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ARTIGOS VARIADOS Experiências e vivências de mulheres agricultoras no Oeste do Paraná* Gladis Hoerlle** Este artigo tem como propósito a reflexão acerca das experiências e memórias de mulheres agricultoras aposentadas que vivem no espaço urbano do município de Marechal Cândido Rondon, extremo Oeste do estado do Paraná. 1 Estão em foco mulheres que, depois de uma vida de trabalho intenso na “colônia”, como se referem à propriedade rural, deixaram aquele espaço, acompanhadas de suas famílias, para morar na “cidade”, o espaço urbano do município, na busca de um envelhecimento “mais tranquilo” e de um ambiente no qual estivessem mais próximas de outras pessoas da mesma geração. As mulheres entrevistadas para este trabalho têm em comum a gera- ção e experiências vividas desde a migração para a região, além do seu des- locamento do campo para o espaço urbano. Essas mulheres, todas oriun- das de áreas rurais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, migraram para a região Oeste do Paraná nas décadas de 1950 e 1960, durante o processo de ocupação das terras promovido pela Companhia Industrial Madeireira e * Este texto é um desdobramento da dissertação de mestrado intitulada Envelhecer na cidade: memórias de mulheres aposentadas oriundas do espaço rural (Marechal Cândido Rondon – PR), defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Linha de pesquisa Práticas Culturais e Identidades. ** Mestre em História pela Unioeste. E-mail: [email protected]. 1 O município possui atualmente uma área de 748.281 km² e uma população de 46.819 habitantes. O solo de terra roxa é fertil, adequado ao plantio de soja, milho e trigo, produtos agrícolas cultivados. Disponí- vel em: <http://www.ipardes.gov.br/cadernos/MontaCadPdf1.php?Municipio=85960&btOk=ok>. Acesso em: 11 dez. 2014.

Experiências e vivências de mulheres agricultoras no Oeste do Paraná

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Este artigo tem como propósito a reflexão acerca das experiências ememórias de mulheres agricultoras aposentadas que vivem no espaço urbanodo município de Marechal Cândido Rondon, extremo Oeste do estado doParaná.1 Estão em foco mulheres que, depois de uma vida de trabalho intensona “colônia”, como se referem à propriedade rural, deixaram aquele espaço,acompanhadas de suas famílias, para morar na “cidade”, o espaço urbanodo município, na busca de um envelhecimento “mais tranquilo” e de umambiente no qual estivessem mais próximas de outras pessoas da mesmageração.

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  • ARTIGOS VARIADOS

    Experincias e vivncias de mulheres agricultoras no Oeste do Paran*

    Gladis Hoerlle**

    Este artigo tem como propsito a reflexo acerca das experincias e memrias de mulheres agricultoras aposentadas que vivem no espao urbano do municpio de Marechal Cndido Rondon, extremo Oeste do estado do Paran.1 Esto em foco mulheres que, depois de uma vida de trabalho intenso na colnia, como se referem propriedade rural, deixaram aquele espao, acompanhadas de suas famlias, para morar na cidade, o espao urbano do municpio, na busca de um envelhecimento mais tranquilo e de um ambiente no qual estivessem mais prximas de outras pessoas da mesma gerao.

    As mulheres entrevistadas para este trabalho tm em comum a gera-o e experincias vividas desde a migrao para a regio, alm do seu des-locamento do campo para o espao urbano. Essas mulheres, todas oriun-das de reas rurais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, migraram para a regio Oeste do Paran nas dcadas de 1950 e 1960, durante o processo de ocupao das terras promovido pela Companhia Industrial Madeireira e

    * Este texto um desdobramento da dissertao de mestrado intitulada Envelhecer na cidade: memrias de mulheres aposentadas oriundas do espao rural (Marechal Cndido Rondon PR), defendida junto ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual do Oeste do Paran (Unioeste), Linha de pesquisa Prticas Culturais e Identidades.

    ** Mestre em Histria pela Unioeste. E-mail: [email protected] O municpio possui atualmente uma rea de 748.281 km e uma populao de 46.819 habitantes. O solo

    de terra roxa fertil, adequado ao plantio de soja, milho e trigo, produtos agrcolas cultivados. Dispon-vel em: . Acesso em: 11 dez. 2014.

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    Colonizadora Rio Paran Ltda. (Marip), iniciado a partir de fins dos anos 1940. As entrevistadas se mudaram para o Paran entre os anos 1955 e 1972, todas j casadas e com filhos pequenos. Todas elas nasceram e foram criadas no meio rural, trabalharam a maior parte de suas vidas junto com os maridos e filhos na agricultura, na condio de pequenas proprietrias e, mais tarde, se mudaram com parte da famlia para o espao urbano do municpio.

    A ocupao do municpio, da qual muitas destas mulheres tomaram parte a partir de fins dos anos 1940, havia sido baseada em pequenas proprie-dades rurais, nas quais mulheres e homens se dedicavam produo agrope-curia, inicialmente para a prpria famlia, mais tarde para o mercado.2

    Ao discorrer sobre a constituio de um espao colonial no Oeste do Paran, o historiador Valdir Gregory ressalta que a Marip se tornou a mais importante empresa colonizadora que atuou na regio. Segundo ele, a partir de 1946, esta companhia colonizadora privada se empenhou em organizar o referido espao e nele atuar para efetivar a ocupao de pequenas parcelas rurais destinadas policultura familiar (Gregory, 2002, p. 109). Assim o autor define a constituio desse espao colonial:

    A projeo do espao colonial da Marip pretendia fomentar a formao de uma rea povoada por pequenos produtores familiares e de uma den-sidade populacional elevada, comparada com os padres da maior parte do territrio rural brasileiro. Esta forma de organizao do espao rural repercutiu, diretamente, sobre a formao social posterior. Influenciou na organizao da produo agrcola, na formao de ncleos populacionais, nas futuras cidades e vilas e na distribuio populacional. (Gregory, 2002, p. 121).

    Para o autor, foi projetado um espao no qual, a partir da dinmica demogrfica, econmica e social, foram constitudos os espaos fsico, humano, social e econmico desta colnia (Gregory, 2002, p. 104). Con-forme o autor, aquela empresa teria organizado uma ocupao exclusiva para colonos escolhidos (Gregory, 2002, p. 175). Para os administradores da Marip, os colonos mais adequados ao modelo idealizado de ocupao territo-rial seriam os de ascendncia alem e italiana oriundos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Partia-se do pressuposto de que eles teriam experincia

    2 Sobre a ocupao do municpio vide Gregory (2002).

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    na produo das pequenas propriedades rurais e sua base seria o trabalho familiar, condio necessria para o sucesso daquele empreendimento.

    Com base em entrevistas com mulheres que se mudaram para o espao urbano de Marechal Cndido Rondon entre os anos 1978 e 2010, junto com os maridos e/ou filhos crescidos, e que atualmente so aposentadas e tm entre 70 e 84 anos de idade, analisaremos suas experincias e memrias, con-siderando as mudanas socioeconmicas vivenciadas e as transformaes dos espaos ocorridas nas ltimas dcadas. Analisaremos as experincias femini-nas nos processos migratrios para a regio e seus deslocamentos do campo para a cidade, como lidaram e lidam com as transformaes ocorridas no cotidiano da regio e em suas prprias vidas, e quais os significados atribudos aposentadoria e ao processo de envelhecimento.

    O deslocamento da colnia para a cidade e a conquista da aposentadoria marcaram as vidas dessas mulheres. Apesar de Marechal Cndido Rondon ser um municpio de pequeno porte, essas mulheres, ao se deslocarem para o espao urbano, se depararam com prticas e ritmos diferentes daqueles a que estavam acostumadas.

    A cientista social Glucia de Oliveira Assis, que desenvolve estudos sobre migraes internacionais, gnero e redes sociais, argumenta a neces-sidade de no apenas se ressaltar a participao das mulheres em estudos sobre migrao, mas tambm contemplar a perspectiva de gnero: Desde o momento da partida, a escolha de quem vai migrar, os motivos da migrao, a permanncia ou o retorno ocorre articulado em uma rede de relaes que envolvem gnero, parentesco e gerao (Assis, 2007, p. 751).

    Estas relaes esto presentes nas experincias migratrias das mulheres cujas narrativas orais so objeto de anlise deste trabalho. A seguir, a partir da anlise de entrevistas realizadas com seis mulheres, procuramos perceber como elas vo se constituindo como sujeitos num processo contnuo de mudanas e transformaes em suas vidas, levando em conta a questo geracional.

    Migrao, trabalho na roa e cotidiano

    A migrao para o Oeste do Paran significou o afastamento de outros familiares, provocando mudanas e novos arranjos nas relaes familiares. Para as mulheres entrevistadas, partir significou se distanciar do convvio dos pais e passar a administrar a sua prpria famlia e suas necessidades. Assumir

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    o comando de sua casa e propriedade, sem a ajuda dos pais, levou a um rela-cionamento mais intenso com os vizinhos prximos.

    Glucia de Oliveira Assis, ao analisar a insero das mulheres nos flu-xos migratrios contemporneos, demonstra que a migrao no resultado apenas de uma escolha racional, mas tambm de estratgias familiares nas quais homens e mulheres esto inseridos, contribuindo para rearranjos das relaes familiares e de gnero (Assis, 2007, p. 745). Isso pode ser percebido no relato de dona Olinda, 82 anos, casada, me de sete filhos, que julgou importante falar disso:

    Quando ns veio aqui, a me falou: No vai junto, tu ganha saudade. Mas eu tinha que ir junto e no ganhei. [...] A me e o pai ficou. A me disse: Leva uma colher junto e sempre come com isso, da no ganha sau-dade. [risos] Deu certo, mas a maioria nem se lembrava [mais] da colher. ( Wittech, 2011).

    Dona Olinda, assim como muitas outras mulheres, ao migrar deixou para trs seus pais e familiares para acompanhar o marido. Em suas lembran-as est presente a emoo sentida pela separao dos pais e a preocupao de sua me em relao saudade que a filha porventura sentiria. A colher seria o smbolo do elo que as ligava e as aproximava, apesar da distncia fsica. O novo cotidiano, entretanto, teria integrado os membros da famlia dinmica local, pois, com o tempo, segundo ela, nem se lembrava [mais] da colher. Apesar de dizer eu tinha que ir junto, percebe-se que ela escolheu deixar para trs o espao conhecido ao lado dos pais para acompanhar o marido e encarar um mundo desconhecido e cheio de desafios.

    As mulheres entrevistadas, aps sua chegada ao Paran, contam que assumiram muitas responsabilidades, tanto no trabalho da propriedade rural, junto com o marido, quanto no espao domstico, na criao dos filhos e manuteno da ordem familiar. Elas, em geral, assumiram o lugar social que em geral cabia s mulheres entre famlias de pequenos produtores rurais no Sul do Brasil, ou seja, ajudar no trabalho da roa e cuidar do servio domstico.

    Entre os trabalhadores migrantes no havia apenas homens. L tam-bm estavam suas esposas, inseridas nas atividades cotidianas da propriedade como fora de trabalho. A presena das mulheres foi importante para o esta-belecimento dos agricultores na terra recm adquirida e tambm na forma-o e na manuteno da famlia e da propriedade.

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    O historiador Davi Flix Schreiner, ao escrever sobre o movimento migratrio para a regio, destaca a importncia da conquista da terra para aqueles pequenos agricultores do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, para quem o trabalho familiar na terra seria um elemento central na tica camponesa (Schreiner, 2009, p. 66). Baseado no antroplogo Klaas Woort-mann, ele afirma que valores como terra, famlia e trabalho eram partilhados por aqueles agricultores que buscavam possibilidades de reproduo de seus modos de vida. Segundo Klaas Woortmann (1990, p. 23), nas culturas cam-ponesas no se pensa a terra sem pensar a famlia e o trabalho, assim como no se pensa o trabalho sem pensar a terra e a famlia.

    As qualidades ticas pessoais aliadas ao trabalho, entendido como dever, eram vistas como necessrias construo do patrimnio familiar, como se pode aprender durante o processo de rememorao de algumas entrevistadas. Na entrevista de dona Ren, 76 anos, casada, me de seis filhos, percebe-se a valorizao de alguns comportamentos, como honestidade, trabalho rduo e parcimnia na hora de gastar. Quando perguntada sobre a instalao na colnia, respondeu:

    Foi difcil. Muito difcil. Nossa! Ns comeamo no mato, meu Deus, cor-tamo mato, eu e ele [marido] construmo tudo o que que ns temos l [na propriedade, em Iguipor]. Tudo com o serrote assim, no tinha dinheiro pra comprar uma motosserra. Depois mais, quando ns tinha as dvidas pago, da ele comprou uma motosserra. Porque ele no fez dvida, sempre com o dinheiro que ns fizemos ele comprou. (Riffel, 2011).

    Outra entrevistada, dona Dora, 77 anos, viva, me de oito filhos, tam-bm rememora esta fase da sua vida ressaltando a dificuldade do trabalho pesado no meio do mato:

    Da resolvemo de vim para o Paran, mas ns fomo para a cidade de Mer-cedes. Hoje cidade, na poca no era. [Em] 55. Dali trabalhemo muito tempo com lavoura de trigo, lavoura de milho. Ns tinha gado, ns tinha porco, galinha... E era meio pesado, porque era tudo mato, no pique, no meio do mato, mulher... no foi fcil. (Kolm, 2011).

    Dona Dora migrou para o Paran, inicialmente para a localidade de Mercedes, junto com seu marido e trs filhos pequenos. A famlia veio de

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    Rio do Sul, Santa Catarina, depois de ter comprado uma rea de terra ainda coberta de mato para trabalhar na agricultura. Segundo a entrevistada, em 1955, quando ali chegaram, havia apenas cinco ou seis casas na localidade, e o vizinho mais prximo morava a cerca de um quilmetro e meio de distncia.

    Ao rememorar esse tempo, dona Dora utiliza pronome da primeira pes-soa do plural: [ns] resolvemo, ns fomo e [ns] trabalhemo. Assim, ela se inclui como parte ativa em todo o processo migratrio e no trabalho realizado na colnia. Ela narra no somente sua trajetria, mas tambm a da famlia. Outras mulheres entrevistadas rememoram de forma semelhante esse aspecto da migrao para o Oeste do Paran e suas atividades na proprie-dade rural.

    o caso tambm de dona Irmlia, que migrou com o marido e trs filhos pequenos para o Paran bem mais tarde, em 1972. Antes disso, a famlia, oriunda do Rio Grande do Sul, havia morado por alguns anos em Guaraciaba, Santa Catarina. Com muita economia e a ajuda do sogro, que j morava no Paran, conseguiram comprar um pedacinho de cho pra cultiv, como ela rememora:

    E quando a gente veio morar aqui pro Paran em 1972, no meio do mato, no meio dos tocos, fazia as queimadas na roa e as crianas ajudavam. [...] A terra, graas a Deus que ns tinha um pedacinho de cho pra cultiv, n, e tambm adquirir muitas vezes com dificuldade, n. Bem no comeo, n, foi um pedao que meu marido j adquiriu e de tropeiro ainda, n. Que ele trabalhava pro meu sogro e da meu sogro ajudou ele a comprar a terra e da ele adquiriu isso com o trabalho dele de casa, tambm foi um sacrifcio porque ele no teve uma mo [ajuda]. (Schmitt, I., 2011).

    Para dona Irmlia, a chegada ao Paran deu incio a uma nova etapa na vida de sua famlia. Para ela, a ajuda de todos, inclusive das crianas, foi impor-tante para o bom andamento da propriedade. Em sua narrativa fica expressa a valorizao da terra como meio de sustento da famlia. Muito embora men-cione que todos os membros da famlia trabalhassem na propriedade e narre muitas passagens do passado se utilizando do pronome ns ou da expresso a gente, quando aborda a aquisio da terra, o sujeito no coletivo, mas o marido, como fica explcito no trecho citado.

    Com base nas narrativas orais, percebemos que na colnia o trabalho era rduo. Os casais levantavam cedo e trabalhavam durante todo o dia na

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    propriedade. As crianas iam junto com os pais, ficando sob seus cuidados enquanto trabalhavam, conforme lembra dona Carmelita, 68 anos, casada, me de trs filhos: [...] eu levava as crianas, ns levava as criana junto, n. No tinha como, assim, tinha que ajud (Van der Sand, 2009). Ela e o marido vivem na cidade desde 1982, depois que uma parte da terra perten-cente famlia foi desapropriada pela usina de Itaipu.

    As mulheres nas colnias do Oeste do Paran se desdobravam entre o trabalho na roa junto com seus maridos, a preparao das refeies, o cui-dado dos filhos e a costura das roupas da famlia. Dona Carmelita lembra que os ritmos na colnia no eram regulados pelo calendrio, mas pelas lidas na roa e pelas tarefas a serem executadas. Em geral, o dia era todo dedicado ao trabalho que precisava ser realizado pelo casal. Embora trabalhassem a semana toda, o domingo era considerado sagrado, dedicado ao descanso e s sociabilidades entre vizinhos e conhecidos. A dificuldade de locomoo fazia com que tivessem contato apenas com os vizinhos mais prximos. Isso fez com que, numa ocasio, um vizinho tivesse chamado a ateno do casal para o fato de estarem trabalhando num dia de domingo:

    Ns carneamo um porco, ns achava que era um dia de semana, n, achava que era sbado. Da veio o vizinho domingo de manh: U vizinho, ele disse, vocs carneando porco no domingo? Da o Edvino [marido] fal assim: Mas hoje no domingo, hoje sbado. E ele falou que era domingo, da era domingo mesmo. Ns no tinha rdio, ns no tinha. Naquela poca no tinha TV, no tinha luz, nada, n. [...] E assim foi indo, n. (Van der Sand, 2009).

    No trecho citado, o passado lido atravs da comparao entre o tempo presente e o passado, no que se refere aos meios de comunicao. Hoje, dona Carmelita se situa no tempo, entre outras formas, pelos meios de comunica-o existentes e pelos ritmos da vida urbana. Assim, quando ela fala da falta de informao, de energia eltrica, de acesso ao rdio e televiso ela quer dizer que o sofrimento no passado no se limitava ao trabalho duro, mas tam-bm que se relacionava falta de qualquer tipo de comodidade ou conforto em casa. Ela percebe isso como sendo diferente dos dias de hoje, depois das mudanas havidas com o desenvolvimento dos meios de comunicao e de transporte, as quais tornaram possvel o acesso a produtos ou informaes, mesmo na zona rural e facilitaram a vida dos agricultores.

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    Porque na colnia, o que que a gente tinha?

    Dona Valria, de 71 anos, lembra do cotidiano de trabalho na roa, quando morava em uma chcara nas proximidades da cidade, como um tempo de difi-culdades. Viva, me de cinco filhos, mora no espao urbano do municpio h 33 anos. No aposentada, mas recebe penso por viuvez. Em suas memrias, o espao rural do passado aparece como um lugar de muito trabalho. Pelo fato da famlia ter na poca uma rea pequena de terra, apenas trs hectares, ela e o marido no podiam dar aos filhos a perspectiva de uma vida melhor. Seu marido trabalhava como pedreiro na cidade para complementar a renda da famlia. Depois que os filhos cresceram, eles acabaram trocando a chcara em que mora-vam por um terreno e uma casa na cidade para que os filhos pudessem estudar e trabalhar no comrcio. Ela assim comenta sobre a situao financeira vivida pela famlia no perodo em que dependiam da agricultura para sobreviver:

    Porque na colnia, o que que a gente tinha? No tinha muita coisa, sabe? A gente trabalhava mais assim, pro gasto, n, corria pro gasto, vendia, tinha coisa, mas se virava, da s mais assim pro gasto, porque ele [marido] traba-lhava fora. [...] Sempre, no era pra dizer que ns passemo fome, mas tam-bm no tinha que sobrasse coisa, n. Tinha pra viver. (Armanje, 2011).

    De acordo com ela, ela apenas tinha pra viver. Apesar de no terem pas-sado fome, no sobrava muita coisa. Ao ressaltar que trabalhava apenas pro gasto, dona Valria compara o tempo em que vivia na colnia, levando uma vida modesta, com o tempo atual, considerado por ela de maior fartura. Ao observar hoje a vida dos agricultores que andam de carro e possuem mqui-nas agrcolas que facilitam seu trabalho, ela diz: hoje em dia tudo assim na colnia j melhor. Ao ser perguntada sobre os produtos que cultivava e os animais criados e se ela vendia o excedente, respondeu:

    Sim, vendia, mas, s tinha umas duas vaquinha pra vender leite, no dava muito, n. E hoje em dia, tudo assim na colnia j melhor, eu que acho, eu no sei tambm... E ali na cidade tambm, hoje mais fcil, porque tem mais servio, sabe, naquela poca no ganhava muito servio. Porque quando ns viemo morar pra c, quando ns morava na colnia, eu mandava, s vez, os filho lev uns ovos pra vender, uma dzia de ovos, nem achava onde vender, pra comprar um pouquinho de coisa assim, como acar, farinha,

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    uma coisa..., isso nem achava de vender, porque tinha muito, sabe, e poucos que compraram, n. Depois eu comecei de vender leite aqui, mas no pra leiteiro, porque no passava, da os filhos fizeram assim, entregavam nas casas um pouquinho, sempre ajudava um pouco. (Armanje, 2011).

    Estratgias de sobrevivncia entre o campo e a cidade ajudaram a famlia at os filhos crescerem e arrumarem emprego na cidade, para assim ajudarem na renda familiar. Ela tambm compara a vida de antes e a vida de agora, tanto no campo quanto na cidade, dizendo que atualmente bem melhor, t mais fcil, tem mais servio do que h alguns anos. Para ela, a oferta de trabalho na cidade proporcionaria uma vida melhor, tanto para os habitantes urbanos, quanto para os agricultores. O comrcio de produtos excedentes seria bem mais fcil no tempo presente do que no passado.

    O relato de dona Valria d conta de um processo mais amplo, de trans-formao na agricultura na regio. A mecanizao, somada a outros fatores, intensificou as mobilidades do espao rural para o urbano na regio, assim como o xodo para outras regies. Essas mudanas so assim discutidas pelo historiador Robson Laverdi:

    No caso do Oeste, as polticas de modernizao da agricultura, bem como as relaes de trabalho e produo, somavam-se s desapropriaes de terras dos pequenos agricultores para a construo da usina hidreltrica de Itaipu no limiar dos anos 1980, que agravou sobremaneira a situao daqueles que tinham migrado em passado to recente. A fronteira agrcola que havia sido planejada como um modelo de agricultura minifundiria de produo familiar e por migrantes sulinos, selecionados entre aqueles de origem europia, comeara assim a se esfacelar, antes de mostrar seus primeiros resultados. (Laverdi, 2005, p. 58-59).

    Com a implantao da usina hidreltrica de Itaipu e a consequente for-mao do lago, em 1982, houve uma reduo do nmero de habitantes na regio. Em 1993 houve tambm a emancipao de quatro distritos do muni-cpio de Marechal Cndido Rondon: Entre Rios do Oeste, Mercedes, Pato Bragado e Quatro Pontes e, assim, a diminuio de sua rea.3

    3 A esse respeito ver Peris (2003). A aprovao da lei de emancipao dos distritos de Entre Rios do Oeste, Mercedes, Pato Bragado e Quatro Pontes ocorreu em 1990, e a instalao dos novos municpios deu-se no dia 1 de janeiro de 1993.

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    Com a formao do lago e a inundao das terras, muitos agricultores mudaram para a o espao urbano e outros migraram em busca de novas ter-ras para cultivar, principalmente para as regies Norte e Nordeste do pas. A respeito da migrao como possibilidade de acesso a terra como espao de trabalho e reproduo de vida do agricultor e de sua famlia, o historiador Davi Schreiner entende que

    [...] a migrao foi adotada pelos agricultores com pouca terra porque viram nela a condio de reproduo social em melhores condies. As pessoas se deslocam, segundo as possibilidades abertas pelo contexto socio-econmico do seu tempo. Se h melhores condies no campo, mesmo em outras regies, ento se deslocam para l. (Schreiner, 2002, p. 64).

    A partir dos anos 1970, o processo de mecanizao de agricultura resul-tou em drsticas alteraes na regio, como o xodo rural. A agricultura, que era basicamente familiar, passou a sofrer com as consequncias da produo em grande escala, principalmente de soja e milho. O mercado do agroneg-cio, que estava despontando na dcada de 1970, exigia que os agricultores investissem na modernizao das tcnicas de cultivo para incrementar a pro-duo. Esse tipo de agricultura veio acompanhado de consequncias socio-econmicas, como a concentrao de terras em reas maiores nas mos de um nmero menor de agricultores, enriquecendo alguns e empobrecendo outros. Com isso houve a constituio de uma nova paisagem agrcola, com o cultivo em larga escala de produtos destinados unicamente ao mercado de consumo. Para os que mantiveram suas atividades no campo, seu cotidiano sofreu alteraes no modo de viver e trabalhar.4

    Sobre o processo de concentrao fundiria e o desenvolvimento do agronegcio na regio, era necessrio que os agricultores tivessem condies de investir financeiramente em tecnologia para aumentar a produtividade nas suas propriedades e assim inseri-las no mercado global. Como aponta o historiador Davi Schreiner:

    No caso do Oeste/Sudoeste do Paran, este quadro de traos paradoxais explicita-se de forma contundente. A ocupao do territrio e a expanso do capitalismo, nesta regio, engendraram processos de excluso e explorao.

    4 A esse respeito ver Ferrari (2009).

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    Os dramas sociais ali vividos foram tecidos pelas profundas modificaes que o mundo rural brasileiro sofreu, sobretudo, durante a segunda metade do sculo XX, e que culminaram, no passado recente, com a construo de vrias usinas hidreltricas, a modernizao da agricultura e o intenso xodo rural. (Schreiner, 2002, p. 22).

    Dentro dessa conjuntura, muitos dos colonos que contavam j com uma idade mais avanada e com os filhos adultos resolveram mudar-se para o espao urbano e deixar a propriedade ao cuidado dos filhos, ou, ento, no caso dos proprietrios de reas de terra menores, acabaram vendendo-as para grandes produtores e investindo em outro tipo de atividade ou simplesmente vivendo de sua aposentadoria.

    Cidade, cotidiano e novas sociabilidades

    Dona Ren, apesar de morar na cidade h 17 anos e ser aposentada, ainda conserva hbitos comuns aos trabalhadores do campo, como acordar bem cedo, molhar as plantas, cultivar verduras para o consumo prprio e cui-dar da limpeza da casa. Assim ela lembra:

    Nas primeiras semanas, meu Deus! Pra ir l no stio, at ns queria ajud a trabalh. No primeiro ano s vez ainda fomo um pouquinho, depois o filho falou: No, me, s vem passear, ningum trabalha mais agora. Mas quando eu veio pra casa, as vez eu fui de nibus [pra colnia]. Quando as vacas me viram: Mhh... [risos] Me conheceram ainda. (Riffel, 2011).

    No trecho destacado, dona Ren narra como se sentiu quando ela e o marido deixaram a colnia para viver na cidade, devido a problemas de sade do marido, que no podia mais trabalhar sob o sol. Na poca, os dois tinham mais de cinquenta anos de idade. No incio ela disse ter sido contra a ideia mas, com o apoio e incentivo dos filhos, eles compraram uma casa na cidade e se mudaram, deixando a propriedade aos cuidados do nico filho homem.

    A famlia de dona Ren no rompeu completamente com a vida na colnia, pois o filho exerce atividade produtiva nas terras e entrega parte da renda aos pais. Na anlise da entrevista de dona Ren, se percebe que teve dificuldade em mudar o seu modo de vida, pois ela sempre havia tido uma

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    vida pautada no trabalho no campo. A vontade de pegar junto e ajudar nas tarefas, quando retornava colnia, segundo ela, era muito grande, tanto que ela muitas vezes pegava o nibus e voltava pra casa, como ela se referiu ao espao antes habitado. No trecho citado ela tambm deixa transparecer a difi-culdade de se desapegar dos animais da colnia. Somente depois que o filho a advertiu para no mais ir colnia para trabalhar, mas s para passear, que ela comeou a compreender que a sua vida devia seguir outro rumo.

    Dona Reni, aos poucos, foi se acostumando vida na cidade, conhe-cendo novas pessoas, aprendendo a usufruir do tempo livre, participando de atividades na igreja, do grupo de idosos e construindo novas relaes de amizade. Agora, passados mais de vinte anos, ela afirma se sentir em casa na cidade e no querer mais voltar para a colnia: Agora eu gosto de ir pra l, mas eu no ia mais ficar no stio. Eu falei pro filho, pra tudo eles: Agora, vocs iam falar: Fica aqui! Eu no. Eu vou pra casa. Olha... (Riffel, 2011).

    Como dona Ren, a maior parte das mulheres entrevistadas migrou para a cidade devido ao avano da idade e da sade frgil, ou seja, por no poder mais trabalhar na agricultura. Elas permaneceram na terra enquanto tiveram disposio fsica para o trabalho. Algumas tambm saram do campo por conta da desapropriao de suas terras, no todo ou em parte, em razo da construo da usina hidreltrica de Itaipu. Outras tambm buscavam opor-tunidades de estudo para os filhos na cidade.

    Esse era o caso de dona Carmelita, que mudou para a cidade depois que uma parte da terra pertencente famlia foi desapropriada pela Itaipu. Em sua entrevista ela conta aspectos desta experincia:

    Ns fomos indenizados pela Itaipu, n, e da ns tinha que sa daquela moradia onde a gente morava. Ns perdemo uma boa parte [da terra]. Ns tinha uma casa mais ou menos l, uma casa de madeira. J que os filho que-ria estud aqui. Depois ns tinha que arrum empregado, n, pra cuid da terra. Da ns arrumamo pessoas que cuidavam da terra, dirigiam trator. (Van der Sand, 2009).

    Como j tinham comprado um terreno na cidade anteriormente, pen-sando em investir, migraram para o espao urbano para que os filhos pudes-sem estudar. A propriedade ficou aos cuidados de empregados contratados para cuidar da plantao. Era preciso algum que soubesse manejar o trator, as mquinas e implementos agrcolas. Seu Edvino, o marido, supervisionava

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    o trabalho dos empregados e se deslocava constantemente da propriedade para a cidade e vice-versa. Assim ela narra sobre a mudana para a cidade:

    Depois... ns viemo em 82. Porque os filho estudavam em Pato Bragado e aqui em Rondon j tinha 2 grau. Depois que ns tinha arrumado um dinheirinho, ns j tinha comprado dois terreno. Da quando come aqui em Rondon, j tinha faculdade, tinha 2 grau, a gente veio pra Rondon pra eles estud, n. Da a gente... ns sempre comentava, quando tiver um dinheirinho, vamo compr um terreno, da ento, esse ano, vai sobr um pouquinho da ns vamos compr um terreno em Rondon, porque inves-timento tamm, n. Quando a gente tinha um dinheirinho, o Edvino tinha esse costume de sempre compr uma rea de terra. (Van der Sand, 2009).

    Para dona Carmelita, o viver na cidade trouxe um certo alvio, assim como uma melhora em sua vida, pois a vida na colnia era de sofrimento. Ao ser perguntada se foi fcil acostumar na cidade, assim ela responde:

    Foi... Foi... [risos] Imagina tambm, do sofrimento, vem alivi um pouco, n. Da muitas vizinha de Pato Bragado, ih... as vizinha vieram visit a gente pra v como a gente tava, n, queria ver onde que ns tava morando, e per-guntavam Mas Carmem, tu no tem saudade da colnia, das tuas vaqui-nha, no sei o qu. Eu dizia: Eu no. Bem mais fcil, a vida mudou um pouco. Me acostumei logo, entrei logo nos eixo [risos]. Da, aqui em Ron-don tambm a gente trabalhava. (Van der Sand, 2009).

    Ao dizer entrei logo nos eixo, afirma ter se adaptado vida na cidade. Muito embora ali continuasse a trabalhar, era diferente. Provavelmente dona Carmelita esteja comparando o trabalho duro, sofrido, que realizava na colnia com o trabalho mais leve que realizava na cidade. A cidade no era apenas um lugar de descanso, mas tambm de trabalho para as mulheres. Como dona de casa, cabiam a ela todas as tarefas relacionadas limpeza da casa, das roupas e do preparo da alimentao e do cuidado dos trs filhos adolescentes.

    Percebe-se que o viver na cidade trouxe mudanas nas suas relaes fami-liares. A cidade vivida, apreendida por ela, era diferente da cidade sonhada, com acesso a diferentes produtos e pensada como um lugar de tranquilidade e descanso. o que pode ser percebido quando ela lembra do tempo em que

  • HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras no Oeste do Paran138

    morava na colnia em Pato Bragado, e vinha para a cidade de Marechal Cn-dido Rondon fazer compras no supermercado. Ela afirma que sentia prazer quando se deslocava para a cidade para comprar frutas e produtos industria-lizados. Esse prazer s foi possvel para dona Carmelita depois de muitos anos de trabalho, pois no primeiro tempo em que viviam na propriedade s tinham dinheiro para gastar com o bsico, como farinha, feijo, arroz, acar e carne, considerados essenciais para a sobrevivncia. Ali s eram consumidas frutas e verduras produzidas por eles ou recebidas de algum vizinho. A este respeito ela narra:

    Bom, os mercado... tu pediu antes dos mercado. E a gente vinha pr Ron-don, da aqui em Rondon a gente conseguia compr fruta, porque em Pato Bragado ns no conseguia comprar frutas, n. Eu hoje at comento s vez, como que era bonito, a gente vinha... [...] E da, peg o carrinho e pass e ench o carrinho de compra, n... Era maravilhoso. E da, uma vez por semana ou a cada 15 dias a gente vinha, principalmente pra compr frutas e compr as coisas assim, de comprar farinha, pro ms inteiro, s vez. Arroz at ns colhia, ns plantava arroz naquela poca. E depois, quando viemos mor pra c, da j melhorou, n. (Van der Sand, 2009).

    Dona Carmelita vivenciou uma realidade que tambm estava presente na vida de outras mulheres que deixaram a colnia para viver na cidade. Ainda que a famlia morasse na cidade, o marido continuava trabalhando na propriedade, tomando conta da lavoura e da granja de sunos construda depois da mudana da famlia. Ele passava a semana na colnia e voltava para a cidade nos finais de semana ou quando chovia e no podia trabalhar. Essa dinmica entre a vida no campo e na cidade fez com que a ausncia do marido fosse bastante sentida. A solido com que ela se deparou depois que os filhos cresceram e tomaram rumos distintos, fez com entrasse em depresso:

    Depois o Edvino [marido] resolveu construir uma granja de porco, voltou pra Pato Bragado de novo, da ele ia em segundas e voltava em sextas, n. E eu toda a semana aqui em Rondon, n, sozinha com as criana, eu me virava. Quando chovia ele ficava aqui, quando era tempo bom ento ele... ele ia pra Pato Bragado. Depois mais tarde, quando os filhos j tinham se formado, da um casou, um foi pros Estados Unidos e outro foi estudar em Ponta Grossa e naquele ano o Edvino construiu a granja de porco em Pato

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    Bragado, eu fiquei bem sozinha. Isso foi um tempo muito difcil pra mim tambm. Eu ficava o dia inteiro... Se eu no ia no muro pr convers com minha vizinha, eu ficava o dia inteiro sem abri a boca, n. (Van der Sand, 2009).

    Morar na cidade, sem a presena do marido, isolou-a. A cidade que apro-xima tambm a cidade que isola. O muro que separava dona Carmelita da vizinha pode ser ento entendido como uma metfora desse isolamento, uma barreira que a impedia de ver a vida que corria na cidade e participar dela. O contato com a vizinha era a nica forma de sair de sua recluso.

    As funes da cidade se diferenciam para algumas das entrevistadas, como o caso de dona Carmelita, que mudou para a cidade e continuou com as terras na colnia. O marido continuou trabalhando na propriedade, se deslocando continuamente entre um espao e outro. J para dona Irmlia, o deslocamento para a cidade foi forado e, em relao a isso, persiste um res-sentimento. Ela e sua famlia migraram para a cidade em 1981, depois que sua terra foi indenizada por causa da construo da usina hidreltrica de Itaipu. Ela se ressente porque considera que, se tivesse podido ficar na propriedade rural, hoje estaria melhor. Segundo ela, a desapropriao sofrida desestabili-zou a vida financeira da famlia:

    Muito mal endividado a gente ficou, muito mal endividado e da ns tinha comprado terra em Terra Roxa e da pagava 60% e o resto na safra, n, da a safra secou, no deu e da a gente se apertou l. E at novembro podia plantar l a terra da indenizao, s que tambm secou, ento assim no tinha dvida nenhuma, da foi muito difcil, essa mudana toda tam-bm, n. Porque aqui em Marechal o povo se aproveitava, porque a Itaipu pagava vista, n, ento se a Itaipu pagava vista, mas eles no pagava, mas eles aumentavam tanto o valor das terras. Quando a Itaipu comeou a pagar, eles aumentaram tanto o valor da terra, que o povo no conseguia comprar a mesma rea e Marechal no tinha terra igual que era indeni-zada, que a nossa terra era plaina, sete alqueire de terra plaina e ns no conseguia nunca comprar sete alqueire de terra plaina aqui em Marechal. Pelo valor, o que tinha de terras assim, ningum vendia, n, e as outras era ainda muito caro. Voc no conseguia comprar, porque se fosse melhor, ele no dava e se fosse voc conseguir comprar, ningum sairia de Marechal. (Schmitt, I., 2011).

  • HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras no Oeste do Paran140

    Suas memrias contm forte ressentimento no somente em relao Itaipu, mas tambm em relao a algumas pessoas na cidade que teriam se aproveitado da situao, aumentando o valor das terras venda para os atin-gidos pela barragem da Itaipu. Na sua avaliao, o valor que foi pago estava muito aqum do preo real das terras da mesma categoria e em condies similares s suas, no municpio.

    Diversos trabalhos acadmicos sobre a construo da hidreltrica de Itaipu se referem aos expropriados e aos movimentos sociais ligados ao acontecimento. Destaco o trabalho de Judite Veranisa Schmitt, que, em dis-sertao de Mestrado em Histria analisa diferentes aspectos presentes na memria dos atingidos por Itaipu, entre os quais, os critrios estabelecidos pelos representantes da hidreltrica para o pagamento das terras e das indeni-zaes. De acordo com ela:

    As categorias de terras que foram criadas pelos funcionrios da Binacional respeitavam o seguinte: pagava-se a terra conforme e localizao, o tipo de solo, se a terra era plana ou acidentada, assim, uma parte de uma mesma pro-priedade de um expropriado tinha preos diferenciados e tambm as pro-priedades dos desapropriados tinham preos diferentes, sendo estes critrios criticados pelos atingidos nas suas mobilizaes. (Schmitt, J., 2008, p. 60).

    Os atingidos se articularam em movimentos de mobilizao para expres-sar a indignao em relao s propostas de indenizao feitas pelo governo e pelas concessionrias que administravam a Itaipu. Segundo a autora:

    O movimento dos atingidos teve apoio de vrios rgos e instituies. Uma destas instituies, que esteve presente nas mobilizaes, foi a Comisso Pastoral da Terra, que interferiu no movimento, atravs de inmeros tra-balhos coletivos de base, realizados junto aos expropriados, pelos membros que tinham uma caminhada, voltada s questes sociais e consideravam a forma de indenizao, promovida pela Itaipu incoerente, impossibilitando aos atingidos a sobrevivncia em outros lugares. (Schmitt, J., 2008, p. 5).

    A CPT (Comisso Pastoral da Terra), atravs de suas lideranas, apoiou a organizao do Movimento Justia e Terra que atuou junto s negocia-es dos agricultores da regio que estavam sendo desapropriados com Itaipu na poca das indenizaes para a construo da usina e tinha como objetivo a defesa dos direitos dos agricultores.

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    Percebe-se que, assim como dona Irmlia, muitos dos pequenos agri-cultores da regio tiveram experincias semelhantes ao serem atingidos pela construo da barragem, no recebendo uma compensao justa por suas ter-ras. Assim, no puderam comprar outra rea de terra na regio, equivalente quela que havia sido desapropriada.

    Embora descontentes com o rumo tomado depois da indenizao, a preocupao em proporcionar estudo aos filhos levou Irmlia e sua famlia a morarem no espao urbano de Marechal Cndido Rondon, apesar de, com o dinheiro recebido pela indenizao da Itaipu, terem comprado uma rea de terra para cultivar no municpio de Terra Roxa. Como eles haviam sido pro-prietrios de uma rea de terra pequena em Pato Bragado, apenas sete alquei-res, e parte desta rea foi alvo da desapropriao, no conseguiram comprar terras com a mesma qualidade no municpio de Marechal Cndido Rondon, decidindo por compr-las no municpio vizinho. Como as terras eram longe da escola, passaram a morar em uma chcara, prximo ao centro de Marechal Cndido Rondon, para que os filhos pudessem estudar.

    A preocupao com o estudo dos filhos est presente em sua narrativa, ao descrever toda esta etapa de sua vida. Assim ela responde, quando pergun-tada a respeito do que os levou a morar na cidade:

    Por causa dos filho, porque quando ns morava bem no interior, em Pato Bragado, era com lotao que iam estudar, n, e eu no queria, nem o meu marido, ningum, ns no queria que elas andassem de noite, a gente no confiava, naquela poca a gente no confiava no mundo, n. E como nos ia ser indenizado da Itaipu, ns tinha que sair daqui pra morar num lugar, mas vocs podem ir pro colgio, n. Da no final das coisas, depois de quando a Itaipu veio, ns no conseguimos comprar terra em Marechal, porque Marechal era tudo vista, vista a terra, da a gente s comprou em Terra Roxa e l era longe tambm pra ir na escola, da a gente veio morar aqui em Marechal, numa chcara alugada, alugada no, ns morava de graa, s cuida a chcara, da pras meninas ir na escola, por isso que ns viemos morar na cidade, n. Se fosse nossa inteno, a gente nem viria, ficaria na colnia, tava bem melhor do que... Hoje em dia sim, pra idade que a gente t, a gente no pode mais cuidar na lavoura, n, mas a gente t melhor aqui, mas na poca que a gente veio pra c, se a gente tivesse ficado na colnia ns tava melhor, a gente s fez pros filhos estudar, n. (Schmitt, I., 2011).

  • HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras no Oeste do Paran142

    Percebe-se na narrativa de dona Irmlia um sentimento de revolta por conta de todas as mudanas e sacrifcios que a famlia teve que enfrentar, depois da desapropriao de sua terra pela concessionria que administrava a Itaipu.

    A preocupao com o estudo dos filhos tambm estava presente na vida de dona Valria. Ela morava em uma chcara nas proximidades da cidade e desde 1979 mora no espao urbano. A cidade era vista como uma possibi-lidade de ampliao das oportunidades para os filhos, pois o campo no era uma alternativa suficiente para garantir um melhor futuro profissional a eles. Sua famlia vendeu a pequena propriedade que possua, e com o dinheiro obtido comprou uma casa na cidade para que os filhos pudessem estudar e trabalhar.

    A instalao de novas empresas comerciais e prestadoras de servios provocou a gerao de novos empregos na cidade. O campo e a cidade esta-vam passando por um intenso processo de transformao e reestruturao. As mudanas exigiam dos agricultores uma preparao adequada para aten-der s demandas do novo mercado do agronegcio. Para aumentar a produ-tividade eram necessrios investimentos financeiros e tecnolgicos como a mecanizao da terra e a incorporao de novas tecnologias de produo sob orientao de engenheiros agrnomos e tcnicos agrcolas. O que, para mui-tos pequenos agricultores, acabou se tornando invivel.

    Alm dessas mudanas, o investimento na educao dos filhos tornou--se uma necessidade para a famlia de Valria. Ela e o marido no tinham tido oportunidade de estudar, por isso sabiam apenas o bsico, como ler, escre-ver e fazer alguns clculos. Queriam que os filhos estivessem preparados para buscar novos empregos na cidade, em atividades comerciais ou em escrit-rios, e, assim, pudessem ter uma vida melhor e menos sofrida. Ao afirmar que a cidade cresceu, foi pra frente, dona Valria compara o desenvolvimento desta com outras cidades que teriam permanecido economicamente estagna-das. Em sua fala, demonstra a sua preocupao com a gerao futura quando ressalta a importncia de ter boas escolas para as crianas poderem estudar:

    Eu acho que a cidade foi pra frente muito, muito. Porque se a gente vai nos outros lugares, a gente v como ainda os lugares so parados, n, tudo. Porque, minha nossa! Eu acho muito bom aqui na cidade, tambm tem as crianas, podem estudar, tem estudo, n. (Armanje, 2011).

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    Para ela, as maiores oportunidades de estudo para as crianas e os jovens estariam ligadas ao desenvolvimento do municpio. Me de cinco filhos, ela se preocupava com o futuro deles, vendo nos estudos a oportunidade de melhorar suas condies de vida. Para dona Valria e sua famlia, a cidade oferecia novas oportunidades de estudo e trabalho, ainda que viver na cidade, no primeiro tempo, no tenha sido fcil. Dona Valria descreve esse perodo como uma poca bem braba, com pouco servio. O marido trabalhava como pedreiro e como havia menos demanda para tais profisses na cidade, ele continuava trabalhando na colnia para complementar a renda da fam-lia. Segundo ela:

    Da pra ele [marido] era melhor e pros filhos era melhor, e os filhos depois, da j eram mais grandes, os dois mais velhos, da eles comearam a trabalhar e da o terceiro tambm comeou e aqui era melhor pra ns. S que nos pri-meiro tempo no era fcil, no tinha muito servio na cidade, sabe, a cidade no era como hoje. Hoje, os pedreiros no ficam sem servio, n, e naquela poca no era assim, era umas poca bem braba, sabe. Da tinha pedreiros, tinha bastante pessoal, no era assim, porque ele [marido] no tinha firma, no tinha nada, da ele trabalhava bastante na colnia. (Armanje, 2011).

    As mudanas que ocorreram na cidade so descritas por dona Valria a partir da meno a aspectos fsicos e estruturais. Como seu marido era pedreiro e tinha pouco servio naquele tempo, ela compara o crescimento da cidade com a quantidade de construes existentes hoje, e, consequente-mente, de servio disponvel para quem trabalha no ramo da construo civil.

    Em suas memrias, dona Valria guarda lembranas do passado como um tempo em que tudo era diferente na cidade. Quando perguntada sobre se a vida dela tambm havia mudado, ela foi enftica ao dizer:

    Minha nossa! E como. Sim, mudou bastante. Deus o livre! Quando ns viemos morar pra c, no tinha asfalto, no tinha nada. Assim, quando ns morava ali numa chcara, n. Isso ali na cidade no tinha asfalto nem um pouquinho. E agora, desde que ns tamo morando aqui na cidade mesmo, nossa como mudou tudo, como mudou. Deus o livre! Cresceu bastante a cidade. (Armanje, 2011).

  • HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras no Oeste do Paran144

    Ao dizer que naquele tempo no havia ruas asfaltadas, no tinha nada, compara com a cidade atual onde, segundo ela, mudou tudo, pois cresceu bastante. O crescimento e o desenvolvimento da cidade so vistos por ela como algo positivo, proporcionando novas possibilidades de trabalho para os membros de sua famlia.

    Em nossa pesquisa, percebemos diferenas em relao ao usufruto do espao urbano entre as mulheres entrevistadas. Algumas no podem sair por doenas ou por problemas de mobilidade. Dona Irmlia, por exemplo, alm de se queixar de que nem pode trabalhar mais, no sai muito por conta de problemas de sade. Ela compara a vida que levava na colnia com a vida na cidade, buscando mostrar que tambm l, agora, possvel o conforto. Na poca em que morava na colnia no havia luz eltrica nem eletrodomsticos. O clima mais fresco e tranquilo na colnia, com rvores ao redor da casa, um dos aspectos que a faz repensar a vida na cidade. Para ela, a cidade hoje seria melhor do que a colnia no passado, mas no do que a colnia hoje, por conta da segurana. Na cidade ela teria mais conforto, mas no mais segu-rana, revelando assim uma preocupao com a crescente criminalidade. Em sua narrativa, ela assim analisa esses aspectos:

    Eu nem consigo trabalhar mais, no consigo nem fazer minhas coisas em casa. Ah, eu no sei, eu no sei o que dizer, se melhor, porque em compen-sao ao antigo a cidade seria melhor, n, pensando no antigo. Que voc no tinha luz eltrica, ns morava l no stio, no tinha luz, porque a Itaipu ia vir, ento no construram luz, construram luz s pra quem ia ficar, n, ento voc no tinha geladeira, no tinha ar condicionado, no tinha ventilador, no tinha energia, cortava tudo. Ento em relao a isso, seria, na poca, melhor na cidade, mas como a vida, pra ganhar a vida era mais fcil, porque se voc no tava preparado pra assumir um cargo de ganhar bem na cidade, ento valia a pena vim morar na cidade, n. Ento em rela-o a hoje, que todo mundo tem energia na colnia, tem gua encanada, tem tudo. Ento eu acho assim, hoje em dia no se fala mais, que a vida na cidade melhor, eu trocaria a minha morada por uma morada na colnia e ficaria tranquila, porque na colnia no tem tanta insegurana, no total segurana, porque tambm, no nosso caso seria, porque a gente no possui coisas que eles querem, mas pra quem possui carro, ceifas, motores e casas boas, e coisas dentro de casa, sabe, ento isso no tem segurana nenhuma. Mas no nosso caso, ns teria mais segurana na roa do que aqui, porque

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    aqui a gente no sabe se em casa, de noite algum pode entrar aqui e querer cinco reais, n. Isso, ns na colnia no teria isso, porque na colnia eles s entrariam na nossa casa pra fugir de alguma coisa, mas no pra querer pegar alguma coisa, n. Ento ns teria mais segurana na colnia. (Schmitt, I., 2011).

    A cidade hoje vive novas dinmicas e problemas, como o da violncia e da insegurana. Segundo ela, o risco de sofrer um assalto maior na cidade do que na colnia. Para ela, principalmente os pequenos proprietrios rurais que no tm carros, mquinas e equipamentos caros, estariam mais seguros. Esse seria o caso dela, segundo ela ressalta, caso tivesse ficado na colnia. Por isso, ela diz que deixaria a vida na cidade e voltaria para a colnia tranquila-mente. J os grandes proprietrios de terra, que tm muitas mquinas e casas boas, equipadas com modernos eletrodomsticos, correriam um risco maior de sofrer um assalto em suas propriedades.

    J para dona Valria, a vida melhorou na cidade, porque na colnia poderia no faltar nada, mas tambm no sobrava. Segundo ela, tudo tava mais ou menos, diferente da colnia na atualidade, onde a vida seria melhor. Os colonos teriam seu trabalho facilitado com a introduo de modernos equipamentos que os auxiliam nas tarefas. Ela compara o tempo passado com o tempo presente, principalmente na forma de ordenha das vacas, em geral, sua poca, atividade manual e feita pelas mulheres. Isso seria uma vantagem, do ponto de vista econmico, porque com o aumento da produo teriam um aumento de renda. Assim ela expressa seu ponto de vista:

    Mas assim, tudo tava mais ou menos. Agora eu acho, hoje em dia, como na colnia melhor. [...] Porque naquela poca, porque hoje mais com maquinrio, n, porque a gente v os novo, comrcio sabe, tudo mais, com vaca, isso mais vantagem, n. Eles falam que no, mas eu acho que sim, n. Porque sempre isso ajuda e no nosso tempo, tudo isso no era muita coisa. (Armanje, 2011).

    Dona Valria segue, em suas reflexes, avaliando as escolhas feitas por ela no decorrer da vida.

    ... a vida assim, tem que levar como ela , n. S que agora pra mim tudo mais fcil, sabe, eu ganho a penso. No muito, um salrio, mas

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    isso j sempre me ajuda bastante, n. [...] Mas eu sempre gostei assim, da colnia, mas eu vi que no adiantava eu ficar sozinha na colnia, n, e os filhos ento trabalhar. Se [os filhos] iam ficar ali na cidade pra comprar o almoo, pra comer, da o lucro j ia, n e pra vim pra casa era muito longe. Da ficava melhor, eu aqui na cidade, n. E da ns tinha essa casinha pra alugar, n, ajudou um pouco e foi indo a nossa vida. [...] E como a casa aqui que t alugada [no mesmo terreno], isso eu no conto muito, por causa que tem gente, s vez morava e no pagava, da eu tinha que pagar, mas o que que adianta cont com esse dinheiro, porque esse um dinheiro que no sempre certo. s vez a casa t parado [vazia], tempo que no tem, tem quem t morando, n. Mas assim, a penso diferente, isso certo, n. (Armanje, 2011).

    As narrativas das mulheres entrevistadas permitem apreender as mudan-as no espao habitado e como elas alteraram suas sociabilidades. Dona Irm-lia, ao falar do cotidiano vivido na colnia, ressalta a relao de solidariedade entre vizinhos. Era comum entre as vizinhas a troca de alimentos produzidos na propriedade, bem como de sementes e mudas de flores e chs. Ao falar sobre isso, dona Irmlia tece uma diferena entre a vida daquela poca e a de hoje na cidade, em que muitos vizinhos no se visitam. A sociedade atual representada como uma sociedade da pressa e do consumo, na qual nin-gum teria tempo para se visitar, ningum mais consertaria roupa, diferente daquela poca. Percebe-se, assim, em sua fala, um sentimento de nostalgia e tristeza, quando ela acentua que era bem legal naquela poca, pois a gente tinha mais tempo pros amigos do que hoje. Sua fala idealiza o tempo pas-sado vivido na colnia, apesar de iniciar relatando as inmeras tarefas que ela, enquanto trabalhadora, me e esposa deveria cumprir, talvez em funo da situao vivida hoje em dia:

    A gente tinha vaca pra cuid, tinha galinha pra cuid, tinha a roa pra cuid, tinha a casa... S um detalhe que era bem legal, que a gente tinha mais tempo pros amigos do que hoje. Por que hoje a gente no vai visitar ningum, n. Ah, porque no d tempo. Na poca que a gente morava na roa, quando era dia de chuva, pegava uma trouxinha de roupa embaixo do brao e ia na casa da vizinha, enquanto remendava roupa, conversava, tomava chimarro e era uma visita, n. E hoje, voc nem remenda roupa e nem visita a vizinha. (Schmitt, I., 2011).

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    Apesar de afirmar que a vida no era fcil, ela recorda que as vizinhas davam um jeito de se encontrar para conversar e tomar chimarro, mesmo que fosse enquanto costuravam e remendavam a roupa em um dia de chuva. Ela seleciona este fato para acentuar a sentida falta de sociabilidades vivida por ela e pelo marido no presente, apesar do tempo livre proporcionado pela aposentadoria. Mais do que outras mulheres entrevistadas, ela ressalta os compartilhamentos havidos entre as vizinhas no passado, conferindo positi-vidade quela poca atravs desses realces.

    A historiadora Clia Calvo, ao escrever sobre as experincias e vivncias cotidianas presentes nas memrias de habitantes da cidade de Uberlndia, Minas Gerais, assim as interpreta: [...] suas memrias trabalhavam no sen-tido de recompor a paisagem desta cidade, chamando ateno para os lugares ou territrios de sociabilidade, construdos no universo do trabalho, nas rela-es familiares e de lazer (Calvo, 2001, p. 264). A autora tambm percebe a presena de contrastes entre o hoje e o antigamente nos relatos orais dos velhos moradores da cidade entrevistados por ela.

    Contrastes entre o vivido no tempo passado e o presente, entre o espao rural e o urbano, tambm so percebidos nas narrativas das mulheres ido-sas por mim entrevistadas. O stio ou a colnia, no passado, em geral so relembrados como um lugar de trabalho constante. o que se apreende, por exemplo, atravs das memrias de dona Olinda, 82 anos, casada e me de quatro filhos, que mora na cidade h cerca de trinta anos. Ela compara o esforo despendido naquele tempo e a praticidade das tarefas dirias no tempo presente, ao dizer:

    [Dona Olinda] No stio, ento de manh, levantou s 4 hora, tomava chi-marro, ainda no ficou claro, pegou o serrote e cortou lenha. Antigamente no era fogo a gs, agora tem tudo, por isso acha tudo to fcil agora. [Entrevistadora] gua tambm, n?[Dona Olinda] Aqueles tempo tudo carregar com balde. E quando era seca. Longe, longe... O que que dois balde de gua, assim muito, mas daqueles tempo... [Entrevistadora] Tinha que puxar do poo?[Dona Olinda] Do poo. E pra limpar, ns tinha casa grande l embaixo, tudo calada. Eu sei que o Harto [filho] muitas vezes, quando ele tava em casa, ele ficou bravo, as meninas limpando a casa e ele tendo que levar gua pra cima, com esses dois baldes e j tem que correr [risos]. (Wittech, 2011).

  • HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras no Oeste do Paran148

    Dona Olinda lembra das dificuldades enfrentadas no perodo em que era preciso fazer fogo no fogo a lenha, sendo necessrio primeiro serrar a lenha que seria usada para o fogo, processo demorado e trabalhoso, muito diferente da praticidade do fogo a gs usado atualmente. Ainda, descreve a necessidade de puxar gua do poo, para o consumo e a limpeza da casa, muito mais difcil do que simplesmente abrir a torneira. Os filhos participa-vam das tarefas, desempenhando-as conforme as posies de gnero ocupa-das na famlia: a menina limpando a casa e o menino puxando gua do poo e levando para casa.

    A evocao de um passado de trabalho est presente em toda sua narra-tiva. Tambm a preocupao em acentuar o aproveitamento, ao mximo, do tempo no trabalho na roa. Assim, comparada com o campo, no passado, a cidade considerada um lugar de tranquilidade e descanso. Ela ressalta que na cidade o ritmo marcado pelo relgio, as pessoas tambm seguem o hor-rio de vero, diferente dos ritmos da colnia, que eram estabelecidos pelas tarefas a serem cumpridas. A noo do tempo no contexto da agricultura era percebida e orientada pelas tarefas.

    Diferentemente dos empregados nas indstrias e no comrcio, que seguem uma disciplina mais rgida em relao ao horrio de trabalho, regido pelo tempo do relgio, para as mulheres aposentadas entrevistadas a vida na cidade proporciona a elas uma liberdade de ir e vir. Elas j esto aposentadas e no tm mais preocupao em relao aos cuidados com os filhos, agora adultos e independentes. Elas administram seu tempo sem seguir uma disci-plina to rgida em relao ao horrio. Mas h, em geral, uma preocupao em reservar para o perodo da manh os afazeres da casa, para deixar para o perodo vespertino as atividades sociais.

    Tambm dona Ren aproveita, junto com o marido, os espaos da cidade para as sociabilidades. Eles tm uma vida bem ativa, participam dos encon-tros no Clube de Idosos, do grupo de Apostolado na Igreja Catlica e nas outras tardes da semana jogam baralho com as/os amigas/os. Sobre suas ati-vidades, ela comenta:

    [Entrevistadora] Vocs participam de clube de idosos? [Dona Ren] Sim. E como... [Entrevistadora] bom?[Dona Ren] Aham. Na igreja... S pra sair de manh bem cedo ns... demorado, o dia inteiro, a gente cansa. Da ns no vamo mais, agora,

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    longe como eles vo, s vez. Essa idade a gente se entrega. [risos] Ele [marido] quer descansar um pouco. Mas bem legal agora a vida, meu favor! [Entrevistadora] Mudou bastante? [Dona Ren] Mudou. Eu j falei pros filho, pros parente de Rio Grande, eu nunca achei que ia ganhar um tempo que nem que eu tenho agora. Livre. Pode sair quando tu quer. A gente na colnia, no tinha nem domingo. Em domingo remendei roupa, adiantei comida pra... Eu sempre, sempre tava na roa, de manh at de noite. As crianas deitadas embaixo do p de man-dioca, com sombra. (Riffel, 2011).

    A expresso mas bem legal a vida agora, inserida ao representar sua vida enquanto uma trajetria, denota que, para dona Ren e seu marido, todo o esforo teria valido a pena. O trabalho na roa, inclusive nos domingos, remendando roupa ou preparando comida para a semana, teria assim possi-bilitado que agora, na velhice, eles pudessem se aposentar e ter uma vida mais confortvel, para usufruir de um tempo s para si, livres das obrigaes que no permitiam que eles sassem para se divertir quando jovens.

    Consideraes finais

    Ao ouvir as histrias de vida de mulheres idosas que vivenciaram o pro-cesso de migrao para o Oeste do Paran, pode-se perceber como elas valori-zam o trabalho exercido ao longo da vida e expressam uma sensao de dever cumprido. Entretanto, muito embora usufruam, na velhice, do tempo livre s para si, como ressaltam, tm que lidar com as limitaes impostas pela idade e pelas doenas.

    Suas histrias de vida abrangem diferentes aspectos de suas vidas, desde o trabalho na roa, a falta de recursos, especialmente financeiros, a criao dos filhos, a migrao para o espao urbano e a posterior aposentadoria. Suas narrativas vm acompanhadas de emoes geradas pelas lembranas das experincias cotidianas que elas tiveram no decorrer de sua trajetria. Ao narrarem suas vivncias, englobam toda a famlia, referindo-se constan-temente aos maridos, filhos e netos, que fizeram e fazem parte do seu uni-verso cotidiano.

    Elas so integrantes de uma gerao de agricultores que migraram em busca de terra para sua reproduo social, mas que tambm veem a agricultura

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    familiar perder espao para a produo em larga escala de soja e milho. Assim, ao narrar a trajetria dessas mulheres, com base em suas prprias mem-rias, procurei analisar aspectos da histria da agricultura familiar na regio, a insero do agronegcio, a impossibilidade de permanecer no campo e a cidade como alternativa de vida para os filhos.

    Ao narrar suas experincias, na condio de aposentadas, essas mulheres buscaram transmitir o significado e o valor que do ao trabalho, pois sen-tem uma estranheza em face de certos costumes atuais (Bosi, 1994, p. 480). Como analisa Ecla Bosi, aquilo que se viu e se conheceu bem, aquilo que custou anos de aprendizado e que, afinal, sustentou uma existncia, passa (ou deveria passar) a outra gerao como um valor (Bosi, 1994, p. 481). Afinal, para os mais velhos, a memria do trabalho o sentido, a justificao de toda uma biografia (Bosi, 1994, p. 481).

    Por meio das narrativas das mulheres entrevistadas, pudemos perce-ber tambm como elas apreendem as intensas transformaes dos espaos por elas habitados. Por morarem hoje em outros locais, no espao urbano, e terem condies econmicas diferentes, foram alteradas suas sociabilidades. Aquilo que elas expressam atravs das suas memrias, portanto, o que as marcou no transcurso de suas vidas.

    Referncias

    ASSIS, Glucia de Oliveira. Mulheres migrantes no passado e no presente: gnero, redes sociais e migrao internacional. Estudos Feministas, Florianpolis, v. 15, n. 3, p. 745-772, set./dez. 2007.

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    SCHREINER, Davi Flix. Entre a excluso e a utopia: um estudo sobre os processos de organizao da vida cotidiana nos assentamentos rurais (regio Sudoeste/Oeste do Paran). 460 p. Tese (Doutorado em Histria) Usp, So Paulo, SP, 2002.

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    Fontes orais

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    RIFFEL, Ren. [76 anos]. [ago. 2011]. Entrevistador: Gladis Hoerlle. Marechal Cndido Rondon, 17 ago. 2011.

    SCHMITT, Irmlia Drews. [72 anos]. [out. 2011]. Entrevistador: Gladis Hoerlle. Marechal Cndido Rondon, 8 out. 2011.

    VAN DER SAND, Carmelita. [68 anos]. [jun. 2009]. Entrevistador: Gladis Hoerlle. Marechal Cndido Rondon, 9 jun. 2009.

    WITTECH, Olinda Camila. [82 anos]. [ago. 2011]. Entrevistador: Gladis Hoerlle. Marechal Cndido Rondon, 26 ago. 2011.

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    Resumo: O presente artigo tem como propsito a reflexo acerca das experincias e memrias de mulheres agricultoras aposentadas que vivem no espao urbano do municpio de Marechal Cndido Rondon, extremo Oeste do estado do Paran. Analisamos referncias quanto ao trabalho e o cotidiano na roa, a migrao geralmente do Rio Grande do Sul ou de Santa Catarina para o Paran, alm dos atributos de gnero na colnia. Com base nas narrativas orais produzidas a partir das entrevistas de histrias de vida com essas mulheres, so discutidos os diferentes significados e as diversas formas de lidar com a idade e a velhice, assim como as formas como interagem com o mundo ao seu redor. Este trabalho foca a anlise nas prprias narrativas dessas mulheres e em como se sentem em relao a todo o processo de vida do qual elas foram sujeitos, seja atravs do seu modo de trabalhar, viver e se socializar.

    Palavras-chave: mulheres, memria, migrao campo-cidade, aposentadoria.

    Lived experiences of women farmers in western Paran

    Abstract: This article aims to reflect on the experiences and memories of retired women farmers who live in the urban area of the municipality of Marechal Cndido Rondon, far west of the state of Paran, Brazil. We analyze references to the work and daily life on the farm, the usual migration from Rio Grande do Sul and Santa Catarina to Paran, as well as gender attributes in the colony. Based on oral narratives produced from interviews of life stories from these women, we discuss the different meanings and different ways of dealing with age and old age, and the ways they interact with the world around them. This work focuses on the analysis of these womens narratives and on how they feel about the whole process of life to which they were subjected, either through the way they work, live and socialize.

    Keywords: women, memory, rural-urban migration, retirement.

    Recebido em 1/09/2014Aprovado em 22/10/2014