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EXMA. Sra. Dra. JUIZA TITULAR DO IV JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA COMARCA DA CAPITAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Ut olim vitis, sic nunc legibus laboramus.” 1 “Era só mais uma dura, resquício de ditadura, mostrando a mentalidade de quem se sente autoridade neste tribunal de rua.” 2 A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO , por intermédio do GRUPO DE TRABALHO DE POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS, instituído pela Resolução n.º 781/2015, neste ato presentado pelos Defensores Públicos abaixo assinados, com fundamento nos artigos 1º, inciso III; 3.º, incisos I e III; 4.º, II, bem como nos seguintes incisos do art. 5º, LXVIII, LIV, LV, LXVIII, LXXIV todos da Constituição da República Federativa do Brasil. Também com fulcro nos artigos 647 e 648, inciso II, do Código de Processo Penal, bem como nos artigos 4º, VII, VIII, IX, X, 15-A e também no art. 106-A da LC 80, com as modificações introduzidas pela Lei Complementar nº 132 e, por fim, no artigos 8º, XIX e 87 da LC Estadual nº 6/22, impetrar a presente ordem de HABEAS CORPUS PREVENTIVO (COM PEDIDO DE LIMINAR) em favor de TODAS AS PESSOAS QUE PORTEM DROGAS PARA USO PRÓPRIO , isto é, na forma do art. 28 da Lei 11.343/06, apontando como autoridades coatoras : os DELEGADOS TITULARES DAS SEGUINTES DELEGACIAS DE POLÍCIA: 11ª DP - Rocinha , 12ª DP - Leme , 13º DP Copacabana , 14ª DP Leblon e 15ª DP - Gávea ; os COMANDANTES DOS SEGUINTES BATALHÕES DE POLÍCIA MILITAR : 19° BPM (Copacabana, Leme, Lido e Bairro Peixoto) ; 23º BPM (Arpoador, Ipanema, Leblon, São Conrado, Gávea, Jardim Botânico) ; o INSPETOR DA 2º INSPETORIA DA GUARDA MUNICIPAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO ( Zona Sul) . 1 “Outrora, sofríamos por causa de nossos vícios, hoje sofremos por causa de nossas leis. ” Blaise Pascal Pensamentos (1669). 2 Tribunal de Rua, música de O Rappa (trecho).

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EXMA. Sra. Dra. JUIZA TITULAR DO IV JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA

COMARCA DA CAPITAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

“Ut olim vitis, sic nunc legibus laboramus.”

1

“Era só mais uma dura, resquício de ditadura, mostrando a mentalidade de quem se sente autoridade neste tribunal de rua.”

2

A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, por

intermédio do GRUPO DE TRABALHO DE POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE

DROGAS, instituído pela Resolução n.º 781/2015, neste ato presentado pelos

Defensores Públicos abaixo assinados, com fundamento nos artigos 1º, inciso III; 3.º,

incisos I e III; 4.º, II, bem como nos seguintes incisos do art. 5º, LXVIII, LIV, LV,

LXVIII, LXXIV todos da Constituição da República Federativa do Brasil. Também com

fulcro nos artigos 647 e 648, inciso II, do Código de Processo Penal, bem como nos

artigos 4º, VII, VIII, IX, X, 15-A e também no art. 106-A da LC 80, com as

modificações introduzidas pela Lei Complementar nº 132 e, por fim, no artigos 8º, XIX

e 87 da LC Estadual nº 6/22, impetrar a presente ordem de

HABEAS CORPUS PREVENTIVO

(COM PEDIDO DE LIMINAR)

em favor de TODAS AS PESSOAS QUE PORTEM DROGAS PARA USO PRÓPRIO,

isto é, na forma do art. 28 da Lei 11.343/06, apontando como autoridades coatoras:

os DELEGADOS TITULARES DAS SEGUINTES DELEGACIAS DE POLÍCIA: 11ª

DP - Rocinha, 12ª DP - Leme, 13º DP – Copacabana, 14ª DP – Leblon e 15ª DP -

Gávea; os COMANDANTES DOS SEGUINTES BATALHÕES DE POLÍCIA

MILITAR: 19° BPM (Copacabana, Leme, Lido e Bairro Peixoto); 23º BPM

(Arpoador, Ipanema, Leblon, São Conrado, Gávea, Jardim Botânico); o

INSPETOR DA 2º INSPETORIA DA GUARDA MUNICIPAL DA CIDADE DO RIO DE

JANEIRO ( Zona Sul).

1“Outrora, sofríamos por causa de nossos vícios, hoje sofremos por causa de nossas leis. ” Blaise Pascal – Pensamentos (1669).

2 Tribunal de Rua, música de O Rappa (trecho).

DO CABIMENTO DO HABEAS CORPUS

1. O habeas corpus (HC) foi incorporado no direito brasileiro pelo

Código Criminal de 1831. Mas somente tem sede constitucional na Constituição

Republicana de 1891. Neste momento, surge a disputa entre dois grandes nomes da

literatura jurídica nacional: PEDRO LESSA e RUY BARBOSA. Para este, o writ incorporava

o papel de remédio destinado a terminar com os estados de violência onde o sujeito

estivesse próximo ao risco de sofrer coação ilegal por abuso de poder. Assim, o

ilustre pensador da nascida República foi fundamental na decisão da Corte Suprema

que estendeu os efeitos da ação para os casos de natureza não penal. Pedro Lessa,

então, distinguiu duas funções do HC: uma, para fazer cessar as prisões; e a outra,

onde a ação estava destinada a resguardar a liberdade individual quando “estivesse

por fim próximo o exercício de um determinado Direito.”3

2. Segundo TOURINHO, deste debate surgiu a famosa Doutrina

Brasileira do HC:

“Em suma, por meio do Habeas Corpus, tutelava-se não apenas o direito de

locomoção, com, inclusive, todo e qualquer direito que é amparado pelo

mandado de segurança”4.

3. Criado o mandado de segurança, o HC volta-se então para a

proteção do direito de liberdade ante a coação ou ameaça de coação. Assim,

estabelece a Constituição da República:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: LXVIII - conceder-se-á habeas

corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer

violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou

abuso de poder.

3 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2000. Pág.532.

4 Idem, pág. 532.

4. E sua regulamentação feita pelo Código de Processo Penal:

Art. 647. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na

iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir,

salvo nos casos de punição disciplinar.

Art. 648. A coação considerar-se-á ilegal:

I - quando não houver justa causa; II - quando alguém estiver preso

por mais tempo do que determina a lei; III - quando quem ordenar a

coação não tiver competência para fazê-lo; IV - quando houver cessado o

motivo que autorizou a coação; V - quando não for alguém admitido a

prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza; VI - quando o processo

for manifestamente nulo; VII - quando extinta a punibilidade.

5. Constituindo-se em Ação Constitucional para a tutela da

Liberdade, possui a Defensoria Pública atribuição para propô-la, na medida em

que é instituição essencial à justiça e ao regime democrático, vez que

responsável pelas pessoas vulneráveis nos termos da lei.

6. O conceito de vulnerabilidade pode ser extraído das 100

Regras de Brasília, documento aprovado pela Cúpula do Poder Judiciário Ibero-

Americano, especialmente das regras 3 e 4:

“(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por

razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias

sociais, económicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais

dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os

direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.

(4) Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a

idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minorias,

a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o género e a

privação de liberdade. A concreta determinação das pessoas em condição

de vulnerabilidade em cada país dependerá das suas características

DA LIBERDADE COLETIVA OBJETO DE TUTELA

específicas, ou inclusive do seu nível de desenvolvimento social e

econômico.”5

7. Vulnerável, portanto, é a comunidade cujo direito de ir e vir se

busca tutelar com a presente actio, eis que a redução da capacidade de resistência

ao arbítrio estatal e a disparidade de armas traduzem-se no fator determinante para

legitimar a atuação da Defensoria Pública, sendo perfeitamente possível a formulação

do presente pedido pelos impetrantes.

8. Observe-se que a inicial impossibilidade de individualizar os

pacientes não pode ter o condão de impedir o prosseguimento da presente ação. Isto

porque, primeiramente, se trata de HC preventivo a tutelar a liberdade de vítimas

identificáveis.

9. Com efeito, a noção de vitimas identificáveis foi construída pela

Corte Internacional de Justiça, especialmente no caso África do Sudoeste de 1966,

onde o Juiz PHILIP JESSUP afirmou que o direito internacional aceitou e criou

situações nas quais se reconhece um direito de ação sem a obrigação de provar

um interesse substantivo e individual. Conceito completado pela opinião do

também o Juiz KOTARO TANAKA que entendeu que a proteção de grupos sociais

envolve, antes de tudo, a proteção das pessoas que conformam tal comunidade.

10. Tais votos foram a base da decisão do então Juiz CANÇADO

TRINDADE da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para estabelecer o

conceito de vitimas identificáveis em voto concorrente no Caso de Haitianos y

Dominicanos de Origem Haitiano na República Dominicana. O giro na jurisprudência

da Corte deu-se com o caso Comunidade de Paz de San José de Apartadó vs

Colombia, quando a Corte ditou Medidas Provisórias para proteger as pessoas que,

apesar de não individualizadas, se encontram na mesma situação de risco:

5 “100 Regras de Brasília sobre Acesso a Justiça de Pessoas em Condição de Vulnerabilidade”, disponível em

(https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf)

“En las circunstancias actuales del presente caso, en la Comunidad de Paz

de San José de Apartadó hay personas que prestan diferentes servicios a la

Comunidad cuya vida e integridad personal están en la misma situación de

riesgo, quienes no están determinadas, pero que pueden ser identificadas e

individualizadas por este vínculo de servicio que tienen con dicha Comunidad.

Por ello, esta Corte considera necesario mantener las medidas provisionales

en favor de las personas ya protegidas en la Resolución del Presidente de 9

de octubre de 2000 y la Resolución de la Corte de 24 de noviembre de 2000,

como también, por las razones expresadas en los escritos presentados por la

Comisión y el Estado y los respectivos alegatos expuestos durante la

audiencia pública celebrada el 13 de junio de 2002, ampliarlas a todas las

personas que tengan un vínculo de servicio con dicha Comunidad de Paz.”6

11. Entre nós, corrobora a noção estabelecida pela CIDH o

entendimento do Professor GERALDO PRADO. Em parecer que versara precisamente

sobre o cabimento de Habeas Corpus Preventivo Coletivo o Eminente Jurista

manifestara-se no sentido de que a questão da coletividade tem um primeiro viés

advindo da garantia do devido processo legal. Baseara-se no fato de que o Poder

Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, através da 39ª Vara Criminal, expediu

mandado de busca coletivo a ser cumprido junto às residências das comunidades

conhecidas como Nova Holanda e Parque União.

12. A análise do entendimento exarado no referido parecer faz ver

que é possível estendê-lo à tutela da liberdade pública que se pretende resguardar

com o presente habeas, isto é, outra coletividade indeterminada. Como dito, apesar

de indeterminada, a coletividade é identificável. Neste sentido, faz jus à tutela coletiva,

materializada pelo salvo conduto coletivo, tal como aquele que favorecera os

conhecidos flanelinhas. Vejamos:

“2.3. Em um processo penal de matriz acusatória o princípio elementar da

paridade de armas deve ao menos assegurar a paridade de oportunidades.

Por isso, se é possível reprimir coletivamente, isto é, valendo-se as forças

de segurança de dispositivos que não as obrigam a individualizar e nomear

6 Resolução de 18 de junho de 2002 del caso de las Medidas Provisionales respecto de la Comunidad de Paz de San José de

Apartadó en Colombia, disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/apartado_se_09.doc

as pessoas e os bens fundamentais (domicílio, parcela vital do patrimônio

pessoal etc.) que são afetados pelas ações repressivas, exigir-se sempre,

em qualquer caso, a determinação dos afetados resultaria em uma

diabólica inversão de ônus. Sublinho o ponto porque o considero crucial,

tendo em conta o compromisso constitucional de tutela das liberdades

públicas e de preservação da dignidade da pessoa humana. Em jogo, nessa

patente distorção ideológica dos direitos humanos, encontram-se os mesmos

fatores que estiveram presentes ao tempo do Império escravocrata: a)

grupos sociais vulneráveis sob os mais variados aspectos, mas

principalmente no que concerne à capacidade econômica e de representação

judicial; b) a repressão penal ordenada “coletivamente” e em contrariedade à

ordem jurídica. Os exemplos de habeas corpus coletivo e as suas causas

confirmam a hipótese: tutela de crianças e adolescentes submetidos a “toque

de recolher”; tutela de presos indevidamente mantidos em regime de

cumprimento de pena mais rigoroso.”7

13. Some-se ainda, os argumentos esposados pelo Parecer da

Clínica de Direitos da Uerj, também nos autos no RE nº 0855810 do STF, entendendo

que:

“1. Numa sociedade de massa, o método tradicional de solução de

controvérsia, que prevê o ajuizamento de tantas ações quantas forem as

pretensões, congestionaria os tribunais. Assim sendo, é a tutela supra

individual medida necessária para se evitar o congestionamento ocioso da

máquina judiciária.

2. A coletivização das demandas de origem comum traduz uma preocupação

com a isonomia no tratamento entre os jurisdicionados, evitando o elevado

número de decisões que podem ser contraditórias.

3. O tratamento coletivo de litígios individuais promove o efetivo acesso à

justiça aos mais necessitados num país marcado por profundas

desigualdades sociais.

4. Além da celeridade e economia processuais, o tratamento coletivo das

demandas individuais está dentro do Plano Estratégico do Poder Judiciário,

elaborado pelo CNJ, no que tange ao estímulo à solução coletiva das

demandas.

5. Casos paradigmáticos: 1. Questão do HC Preventivo para as pessoas do

Movimento Passe Livre contra a realização das prisões injustificadas (TJSP

7 Geraldo Prado, in “Flanelinhas e Habeas Corpus Coletivo. Parecer de Geraldo Prado”, disponível em

(http://emporiododireito.com.br/flanelinhas-e-habeas-corpus-coletivo-parecer-de-geraldo-prado-confira/)–grifamos.

DA COMUNIDADE DE USUÁRIOS DE DROGAS

HC nº 5587); 2. Marcha da Maconha no RS (TJRS HC nº 1080118354-9); 3.

Proibição de criança e adolescente ficarem na rua depois das 23h (STJ. nº

207.720/SP). 4. Questão dos “Rolezinhos no Shopping”.

14. Impende demonstrar, portanto, que os usuários de drogas ilícitas

formam, de fato, genuína comunidade vulnerável, na forma descrita nos itens

precedentes.

15. Das substâncias proscritas na Portaria n.º 344/98 da ANVISA (ato

normativo que colmata a norma penal em branco insculpida no art. 28 da Lei

11.343/06), as mais difusas são, notadamente aquelas identificadas pelo uso popular

de maconha8 e cocaína.9 Nada obstante, outras substâncias10 também podem ser

identificadas como de uso difuso no Brasil. O que une os usuários de todas essas

substâncias na noção de comunidade é, precisamente, o fato de tais substâncias

serem proscritas. Isto é, em linguagem jurídica, drogas11 (arbitrariamente

etiquetadas)12 de ilícitas.

16. À míngua de critérios científicos no sentido do estabelecimento de

uma desejável hierarquia das drogas capaz de racionalizar a proscrição de umas e a

regulamentação responsável de outras (como se dá com o álcool e o tabaco)13,

passaremos a uma breve análise da genealogia14 da proibição, a fim de demonstrar o

arbítrio que, desde sempre, guiou as políticas proibicionistas.

8 ANVISA – Portaria 344/98: Lista F-2 (Substâncias Psicotrópicas), item 28: THC (TETRAHIDROCANABINOL).

9 ANVISA – Portaria 344/98: Lista F-1 (Substâncias Entorpecentes), item 8. COCAÍNA.

10 A título de exemplos: ANVISA – Portaria 344/98: Lista F-1, item 11. HEROÍNA (DIACETILMORFINA); Lista F-2, item 6.

LISERGIDA (9,10-DIDEHIDRO-N,N-DIETIL-6-METILERGOLINA-8 β-CARBOXAMIDA) – LSD; item 14. MDA (∝-METIL-3,4-(METILENDIOXI)FENETILAMINA) -TENAMFETAMINA; 15. MDMA ( (±)-N, ∝-DIMETIL-3,4-(METILENDIOXI)FENETILAMINA) e; 17. MESCALINA (3,4,5-TRIMETOXIFENETILAMINA). 11

Na redação do parágrafo único, art. 1.º, da Lei 11.343/06, “Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.” 12

Expressão cunhada por MARIA LUCIA KARAM para destacar que a proscrição de determinadas substâncias não obedece a critérios de razoabilidade e proporcionalidade, tampouco se ampara em razões científicas. 13

“...os resultados carga global das doenças realçam o fato que a maior parte dos problemas de saúde no mundo são devidos mais a substâncias lícitas do que ilícitas.” (Relatório Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas. OMS – Genebra. 2004) 14

Como anotou Foucault, a respeito da Genealogia da Moral de Nietzsche: “A invenção [Erfindung] para Nietzsche é, por um lado, uma ruptura, por outro, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável.”

17. Certo é que a história da proibição de cada uma das drogas

ilícitas tornaria enfadonha a análise do presente. Sendo assim, nos limitaremos

a algumas referências gerais, com o objetivo de que possam servir de guia até a

conclusão já antecipada no título do presente capítulo, qual seja: a de que os

usuários (portadores para uso próprio) de drogas assumem a situação jurídica

de comunidade e de vulnerabilidade. Malgrado estejamos a falar genericamente de

uma comunidade de usuários de drogas ilícitas, sua demonstração aparece mais

claramente no que se refere aos consumidores de maconha15, até porque se trata do

grupo mais numeroso16 e organizado. Destacando “a função contramajoritária do

Supremo Tribunal Federal no Estado democrático de direito, estimulando a análise da

proteção das minorias na perspectiva de uma concepção material de democracia

constitucional”17, no julgamento da ADPF 187/DF, o Exmo. Ministro CELSO DE MELLO

afirmara:

“Há que se reconhecer, ainda, no que se refere à pretendida

descriminalização do uso de drogas, inclusive da maconha, que essa tese é

sustentada, publicamente, por diversas entidades, tais como a Comissão

Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, Presidida pelo ex-Presidente

da República Fernando Henrique Cardoso, que, em artigo publicado no “Valor

Econômico” (“A Guerra contra as Drogas”, em 18/01/2011), e após observar

que a guerra contra as drogas “é uma guerra perdida”, impondo-se, por isso

mesmo, uma ruptura de paradigma na análise e enfrentamento dessa

questão...”18

- grifamos

18. O Exmo. Ministro Relator citara também em seu voto,19 trecho da

Carta de Princípios da Marcha da Maconha, aqui reproduzido em parte:

“A Marcha da Maconha Brasil é um movimento social, cultural e político,

cujo objetivo é levantar a proibição hoje vigente em nosso país em relação

15

Embora não possa ser desprezado o número de usuários de cocaína. Pesquisa recente da UFF mostra que há resíduos da droga em cerca de 90% das cédulas de nossa moeda corrente – usada como canudo para consumo da droga (http://www.focosh.com.br/v2/materias.php?id=23693). 16

“Prevalências de uso na vida”, estatísticas disponíveis em http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Dados_Estatisticos/indicadores/327423.pdf 17

P. 24 do Voto, disponível em (http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF187merito.pdf) 18

P. 52/53 do Voto 19

Idem - Apud, SALO DE CARVALHO (A Política Criminal de Drogas no Brasil - Estudo Criminológico e Dogmático da Lei 11.343/06, p. 258/261, item n. 12.10, 5ª ed., 2010, Lumen Juris)- p. 42 do Voto.

ao plantio e consumo da ‘cannabis’, tanto para fins medicinais como

recreativos.”

19. Buscaremos, portanto, demonstrar uma diacronia

proibicionista, diretamente relacionada à facilitação do controle social de certos

estratos sociais; justamente aqueles que sustentamos caracterizar como

comunidade vulnerável para os efeitos do presente hábeas. Neste sentido, temos

como ponto de partida o ano de 1603 quando, a partir das Ordenações Filipinas,

considerara-se proibida a substância “rosalgar” – então caracterizada como material

venenoso. Vejamos:

“Que ninguém tenha em sua casa rosalgar, nem o venda nem outro

material venenoso.” 20 - grifamos

20. A infringência da norma em questão sujeitava o infrator à perda

de “toda sua fazenda, a metade para nossa Camera e a outra para quem o acusar, e

seja degredado para a Africa, até nossa mercê.” A evolução histórica das leis de

drogas no Brasil deixam ver que o espírito proibicionista, ainda operante, deita raízes

sobre a matriz ibérica da qual fez parte as Ordenações Filipinas21. O Código Penal de

1890 segue a tradição filipina para também consagrar em seu texto a proibição de

“substâncias venenosas”. In verbis:

“Art. 159. Expor à venda, ou ministrar, substâncias venenosas, sem legítima

autorização e sem as formalidades prescriptas nos regulamentos sanitários.”

21. Mesmo antes de 1890, já a Constituição Imperial (1824) trazia a

previsão (art. 8, I) de suspensão dos direitos políticos por “incapacidade physica,

ou moral” permitindo enxergar aí a sedimentação de um ideário moralista. Este

permaneceu expressamente presente nos diplomas legais posteriores. Autorizam tal

conclusão, o uso pelo legislador de expressões como “embriaguez escandalosa”, e a

motivação declarada da norma de sujeição à internação compulsória “para evitar

a prática de atos criminosos ou a completa perdição moral”. Tal léxico vê-se

20

ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro V, Título LXXXIX (disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1240.htm) 21

A obra ficou pronta ainda no tempo de Filipe I, que a sancionou em 1595, mas só foi definitivamente mandada observar, após a sua impressão em 1603, quando já reinava Filipe II. Filipe I, político hábil, quis mostrar aos portugueses o respeito que tinha pelas leis tradicionais do país, promovendo a reforma das ordenações dentro de um espírito tradicional. Fonte: Wikipedia

presente no Decreto 4.294, de 06.07.1921, sancionado por Epitácio Pessoa e que

revogaria o art. 159 do CP de 1890. No mesmo diploma, a noção de “veneno” veio a

se juntar à palavra “entorpecente”, iniciando-se assim “sua longa e polissêmica

carreira no direito penal brasileiro”.22

22. Para além das referências aqui indicadas, não se olvida que as

políticas proibicionistas (globais) tenham base menos remota e mais difundidas em

Convenções Internacionais sempre internalizadas pela legislação doméstica.

Mantenhamos sobranceira, contudo, a ideia inaugural de que “todo preceito de lei (...)

constitui apenas um elemento entre outros de uma construção ideológica edificada

para justificar certas ações e para, numa certa medida, mascará-las.” Tal é a lição de

NILO BATISTA para nossos tempos:

“O fato de que uma tentativa do furto de uma bebida, por um jovem negro e

pobre num subúrbio, e a tentativa de furto de uma blusa, por uma

adolescente de classe média num shopping center, tenham soluções tão

desiguais (no primeiro caso, encaminhamento policial-judiciário; no segundo,

composição com a família no centro de vigilância privada), com efeitos sociais

tão distintos, parece não interessar em nada ao comentário jurídico penal;

mas este desinteresse cumpre uma função importante, ao dissimular, em

estilo ‘nobre e vago’, o desconchavo ‘das práticas reais que se sucedem’”23

23. Aproximando-nos mais do que pretendemos desenvolver

aqui com a menção à longínqua Ordenação Filipina e seus reflexos nas leis

brasileiras, é o fato de que a posse de determinada substância proscrita tornara

absolutamente vulnerável o seu possuidor. Esse pequeno começo (a eleição

arbitrária de um corpus “venenoso”; hoje, droga) – é que tem permitido dissimular e

justificar práticas reais inconfessáveis. Não há, sabemos hoje, qualquer

fundamentação racional para a distinção entre drogas lícitas e ilícitas; seja do ponto

de vista científico, seja do ponto de vista da saúde pública. O objetivo das

proscrições jamais deixou de caminhar de mãos dadas com a facilitação do

controle social promovida: proximidade do sujeito com um corpus físico

22

Nilo Batista, “Política Criminal Com Derramamento de Sangue”, RBCC n.º 20, 1997, p. 131. 23

Nilo Batista, “Matrízes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro”, p. 19, apud, Georges Duby, “Idade Média, Idade dos Homens – Do Amor e Outros Ensaios”, Cia. Das Letras, 1990, p. 12.

proibido. Desde então tem sido possível fazer dessa “conjunção maligna”

formada pelo homem e pela “substância venenosa”, alvo da exclusão física do

espaço territorial tutelado pela norma proibidora.

24. Ensina-nos ORLANDO ZACCONE, que a “reprovação moral ao uso

de substâncias psicoativas (...) foi tradicionalmente acompanhado pela associação

entre determinadas drogas e grupos sociais” e, com esteio em THIAGO RODRIGUES,

observa que tais associações (nos EUA: chineses-ópio, maconha-mexicanos, negros-

cocaína, álcool-irlandeses) tornavam possível segregar estes que eram tidos pela

comunidade estadunidense branca (WASP)24 como “entidades exógenas, estranhas e

de hábitos perigosos, que traziam venenos e disputavam empregos com aqueles

estabelecidos na América há gerações.”25 Entre nós, destaca-se o fato de que

termos cunhado a primeira lei do planeta a cominar prisão para quem fizesse

uso de maconha. Data de 4 de Outubro de 1830 a Postura da Câmara Municipal do

Rio de Janeiro, assim publicada:

§7º “É proibida a venda e o uso do ‘Pito do Pango’, bem como a

conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a

saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele

usarem, em 3 dias de cadeia.” - grifamos

25. A expressa referência aos escravos26 – que à época não eram

considerados pessoas (sujeitos de direito) – deixa ver que a invenção da proibição no

Brasil não desborda das inspirações internacionais, seja de sua matriz ibérica, seja

das Convenções oxigenadas pelo esforço estadunidense que posteriormente veio a

se consolidar na expressão Guerra às Drogas (War on Drugs). E, por óbvio, sendo

inviável promover uma guerra contra coisas, trata-se, de fato, de uma guerra contra

24

WASP é o acrônimo que em inglês significa "Branco, Anglo-Saxão e Protestante" (White, Anglo-Saxon and Protestant). Com frequência usada em sentido pejorativo, presta-se a designar um grupo relativamente homogêneo de indivíduos estadunidenses de religião protestante e ascendência britânica que supostamente detêm enorme poder econômico, político e social. Costuma ser empregada para indicar desaprovação ao poder excessivo de que esse grupo gozaria na sociedade norte-americana. Salvo em tom jocoso, é incomum que alguém se refira a si mesmo como um WASP. Em termos mais genéricos, a expressão pode ser aplicada a qualquer descendente de europeus ocidentais (não necessariamente britânicos), mas não a católicos, judeus, negros, latinos, nativos americanos e asiáticos. Fonte: wikipedia 25

ZACCONE, Orlando, Acionistas do Nada, REvan, 2008, p. 83. 26

“A história de sua presença [da maconha] no Brasil ainda não foi satisfatoriamente esclarecida. Para D. Parreiras, o canabismo foi introduzido no Brasil pelo negro escravo, com o que concordam E. Cardoso, J. Mendonça, R. Dória, J. Lucena, G. Moreno, C. Farias, todos participantes da Coletânea de Trabalhos Brasileiros sobre a Maconha, Publicada pelo Ministério da Educação e Saúde, em 1958, ‘todos bons conhecedores do assunto’ (A Maconha, 1958, p. 333)” LUIZ MOTT, A Maconha na História do Brasil in, Diamba Sarabamba, p. 119.

pessoas - que têm algum tipo de relação com as drogas. Sem desligar-nos dessa

perspectiva histórica, é possível dizer que: da mesma forma como os escravos

foram alvos de uma política escravagista, os usuários de drogas podem

também serem identificados como alvo de um outro tipo de política (bélico-

proibicionista). Conclui-se que tais pessoas estão vinculadas por um liame

objetivo, característico da noção de comunidade.

26. É importante destacar ainda que, muito embora não tenhamos

mais a prisão como resposta penal para o usuário, o cariz moralista e normalizador

mantém-se presente na previsão de pena advertência (Art. 28, I da Lei 11.343/06).

Quanto à facilitação do controle social, ainda hoje a matriz histórica, conquanto

sutilmente oculta, pode ser desvelada. Mutatis mutandis, hoje, a posse de droga

(proximidade entre sujeito e corpus proibido) nas condições previstas no artigo

28 da Lei 11.343/06 faz possível a condução coercitiva do sujeito de direito do

local onde se encontrar até a delegacia de polícia para a lavratura do termo

circunstanciado. E é precisamente esta liberdade, isto é, a liberdade de ir, vir,

estar e permanecer que o presente HC pretende tutelar.

27. A “espantosa similitude, quando não plena correspondência”27

entre os elementos objetivos dos tipos penais previstos para a conduta do usuário e

do traficante na atual Lei de Drogas (respectivamente arts. 28 e 33 da Lei 11.343/06)

tem permitido às apontadas autoridades coatoras, precisamente aquelas

responsáveis pelo policiamento ostensivo, a proceder mediante arbítrio

moralizador (intrínseco à tipificação). Não raro, com abuso de autoridade. Isso

significa, na prática, a aplicação sumária de punições informais infensas a

qualquer tipo de fiscalização ou controle. E, pode-se imaginar, quase sempre

mais drásticas do que aquelas previstas em lei.

28. No panorama legal atual, todos os núcleos típicos do art. 28

encontram-se também previstos no art. 33. O que torna a moldura legal mais trágica:

o art. 28 caracteriza-se como delito de pequeno potencial ofensivo (de um lado) e o

27

CARVALHO, Salo. A Política Criminal de Drogas no Brasil, p. 202.

art. 33, em crime equiparado a hediondo28 (por outro lado). Eis aí o manifesto e

amplíssimo espaço de arbítrio que medeia as duas condutas. De sorte que, ainda

que os diversos agentes das instâncias de policiamento ostensivo reconheçam estar

diante de usuários, a compreensão de que estamos lidando com uma tradição

moral autoritária, o reconhecimento de nossas desigualdades históricas, aliado

a uma mirada minimamente realista para o cotidiano; tudo isso permite

depreender de que tipo de abuso estamos tratando aqui.

29. É voz corrente no senso comum29 que o universo dos usuários de

drogas que acabam capturados na malha criminal operante na criminalização

secundária - “ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece

quando as agências policiais detectam uma pessoa que, se supõe, tenha

praticado certo ato criminalizado primariamente”30 – e que, com sorte, acabam

tendo suas condutas definidas como pertinentes ao art. 28 da Lei de Drogas são,

historicamente, a população mais vulnerável da cidade do Rio de Janeiro. Destaque-

se aqui as noções sedimentadas pelo saber criminológico crítico a respeito da

seletividade penal inerente ao sistema de justiça. Este

“está estruturalmente montado para que não opere a legalidade

processual e para exercer seu poder com o máximo de arbitrariedade

seletiva dirigida aos setores vulneráveis.”31

30. Assim, mesmo o pequeno potencial ofensivo da conduta do

usuário “não é algo que precede as definições e as reações sociais, mas

realidade construída [...] a criminalidade não é qualidade ontológica, mas um status

social atribuído através de mecanismos e processos formais e informais de

reação”32. Tudo isso, sem esquecer que “a espantosa similitude” entre os tipos penais

que criminalizam o usuário e o traficante, acabam borrando a fronteira de

representação moral havida entre ambos. É dizer, ainda que o tratamento legal

28

Segundo SALO DE CARVALHO a possibilidade de extradição do brasileiro naturalizado na forma do art 5.º, LI da Constituição da República por “comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins” torna o delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/06 o mais grave dentre todos os tipos penais. 29

“O senso comum é um fundo de evidências partilhadas por todos que garante, nos limites de um universo social, um consenso primordial sobre o sentido do mundo...” BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas, p. 118. 30

ZAFFARONI, E. Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro & SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro: teoria geral do direito penal. RJ: Ed. Revan, 2003, vol. I, p. 43 31

Id. p. 54 32

Salo p. 33 nota de rodapé

seja drasticamente diverso, a reação das agências de repressão (malha

criminal) à figura do usuário acaba contaminada pela fantasmagoria33 que

reveste o estereótipo do traficante.

31. Do mesmo modo que não há racionalidade hierárquica entre

as substâncias lícitas e ilícitas, os processos de estigmatização não obedecem

à razão proporcional da escala penal cominada para este ou aquele delito. Em

outras palavras, a título ilustrativo, ainda que as penas previstas para os crimes contra

a ordem tributária previstos na Lei 8.137/90 estabeleçam penas muito mais altas do

que a advertência prevista no preceito secundário do art. 28 da Lei de Drogas, as

instâncias policiais não vão lidar com eventual infrator de tal crime do mesmo modo

com o qual lidam com os usuários dos corpus proibidos pela Portaria n.º 344/98 da

ANVISA.

32. Quer-se demonstrar, com isso, que os alvos regulares da malha

criminal correspondem a estereótipos, a arquétipos,34 os quais “...não apenas

modelam o agir dos agentes da persecução, sobretudo das polícias, como direciona o

raciocínio judicial na eleição das inúmeras variáveis existentes entre as hipóteses

condenatórias ou absolutórias e à fixação da quantidade, qualidade e espécie de

sanção”.35 Bem compreendidos os elementos aqui ventilados, a operacionalidade do

sistema tem deixado espaço para o surgimento, nas franjas da lei, de informalidades

e práticas não-fiscalizadas, bem como de espécies de sanção abusivas e arbitrárias,

mas sobretudo ilegais diante dos preceitos secundários previstos no art. 28 da Lei de

Drogas.

33. No lento escoar do tempo histórico brasileiro, ao longo de cerca

de 380 anos vigorou a escravidão. Ainda não foi possível nos livrar de nossas fundas

feridas. Os alvos do arbítrio guardam vínculos com os desprestigiados ancestrais de

nossa história. Como ensina VERA MALAGUTI:

33

[Numa realidade em que] “bala perdida, roubo de veículos, queima de ônibus e até o comércio são diferentes práticas ilícitas imputadas aos ‘traficantes’, que passam a ‘constituir uma categoria fantasmática, uma categoria policial que migrou para a academia, para o jornalismo, para a psicologia e que não tem cara, não é mais humana. É uma coisa do mal.” Entrevista com Nilo Batista e Vera Malaguti Batista. In, Caros Amigos: agosto de 2003. 34

Arquétipo, na psicologia analítica, significa a forma imaterial à qual os fenômenos psíquicos tendem a se moldar. Originam-se da constante repetição de uma mesma experiência para formar as tendências estruturantes e invisíveis dos símbolos, criando imagens ou visões que irão balancear aspectos da atitude consciente do sujeito. Fonte: Wikipédia. 35

SALO DE CARVALHO: Op. Cit., pp. 81 e 82.

“O estereótipo do bandido vai se consumando na figura de um jovem negro,

funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis,

boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho o de poder e nenhum sinal

de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda. A

mídia, a opinião pública destacam o seu cinismo, a sua afronta. São

camelôs, flanelinhas, pivetes e estão por toda a parte...”36

34. Nada obstante, parafraseando o poeta CAZUZA, o tempo não para

e ainda estão rolando os dados. Sendo assim, não se pode dizer que nada tenha

mudado. Na leitura de ÁLVARO VIEIRA PINTO, ainda em 1956, “o que era instintivo

clamor de revolta, transforma-se em iluminante compreensão. Antes sofria, agora

sabe porque sofre.”37 E hoje, além de saberem porque sofrem, se organizam,

reivindicam, compreendem o caráter emancipador do projeto constitucional de 1988 e

abrem clarões no seio do discurso público, afirmam-se enquanto coletividade os

usuários – como nas históricas decisões do STF em 2011.38

35. Para além do fato de serem alvo do controle social motivado pelo

proibicionismo, a solidariedade cultural que vincula os usuários de drogas ilícitas

em genuína comunidade vulnerável39 para os fins a que se destina o presente

HC preventivo, pode ser observada não só na já mencionada Marcha da

Maconha, mas está presente em diversos outras organizações, personalidades

públicas e na promoção de campanhas por instituições nacionais e

internacionais40 que participam do debate público, sempre motivados pela

constatação de que a atual política de drogas tem sido responsável pelo exponencial

aumento do encarceramento no país. Como visto, apesar da despenalização

advinda com a Lei 11.343/06, a previsão legal do art. 28 tem sido capaz de

submeter ainda largos estratos comunitários à experiência deletéria e

36

MALAGUTI, Vera. Difíceis Ganhos Fáceis, p. 36. 37

Ideologia e Desenvolvimento Nacional, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, MEC, 1956 38

ADPF 187/DF e ADI 4274/DF 39

O conceito de vulnerabilidade permite não só constar o processo de atribuição dos rótulos, no qual o estigmatizado adquire posição passiva (o estigma lhe é empregado), como o processo de risco pessoal, da conduta comissiva pessoal ou coletiva na qual o sujeito se coloca em situações estigmatizáveis. (Op. Citada, p. 41) 40

Como por exemplo, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, a LEAP – Law Enforcement Against Proibition e, mais recentemente a campanha do CESEC – Centro de Estudos de Segurança e Cidadania intitulada “Da Proibição Nasce o Tráfico”, deixa ver que há uma ampla rede (comunidade) de pessoas identificáveis como vulneráveis a merecer resguardo do Poder Público. Do texto que resume a campanha do CESEC extrai-se: “A proibição afasta dos serviços de saúde e cuidado aquelas pessoas mais afetadas pelo abuso dessas substâncias, que, com medo de serem presas, preferem se esconder a pedir ajuda. Por fim, a proibição e as organizações criminosas que ela alimenta sujeitam populações inteiras a uma guerra sem fim, sacrificando, sobretudo, a vida de policiais e de moradores das periferias brasileiras.”

PANORAMA NÃO BÉLICO DA POLÍTICA DE DROGAS NO MUNDO:

PORTUGAL, ARGENTINA E URUGUAI

estigmatizante da restrição à liberdade; da detenção – ainda que limitada à

captura destinada à lavratura de termo circunstanciado.

36. É neste cenário que, conforme ensina PAULO GALLIEZ, cumpre ao

Defensor Público, enquanto instrumento de transformação social41 - e para

tanto basta estar imbuído de sentimentos morais de justiça, indignação,

solidariedade e sobretudo decisão política - transcender a atuação técnico-

jurídica e a principal linha de atuação neste sentido diz respeito aos conflitos

coletivos. Uma das formas de resistir aos processos de criminalização, ao arbítrio

informal e ilegal é a busca do reconhecimento; a defesa contra a marginalização

e o desprezo, tendo como horizonte o “fim da estigmatização do usuário que, de fato,

não se garante pela simples transformação da norma”42. Portanto, ladeando-se às

demais instituições e organizações aqui mencionadas:

“...cabe ao defensor público, ao exercer a função de agente transformador da

sociedade, possibilitar essa libertação mediante mecanismos jurídicos

inovadores, ainda mais que de acordo com a filosofia da era burguesa (até

hoje enraizada em nossa cultura) o individuo tem que provar e julgar todo

dado segundo a força e o poder de seu conhecimento, fazendo com que no

conceito de razão esteja implícito o conceito de liberdade.”43

37. Nesta ordem de ideias, demonstra-se que o coletivo de

pessoas humanas cuja liberdade, e respectiva dignidade, se pretende

resguardar com a concessão da ordem aqui postulada, podem e devem ser

constitutivos da noção de comunidade vulnerável, notadamente identificável.

38. A política de drogas, chancelada pelas Organizações das Nações

Unidas, sustenta que é possível um mundo livre de drogas. Com este propósito,

41

GALLIEZ, Paulo, O Defensor Público como Instrumento de Transformação Social, Lumen Juris, 2001, p. 37 42

MUNDIM, Pedro Santos, Das Rodas de Fumo à Esfera Pública, AnnaBlume, 2006, p.122 43

GALLIEZ, PAULO, O Defensor Público como Instrumento de Transformação Social, Lumen Juris, 2001, p. 47

recursos são gastos no financiamento de um modelo reconhecidamente bélico – o

que se constata pelo slogan adotado: war on drugs.

39. É de se notar que a repressão ao uso de substâncias

entorpecentes é relativamente recente e que o processo de criminalização teve início,

de forma massiva, nos Estados Unidos a partir do século XX, mais especificamente

com a “War on Drugs” anunciada pelo presidente Richard Nixon em 17 de junho de

1971 em mensagem enviada ao Congresso sobre prevenção e controle da

drogadição. Naquele momento, os Estados Unidos elegiam a droga como inimigo

número um da sociedade americana e não mediriam esforços para ganhar essa

guerra, que hoje vemos ser extremamente equivocada em seus fundamentos e

métodos, não obstante consumir cerca de 51 bilhões de dólares anualmente com tal

propósito. Em junho de 2011, a Comissão Global de Política de Drogas publicou um

relatório com o seguinte conteúdo:

“The global war on drugs has failed, with devastating consequences for

individuals and societies around the world. Fifty years after the initiation of the

UN Single Convention on Narcotic Drugs, and years after President Nixon

launched the US government´s war on drugs, fundamental reforms in national

and global drug control policies are urgently needed.”44

40. Diversos autores são críticos ferozes do poderio americano

empenhado em eliminar o comércio ilegal de drogas, tanto pela assombrosa soma de

dinheiro empregado quanto pela truculência dos métodos, o que se espalhou por

todos os continentes. O colunista do New York Times, Eduardo Porter, nota que o

economista graduado em Harvard, Jeffrey Miron, sugeriu que a legalização de todas

as drogas ilícitas geraria lucros para os Estados Unidos da ordem de 65 bilhões ao

ano, especialmente pelo corte nos gastos na execução da política adotada bem como

através da redução do crime e da corrupção. Um estudo feito por analistas da Rand

Corporation indica que se a marijuana fosse legalizada na Califórnia e de lá fosse

distribuída para outros Estados, os cartéis da droga mexicanos perderiam cerca de

um quinto de seus lucros anuais de cerca de 6,5 bilhões de dólares oriundos da

44

War on Drugs, disponível https://en.wikipedia.org/wiki/War_on_Drugs, acesso em 08 de julho de 2015.

exportação ilegal para os Estados Unidos.45 Em clara contraposição ao modelo

inaugurado a partir da década de 1970, Colorado e Washington permitem, desde

2012, o consumo de pequenas quantidades de entorpecente para uso recreativo a

partir dos 21 anos, o que conta com a aprovação da maioria dos norte-americanos.

Atualmente, 20 estados também autorizam médicos a receitar no apoio de tratamento

de doenças. Avança, ainda que lentamente, a mudança de mentalidade em razão dos

desastrosos resultados produzidos em décadas de prisões, intervenções militares e

enorme gasto de recursos públicos sem qualquer retorno efetivo.

41. Contudo, verifica-se, especialmente nos últimos dez anos, que

vários países abandonaram o mito do “mundo sem drogas” e passaram a aplicar

políticas públicas alternativas para além da perspectiva bélicas e do sistema de justiça

criminal.

42. No Brasil, o consumo de substâncias consideradas ilícitas ainda é

fortemente regulado pelos atores do sistema de justiça criminal, visto que o usuário

ainda é conduzido a uma delegacia de polícia, submetido a um procedimento no

Juizado Especial Criminal e sujeito a uma transação penal, a uma suspensão

condicional do processo e, em alguns casos, à aplicação de uma pena, inclusive

gerando consequências graves como a reincidência. Não há como enfrentar o tema

de política de drogas, bem como o pedido deduzido no presente habeas corpus, sem

um breve relato de experiências exitosas no mundo que abandonaram o tradicional e

exaustivo caminho da Justiça Criminal e ousaram em descriminalizar e até permitir o

consumo de substâncias anteriormente consideradas ilícitas.

43. Talvez o caso mais emblemático seja o de Portugal, pois, ainda

seja um país com forte influência da Igreja Católica e ainda assombrado com o

espectro conservador do período salazarista, optou, em 2001, pela descriminalização

do uso de todas as substâncias entorpecentes. Segundo legislação portuguesa, a

pessoa encontrada com droga para o consumo pessoal para o período de 10 dias não

pratica crime, cabendo destacar que a Lei nº 30/2000 estipulou a seguinte

45

Effiency of war on drugs in the United States, https://en.wikipedia.org/wiki/War_on_Drugs#Efficiency_of_war_on_drugs_in_the_United_States, acesso em 08 de julho de 2015.

quantidade: cannabis folha, 25 gramas; haxixe, 5 gramas; cocaína, 2 gramas;

heroína, 1 grama; LSD ou ecstasy, 10 comprimidos.

44. Portanto, a posse e o consumo de drogas ilícitas deixaram de ser

considerado crime para passarem a ser considerado contra-ordenação. A

descriminalização difere da despenalização porque a compra, posse e consumo de

substâncias ilícitas, em quantidades superiores às necessárias para 10 dias de

consumo, continua a ser considerado um crime e poderá acarretar a aplicação de

sanções de âmbito criminal.

45. A polícia, ao abordar o consumidor, registra os seus dados,

apreende a substância ilegal e o notifica para comparecer perante a Comissão para a

Dissuasão. Cada um dos 18 distritos do país tem a sua Comissão de Dissuasão,

constituídas por três membros, um jurista e os outros dois são geralmente

profissionais de saúde ou da área social, sempre com o apoio de uma equipe técnica

de psicólogos, sociólogos ou assistentes sociais.

46. Se uma pessoa não comparecer perante a Comissão de

Dissuasão, uma sanção administrativa pode ser aplicada na sua ausência, como, por

exemplo, multa, suspensão da carteira de habilitação, cassação da licença de uso e

porte de arma, trabalho a favor da comunidade ou proibição de frequentar

determinados locais. Na Comissão para a Dissuasão, as motivações para o consumo,

o histórico de uso, questões de dependência, questões familiares e laborativas são

discutidas. A Comissão procura travar um debate franco por meio do qual os

consumidores tomem consciência dos riscos associados à droga, incluindo as

consequências legais de uma reincidência e, explicar, recomendar e encaminhar para

tratamento/acompanhamento, quando for o caso.

47. Uma reunião com a Comissão não tem a mesma carga formal e

simbólica de uma audiência em um juízo criminal, reduzindo a estigmatização dos

consumidores. O relato a seguir colacionado revela que um ambiente sem a

intervenção da polícia e dos atores do sistema de justiça criminal produz efeitos

benéficos:

“De facto, os consumidores entrevistados neste estudo descrevem ter

sentido menos receio de serem presentes perante a Comissão do que

teriam se tivessem sido presentes a tribunal, como no antigo sistema. A

audição tem lugar numa sala normal, com uma mesa onde membros da

comissão e indiciados abordados por posse de substâncias ilegais se

sentam. Os indiciados podem ser apoiados por um terapeuta ou

advogado, e o representante legal é obrigatório no caso de menores de 18

anos. No caso dos indiciados com mais de 18 anos, a correspondência

não tem obrigatoriamente que ser enviada para a sua morada se a pessoa

não quiser que terceiros tenham conhecimento do seu processo. Se uma

pessoa é presente à Comissão pela primeira vez, na grande maioria dos

casos a Comissão suspende o processo e não aplica nenhuma sanção.

Se um consumidor não dependente é presente à Comissão uma segunda

vez, pode ser-lhe aplicada uma coima de valor aproximado de 30€ ou 40€,

e proporcionalmente mais em reincidências futuras. Outras sanções

administrativas incluem trabalho comunitário, apresentações regulares em

local designado pela Comissão, privação da gestão de subsídio ou

benefício atribuído por entidades públicas ou a participação em algumas

sessões de prevenção em grupo”.46

48. Os resultados foram extremamente satisfatórios, pois, além da

redução do número de infectados por HIV, uma grande mazela em Portugal em razão

do uso abusivo de heroína, houve uma significativa redução dos consumidores entre

os adolescentes, faixa etária mais vulnerável ao uso de drogas. Portugal, então,

tornou-se um caso objeto de estudo por pesquisadores de diversos países, muito pelo

impacto positivo da descriminalização, como revela o seguinte estudo de autoria da

Open Society Foundations:

“De acordo com um estudo de 2001,35 7.8% da população portuguesa

havia experimentado drogas pelo menos uma vez ao longo da sua vida.

De acordo com um estudo de 2007(o mais recente), esse número

aumentou para 12%. Quando o estudo foi realizado em 2001, percebeu-se

que as pessoas mais velhas na sua generalidade não tinham

experimentado drogas, com a percentagem de pessoas acima dos 55

anos que haviam experimentado drogas a ser quase nula. As drogas eram

46

Política de drogas em Portugal: os benefícios da descriminalização do uso de drogas. Open Society Foundations”.

maioritariamente consumidas por jovens. O estudo de 2007 inclui uma

nova geração que não havia sido estudada em 2001; daí que pareça que o

consumo de drogas subiu abruptamente. Cada estudo consequente, em 5,

10 ou 20 anos, independentemente da política seguida, poderá mostrar

um “aumento” dos consumos conforme mais pessoas jovens que

experimentaram drogas, pelo menos uma vez ao longo da sua vida, vão

sendo incluídas e respondem “sim” à questão acerca dos consumos de

drogas. (...). De acordo com a análise do grupo dos 15–24 anos, o

consumo de drogas aumentou de 12.4% para 15.4% com um aumento

substancial no grupo dos 20–24 anos. No entanto, o nível de consumo de

drogas no grupo mais “sensível” (15–19 anos) diminuiu de 10.8% para

8.6%. Este resultado dá esperanças aos profissionais e especialistas

Portugueses, uma vez que o período tardio da adolescência, entre os 15 e

os 19 anos, determina se uma pessoa vai consumir drogas no futuro ou

não. Além do mais, estudos realizados entre estudantes de dois grupos

etários (13–15 e 16–18) também mostraram que o consumo de drogas

decresceu desde 2001. (...) O sucesso também pode ser reclamado visto

que as taxas de reincidência são baixas, sugerindo que a aproximação

sistémica resulta. Dos indivíduos notificados para a Comissão para

Dissuasão de Lisboa nos últimos dois anos e meio, apenas 395 de 4.981

eram reincidentes, uns meros 7.9%. Outro fenómeno positivo em Portugal

é o facto de o consumo de heroína, a droga mais problemática, não ter

aumentado e vir-se a manter em níveis mais ou menos estáveis desde que

a nova política entrou em vigor. De facto, funcionários do IDT consideram

que o consumo de heroína está “sob controlo”, o que significa que não

existe uma nova epidemia e que o número de consumidores não tem

aumentado. Quanto desta tendência se deve à nova política não é claro,

uma vez que na Europa Ocidental em geral a procura de heroína também

tem vindo a estabilizar ou diminuir desde 2001. Certamente podemos

afirmar que o terrível aumento na prevalência dos consumos previsto

pelos detratores das reformas não se materializaram. Por outro lado, os

consumidores de heroína em Lisboa alegam que a oferta de heroína é

muito mais baixa do que a procura; o que pode sugerir que as operações

policiais têm sido tão ou mais efetivas do que as campanhas de prevenção

e as medidas de dissuasão. O resultado, de qualquer forma, é positivo.

Um sucesso inegável é a mudança da forma como a heroína é consumida.

Atualmente, é mais vezes fumada que injetada. Este desenvolvimento

contribuiu para um “efeito secundário” positivo: a diminuição da

percentagem de consumidores infetados com VIH positivo. Tal sucesso

pode ser atribuído à política de prevenção e redução de danos, e, acima

de tudo, à informação acerca dos riscos de injetar heroína e ao aumento

dos programas de troca de seringas e agulhas”.

49. Além do caso de Portugal, também é possível citar a decisão da

Suprema Corte da Argentina que, em 2009, ao se deparar com a prisão de cinco

jovens portando cinco cigarros de maconha, declarou a inconstitucionalidade da

criminalização do uso de drogas em razão da violação do direito à privacidade e à

autonomia pessoal, previsto no artigo 19 da Constituição argentina. No caso em tela,

a Suprema Corte não fixou quantidade mínima definidora da condição de usuário,

porém, revertendo a sua jurisprudência consolidada, fixou a impossibilidade do

consumidor de drogas ser preso e julgado pela Justiça Criminal.

"Recurso de hecho deducido por el defensor oficial de Gustavo Alberto

Fares, Marcelo Ezequiel Acedo, Mario Alberto Villarreal, Gabriel Alejandro

Medina y Leandro Andrés Cortejarena en la causa Arriola, Sebastián y

otros s/ causa n° 9080", para decidir sobre su procedencia. Considerando:

(...)

12) Que, como lo han señalado varios de los sujetos procesales que

intervinieron en estas actuaciones, la jurisprudencia de esta Corte en un

tema tan trascendente, lejos de ser pacífica, ha sido zigzagueante. Así en

"Colavini" (Fallos: 300:254) se pronunció a favor de la criminalización; en

"Bazterrica" y "Capalbo", se apartó de tal doctrina (Fallos: 308:1392); y en

1990, en "Montalvo" vuelve nuevamente sobre sus pasos a favor de la

criminalización de la tenencia para consumo personal (Fallos: 313:1333), y

como lo adelantáramos en las consideraciones previas, hoy el Tribunal

decide volver a "Bazterrica".

13) Que si bien el debate jurídico sobre la tenencia de estupefacientes

para consumo personal, aparece claramente planteado y resuelto en las

posturas antagónicas de "Montalvo" y "Bazterrica", lo cierto es que habida

cuenta el carácter institucional de la Corte Suprema, llevan hoy a dar las

razones de este nuevo cambio. En tal sentido esta Corte admitió que

ciertas normas susceptibles de ser consideradas legítimas en su origen,

pudieron haberse tornado indefendibles desde el punto de vista

constitucional con el transcurso del tiempo y el cambio de circunstancias

objetivas relacionadas con ellas (Fallos: 328: 566). 14) Que en lo que aquí

respecta han pasado diecinueve años de la sanción de la ley 23.737 y

dieciocho de la doctrina "Montalvo" que legitimó su constitucionalidad.

Este es un período, que por su extensión, permite descartar que un

replanteo del thema decidendum pueda ser considerado intempestivo. Por

el contrario, la extensión de ese período ha permitido demostrar que las

razones pragmáticas o utilitaristas en que se sustentaba "Montalvo" han

fracasado. En efecto, allí se había sostenido que la incriminación del

tenedor de estupefacientes permitiría combatir más fácilmente a las

actividades vinculadas con el comercio de estupefacientes y arribar a

resultados promisorios que no se han cumplido (ver considerando 26 de

Fallos: 313:1333), pues tal actividad criminal lejos de haber disminuido se

ha acrecentado notablemente, y ello a costa de una interpretación

restrictiva de los derechos individuales. de producción de cocaína (pág.

116); y que el uso indebido de cocaína era superior al nivel medio de las

estadísticas (pág. 123). También se pone de relieve que el país denunció

un aumento continuo del uso indebido de cannabis en los años 2000, 2001

y 2002, el informe pone de relieve que el uso indebido de tal

estupefaciente era superior al de Brasil. Allí también se refiere que en

contraste con las tendencias globales de América del Norte, en el 2002.

(...).

24) Que sin perjuicio de todo lo expuesto hasta aquí, no se puede pasar

por alto la creciente preocupación mundial sobre el flagelo de las drogas y

específicamente sobre el tráfico de estupefacientes. Esta preocupación,

que tampoco es nueva, se ha plasmado en varias convenciones

internacionales. Así en el ámbito de las Naciones Unidas tres

convenciones acuerdan principios y mecanismos internacionales en la

lucha contra las actividades vinculadas al narcotráfico. En términos

generales, ellas prevén la colaboración judicial entre los Estados; el deber

de los Estados de diseñar políticas tendientes a la erradicación de la

producción, tráfico, oferta y demanda de estupefacientes ilícitos. En lo

referente a la contención de la demanda, además de la persecución de la

oferta, se obliga a los Estados a preparar su aparato de salud pública,

asistencia y educación, de modo que asegure que los adictos puedan

recibir tratamientos físicos y psicológicos para curarse de sus adicciones.

25) Que no obstante ello, ninguna de las mencionadas convenciones

suscriptas por la Argentina la compromete a criminalizar la tenencia para

consumo personal. En efecto, las convenciones no descartan tal opción,

pero expresamente al referirse a los deberes de los Estados, se señala

que tal cuestión queda "a reserva de sus principios constitucionales y de

los conceptos fundamentales de su ordenamiento jurídico" (artículo 31,

inc. 21, de la Convención de las Naciones Unidas contra el Tráfico Ilícito

de Estupefacientes y Sustancias Psicotrópicas de 1988; artículo 22 del

Convenio sobre Sustancias Psicotrópicas de 1917; artículos 35 y 36 de la

Convención única de 1961 sobre Estupefacientes). Por su parte la Oficina

de las Naciones Unidas sobre -24- Droga y Control (UNODC), al elaborar

los principios básicos de prácticas alternativas a la prisión, incluye

expresamente, entre otros, a los consumidores de estupefacientes

(Naciones Unidas Oficina de Droga y Crimen Handbook Básic Principles

on Alternatives to Imprisonment, Criminal Justice Handbook Series, New

York, 2007).

26) Que si bien el legislador al sancionar la ley 23.737, que reemplazó a la

20.771, intentó dar una respuesta más amplia, permitiendo al juez penal

optar por someter al inculpado a tratamiento o aplicarle una pena, la

mencionada ley no ha logrado superar el estándar constitucional ni

internacional. El primero, por cuanto sigue incriminando conductas que

quedan reservadas por la protección del artículo 19 de la Carta Magna; y

el segundo, porque los medios implementados para el tratamiento de los

adictos, han sido insuficientes hasta el día de la fecha.

27) Que la decisión que hoy toma este Tribunal, en modo alguno implica

"legalizar la droga". No está demás aclarar ello expresamente, pues este

pronunciamiento, tendrá seguramente repercusión social, por ello debe

informar a través de un lenguaje democrático, que pueda ser entendido

por todos los habitantes y en el caso por los jóvenes, que son en muchos

casos protagonistas de los problemas vinculados con las drogas

(Ordoñez-Solis David, "Los Jueces Europeos en una Sociedad Global:

Poder, Lenguaje y Argumentación", en European Journal of Legal Studies,

vol. I EJLS, n° 2).

(...).

31) Que si bien como principio lo referente al mejor modo de perseguir el

delito y cuáles son los bienes jurídicos que requieren mayor protección,

constituyen cuestiones de política criminal propias de las otras esferas del

Estado, lo cierto es que aquí se trata de la impugnación de un sistema

normativo que criminaliza conductas que Crealizadas bajo determinadas

circunstanciasC no afectan a un tercero y, por lo tanto, están a resguardo

del artículo 19 de la Constitución Nacional. Consecuentemente, cabe

afirmar que el Congreso ha sobrepasado las facultades que le otorga la

Carta Magna.

33) Que es jurisprudencia inveterada de esta Corte que "la declaración de

inconstitucionalidad de un precepto de jerarquía legal constituye la más

delicada de las funciones susceptibles de encomendarse a un tribunal de

justicia y configura un acto de suma gravedad que debe ser considerado

como ultima ratio del orden jurídico" (Fallos: 315:923; 316:188 y 321:441,

entre otros).

36) Que, por todas las consideraciones expuestas, esta Corte con

sustento en "Bazterrica" declara que el artículo 14, segundo párrafo, de la

ley 23.737 debe ser invalidado, pues conculca el artículo 19 de la

Constitución Nacional, en la medida en que invade la esfera de la libertad

personal excluida de la autoridad de los órganos estatales. Por tal motivo

se declara la inconstitucionalidad de esa disposición legal en cuanto

incrimina la tenencia de estupefacientes para uso personal que se realice

en condiciones tales que no traigan aparejado un peligro concreto o un

daño a derechos o bienes de terceros, como ha ocurrido en autos. Por

ello, y oído el señor Procurador General con arreglo a lo expresado en el

dictamen de la causa V.515.XLII "Villacampa" Cque antecedeC, se

resuelve: I) Hacer lugar a la queja, declarar procedente el recurso

extraordinario, declarar la inconstitucionalidad del artículo 14, segundo

párrafo, de la ley 23.737, con el alcance señalado en el considerando final,

y dejar sin efecto la sentencia apelada en lo que fue motivo de agravio. II)

Exhortar a todos los poderes públicos a asegurar una política de Estado

contra el tráfico ilícito de estupefacientes y a adoptar medidas de salud

preventivas, con información y educación disuasiva del consumo,

enfocada sobre todo en los grupos más vulnerables, especialmente los

menoresa fin de dar adecuado cumplimiento con los tratados

internacionales de derechos humanos suscriptos por el país. Vuelvan los

autos al tribunal de origen a fin de que, por quien corresponda, se dicte un

nuevo pronunciamiento con arreglo al presente. Agréguese la queja a los

autos principales. Hágase saber y devuélvase.47

50. O Uruguai, nada obstante a descriminalização do consumo de

drogas ter ocorrido em 1994, adotou, em 2013, uma política mais ousada ao se tornar

o primeiro país a legalizar a produção, a distribuição e o consumo de drogas sob a

regulação do Estado. Julio Calzada, ex-Secretário Nacional de Drogas do Uruguai,

durante palestra realizada na Defensoria Pública em 06 de julho de 2015, relatou que,

ao assumirem o governo, verificaram o crescimento do número de homicídios

relacionados às drogas. Assim, a partir da adoção de uma estratégia que

contemplava 15 medidas e da conclusão que o contrário de insegurança é a

47

RICARDO LUIS LORENZETTI (según su voto)- ELENA I. HIGHTON de NOLASCO - CARLOS S. FAYT (según su voto) - ENRIQUE SANTIAGO PETRACCHI (según su voto)- JUAN CARLOS MAQUEDA - E. RAUL ZAFFARONI (según su voto)- CARMEN M. ARGIBAY (según su voto), disponível em http://s.conjur.com.br/dl/decisao-justica-argentina-porte-.pdf.

convivência social, não o reforço do aparato bélico, optou-se pela regulação do

mercado da maconha.

51. O Estado assumiu o controle e a regulação das atividades de

importação, produção, aquisição, a qualquer título, armazenamento, comercialização

e distribuição de maconha ou de seus derivados, cabendo ao Instituto de Regulação e

Controle de Cannabis, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, exercer o controle da

cadeia produtiva e do consumo. Portanto, atualmente, os uruguaios ou residentes no

país, maiores de 18 anos, que tenham se registrado como consumidores para o uso

recreativo ou medicinal da maconha poderão cultivar 6 (seis) plantas em sua

residência ou se associar a um dos clubes que produz e distribui a cannabis

exclusivamente para os seus membros.

52. A venda em farmácias, prevista na legislação uruguaia, está

prevista para 2016, pois está em curso um processo licitatório para seleção das

empresas concessionárias que realizarão a venda da maconha. A regulação, nos

termos admitidos pela legislação uruguaia, além permitir uma maior qualidade do

produto consumido e, por consequência, reduzir os efeitos negativos à saúde, atingirá

o mercado negro na medida em que, ao não visar ao lucro, venderá a droga com

preço extremamente competitivo.

53. As três experiências aqui relatadas – descriminalização por

alteração legislativa; descriminalização por meio de decisão judicial e regulação do

mercado da cannabis pelo Estado – devem servir de inspiração para a mudança da

política de drogas adotada pelo Brasil, baseada no war on drugs, buscando enfrentar

a questão do consumo de drogas com o olhar dos direitos humanos e da garantia dos

direitos fundamentais dos cidadãos.

54. Encerrando com uma perspectiva histórica, destaque-se a

concepção de Sigmund Freud no sentido de que a utilização de substâncias

psicotrópicas é uma forma de inibição do sofrimento ou de realização da felicidade,

proporcionando a distorção da realidade através de alterações psíquicas. Assim, na

lição do criador da Psicanálise – o qual, segundo diversos registros, usou cocaína

DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO PEDIDO

entre os 28 e os 39 anos, como estimulante e analgésico, também na crença de que a

droga podia ajudar a curar diversos problemas físicos e mentais, incluindo a

depressão -, citado por Clécio Lemos48,

“O serviço dos narcóticos na luta pela felicidade e no afastamento da miséria

é tão valorizado como benefício, que tanto indivíduos como povos lhe

reservaram um sólido lugar em sua economia libidinal. A eles se deve não só

o ganho imediato de prazer, mas também uma parcela muito desejada de

independência em relação ao mundo externo. Sabe-se que com ajuda do

´afasta-tristeza´ podemos nos subtrair à pressão da realidade a qualquer

momento e encontrar refúgio num mundo próprio que tenha melhores

condições de sensibilidade.”

55. O Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário

nº 635.659/SP, decidirá sobre a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006,

ou seja, sobre a questão da criminalização do porte de drogas para uso próprio. Tal

recurso tem origem na apelação 161.01.2009.018946-6 do Juizado Especial Criminal

de Diadema no Estado de São Paulo. A controvérsia, em síntese, põe a discussão

sobre a inconstitucionalidade de tal dispositivo sobre dois pilares:

i. violação ao princípio da intervenção mínima e da lesividade que

impõe ao legislador ordinário vedação sobre as condutas que poderão

ser consideradas crimes. Especialmente porque no caso do art. 28,

não há lesão à saúde pública e ainda que houvesse, não pode

proteger bem jurídico alheio.

ii. violação ao direito à intimidade e a liberdade individual.

48

Clécio Lemos et al, “Drogas: Uma Nova Perspectiva”, org. Sergio Salomão Schecaira, São Paulo, IBCCrim, 2014

56. Argumentos que que foram perfilhados pelo Tribunal de Justiça de

São Paulo:

“O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização

primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável

insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta

hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os

princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada

e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados

pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos

ratificados pelo Brasil”49

57. Com efeito, diversas decisões vêm se multiplicando por todo o

país, como, por exemplo, as que seguem:

“É que o porte de drogas para consumo pessoal, imputado ao réu na

denúncia, não é crime, pois constitui conduta atípica em face da

inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006. Com efeito, a

criminalização primária do porte de entorpecentes para uso pessoal é

inconstitucional, porque (1) o artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 não descreve

conduta hábil para produzir lesão que invada os limites da alteridade, o que

implica afronta ao princípio constitucional da lesividade, (2) viola, também, os

princípios constitucionais da igualdade, inviolabilidade da intimidade e vida

privada, pro homine e respeito à diferença, corolários do princípio da

dignidade humana, albergados pela Constituição Federal e por tratados e

convenções internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, e (3)

contraria, ainda, os princípios constitucionais da subsidiariedade, idoneidade

e racionalidade, bem como os critérios de proibição de criminalização

simbólica, promocional ou com objetivo de imposição de pautas morais, os

quais, no âmbito da criminalização das condutas, devem ser observados em

um Estado de Direito Democrático, que está sujeito à principiologia de

garantias do sistema internacional de Direitos Humanos.”50

“Em suma, deixando a hipocrisia de lado, não afetando a conduta incriminada

pelo artigo 28 da Lei 11.343/2006 bens jurídicos de terceiros, e sendo lícita a

prática da autolesão, não guardando tal ação pertinência com a saúde ou

incolumidade pública, estamos no âmbito do direito constitucionalmente

assegurado à dignidade humana, à liberdade, à privacidade e à intimidade de

49

Inteiro teor disponível em http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/RE%20635659.pdf 50

(TJSP. JECRIM-CAMPINAS Proc. Nº 2.564/2013)

cada cidadão, inexistindo bem jurídico concreta e legitimamente tutelável;

logo, carecendo a conduta tipificada de ofensividade, e violando a

incriminação os supra citados princípios constitucionais, carece aquele tipo

penal de respaldo na Carta Maior, impondo-se o reconhecimento de sua

inconstitucionalidade, o que ora declaro.”51

58. Reconhecendo a importância da questão, decidiu o STF pela

Repercussão Geral do RE:

REPERCUSSÃO GERAL NO RE 635.659/SP

“Trata-se de recurso extraordinário interposto pelo Defensor Público-Geral do

Estado de São Paulo contra acórdão do Colégio Recursal do Juizado

Especial Cível de Diadema/SP que, por entender constitucional o art. 28 da

Lei 11.343/2006, manteve a condenação pelo crime de porte de drogas para

consumo pessoal. Neste recurso extraordinário, fundamentado no art. 102,

inciso III, alínea a, da Constituição Federal, alega-se violação ao artigo 5º,

inciso X, da Constituição Federal. O recorrente argumenta que o crime (ou

a infração) previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006 ofende o princípio da

intimidade e vida privada, direito expressamente previsto no artigo 5º, X

da Constituição Federal e, por conseguinte, o princípio da lesividade,

valor basilar do direito penal. (fl.153).Observados os demais requisitos de

admissibilidade do presente recurso extraordinário, passo à análise da

existência de repercussão geral.

No caso, a controvérsia constitucional cinge-se a determinar se o preceito

constitucional invocado autoriza o legislador infraconstitucional a tipificar

penalmente o uso de drogas para consumo pessoal. Trata-se de discussão

que alcança, certamente, grande número de interessados, sendo necessária

a manifestação desta Corte para a pacificação da matéria.

Portanto, revela-se tema com manifesta relevância social e jurídica, que

ultrapassa os interesses subjetivos da causa. Nesse sentido, entendo

configurada a repercussão geral da matéria constitucional.”

59. Tendo a Corte Suprema considerado, até aquele momento, a

constitucionalidade da norma prevista no art. 28 da Lei 11.343/06, o reconhecimento

51

(TJRJ. Proc. Nº Processo nº 0021875-62.2012.8.19.0208)

deste precedente, no mínimo, acena para uma mudança entendimento do

Tribunal Supremo.

60. Neste sentido, à sobredita comunidade vulnerável de

usuários de drogas, seria imposto um gravame maior do que o estritamente

necessário, enquanto o STF não se posiciona pela constitucionalidade do

mencionado artigo. A prisão ou o encaminhamento para as Delegacias das

pessoas que portem drogas para uso próprio – dada a sinalização do Excelso

Pretório com o reconhecimento da Repercussão Geral – deixou de amparar-se

na presunção de constitucionalidade da norma penal em branco prevista no art.

28 da Lei de Drogas.

61. O instituto da Repercussão Geral (RG) nasceu com a Reforma

do Judiciário que concluiu um novo requisito para os Recursos Extraordinários. Para o

Exmo. Ministro GILMAR MENDES, trata-se de um instrumento de maximização

objetiva dos recursos extraordinários.

62. Tem como objetivos principais a delimitação da competência do

Tribunal para as grandes causas que transcendem o interesse individual a fim de

estabelecer um programa autorreferencial. Um de seus requisitos é a comprovação

da relevância jurídica do fato, o que restou presente na questão constitucional

suscitada diante do fato concreto (porte para uso próprio de dois gramas de

maconha). Reconhecida a RG, abre-se caminho para a revisão da jurisprudência

anterior.

63. Na apreciação do HC 127986/RS, o Exmo. Ministro LUÍS ROBERTO

BARROSO salientou que

“12. (...) A forte repressão às drogas, a criminalização do consumo da

maconha e a ausência de critérios legais objetivos para diferenciar o usuário

e o pequeno e o grande traficante têm produzido consequências mais

negativas sobre as comunidades diretamente dominadas pelas

organizações criminosas e sobre a sociedade em geral, do que aquelas

produzidas pela droga sobre os usuários. Essa política tem importado

em criminalização da pobreza, em aumento do poder do tráfico e em

superlotação dos presídios, sem gerar benefícios reas para a redução da

criminalidade e o aumento da segurança pública.

13. Em verdade, a política designada de “guerra às drogas”, inclusive à

maconha, liderada pelos Estados Unidos, é hoje considerada um fracasso por

diversos organismos e entidades internacionais. Relatórios emitidos pela

Comissão HIV e Direito, Organização dos Estados Americanos – OEA e

Comissão de Combate às Drogas na África Ocidental, apenas para citar

alguns, afirmam a necessidade de mudanças no enfrentamento do

problema, com foco na repressão dos verdadeiros responsáveis pela

traficância, e não nos usuários, mulas e pequenos traficantes. Em linha

com essas recomendações, diversos Estados norteamericanos, alguns

países da Europa, como Portugal, e até países da América Latina, como o

Uruguai, já trilham caminhos diversos para o tratamento da questão das

drogas.

14. Também no Brasil talvez seja o momento de se pensar em uma

correção de rumos. O simples fato de o tráfico de entorpecentes representar

o tipo penal responsável por colocar o maior número de pessoas atrás das

grades (cerca de 26% da população carcerária total), sem qualquer

perspectiva de eliminação ou redução do tráfico de drogas, já indica que a

atual política não tem sido eficaz.” grifamos

64. Na esteira do que já fora ventilado no item 55, há, além do aceno

advindo com o reconhecimento da RG no RE 635.659/SP, a alusão à necessidade de

uma “correção de rumos” manifestada em fundamentação à ordem concedida de

ofício ao paciente do já mencionado habeas. Além disso, é clara a menção a

comunidades e ao coletivo de usuários. Assim sendo, não seria justo e nem

proporcional obrigar a pessoa humana a suportar o ônus do de um processo

criminal cuja conduta esta sendo revista pelo Tribunal Supremo.

65. Especialmente se levados em consideração o atual estado de

arte da matéria, muito bem explicado por V. Exa. ao decidir nos do processo n.º

0129278-61.2014.8.19.0001:

“Além disso, o tratamento essencialmente militarista e repressor dado à

questão em nosso país por inspiração da politica antidrogas norte americana

adotada em meados do século passado é hoje seriamente questionado e

revisto até pelos EUA no seu âmbito interno, tanto que vários Estados já

legalizaram o uso da maconha, seja para fins medicinais (19 Estados, sendo

que o último foi o de Nova York), especialmente para pacientes com câncer,

glaucoma, epilepsia e até insônia ou dores nas costas, como ocorre na

Califórnia, seja para os meramente recreativos (Colorado e Washington).

Nestes, o consumo de pequena quantidade, algo em torno de até 30g (trinta

gramas), é permitido para maiores de 21 anos. Vários outros países também

têm seguido esse mesmo caminho de legalizar o uso medicinal e/ou

recreativo da maconha, como é caso de Portugal, Espanha, Canadá, Uruguai,

Holanda e Israel, tudo à consideração de que os benefícios superam os

malefícios e a sua mera proibição, a par de indisfarçavelmente hipócrita,

só tem contribuído para o aumento do seu uso e da criminalidade que

ronda uma atividade clandestina. A nossa realidade, de fato, tem imposto a

constatação de que essa política criminalizadora, que destina vultuosíssimos

recursos econômicos e humanos na chamada ´guerra às drogas´, não tem

apresentado eficácia e o crescimento do narcotráfico e dos crimes a este

correlatos tem sido constante, mesmo com as nossas prisões cada vez

mais abarrotadas de pessoas, em regra extremamente humildes, ligadas

em maior ou menor grau a essa lucrativa atividade, que vem intensificando o

recrutamento de menores de idade, facilmente cooptados justamente pela

sua completa marginalização diante da ausência de alternativas, tudo

decorrente da inexistência de políticas públicas mínimas de prevenção,

educação, tratamento e inserção. Esse quadro nos remete à advertência de

que ´pensar eticamente a questão das drogas é tarefa urgente no contexto do

moralismo ditatorial, que tem validade como falsa consciência, a idéia de uma

verdade aceita por todos e que vige apenas porque repetida, sustentando as

coisas como elas são.” Grifamos

66. Acrescente-se que o Judiciário fluminense já decidiu pela

possibilidade de se suspender o processo no caso de reconhecimento de RG, não só

os recursos. Neste sentido, a decisão do TJRJ que consta no aviso 81:

“Avisa que todos os recursos que tenham por objeto da lide a discussão

sobre os expurgos inflacionários advindos, em tese, dos Planos econômicos

Bresser e Verão ficam sobrestados, observando que o objeto da

repercussão geral não alcança as ações em sede executiva (decorrente de

sentença transitada em julgado) e as que se encontrem em fase instrutória e

dá outras providencias.”

67. Nesta exata medida, se é possível o sobrestamento dos recursos

que protegem direitos econômicos, com mais razão se o sobrestamento vem a

resguardar o direito de liberdade. E aqui ainda incide a questão da máxima

efetividade de proteção ao direito de liberdade.

68. Especialmente quando o fato discutido é reconhecidamente

atípico, tem-se como consequência prática a rejeição da denúncia penal. Conforme,

aliás, já decidira Vossa Excelência no processo já mencionado no item 34:

“Diante do exposto, seja à vista dos princípios da intervenção penal mínima

do Estado, da lesividade e também o da alteridade ou transcendentalidade,

seja pelo postulado da insignificância dirigido ao magistrado que aplica a lei

ao caso concreto, tem-se que sequer a persecução penal atinente a essa

conduta descrita no referido art. 28 da lei de Drogas - com toda a

consequente mobilização da já saturada estrutura judiciária - se justificaria no

processo em exame, visto como foi que a norma que a tipifica é

inconstitucional por violar, dentre outros, especialmente o art. 5º, inciso X, da

nossa Constituição Federal. Assim, por atípica a conduta em exame, impõe-

se a REJEIÇÃO DA DENÚNCIA, o que ora se faz, com fundamento na norma

do art. 395, III, do Código de Processo Pena”

69. Eis as razões apresentadas para que a ordem seja deferida a fim

de que nenhuma pessoa que porte drogas na forma do art. 28 da Lei 11.343/06, sofra

o constrangimento ilegal de ser levado para a Delegacia a fim de que seja lavrado

termo circunstanciado.

70. A concessão da ordem, afirmar-se-ia como política pública de

inserção na exata medida em que impede a exclusão, dado o caráter dicotômico

e dialético de tais noções (inclusão/exclusão)52, refreando o processo de

marginalização – bem compreendido, um dos objetivos fundamentais da

República (CR/88, art. 3.º, III).

52

Neste sentido, v. JOCK YOUNG. A Sociedade Excludente.

DA POSTULAÇÃO

LIMINARMENTE

71. Presentes que estão a PLAUSIBILIDADE E APARÊNCIA DO DIREITO

ALEGADO - eis que reconhecida a Repercussão Geral pelo STF da constitucionalidade

do porte de drogas para uso pessoal -, impende seja CONCEDIDA MEDIDA LIMINAR, com

a expedição do competente SALVO-CONDUTO, a fim de determinar que as

autoridades impetradas – com a imposição do dever que estas comuniquem a

presente ordem de habeas corpus a seus subordinados hierárquicos –

abstenham-se de realizar a condução coercitiva de pessoas que estejam

portanto droga para uso próprio à Delegacia de Polícia e, caso conduzidas, não

seja lavrado o Termo Circunstanciado pela Autoridade Policial.

72. Por todo o exposto, requer o Impetrante, se digne V. Exa. a

receber o pedido ora apresentado e, diante da flagrante inconstitucionalidade

reconhecida por este juízo bem como pela questão da Repercussão Geral do STF,

que demonstra a PROBABILIDADE DO DIREITO PLEITEADO e do claro e irreversível

PREJUÍZO SOFRIDO PELOS PACIENTES COM A DEMORA NA ENTREGA DA PRESTAÇÃO

JURISDICIONAL, DEFERIR MEDIDA LIMINAR.

NO MÉRITO

73. No mérito, pugna-se de V.Exas. a CONCESSÃO DA PRESENTE

ORDEM DE HABEAS CORPUS, consolidando-se a liminar nos moldes postulados,

com a expedição do competente SALVO-CONDUTO definitivo.

É o que se espera e requer.

Rio de Janeiro, 14 de Julho de 2015.

ANA FLÁVIA SZUCHMACHER VERÍSSIMO LOPES

EMANUEL QUEIROZ RANGEL

DANIEL LOZOYA CONSTANT LOPES

DANIELLA CAPELLETI VITAGLIANO

PEDRO PAULO LOURIVAL CARRIELLO

RENATA TAVARES DA COSTA

RICARDO ANDRÉ DE SOUZA