemporâneo e suas consequências

no processo de gestão, através do entendimento da díade sujeito-organização,

numa visão interdisciplinar, tendo como eixo a psicologia junguiana.

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Para tanto, levantamos o seguinte questionamento: qual a influência da

sombra no processo de gestão e nas relações de poder dentro das organizações?

Para respondê-lo, levantamos a seguinte hipótese: o processo de gestão é afetado

pelos estilos de liderança que permeiam as relações de trabalho, uma vez que os

mesmos permitem, em maior ou menor grau, a influência da sombra individual e

organizacional nessas relações de poder.

Pretende-se aqui abordar os processos intrapsíquicos, incluindo-se aí a

questão da sombra, como fundamentais na determinação dessa dinâmica relacional.

O desenvolvimento da tecnologia de informação, o aumento de mercados

competitivos e a ampliação descomunal do conhecimento humano potencializaram

profundas mudanças nas relações interpessoais de trabalho nas organizações,

sobretudo naquelas onde é possível perceber mais claramente distinções

hierárquicas. A história recente é marcada pela insegurança, rapidez na

mudança, incertezas e fluidez, características que denotam um novo período, uma

nova época e uma nova postura.

Vivemos hoje numa economia do conhecimento, num capitalismo cognitivo e

o capital valorizado é aquele que se revela na capacidade de utilizar conhecimentos

para mediar a inter-relação nos ambientes de trabalho. Assim, a

transdisciplinaridade como paradigma pressupõe a multiplicidade de indivíduos

produtores de todo o tipo de conhecimento. Considerar cada sujeito como portador e

produtor legítimo de conhecimento potencializa a heterogeneidade e abre campos

de tensão hierárquica que, por sua vez, exige um novo perfil de liderança e de

colaboradores.

Nesse contexto sócio - histórico - cultural as relações de trabalho assumem

formas extremamente complexas. E é nesse contexto amplo que se dá a gestão de

pessoas. Como o termo latino indica: “complexus – o que é tecido junto” assim

também são as relações de trabalho atuais.

Então,

[...] esse ser humano complexo, pluridimensional de Morin, traz em si um conjunto de características antagônicas e bipolares. Ao mesmo tempo em que é sábio, é louco; é prosaico e é poético; é trabalhador e lúdico; é simultaneamente empírico e imaginário. Vive de muitos jeitos e se apresenta de várias maneiras. É unidade e diversidade; é multiplicidade, pluralidade e indissociabilidade; é corpo, idéias e afetividade. É um homo complexus. (SILVEIRA, 2012, p. 170)

Para Bauman, estamos vivendo num mundo líquido-moderno, no qual,

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a solidez dos vínculos humanos, é vista como uma ameaça: qualquer juramento de fidelidade, qualquer compromisso a longo prazo (e mais ainda por prazo indeterminado) prenuncia um futuro prenhe de obrigações que limitam a liberdade de movimento e a capacidade de perceber novas oportunidades (ainda desconhecidas) assim que (inevitavelmente) elas se apresentarem. (2009, p. 40)

Não há como deixar de pensar no processo de individuação, permeando e

sendo permeado por toda esta rede de relações vividas nos ambientes de

trabalho, e no papel da sombra de líderes e liderados como mola propulsora ou

obstáculo deste processo, já que as organizações contemporâneas são

verdadeiros palcos de conflitos de interesses e poder.

Dentro deste emaranhado de relações entendemos que é de extrema

importância tentar compreender como a sombra influencia o processo de gestão e

nas relações de poder dentro das organizações.

Os objetivos organizacionais, a estrutura, a tecnologia, a estruturação de

cargos, o estilo de liderança e outros aspectos formais do funcionamento de uma

organização têm uma dimensão política, da mesma forma que o mais óbvio jogo de

poder e conflito. E são, certamente, permeados pela conversação dos complexos

dos indivíduos envolvidos. Então, partimos da hipótese de que o processo de gestão

é afetado pelos estilos de liderança que permeiam as relações de trabalho, uma vez

que trazem consigo, em maior ou menor grau, a influência da sombra nessas

relações de poder.

O referencial teórico para o desenvolvimento deste tema é a Psicologia

Analítica de Carl Gustav Jung, através da qual buscaremos entender a estruturação

da psique e sua influência nas relações interpessoais. Além disso, buscaremos nas

Teorias Administrativas outros subsídios teóricos para fundamentar as relações de

trabalho e os processos de liderança nas organizações.

O capítulo 1, “A estrutura da psique e sua dinâmica”, trata de descrever o

processo de funcionamento psíquico do ser humano, segundo Jung, abordando

conceitos centrais de sua teoria: consciência e suas funções; tipos psicológicos; o

inconsciente pessoal e complexos; o inconsciente coletivo, os arquétipos e instintos;

persona, anima e animus e a sombra.

O capítulo 2, “O Homem e as Organizações”, traça um breve panorama da

Teoria Geral de Administração, elegendo aquelas teorias que dão ênfase às

pessoas: teoria das relações humanas e suas implicações – motivação e clima

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motivacional e liderança e seus estilos; a teoria comportamental de administração e

a hierarquia das necessidades humanas; e a teoria estruturalista da administração –

características do homem organizacional.

O capítulo 3 presta-se à análise da relação destes dois corpos teóricos

aprofundando as relações entre eles. E pretende mostrar como a psicologia analítica

pode ampliar a compreensão das relações sombrias de poder que se estabelecem

entre líderes e liderados.

A conclusão apresenta as considerações finais deste trabalho, bem como

lança outros questionamentos para futuras investigações.

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Capítulo 1

A estrutura da psique e sua dinâmica

As questões propostas no presente trabalho estão relacionadas com o

funcionamento do psiquismo humano, cuja complexidade repercute no interior das

organizações, através dos homens e mulheres que as constituem. Assim sendo,

para respondermos às questões colocadas na problematização do projeto, e

entendermos a influência da sombra no comportamento de líderes e liderados e,

consequentemente, no processo de gestão, precisamos antes entender como a

psique está constituída, como é sua estrutura e como determina o comportamento

humano.

Em A Natureza da Psique, Jung faz uma análise sobre os conteúdos da

consciência e também uma série de considerações sobre o inconsciente, inclusive

sobre sua relação com os mitos, conforme constatada por ele através de sonhos e

visões de pacientes por ele atendidos. Assim, explicita suas conclusões sobre a

estrutura básica da psique, distinguindo três níveis na mesma: a consciência, o

inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo (cf. JUNG, 2011a, p. 83-96).

Em Fundamentos de Psicologia Analítica, Jung apresenta um diagrama para

mostrar como concebe a estrutura da mente, mas já alertando para a precariedade

do mesmo:

Tal sistema psíquico não pode, realmente, ser expresso através de um sistema tão precário. O presente diagrama seria mais uma escala de valores, que demonstra como a energia, ou a intensidade do complexo do ego que se manifesta como força de vontade, gradualmente decresce, à medida que nos aproximamos da escuridão existente nos últimos graus da estrutura – o inconsciente. (JUNG, 2008a, p. 40)

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Figura 1 – A Psique Fonte: (JUNG, 2008a, p.39)

As esferas ectopsíquica e endopsíquica dizem respeito às funções da

consciência, conforme veremos a seguir. O inconsciente pessoal e o inconsciente

coletivo serão tratados no final do presente capítulo.

1.1 A consciência e suas funções

Segundo Jung (2011a, p. 83): “As únicas coisas do mundo que podemos

experimentar diretamente são os conteúdos da consciência.”

No entanto, para ele, a consciência, por sua própria natureza, é limitada, pois

pode apreender e fixar poucos dados simultâneos em cada momento, todo o

restante é inconsciente. É a sucessão desses momentos conscientes que nos

permite alcançar uma continuidade e relacionamento com o mundo consciente (cf.

JUNG, 2008a, p. 5).

“A área do inconsciente é imensa e sempre contínua, enquanto a área da

consciência é um campo restrito de visão momentânea.” (JUNG, 2008a, p. 5)

Ao falarmos sobre a consciência, temos que considerar sua vinculação com o

ego, uma vez que só atingem a consciência os conteúdos relacionados com o

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mesmo, razão pela qual Jung define a consciência como a relação dos fatos

psíquicos com o ego. O ego é o centro da consciência, um complexo de fatos

psíquicos, formado pela percepção de nosso corpo e existência e pelos registros de

nossas memórias. O ego tem uma força de atração poderosa, é ele que atrai os

conteúdos do inconsciente, e também as impressões do exterior, que se tornam

conscientes ao seu contato (cf. JUNG, 2008a, p. 7).

Portanto, em minha concepção, o ego é uma espécie de complexo, o mais próximo e valorizado que conhecemos. É sempre o centro de nossas atenções e de nossos desejos, sendo o cerne indispensável da consciência. Se ele se desintegra, como na esquizofrenia, toda ordem de valores desaparece e as coisas não mais podem ser reproduzidas voluntariamente; o centro se esfacelou e algumas partes da psique passarão a referir-se a um fragmento do ego, enquanto as outras partes se ligarão a outros fragmentos. Essa é a razão da mudança rápida de personalidade tão característica dos esquizofrênicos. (JUNG, 2008a, p. 7-8)

Para entendermos a consciência, temos que nos reportar a suas funções,

conforme descreve Jung:

A consciência é dotada de um certo número de funções, que a orienta no campo dos fatos ectopsíquicos e endopsíquicos. A ectopsique é um sistema de

relacionamento dos conteúdos da consciência com os fatos e dados originários do meio-ambiente, um sistema de orientação que concerne à minha manipulação dos fatos exteriores, com os quais entro em contacto através das funções sensoriais. A endopsique, por outro lado, é o sistema de relação entre os conteúdos da consciência e os processos desenrolados no inconsciente. (JUNG, 2008a, p. 8. Grifos do autor)

Assim sendo: “A consciência é, em primeiro lugar, um órgão de orientação em

um mundo de fatos exteriores e interiores.” (JUNG, 2011a, p. 69. Grifos do autor)

1.1.1 Funções ectopsíquicas da consciência e tipologia psicológica

São quatro as funções ectopsíquicas: 1) a sensação, que possibilita a

percepção dos fatos externos através dos sentidos e diz que alguma coisa existe; se

trata da percepção em geral e não da atividade específica de algum sentido; 2) o

pensamento, que interpreta o que foi percebido e exprime o que uma coisa é,

conceituando-a e dando-lhe um nome; 3) o sentimento, que nos informa a respeito

do valor das coisas e 4) a intuição, que é um tipo de percepção que compreende o

subliminar, que não passa exatamente pelos sentidos, e que opera no nível do

inconsciente; ela torna possível, ao menos aproximadamente, a determinação

espacial e temporal de um objeto, e a percepção imediata de determinadas relações

que não podem ser constatadas pelas três funções anteriores no momento da

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orientação (cf. JUNG, 2008a, p. 8-11). Jung confessa que não sabe como a intuição

se processa:

Não sei o que se passa quando um homem se inteira de fatos como ele, em absoluto, não tem meios de conhecer. Não consigo dizer como essas coisas acontecem, entretanto a realidade aí está, e tais fenômenos são comprovados. Sonhos premonitórios, comunicações telepáticas, etc., são propriedades da intuição. Continuamente, venho presenciando esses fatos, e estou convencido de sua existência. (JUNG, 2008a, p. 11)

As funções psicológicas ectopsíquicas normalmente são controladas pela

vontade; quando isso não acontece, elas funcionam de modo autônomo, agindo,

pensando e sentindo em nosso lugar. Podem também agir de modo tão

inconsciente, que não sabemos o que aconteceu quando nos deparamos com os

resultados desse processo (cf. JUNG, 2008a, p. 12).

As funções psicológicas, como as funções sensoriais, são dotadas de energia específica. Não se pode anular um sentimento ou uma sensação (ou qualquer das quatro outras funções). Ninguém pode dizer: "Eu não vou sentir", pois o sentimento surgirá inevitavelmente. Uma pessoa não pode afirmar: “Eu não vou pensar", pois a energia específica particular de cada função tem expressão própria, e não pode ser substituída por outra. (JUNG, 2008a, p. 12)

Segundo Jung, cada um de nós tem uma dessas funções mais desenvolvida,

o que acaba nos distinguindo uns dos outros de acordo com a função dominante.

Assim, ele chega à identificação de uma tipologia psicológica, de acordo com a

função dominante, sendo que essa função superior vem acompanhada de uma

função inferior (cf. JUNG, 2008a, p. 12).

Ele ilustra esse seu raciocínio através de um diagrama, que denominou cruz

das funções:

P

Ss E I

St

Figura 2 – As Funções

Fonte: (JUNG, 2008a, p. 13) No centro está o ego (E) dotado de certa quantidade de energia disponível, que é a força da vontade. No caso do tipo pensamento, essa força será canalizada para o raciocínio, para o pensamento (P), então, sentimento (St) será colocado

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no extremo oposto, sendo nesse caso a sua função relativa inferior. Isto se deve ao fato de que, ao pensarmos, excluímos o sentimento [...]. O mesmo se aplica à sensação (Ss) e à intuição (I). [...] É inerente ao caráter do intuitivo o não prender-se à observação de detalhes; ele sempre busca apreender a totalidade da situação, e então, repentinamente, qualquer coisa emerge dessa globalização. Se você pertence ao tipo sensação, é comum que observe os fatos em sua realidade imediata, mas a intuição não o orientará, devido à incompatibilidade de atuação simultânea particular às duas funções. (JUNG, 2008a, p. 13-14)

Assim, temos os tipos pensamento, sentimento, sensação e intuição, cujas

funções inferiores são, respectivamente, o sentimento, o pensamento, a intuição e a

sensação (cf. JUNG, 2008a, p. 13-15).

Em geral, a função inferior não é diferenciada nem consciente e, portanto,

nem sempre pode ser manobrada pela vontade. Enquanto se lida bem com a função

superior, exercendo sobre ela o controle da vontade, com a função inferior acontece

o contrário, e pouco controle se tem sobre ela. Assim, por exemplo, o intelectual,

que lida bem com as ideias, tem medo de ser tomado pelos sentimentos, que no seu

caso são de qualidade arcaica e fonte de perturbações (cf. JUNG, 2008a, p. 15-16).

Essa lei é aplicável a cada uma das funções; a inferior está sempre associada a uma personalidade arcaica, e em seus domínios somos todos primitivos. Em nossas funções diferenciais somos sempre civilizados e presume-se que aí tenhamos livre movimentação, o que é impossível quando se trata das funções inferiores. Lá existe uma ferida aberta, por onde qualquer coisa pode entrar. (JUNG, 2008a, p. 16-17)

Acontecimentos positivos ou negativos podem trazer à tona a função contrária inferior. Sobrevindo isso, manifesta-se a hipersensibilidade. A hipersensibilidade é sintoma da existência de uma inferioridade. Assim se estabelecem as bases

psicológicas da desunião e da incompreensão, não só entre duas pessoas, como também da cisão dentro de si mesmo. Aliás, a natureza da função inferior é caracterizada pela autonomia; é independente, ela nos acomete, fascina e

enleia, a ponto de deixarmos de ser donos de nós mesmos e não nos distinguirmos mais exatamente dos outros. (JUNG, 2008b, p. 50. Grifos do autor)

Tipos psicológicos

Diante do acima exposto e da importância do tema para entendimento do

comportamento humano, analisemos, um pouco mais detalhadamente, os tipos

psicológicos propostos por Jung, de acordo com a predominância das funções

ectopsíquicas.

Ao descrever os tipos psicológicos, segundo sua concepção, Jung (2011b, p.

344) distingue, em primeiro lugar, dois tipos gerais de atitude: o introvertido e o

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extrovertido. Relacionados a estes, distingue então os tipos funcionais, de acordo

com a predominância das funções.

A pessoa extrovertida, segundo Jung (2011b, p. 347-348), é aquela cuja

consciência está predominantemente orientada pelo objeto e pelo dado objetivo; se

orienta pelos fatos que o mundo exterior fornece; vive de tal forma que o objeto

desempenha em sua consciência papel muito maior do que sua opinião subjetiva.

Quando alguém [...] vive da forma que corresponde imediatamente às condições

objetivas e de suas exigências, tanto no bom quanto no mau sentido, então é extrovertido. [...] Sua consciência toda olha para fora porque a determinação importante e decisiva sempre lhe vem de fora. Mas ela vem de lá porque ele espera que venha dali. Dessa atitude fundamental decorrem, por assim dizer, todas as peculiaridades de sua psicologia, enquanto não repousarem sobre o

primado de certa função psicológica ou sobre idiossincrasias individuais. (JUNG,

2011b, p. 347-348. Grifo do autor)

A pessoa introvertida, de acordo com Jung (2011b, p. 386-387), se diferencia

da extrovertida, porque, ao contrário desta, se orienta principalmente por fatores

subjetivos. Entre a percepção do objeto e a ação do introvertido, se interpõe uma

opinião subjetiva, o que impede que o caráter do agir corresponda ao dado objetivo.

“A consciência introvertida vê as condições externas, mas escolhe as determinantes

subjetivas como decisivas. [...] o introvertido se baseia em geral no que a impressão

externa constela no sujeito.”

Quanto aos tipos funcionais, Jung (2011b, p. 355-415) os caracteriza de

acordo com as funções predominantes; assim, temos os tipos pensamento,

sentimento, sensação e intuição, conforme já mencionamos anteriormente. Jung

correlaciona cada um desses tipos com as atitudes de extroversão e introversão, o

que resulta em várias combinações de tipos psicológicos.

Apresentamos, a seguir, um resumo dos mesmos, com base em Ioshimoto

(2001, p. 6-12).

Tipo pensamento extrovertido

É o indivíduo que tem como parâmetros básicos de sua existência os ideais,

as regras, os princípios objetivos; tira conclusões intelectuais do objeto,

preocupando-se com classificações, rearranjo de ideias, sínteses. Quando o

inconsciente se manifesta, aparecem sentimentos negativos, extrema sensibilidade

pessoal, ressentimentos, desconfianças, fanatismo e conservadorismo. O

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pensamento que era claro, objetivo e crítico torna-se estagnado e regressivo,

surgindo atitudes irracionais, arcaicas e supersticiosas.

Tipo sentimento extrovertido

Esse tipo subordina o pensamento ao sentimento, mantém um intenso

relacionamento com o meio; são indivíduos acolhedores, afáveis, bons amigos,

exuberantes em seus afetos. Seus aspectos sombrios podem se manifestar através

de exteriorização sentimental exagerada, inoportuna, dando aparência de falsidade.

O pensamento inconsciente manifesta-se de forma infantil, arcaica e negativa; há

destruição de valores, ideais negativas, obsessivas, pensamentos negativos a

respeito de si próprio e a respeito dos que lhe são mais caros.

Tipo sensação extrovertido

Os indivíduos deste tipo estão voltados para os cincos sentidos, param na

sensação: gosto, odor, tato, sonoridade, estética; adaptam-se às circunstâncias; só

tem sentido para eles o que é material, concreto; têm senso prático, são

organizados, pontuais, não se esquecem de seus compromissos. Como apresentam

intuição pouco desenvolvida ou reprimida tudo que vem do inconsciente é doentio,

condenável e suspeito. A intuição inferior se manifesta através de ideias sombrias,

medo de desgraças, pensamentos de desconfiança, etc.

Tipo intuição extrovertido

São pessoas que buscam sempre coisas novas e têm faro para possibilidades

advindas do objeto; estimulam os outros; situações estáveis as sufocam. Quando da

manifestação do inconsciente se ligam ao objeto a partir de sensações arcaicas e

podem apresentar hipocondria, fobias e sensações físicas absurdas.

Tipo pensamento introvertido

O indivíduo é orientado fundamentalmente pelo fator subjetivo, sendo a

motivação interior; é mais teórico do que prático, não considera muito as opiniões

alheias. Quando se manifesta o inconsciente, o sentimento que é pouco

desenvolvido ou reprimido pode levar a atritos; o indivíduo torna-se emotivo demais,

intolerante a críticas, desconfiado; as ideias criadas não exprimem nada; torna-se

rígido e diminui a sua capacidade de expressão.

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Tipo sentimento introvertido

São indivíduos silenciosos e “distantes”; apresentam um ar de superioridade,

e têm uma aparência de autocontrole. Na manifestação da função inferior, o

pensamento apresenta-se negativo, arquiteta maldades; o indivíduo passa a se

preocupar com o que os outros pensam, numa atitude defensiva.

Tipo sensação introvertido

São pessoas calmas, passivas, têm dificuldade de expressão. Quando o

inconsciente se manifesta, a intuição, que é pouco desenvolvida ou reprimida, faz

com que o indivíduo se torne pessimista, podendo aparecer uma neurose obsessiva

e sintomas histéricos.

Tipo intuição introvertido

Pessoas deste tipo esquecem compromissos e dificilmente cumprem horários;

têm dificuldades de comunicação e são propensas a negligenciar as necessidades

físicas mais básicas; o mundo concreto parece não existir. Na manifestação da

função inferior, a sensação, que é pouco desenvolvida ou reprimida, faz com que o

indivíduo se ligue ao objeto de forma impulsiva; surgem preocupações excessivas

com o físico e podem ter origem sintomas hipocondríacos e neurose obsessiva.

1.1.2 Funções endopsíquicas da consciência

Trataremos agora do pensamento de Jung a respeito das funções

endopsíquicas da consciência, as quais, segundo o mesmo, não se encontram sob o

domínio da vontade. Lembremos que a endopsique, como já foi dito anteriormente,

“é o sistema de relação entre os conteúdos da consciência e os processos

desenrolados no inconsciente.” (JUNG, 2008a, p. 8)

Jung chama o inconsciente de mundo das sombras, onde o ego se torna

obscuro, desconhecido. Estamos sempre descobrindo fatos novos a nosso respeito,

a partir do nosso inconsciente, o que prova que existe sempre uma parte de nossa

personalidade que ainda permanece inconsciente; ela já existe, mas no lado obscuro

do ego; só conseguimos visualizar essas facetas da personalidade quando chegam

ao consciente (cf. JUNG, 2008a, p. 17).

Segundo Jung (2008a, p.18-20), há quatro funções de natureza endopsíquica:

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A primeira é a memória ou reprodução, que é a faculdade que possuímos de

reproduzir conteúdos inconscientes, que se tornaram enfraquecidos na consciência,

que se tornaram subliminares ou que foram reprimidos.

A segunda função está relacionada com conteúdos inconscientes mais

profundos e é denominada: componentes subjetivos das funções conscientes. Isto

quer dizer que sempre que uma função consciente está em funcionamento, em

relação a pessoas, coisas ou situações, ela é acompanhada de reações subjetivas,

mais ou menos injustas ou imperfeitas, as quais em geral não admitimos, para não

diminuir nossa imagem positiva diante de nós mesmos. São essas reações que Jung

denomina componentes subjetivos. Por isso, é doloroso entrar em contato com esse

lado sombrio de nossa personalidade, não gostamos de admitir sua existência.

A terceira não é bem uma função, mas um componente endopsíquico, trata-

se das emoções e dos afetos. Quando dominados pelas emoções, perdemos o

autocontrole, tornamo-nos irreconhecíveis, pois somos dominados pelo lado oculto.

O quarto fator endopsíquico é denominado invasão. É quando o inconsciente

tem domínio completo e irrompe na consciência. Tais fatos podem ser indesejáveis,

porém, segundo Jung, o fato em si não é patológico, pertence à fenomenologia

humana mais comum; caso, entretanto, as crises se tornem habituais, estaremos

certos de pensar em neurose.

1.2 O inconsciente

Quanto ao inconsciente, Jung (2008a, p. 4) considera que a natureza e

extensão da psique inconsciente são completamente desconhecidas, e que há

apenas provas indiretas da existência da mesma: “Temos muito pouca justificação

científica que prove em última instância sua existência. A partir dos produtos desse

“eu” inconsciente podemos tirar determinadas conclusões quanto a sua possível

existência.”

Verificamos, assim, a preocupação de Jung ao teorizar sobre o inconsciente,

reconhecendo nossa ignorância a respeito da natureza do mesmo e afirmando que

há apenas provas indiretas e pouca justificação científica sobre sua existência. Em

relação à constatação científica dos fatos relacionados ao inconsciente, esclarece as

dificuldades existentes, uma vez que a interferência de nossos sentidos e de nossa

psique prejudica a análise objetiva dos fatos observados no campo psíquico:

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Deveríamos ter um laboratório para que fosse estabelecido, através de métodos objetivos, como são as coisas em sua verdade no mundo inconsciente. Assim, essa crítica deverá nortear todo ponto de vista e a afirmação que eu fizer ao longo das conferências, quando se tratar do inconsciente. Tudo será como se, e

vocês nunca deverão esquecer tal restrição. (JUNG, 2008a, p. 5. Grifo do autor)

Assim sendo, Jung foi construindo seus conceitos sobre o inconsciente

através de um longo caminho, com base em suas pesquisas e experiência analítica,

que lhe possibilitaram fundamentar suas convicções a respeito da existência e

funcionamento do mesmo.

Ao longo de sua imensa obra, Jung expõe suas ideias e considerações sobre

o inconsciente, e conclui que o inconsciente possui tanto conteúdos adquiridos pelo

indivíduo durante sua existência, como conteúdos arquetípicos, que existem a priori

no inconsciente de todos os indivíduos. Assim, chegou à conceituação do

inconsciente pessoal e do inconsciente coletivo.

1.2.1 O inconsciente pessoal e os complexos

O inconsciente pessoal é individual, próprio de cada ser humano. Compõe-se,

em primeiro lugar, de conteúdos que se tornaram inconscientes, porque perderem

sua intensidade e caíram no esquecimento ou porque foram reprimidos pela

consciência; se compõe também de conteúdos que, por sua fraca intensidade,

nunca atingiram a consciência, embora de alguma forma tenham penetrado na

mesma (cf. JUNG, 2011a, p. 96).

Os conteúdos inconscientes são de natureza pessoal quando podemos

reconhecer em nosso passado seus efeitos, sua manifestação parcial, ou ainda sua origem específica. São partes integrantes da personalidade, pertencem a seu inventário e sua perda produziria na consciência, de um modo ou de outro, uma inferioridade. (JUNG, 2008c, p. 11-12. Grifos do autor)

Em Psicologia do Inconsciente, Jung também expõe suas ideias sobre o

inconsciente pessoal, relacionando-o com a figura da sombra:

O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência. Corresponde à figura da sombra, que frequentemente aparece nos sonhos. (JUNG, 2008b, p.

58. Grifo do autor)

Ao tratarmos do inconsciente pessoal vem à tona o que Jung denominou

como complexos, considerados por ele um fator determinante do comportamento

humano, assim como outros fatores psíquicos.

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Para Jung (2011a, p. 67), a psique apresenta a tendência a cindir-se: “a

tendência a dissociar-se significa que certas partes da psique se desligam a tal

ponto da consciência, que parecem não somente estranhas entre si, mas conduzem

também a uma vida própria e autônoma.” Trata-se do que ele denominou de

complexos, definindo-os como sendo “fragmentos psíquicos cuja divisão se deve a

influências traumáticas ou a tendências incompatíveis”.

Segundo Jung (2011a, p. 43): “a existência dos complexos põe seriamente

em dúvida o postulado ingênuo da unidade da consciência que é identificada com a

‘psique’, e o da supremacia da vontade.”

Os complexos interferem na intenção da vontade e perturbam o desempenho

da consciência; aparecem e desaparecem de acordo com leis próprias; perturbam a

memória e causam bloqueios no processo das associações; obsediam

temporariamente a consciência; influenciam a fala e ação de forma inconsciente.

Resumindo, comportam-se como organismos independentes, dotados de vida,

sendo que uma intensificação dos mesmos conduz a estados mórbidos (cf. JUNG,

2011a, p. 67).

O que é, portanto, cientificamente falando, um "complexo afetivo"? É a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está sujeita ao

controle das disposições da consciência até um certo limite e, por isto, comporta-se, na esfera do consciente, como um corpus alienum (corpo estranho), animado

de vida própria. (JUNG, 2011a, p. 43. Grifos do autor)

Com um esforço de vontade, pode-se até reprimir o complexo, mas não negar

sua existência, pois na primeira ocasião favorável ele emerge novamente com toda

a sua força original (cf. JUNG, 2011a, p. 43-44).

Toda constelação de complexos implica um estado perturbado de consciência. Rompe-se a unidade da consciência e se dificultam mais ou menos as intenções da vontade, quando não se tornam de todo impossíveis. A própria memória, como vimos, é muitas vezes profundamente afetada. Daí se deduz que o complexo é um fator psíquico que, em termos de energia, possui um valor que supera, às vezes, o de nossas intenções conscientes; do contrário, tais rupturas da ordem consciente não seriam de todo possíveis. De fato, um complexo ativo nos coloca por algum tempo num estado de não liberdade, de pensamentos

obsessivos e ações compulsivas [...]. (JUNG, 2011, p. 43. Grifos do autor)

Em outras palavras, um complexo é fruto de um processo psíquico, que

consiste na constelação e atualização de determinados conteúdos, e é dotado de

energia específica própria. Esse processo é automático e não pode ser detido pelo

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poder da vontade; é dotado de autonomia em sua dinâmica no campo da

consciência. Sua gênese está relacionada, em geral, com um trauma, um choque

emocional, um conflito moral, ou coisa semelhante, que arrancou fora um pedaço da

psique dissociando-o da mesma (cf. JUNG, 2011a, p. 41 e 45).

Sabemos que complexos estão ativos quando nos fazem, por exemplo, dizer

a palavra errada, esquecer o nome da pessoa que estamos para apresentar; quando

nos provocam uma necessidade invencível de tossir na hora errada; fazem tropeçar

ruidosamente na cadeira o retardatário que quer passar despercebido; quando

aparecem em nossos sonhos, através de personagens diante dos quais nada

podemos fazer; etc. (cf. JUNG, 2011a, p. 44).

Segundo Jung (2011a, p. 52), “os complexos autônomos se contam entre os

fenômenos normais da vida e determinam a estrutura da psique inconsciente”.

1.2.2 O inconsciente coletivo, os arquétipos e instintos

De acordo com Jung (2011a, p. 96), o inconsciente coletivo “não é individual,

mas comum a todos os homens e mesmo a todos os animais, e constitui a

verdadeira base do psiquismo individual”.

Jung (2011a, p. 96-97) considera que o inconsciente coletivo, como herança

imemorial de possibilidades de representação, é composto pelos mitos dos povos:

“toda a mitologia seria uma espécie de projeção do inconsciente coletivo”.

Os mitos tem sua origem nas fantasias dos povos a respeito dos processos

físicos, para os quais procuravam explicações (cf. JUNG, 2011a, p. 98). São as

fantasias causadas pelos afetos que se fixam como imagens na alma, e não os

processos físicos em si, como as tempestades, os trovões, terremotos, etc. E da

mesma forma que as condições do meio ambiente, também as condições

fisiológicas, como a sexualidade e a fome, provocam fantasias carregadas de afetos

(cf. JUNG, 2011a, p. 99-100).

“As maldições do homem contra os temporais, seu medo perante os

elementos desencadeados antropomorfizam a paixão da natureza, e o elemento

puramente físico se transforma em um deus furioso.” (JUNG, 2011a, p. 100)

Jung dá o nome de arquétipos aos temas míticos similares:

As condições psicológicas do meio ambiente naturalmente deixam traços míticos semelhantes atrás de si. Situações perigosas, sejam elas perigos para o corpo ou ameaças para a alma, provocam fantasias carregadas de afeto, e, na medida em que tais situações se repetem de forma típica, dão origem a arquétipos,

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nome que eu dei aos temas míticos similares em geral. (JUNG, 2011a, p. 100. Grifo do autor)

Também os eventos corriqueiros, os fatos mais comuns da vida cotidiana, que

se repetem eternamente, são responsáveis pela produção de arquétipos, os mais

poderosos, como é o caso do arquétipo da família, tão bem representado pelo

dogma cristão da Santíssima Trindade (cf. JUNG, 2011a, p. 101).

Resumindo, Jung denomina de arquétipos as imagens primordiais,

carregadas de energia, gravadas no inconsciente coletivo. Os arquétipos constituem

um núcleo comum a toda psique humana.

Assim, vemos que o inconsciente coletivo, enquanto totalidade de todos os

arquétipos, é o repositório de todas as experiências humanas desde o início da

humanidade, constituindo sistemas vivos de reação e aptidões, que determinam a

vida individual por caminhos invisíveis (cf. JUNG, 2011a, p. 102).

O inconsciente é também a fonte dos instintos, pois

[...] os arquétipos não são mais do que formas através das quais os instintos se expressam. Mas é também da fonte viva dos instintos que brota tudo o que é criativo; por isto, o inconsciente não é só determinado historicamente, mas gera também o impulso criador [...]. (JUNG, 2011a, p. 102)

Jung (2011a, p. 60) coloca, entre os fatores psíquicos que determinam o

comportamento humano, “sobretudo, os instintos enquanto forças motivadoras do

processo psíquico." (Grifos do autor)

Ele distingue cinco grupos principais de instintivos: 1) o instinto de

autoconservação, cuja expressão característica é a fome; 2) o instinto de

conservação da espécie, a sexualidade; 3) o impulso à ação; 4) o instinto da reflexão

e 5) o instinto criativo (cf. JUNG, 2011a, p. 62-64).

1.3 Persona, anima e animus

Entre os fatores psíquicos que determinam o comportamento humano,

devemos considerar também as figuras da persona, da anima e do animus.

Para Jung, o que ele denominou como persona consiste em um segmento

arbitrário da psique coletiva. Esse termo, segundo ele, é apropriado, porque

originalmente designava a máscara usada pelo ator, indicando o papel que o mesmo

iria desempenhar (cf. JUNG, 2008c, p. 32).

Como seu nome revela, ela é uma simples máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer aos outros e a si

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mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala a psique coletiva. (JUNG, 2008c, p. 32. Grifos do autor)

Assim sendo, a persona não tem a ver com a realidade pessoal, ela apenas

representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, consistindo na

representação de um determinado papel junto a uma coletividade; não passa,

portanto, de uma aparência, que nada tem de real do ponto de vista da

individualidade essencial da pessoa (cf. JUNG, 2008c, p. 32-33).

A persona é, pois, um complexo funcional que surgiu por razões de adaptação ou de necessária comodidade, mas que não é idêntico à individualidade. O complexo funcional da persona diz respeito exclusivamente à relação com os

objetos. (JUNG, 2011b, p. 426. Grifos do autor)

No entanto, Jung (2008c, p. 33) diz que seria incorreto não reconhecer que

subjaz algo de individual na escolha e na definição da persona: “embora a

consciência do ego possa identificar-se com ela de modo exclusivo, o si-mesmo

inconsciente, a verdadeira individualidade, não deixa de estar sempre presente,

fazendo-se sentir de forma indireta.”

Na realidade, o ser real e autêntico, o si-mesmo individual, permanece oculto

atrás da persona. Na medida em que o indivíduo se identifica com a persona, torna-

se inconsciente do si-mesmo (cf. JUNG, 2008c, p. 34).

Jung (2008c, p. 68) se refere à persona como um complicado sistema de

relação entre a consciência individual e a sociedade, e diz que a persona “é uma

espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre

os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo.” Porém, diz

também: “no entanto, só negará a necessidade da persona quem desconhecer a

verdadeira natureza de seus semelhantes. A sociedade espera e tem que esperar

de todo indivíduo o melhor desempenho possível da tarefa a ele conferida.”

A sociedade levanta expectativas e faz exigências, às quais ninguém, como

individualidade, pode adaptar-se completamente; por isso, a necessidade de se

construir uma personalidade artificial e de se usar uma máscara adequada, atrás da

qual forma-se então o que é chamado de "vida particular". Assim sendo, a

consciência se separa em duas figuras, diferentes uma da outra, o que acarreta

consequências sobre o inconsciente (cf. JUNG, 2008c, p. 69).

Essas identificações com o papel social são fontes abundantes de neuroses. O homem jamais conseguirá desembaraçar-se de si mesmo, em benefício de uma personalidade artificial. A simples tentativa de fazê-lo desencadeia, em todos os

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casos habituais, reações inconscientes: caprichos, afetos, angústias, ideias obsessivas, fraquezas, vícios, etc. (JUNG, 2008c, p. 70)

Segundo Jung (2008c, p. 70): “à falta de resistência exterior contra a sedução

da persona, corresponde uma fraqueza interior relativa às influências do

inconsciente.” É como se o inconsciente e a persona oprimissem o eu com a mesma

força, exercendo o mesmo poder.

Vemos que Jung faz uma distinção entre a relação do indivíduo com o objeto

externo e a relação com o sujeito, ou seja, com o inconsciente, considerado por ele

como “objeto interno”. Essas relações geram, respectivamente, uma atitude externa

e outra interna, que, ao se tornarem habituais, acabam por gerar complexos

funcionais, os quais passam a atuar de forma autônoma, como uma personalidade

externa e outra interna (cf. JUNG, 2011b, p. 426-428).

Assim como a experiência diária nos autoriza a falar de uma personalidade externa, também nos autoriza a aceitar a existência de uma personalidade interna. Este é o modo como alguém se comporta em relação aos processos psíquicos internos, é a atitude interna, o caráter que apresenta ao inconsciente. Denomino persona a atitude externa, o caráter externo; e a atitude interna denomino anima, alma. (JUNG, 2011b, p. 428. Grifos do autor)

Segundo Jung, a anima se opõe à persona, é o seu contrário, de acordo com

um sistema de compensação, onde a persona, imagem ideal do homem como ele

deseja ser, é compensada interiormente pela fraqueza feminina; a anima é obscura

e invisível para a consciência, principalmente para a pessoa que, por ter-se

identificado com a persona, tem dificuldade para reconhecer suas fraquezas; a

anima também permanece no escuro e se projeta. Assim, enquanto o papel

desempenhado fora é atuante e forte, interiormente se desenvolve uma fraqueza

efeminada contra as influências do inconsciente: estados de espírito momentâneos,

caprichos, angústias, etc. (cf. JUNG, 2008c, p. 70-71).

É importante para a meta da individuação, isto é, da realização do si-mesmo, que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os outros. É igualmente necessário que conscientize seu invisível sistema de relações com o inconsciente, ou seja, com anima, a fim de poder diferenciar-se dela. (JUNG, 2008c, p. 71)

Conforme Jung (2008c, p. 71-72), ambos os fatores, tantos os inconscientes

como os que regem a vida da sociedade, são realidades determinantes, de caráter

coletivo, com pretensões incompatíveis, ficando o eu entre os dois. Esta realidade,

este jogo de oposições, é, “no fundo, o processo energético da vida, a tensão de

opostos indispensável para a auto-regulação.”

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Esses poderes antagônicos, por diferentes que sejam, no fundo significam a

vida do indivíduo e, por se relacionarem entre si, tendem a unificar-se num sentido

mediador; este sentido nasce do indivíduo e é por ele pressentido, pois,

intimamente, tem o sentimento do que deveria ser e do que pode ser; desvios deste

pressentimento leva a erro e doença (cf. JUNG, 2008c, p. 71-72).

Pode-se assim dizer que tanto o eu como a persona constituem duas

personalidades, o que, segundo Jung (2008c, p. 72-73), “nada tem de estranho, uma

vez que todo complexo autônomo ou relativamente autônomo tem a particularidade

de apresentar-se como personalidade, ou melhor, personificado” (grifo do autor).

Esta situação leva o eu a ter dificuldade diante da questão de sua verdadeira

personalidade.

O mesmo se pode dizer da anima:

O que foi dito acerca da persona e de todos os complexos autônomos também é válido no que diz respeito a anima: ela é igualmente uma personalidade e por isso pode ser facilmente projetada numa mulher. Em outras palavras, na medida em que a anima for inconsciente, sempre será projetada, uma vez que todo o inconsciente é projetado. A primeira portadora da imagem da alma é sempre a

mãe; depois, serão as mulheres que estimularem o sentimento do homem, quer seja no sentido positivo ou negativo. (JUNG, 2008c, p. 73. Grifo do autor)

Para Jung, o homem moderno deve voltar sua consciência também para as

coisas interiores, a fim de se diferenciar da anima e não apenas da persona:

Parece que nossa consciência se volta principalmente para fora (em consonância com a alma ocidental), deixando as coisas interiores mergulhadas na obscuridade. No entanto, tal dificuldade pode ser facilmente superada, se considerarmos com espírito crítico e com toda concentração o material psíquico da nossa vida particular e não apenas os acontecimentos exteriores. (JUNG, 2008c, p. 74)

Se a figura que compensa a consciência masculina é a anima, de caráter

feminino, na mulher é o animus, de caráter masculino, a figura compensadora. Para

Jung, se já é difícil expor o que se entende por anima, tentar descrever a psicologia

do animus, então, é de uma dificuldade quase insuperável (cf. JUNG, 2008c, p. 81).

O inconsciente feminino apresenta aspectos diferentes daqueles encontrados

na psicologia masculina. Jung (2008c, p. 82) resume essa diferença nas seguintes

palavras: “assim como a anima produz caprichos, o animus produz opiniões; e assim

como os caprichos do homem brotam de um fundo obscuro, do mesmo modo as

opiniões da mulher provêm de pressupostos apriorísticos inconscientes” (grifos do

autor).

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As opiniões do animus são muitas vezes irrefletidas e apresentadas com tanta

convicção, como se a mulher que as emite não tivesse dúvida alguma. No entanto,

se for feita uma análise de tais opiniões, descobrir-se-á que as mesmas estão

baseadas em pressupostos inconscientes, em cuja existência a mulher acredita a

priori, e que deveriam ser provados (cf. JUNG, 2008c, p. 83).

Jung faz uma outra distinção entre a anima e o animus, dizendo que a anima

se personifica como uma mulher, mas o animus não se apresenta como uma

pessoa, mas como muitas pessoas:

Esta pluralidade de juízes que condenam, formam uma espécie de tribunal que corresponde a uma personificação do animus. O animus parece uma assembléia de pais e outras autoridades, que formula opiniões incontestáveis e "racionais", ex cathedra. Examinando-as atentamente, percebe-se que parecem constituídas

de palavras e conceitos reunidos, talvez inconscientemente, desde a infância e amontoados numa espécie de cânone da verdade, autenticidade e razoabilidade médias. É um tesouro de pressupostos que, ao faltar um critério consciente e idôneo (o que não é raro), sugere imediatamente uma opinião. (JUNG, 2008c, p. 83. Grifo do autor)

A técnica para lidar com a anima consiste em tratá-la de forma pessoal, como

se fosse uma pessoa real; assim, a personalidade da alma é reconhecida, o que

torna possível uma relação com a mesma (cf. JUNG, 2008c, p. 76-77).

Para lidar com o animus, Jung assim se manifesta:

A técnica de explicação com o animus é, em princípio, a mesma que a da anima, só que neste se trata de opiniões. A mulher deve aprender a criticá-las e mantê-

las à distância, não com o intuito de reprimi-las, mas investigar-lhes a procedência: penetrando mais fundo em seu obscuro recesso, deparará com as imagens originárias, do mesmo modo que o homem, ao explicar-se com a anima. (JUNG, 2008c, p. 85. Grifo do autor)

A anima e o animus, figuras existentes no inconsciente coletivo como

arquétipos e no inconsciente pessoal como imagens, podem assumir inúmeros

aspectos:

Suas complicações e transformações são ricas como o próprio mundo, e tão extensas como a variedade incalculável do seu correlato consciente, a persona. Habitam uma esfera de penumbra, e dificilmente percebemos que ambos, anima e animus, são complexos autônomos que constituem uma função psicológica do homem e da mulher. Sua autonomia e falta de desenvolvimento usurpa, ou melhor, retém o pleno desabrochar de uma personalidade. Entretanto, já podemos antever a possibilidade de destruir sua personificação, pois conscientizando-os podemos convertê-los em pontes que nos conduzem ao inconsciente. (JUNG, 2008c, p. 86)

Finalmente, Jung nos adverte sobre a necessidade de conhecermos os

conteúdos relativos à anima e ao animus, a fim de integrá-los à consciência, e assim

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os transformarmos, a anima e o animus, de complexos personificados, em simples

função:

Se não os utilizarmos intencionalmente como funções, continuarão a ser complexos personificados e nesse estado terão que ser reconhecidos como personalidades relativamente independentes. Por outro lado, não podem ser integrados à consciência enquanto seus conteúdos permanecerem desconhecidos. No entanto, a tentativa de explicação com eles deverá trazer à luz seus conteúdos; só quando esta tarefa for cumprida, isto é, só quando a consciência familiarizar-se suficientemente com os processos inconscientes refletidos na anima, esta última será percebida como uma simples função. (JUNG, 2008c, p. 86)

1.4 A sombra

Podemos dizer que a sombra é o lado escuro da nossa personalidade e se

localiza na esfera do inconsciente pessoal.

Segundo Zweig e Abrams (2011, p. 15), toda pessoa contém

[...] uma persona agradável para o uso cotidiano e um eu oculto e noturnal que

permanece amordaçado a maior parte do tempo. Emoções e comportamentos negativos – raiva, inveja, vergonha, falsidade, ressentimento, lascívia, cobiça, tendências suicidas e homicidas – ficam escondidos logo abaixo da superfície, mascarados pelo nosso eu mais apropriado às conveniências. Em seu conjunto, são conhecidos na psicologia como a sombra pessoal, que continua a ser um território indomado e inexplorado para a maioria de nós. (grifos dos autores)

1.4.1 A sombra pessoal

A sombra pessoal se desenvolve de forma natural em todas as crianças.

Conforme vamos nos identificando com as características de personalidade

aprovadas pelo nosso ambiente, vamos também enterrando na sombra aquelas

qualidades inadequadas à nossa autoimagem. Assim, o ego e a sombra vão se

desenvolvendo ao mesmo tempo, por meio das mesmas experiências de vida. De

acordo com diferentes ambientes familiares e culturais, é considerado de modos

diversos o que pertence ao ego e o que pertence à sombra. Muitas forças

concorrem para a formação de nossa sombra e acabam por determinar o que pode

ser expresso e o que não pode (cf. ZWEIG e ABRAMS, 2011, p. 15-16).

Todos os sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego e exilados na sombra contribuem para o poder oculto do lado escuro da natureza humana. No entanto, nem todos eles são aquilo que se considera traços negativos. De acordo com a analista junguiana Liliane Frey-Rohn, esse escuro tesouro inclui a nossa porção infantil, nossos apegos emocionais e sintomas neuróticos bem como nossos talentos e dons não-desenvolvidos. (ZWEIG e ABRAMS, 2011, p. 16)

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Não podemos olhar diretamente para a sombra, apenas indiretamente;

podemos observá-la nas características e ações desagradáveis das outras pessoas.

E quando reagimos intensamente às mesmas, com aversão ou admiração, pode ser

que a nossa sombra esteja se revelando, que estejamos nos projetando e atribuindo

tais qualidades a outras pessoas, já que não aceitamos vê-las dentro de nós (cf.

ZWEIG e ABRAMS, 2011, p. 16-17).

A sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de potencialidades não-desenvolvidas e não-expressas. Ela é aquela parte do inconsciente que complementa o ego e representa as características que a personalidade consciente recusa-se a admitir e, portanto, negligencia, esquece e enterra... até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros. (ZWEIG e ABRAMS, 2011, p. 17)

Becker (2011, p. 210) refere-se a Jung ao falar da sombra como a coisa

escura dentro da nossa psique, uma inferioridade que realmente existe e da qual a

pessoa quer se libertar, sendo que a maneira mais direta para isso é projetar nos

outros tudo que seja inferior, escuro e culpável. Apresenta também a figura do bode

expiatório, e se refere a Neumann, citando-o:

A sensação de culpa é atribuída... à percepção da sombra. (...) Essa sensação de culpa, baseada na existência da sombra, é descarregada do sistema de uma mesma maneira, tanto pelo indivíduo como pela coletividade — ou seja, através do fenômeno da projeção da sombra. A sombra, que está em conflito com os

valores reconhecidos [isto é, a fachada cultural sobre a animalidade] não é aceita como uma parte negativa da própria psique da pessoa e, portanto, é projetada— ou seja, é transferida para o mundo exterior e vivenciada como um objeto exterior. Ela é combatida, castigada e exterminada como "aquele estranho lá fora", em vez de ser tratada como um problema interior da própria pessoa. (Neumann, 1969 apud Becker, 2011, p. 210. Grifos do autor)

A sombra atua em diversos momentos de nossa vida, por exemplo, quando

somos dominados por sentimentos de raiva ou vergonha, ou quando nosso

comportamento se revela inaceitável. No entanto, com a mesma rapidez como

irrompe, ela se retrai, pelo medo que temos de prejudicar nossa autoimagem. Com

isso, perdemos a oportunidade de prestar atenção a fantasias, pensamentos e

sentimentos existentes nos domínios da sombra, e, assim, conhecer parte de nossa

escuridão (cf. ZWEIG e ABRAMS, 2011, p. 18).

A função inferior é o veículo da sombra, com todas as influencias dos complexos, constelados ou não, e dos aspectos da anima ou animus. Na maioria das vezes ela se manifesta de forma espontânea e autônoma e geralmente vem travestida com as roupas da função superior. Por isso é muito difícil ser reconhecida, mas podemos percebê-la por meio das projeções e ou identificações geradoras de emoções e afetos de atração ou repulsão, amor ou

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ódio, aceitação ou rejeição, gratuitos, ou seja, se causas concretas e irrefutáveis. (MAGALDI, 2011, p. 33)

Ainda segundo Magaldi (2011, p. 21), “a sombra está situada entre o ego e o

inconsciente, o mundo interior, e, justamente por não ter oportunidades de se

expressar e se exercitar, ali se mantém, contendo as fraquezas e potencialidades

não desenvolvidas, constituindo a função inferior”. Assim sendo, conforme colocado

por Magaldi, o canal de expressão mais usual da sombra é a função inferior, embora

não o único, pois a mesma se manifesta também em projeções e sonhos.

1.4.2 A sombra coletiva

Atualmente, os meios de comunicação estão continuamente nos pondo a par

dos efeitos nocivos provocados pela sombra no mundo. A maldade humana se

manifesta em todas as partes, revelando a face oculta e repulsiva da sombra

coletiva (cf. ZWEIG e ABRAMS, 2011, p. 18-19).

Ao rejeitar a visão da própria fraqueza e fortalecer a ilusão de sua

superioridade, grupos e nações lançam sobre outros seu ódio, transformando-os em

bodes expiatórios, em inimigos que podem ser mortos, por não serem iguais a eles.

Esse processo de desumanização demonstra o domínio da sombra coletiva. Essas

emoções, ao dominarem grupos e países inteiros, revelam seu poder hipnótico e sua

natureza contagiosa, e explicam o porquê das perseguições raciais, guerras

religiosas e tantos outros fatos inaceitáveis. Um dos propósitos básicos da arte e da

literatura tem sido revelar o lado escuro da natureza humana, projetando a sombra,

por meio da imaginação, em monstros e outras figuras amedrontadoras (cf. ZWEIG e

ABRAMS, 2011, p. 19).

Usando as artes e a mídia (aí incluída a propaganda política) para criar imagens tão más ou demoníacas quanto a sombra, tentamos ganhar poder sobre ela, quebrar seu feitiço. Isso pode ajudar a explicar por que ficamos tão excitados com as violentas arengas de arautos da guerra e de fanáticos religiosos. Simultaneamente repelidos e atraídos pela violência e pelo caos do nosso mundo, transformamos na nossa mente esses outros em receptáculos do mal, em inimigos da civilização. (ZWEIG e ABRAMS, 2011, p. 19. Grifos dos autores)

1.4.3 A sombra no trabalho

Bruce Shackleton, ao tratar da sombra no trabalho, levanta diversas questões:

O que nos impede de realizar tudo aquilo que conscientemente acreditamos tentar realizar? Qual é a natureza daquele lado de nós que sabota nossos esforços, nos faz tropeçar quando vamos em busca de nossas esperanças e aspirações e que não quer ser exposto à luz do sucesso? Como as organizações

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nas quais trabalhamos contribuem para solapar a realização dos nossos objetivos, em vez de nos ajudar a alcançá-los. (SHACKLETON, 2011, p. 127).

Assim como a família, a escola ou a igreja, o ambiente de trabalho também

contribui para a formação da sombra, ao influenciar nosso comportamento para que

alcancemos adequação, adaptação e sucesso (cf. SHACKLETON, 2011, p. 127).

No trabalho todos tentamos agradar nossos chefes, colegas e clientes, geralmente escondendo nossas porções desagradáveis — nossa agressão, avidez, competitividade ou opiniões ousadas — nos mais profundos recessos do nosso ser. Para muitas pessoas, o comprometimento psicológico e espiritual fica visível quando, por terem lançado tantas partes de si mesmas na sombra,

descobrem ter "vendido a alma à empresa". (SHACKLETON, 2011, p. 128)

É evidente que a sombra é necessária para escondermos nossos impulsos

negativos e destrutivos e nossas fraquezas e incapacidades. No entanto, esse

processo se torna perigoso quando escondemos coisa demais e muito no fundo,

pois, quando a sombra se torna densa, impermeável e inflexível, ela pode adquirir

vida própria e se tornar destrutiva (cf. SHACKLETON, 2011, p. 128).

A sombra também aparece no ambiente de trabalho quando as pessoas

desconsideram suas necessidades pessoais, de lazer, intimidade, vida familiar, e se

entregam completamente ao trabalho, de forma compulsiva, viciada. Se essa

compulsão tiver raízes em padrões familiares e se a organização estimular esse

vício, a sombra do empregado e a da empresa acabam se alinhando. Por algum

tempo essa combinação dará certo, até se revelar perniciosa, pelo desgaste do

empregado, que pode inclusive se entregar a vícios múltiplos, tais como álcool ou

drogas, e/ou por mudanças na empresa. Essa situação, do trabalho compulsivo, não

é o único lado do avesso das organizações. Embora as mesmas, em geral, declarem

sua “cultura” – regras, rituais e valores –, também têm um lado oculto, e seu

relacionamento com o mesmo pode determinar suas realizações nas áreas

financeira e pessoal (cf. SHACKLETON, 2011, p. 129).

As organizações que negam a necessidade de um adequado desenvolvimento de recursos humanos e um controle do estresse, por exemplo, podem tornar-se censuradoras e insensíveis aos empregados. Quando há ênfase demasiada na lucratividade e pouco interesse nas necessidades individuais, uma atmosfera de desconfiança pode se desenvolver. Alguns empregados se transformam nos bodes expiatórios que serão atacados ou sacrificados no esforço de resolver a dinâmica intrínseca da organização. (SHACKLETON, 2011, p. 129)

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No entanto, quando as organizações possuem uma cultura que permite um

sistema aberto de comunicação, os problemas da sombra no ambiente de trabalho

podem ser administrados de forma adequada:

Por outro lado, as culturas empresariais que encorajam uma forma aberta de comunicação podem estabelecer sistemas de controle para os problemas da sombra individual e grupal, com resultados bem diferentes. Uma organização saudável pode ajudar a limitar a atuação negativa através da construção de sistemas abertos de retorno, harmonizando valores e propósito e até mesmo ajudando os empregados a desenvolver suas capacidades mais profundas. (SHACKLETON, 2011, p.129)

A motivação do empregado também tem profunda ligação com o conteúdo da

sombra. Por exemplo, para subir dentro de uma empresa, muitas pessoas

desconsideram suas qualidades mais compassivas e passam por cima de outras na

escalada profissional. Quando no topo, provavelmente, elas irão atuar a partir do

lado da sombra, só revelando seu lado humano mais profundo junto à família. Em

casos mais extremos, podem deixar-se possuir pela sombra de tal forma, que não

consigam mais respeitar as pessoas, nem no trabalho e nem na própria casa (cf.

SHACKLETON, 2011, p. 129).

Os problemas da sombra individual e empresarial geralmente são negligenciados pelos gerentes e consultores de recursos humanos. Seria extremamente proveitoso reconhecer mais prontamente o lado escuro e colocá-lo trabalhando para nós na renovação individual, empresarial e social. (SHACKLETON, 2011, p.129-130)

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CAPÍTULO 2

O homem e as organizações

Para pensar no funcionamento das organizações e compreender o papel

dos líderes como agentes importantes, tanto positivamente quanto

negativamente, nos processos de individuação do ser humano, precisamos, em

primeira instância, refletir sobre quem é esse homem que vive hoje no interior

destas organizações e como são estas organizações.

O ser humano é multidimensional, complexo, simbólico e organiza seu

universo a partir das compreensões subjetivas e representações inconscientes

que faz da realidade vivida ou da realidade percebida. É também, e

fundamentalmente dual: louco e sábio, bom e mau, trabalhador e lúdico, apolíneo

e dionisíaco, afetivo e racional. É singular e, ao mesmo tempo, irremediavelmente

intrincado numa rede de relações, nas quais entram em jogo corpo, ideias e

afetividade. É o que Morin define como homus complexus (2007, p. 140).

Silveira, citando alguns autores, em sua pesquisa sobre a psicologia

Junguiana como ferramenta para se compreender melhor as relações de trabalho,

diz que:

Hillman vê a personalidade humana como policêntrica, o que significa que não somos mais seres únicos, à imagem de um deus único, mas sempre constituídos de partes múltiplas: criança travessa, herói ou heroína, autoridade controladora, psicopata anti-social e daí por diante. Quando o inconsciente é examinado, descobrimos um mundo de heróis, tiranos, escravos, rainhas, mercadores, charlatães, sedutoras, bodes expiatórios, sacerdotes, generais, senhores, camponeses e assim por diante. Cada uma dessas figuras é um complexo personificado que habita os melodramas internos de nossos sonhos e fantasias. (SILVEIRA, 2012, p. 178-179)

Este homem singular, complexo e inacabado se move no mundo em busca de

completude, aceitação de si e dos outros, num contínuo processo de relações, que

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muitas vezes se mostram dolorosas, outras prazerosas, mas grande parte delas

ocorrendo nos ambientes de trabalho, nas organizações. Neste movimento constrói

a si mesmo e às organizações, numa contínua tarefa de reinventar-se.

Nesta construção e nesse caminhar, o homem vai estabelecendo redes de

conversações arquetípicas, que são forças transformadoras de si e do ambiente,

dentro das organizações (cf. SILVEIRA, 2012, p. 170). Ele cria seus mundos a partir

de sua subjetividade e vive o trabalho a partir desta perspectiva.

Ignorar essa dimensão do homem em seu ambiente de trabalho é cruel, pois

deflagra um sofrimento psíquico na medida em que o indivíduo se vê destituído de

um de seus atributos mais importantes, a sensibilidade que o humaniza, e dessa

forma se aproxima cada vez mais do homo fabris, na busca frenética pela

produtividade e realização material. Chaplin, em seu filme O grande ditador (1940)

denuncia esta condição ao dizer: “não sois máquinas, homens é o que sois!”.

O ser humano tem a necessidade básica de conviver, e para isso precisa

por em prática o exercício de cooperar, ou seja, de “operar com” para alcançar

resultados. Estes resultados podem referir-se tanto a bens materiais quanto a

bens imateriais, necessários à saúde e bem estar dos indivíduos. Cada ser

humano tem suas particularidades, que se somam para formar as organizações e

grupos sociais e, nisso, entra em jogo seu conjunto de crenças e valores, que o

torna único.

De acordo com as teorias de administração, o mundo atual é uma

sociedade institucionalizada e composta de organizações. As sociedades típicas

dos países desenvolvidos é pluralista de organizações, cuja grande parte das

obrigações sociais, como a produção de bens e serviços, é confiada às

organizações (como indústrias, universidades e escolas, hospitais, comércio,

comunicações, serviços públicos, entidades religiosas, militares etc). Todas as

atividades realizadas em seu interior sejam elas lucrativas (empresas) ou não

lucrativas (igrejas, entidades filantrópicas, ONGs, etc) precisam ser planejadas,

supervisionadas, coordenadas e controladas. Pode-se dizer mesmo que as

pessoas “vivem” no interior destas organizações, no sentido de que passam

envolvidas, direta ou indiretamente com elas, grande parte de suas vidas (cf.

CHIAVENATO, 2000, p.1).

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As organizações se tornam o palco em que os atores trabalham e vivem

coletivamente seus mais profundos problemas inconscientes, devido ao

esgarçamento dos tecidos sociais, resultando numa sociedade amorfa, como os

líquidos, que Bauman (2003) chamou de modernidade líquida, cujas

características são a provisoriedade, o desapego, a transitoriedade e acentuado

processo de individualização que traz em seu bojo a incerteza, o medo e a

insegurança, já que a solidez já não mais existe. Este indivíduo que se vê

sozinho, por si mesmo, se volta cada vez mais para suas próprias necessidades e

se vê despertencente de uma estrutura social. Assim, num movimento narcísico,

foca cada vez mais em si. Neste contexto criam-se as condições para a

intolerância e indiferença, onde o outro pode ser visto como uma ameaça. É neste

cenário que as organizações se constituem como organismos vivos, complexos,

redes de conversações arquetípicas.

Para garantir o funcionamento destas organizações são necessárias

pessoas que as administrem ou liderem. Dessa administração ou liderança

decorrerá sucesso ou fracasso das organizações, ou seja, sucesso ou fracasso

das pessoas que compõem esta organização. Daí a importância do papel

desempenhado por este líder.

Liderar pessoas num mundo complexo como o atual é tarefa bastante

difícil. O líder colocará em funcionamento e evidência seu modo de agir, sua

personalidade e filosofia de trabalho. As habilidades exigidas nesta função vão

muito além da habilidade técnica – conhecimentos técnicos e específicos da área

em questão - e da habilidade conceitual – conhecimento da complexidade da

organização como um todo. Abrangem também e, principalmente, a habilidade

humana, que envolve a capacidade de ver o outro e conseguir comunicar-se

verdadeiramente com ele no sentido da consecução dos objetivos a que se

propuseram.

A visão da importância do papel do líder na vida das pessoas foi delineada

por Chiavenato, ao apontar as características do administrador:

É um agente - não só de condução, mas também de mudança e de transformação das empresas, levando-as a novos rumos, novos processos, novos objetivos, novas estratégias, novas tecnologias e novos patamares; é ele um agente educador no sentido de que, com sua direção e orientação, modifica comportamentos e atitudes das pessoas; é ele um agente cultural na medida em que, com o seu estilo de administração, modifica a cultura

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organizacional existente nas empresas. Mais do que isso, o administrador deixa marcas profundas na vida das pessoas, na medida em que sua atuação na empresa influi no comportamento dos consumidores, fornecedores, concorrentes e demais organizações humanas. (CHIAVENATO, 2000, p. 11)

Liderança é um processo relacional, no qual o agente influenciador e os

sujeitos influenciados ocupam papéis que dependem um da existência do outro.

É um conceito complexo que abrange atitudes, valores, crenças, comportamentos

e ações no âmbito das organizações, onde há tensão, contradições e dilemas que

necessitam ser mediados.

Muchinsky (2003, p. 405) afirma que: “segundo alguns estudiosos, a

liderança tem uma qualidade heróica, maior que a vida, que a diferencia de

conceitos relacionados”.

Porém, diversos teóricos afirmam que, muito mais importante do que tentar

definir liderança, já que este esforço resultaria em algo arbitrário e subjetivo, seria

procurar entender quais os desdobramentos da ação do líder. No entanto, alguns

elementos são identificáveis como comuns quando se tenta definir liderança. Luck

levanta as seguintes características:

Influência sobre pessoas, a partir de sua motivação para uma atividade; propósitos claros de orientação, assumidos por essas pessoas; processos sociais dinâmicos, interativos e participativos; modelagem de valores elevados e orientação para o desenvolvimento e aprendizagem contínuos. (LUCK, 2008, p. 35)

Não se deve confundir liderança com poder. Liderança supõe ação

orientadora, poder supõe coerção, medo e manipulação. Isto fica mais evidente

em alguns estilos de liderança, nos quais aquele que deveria exercer o papel de

líder exerce manipulação e controle que não levam auto-regulação e auto-

reflexão dos liderados, principalmente quando estes estilos estão associados a

punições e recompensas.

Nos estudos mais atuais tem se falado bastante da identificação do

conceito de liderança em acordo com recentes paradigmas holístico e ecológico.

Dessa forma, Luck nos apresenta os seguintes tipos de liderança: liderança

transformacional, transacional, liderança compartilhada e coliderança, liderança

educativa ou liderança centrada na aprendizagem, liderança integradora ou

holística, entre outras (cf. 2008, p. 45-54).

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Para entender como as características pessoais, incluindo-se aí os

conteúdos sombrios, de um líder se manifestam é preciso conhecer as

características dos tipos de liderança assumidos pelos indivíduos.

A liderança transformacional é aquela fortemente orientada por valores,

confiança e um sentido de verdade, compartilhado por todos na organização.

Proporciona uma visão transformadora de processos sociais e da organização

como um todo, criando um novo e abrangente estado de consciência para todos

os envolvidos.

A liderança transacional é aquela que prioriza as relações entre as pessoas

participantes da organização, mobilizando-as para troca de experiências e ideias,

promovendo a integração entre elas.

Coliderança consiste em dividir responsabilidades e funções entre

diferentes cargos, sem prejuízo à unidade do projeto, em articulação com a

liderança central a partir de diálogo contínuo e mediação. Só é possível onde não

há relação de competitividade exacerbada e onde não prevalece o receio de

perder espaço e poder. Este tipo de liderança necessita de pessoas cuja

personalidade esteja bastante íntegra, nas quais os sentidos de aceitação e

autovalorização estejam bem resolvidos. Dentro do conjunto de necessidades

básicas do ser humano descritas através da pirâmide de Maslow (hierarquia das

necessidades) que será explicitado adiante, por exemplo, pode-se observar que

um cargo de liderança compartilhada só pode ser exercido quando o indivíduo

estiver num processo acelerado de satisfação destas necessidades, dispostas em

cinco grupos de necessidades: as fisiológicas, de segurança, de pertença ou

sociais, de autoestima e de auto-realização.

Já a liderança educativa ou centrada nas aprendizagens se expressa em

três princípios: a) modelagem, ou seja, mudança pelo exemplo; b) monitoramento,

garantido pelo acompanhamento e presença orientadora; c) diálogo refletido na

construção contínua de significados. Este tipo de liderança envolve a formação e

capacitação em serviço e focaliza os processos de aprendizagem dos envolvidos.

Pode gerar um envolvimento grande por parte dos liderados, que passam a sentir-

se mais valorizados e pertencentes à organização.

Já o princípio norteador da liderança integradora é o de que o trabalho se

realiza “numa teia dinâmica de eventos inter-relacionados” (FERNANDES, 2001

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apud LUCK, 2008, p. 54 ), cuja consistência influencia o todo. Dessa forma o que

determina a diferença no processo e resultados é a ação conjunta das pessoas do

grupo.

2.1 Teorias Administrativas

A teoria geral de administração, segundo Chiavenato,

É o campo do conhecimento humano que se ocupa do estudo da administração em geral, não se preocupando onde ela seja aplicada, se nas organizações lucrativas ou se nas organizações não lucrativas. A Teoria Geral de Administração trata do estudo da administração das organizações. (CHIAVENATO, 2000, p. 3)

Pretendemos demonstrar que os estudos de Teoria Geral de Administração

também corroboram com a hipótese de que as relações de trabalho e,

principalmente o papel do líder, têm grande influência na vida das pessoas.

Posto isto, este capítulo pretende também analisar algumas derivações da

Teoria Geral de Administração, organizada por Chiavenato (2000), pois

entendemos que o modelo escolhido ou aceito de liderança é determinante na

relação líder-liderado e no processo de individuação.

Ainda segundo Chiavenato (2000, p. 25-33) não podemos desconsiderar

que alguns aspectos influenciaram, e porque não dizer, forjaram, a maneira como

se dão as relações de trabalho no decorrer da história. São eles, principalmente a

Igreja Católica, cujo modelo hierárquico de sucesso vem sendo mantido, com

praticamente nenhuma alteração por séculos, e que ainda é largamente modelo

inspirador de muitas organizações e, principalmente de muitos líderes; as

organizações militares, cujos princípios foram incorporados por algumas teorias

administrativas, como o princípio da unidade de comando, escala hierárquica e

organização linear e a revolução industrial, que criou um contexto social,

industrial, tecnológico, político e econômico que demandou o surgimento da teoria

administrativa.

O quadro abaixo mostra as principais teorias administrativas e seus

principais enfoques e aspectos enfatizados.

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ÊNFASE

TEORIAS

ADMINISTRATIVAS

PRINCIPAIS ENFOQUES

Nas Tarefas Administração

Científica

Racionalização do trabalho no nível

operacional

Na Estrutura Teoria Clássica

Teoria Neoclássica

Organização formal.

Princípios gerais da administração.

Funções do administrador.

Teoria da

Burocracia

Organização formal burocrática.

Racionalidade organizacional.

Teoria

Estruturalista

Múltipla abordagem:

Organização formal e informal.

Análise intraorganizacional e

interorganizacional.

Nas Pessoas Teoria das

Relações

Humanas

Organização informal.

Motivação, liderança, comunicações

e dinâmica de grupo.

Teoria do

Comportamento

Organizacional

Estilos de administração.

Teoria das decisões.

Integração dos objetivos

organizacionais e individuais.

Teoria do

Desenvolvimento

Organizacional

Mudança organizacional planejada.

Abordagem de sistema aberto.

No Ambiente Teoria

Estruturalista

Análise intraorganizacional e

interorganizacional.

Abordagem de sistema aberto.

Teoria da

Contingência

Análise ambiental (imperativo

ambiental).

Abordagem de sistema aberto.

Na

Tecnologia

Teoria da

Contingência

Administração da tecnologia

(imperativo tecnológico).

Quadro I – As principais teorias administrativas e seus principais enfoques Fonte: (CHIAVENATO, 2000, p. 7)

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Na presente análise nos interessa saber mais sobre as teorias que dão

ênfase às pessoas, para depois fazer a interface de alguns componentes teóricos

destas teorias com as contribuições de Jung, no que se refere à atuação da

sombra nas relações de trabalho.

2.1.1 Teoria das Relações Humanas

Esta teoria surgiu em oposição à teoria clássica de administração e nasceu

da necessidade de se humanizar mais as relações de trabalho, para se adequar

aos novos padrões de vida americana. O desenvolvimento das ciências humanas,

principalmente da Psicologia também foi um fato que contribuiu para mostrar a

inadequação da ênfase na tecnologia e métodos de trabalho em detrimento do

humano. Na prática, essa teoria surgiu com a Experiência de Hawtorne, de 1924

a 1932, cujas conclusões introduziram no mundo da Administração variáveis

como integração social, necessidades psicológicas e sociais das pessoas e

organização informal de trabalho. Ou seja, concluiu-se que o ser humano é

motivado, não por estímulos econômicos e salariais, mas por recompensas

sociais, simbólicas e não materiais.

Passou-se então, a considerar o fator motivação nas relações de trabalho,

o que, por sua vez, supõe o conhecimento das necessidades humanas básicas,

que são descritas, em níveis de evolução pelos quais o indivíduo passa durante a

vida, a saber: necessidades fisiológicas, psicológicas e de auto-realização.

As necessidades psicológicas, segundo a teoria das relações humanas,

são: necessidade de segurança íntima, que leva à busca de ajustamento e

tranquilidade pessoal; necessidade de participação, que engloba o

reconhecimento, pertencimento ao grupo, amizade e socialização e aprovação

pessoal; necessidade de autoconfiança, que se refere à maneira como o indivíduo

se vê e se avalia; necessidade de atenção, de dar e receber afeto, amor e carinho

(cf. CHIAVENATO, 2000, p.128-129).

Já as necessidades de auto-realização são as mais elevadas e decorrem da

educação e cultura da pessoa e referem-se ao impulso de realizar o próprio

potencial, de estar em contínuo autodesenvolvimento.

Pode-se aqui traçar um paralelo com a teoria junguiana no que se refere ao

processo de desenvolvimento da personalidade, pois segundo a mesma:

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Atingir a personalidade não é tarefa insignificante, mas o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado [...] Personalidade é a realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo em particular. Personalidade é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo isso aliado à máxima liberdade de decisão própria. (JUNG, 2008d, p. 177)

A partir da teoria das relações humanas ampliou-se o campo de aplicação

na administração de conceitos como motivação, pertencente até então à área da

psicologia. Assim, entende-se que o ciclo motivacional é resultante da tensão

gerada pela necessidade, que conduz a uma ação para promover satisfação. Isso

leva ao equilíbrio, que é quebrado por um novo estímulo ou incentivo, que

novamente vai gerar tensão, dando início a um novo ciclo.

No entanto, a satisfação das necessidades nem sempre é alcançada, o que

gera frustração ou compensação. Já que toda necessidade humana não satisfeita

é geradora de comportamento, pode-se, a partir daí considerar que a frustração

pode levar a certas reações, como desorganização de comportamento,

agressividade, reações emocionais desequilibradas, alienação e apatia.

Aproximando-nos do conceito de sombra podemos considerar que estas podem

ser manifestações da sombra do indivíduo. Ainda mais se considerarmos que as

organizações contemporâneas tornam-se palcos de conflitos de interesses e

poder, forjados pela dinâmica política destas organizações.

Para Teoria das Relações Humanas o moral é decorrência do estado de

satisfação das necessidades do indivíduo, assim o rebaixamento do moral está

associado a não consecução da satisfação das necessidades, bem como o oposto é

verdadeiro. Daí decorre também o conceito de clima organizacional, que é o

ambiente psicológico e social que existe em uma organização e que condiciona o

comportamento de seus membros.

Aqui cabe lembrar que as organizações são concebidas como entidades

vivas, psicológicas e complexas. Bauman, ao referir-se ao caráter de provisoriedade

e insegurança e liquidez da sociedade atual, da qual estas organizações fazem

parte, diz que

Tudo está agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma.

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Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "auto-evidentes". É verdade que a vida moderna foi desde o início "desenraizadora" e "derretia os sólidos e profanava os sagrados", como os jovens Marx e Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se fazia para ser novamente "reenraizado", agora as coisas todas - empregos, relacionamentos, know-hows etc.- tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. (BAUMAN, 2003)

Fugindo da simplificação de clima organizacional proposta pela Teoria das

Relações Humanas, Morgan afirma que

Embora sejamos geralmente levados a pensar as organizações como empresas

racionais buscando atingir metas que visam à satisfação do interesse de todos,

existe muita evidência que sugere ser esta visão mais uma ideologia do que uma

realidade. As organizações geralmente são usadas como instrumentos de

dominação que promovem interesses egoístas de elites à custa de outros

interesses, e existe um elemento de dominação em todas as organizações. Ao

longo da história, a organização tem sido associada com os processos de

dominação social onde indivíduos ou grupos encontram maneiras de impor sua

vontade aos outros. (MORGAN, 2002, p. 303-304)

E é neste contexto que se estabelecem as relações entre líderes e liderados.

Liderança é o processo de influência realizado no âmbito da gestão de

pessoas e de processos sociais, no sentido de mobilização de talentos e esforços,

orientado por uma visão clara e abrangente da organização em que se situa e de

objetivos que deva realizar, com a perspectiva da melhoria contínua da própria

organização, de seus processos e das pessoas envolvidas. Por consequência,

implica uma relação de poder.

Ainda, segundo Morgan (2002, p. 204) “a liderança, em última análise,

envolve a habilidade de definir a realidade para os demais”.

Luck (2008, p 43) ao citar Grün, nos alerta que “nós somos responsáveis pela

maneira como nos deixamos liderar. Não depende apenas do líder, mas sempre

também do liderado, que espécie de liderança aceitará”.

Segundo a Teoria das Relações Humanas, a liderança pode ser visualizada por

diversos ângulos, tais como: liderança como fenômeno de influência interpessoal,

liderança como processo de redução da incerteza de um grupo, liderança como uma

relação funcional entre líder e subordinados, liderança como um processo em função

do líder, dos seguidores e de variáveis da situação (CHIAVENATO, 2000, p. 134).

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2.1.1.1 Teorias de lideranças segundo a Teoria das relações humanas

Estudiosos da liderança identificam três teorias que explicitam as correntes

atuais de pensamento em relação à liderança, e que vem sendo amplamente

difundidas e disseminadas em processos de formação de líderes. São elas a teoria

dos traços de personalidade, teoria de estilos de lideranças e teoria situacional.

Teoria dos traços de personalidade

A teoria dos traços de personalidade é resultado de pesquisas que procuram

explicar a liderança como consequência de traços que são identificados em comum

nas pessoas que demonstram liderança efetiva.

Segundo estas pesquisas pessoas que assumem cargos de lideranças tendem

a manter um nível elevado de perseverança e motivação, têm boas habilidades de

comunicação, apresentam determinação na realização de objetivos, expressam um

elevado nível de maturidade social e psicológica, demonstram um elevado nível de

autoconfiança e apresentam espírito empreendedor.

Teoria de estilos de lideranças

A teoria de estilos de liderança baseia-se na ênfase com que o poder é

centralizado ou distribuído no ambiente de liderança.

Estilo autocrático, no qual o dirigente centraliza a tomada de decisão e

assume uma liderança de forma individual e imbuído de sua verdade.

Estilo democrático, que se assenta sobre a participação e sobre a tomada da

decisão compartilhada, seguida de ações colaborativas, em que , em equipe, os

membros da organização assumem responsabilidades conjuntas pelo seu

desenvolvimento e realização de objetivos.

Estilo laissez faire, que é marcado por uma falta de liderança e de

direcionamento. Pode-se dizer que não seja propriamente um estilo de liderança,

mas a falta dela.

Teoria situacional

A teoria situacional enfoca a liderança como emergente das situações e

desafios diferenciados, que instigam pessoas a tomar iniciativas para resolvê-las à

luz de patamares mais efetivos de desempenho.

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Levantamos a hipótese de que a escolha pela teoria que orientará o líder e

constituirá sua estrutura referencial não é aleatória e precisa fazer sentido para sua

vida, já que através de sua atuação como líder ficarão explícitos seu modo de agir,

de se relacionar, de se expressar, enfim sua orientação psíquica estará sendo

revelada. Acreditamos que, muitas vezes é possível perceber a sombra se

manifestando quando escolhemos esta ou aquela forma de nos relacionarmos com o

outro no ambiente de trabalho.

Edinger, em seu livro Ego e arquétipo, diz que:

A motivação para o poder de todos os tipos é sintoma de inflação. Toda vez que agimos motivados pelo desejo de poder, a onipotência está implícita. Mas a onipotência é um atributo que só Deus tem. A rigidez intelectual que tenta igualar suas próprias verdades ou opiniões com a verdade universal também é inflação. É a suposição da onisciência. [...] Todo desejo que dê à sua própria satisfação um valor central transcende os limites da realidade do ego e, em consequência, assume os atributos de poderes transpessoais. [...] Na realidade, a colocação em si mesmo de um excesso de qualquer coisa é indício de inflação, pois transcende os adequados limites humanos. (1990, p. 37)

2.1.2 Teoria Comportamental da Administração

A Teoria Comportamental da Administração ou Teoria Behaviorista surgiu em

oposição às concepções ingênuas e românticas da Teoria das Relações Humanas.

Fundamentada no comportamento individual das pessoas, considerando que a

motivação constitui-se em meio poderoso para alcançar objetivos e melhorar a

qualidade de vida dentro das organizações.

Assim, o administrador precisa conhecer profundamente as necessidades

humanas para melhor compreender o comportamento humano.

Abraham Maslow foi um expoente desta teoria e afirma que o homem está

sempre tentando satisfazer os seus desejos e necessidades. Quando não podem

ser satisfeitas, geram tensão que levam o indivíduo a ação para recuperar o

equilíbrio. Uma vez satisfeita essa necessidade, ela perde o seu potencial de força

motriz do comportamento.

O modelo hierárquico de Maslow é também chamado de hierarquia das

necessidades, composto por cinco grupos de necessidades: as necessidades

fisiológicas, de segurança, de pertença (que em alguns escritos tardios Maslow

conceituou como sociais), de autoestima e de auto-realização. As necessidades

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fisiológicas, de segurança, de pertença e autoestima são também chamadas de

necessidades básicas, de deficiência ou “necessidades D”, enquanto que as

necessidades de auto-realização são também chamadas de metanecessidades,

necessidades de crescimento ou “necessidades S” (CHIAVENATO, 2000, p. 393-

396).

Figura 3 - A hierarquia das necessidades, segundo Maslow

Fonte: (CHIAVENATO, 2000, p. 393)

Estas necessidades assumem formas que variam de pessoa para pessoa,

apesar disso Maslow baseou-se nos seguintes aspectos:

•necessidades secundárias

neces-

sidades

de

auto-realização

necessidades de estima

necessidades sociais

necessidades de segurança •necessi-

dades primá-rias

necessidades fisiológicas

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Figura 4 - A hierarquia das necessidades humanas e meios de satisfação

Fonte: (CHIAVENATO, 2000, p. 395)

Mais uma vez pode-se fazer uma interface com a teoria junguiana e com o

processo de individuação. Essa tendência inata nos impele ao que Abraham Maslow

chamava de capacidade de auto-realização. Temos uma tendência de nos

tornarmos aquilo que somos, o que nos impele à realização pessoal e autonomia em

relação ao mundo. A individuação, portanto, significa tornar-se um in-dividuum, um

ser único e indiviso.

Segundo Silveira,

o homem é sujeito de sua própria ação, criador de mundos, construtor de conhecimento nas organizações, que vive o trabalho a partir da sua subjetividade, do seu mundo interno, chamado por Jung e Hillman de “alma”, na medida em que a realização de uma tarefa passa pela invenção de um uso de si. (SILVEIRA, 2012, p. 26)

Daí, o sofrimento psíquico do homem no trabalho decorre de uma cisão deste

com a sua dimensão subjetiva, cristalizando sua ação na consecução da satisfação

das necessidades mais básicas.

trabalho criativo edesafiante divesridade e autonomia participação nas decisões

responsabilidade por resultados orgulho e reconhecimento

promoções

amizade dos colegas interação com clientes

gerente amigável

condições seguras de trabalho remuneração e benefícios estabilidade no emprego

intervalos de descanso conforto físico

horário de trabalho razoável

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2.1.3 Teoria Estruturalista da Administração

Surgiu por volta de 1950, também como um movimento de oposição, agora

entre a Teoria Tradicional e a Teoria das Relações Humanas, incompatíveis entre si.

Inspirada na abordagem de Max Weber e, até certo ponto, nos trabalhos de Karl

Marx, a Teoria Estruturalista mostrou a necessidade de visualizar “a organização

como uma unidade social grande e complexa, onde interagem grupos sociais”

(CHIAVENATO, 2000, P. 344), que compartilham de alguns objetivos, mas que

podem incompatibilizar com outros.

O estruturalismo ampliou o estudo das interações entre os grupos sociais,

iniciado pela Teoria das Relações Humanas, para o das interações entre as

organizações sociais. Para os estruturalistas, a sociedade moderna e

industrializada é uma sociedade de organizações, das quais o homem passa a

depender para nascer, viver e morrer.

Esta teoria nos apresenta um novo conceito de estrutura: o conjunto formal de

dois ou mais elementos e que permanece inalterado seja na mudança, seja na

diversidade de conteúdos, isto é, a estrutura mantém-se mesmo com a alteração de

um dos seus elementos ou relações. Assim, o todo não corresponde à junção de

suas partes.

As organizações constituem as formas dominantes de instituição da moderna sociedade: são a manifestação de uma sociedade altamente especializada e interdependente, que se caracteriza por um crescente padrão de vida [...] São caracterizadas por um conjunto de relações sociais estáveis e deliberadamente criadas com a explícita intenção de alcançar objetivos ou propósitos[...] Assim a organização é uma unidade social dentro da qual as pessoas alcançam relações estáveis entre si, no sentido de facilitar o alcance de um conjunto de objetivos ou metas. (CHIAVENATO, 2000, p. 348)

No entanto, na vida real, que ultrapassa as prescrições da teoria, o que se vê

é um crescente número de pessoas que adoecem em função das relações

corrompidas em seus ambientes de trabalho, que, diferentemente do que diz a

teoria, estão longe de serem estáveis. E, ainda mais distantes de se preocuparem

com a consecução de objetivos e metas pessoais mais elevadas, que ultrapassem a

busca pelo ter para entrar na esfera do ser. Busca esta que poderia impulsionar o

indivíduo na construção de uma personalidade mais íntegra.

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2.1.3.1 Características necessárias do homem organizacional

Enquanto a teoria clássica caracteriza o “homo economicus” e a teoria das

relações humanas o “homem social”, a Teoria Estruturalista focaliza o “homem

organizacional”, ou seja, o homem que desempenha papéis em diferentes

organizações. Este homem precisa apresentar certas características, como:

flexibilidade para lidar com as constantes mudanças que ocorrem na vida moderna,

bem como da diversidade dos papéis desempenhados nas diversas organizações,

que podem chegar à inversão, aos bruscos desligamentos das organizações e aos

novos relacionamentos; tolerância às frustrações, para evitar o desgaste emocional

decorrente do conflito entre necessidades organizacionais e necessidades

individuais, cuja mediação é feita através de normas racionais, escritas e exaustivas

que procuram envolver toda a organização; capacidade de adiar recompensas e

poder compensar o trabalho rotineiro dentro da organização, em detrimento das

preferências e vocações pessoais por outros tipos de atividade profissional e

permanente desejo de realização, para garantir a conformidade e cooperação com

as normas que controlam e asseguram o acesso às posições de carreira dentro da

organização, proporcionando recompensas e sanções sociais e materiais (cf.

Chiavenato, 2000, p. 349-350).

As organizações sociais são consequências da necessidade que as pessoas

têm de relacionar-se e juntar-se com outras pessoas, a fim de poder realizar seus

objetivos. Dentro da organização social as pessoas ocupam certos papéis. As

organizações são palcos de conflitos e dilemas que provocam tensões e

antagonismos, que são geradores de mudanças e desenvolvimento.

Resolução de conflitos supõe cooperação. Estes dois polos estão presentes

nas organizações, bem como nas atividades sociais como fundamentais para seu

crescimento, portanto sua repressão artificial é criticada pelos estruturalistas.

Podemos identificar aqui a importância do papel do líder no manejo destas

situações de conflito e o quanto a sombra pode manifestar-se em situações nas

quais a incongruência dos objetivos se faz presente. Todo conflito traz em si uma

força criativa que contém, paradoxalmente, aspectos construtivos e destrutivos. O

que emergirá dele dependerá da maneira como os envolvidos conduzirem a

situação. Neste sentido, o medo gerado pela instabilidade do novo pode suscitar no

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líder aspectos sombrios como de insegurança, manifestos em poder excessivo, por

exemplo. Outro aspecto importante e que deve ser considerado é o fato de que

quando o conflito é sufocado ou disfarçado, ele procurará outras formas de

expressão, prejudiciais aos indivíduos e às organizações.

Este capítulo pretendeu apresentar um breve panorama das teorias que, de

uma maneira ou de outra, perpassam as relações de trabalho atuais.

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CAPÍTULO 3

A sombra e as organizações

Cada tempo produz a necessidade de construir novas teorias que expliquem e

fundamentem as relações que abarcam o sujeito e as organizações.

Nesse cenário de complexidades, onde a obtenção de resultados se

sobrepõe, muitas vezes de forma unilateral, às necessidades do ser humano, a

atuação da sombra chega a ser inconscientemente incentivada, comprometendo a

qualidade de vida no interior de organizações que assim procedem, o que repercute

no desenvolvimento, não só das pessoas envolvidas, como também da própria

organização.

É comum observarmos, em organizações de todo tipo, a existência de

pessoas insatisfeitas, desmotivadas, doentes, cuja representatividade indica uma

sintomatologia, que sinaliza fragilidades na gestão organizacional, cuja gênese

precisa ser investigada, se desejarmos assegurar a saúde do universo

organizacional, preservando a qualidade de vida dos seus integrantes e o sucesso

no alcance dos objetivos.

Retomando o conceito de redes de conversação arquetípica, podemos supor

que cada indivíduo contribui com seu amplo universo arquetípico para constituir

as redes de relações. Estas relações estão encharcadas de conteúdo sombrio, à

medida que em seu interior se travam as inúmeras batalhas pela satisfação das

necessidades individuais.

Conforme já dissemos na introdução do presente trabalho, o propósito do

mesmo é compreender a influência da sombra nas organizações pela análise das

relações entre líderes e liderados e sua interface com o processo de gestão,

considerando que tanto uns quanto outros operam em uma dinâmica de

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retroalimentação, num sistema de reforço constante. Por isso, é importante

compreendermos os tipos de liderança que permeiam as organizações.

No capítulo 1, referente à estrutura e ao funcionamento psíquico, procuramos

sintetizar uma série de determinantes do comportamento humano, de acordo com os

ensinamentos de Jung. Utilizaremos agora esse referencial para aprofundar o objeto

de nosso trabalho, qual seja a influência da sombra na dinâmica das organizações.

A partir das colocações de Magaldi constatamos que o canal de expressão mais

comum utilizado pela sombra para se manifestar é a função inferior.

Tendo como referencial os tipos psicológicos, de acordo com Jung, verificamos

a importância das figuras da sombra em contraposição com a da persona na análise

das relações entre líderes e liderados, pois se a primeira se manifesta por meio da

função inferior, a segunda o faz por meio da função superior.

Assim sendo, se queremos ter uma visão mais abrangente acerca da gama de

relações que se estabelecem no interior das organizações, devemos considerar as

consequências das combinações entre atitudes e tipos psicológicos, descritas por

Jung. Por exemplo, de um líder que tem como função superior pensamento pode-se

esperar a construção de uma persona mais racional; em contraposição, o mesmo

poderá ter dificuldades nas relações humanas, uma vez que sua função inferior é

sentimento.

Como vimos no capítulo 1, a função inferior, em geral, não é controlada pela

vontade, o que acarreta perturbações e dificuldades para a pessoa em seus

relacionamentos. Se pensarmos no contingente de pessoas existentes nas

organizações, podemos imaginar as dificuldades relacionais causadas pela sombra

via função inferior.

Conforme vimos também no capítulo 1, devemos considerar igualmente no

âmbito da sombra as figuras da anima e do animus, de natureza arquetípica,

existentes no inconsciente pessoal como complexos personificados e autônomos.

Segundo Jung, somente a conscientização dos conteúdos relativos à anima e ao

animus pode transformá-los de complexos personificados em simples função. Assim

sendo, ao nos referirmos a líderes e liderados e sua dinâmica de relacionamentos

dentro das organizações, devemos pensar nos mesmos enquanto personalidades

nem sempre sob o domínio exclusivo do complexo do ego, mas também de outros

complexos personificados, entre os quais a anima e o animus.

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Quanto à persona, arquétipo responsável pela adaptação do ser humano ao

mundo social, a mesma desenvolve-se como um sistema de proteção e

sobrevivência. No ambiente de trabalho a persona se molda de forma a proporcionar

ao indivíduo a obtenção de maior adaptação e vantagens naquele ambiente,

naturalmente competitivo. O nome persona vem da antiga máscara usada no teatro

grego e tem, para Jung, o mesmo sentido: é a máscara ou fachada aparente do

indivíduo exibida de maneira a facilitar a comunicação com o seu mundo externo, de

acordo com os papéis dele exigidos.

A persona, em seu aspecto dual, pode ser benéfica ou maléfica, como

qualquer outro componente psíquico. Do ponto de vista benéfico, a persona é

essencial para que o indivíduo sobreviva em sociedade. O líder imbui-se de

autoridade e assertividade para atuar junto aos seus liderados. É isto que se espera

dele, que tenha obstinação, resistência e persistência em busca dos objetivos, que

mostre espírito realizador e motivador, que seja aquele que planeja e projeta

expectativas para sua equipe. Porém, o líder pode também ver-se tomado por este

complexo e personificar, ou seja, identificar-se em demasia com o papel por ele

desempenhado e ter dificuldades para tirar a máscara. Um gerente não é gerente o

tempo todo, um líder não necessariamente deve ver-se na obrigação de cuidar de

tudo em tempo integral. Aqueles que são possuídos por esta - sua persona, tornam-

se pessoas difíceis de conviver, são rígidos e exigem dos demais que se comportem

como eles próprios, usam sua persona como parâmetro para julgar e exigir tudo, de

todos.

Esta situação pode revelar um mecanismo de defesa ou uma tentativa de

nossa psique de ocultar ou camuflar os aspectos pessoais que nos desagradam,

num sistema de compensação energética. Daí, o poderoso arquétipo da sombra,

trazendo em si a dualidade do que é bom e do que é ruim no ser humano,

funcionando como receptáculo de aspectos suprimidos da personalidade durante o

processo contínuo de adaptação da persona.

A sombra do líder pode projetar-se largamente sobre seus liderados, numa

situação de subjugo, abuso de autoridade e poder, auto-inflação do ego,

supervalorização de suas capacidades em detrimento dos demais, assédio moral e

até sexual. São inúmeras as maneiras pelas quais a sombra do líder se manifesta.

Também poderíamos discorrer longamente sobre as consequências destas

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manifestações para os liderados, desde sentimento de menos valia até transtornos

psíquicos incapacitantes. Porém, entendemos que há algo que subjaz às

manifestações individuais das sombras dos líderes, que é a escolha, feita pelo

indivíduo que detém o poder, da “teoria” ou “escola” que o ampara, orienta ou

chancela sua conduta. Uma organização que não se pauta por relações de trabalho

unilaterais ou autoritárias, certamente cederá menos espaço para um líder tomado

por sua persona poderosa, e consequentemente para as suas manifestações

sombrias. Igualmente, organizações que elegem para líderes aqueles que

comungam de teorias que balizam relações de trabalho individualistas, pautadas

pela busca incessante de resultados em detrimento da qualidade de vida dos

envolvidos, que se configuram como o que Morgan (2002) chamou de prisões

psíquicas, certamente estarão cedendo espaço para estas manifestações sombrias,

já que quanto mais unilateral se torna o consciente, mais a persona é exaltada e

iluminada e mais acentuados são os elementos que compõem a sombra.

Segundo Morgan,

O trabalho de Jung mostra que a sombra reprimida da organização age como

um reservatório não só de forças indesejadas e, por isso, reprimidas, como de

forças que se perderam ou não foram valorizadas. Por exemplo, à medida que o

arquétipo masculino se afirma, os valores associados com o feminino são

submersos. Reorganizando-se os recursos desse reservatório, podemos

aproveitar as fontes submersas de energia e criatividade e tornar nossas

instituições muito mais humanas, vibrantes e moralmente sensíveis e

responsáveis do que elas são hoje. (2002, p. 242)

A agressão, a inveja, a raiva, o ressentimento e inúmeras outras dimensões de nossa vida oculta podem ser incorporadas no trabalho e na organização. Essas preocupações ocultas decidem se vamos tentar organizar o trabalho de modo a evitar ou a enfrentar os aspectos problemáticos de nossa realidade e como vamos representar nosso mundo organizacional. Elas estão no centro de muitas questões associadas com dinâmica de grupo, liderança efetiva e inovações e mudanças. [...] a dimensão invisível da organização, que descrevemos como o inconsciente, pode engolir e aprisionar energias positivas das pessoas envolvidas no processo organizacional. (2002, p. 243)

Como vimos, se no ambiente de trabalho, assim como em todas as esferas da

vida, se estabelece uma rede de conversações arquetípicas, também a sombra e a

persona dos liderados estarão se manifestando nesse processo de afetamento

mútuo. É importante salientar que a sombra traz em si a possibilidade de mudança,

quando o indivíduo se torna capaz de mergulhar nela para acostumar seu olhar com

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a escuridão e adquirir uma nova capacidade de visão, no caminho para a

completude da personalidade, a individuação.

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Conclusão

Homem. Sujeito. Organização. Psique. Vida. Trabalho. Individuação. Até aqui,

procuramos mostrar o quanto estes aspectos são indissociáveis e interdependentes.

O homem atual, inserido nesta sociedade líquida, de relações fluidas, busca dar

sentido à sua existência através, não só, mas em grande parte, de seu trabalho.

Para nós, o poema-música abaixo traduz esta angústia que move o homem.

Um Homem Também Chora

Um homem também chora Menina morena Também deseja colo Palavras amenas Precisa de carinho Precisa de ternura Precisa de um abraço Da própria candura Guerreiros são pessoas Tão fortes, tão frágeis Guerreiros são meninos No fundo do peito Precisam de um descanso Precisam de um remanso Precisam de um sono Que os tornem perfeitos É triste ver meu homem Guerreiro menino Com a barra do seu tempo Por sobre seus ombros Eu vejo que ele berra Eu vejo que ele sangra A dor que tem no peito Pois ama e ama Um homem se humilha Se castram seu sonho Seu sonho é sua vida E vida é trabalho E sem o seu trabalho Um homem não tem honra

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E sem a sua honra Se morre, se mata Não dá pra ser feliz Não dá pra ser feliz (GONZAGUINHA, 1983)

O sujeito da psicologia junguiana, multifacetado, arquetípico e simbólico,

singular, inacabado, livre e complexo, que busca sentido e transcendência, indivíduo

que constrói a si mesmo e as organizações em redes de conversações, num

processo contínuo e inacabado é também o sujeito de Gonzaguinha, que se

humilha, se castram seus sonhos, que morre aos poucos psiquicamente quando não

tem suas necessidades contempladas, que sente perder sua honra nas relações de

trabalho, muitas vezes impositivas, esvaziadas de sentido. Este homem, que tem

sobre seus ombros a barra de seu tempo, um tempo onde não existem estruturas

sólidas de apoio no coletivo, um tempo que abre espaço para o individualismo, em

que o sujeito, inseguro, solitário volta-se para si mesmo, num movimento narcísico,

afastando-se cada vez mais do princípio de coletividade, que poderia lhe dar mais

sentido existencial. Este modo de vida cria as condições perfeitas para a intolerância

e competitividade desmedida, na qual o outro não é visto como par e sim como

ameaça. Este espaço configura-se como terreno mais do que fértil para toda sorte

de manifestações de conteúdo sombrio.

Guerreiros somos todos nós, mas, como nos diz Gonzaguinha, guerreiros são

meninos, no fundo do peito, em busca de crescimento, de ampliação de consciência,

num processo contínuo para a individuação, projeto de vida permanente e

profundamente influenciado pelas relações de trabalho. Aqui, cabe-nos perguntar,

ou pelo menos incomodarmo-nos com a questão: se no cerne das organizações e

das relações de trabalho os sujeitos se moldam, se modificam, e se movem tentando

dar sentido à sua existência, neste processo interminável de individuar-se, qual é a

responsabilidade do líder na medida em que influencia profundamente a vida de

seus liderados? E mais, não seria papel do líder, consciente de sua função e

influência na vida de tantas pessoas, cuidar de iluminar seus aspectos sombrios

para exercer mais dignamente suas funções? E, por fim, não seria esta uma

importante reflexão a ser feita, não só pelos líderes nas organizações, mas também

pelos médicos, terapeutas, cuidadores, psicólogos, professores, enfim, por todos

aqueles que marcam, de uma maneira ou de outra, as vidas de tantas pessoas?

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A pesquisa serve, antes de tudo, para desestabilizar o que já está construído

e lançar dúvidas. Saímos desta pesquisa muito maiores do que entramos, ou seja,

com muitas outras perguntas. E, finalizamos com as palavras do poeta:

Eu vejo que ele berra Eu vejo que ele sangra A dor que tem no peito Pois ama e ama (GONZAGUINHA,1983)

E deve ser assim, o guerreiro berra e sangra sua dor neste processo contínuo

de tornar-se um sem deixar de ser parte do todo.

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