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Euclides da Cunha, intérprete do Brasil: O diário de um povo esquecido Maria Regina Barcelos Bettiol Antonio Hohlfeldt

Euclides da Cunha, intérprete do Brasil: O diário de um povo

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  • Euclides da Cunha, intrprete do Brasil:O dirio de um povo esquecido

    Maria Regina Barcelos BettiolAntonio Hohlfeldt

  • Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

  • ChancelerDom Dadeus Grings

    ReitorJoaquim Clotet

    Vice-ReitorEvilzio Teixeira

    Conselho EditorialAna Maria Lisboa de MelloBettina Steren dos SantosEduardo Campos PellandaElaine Turk Fariarico Joo HammesGilberto Keller de AndradeHelenita Rosa FrancoIr. Armando Luiz BortoliniJane Rita Caetano da SilveiraJorge Luis Nicolas Audy PresidenteJurandir MalerbaLauro Kopper FilhoLuciano KlcknerMarlia Costa MorosiniNuncia Maria S. de ConstantinoRenato Tetelbom SteinRuth Maria Chitt Gauer

    EDIPUCRSJernimo Carlos Santos Braga DiretorJorge Campos da Costa Editor-Chefe

  • Maria Regina Barcelos BettiolAntonio Hohlfeldt

    (Orgs.)

    Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    Porto Alegre, 2011

  • EDIPUCRS, 2011

    Rodrigo Valls

    Imagem de dominio pblico disponvel em www.brasil.gov.br

    Jlia Roca dos Santos

    Rodrigo Valls

    C972 Euclides da Cunha, intrprete do Brasil : o dirio de um povo esquecido [recurso eletrnico] / Maria Regina Barcelos Bettiol, Antonio Hohlfeldt (Orgs). Dados eletrnicos Porto Alegre : EDIPUCRS, 2011. 104 p.

    Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: ISBN 978-85-397-0129-2 (on-line)

    1. Literatura Brasileira Histria e Crtica. 2. Cunha, Euclides da Crtica e Interpretao. I. Bettiol, Maria Regina Barcelos. II. Hohlfeldt, Antonio.

    CDD 869.9454

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas grficos, microflmicos, fotogrficos, reprogrficos, fonogrficos, videogrficos. Vedada a memorizao e/ou a recuperao total ou parcial, bem como a incluso de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibies aplicam-se tambm s caractersticas grficas da obra e sua editorao. A violao dos direitos autorais punvel como crime (art. 184 e pargrafos, do Cdigo Penal), com pena de priso e multa, conjuntamente com busca e apreenso e indenizaes diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

  • A natureza compraz-se em um jogo de antteses. Euclides da Cunha

    Algum conseguiria imaginar que uma mesma obra possa ser estudada nos cursos de Letras, de Jornalismo, de Histria, de Geografia, de Antropologia (para comear a lista) e no tenha sua discusso esgotada, mesmo tendo sido escrita h mais de 100 anos? Pois exatamente este o caso de Os sertes, de 1902, obra nascida das anotaes e observaes de Euclides da Cunha, durante sua incurso no serto baiano, onde ocorria a chamada Guerra de Canudos (ou Revoluo de Canudos ou Insurreio de Canudos), confronto entre um movimento popular de fundo sciorreligioso, liderado por Antnio Conselheiro, e o Exrcito da Repblica, que durou de 1896 a 1897. Euclides da Cunha era professor da Escola Militar e escrevia regularmente para alguns jornais, interessado na discusso dos problemas brasileiros. Em 1897, como colaborador de O Estado, lana um artigo sobre os fatos de Canudos, o que o leva a ser convidado por Jos de Mesquita para ser correspondente do jornal em Canudos, dando incio, assim, a uma trajetria que culminar com a publicao de Os sertes. Minucioso observador, Euclides divide seu livro em 3 partes: A Terra, O Homem e A Luta, construindo um quadro que pe em relevo os contrastes entre as culturas do homem litorneo e a do homem interiorano. Amparado em extensa bibliografia, que vai de Jlio Csar a Vitor Hugo, Euclides da Cunha apresenta-nos uma obra praticamente impossvel de ser enquadrada numa nica disciplina, tamanha a quantidade de engastes sociolgicos,

    histricos, etnogrficos, dos quais salta o valor literrio, fruto de seu apuro de linguagem e de sua capacidade imaginativa, que igualmente complicam a tentativa de enquadramento num nico gnero: romance histrico ou crnica. Eis que esta coletnea de ensaios vem para celebrar o legado deixado por Euclides da Cunha e homenage-lo no centenrio de sua morte, ocorrido em 2009, pois sua obra abre o sculo XX, j antevendo a dualidade caracterstica do brasileiro, sem ter perdido a atualidade neste sculo XXI. Ao mesmo tempo em que constri seu texto a partir da tcnica apurada, tanto nas concepes cientficas quanto na qualidade descritiva, no abandona a paixo por representar a realidade que v atravs de um olhar humanista e de uma linguagem potica.

    Prof. Dra. Mrcia Ivana de Lima e Silva (UFRGS)

  • SUMRIO

    Apresentao ..........................................................................................................................................................................................9 Flvio Loureiro Chaves

    Introduo .................................................................................................................................................................................................12 Maria Regina Barcelos Bettiol Antonio Hohlfeldt

    O reprter Euclides da Cunha em Canudos .........................................................................................................................................16 Antonio Hohlfeldt

    Numa volta do serto, aqueles desconhecidos singulares ..................................................................................................................33 Antnio Marcos Vieira Sanseverino

    a perspectiva crtica de Os Sertes ........................................................................................................................................................46 Gnia Maria Gomes

    Os Sertes, uma experincia editorial .....................................................................................................................................................54 Luiz Armando Capra Filho O repertrio terico de Os Sertes: ensaio sobre o drible euclidiano ........................................................................................63 Maral de Menezes Paredes

    a escrita da terra e da gente brasileira nos textos de Euclides da Cuha ......................................................................................80 Maria Regina Barcelos Bettiol

    Depoimentos

    Os Sertes est em todo lugar ...........................................................................................................................................................90 Daniel Weller Contrastes e confrontos ..........................................................................................................................................................................93 Diego Lock Farina

    Eu e os Sertes .......................................................................................................................................................................................95 Fernando Malheiros Filho

    Os Sertes: Sua influncia e importncia na brasilidade ............................................................................................................98 Luciano Marcio Prates dos Santos

    Nota sobre os autores ...........................................................................................................................................................................102

  • Quem no sabe venerar seus mestres, pouco ou nada aprendeu. Dedi-camos, pois, este livro ao mestre de todos ns: Flvio Loureiro Chaves, que continua a incentivar e a ensinar a seus discpulos.

  • 9Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    Os grandes textos so lidos sob ngulos diversos nas alternncias da Histria. justamente isto que garante sua permanncia e pode torn-los clssicos (na acepo em que Italo Calvino emprega o termo). H casos extremos. Antes que Borges encontrasse em Melville o autor duma trgica simbologia csmica, muitos leram Moby Dick como um maante tratado sobre a pesca da baleia. Na poca da publicao de Os Demnios era quase impossvel deixar de ver no romance de Dostoievski um explosivo discurso pan-eslavista. E o que dizer das aventuras da Alice de Lewis Carroll - stira corrosiva sociedade vitoriana, coleo de histrias infantis ou territrio privilegiado para a psicanlise ps-freudiana?

    Na literatura brasileira, Os sertes constitui um desses casos extremos. A primeira verso no mais do que uma srie de reportagens enviada por Euclides da Cunha para O Estado de So Paulo em 1897, cobrindo a campanha que exterminou a revolta dos jagunos aquartelados dentro dum msero arraial nas paragens do fundo nordestino. Restou tambm um dirio com as anotaes e esboos cartogrficos desenhados em plena conflagrao.

    Dada a repercusso dos acontecimentos, o escritor transformou sua matria prima em alentado livro. Ocorre que a redao se estendeu por cinco anos, tempo suficiente de

    decantao; e, em 1902, a perspectiva descortinada j outra. Inclui uma complexa investigao antropolgica. Em parte escorado na cincia do sculo XIX e por outra parte manejando sua prodigiosa capacidade de observao, Euclides da Cunha oferece uma leitura dialtica da formao brasileira: as cidades do litoral em confronto ao serto arcaico, o exrcito blindado, mas impotente diante da guerrilha armada pelo sertanejo, o desastre de Canudos rasgando uma fenda intransponvel entre civilizao e barbrie. No se trata agora duma reportagem, mas de um ensaio. O resultado mudou inteiramente a maneira de ver o pas, estabelecendo um novo patamar, e constitui o precedente incontornvel de abordagens sociolgicas que s apareceriam na metade do sculo XX: Os Dois Brasis de Jacques Lambert, Brasil, Terra de Contrastes de Roger Bastide, Formao do Brasil Contemporneo de Caio Prado Jnior.

    Acrescente-se que Euclides da Cunha, republicano da primeira hora, tambm no recusou uma polmica incendiria. Declara abertamente que a submisso manu militari dos beatos de Antnio Conselheiro constituiu um genocdio, nada mais, nada menos. Seu livro havia de ser um livro de vingana, atribuindo voz queles que no a tem. Posicionou-se assim ao lado dos vencidos, jagunos e fanticos. Tambm era isto Os sertes - uma densa reflexo

    APRESENTAO

    Um livro polidrico

    Flvio Loureiro Chaves

  • 10CHAVES, F. L. Apresentao

    sobre o embate entre razo e loucura. Tocou assim um nervo exposto e sempre latejante da histria humana. Estamos lendo a crnica de Canudos, mas fcil atualiz-la noutras referncias: Auschwitz, o Gulag, Ruanda, Abu Graib e Guantanamo, a Faixa de Gaza.

    Menciono esta pluralidade de leituras para enfatizar ainda outra. A emergncia da Amrica Latina no vasto cenrio da literatura ocidental um fenmeno da modernidade e s aconteceu na metade do sculo XX. Resguardadas as identidades de cada autor e de cada texto, predominou um trao marcante: a universalidade da regio. Tenham feito crnica histrica, denncia ideolgica ou nomeao das tipologias locais, os narradores souberam tudo verbalizar numa linguagem que ofereceu ao imaginrio novos territrios da fico. Alguns exemplos paradigmticos dentre muitos outros: o desolado llano mexicano de Juan Rulfo, o caribe do cubano Alejo Carpentier, o chaco paraguaio de Augusto Roa Bastos, a cidade microcsmica que a Macondo de Gabriel Garca Mrquez, o polgono das secas de Graciliano Ramos, o continente de rico Verssimo e os gerais de Joo Guimares Rosa. Delineando uma viso panormica do momento histrico, Otto Maria Carpeaux afirmou que a conscincia do mundo residia na expresso simblica desses espaos imaginrios.

    Publicado no alvorecer do sculo, o texto de Euclides da Cunha precedeu em algumas dcadas todos os que mencionei, e nomeou (quero dizer, universalizou) um territrio no qual ningum trafegaria impune da em diante: o serto, Os sertes. Diga-o outro narrador que,

    celebrando a antecedncia, inaugurou um soberbo dilogo intertextual - o Mario Vargas Llosa de A Guerra do Fim do Mundo. A engrenagem do tempo pode ter corrodo a reportagem, o ensaio antropolgico, o discurso poltico. Sobrou e permanece a literatura. Os sertes um clssico. Continuar a ser lido e desdobrado e noutras dimenses.

    precisamente isto o que se vai encontrar na reunio dos estudos hoje apresentados por Antonio Hohlfeldt, Antnio Marcos Vieira Sanseverino, Daniel Weller, Diego Lock Farina, Fernando Malheiros Filho, Gnia Maria Gomes, Luciano Marcio Prates dos Santos, Luiz Armando Capra Filho, Maral de Menezes Paredes, Mrcia Ivana de Lima e Silva e Maria Regina Barcelos Bettiol. Cada um deles escolheu um aspecto diferente na interpretao do discurso euclidiano, mas todos visam a ilumin-lo sob o vis de novas questes e novas propostas tericas aportadas pela mar da atualidade. Afinal, Os sertes um texto polidrico, tanto mais desafiador quanto mais se multiplica a diversidade das leituras.

  • 11Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

  • Discurso de recepo da Academia Brasileira de Letras

    Nos trabalhos de Euclides da Cunha est sempre presente o Brasil e justamente aquele Brasil que ele sabia esquecido, abandonado, porque sofria diretamente as consequncias do que tnhamos de profundamente colonial em ns (...) S um homem com os estudos de Euclides da Cunha, e com a sua paixo pela verdade, poderia transpor para as pginas dos livros, e ainda lhes dar grandeza literria, que era uma forma de engrandec-las, aquelas mazelas a que jamais ficou insensvel. As deficincias de suas interpretaes, assim, vinculadas aos instrumentos de anlise de que se apropriou e utilizou, desaparecem ante a importncia de uma posio que sempre assumiu integralmente, devotadamente. Euclides da Cunha , em verdade, o iniciador de uma interpretao do Brasil

    fundada no conhecimento direto e exato da verdadeira situao do homem e da terra. Um iniciador a que a nfase concede os seus favores e os seus desfavores, em cujas pginas passa sempre um sopro apaixonado de vida, um generoso calor humano, e que tm uma consistncia literria perdurvel, apesar das tortuosidades do estilo e das impropriedades de alguns conceitos.

    Histria da Literatura Brasileira - Nelson Werneck Sodr

    Em 2009, ano em que celebramos o centenrio do escritor, funcionrio pblico, reprter de guerra, socilogo, cronista, engenheiro e viajante Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, mais conhecido nos anais da literatura e da histria brasileira como Euclides da Cunha, organizamos uma srie de conferncias, onde discutimos aspectos da obra deste escritor exponencial da Literatura Brasileira, autor de relevo nos estudos da cultura brasileira e sul-americana.

    INTRODUO

    Escritor por acidente - eu habituei-me a andar terra-a-terra, abreviando o esprito contemplao dos fatos de ordem fsica adstritos s leis mais simples e gerais; e como nesta ordem de fenmenos que se aferem, mais de pronto, as transformaes contnuas da nossa inteligncia, vai-se-me tornando mais e mais difcil esse abranger os caracteres preexcelentes das cousas, buscando-lhes as relaes mais altas e formadoras das impresses artsticas, ou das snteses estticas.

    Euclides da Cunha

  • 13Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    No Brasil de 1900, a nossa intelectualidade era intoxicada pelo que Brito Broca1 (1960, p.91) costumava chamar de parisina, uma espcie de droga que fazia com que os nossos Homens de Letras delirassem, sonhassem, vestissem e escrevessem conforme as receitas parisienses. Euclides da Cunha, com sua forte personalidade e estilo inconfundvel, caminhava em sentido contrrio, ou seja: desejava percorrer o territrio do Acre, acalentava esse sonho de pioneiro, de desbravar o territrio brasileiro e, desta forma, dizia estar servindo o seu pas.

    Broca (1960, p.100) esclarece que, quando seus colegas perguntaram-lhe se gostaria de visitar Paris, Euclides da Cunha respondia que sim, mas para lecionar histria-sul americana, para ensinar aos franceses a histria da nossa civilizao e no para aprender simplesmente literatura e cultura francesa, como faziam seus pares. Neste sentido, a proposio de Euclides ousada para aquela poca, j que est a estimular um intercmbio cultural entre as duas civilizaes, e no apenas a assimilar a cultura estrangeira. Para muitos autores, com os textos de Euclides nasce a conscincia de um americanismo, de um sentimento de pertena Amrica Latina.

    Cabe ressaltar que esse processo de descolonizao , primeiramente, observado na linguagem. O autor portugus Pereira Sampaio Bruno (apud CUNHA, 1975, p.4-5), ao fazer seu comentrio sobre a obra Contrastes e confrontos, de 19072, afirma que Euclides da Cunha foi um dos primeiros escritores a escrever no portugus da Amrica e a transmitir colorido nossa lngua ao inserir 1 BROCA, Brito. A vida literria: 1900. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1960.2 CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. So Paulo: Cultix,1975.

    dialetos indgenas e africanos e suas fuses, ao valorizar a linguagem popular do serto, a terminologia geogrfica, os termos tcnicos que ele introduziu com vigor na prosa portuguesa, o vocabulrio arcaico de mistura com o novo: O pensamento autnomo, pessoal e prprio, a forma literria insignemente perfeita, algumas pequenas obras-primas de preciso, e em Os sertes, as sessenta pginas sobre a terra, [est] entre o que de mais poderoso se tem escrito em prosa portuguesa (...) e de um portugus no agastado, porm, receptivo, cheio de entusiasmo pelo valor novo que se firmava no territrio lingustico e cultural em que ambos se movimentavam de maneira inteiramente diversa (CUNHA, 1975, p.30).

    Inicia-se, pois, lentamente, um processo de descolonizao literria e cultural evidentemente muito insipiente, se pensarmos que os escritores da Repblica Velha, da qual fazia parte Euclides da Cunha, so herdeiros da mentalidade lusitana colonial, expressam em seus textos hbitos, comportamentos e ideias do perodo precedente Repblica. Esse processo de mudana de mentalidade - de que Euclides da Cunha participou com destaque - no algo que se faa do dia para noite, mas obra de muitas geraes.

    O principal alvo da crtica contempornea ao trabalho de Euclides da Cunha so as teorias arianizantes3, 3 No sculo XIX, o conde de Gobineau, no ensaio sobre a Desigualdade das raas humanas, sustentou que, da raa ariana, nasceu a aristocracia que dominou a civilizao europia e cujos descendentes eram os senhores naturais das outras raas inferiores. Essa crena de que a miscigenao gera indivduos inferiores aos de raa pura influenciou fortemente Euclides da Cunha e sua gerao. A prpria cincia tratou de contestar, atravs de seus estudos de gentica, antropologia, sociologia, apenas para citar alguns, a impossibilidade de qualquer superioridade racial.

  • 14MBETTIOL, M. R. e HOHLFELDT, A. Introduo

    baseadas em conceitos raciais europeus, presentes nos textos do autor. Conforme Gilberto Freyre4:

    Tais preconceitos (arianizantes) foram gerais no Brasil intelectual de 1900: envolveram s vezes o prprio Silvio Romero, cuja vida de guerrilheiro de idias est cheia de contradies. S uma exceo se impe de modo absoluto: a de Alberto Torres, o primeiro, entre ns, a citar o Professor Franz Boas e suas pesquisas sobre raas transplantadas. Outra exceo: a de Manuel Bonfim, turvando, entretanto, nos seus vrios estudos, por uma como mstica indianista ou indianfila semelhante de Jos de Vasconcellos, no Mxico (FREYRE, 1944, p.41).

    Essas teorias arianizantes, que poca de Euclides da Cunha se pretendiam cientficas, foram depois desacreditas pela prpria cincia. Como bem exps Gilberto Freyre, representam um fenmeno de poca. Certamente, no podemos pensar a identidade nacional como a pensava Euclides da Cunha, ou seja, dentro da perspectiva de um padro racial e cultural que exclui a maioria dos brasileiros que nascem e vivem no Brasil e sem a contribuio do estrangeiro, em especial dos imigrantes. Isto seria reforar a tese, ou, melhor dizendo, recriar o famoso mito da identidade nica. Hoje, no Brasil, fazemos elogio miscigenao, diferena, proclamamos 4 FREYRE, Gilberto. Em perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro: Jos Olmpio, 1944.

    com orgulho a nossa identidade mestia, a nossa diversidade cultural. Neste sentido, a obra de Euclides da Cunha constitui-se como um marco para refletirmos como se constroem esteretipos e preconceitos, como esses modelos de representao se disseminaram em nosso imaginrio nacional.

    Pensando o Brasil pela perspectiva oficial, ou seja, pelo vis do oficialato, no esqueamos que Euclides da Cunha fazia parte do establishment, a fisionomia do esquecido e miservel povo brasileiro comea a se configurar nas pginas de nossa literatura, a partir dele.

    Ao produzir Contrastes e confrontos, o escritor redesenha a cartografia nacional, sublinhando as especificidades e as identidades locais de cada regio do nosso territrio. Essa mudana de foco em sua anlise ter incidncia em nossa produo cultural. Tornar-se- visvel no movimento do Romance de 30 e ter ainda consequncias diretas nos estudos literrios como, por exemplo, na obra Uma interpretao da Literatura Brasileira: Um arquiplago cultural, de Vianna Moog5, momento em que a historiografia literria comea a analisar a Literatura Brasileira, a partir da sua diversidade cultural.

    Contudo, um dos maiores traos da contemporaneidade da obra euclidiana, e que vale a pena ser retomado, o aspecto ecolgico, os seus estudos sobre a Amaznia. Entre outros mritos, Euclides foi um dos primeiros brasileiros a pisar na regio amaznica e a destacar a sua importncia em relao ao restante do territrio brasileiro. Para os partidrios da ecocrtica, que estuda as relaes entre literatura e meio 5 MOOG, Vianna. Uma interpretao da Literatura Brasileira: Um arquiplago cultural. POA: Instituto Estadual do Livro: CORAG,2006.

  • 15Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    ambiente fsico, a obra de Euclides da Cunha constitui-se como referncia obrigatria. Em sendo assim, com muita propriedade e justia que Nelson Werneck Sodr concede ao escritor Euclides da Cunha o ttulo de intrprete do Brasil. Mltiplas interpretaes sobre o Brasil emergem das pginas euclidianas. Seus textos so matriciais, fundadores, para pensarmos a cultura brasileira. Neste livro, pretendemos desdobr-los, em novas possveis interpretaes. O conjunto de ensaios aqui reunidos viajam pelo Brasil, seguindo o percurso intelectual de Euclides da Cunha.

    Esperamos que os trabalhos aqui reunidos, tanto tempo depois de vivida a saga de Canudos e de sua construo narrativa, bem como a mltipla obra de Euclides da Cunha, possa ajudar a repensar o pas e a prpria significao da produo intelectual desse grande escritor, um dos maiores que nosso pas j produziu.

    Maria Regina Barcelos BettiolAntonio Hohlfeldt

    (Organizadores)

  • 16MBETTIOL, M. R. e HOHLFELDT, A. Introduo

    Em1texto recente, que faz a reviso da historiografia brasileira, Jacqueline Hermann afirma que Canudos foi, seguramente, o movimento de religiosidade popular mais estudado entre todos os inmeros exemplos j conhecidos no Brasil (HERMANN in FERREIRA; DELGADO, 2006, p. 138).

    Do mesmo modo, estudiosos do fenmeno miditico no pas destacam que a Guerra de Canudos foi, no Brasil, o acontecimento jornalstico mais importante do ano de 1897 (SARMATZ, 1995). Walnice Nogueira Galvo, que mapeou toda a cobertura dada ao evento, chega a registrar que, a esta altura, o assunto to candente que Sobre Canudos torna-se seo e passa a sair com regularidade [no jornal O Pas] (GALVO, 1994, p. 59).

    O que significava exatamente os acontecimentos de Canudos e como a imprensa os via, o que nos interessa aqui, para compreendermos e valorizarmos a funo do 1 Verso preliminar foi apresentada na mesa redonda O centenrio de Euclides da Cunha A epopia de Canudos, organizada pela Profa. Dra. Maria Regina Barcelos Bettiol, para a Livraria Cultura de Porto Alegre, no dia 27 de abril de 2009. Reapresentada no mbito da LIII Feira do Livro de Porto Alegre, a 5 de novembro de 2009, no Memorial Erico Verssimo.

    reprter Euclides da Cunha, enviado por Jlio Mesquita, em nome de O Estado de So Paulo, para o acompanhamento do que viria a ser a derrocada de Canudos.

    Canudos e Antnio Conselheiro

    Antonio Vicente Mendes Maciel nasceu em Quixeramobim, estado do Cear, segundo alguns em 1828, segundo outros em 1830. Casou-se em 1857, mas foi trado pela mulher, que fugiu com um militar; preso em 1877, acusado de matar a esposa e a me, mas solto por falta de provas. Desde pouco antes, por volta de 1870, aos 42 anos de idade, comea a preocupar as autoridades eclesisticas, pois comea a percorrer os sertes autodenominando-se enviado de Deus. Em 1877, comea a inquietar tambm as autoridades civis, pois ope-se claramente a algumas das medidas adotadas pela Repblica. Em 1895; chega a Vaza-Barris, fazenda abandonada, que ocupa com alguns seguidores, j

    O REPRTER EUCLIDES DA CUNHA EM CANUDOS1

    Antonio Hohlfeldt

    Quem volta da regio assustadoraDe onde eu venho, revendo inda na mente

    Muitas cenas do drama comovente (...)Euclides da Cunha, em Pgina vazia, 14.10.1897

  • 17Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    em que camponeses da regio da Vendia (Vende), na Frana, rebelaram-se contra decises do governo revolucionrio que executara o rei, laicizara o Estado e vinha estabelecendo cobrana de impostos e recrutamento militar que desagradava aos camponeses. Jean Nicolas Stofflet e Jacques Cathelineau foram seus lderes. A rebeldia, entre 1793 e 1796, foi combatida fortemente pelo governo revolucionrio, mas movimentos de rebeldia continuaram at por volta de 1800. Cerca de 15 mil pessoas foram mortas na ocasio.

    Depois de descrever geologicamente a regio baiana, Euclides da Cunha escreve:

    sobre estes tabuleiros, recortados por inmeros vales de eroso, que se agitam nos tempos de paz e duas estaes de guas, na azfama ruidosa e lacre das vaquejadas, os rudes sertanejos completamente vestidos de couro curtido das amplas perneiras ao chapu de abas largas tendo a tiracolo o lao ligeiro a que no escapa o garrote mais arisco ou rs alevantada, e pendente, cinta, a comprida faca de arrasto, com que investe e rompe intricados cipoais (CUNHA, 1897).

    Aps a derrota da tropa de Moreira Csar, a 3 de maro de 1897, Euclides da Cunha voltou ao assunto, em artigo publicado no dia 17 de julho de 1897, sob o mesmo ttulo (CUNHA, 1897). O artigo, bem mais longo, tambm

    agora com 65 anos de idade. Belo Monte transforma-se rapidamente, preocupando o Governador Lus Viana. Mas os acontecimentos vo se precipitar, conforme nos narra o prprio Euclides da Cunha, em outubro de 1896, quando Antnio Conselheiro encomenda e paga adiantada madeira para construir uma capela no arraial, madeira que no lhe entregue. Isso desencadeia um primeiro choque dos seguidores de Maciel. Intrigas polticas provocam o Governador a enviar contra ele uma tropa.

    Seguem-se as campanhas conhecidas: em 1896, um contingente policial segue sob o comendo do Tenente Manuel de Silva Pires Ferreira com 3 oficiais e 113 praas, alm de dois guias, sendo logo dizimado. No mesmo ano, um segundo ataque desferido, agora sob o comando do Major Febrnio de Britto, contando 10 oficiais, canhes, uma metralhadora e cerca de 600 homens, igualmente derrotados.

    J no mbito do Exrcito, uma terceira campanha desenvolvida em maro de 1897, sob o comando do Coronel Antonio Moreira Csar, com mais de 1300 homens, 6 canhes e forte aparato blico. Mas o coronel morre em combate, logo nos primeiros dias, e a fora retroage. Esse acontecimento vai provocar comoo em todo o pas. Em Salvador e no Rio de Janeiro, jornais monarquistas so atacados e depredados, pois se entende que os agora j denominados rebeldes de Canudos esto vinculados aos monarquistas.

    de 14 de maro de 1897 o primeiro artigo que toca no tema, de autoria de Euclides da Cunha. Ele comenta o envio das tropas comandadas por Moreira Csar, num texto intitulado A nossa Vendia (CUNHA, 1897). O ttulo aludia a um acontecimento histrico do sculo XVIII,

  • 18HOHLFELDT, A. O reprter Euclides da Cunha em Canudos

    muito crtico em relao s aes do governo. A profunda estratgia europia naquelas paragens desconhecidas abalada por uma ttica rudimentar pior que a ttica russa do deserto, analisa ele, identificando o movimento de guerrilha que caracterizaria os ataques dos rebeldes. Repetindo a descrio do tipo fsico do sertanejo, ele acrescenta, enquanto interpretao:

    O jaguno uma tradio justalinear quase do iluminado da Idade Mdia. O mesmo desprendimento pela vida, a mesma indiferena pela morte, do ao mesmo herosmo mrbido e inconsciente de hipnotizado e impulsivo. Uma sobriedade extraordinria garante-lhe a existncia no meio das maiores misrias (CUNHA, 1897).

    Defendendo o valor dos soldados que ento haviam sido derrotados, valoriza a sada das novas tropas, a chamada Quarta Expedio, agora sob o comando do General Artur Oscar de Andrade Guimares, com cerca de vinte mil homens e o armamento mais moderno posto disposio do Exrcito. O prprio Ministro da Guerra, Marechal Machado Bittencourt, acompanha a tropa, e como tenente reformado, que Euclides da Cunha acaba seguindo neste grupo, adido do Estado Maior do Ministro. Ainda desconhecendo que vir a integrar esta tropa, contudo, ele antecipa:

    As tropas da Repblica seguem lentamente, mas com segurana, para a vitria. Fora um absurdo exigir-

    lhes mais presteza (...) Amanh, quando forem desbaratadas as hostes fanticas do Conselheiro e descer a primitiva quietude aos sertes baianos, ningum conseguir perceber, talvez, atravs das matas impenetrveis, coleando pelo fundo dos vales (...) os soldados da Repblica.

    Euclides da Cunha colocava-se claramente contrrio aos rebeldes e em favor da Repblica como na valorizao da tropa. Logo se ver, contudo, que as observaes de campo, bem como sua absoluta honestidade intelectual (OLIVEIRA, 1983, p. 77) vo-no levar a profundas modificaes na avaliao que far do movimento.

    A luta ser rpida, mas profundamente violenta. Saindo em agosto de 1897, para a cobertura dos acontecimentos, j no dia 22 de setembro de 1897, Euclides da Cunha pode documentar a morte de Antnio Conselheiro. Cerca de 5 mil casebres, abrigando mais de 25 mil pessoas, so absolutamente destrudos pelas tropas militares, quando, no dia 5 de outubro de 1897, os ltimos resistentes so mortos e a vitria alcanada. Evidentemente, Euclides da Cunha no viu tudo o que aconteceu, at porque, depois do deslocamento do Rio de Janeiro, permaneceu 24 dias em Salvador, espera do deslocamento para o interior (RABELLO, 1983, p. 82). Mas soube ver e tratou de compreender, transmutando o preconceito inicial, na expresso de Wilson Martins (1977, Vol. V, p. 6), de um republicano convicto (MOURA, 1964, p. 51) num verdadeiro grito de horror e numa forte denncia do abandono em que viviam e ainda hoje vivem nossas

  • 19Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    populaes interioranas, de que as mudanas de avaliao, ocorridas entre os textos jornalsticos e a verso final do livro bem atestam.

    Colaborao de Euclides na imprensa

    O jornal era o mais eficiente veculo de comunicao de massa no Brasil do final do sculo [XIX], avalia Walnice Nogueira Galvo (1994, p. 5-6). A variedade dos escritos surpreendente para um leitor atual, mas levando-se em conta que, proporcionalmente, haveria mais jornais naquela poca que nos dias de hoje, sobretudo devido s disputas ento travadas em torno das ideologias republicanas e monrquicas, deve-se lembrar que a maioria desses jornais pasquins, to somente, alguns, agressivos e mal redigidos tinham vida efmera, ou porque eram empastelados ou porque seus responsveis arrefeciam seus ardores to logo enfrentassem as autoridades. Se em So Paulo destacavam-se O Estado de So Paulo, o Correio Paulistano (futura Folha de So Paulo) e O Comrcio de So Paulo, o Rio de Janeiro, como capital da repblica, multiplicava suas publicaes, como o Jornal do Brasil, A Notcia, O Pas, O Jornal do Comrcio, A Gazeta de Notcias, o Repblica, a Folha da Tarde, e assim por diante.

    Visualmente, eram jornais pesados, pois ainda inexistia a ilustrao. Assim, apresentavam-se com colunas estreitas, quase sempre em nmero de oito, j que a maioria absoluta dos jornais era standard, paginados de alto a baixo. Mas a monotonia apenas visual, alerta Walnice Nogueira Galvo, que acrescenta:

    A leitura desses jornais fascinante (...) O jornal dessa poca acolhe em suas pginas material variadssimo e que hoje se encontra disperso pelos outros veculos. ao mesmo tempo um jornal mais literrio e menos literrio. Mais, porque nele so freqentes os contos, os poemas, as crnicas, e porque nele escreveram regularmente grandes nomes da criao literria (...) e menos: o estilo jornalstico, ainda muito pouco desenvolvido, peca a todo o momento pela incorreo da linguagem (...) o jornal era um mosaico constitudo por fragmentos de natureza vincadamente dspar (...) suscita no leitor de hoje a opinio de que tudo, mas tudo, se passa nas pginas dele. E no s se passa como se cria, sejam incidentes, intrigas ou at mesmo conspiraes (GALVO, 1994, p. 17 e 18).

    Canudos vai se tornar notcia de jornal, sobretudo a partir da derrota de Moreira Csar. E as fontes no eram apenas correspondentes regionais dos peridicos ou enviados especiais, o que vai ocorrer apenas na etapa final da luta. As fontes eram, em sua grande maioria, os prprios militares que l estavam e que, escrevendo para as suas famlias, avaliavam bem a necessidade de manter informada a opinio pblica e pediam que as mesmas fossem levadas at as redaes. Temos, pois que, fundamentalmente, o que o leitor conhecia da rebeldia sertaneja era uma verso, se no oficial, ao menos oficiosa

  • 20HOHLFELDT, A. O reprter Euclides da Cunha em Canudos

    da luta, porque suas fontes estavam sempre do lado dos republicanos. Isso no significa que algum jornalista enviado ao campo de batalha no enfrentasse perigos e at encontrasse a morte. Foi o caso de Francisco de Paula Cisneiros Cavalcanti, que escrevia para A Notcia. Ele veio a falecer em 18 de julho, em combate, porque a maioria desses correspondentes acabava viajando na condio de militar, como vai ocorrer, alis, com o prprio Euclides da Cunha, s que, neste caso, ele j se encontrava reformado. Cisneiros era Alferes, assim como Manuel Bencio, que escrevia para o carioca Jornal do Comrcio, era capito (MARTINS, 1997, p. XII).

    A derrota de Moreira Csar provoca a curiosidade dos jornais, que por seu lado refletem a curiosidade do leitor. Assim, um levantamento sumrio de Walnice Nogueira Galvo destaca alguns dos correspondentes ento enviados ao cenrio da guerra: a Gazeta de Notcias enviou Jlio Procpio Favila Nunes, gacho, que j cobrira a Revolta da Armada; O Estado de So Paulo escolheu Euclides da Cunha; o Jornal do Commmercio, do Rio de Janeiro, o pernambucano Manuel Bencio; o sergipano Siqueira de Menezes, tenente-coronel, escreve para O Pas, sob o pseudnimo de Hoche; Llis Piedade escreve para o Jornal de Notcias, de Salvador, alm de Manuel de Figueiredo, Alfredo Silva e muitos outros, nem sempre identificados pelas respectivas redaes.

    Sabe-se que Manuel Bencio foi mandado embora, por ter transmitido informaes consideradas imprprias pelo Exrcito (GALVO, 1994, p. 112), sendo substitudo por outro profissional. A cobertura por ele efetuada, de certo

    modo, complementar de Euclides da Cunha, porque ele cobre o perodo de 1 a 24 de julho de 1897, o que faz supor que ele permaneceu entre 24 de junho at setembro daquele ano. Euclides da Cunha, por seu lado, chega a Queimadas em 31 de agosto do mesmo ano, e a Canudos apenas em 15 de setembro, portanto, vinte dias antes da destruio da cidade (MARTINS, 1997, p. XVII).

    H enormes dificuldades para se enviar o material, quer por causa da censura militar, quer por causa da distncia entre Monte Santo e Queimadas e depois a chegada a Salvador para dali ser retransmitido s bases dos jornais, em So Paulo ou Rio de Janeiro. Da a importncia das referncias que O Estado de So Paulo ape a cada artigo publicado, indicando sempre a data de procedncia do texto. Por exemplo, o primeiro artigo enviado por Euclides da Cunha editado em 18 de agosto, mas fora enviado ainda a 10 de julho, portanto, mais de um ms antes! s vezes, um artigo posterior publicado antes, como ocorre em 23 de agosto com texto enviado no dia 7 de agosto, para no dia seguinte, 24, divulgar-se texto enviado no dia 12 de julho.

    Walnice Nogueira Galvo reconhece que a Guerra de Canudos, se no inaugurou, deve ter intensificado extraordinariamente no Brasil a praxe jornalstica de dispor enviados especiais no local dos acontecimentos (1994, p. 109). Vale a avaliao de Marcelo Bulhes:

    A irrupo da reportagem na histria do jornalismo, ocorrida no sculo XIX, se faz com a evidncia a um aspecto que a companharia desde ento, tornando-

  • 21Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    se um trao essencial do gnero: a necessidade do jornalista o reprter no palco das aes dos acontecimentos, trazendo a voz de quem convive estreitamente com os fatos (...) Da dizer-se que a reportagem o ambiente mais inventivo da textualidade informativa (BULHES, 2007, p. 45).

    No caso, especialmente O Estado de So Paulo, a Gazeta de Notcias, A Notcia e o Jornal do Commmercio os trs ltimos do Rio de Janeiro - destacaram-se em tal tarefa.

    Euclides enquanto reprter

    Euclides da Cunha no se acomodava muito profisso de engenheiro (RABELLO, 1983, p. 87). Sentia-se, na verdade, mais atrado pelo jornalismo. Alguns autores, como Franklin de Oliveira, identificam diferentes fases em seu pensamento. Assim, pode-se falar de um primeiro perodo, que vai de sua formao enquanto engenheiro at o incio da Campanha Civilista, ou seja, entre 1884 e 1892; um segundo momento, durante a Campanha, onde ele se encontra num quase-exlio no sul de Minas Gerais, e que vai at 1895; e um terceiro, a partir deste momento, quando ele se encontra j trabalhando enquanto engenheiro, de volta a So Paulo, e inicia suas colaboraes para o jornal O Estado de So Paulo (OLIVEIRA, 1983, p. 37). Quando o jornal o envia para os sertes baianos, Euclides no tinha seno uma intuio muito rarefeita da realidade brasileira. (OLIVEIRA, 1983, p. 47).

    Clvis Moura prefere falar em quatro fases, assim identificadas: a) da formao na Escola Militar viagem Bahia, com a predominncia do positivismo comtiano; da viagem a Salvador at sua chegada a Canudos, quando assume uma posio crtica ortodoxia republicana; uma terceira fase, de seu regresso de Belo Monte, at o lanamento de Os sertes, em 1902, quando busca basear-se nas teorias ento em voga para bem explicar os acontecimentos a que assistira, mas onde remanesce certo racismo em torno dos sertanejos; e, enfim, uma quarta fase, desde esse momento a seu concurso acadmico, quando revisa suas posies tericas e aprofunda a interpretao da realidade brasileira que tentava entender (1964, p. 18).

    Nicolau Sevcenko, estudando o conjunto de produo euclidiana, por seu lado, identifica a multiplicidade de gneros, que vo da historiografia geografia, passando pela crnica, a epistolografia e a poesia (SEVCENKO, 1983, p. 134). Curiosamente, o crtico no menciona o jornalismo, a no ser que aquela referncia crnica signifique tal campo. No entanto, deve-se destacar o jornalismo euclidiano que, por seu lado, dividir-se-ia, este sim, entre a crnica e a reportagem. No caso da crnica, poderamos integrar o significativo nmero de artigos que ele publicara antes de viajar para a Bahia e que voltaria a divulgar, quando de sua volta. Na reportagem, caberia especialmente o conjunto dos textos enviados desde Canudos, mas tambm outras sries produzidas, por exemplo, quando de sua ida ao norte do pas.

    O prprio Sevcenko registra o fato de Euclides da Cunha ter dirigido um jornal socialista em So Jos do Rio

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    Pardo, chamado O proletrio (SEVCENKO, 1983, p. 151). Sua estria em O Estado de So Paulo2 ocorreu em 22 de dezembro de 1888, quando comenta a transferncia de Deodoro da Fonseca para o sul de Mato Grosso, suspeito de atividades polticas (ANDRADE, 2002, p. 49). Uma semana depois, divulgaria novo artigo, sob o ttulo Revolucionrios, em que defende ser o homem filho de sua regio e de seu tempo. Nove dias mais tarde, um terceiro artigo pode ser lido, iniciando a srie de artigos chamada Atos e palavras, em que analisava o contexto poltico do momento, sob o pseudnimo de Proudhon. Tem 22 anos de idade, e sonha com a repblica. No dia 24, escrevia o ltimo artigo da srie e se preparava para retornar ao Rio de Janeiro, intentando cursar a Escola Politcnica, de que desiste, aparentemente, por falta de meios para financiar os estudos.

    Do Rio de Janeiro, continua enviando artigos para o jornal paulista, ao longo dos meses de maio e junho de 1889. Depois da repblica, distancia-se um pouco do jornalismo, mas retorna, em 4 de maro de 1897, para escrever sobre a distribuio dos vegetais no estado paulista tema, portanto, mais diretamente vinculado s suas atividades profissionais do que a sua eventual militncia poltica. Dez dias mais tarde, contudo, j conhecida a derrota de Moreira Csar, edita o primeiro texto de A nossa Vendia, a 14 de maro, o que vai lhe valer, logo depois, o convite para a viagem.

    Andrade afirma que o jornal A Provncia de So Paulo era um jornal vivo e atuante, cujas pginas ensinam muito daquele tempo que adorava o folhetim e 2 Destaque-se que, neste momento, o jornais ainda se chama A Provncia de So Paulo, pois estamos ainda ao tempo do imprio.

    era familiar polmica (ANDRADE, 2002, p. 49). Jos Marques de Melo e Adolpho Queiroz mostram que o jornal tinha significativa tiragem para a poca. Francisco Rangel Pestana e Amrico Brasiliense fundaram o jornal a 4 de janeiro de 1875, com quatro pginas, das quais uma e meia era ocupada por publicidade, sendo propriedade da empresa Pestana, Campos & Cia., formada por mais de quinze republicanos paulistas e administrado por Jos Maria Lisboa (MELO; QUEIROZ, 1998, p. 163). Para a sua impresso, usava um prelo Alouzet movido a mo, para o que recrutara alguns negros livres. Era uma tarefa to difcil que a primeira edio circulou com trs dias de atraso. O jornal, embora claramente republicano, apenas a partir de 1884 assumiria explicitamente sua ideologia, depois de j firmado financeiramente, quando troca de propriedade e passa a ser editado pela empresa Alberto Salles & Cia. Salles, contudo, retirou-se no ano seguinte, diante da situao financeira precria do jornal. Naquele ano, entra para o jornal Jlio Mesquita, que assume a direo do mesmo em 1891, quando Rangel Pestana se elege para o senado. A Provncia de So Paulo participou ativamente da campanha republicana e logo aps a proclamao da repblica, troca seu nome para O Estado de So Paulo. Foi o primeiro dirio a ser vendido nas ruas da cidade, a partir de 23 de janeiro de 1876.

    Em 1897, foi pioneiro na deciso de enviar um correspondente Bahia para acompanhar os acontecimentos de Canudos. Jlio Mesquita tornar-se-ia proprietrio do jornal em 1902, dentre outros motivos, justamente por esta perspectiva mais aberta que

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    evidenciava em relao ao jornalismo: tratava-se, como registra Sylvio Rabello, de uma inovao nos mtodos do jornalismo: a reportagem colhida ao vivo partindo a 4 de agosto para Salvador (RABELLO, 1983, p. 90). O pesquisador acompanha a viagem, desconfortvel, a bordo do navio Esprito Santo, a permanncia de 24 dias na capital baiana; e, enfim, sua partida, a 30 de agosto, acompanhando o Ministro da Guerra. Para isso, teve de pedir licena especial para afastar-se de seu trabalho, o que lhe foi dada (ANDRADE, 2002, p. 130).

    Se o correspondente achava-se insatisfeito com a situao, no deixava de cumprir com suas obrigaes, e bem. Verifica-se que ele enviou artigos variados ao longo deste perodo, ora descrevendo Salvador e o clima que envolvia a revolta, escrevendo, por exemplo: A populao, vivamente emocionada, rodeia-os de uma simpatia respeitosa e espontnea, como refere em 18 de agosto a propsito da chegada de soldados vindos de Monte Belo; ao mesmo tempo, avalia as misses militares anteriores com esprito crtico:

    Todos os oficiais que inquiri acordam confirmando dois graves erros de que se aproveitaram habilmente os jagunos (...) O primeiro apontado completa outros que perturbam altamente a marcha da primeira coluna (...) Na investida definitiva a Canudos, a disposio geral dada ao ataque foi de tal natureza que, logo entrada da grande aldeia, baralharam-se batalhes e brigadas, enredaram-se, anularam-se as fileiras sem

    ordem, a tumultuadamente avanando (CUNHA, 1897).

    No dia 24 de agosto, contudo, descreve vivamente a chegada dos soldados:

    Ao apontar, vingando a ltima curva da estrada, um lgubre comboio, a multido, estacionada na gare, emudecida, vai terminando bruscamente o vozear indistinto, e olhares curiosos convergem para a locomotiva que se aproxima (...) Os feridos chegam num estado miserando (...) Dificilmente se distingue uma farda despedaada e incolor: calas que no descem alm dos joelhos, reduzidas a tangas, toras, esburacadas, rendilhadas pela misria.

    evidente que Euclides da Cunha no se limita a observar. Ele conversa, recolhe dados, faz suas anotaes e interpreta. significativa, neste sentido, a reportagem de 27 de agosto, quando se refere chegada de um assustado adolescente, Agostinho, trazido prisioneiro pelo Coronel Carlos Telles cidade. Com apenas 14 anos,

    fraglimo e gil, olhos pardos, sem brilho; cabea chata e fronte deprimida; lbios firmes e incolores, entreabertos num leve sorriso perene, deixando perceber os dentes pequeninos e alvos (CUNHA, 1897).

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    Euclides registra que o rapaz responde com vivacidade e segurana a todas as perguntas, descrevendo nitidamente as lideranas do movimento, de Joo Abbade, mameluco, quase negro, a Paje, hoje morto, caboclo alto e reforado, passando por Villa Nova, Pedro, Macambira velho rebarbativo e feio Manoel Quadrado, Jos Feliz, o Tramela e, enfim, Antnio Conselheiro. Quando indagado a respeito do armamento, o rapaz responde prontamente:

    Antes da primeira expedio consistia em espingardas comuns, bacamartes e bestas destinadas, estas ltimas, em cujo maneio so incomparveis, no perdendo uma seta, caada dos mocs velozes e esquivos. Seis ou sete espingardas mais pesadas, de bala carabinas Comblain, talvez. Depois do encontro em Uan, e das expedies que o sucederam que apareceram novas armas, em grande nmero, no arraial. Os canhes deixados pela coluna de Moreira Csar, cujo manejo no puderam compreender, foram depois de inutilizados a golpes de alavanca e malhos, atirados num esbarrondadeiro prximo.

    Eis a sntese e a concluso: era o prprio exrcito bra-sileiro que, ao abandonar o armamento, armava os rebeldes. Mas o que esperariam eles, afinal, quando a luta terminasse? Ainda aqui, a perspectiva dramtica que a narrativa de Eucli-des da Cunha assume (RABELLO, 1983, p. 198), resume: A resposta foi absolutamente inesperada. - Salvar a alma.

    A avaliao que Olmpio de Souza Andrade faz do trabalho do reprter Euclides da Cunha categrica:

    Como reprter de gnio que nobilitava extraordinariamente a grande reportagem, enviou para o seu jornal as notas completas, perfeitas, de um realismo que, uma vez ou outra, contrariava a falsa opinio que daquilo tudo fazia o pas inteiro, e o seu prprio jornal (ANDRADE, 2002, p. 131-132).

    Por isso, embora sendo o ltimo a chegar ao teatro dos acontecimentos (ANDRADE, 2002, p. 159), no se pode comparar seu trabalho ao dos demais. Ele acompanhou ao vivo tudo o que pode. Assumindo a primeira pessoa do singular, desde o primeiro boletim, enquanto depoimento pessoal, ao mesmo tempo emocionado e crtico que ele escreve, como uma espcie de Conrad s avessas, como registra Olmpio de Souza Andrade, para evidenciar que Euclides da Cunha, ao contrrio de Joseph Conrad, tambm reprter, foi muito mais crtico, constituindo, por isso mesmo, obra nica (MARTINS, 1977, Vol. V, p. 4), sobretudo porque o jornalista abdicou de toda e qualquer fico (SEVCENKO, 1983, p. 131), contrariando o que a imprensa aceitara, desde logo, como uma grande conjura monarquista, agindo nos sertes baianos (SODR, 1977, p. 307).

    Foi importante, para a fidelidade dos fatos e do clima que o reprter encontrou na regio, a utilizao de suas cadernetas de anotaes, onde registrava rapidamente as primeiras impresses e que depois consultava quando

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    desenvolvia o texto a ser enviado. Ele no seguia uma ordem, contudo. Levava vrios nos bolsos e escrevia no que lhe casse mais mo. Assim, num deles podemos encontrar anotaes sobre as trincheiras da Gamboa, de 1893, mas tambm de Canudos, em 1897... (ANDRADE, 2002, p. 153), o que leva alguns de seus estudiosos a entender que as cadernetas foram verdadeiras matrizes no apenas das reportagens, mas, sobretudo, do livro que ele iria publicar em 1902 e que o consagraria definitivamente.

    Olmpio de Souza Andrade publicou um destes cadernos, aquele mais diretamente vinculado campanha de Canudos (CUNHA, 1975, p. 18). Avalia que tais anotaes permitem ao reprter no ser trado pela memria. Mais que isso, permite confrontar dados e informaes, constituindo, por isso mesmo, conjunto riqussimo do processo da escrita do jornalista e do escritor. Embora muitas vezes de dificlima leitura, pela letra mida do escritor, exigindo, assim, diferentes consultas, a caderneta fundamental para qualquer estudo mais profundo do trabalho de Euclides da Cunha naquele momento.

    Est claro que no ocorreria a ningum exigir de um reprter o que ele mesmo exigia de si, principalmente de um reprter em misso itinerante como a sua, a lutar com a precariedade das informaes que o levavam a corrigir-se at ao exagero

    sintetiza um pesquisador (ANDRADE, 2002, p. 137). Mas ento que a competncia do reprter se manifesta.

    Podem-se destacar dois tipos de registros importantes nos textos enviados por Euclides da Cunha. De um lado, os depoimentos pessoalizados desde sua chegada regio. De outro, os registros que faz, profundamente emocionais, de acontecimentos que envolvem prisioneiros e que lhe permite traar a psicologia dos jagunos, sem que tenha de classific-los, mas, ao contrrio, apenas narrando e presentificando, para o leitor distante, aquilo a que assiste e transcreve com fidelidade. Leiamos algumas passagens.

    Aguardando ainda, contrafeito, a prxima partida para o serto, percorro - desconhecido e s - como um grego antigo nas ruas de Bizncio as velhas ruas desta grande capital, num indagar persistente acerca de suas belas tradies e observando a sua feio interessante de cidade velha chegando, intacta quase, do passado a estes dias agitados (...) Calculo com aproximao razovel em dez mil homens no mnimo, a tropa que ir combater a rebeldia no serto (CUNHA, 1897).

    O trecho grande, mas, afinal, queremos mesmo ler Euclides da Cunha. s vezes, o registro vivaz, rpido, de quem est de passagem:

    Aqui chegamos s cinco e meia. Alagoinhas realmente uma boa cidade extensa e cmoda, estendendo-se sobre um solo arenoso e plano.

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    Ruas largas, praas, imensas; no tem sequer uma viela estreita, um beco tortuoso. talvez a melhor cidade do interior da Bahia. Convergem para ela todos os produtos das regies em torno, imprimindo-lhe movimento comercial notvel (CUNHA, 1897).

    Ou ento, esta outra passagem:

    TANQUINHO - So dez horas da noite. Trao rapidamente estas notas sob a ramagem opulenta de um joazeiro, enquanto, em torno, todo o acampamento dorme. Tanquinho positivamente um lugar detestvel e o viajante que vence as cinco lguas que o separam de Queimadas tem a pior das decepes ante esta lgubre tapera de duas casas abandonadas e destrudas, quase invadidas pela galhada spera e inextricvel do alecrim dos taboleiros (CUNHA, 1897).

    O azedume pode dar lugar ao entusiasmo:

    CANSANO - Aqui chegamos s 9 horas da manh - esplndida manh! - caminhando duas lguas a partir do Tanquinho. Cansano, felizmente, j merece o nome de povoado. Tem onze casas, algumas cobertas de telhas, e um armazm pauprrimo no qual entramos com a mesma satisfaco com que a

    se penetra no Pregredior. Sentimos nos deslumbrados ante as prateleiras toscas e desguarnecidas (CUNHA, 1897).

    At chegar ao objetivo, Monte Santo:

    MONTE SANTO - Finalmente chegamos, s 9 horas da manh, nossa base de operaes, depois de duas horas de marcha. Ningum pode imaginar o que Monte-Santo a trs quilmetros de distncia. Ereta num ligeiro socalco, ao p de magestosa montanha, a povoao, poucos metros a cavaleiro sobre os taboleiros extensos que se estendem ao norte, est numa situao admirvel (CUNHA, 1897).

    O outro aspecto, mais tenebroso, de certo modo, , ao mesmo tempo, a contribuio maior do reprter: colhe ele, ao vivo, as cenas que ocorrem no dia a dia, especialmente o interrogatrio de prisioneiros e o seu comportamento. Ou episdios de valentia e absoluta temeridade dos jagunos. o caso, por exemplo, do despacho de 18 de agosto, publicado em 25 de agosto (apenas uma semana de intervalo!):

    Um Episdio da Luta - Em dias de junho ultimo um dos filhos de Macumbira, adolescente de quinze anos abeirou-se do rude chefe sertanejo: - Pai, quero destruir a matadeira. (Sob tal denominao indicam os jagunos o canho Krupp,

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    32, que tem feito entre eles estragos considerveis). Sinistro cabecilha, espcie grosseira de Imanus acobreado e bronco, fitou-o impassvel: - Consulta o Conselheiro - e vai. E o rapaz seguiu acompanhado de onze companheiros atrevidos (....) O exrcito repousava... Nisto despontam, emergindo cautos, borda do moto rasteiro e tranado de rvores baixas a esgalhadas, na clareira em que estaciona a artilheria, doze postas espantados - olhares rupidos a perscrutando todos os pontos, - doze rostos apenas de homens ainda mergulhados, de rastos, no seio tranado das macambiras. E surgem lentamente; ninguem os v; ninguem os pode ver; - d lhes na costas, numa indiferena soberana, o exrcito que repousa (...) Formam-se rapidamente os batalhes; num momento os atacantes ousados vm-se, presos, num crculo intransponvel de baionetas e caem sob os golpes e sob as balas. Um apenas se salva, golpeado, baleando, saltando, correndo, rolando, intangvel entre os soldados, atravessando, uma rde de balas, vingando os pontos das baionetas, caindo em cheio nas catingas que atravessa velozmente e despenhando-se, livre afinal, alcandorado sobre abismos, pelos pendores aprumados da montanha... Estas e outras histrias, contam-nas, aqui, os soldados, colaboradores

    inconscientes das lendas que envolvero mais tarde esta campanha crudelssima (CUNHA, 1897).

    Ou ento, este outro relato:

    Escrevo rapidamente estas linhas, no meio do tumulto quase, enquanto a fuzilaria intensa suleia os ares a cem metros de distncia. Acabam de chegar alguns prisioneiros. O primeiro um ente sinistro; um estilhao de granada transformou-lhe o olho esquerdo numa chaga hedionda, de onde goteja um sangue enegrecido; baixo e de compleio robusta, responde tortuosamente a todas as perguntas (...) Nada revela. Chegam mais duas prisioneiras, me e filha; a primeira esqueltica e esqulida - repugnante, a segunda mais forte e de feies atraentes. Evitam igualmente tanto quanto possvel responder ao interrogatrio do general. A filha apenas revela: - Villa-Nova esta noite lascou o p no caminho (2) e h um lote de dias 93) que um despotismo de gente (4) tem abancado (5) para o curube o Caipan. Est com muitos dias que h fome em Belo Monte. A velha nada sabe, evita todas as respostas e nada pode dizer sobre o nmero de inimigos porque s sabe contar at quarenta! Morreu-lhe o marido h meia hora; era um baiano truculento; expirou atravessado pelas balas, cinco minutos depois de haver morto com um tiro de bacamarte ao

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    alferes do 24 Pedro Simes Pontes e murmurou com um sorriso sinistro ao expirar: - Estou contente! Ao menos matei um! Viva o Bom Jesus! (CUNHA, 1897).

    No relato seguinte, mais episdios envolvem prisioneiros e do conta de sua fidelidade a Antnio Conselheiro:

    Mulheres aprisionadas na ocasio em que os maridos caam mortos na refrega e a prole espavorida desaparecia na fuga, aqui tm chegado (...) Uma delas acaba de ser conduzida presena do general. Estatura pequena, rosto trigueiro, cabelos em desalinho, lbios finos e brancos, rugados aos cantos por um riso doloroso, olhos vesgos, cintilantes; trs ao peito, posta na abertura da camisa, a mo direita, ferida por um golpe de sabre. - Onde est teu marido? - No cu. - Que queres dizer com isto? - Meu marido morreu. E o olhar correu rpido o fulgurante sobre os circunstantes sem se fitar em ningum (...) - H muita gente a, em Canudos? - E eu sei? ... eu no vivo navegando na casa dos outros. Est com muitos dias que ningum sabe por via das peas. E eu sei contar? S conto at quarenta e rola o tempo pra contar a gente de Belo Monte... - O Conselheiro tem recebido algum auxlio de fora, munies, armas?... - E eu sei? Mas porm em Belo Monte no manca arma

    nem gente pra brigar. - Onde estava seu marido quando foi morto? Esta pergunta foi feita por mim e em m hora a fiz. Fulminou-me com o olhar. - E eu sei? (...) E eu sei?... Este e eu sei? o inicio obrigado das respostas de todos; surge espontaneamente, infalivelmente, numa toada montona, encimando todos os perodos, cortando persistentemente todas as frases. - Fugiram muitos jagunos hoje, no combate? - E eu sei? meu marido foi morto por um lote de soldados quando saa; o mesmo tiro quebrou o brao do meu filho de colo... Fiquei estatalada, no vi nada... este sangue aqui na minha manga do meu filho, o que eu queria era ficar l tambm, morta... (CUNHA, 1897).

    O reprter revela sentimentos pessoais e os transmite ao leitor, quando adentra a cruel realidade de Monte Santo:

    O interior das casas assusta...Compreende-se que haja povos vivendo ainda, felizes e rudes, nas anfratuosidades fundas das rochas (...) mas no se compreende a vida dentro dessas furnas escuras e sem ar, tendo como nica abertura, s vezes, a porta estreita da entrada e cobertas por um teto massio e impenetrvel de argila sobre folhas de ic! Quando o olhar do observador se acomoda afinal penumbra que reina no interior percebe uma moblia que a de todas as casas

  • 29Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    quase: um banco grande e rosseiro (uma tboa sobre quatro ps no torneados ); dois ou trs banquinhos; redes de cru; dois ou trs bas de cedro de trs palmos sobre dois. toda a moblia. No h camas; no h mesas, de um modo geral (CUNHA, 1897).

    E chega, ento, o final, assim resumido pelo reprter:

    A artilheria fez estragos incalculveis nas pequenas casas, repletas todas. Penetrando pelos tetos e pelas paredes as granadas explodiam nos quartos minsculos despedaando homens, mulheres e crianas sobre os quais descia, as vezes o pesado teto de argila, pesadamente, como a lagem de um tmulo, completando o estrago. Parece, porm, que os mal feridos mesmo sofreiavam os brados da agonia e os prprios tmidos evitavam a fuga, tal o silncio, tal a quietude soberana e estranha, que pairavam sobre as runas fumegantes, quando, s 6 e 48 minutos, cessou o bombardeio (...) Nesse momento passou-se um fato extraordinrio e inesperado em que pese aos nmeros exemplos de herica selvatiqueza revelada pelo jaguno. De todas as casas, h poucos minutos fulminadas, irrompendo de todas as frinchas das paredes e dos tetos, saindo de todos os pontos explodiu uma fuzilaria imensa, retumbante, mortfera

    e formidvel, de armas numerosas rpida e simultaneamente disparadas - e sobre os batalhes assaltantes refluiu a rplica tremenda de uma saraivada, impenetrvel, de balas! (...) Eu estava a cerca de 200 metros apenas da praa, no quartel general do general Barbosa. Desci rapidamente a encosta e entrei na zona do combate. No gastei dois minutos na travessia (CUNHA, 1897).

    Euclides da Cunha, no ltimo artigo enviado, a 25 de outubro, e publicado no dia imediatamente aps, afirma, com sinceridade: Isto o depoimento de uma testemunha pouco afeioada lisonja banal e intil.

    Do jornalismo para a literatura, mas sempre jornalismo

    E mais no diz, porque, segundo muitos de seus estudiosos, ao regressar, j imaginara escrever um livro a respeito do tema (RABELLO, 1983, p. 140). Mesmo antes de partir, reunira material fornecido por Teodoro Sampaio. Tambm conversaria muito com Manuel Bencio, que acabaria por publicar seu livro trs anos antes de Euclides, pois que sua primeira edio de 1899 (ARAJO apud BENICIO, 1997, p. IX). Por isso, foi-lhe importante, ao regressar, poder ficar no interior do estado de So Paulo, onde podia se dedicar com maior afinco a seu projeto. Mas enfrentava, evidentemente, a dificuldade de public-lo, diante das dimenses que alcanaria o trabalho. Assim, termina por financiar a primeira edio, entregue a Editora

  • 30HOHLFELDT, A. O reprter Euclides da Cunha em Canudos

    Laemert, fato que no o imuniza contra a expectativa e a tenso do lanamento. O exame de sua correspondncia bem evidencia tal situao (VENANCIO FILHO, 1997).

    A primeira edio sai com muitas gralhas, o que o incomoda. Mas esgota-se rapidamente, e para a segunda edio, ainda a cargo da Laemmert, Euclides busca corrigir os defeitos do livro (VENANCIO FILHO, 1997, p. 78, 83 e 100).

    Tambm o escritor Afonso Arinos, sob o pseudnimo de Olvio Barros, se adiantara a Euclides, publicando em fascculos, no O Comrcio de So Paulo, de que era redator-chefe, a partir de 24 de outubro de 1897, o folhetim Os jagunos, que logo seria transformado em livro (GALVO, 1994, p. 105). Mas seria o livro de Euclides da Cunha que permaneceria como um dos depoimentos mais trgicos, mais definitivos e de mais eficiente denncia sobre as condies de marginalizao experimentada por nossos interioranos. Como avalia Franklin de Oliveira, trata-se de um monumento da cultura ibero-americana, porque,

    antes de pensar no gnero, pensou na forma. Esta lhe deve ter parecido muito mais importante do que aquele, dado o alvo que buscava atingir. Esse alvo era a Nao brasileira. O Brasil de seu tempo era um pas submerso nem verbalismo (OLIVEIRA, 1983, ps. 13 e 48).

    E lanando mo da avaliao de Jos Maria Belo, encerra: [trata-se de] um livro grave, onde se agitam alguns problemas capitais da nossa vida poltica e social (BELO, 1956).

    Apesar do sucesso e da repercusso quase imediatos do livro, ainda hoje, mais de um sculo passado, continuamos nos perguntando o que exatamente Os sertes, o que o escritor queria com essa obra? Por que a escreveu? Para mim, a perspectiva do jornalismo que oferece as melhores respostas. A leitura dessas reportagens nos permite verificar prticas claramente jornalsticas em Euclides da Cunha: a) levantamento antecipado de dados, a partir do momento em que recebe a pauta para a viagem; b) visita e deambulao pelos lugares, na melhor prtica da reportagem contempornea; c) fala com todo o tipo de fonte, e no apenas com as fontes oficiais, estabelecendo, assim, equilbrio quanto aos pontos de vista apresentados; d) entrevista as pessoas mais variadas e transcreve tais dilogos, numa prtica de entrevista extremamente moderna e eficiente, porque profusamente dramtica; e) utilizao da primeira pessoa do singular, com o que enfatiza o depoimento que suas reportagens traduzem; f) como bem registrou Walnice Nogueira Galvo, e pode-se aplicar, sobretudo, a Euclides da Cunha, seu trabalho grande e se tornou imortal porque foi feito no calor da hora. testemunho, naquela linha, que pouco depois John Reed realizaria com o mundialmente reconhecido Dez dias que abalaram o mundo, o relato do aqui e agora, melhor caracterstica do jornalismo, trazendo o distante para o perto e o passado para o presente, sempre atualizado.

  • 31Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    Referncias Bibliogrficas

    ANDRADE, Olmpio de Souza. Histria e interpretao de Os sertes. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002.

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    BENICIO, Manoel. O rei dos jagunos. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas/Jornal do Commercio, 1997.

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    ______. A Nossa Vendia. In: O Estado de S. Paulo: 1897, disponvel em: < http://www.academia.org.br/abl_minisites/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?User|ActiveTemplate=euclidesdacunha&sid=53> Acessado em: 12 de abril de 2009.

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    GALVO, Walnice Nogueira. No calor da hora. So Paulo: tica, 1994.

    INSTITUTO MOREIRA SALLES. Euclides da Cunha. So Paulo: 2002, Vols. 13 e 14 dos Cadernos de Literatura Brasileira.

    MARTINS, Paulo Emlio Matos O rei dos jagunos e a historiografia de Canudos, prefcio a BENCIO, Manoel O rei dos jagunos, Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas/Jornal do Commercio, 1997.

    MARTINS, Wilson. Histria da inteligncia brasileira 1897-1914. So Paulo: Cultrix/EDUSP, 1977/1978. Vol. V.

    MELO, Jos Marques de et QUEIROZ, Adolpho. Identidade da imprensa brasileira no final de sculo. So Paulo: UMESP/Ctedra UNESCO, 1998.

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  • 32HOHLFELDT, A. O reprter Euclides da Cunha em Canudos

    RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. Rio de Janeiro/Braslia: Civilizao Brasileira/Instituto Nacional do Livro, 1983.

    SARMATZ, Leandro. A repblica em perigo: Uma anlise do captulo A quarta expedio, dOs sertes, e seu contexto poltico, Porto Alegre, PUCRS: Mimeo, 1995.

    SCHWARTZ, Roberto (Org.). Os pobres na literatura brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1983.

    SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso. So Paulo: Brasiliense, 1983.

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    VENNCIO FILHO, Francisco. Euclydes da Cunha a seus amigos. So Paulo: Nacional, 1938.

  • Introduo1

    Uma tenso entre literatura e histria, entre arte e cincia, parece ser a imagem que fica de Os sertes, obra difcil de ser caracterizada de modo definitivo. A cada releitura tantas mincias chamam ateno que transformam a abordagem crtica em aproximao parcial. A cada comentrio lido encontramos uma dimenso da obra revelada, que talvez leve o leitor a pensar que Euclides da Cunha comps um discurso de vrias camadas sobrepostas.

    Gnia Maria Gomes (2005) traz para primeiro plano a composio constelacional das imagens que se articulam na construo de Os sertes. Por exemplo, o labirinto e o minotauro deixam de ser representao direta da realidade, para ser elaborao literria de Euclides da Cunha. No

    1 O ttulo parte de uma citao de Os sertes feita por Zilly, Berthold. (2005). O autor comentava o ceticismo de Euclides da Cunha quanto a possibilidade de representao do sertanejo pelos recursos da cincia.

    presente estudo, interessa destacar que essas imagens so explicadas a partir da desorientao espacial (serto, caatinga, Canudos) e do estranhamento que provoca o sertanejo (Hrcules-Quasmodo). Trata-se de algum que no conhece o lugar e se espanta com seu habitante. Busca as imagens como um modo de dar forma viso que restou da guerra de Canudos.

    Por sua vez, Flvio Loureiro Chaves destaca que o valor de Os sertes est na recomposio literria, fruto de lenta elaborao, publicado depois de 5 anos do confronto. Em 1897, Euclides publicou em O Estado de So Paulo as reportagens que mostram o acompanhamento da guerra, desde o artigo Nossa Vendia, quando ainda no tinha ido para o front at as matrias que enviava da Bahia e que mostravam a aproximao gradual do cenrio da batalha e o acompanhamento direto da ltima expedio militar enviada a Canudos (CHAVES, 2005, p. 123). Depois de 5 anos, em 1902, sai o livro, que se trata, na anlise empreendida pelo

    NUMA VOLTA DO SERTO, AQUELES DESCONHECIDOS SINGULARES1

    Antnio Marcos V. Sanseverino

    Est assim uma nao livre, filha da Revoluo e dos Direitos do Homem, obrigada a empregar os seus juzes, a sua polcia, se preciso for o seu exrcito e a sua armada, para forar homens, mulheres e crianas a trabalhar dia e noite, sem salrio.

    (Joaquim Nabuco, Abolicionismo)

  • 34SANSEVERINO, A. M. V. Numa volta do serto, aqueles desconhecidos singulares

    crtico, de uma alegoria do mal (2005, p. 123), fruto de uma descida aos infernos (p. 124). Mais do que na reportagem ou nas teorias cientficas usadas como referncia, o valor na obra est, ento, na sua dimenso literria, que transfigura Canudos em um territrio imaginrio de legitimidade um universal (p. 127), de tal modo que o particular sertanejo ganha dimenso universal, expresso da condio humana, glorificao do medo (p. 127).

    Os dois crticos mostram o modo como a obra de Euclides no est presa realidade imediata brasileira, como a reportagem de 1897. Estamos lidando como uma configurao altamente elaborada, que vai da tripartio da obra e alcana s imagens escolhidas. A partir da, a questo do presente ensaio saber se a matria histrica tambm penetrou a obra, no apenas no contedo, pois isso evidente, mas tambm na forma. Em outros termos, de que modo essa forma literariamente elaborada traria as marcas dos dilemas histricos. Assim, o ponto de partida est posto da colocao de Chaves de que Euclides da Cunha transfigura o serto baiano em territrio imaginrio, com legitimidade universal. O passo seguinte, ento, perguntar se no modo de faz-lo, no teramos uma particularidade formal nova.

    Retomar a leitura de Os sertes sempre um desafio, dada extensa e qualificada fortuna crtica existente. No presente artigo, no retomaremos outras leituras j feitas que seguem indicadas nas referncias bibliogrficas. Vale apontar, a partir do que foi posto acima, o objeto a ser estudado: o encontro do narrador com o sertanejo, o encontro de Euclides da Cunha com Canudos. Cabe enfatizar mais

    uma vez que estamos lidando com o livro. No se trata do conjunto de textos publicados em jornal, durante o ano de 1897, mas do livro publicado em 1902. Nas reportagens finais, quando Euclides escreve de Canudos, acompanhamos uma transformao da posio inicial pela experincia da guerra sertaneja, pela travessia da caatinga, pela viso de Canudos (Belo Monte) e pela viso dos sertanejos.

    Abertura

    Na nota preliminar de Os sertes (1902), Euclides da Cunha escreve o seguinte:

    Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.E foi, na significao integral da palavra, um crime.Denunciemo-lo. (p. 14).2

    Nessa abertura, temos uma das grandes questes de Os sertes, discutir o significado da expedio que derrotou Canudos, tida como uma vitria da Repblica contra um bando de fanticos monarquistas, isolados no interior da Bahia. Sem deixar de ser inteiramente isso, Euclides mostra que h no episdio muito mais do que uma corriqueira vitria da civilizao. Ele cobriu o conflito, como jornalista de O Estado de S. Paulo, acompanhando a quarta expedio em 1897, formada por oito mil soldados.

    2 Todas as citaes de Os Sertes foram retiradas da mesma edio: CUNHA, Euclides da. Os Sertes: campanha de Canudos. ed. crt. Walnice N. Galvo. So Paulo: tica, 1998. Daqui para frente, passamos a indicar apenas a pgina de que foi retirado o trecho.

  • 35Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    A interveno ganhou a feio trgica e criminosa que destruiu a comunidade de Canudos, matou Antnio Conselheiro e acabou com qualquer iluso republicana. A guerra, como experincia extrema, colocou em contato direto com a morte sem sentido, com a covardia, com o desespero. Talvez seja possvel precisar que Euclides, na partida para Bahia, acreditava na legitimidade da interveno do Estado para manter a ordem republicana (assim como acontecera na Revolta da Armada ou na Revoluo Federalista no Rio Grande do Sul). Nesse sentido, haveria o gesto legtimo de preservao da ordem. O que ele viu levou a inverter as posies: o Estado passou ao ato criminoso, e o sertanejo defensor de sua casa, de seu espao.

    Hegel exps, da maneira mais clara, na dialtica do senhor e do escravo. A superioridade do senhor funda-se na sua autonomia conquistada no limiar da morte. O senhor senhor porque ps prova sua vida, afirmando sua superioridade face morte. O estatuto do senhor no pode ser herdado, nem social, nem politicamente assegurado para uma categoria da sociedade. Ele repousa exclusivamente sobre o direito do heri, daquele que conquistou a soberania liberdade e autonomia comprovando efetivamente o valor de sua ao (ROSENFIELD, 2005, p. 80-81).

    Kathrin Rosenfield analisa a presena da concepo idealista de Histria que subjaz ao discurso de Os sertes.

    Euclides da Cunha seguiria o modelo hegeliano da histria do universal como revelao progressiva do esprito. No caso brasileiro, o movimento seria anmalo, seja pelo deslocamento ou pela ausncia do enfrentamento de foras iguais. A formao social no se completaria de modo pleno. Nesse sentido, a figura herica que luta pela conquista da autonomia e se eleva no enfrentamento o sertanejo.

    De certo modo, no empreendimento de Euclides, enquanto autor, temos o enfrentamento radical de algum que teve de abandonar sua posio sedimentada para olhar para o sertanejo. De certo modo, em grande escala, o empreendimento comparvel ao romance de Raul Pompia. Em O ateneu, Srgio, narrador adulto, mostra a coragem de enfrentar o passado, o contato amargo com o mundo e com a desiluso de entrar no internato. No caso de Os sertes, sem deixar de ser republicano, sem deixar de acreditar na possibilidade de se conhecer o Brasil, na dimenso pblica, Euclides enfrenta uma nova luta:

    Sob tal aspecto era, antes de tudo, um ensinamento e poderia ter despertado grande curiosidade. A mesma curiosidade do arquelogo ao deparar com as palafitas de uma aldeia lacustre, junto a uma cidade industrial na Sua...

    Entre ns, de um modo geral, despertou rancores. No vimos o trao superior do acontecimento. Aquele afloramento originalssimo do passado, patenteando todas as falhas da nossa evoluo, era um belo ensejo para estudarmo-las,

  • 36SANSEVERINO, A. M. V. Numa volta do serto, aqueles desconhecidos singulares

    corrigirmo-las ou anularmo-las. No entendemos a lio eloqente. Na primeira cidade da Repblica, os patriotas satisfizeram-se com o auto-de-f de alguns jornais adversos, e o governo comeou a agir. Agir era isso agremiar batalhes (CUNHA, 2002, p. 301).

    Na presente citao h vrios aspectos interessantes. Em primeiro lugar, temos o tom da indignao que traz a marca da ironia entre a possibilidade histrica de compreenso racional das falhas da formao e a atitude regressiva do auto-de-f. Trata-se da reao contra jornais monarquistas depois da derrota da terceira expedio. O narrador, que estivera entre aqueles que no compreenderam o problema, acena com o ncleo de aprendizado que a guerra de Canudos traz. Trata-se de olhar para as falhas, para as fissuras. Talvez seja possvel dizer que est ali, no serto, o ncleo da formao brasileira (sua singularidade) como base recalcada da qual se sente vergonha e que se quer apagar. Euclides mostra como a mesma face reaparece na dimenso de cruzada contra inimigos imaginrios da repblica, em um mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicao incoercvel e com a mesma aberrao fantica, com que os jagunos bradava pelo Bom Jesus misericordioso e milagreiro (p. 381) Assim, no principal centro urbano, baluarte da modernizao brasileira, o comportamento traz tambm a marca da irracionalidade. Esse aprendizado d-se a partir da dimenso dolorosa de testemunhar o extermnio de uma comunidade inteira.

    A dimenso da luta de morte se desloca da guerra, propriamente dita, para o narrador que se impe a tarefa de compreender seu lugar na histria e de testemunhar por aqueles que esto silenciados, por uma Tria de taipas dos jagunos (p. 157), uma cidade destruda. Nessa dimenso, o narrador constri uma arquitetura que mostra uma natureza que j antecipa um homem, um homem que se integrou e se formou no enfrentamento das asperezas do clima e que, regressivo, configurou o meio em que Antnio Conselheiro se constitui e organizou a urbs monstruosa (p. 158) que culminou numa experincia singular. A anlise perpassada pela ambiguidade, pois Euclides sabe que no mais possvel um mundo isolado, que o avano da modernizao chegaria ao serto, ao mesmo tempo ele sabe que a forma como se d o contato desastroso.

    Talvez seja possvel dizer que estamos lidando com a viso do literal, que vive dividida na velha tragdia de Nabuco:

    Estamos assim condenados mais terrvel das instabilidades, e isto o que explica o fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... No so os prazeres do rastaqerismo, como se crismou em Paris a vida elegantes dos milionrios da Sul-Amrica; a explicao mais delicada e mais profunda: a atrao de afinidades esquecidas, mas no apagadas, que esto em todos ns, da nossa comum origem europia. A instabilidade a que me refiro, provm de que na Amrica falta paisagem, vida, ao horizonte, arquitetura, a tudo

  • 37Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    o que nos cerca, o fundo histrico, a perspectiva humana; que na Europa nos falta a ptria, isto , a forma em que cada um de ns foi vazado a nascer. De um lado do mar sente-se a ausncia do mundo; do outro, a ausncia do pas. O sentimento em ns brasileiro, a imaginao europia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amaznica ou os pampas argentinos, no valem para mim um trecho da Via pia, uma volta da estrada de Salermo a Amalfi, um pedao do Cais do Sena sombra do velho Louvre. No meio dos luxos dos teatros, da moda, da poltica, somos sempre squatters, como se estivssemos ainda derribando a mata virgem.

    Atravs da leitura de Os sertes podemos precisar de que a primeira pessoa do plural de Nabuco traz os homens do litoral: estamos assim condenados mais terrvel das instabilidades... Essa tenso entre o fundo histrico que h na Europa e a dimenso afetiva do pas no existe para sertanejo. No isolamento de 300 anos, formou-se um tipo fsico, um modo de comportamento, um conjunto de valores e uma forma religiosa, uma linguagem e uma prosdia. Enfim, Euclides, no esforo de conhecer o Brasil, descobre uma figura que lhe estranha e que forma uma comunidade autnoma pela qual luta.

    Observe-se que essa condenao, posta em primeira pessoa do plural, tambm est presente em Os sertes:

    No temos unidade de raa. No a teremos, talvez, nunca.Predestinamo-nos formao de uma raa histrica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autnoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evoluo biolgica reclama garantia da evoluo social.Estamos condenados civilizao. Ou progredimos, ou desaparecemos.A afirmativa segura (p. 71).

    No captulo de abertura da segunda parte, O homem, o narrador euclidiano constri uma imagem invertida do que colocou Nabuco. A descoberta da condio de brasilidade d-se para Nabuco, na Europa, onde h uma histria sedimentada, uma civilizao formada. No caso de Euclides, o olhar voltado para o interior descobre uma formao isolada, a mestiagem que gerou o sertanejo, mas ela caminhou para trs na histria, como aparece de modo recorrente ao longo da obra. Nesse encontro como um tipo desconhecido, em uma terra ignota, Euclides mostra a ausncia de unidade de raa. Mais do que isso, chega concluso de que estamos condenados civilizao. A expresso similar a de Nabuco, a mesma dimenso trgica de uma condenao de que, brasileiros, no podemos fugir.

    Vale insistir na formao da subjetividade desse narrador que sai de sua formao, homem do litoral para se defrontar com o Serto. Vejamos as consideraes de Tales AbSaber:3

    3 ABSABER, Tales A. M. Dois mestres: crtica e psicanlise em Machado de

  • 38SANSEVERINO, A. M. V. Numa volta do serto, aqueles desconhecidos singulares

    A dualidade do sertanejo de outra ordem: Hrcules-Quasmodo. Temos o heri que se eleva acima dos homens comuns; temos o homem com aparncia monstruosa, mas que traz dentro de si uma sensibilidade que o eleva para alm do cotidiano brutal. O esforo encontrar a imagem adequada para representar esse tipo. Assim, como a caatinga uma categoria nova, no descrita por Hegel (p. 54-55), que temos uma evoluo regressiva (p. 57), o sertanejo mostra-se como uma criatura primitiva cuja aparncia que no permite ao observador que veja um ser humano, um igual. V um monstro. preciso ver alm da aparncia, preciso ver sua fora em defender sua casa. Assim, agachado, parece uma criatura de preguia invencvel, derrotado pela terra inspita. Essa aparncia enganosa se desfaz logo que aparece um conflito, ou a necessidade perseguir uma rs fugida. Sua agilidade e sua fora aparecem e se traduzem em ao impetuosa. Nessa segunda parte, O homem, temos a descrio mais famosa de Euclides: o sertanejo antes de tudo um forte. O carter dinmico do discurso euclidiano no se interrompe na cristalizao positiva do sertanejo, mas leva descrio (negativa) de sua indiferena quanto ao futuro e sua crena supersticiosa na providncia divina. como figura tpica que Euclides constri o perfil de Antnio Conselheiro, o lder da comunidade. Personagem trgico, guiado por foras obscuras e ancestrais e por maldies hereditrias, que o levam insanidade e ao conflito com a ordem. Canudos uma comunidade messinica, construda a partir de um homem arrebatado pela idia fixa. Construiu-se como

    Este efeito subjetivante, de aspirao concreta ao absoluto, deve ser correlato, na Europa, expanso mundial do capital e da cincia a partir do sculo XVIII, mas no Brasil, tal absoluto passava pela no-inscrio, pela no introjeo, de nenhuma norma ntida delimitadora, ou ordem de razes que tivesse valor transcendente rumo a alguma humanidade reconhecida como lei geral frente ao desejo ou capricho particular. Se l tal sujeito correspondia idia da emancipao racional pela expanso reflexiva, aqui ele estava fundado em um princpio imaginrio de onipotncia, cujo resultado uma impotncia crnica que, sem abrir mo de um ncleo interessado, e vazio, da razo, apenas reproduzia a ordem social que garantia o seu predomnio radical. (ABSABER, 2007, p. 274).

    A descrio da AbSaber ajuda a caracterizar o

    esforo do narrador de Os sertes, a luta para encontrar uma forma de ordenao da experincia histrica e, mais densamente, de introjeo de uma norma delimitadora que permitisse sair da modernidade de superfcie da Rua do Ouvidor, que permitisse a emancipao racional pela expanso reflexiva. Para o interior (os sertes) e para o passado (sertanejo), o narrador encontra um tipo que se afasta da populao litornea.

    Assis e Roberto Schwarz. In: Cevasco, M. E. e Ohata, Mlton (org.) Um crtico na periferia do capitalismo: reflexes sobre a obra de Roberto Schwarz. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

  • 39Euclides da Cunha, intrprete do Brasil: O dirio de um povo esquecido

    cidade monstruosa, comunidade de fanticos, que unia matutos crdulos e vaqueiros sinistros.

    A lei do co...Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa todos os comentrio. Eram, realmente, fragilssimos aqueles pobres rebelados.Requeriam outra reao. Obrigavam-nos a outra luta.Entretanto enviamo-lhes o legislador Comblain; e esse argumento nico, incisivo, supremo e moralizador a bala. (p. 177).

    Essa passagem talvez ajude a sintetizar o teor trgico desse relato. A frgil comunidade de Canudos, fruto de trezentos anos de isolamento, precisava de outra reao. A civilizao do litoral manda rifles e balas como nica forma de moralizar, pelo aniquilamento. Canudos como Tria de taipa requer feitos picos para ser destruda, mas , ao mesmo tempo, uma recriao rebaixada da tradio, que pe o Brasil abaixo da civilizao. Pode-se observar, ento, o descompasso entre o padro de comportamento almejado (dever ser da civilizao europia) e ao cotidiana real. A civilizao a que estamos condenados vem permeada por sua prpria negao: escravido, patriarcalismo, misticismo e superstio, descontrole da afeio, desordem urbana... Em Belo Monte, homizio de bandidos temos uma ascese que de uma comunidade religiosa, que se desliga da Europa e se volta sobre si mesma. No Rio de Janeiro, a instabilidade

    litornea forma apenas um verniz civilizatrio que se rompe para aparecer violncia e fanatismo irracionais.

    Canudos talvez possa ser posta em posio simtrica a dos quilombos, tal como foi Palmares. um espao em que esses homens, esquecidos pela ordem pblica, encontram na forma arcaica da superstio e da religiosidade primitiva o acolhimento em Deus. Criam, a partir da, um lugar, um espao socialmente ordenado, para a convivncia de milhares de pessoas. A mcula desse lugar o isolamento em relao ao estado e a ordem vigente.

    A crena de Euclides no poder civilizatrio da educao, que implica em transformar essa comunidade para inseri-la na ordem da nao, que seria substituto dos rifles, da violncia destrutiva do exrcito. Na medida em que o choque de culturas inevitvel, na medida em que estamos tratando de diferentes feies do brasileiro, ento, a guerra no seria a medida legtima. Torna-se um comportamento criminoso, pois est fundado em falsa premissa (resistncia monrquica Repblica) e faz do contato uma forma de aniquilamento em que perdem os dois lados. O fundamento tico de Euclides gera indignao e leva denncia.

    A formao do narrador

    Leopoldo Bernucci (2002) mostra no prefcio que faz a Os sertes o nmero de fios discursivos que percorrem a obra de Euclides da Cunha. Temos as referncias geologia, histria, antropologia, arquitetura, linguagem militar, bblia. Enfim, alm da demonstrao de evidente demonstrao de erudio, tal profuso existe na

  • 40SANSEVERINO, A. M. V. Numa volta do serto, aqueles desconhecidos singulares

    passagem da reportagem de 1897 para a composio do livro. H vrios passagens e pontos em comum, mas h um evidente trabalho sobre a matria observada apresentada primeiramente no jornal O Estado de So Paulo. O ponto de chegada do comentrio de Bernucci mostrar que, sem perda da pretenso historiogrfica, Euclides insere em sua obra vrias notaes do discurso pico. Pode-se dizer que a esforo de preservao do discurso ao dar o trao permanente prprio da literatura erudita.

    Cabe ressaltar da trs aspectos: as mltiplas referncias discursivas, a dimenso pica e a base historiogrfica. Em primeiro lugar, as referncias esto marcadas pela posio subjetiva bastante intensa. Por exemplo, na descrio geolgica da terra, temos a projeo de caractersticas, tais como natureza torturada (p. 29), impresso dolorosa (p. 31), terror da seca (p. 40), guerra da terra contra o homem (p. 45), vegetao agonizante (p. 50) e, depois da chuva, uma mutao de apoteose, que transforma a natureza em paraso (p. 53). Esses exemplos mostram como a objetividade cientfica est permeada pela subjetividade do narrador que d feio dramtica e simblica para sua descrio. A fora de sua linguagem tal que ele antecipa na descrio da Terra a luta, tal como muitos crticos j apontaram.

    Ainda no mbito das referncias vale destacar a ambivalncia entre inferno, tal como apontara Chaves (2005), e paraso (BERNUCCI, 2002). Essas imagens revelam, alm da j referida ambio literria, uma forma de colocar o drama fora da histria, como se a travessia do serto levasse a Belo Monte, Canudos, uma t