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  i UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ETNOGRAFIAS DE SI: A EMERGÊNCIA DOS FILMES PESSOAIS  Helmut Paulus Kleinso rgen Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), como requisito à obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais. ORIENTADORA: Profª. Drª. Clarice Ehlers Peixoto. RIO DE JANEIRO 2006

Etnografias de Si

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

ETNOGRAFIAS DE SI: A EMERGNCIA DOS FILMES PESSOAIS

Helmut Paulus Kleinsorgen

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Cincias Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), como requisito obteno do grau de Mestre em Cincias Sociais.

ORIENTADORA: Prof. Dr. Clarice Ehlers Peixoto.

RIO DE JANEIRO 2006

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

ETNOGRAFIAS DE SI: A EMERGNCIA DOS FILMES PESSOAIS Helmut Paulus Kleinsorgen

BANCA EXAMINADORA

_________________________________ Prof. Dr. Clarice Ehlers Peixoto. Orientadora (PPCIS-UERJ)

__________________________________ Prof. Dr. Bianca Freire-Medeiros (CPDOC-FGV)

_________________________________ Prof. Dr. Joo Luiz Vieira (IA-UFF)

SUPLENTES

_________________________________ Prof. Dr. Valter Sinder (PPCIS-UERJ)

_________________________________ Prof. Dr. Pedro Simonard (SUESC)

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KLEINSORGEN, Helmut Paulus. Etnografia de si: a emergncia dos filmes pessoais. Rio de Janeiro: UERJ/PPCIS, 2006. 214 p.

Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

1. Antropologia, 2. Antropologia Visual, 3. Filme de Famlia, 4. Filme Experimental, 5. Filme Etnogrfico, 6. Cinema Documentrio, 7. Hlio Oiticica, 8. Ivan Cardoso.

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RESUMO

Ao enfocar o filme de famlia no contexto da produo ps-moderna, esta dissertao tem por inteno debater a questo da autenticidade, bem como o processo de legitimao cultural de sub-gneros flmicos afins surgidos na dcada de 60, como o filme dirio e o filme pessoal. A proliferao deste tipo de produo uma espcie de meio-termo entre auto-etnografias e filmes de arte - desafia as cincias sociais e, mais especificamente, a antropologia visual contempornea a compreender a emergncia de novas formas audiovisuais de representao social. A partir do estudo pioneiro de Bourdieu sobre a funo social da fotografia, debate-se a estetizao do territrio familiar e a funo social do filme amador.

ABSTRACT

Focusing on the home movies in the context of post-modern culture, this dissertation intends to debate the question of authenticity, as well as the process of cultural legitimation of filmic sub-genres originated in the sixties: the diary film and the personal film. The proliferation of this type of film production something in-between the autoethnographies and the art films challenges the social sciences and, more specifically, the contemporary visual anthropology to understand the appearance of new audiovisual forms of social representation. The important work of Bourdieu on the social rules of photography is a starting point to debate the aesthetics of private family domain and the social rules of amateur film. iv

AGRADECIMENTOS

Agradeo a confiana, pacincia e incentivo em mim depositados por minha orientadora, Clarice Peixoto; os valiosos comentrios de Joo Luiz Vieira e Bianca Freire-Medeiros; a disponibilidade de Maria Claudia Coelho de integrar a Banca e aos amigos Carolina Herszenhut, Silvia Aguio, Anna Paula Vencato e Mait Carmo por toda ajuda e suporte nos momentos difceis.

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SUMRIO

AGRADECIMENTOS SUMRIO RESUMO ABSTRACT

v vi iv iv

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INTRODUO

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A FORMAO DE FRONTEIRAS NO TERRITRIO DA ANTROPOLOGIA VISUAL (1880 1930) 6

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LUZ, CMERA, AO! O FILME DE FAMLIA SOB OS HOLOFOTES DA FAMA 16

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A DESCONSTRUO E A RECICLAGEM DO CINEMA NO CONTEXTO PS-MODERNO

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OS FILMES PESSOAIS DE HLIO OITICICA E IVAN CARDOSO 73

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CONSIDERAES FINAIS

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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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ANEXOS FILMOGRAFIA

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1 INTRODUO

O primeiro contato terico com o cinema aconteceu nas aulas de Cinema Documentrio da graduao em Comunicao Social da UFRJ. Sempre fui um cinfilo devorador de resenhas e crticas de cinema. Justamente porque parte do curso era devotada exibio sistemtica de documentrios, fui imediatamente atrado por este novo universo. Nada melhor para um cinfilo do que passar o tempo vendo filmes.

Nesse ano, 1999, o cinema documentrio no Rio de Janeiro ainda no desfrutava do mesmo prestgio, encantamento do pblico e espao nos meios de comunicao que tem hoje. Lembro-me de uma palestra do Eduardo Coutinho no lanamento de "Santo Forte" (1999), para uns poucos universitrios reunidos na Casa da Cincia da UFRJ: ele dizia que no se importava que seu "tipo" de cinema fosse considerado comercialmente invivel pelo grande circuito comercial e ressaltava o seu compromisso com este gnero, afirmando preferir restringir enormemente o seu pblico a reduzi-lo a um formato televisivo considerado mais palatvel. Na poca, a veiculao de documentrios com cerca de uma hora, na rede televisiva, representava praticamente um ato de f por parte de seus realizadores. A televiso a cabo no Brasil ainda engatinhava seus primeiros passos.

Em 2001, cursei temporariamente Film and Media no Hunter College - City University of New York e a disciplina Experimental Film and Vdeo (Filme e Vdeo Experimental), tambm com exibio de filmes, me chamou a ateno. A princpio, eu no via a menor relao entre o cinema documentrio e o cinema experimental. Alis, pouco ou nada conhecia sobre cinema experimental. Para meu espanto, logo na primeira aula, foram mostrados e discutidos dois filmes com os quais eu me familiarizara na disciplina sobre cinema documentrio (UFRJ): "Berlin, Sinfonia da Cidade" (1927), de Walther Ruttman e "O Homem com uma cmera na mo" (1928), de Dziga Vertov. Afinal, seriam estes filmes oriundos de uma tradio documental ou de uma tradio experimental? Por que o cinema documentrio e o cinema experimental surgem como categorias estanques se eles apresentam uma histria comum?

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Creio que um dos primeiros elos de unio destes dois gneros o cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti com o filme "Rien que les heures" (1926), um precursores das chamadas "sinfonias da cidade".

Ele foi tambm responsvel por uma revoluo na ainda incipiente escola documentarista inglesa, capitaneada por John Grierson. Alm de implementar as novas tcnicas de captao e edio de som, Cavalcanti tambm advogaria firmemente em nome de uma linguagem documental menos linear e mais experimental, em oposio a Grierson. Mas, antes de avanar neste ponto, gostaria de assinalar alguns filmes que me ajudariam a desenvolver uma perspectiva mais difusa e dialgica entre ambos os gneros. So eles: "Land without bread" (1933) de Luis Buuel, "Kiss" (1963) de Andy Warhol, "Daughter Rite" (1978) de Michelle Citron e "Goshogaoka" (1997) de Sharon Lockhart.

Parte do cinema experimental deliberadamente parodiava o cinema documentrio (dentre outros gneros) ao mesmo tempo em que, de maneira similar a este, preocupava-se em revelar alteridades. Enquanto o cinema documentrio adotava, desde seu nascimento na dcada de 30, uma postura essencialmente pragmtica, o cinema experimental, ligado inicialmente s vanguardas europias, colocava-se em contraposio s narrativas hegemnicas e esttica foto-realista.

A ironia mordaz de "Land without bread" - um pastiche dos "filmes de viagem" da poca e dos prottipos dos filmes etnogrficos e documentrios - influenciaria de forma decisiva o grupo de cineastas experimentais agrupados em Nova York, na dcada de 60, (como Warhol) e seus futuros herdeiros j plenamente inseridos na cultura ps-moderna (como Citron e Lockhart). "Kiss" parodiava os beijos hollywoodianos bem como sutilmente expunha os cdigos morais que os regiam. "Daughter Rite" apropria-se do cinma verit e do melodrama para montar um falso relato de duas irms que prestam contas sobre o relacionamento disfuncional com sua me. "Goshogaoka" ficcionaliza uma aula de educao fsica no interior do Japo e, assim, sugere os esteretipos envolvidos no olhar ocidental sobre o oriente (a bela "aula" de "Goshogaoka" na verdade inteiramente

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3 coreografada pela cineasta).

Os quatro filmes citados, abrangendo um intervalo de cerca de sessenta anos, eram apresentados nas aulas de filme e vdeo experimentais ante uma anlise comparativa. Ainda que esteticamente fossem bastante diferentes entre si, eles revelavam em seu conjunto o desenvolvimento e encadeamento de um discurso de desnaturalizao da imagem; questionamento da sociedade de consumo; banalizao da arte e reconstruo identitria do indivduo.

J integrante do Programa de Mestrado em Cincias Sociais da UERJ, uma vez mais iria defrontar-me com dois novos gneros cinematogrficos: o filme etnogrfico e o filme de famlia. Igualmente leigo em ambos os assuntos e profundamente embebido de uma perspectiva comparativa assimilada nas aulas sobre cinema experimental, pude observar alguns pontos, como o enclausuramento do filme etnogrfico no interior da academia, o embate entre a utilizao da imagem como estrito mtodo de pesquisa ou como fonte (objeto) irrestrita de produo de conhecimento e certa dificuldade de incorporao de outros gneros nos artigos nacionais dedicados antropologia visual.

Percebi que, neste contexto, o filme de famlia emergia como um dos poucos gneros etnograficamente "aceitos". Os outros gneros, embora no ignorados completamente, acabavam em sua maioria relegados a outras reas de conhecimento (teoria do cinema, comunicao social, literatura) ou timidamente mencionados, exceo do cinema documentrio.

A leitura paralela de dois livros daria a largada para aquilo que mais tarde constituiria minha qualificao - "Un Art Moyen", de Bourdieu e "Le film de famille. Usage priv, usage public", organizado por Odin. Escrito em 1965, o pioneiro e ainda atual livro de Bourdieu preocupa-se em inserir a fotografia nas cincias sociais de modo a revelar as hierarquias impregnadas em seu uso social. "Le film de famille ...", publicado trinta anos depois do livro de Bourdieu (1995), pondera por sua vez sobre o pertencimento dos filmes de famlia ao mbito privado e tematiza seu uso em outros espaos e por outros gneros,

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4 como os filmes experimentais e os filmes de fico.

A partir de ento, decidi empreender uma pesquisa focalizada nas intersees e distanciamentos entre os filmes de famlia (tendo em vista uma perspectiva etnogrfica) e os filmes experimentais. Um sub-gnero provou-se ideal para este tipo de pesquisa: o filme pessoal. Os filmes pessoais seriam hbridos dos filmes de famlia e dos filmes experimentais. Empregando a colagem e o pastiche segundo uma lgica ps-moderna, eles rompem as barreiras entre os gneros (documentrios, filmes etnogrficos, filmes de fico e filmes de famlia) no intuito de reconfigurar inmeras identidades fragmentrias do sujeito em detrimento de uma nica representao totalizante.

Dentre os filmes anteriormente citados, "Daughter Rite" seria o melhor exemplar dos filmes pessoais. No entanto, o desejo de aproximar a anlise de uma bibliografia - em grande parte estrangeira - do cinema nacional, acabou levando-me filmografia de dois brasileiros ligados ao movimento contracultural: Hlio Oiticica e Ivan Cardoso.

a partir destas questes e inquietaes que apresento a estrutura desta dissertao. O primeiro captulo, "A Formao de Fronteiras no Territrio da Antropologia Visual (1880 1930)", destaca o comeo do processo de fronteirizao entre os principais gneros: o filme etnogrfico, o cinema documentrio e o filme experimental.

O segundo captulo, "Luz, Cmera, Ao! O filme de Famlia sob os Holofotes da Fama", introduz o contexto de criao dos filmes pessoais na dcada de 60 e debate as noes de autoria e autenticidade dos filmes de famlia levando-se em considerao as transformaes sociais em vigor no mbito da famlia nuclear burguesa.

O terceiro captulo, "A Desconstruo e a Reciclagem do Cinema no Contexto Psmoderno", discute o impacto da cultura ps-moderna no cinema experimental e relaciona este processo constituio da arte multimdia de Hlio Oiticica.

O quarto captulo, "Os Filmes Pessoais de Hlio Oiticica e Ivan Cardoso", dedica-se

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5 anlise comparativa dos curtas-metragens "Agripina Roma-Manhattan" (1972), de Oiticica; "H.O." (1979); " Meia-noite com Glauber" (1997) e "Heliorama" (2004), de Ivan Cardoso.

Em "Consideraes finais" procuro retomar, e amarrar estas questes cine-antropolgicas que me envolveram nestes anos de formao.

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CAPTULO UM

A FORMAO DE FRONTEIRAS NO TERRITRIO DA ANTROPOLOGIA VISUAL (1880 1930)

O famoso ditado de Santayana que diz: os que no se lembram do passado esto condenados a repeti-lo pode ser aplicado aos maus polticos, mas uma bela regra para a cincia. Na cincia e aqui podemos incluir o filme etnogrfico aqueles que no entendem as conquistas do passado podem ter sorte suficiente para reinvent-las. Infelizmente a histria do filme etnogrfico j conta com 50 anos de desconhecimento do passado, e freqentemente sem capacidade de reinvent-la. Karl G. Heider

O filme etnogrfico1 e, mais recentemente, a antropologia visual conseguiram conquistar em pouco mais de um sculo de experimentaes cinematogrficas um lugar particular nas cincias sociais. Contudo, se algum consenso em torno da relevncia do meio audiovisual na constituio do saber scio-antropolgico vem progressivamente se instaurando, o mesmo no se pode dizer acerca de uma definio mais clara de suas concepes, bem como de suas interpenetraes.

Sobre a questo da definio do filme etnogrfico, Prins comenta: Como julgar o grau de etnograficidade de um documentrio? Valentes esforos por formular critrios para o rtulo etnogrfico acabaram ignorados, ou atolados na academia. Muito da crtica contra o estabelecimento de esquemas formais bem fundamentada, j que o filme etnogrfico se insere em um campo pantanoso chamado antropologia. Em eterno estado de fluxo intelectual, a antropologia jamais definiu de forma realista seu objeto de estudo, e continua vaga quanto ao significado de cultura, seu conceito central ... Considerando-se essa comoo, seria de surpreender se os antroplogos visuais de fato tivessem conseguido definir programaticamente o filme etnogrfico. PRINS, Harald. Antropologia visual ou virtual? No deserto de um gnero conturbado., Cadernos de Antropologia e Imagem n. 14, p. 17-34. Rio de Janeiro: UERJ. 2002.

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7 Enquanto a contnua segmentao de gneros flmicos e de escolas estticas questiona a noo de filme etnogrfico na atualidade, a definio de antropologia visual tenta desprender-se do campo estritamente metodolgico para legitimar-se enquanto rea de conhecimento autnoma. Esses debates no campo audiovisual no aconteceram fortuitamente. Eles acompanham uma srie de dilemas e transformaes da antropologia oriundos do contexto ps-colonial.

Embora o filme etnogrfico tenha nascido praticamente junto com a prpria descoberta do cinema2, no final do sculo XIX, ao contrrio de seus congneres (como o filme de famlia, os cine-jornais, os filmes truques e os documentrios de viagens), este se restringiu pesquisa estritamente cientfica. Considerados como pais do filme etnogrfico, o inventor Etienne-Jules Marey e o pesquisador Felix-Louis Regnault foram os primeiros autores a discorrer sobre a utilidade e a importncia das imagens em movimento para o estudo descritivo do homem.

Se Edison estava mais interessado na explorao comercial do seu kinetoscpio realizando filmes ficcionais mais do que documentais, Marey e Regnault utilizavam seus experimentos cronofotogrficos para desenvolver reflexes tericas e metodolgicas sobre o comportamento humano, a locomoo em especial. Pioneiros na aplicao de novas tcnicas para o estudo do homem, suas pesquisas se desenvolviam mais no campo da fisiologia humana do que no da antropologia social. (Peixoto, 1999)

No tardou muito para que o intuito cientfico das experimentaes de Marey e Regnault fosse reapropriado por expedicionrios no perodo da expanso colonialista europia.

Os instrumentos que captavam a imagem do Outro fascinavam pesquisadores exploradores, mas eram utilizados com freqncia para a explorao dos

e

povos

Uma exposio mais detalhada sobre o surgimento do filme etnogrfico pode ser encontrada em: Cadernos de Antropologia e Imagem. N. 1. Rio de Janeiro: UERJ. 1995.

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8 desconhecidos. Para De Brigard (1995), o filme etnogrfico nasceu como um fenmeno colonialista no momento das grandes invenes tecnolgicas. (Peixoto, 1999)

Aps a consagrao da observao participante como uma das principais metodologias para o estudo dos povos em antropologia, o filme etnogrfico desvincula-se do discurso analtico-cientfico, sendo assim re-conceituado como importante fonte documental de pesquisa e defendido como eficaz instrumento didtico na formao de etngrafos, bem como de estudantes do ensino pblico em geral. (Griaule, 1957)

Antes de abordar a institucionalizao do documentrio como gnero cinematogrfico, vale a pena destacar duas produes do incio do sculo XIX consideradas por muitos como os primeiros filmes etnogrficos propriamente ditos: In the Land of the Headhunters (1914), de Edward Curtis e Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty.

Embora ambos sejam cnones do filme etnogrfico, sua categorizao como tal invariavelmente camufla uma srie de complexas particularidades, tendo-se em vista a ainda incipiente formao do discurso antropolgico visual em si.

Num interessante captulo do livro Experimental Ethnography: The work of film in the age of vdeo, Russell aponta Headhunters e Nanook como filmes sem paralelos na histria do cinema. Levando-se em considerao a extrema intertextualidade dos filmes em virtude do momento de transio esttica/conceitual em que foram concebidos, Headhunters e Nanook podem ser re-interpretados no como tentativas fracassadas ou ingnuas de filmes etnogrficos, e sim como autnticos representantes de um momento em que a conveno acerca do que poderia ou no ser considerado etnogrfico no meio cinematogrfico ainda dava margem emergncia de propostas diversas.33

O seguinte trecho de Jordan confirma a hiptese de Russell: ...pode-se compreender como Nanook of the North, de Robert Flaherty, lanado em Nova York no final de 1922, provoca uma verdadeira ruptura e cria um gnero particular: a etnofico. Flaherty inventa um processo narrativo construindo o discurso em imagens com a ajuda da cmera. Assim, rompe com seus predecessores. De fato, exceto Curtis ou Dixon que optam pela reconstituio, e de Major Reis, que tenta montar seus documentos a prise de vue, a imensa maioria dos realizadores se contenta, em geral, em projetar os documentos brutos colando-os, simplesmente, um aps o

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Popularizado como gnero entre 1908 e 1913, o prottipo do western hollywoodiano atraiu um grande pblico por meio de suas representaes ficcionais do ndio norte-americano. A centralidade da figura do ndio na indstria de entretenimento levou Curtis a ambicionar algo em 1914 que ainda hoje constitui um enorme desafio/dilema para o filme etnogrfico tradicional o desejo de inscrever um tipo de produo comprometida com a autenticidade no circuito comercial. At ento, apesar do sucesso dos filmes, os ndios eram comumente interpretados por atores brancos e, no raro, eram representados como selvagens sanguinrios.

No af de preservar os ltimos vestgios da cultura Kwakiutl sem, contudo, abrir mo do apelo comercial presente na frmula consagrada pelo cinema de atraes, Curtis deu origem a um hbrido que antecipava uma srie de elementos intertextuais digeridos muito posteriormente pela antropologia ps-colonialista. 4

O filme etnogrfico contemporneo ainda apresenta grande dificuldade de absoro fora do mundo acadmico. Embora igualmente produzido numa das mdias mais populares aps a escrita, a fotografia e o telefone, o filme etnogrfico em geral teima em relegar a imagem e todos os inmeros recursos tcnicos de que o meio dispe fala dos personagens. Discutida mais extensamente a diante, fica a seguinte pergunta: Se ambos lidam prioritariamente com a representao do outro como matria-prima, por que o filme etnogrfico perde cada dia mais espao para o cinema documentrio?

outro. Flaherty alia o conhecimento da linguagem cinematogrfica com o ntimo conhecimento do objeto tratado. In Primeiros contatos, primeiros olhares, Cadernos de Antropologia e Imagem. N.1. p. 11-22. Rio de Janeiro: UERJ. 1995. 4 Muitos dos progressos na teoria feminista de cinema (feminist film theory) fornecem uma fundao para a teoria ps-colonial, que pode ser descrita como uma segunda fase das polticas de representao nos estudos de cinema (film studies). Anlises sobre o olhar originadas no interior das polticas de diferena sexual e a compreenso terica do cinema como uma linguagem de representao codificada foram instrumentais teorizao do cinema ps-colonial ... Feminismo, ps-modernismo e a etnografia experimental esto ligados atravs de uma imbricao da teoria na forma textual ... Desde Riddles of the Sphinx (Laura Mulvey e Peter Wollen, 1977) at The Man Who Envied Woman (Yvonne Rainer, 1985) e Adynata (Leslie Thornton, 1983), a integrao da teoria com a prtica foi um meio fundamental atravs do qual mulheres cineastas lograram questionar as formas de representao com as quais trabalham. O cinema avant-garde sempre teve uma relao tensa mas significativa com a teoria, porm foi o feminismo que dominou o conceito do social. Russel, Catherine. Experimental Ethnography: The work of film in the age of vdeo. Duke University Press. Durham e Londres, 1999. (traduo minha)

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10 Ao transformar os descendentes Kwakiutl em intrpretes de um passado ancestral j extinto, Curtis torna-se pioneiro na promoo de um gnero performativo de representao etnogrfica que escapa das armadilhas convencionais de uma esttica realista.

Headhunters um filme que impe uma discusso mais ampla do conceito

de

etnogrfico na histria do cinema. O aspecto eminentemente teatral de Headhunters suplementa a narrativa com toda uma discusso sobre etnicidade que remonta produo de filmes de ndio dos primeiros trinta e cinco anos da histria do cinema, incluindo os primeiros westerns que inspiraram Curtis. Nanook tornou-se um exemplo aclamado de cinema de arte precisamente porque seu humanismo universal subjuga a questo do nativo autoridade da esttica realista. J em Headhunters, o esteretipo do primitivo resgata a subjetividade do nativo a partir de um discurso de especificidade e historicidade. A mistura nica de arte e cincia presente no filme precisa ser reconhecida como um embrio de filme experimental com um complexo direcionamento de pblico. (Russel, 1999: 110)5

Embora Nanook esteja muito mais prximo da esttica realista griersoniana que consagraria o cinema documentrio posteriormente, ambos os filmes transformaram a seu modo o paradigma do selvagem na medida em que deram contornos picos universais a estas duas culturas indgenas. Flaherty e Curtis acabaram rompendo de forma bastante peculiar a distino entre fico e no-fico e so timos instrumentos para re-avaliarmos hoje a constante tentativa do filme etnogrfico de banir outros gneros cinematogrficos de sua narrativa.

E nasce o documentrio O filme como relaes pblicas do Estado

Credita-se a Grierson a primeira utilizao do termo Documentrio (Documentary). A palavra surgiu na resenha Flahertys Poetic Moana sobre o filme Moana (1926) de Robert Flaherty publicada no The New York Sun de 8 de fevereiro de 1926. (Penafria, 2004)5

Traduo minha.

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11 Grierson traduziu a palavra francesa documentaire - que se referia aos filmes de viagem para qualificar a maestria com que Flaherty conjugava o aspecto documental ou realstico do filme com o apuro tcnico-esttico de suas imagens.

Moana, which was photographed over a period of some twenty months, reveals a far greater mastery of cinema technique than Mr. Flahertys previous photoplay, Nanook of the North. In the first place, it follows a better natural outline that of Moanas daily pursuits, which culminate in the tattoing episode, and, in the second, its camera angle, its composition, the design of almost every scene, are superb. The new panchromatic film used gives tonal values, lights and shadings that have never been equaled. (Grierson, 1926: 25- 26)

Nesta resenha, a palavra documentrio ainda no empregada como o substantivo que designaria todo um gnero flmico, mas como o adjetivo documental.

Of course Moana, being a visual account of events in the daily life of a Polynesian youth and his family, has documentary value. (Grierson, 1926: 25, grifo meu)

interessante notar que, embora a consagrada definio de documentrio como um tratamento criativo da realidade tenha sido formulada posteriormente por Grierson no texto First principles of documentary (1932), a prpria institucionalizao do gnero empreendida pelo mesmo Grierson esteve desde o incio diretamente relacionada ao comprometimento esttico-ideolgico do nascente documentrio com a propaganda estatal inglesa.

Foi atravs do contato com Sir Stephen Tallents, ento secretrio do Empire Marketing Board (EMB) em 1927 e principal entusiasta da necessidade de uma campanha estatal de relaes pblicas de larga escala, que Grierson conseguiu convencer o governo britnico a incorporar uma unidade audiovisual no interior deste instituto.

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12 ...the British documentary group began not so much in affection for film per

se as in affection for national educationits origins lay in sociological rather than aesthetic aims. Many of uswere impressed by the pessimism that had settled on Liberal theory. We noted the conclusion of men such as Walter Lippman, that because the citizen under modern conditions, could not know everything about everything all the timedemocratic citizenship was therefore impossible. Weturned to the new wide-reaching instruments of radio and cinema as necessary instruments in both the practice of government and the enjoyment of citizenship. (Grierson apud LEtang, 1999, grifo meu)

Se as primeiras definies concretas de documentrio procuravam libertar o novo gnero de um compromisso unvoco com o real, incitando e aclamando a busca da criatividade no tratamento da realidade, por outro lado, todo o passado cinematogrfico rico em experimentaes foi na prtica banido do discurso esttico do documentrio. O potencial revolucionrio deste tipo de produo foi habilmente contido para que o mesmo no oferecesse riscos ao projeto de construo de slidas identidades nacionais durante o entreguerras.

Profundamente influenciado por tericos pessimistas quanto relao entre democracia e opinio pblica, Grierson via o filme essencialmente como uma ferramenta de conteno das massas a servio do Estado. O filme deveria educar o pblico de modo a torn-lo consciente da importncia do papel do cidado nas engrenagens da sociedade, evitando assim o colapso da ordem necessria manuteno do Estado Moderno.

...democracy was in danger of collapse, because its citizens did not know how to make it work. The weakness, therefore, was essentially in the realm of public education and information. The vast possibilities of the new mass mediahad not been spotted as the key to the problem. Film, because of its obvious mass popularity, and the vividness of the visual imagewas an obvious choice as a medium in which to put the theory into practice. (Grierson apud LEtang, 1999)

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13 a partir de ento que nasce uma ciso na histria do cinema que colaborou para a ascenso ou queda de trs gneros-irmos: o filme etnogrfico, o cinema davant-garde ou cinema experimental e o cinema documentrio.

Produes que exploravam novas formas de retratar o cotidiano, as Sinfonias da Cidade (City Symphonies) foram pioneiras na incorporao de novos efeitos visuais e sonoros esttica foto-realista. Filmes como Rien que les Heures (1926), do brasileiro Alberto Cavalcanti, Berlin: Sinfonia de uma metrpole (1927) do alemo Walther Ruttman, O Homem com uma cmera na mo (1928) do russo Dziga Vertov, So Paulo: Sinfonia de uma Cidade (1929) dos hngaros Rudolf Rex Lustig e Adalberto Kemeny, The Bridge (1928) e Rain (1929) do holands Joris Ivens e A Propos de Nice (1929) do francs Jean Vigo, tiveram seu carter artstico renegado pela incipiente escola documentarista inglesa, muito embora a mesma viesse a se utilizar de vrias inovaes tcnicas introduzidas pelas mesmas Sinfonias da Cidade. Somente aps a dcada de 60, quando os rgidos princpios do documentrio propostos por Grierson comeam a perder sua fora, o cinema de vanguarda re-assimilado ao cinema documentrio e etnogrfico, ajudando a implementar uma verdadeira reforma esttico-ideolgica destas escolas no contexto do pscolonialismo.

No texto Documentary Film and the Modernist Avant-Garde, Nichols aponta trs elementos pr-existentes que dariam forma escola documentarista: esttica foto-realista, estrutura narrativa e colagem/fragmentao modernista. Ainda segundo o autor, Grierson teria se preocupado em conter e adaptar ao mximo este ltimo aspecto representativo do cinema experimental para que o documentrio no fugisse ao controle de sua vocao civilizadora.

The most dangerous element, the one with the greatest disruptive potential modernist fragmentation required the most careful treatment. Grierson was greatly concerned by its linkage to the radical shifts in subjectivity promoted by the European avant-garde and to the radical shifts in political power promoted by the

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14 constructivist artists and Soviet filmmakers. He, in short, adapted films radical potential to far less disturbing ends. Modernist techniques of fragmentation and juxtaposition lent an artistic aura to documentary that helped distinguish it from the cruder form of early actualits or newsreels. These techniques contributed to documentarys good name, but they also threatened to distract from documentarys activist goals. The proximity and persistence of a modernist aesthetic in actual documentary film practice encouraged, most notably in the writings and speeches of John Grierson, a repression of the role of the 1920s avant-garde in the rise of documentary. Modernist elitism and textual difficulty were qualities to be avoided. The historical linkage of modernist technique and documentary oratory, evident since the early 1920s in much Soviet and some European work failed to enter into Griersons own writings. (Nichols, 2001)

Panorama

Este breve panorama do surgimento do filme etnogrfico e do cinema documentrio como gneros distintos e autnomos tem por objetivo questionar a demarcao de algumas fronteiras na produo audiovisual, especificamente no que se refere fronteira entre as linhagens ficcionais e cientficas do filme etnogrfico (Prins, 2002). Tanto do ponto de vista ideolgico quanto do esttico, ambos os gneros sofreram diversas transformaes desde o surgimento de suas primeiras produes. Embora a noo da apreenso fiel de uma nica realidade tenha sido praticamente descartada na atualidade por cineastas e tericos de ambas escolas, a constante reproduo de categorias afins como Filme Etnogrfico, Cinema Documentrio, Cinema Experimental e Filme de Famlia, ainda camufla uma srie de conflitos e especificidades nos discursos legitimadores destes gneros.

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15 Os filmes etnogrficos so um subgrupo dos filmes documentrios em geral. Quais as implicaes disto? Em primeiro lugar, os antroplogos no devem permitir que seus interesses se restrinjam cultura-de-gueto dos chamados filmes etnogrficos, e sim aceitar que a questo sobre quo adequadamente o filme apresenta (e na linguagem ps-moderna, re-presenta) algum lugar no mundo tem sido discutida desde o nascimento do cine-cmera. Desde os primrdios da histria do cinema discute-se continuamente as diferenas entre filmes documentrios e filmes obviamente de fico; os primeiros entusiastas do documentrio, como Grierson e Rotha, argumentaram com veemncia sobre a existncia de diferenas fundamentais entre os dois cinemas, atribuindo ao documentrio uma verdade maior e , conseqentemente, um carter moral superior (Loizos, 1995: 55)

Enquanto a produo de filmes etnogrficos periga tornar-se cada vez mais obsoleta na medida em que se apega a convenes que esto na verdade em constante processo de mudana, a anlise terica do audiovisual no campo antropolgico, por sua vez, acaba restringindo enormemente seus objetos de estudo a alguns poucos filmes e fotografias produzidas e consumidas no mbito da prpria academia.

O captulo seguinte Luz, Cmera, Ao! O Filme de Famlia sob os Holofotes da Fama busca desnaturalizar algumas concepes acerca da debatida autenticidade dos chamados Filmes de Famlia e aponta a emergncia de um sub-gnero do filme experimental, os Filmes Pessoais. Localizados nos interstcios de vrios gneros, estes filmes figuram como interessantes exemplos de uma produo cuja principal caracterstica a reformulao da questo da legitimidade/autoria no contexto da cultura ps-moderna. Pouco a pouco, estes filmes experimentais tm conseguido vencer o esteretipo de filmes de arte, forjado ainda na dcada de 30 por meio da institucionalizao do cinema documentrio.

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16 CAPTULO DOIS

LUZ, CMERA, AO! O FILME DE FAMLIA SOB OS HOLOFOTES DA FAMA

Em O Filme de famlia no interior da instituio familiar, Odin define o filme de famlia a partir da delimitao das esferas pblica e privada no contexto de produo e recepo de filmes.

Por filme de famlia compreendo um filme (ou vdeo) realizado pelo membro de uma famlia a propsito de seus personagens, acontecimentos ou objetos relacionados de uma forma ou outra histria desta famlia e ao uso privilegiado dos membros desta famlia. (Odin, 1995: 27) 6

Deixando momentaneamente de lado a peculiaridade esttica dos filmes de famlia, esttica essa que continuamente apropriada pelos mais diversos gneros flmicos (comerciais, documentrios, programas televisivos, filmes de fico); a atribuio de certa aura confidencial e corporativista s representaes familiares como alguns de seus principais elementos de conceituao terica um interessante indcio da necessidade de reavaliao da esfera familiar de representao a partir de um ambiente simblico diverso modelado pela produo miditica contempornea.

Se assistir banalidade/idiossincrasia do cotidiano familiar na televiso parece-nos hoje cada vez menos absurdo ou improvvel7, soa demasiado precipitado decretar a proliferao de um nmero exponencial de gneros bastardos do filme de famlia, como se houvesse uma prescrio a priori do real familiar.6 7

Traduo minha. A propagao de programas de TV baseados em determinados formatos de reality show consagrados pela MTV norte-americana como The Osbournes que exibe o cotidiano da famlia do roqueiro Ozzy Ousbourne - revela certa pr-disposio do pblico mdio em assistir/consumir o que antes era restrito ao domnio privado.

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17 Obviamente, para alm da discusso metafsica daquilo que pode ou no ser considerado como a legtima apreenso do real no meio audiovisual, sem dvida, existem elementos estticos e de produo que distinguem determinados gneros flmicos de outros8. Contudo, os gneros flmicos em si no do conta do significado de suas representaes. O prprio filme de famlia (descendente direto da fotografia de famlia) era considerado h bem pouco tempo como o no-gnero, caracterizado assim por cineastas profissionais, crticos e acadmicos como uma produo a-esttica e extremamente subjetiva, posicionada vrios degraus abaixo na escada hierrquica dos objetos de estudo legtimos9.

No interior do seio familiar ocidental, desde os tempos mais remotos, quando era a pintura e no a fotografia (ou filme 8mm, o vdeo e os pixels digitais) a responsvel pela imortalidade de grupos sociais, um atencioso cientista social desprovido dos tantos pudores que envolvem este tipo de objeto de pesquisa poder perceber um contnuo embate entre o comercial e o no-comercial, ou seja, a presena de um sistema de valores de classe nas prticas familiares mais ordinrias muitas vezes imperceptvel a seus membros.

... as ocasies fotografveis, assim como os objetos, os lugares e os personagens fotografados ou mesmo a composio destas imagens, tudo parece obedecer a certos cnones implcitos que geralmente se impem e que os amadores informam e os estetas aperfeioam como tais, mas somente para denunci-los como falta de bom gosto ou erro tcnico. Se nestas fotografias solidificadas, posadas, artificiais, preparadas segundo as regras de certa etiqueta social, a qual produz os fotgrafos de festa de famlia e de souvenir de frias, no pudemos reconhecer este corpo de regras implcitas ou explcitas que definem a esttica, sem dvida por termos deixado na incerteza, uma definio mais estrita (e socialmente condicionada) da legitimidade cultural.

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Para uma exposio detalhada acerca dos elementos estticos que caracterizariam o filme de famlia ver Roger Odin, Le Film de Famille dans LInstitution Familiale. In ODIN, r. (org) Le film de famille. Usage priv, usage public. Paris, ed. Mridiens Klincksieck, p: 27-42, 1995. 9 Ver Allard, Bourdieu, Maresca, Odin.

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18 ... Assim, a maior parte da sociedade pode estar banida do universo da cultura legtima sem estar banida do universo da esttica. (Bourdieu, 1965: 25-26) 10

Quando em 1965 Bourdieu questionou a interiorizao de limites estticos urbanos externos prtica fotogrfica de camponeses franceses, o peso de certas convenes sociais em torno do universo das prticas fotogrficas tornou-se mais claro, banindo de uma vez por todas a comum objetificao das restries tcnicas e financeiras de determinados grupos.

A fim de estudar as caractersticas da prtica fotogrfica realizada na cidade e no campo (Paris e Lille, respectivamente), Bourdieu comparou dados estatsticos extrados de uma enqute que coordenou em 1963 no Centre de Sociologie Europenne com dados estatsticos obtidos de algumas pesquisas do mercado fotogrfico Francs realizadas na mesma poca. 11 A concluso mais bvia relacionaria a prtica da fotografia camponesa aos rituais familiares e presena do fotgrafo de famlia, ao passo que, na cidade, se verificaria uma crescente preocupao esttica e com fins de lazer na fotografia realizada por diferentes camadas sociais urbanas (desde empregados at profissionais liberais e empresrios). Evitando ater-se ao determinismo de explicaes orientadas por relaes diretas de causa e efeito, as quais apontavam os recursos econmicos como impulsionadores da atividade fotogrfica, Bourdieu defende na introduo de Un Art Moyen uma abordagem sobre o impacto social da fotografia calcada nos conceitos de habitus12 e ethos13 de classe - muito embora estes s fossem aprofundados pelo autor anos mais tarde.

Dando como exemplo a dificuldade concreta enfrentada por filhos de operrios franceses de ingressarem numa faculdade de direito ou medicina o que os impelia a se contentaremTraduo minha. A pesquisa dirigida por Bourdieu foi encomendada pela empresa Kodak-Path. O Centre de Sociologie Europenne entrevistou 691pessoas, dentre as quais 262 eram de Lille e 276 eram parisienses. Para informaes mais detalhadas sobre os estudos mencionados, ver apndice (Bourdieu, 1965). 12 Conceito de habitus: esquemas estruturados de percepo, pensamento, ao, formados a partir dos modos de viver e de pensar das diferentes classes sociais, e que se traduzem por predisposies ou disposies durveis em direo ao. (Nogueira, 1989). 13 Conceito de ethos cultural para Bourdieu: um sistema de valores implcitos e interiorizados, que definem as atitudes face ao capital cultural e instituio escolar. (Bourdieu, 1998).11 10

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19 com outros cursos e contribua para a manuteno da estrutura de relaes de classe; Bourdieu comparou tais restries sociais muitas vezes estatisticamente representadas como o cumprimento de vocaes ao conceito de habitus de classe:

O habitus de classe no outra coisa seno essa experincia (em seu sentido mais comum) que permite perceber imediatamente tal esperana ou ambio como razovel ou acessvel, tal conduta como conveniente ou inconveniente. Em uma palavra, uma antropologia total deve culminar na anlise do processo segundo o qual a objetividade arraiga-se em e atravs da experincia subjetiva; deve superar, englobando-o, o momento do objetivismo, e fund-lo em uma teoria da exteriorizao da interioridade e da interiorizao da exterioridade. (Bourdieu, 1965: 21)

Da mesma maneira, Bourdieu pde observar que as respectivas justificativas para a prtica fotogrfica na provncia e na cidade, bem como entre indivduos urbanos de classes sociais distintas, escondiam sob o manto aparente das limitaes financeiras o peso da exigncia de diferenciao entre os grupos de acordo com a lgica do ethos de classe. Camponeses identificavam a prtica fotogrfica como registro de seus ritos familiares em ntida contraposio fotografia de lazer e artstica praticada na cidade (o que representaria um luxo frvolo). J as camadas mdias, por mais que afirmassem estar distantes de uma utilizao tradicional da fotografia (voltada para a foto de famlia), pouco ou nada diferiam da esttica popular em suas prprias fotos. A partir de ambigidades como estas, Bourdieu concluiu que os tipos de fotos (de famlia, de turismo, como hobby, artsticas) dependem do sistema de valores implcitos do grupo. Seja ela considerada mais ou menos artstica, a fotografia preservaria sua funo social de fortalecer e re-integrar diferentes grupos a partir de suas prprias normas.

poca da publicao de Un Art Moyen, Bourdieu preocupou-se em demonstrar amplamente como os diferentes usos atribudos fotografia operavam segundo um sistema social de legitimao da cultura de forma a posicion-la em meados da dcada de 60 na metade do caminho entre o legtimo (literatura, pintura, teatro) e o arbitrrio (moda,

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20 culinria, cosmtica). Menos de meio sculo depois, sua importncia cultural paga pouco ou nenhum tributo aos representantes tradicionais da esfera legtima.

Se na contemporaneidade a progressiva difuso de tcnicas audiovisuais novas e mais baratas deslocou a questo (financeira) do conseguir fazer velozmente na direo (tcnica) do que efetivamente feito, ou seja, focalizando a questo dos limites entre os diversos gneros flmicos (filme de famlia, filme experimental, filme pessoal, filme amador, filme independente, para citar apenas alguns exemplos), mais do que nunca extremamente relevante discutir sob o ponto de vista das cincias sociais os tantos valores simblicos implcitos nesta infinita territorializao das representaes familiares no campo audiovisual.

Vida pessoal versus Vida familiar

Embora as definies e os sentidos atribudos aos filmes de famlia sejam mltiplos, inmeros autores tm identificado a emergncia de uma nova forma de representao social no interior do ncleo familiar: a vida pessoal14.

Se desde o sculo XIX, com o advento do cinematgrafo, os filmes de famlia desempenharam um papel simblico central na legitimao do ideal familiar burgus, estendendo-se posteriormente s demais camadas sociais; estes mesmos filmes vem sendo responsveis na contemporaneidade por uma reformulao do papel do indivduo frente s obrigaes deste para com seus familiares.

Segundo Sontag, o objetivo do retrato clssico era o de confirmar o modo como o modelo se via idealmente. Mais prxima da funo social da pintura aristocrtica 15, a fotografia era responsvel pela certificao de papis sociais.

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Ver Aasman, Allard, Jonas, Kuyper, Russell, Zimmermann. Na Renascena, este tipo de pintura consagrou-se com o desenvolvimento da burguesia. O pintor Velasquez um dos mais consagrados do gnero.

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21 Em um certo sentido, embora o filme de famlia preserve determinadas caractersticas que o distinguem do retrato clssico e/ou amador, ainda hoje a anlise deste gnero flmico reverencia e reifica o territrio familiar, como se as fronteiras do espao privado permanecessem intactas no decorrer dos anos.

A partir da dcada de 60, fatores como a crescente prosperidade financeira, a maior compartimentao das casas e apartamentos e a mecanizao do interior domstico aliados a outros fatores anteriores (a regulamentao dos direitos trabalhista com a reduo da jornada de trabalho, a concesso de frias remuneradas, o direito ao descanso no final de semana) - proporcionaram a concentrao de um tempo extra a ser dedicado vida pessoal/individual. A vida familiar reduz-se ento a momentos episdicos tais como o jantar, os domingos, os aniversrios ou o Natal e em cmodos especficos como a sala de jantar. Desta forma, o sagrado espao privado familiar de outrora d lugar, aos poucos, a uma tripartio da vida de seus membros. A vida familiar ento dividida em vida pblica, vida familiar e vida pessoal. (Aasman, 1995: 108)

Para o socilogo francs Singly, as transformaes familiares ao longo do sculo XX permitem maior expresso e autonomia dos indivduos. no seio deste novo quadro familiar que se constri a identidade pessoal dos indivduos. Para o autor, esse processo daria origem a duas modalidades de famlias modernas:

A famlia moderna 1, do perodo que vai do incio do sculo XX at os anos sessenta caracterizou-se sobretudo pela construo de uma lgica de grupo, centrada no amor e na afeio. (...) A famlia moderna 2 se distingue da precedente pelo peso maior dado ao processo de individualizao. A famlia se transforma em um espao privado a servio dos indivduos. Isso perceptvel atravs de numerosos indicadores do nvel da relao conjugal, com a maior independncia das mulheres, a possibilidade do divrcio por consentimento mtuo (na Frana, em 1975), a lei de 1970 que d fim autoridade parental, e no nvel da relao pedaggica, com o desenvolvimento da negociao das necessidades da criana, de novas formas de pedagogia pelas quais a natureza da criana deve ser

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22 respeitada mais do que modificada (no perodo precedente, a educao moral deveria retificar a natureza imperfeita da criana). (Singly, 2000: 15)

O processo de individualizao, contudo, no representa o desaparecimento da famlia tradicional.16

Singly ressalta a ambigidade inerente reconfigurao dos papis nas

famlias urbanas. Ao mesmo tempo em que o indivduo individualizado tem por principal objetivo a realizao de si mesmo (em detrimento muitas vezes dos interesses e das expectativas familiares), este mesmo indivduo no pode desfazer-se dos seus elos de pertencimento, fundamentais para sua identidade. Nesse sentido, o indivduo individualizado quer simultaneamente ser um indivduo com, e um indivduo s. (Singly, 2000)

De modo semelhante, as pesquisas empreendidas a partir de 1972/73 por Velho nas camadas mdias superiores do Rio de Janeiro apontam uma constante busca de arranjo entre o indivduo e seus parentes mais prximos.

No Rio de Janeiro, o bairro de Copacabana, com seu rpido crescimento a partir dos anos 20, acelerado ao final da Segunda Guerra, apresentava uma imagem associada modernidade e, especificamente, valorizao do indivduo. Sem dvida, evidenciava-se a importncia de projetos individuais, acoplados a uma nfase na famlia nuclear. O prprio apartamento como unidade residencial aparecia como expresso dessa viso de mundo e desse estilo de vida (Velho, 1973 e 1999). No entanto, ficou logo ntido, no desenvolvimento das pesquisas, que, mesmo nos projetos individuais mais radicais, marcados por rompimentos e conflitos, havia uma procura, mais ou menos consciente, de encontrar solues conciliatrias entre o foco no indivduo e a importncia do universo do parentesco (Velho, 1981, especialmente cap. 2). O prprio movimento de ir para o bairro apresentava uma dimenso aparentemente paradoxal. Se, de um lado, configurava para muitos um afastamento fsico de bairros e localidades onde a convivncia comPara Velho, a famlia tradicional entendida como um conjunto de famlias conjugais articuladas por uma ascendncia comum e por uma hierarquia constitutiva. Velho, Intersees: revista de estudos interdisciplinares, UERJ, RJ, ano 3, n.2, p- 45-52.16

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23 parentes era intensa e constante, de outro lado verificava-se que a presena de parentes em Copacabana podia ser no s valorizada como constituir-se, mesmo, em motivao forte para essa mudana. Na verdade, configurava-se, para a maioria, uma busca do melhor dos mundos que implica diversificao de papis associada a uma ampliao e complexificao do repertrio sociocultural. (Velho, 2001: 45-52)

A separao conjugal igualmente destacada por Velho como um dos fenmenos mais importantes ocorridos nos ltimos cinqenta anos na sociedade brasileira. Observa-se uma crescente laicizao do grupo que o autor denomina de roda intelectual-artstica-bomia, bem como uma diversificao de opes religiosas com a perda de influncia da Igreja Catlica na moral familiar. Outro importante fator de mudana apontado a crescente independncia e valorizao da mulher, frutos do movimento feminista.

Na constatao de Velho, a morte dos avs representa uma sensvel perda para o convvio familiar. interessante notar o autor menciona claramente a funo social dos recursos e materiais simblicos fundamentais articulao das redes de parentesco e preservao da memria familiar. Tios, muitas vezes tias, portadores de memria familiar, possuidores de prestgio e/ou recursos materiais e simblicos podem continuar articulando as redes de parentesco. (Velho, 2001)

O enfraquecimento do iderio moral em torno do casamento desloca a questo da unio conjugal para a esfera da realizao pessoal, constituindo assim, um iderio afetivo-sexual em que novos modelos descolados do compromisso de preservao/expanso da herana familiar passam a ser experimentados. Neste contexto, as amizades passam a figurar como um forte contraponto aos laos de sangue. E o indivduo uno familiar, de papel social fixo e regulado (patriarca, me, filho, genro), abre espao a um indivduo mltiplo e contraditrio, pertencente a grupos diversos, porta-voz de vrios interesses. Como formulado por Velho:

A sociedade complexa moderno-contempornea, tendo as metrpoles como caso limite, conseqncia, expresso, produto e produtora de multiplicao de mundos,

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24 esferas, nveis e domnios socioculturais. Os indivduos transitam e atuam por entre eles, desempenhando papis diferenciados e, eventualmente, contraditrios (Velho, 1994). O universo de famlia e parentesco um desses domnios. No desaparece, nem deixa de ser referncia fundamental para as trajetrias individuais. Mas dentro do repertrio sociocultural contemporneo, h outras alternativas que permitem uma margem de manobra e de escolha. Logo, o papel de familiar ou parente, embora importante, um entre outros. O trabalho, a poltica, a amizade, a religio, a vida ertico-sexual definem situaes e estabelecem prioridades especficas, em funo de suas caractersticas e cdigos particulares. O trnsito constante e intenso entre domnios e papis sociais diferenciados vincula-se possibilidade de metamorfose que possibilita e viabiliza esse processo. Os indivduos mudam constantemente de papel e vivem, simultaneamente, entre vrios cdigos e em mltiplos planos, metamorfoseando-se. (Velho, 2001: 49-50)

Filmes de famlia e Filmes-dirio

No por acaso que a partir da mesma dcada de 60, enquanto progressivamente as bem azeitadas engrenagens da famlia nuclear burguesa cediam espao vida pessoal, o filme amador (aqui sinnimo de filme de famlia) torna-se a principal influncia do cinema de avant-garde como instrumento de oposio narrativa/esttica hollywoodiana. Os Diary Films (filmes-dirio) de Jonas Mekas17 so amplamente reconhecidos no s como o pontap inicial na utilizao da esttica dos filmes de famlia (home-movies) por toda uma srie de geraes de cineastas experimentais18, mas tambm por advogarem em nome de toda uma comunidade de cineastas ainda muito esparsa e pouco reconhecida neste momento, praticamente limitada a um gueto de artistas nova-iorquinos.Na filmografia de David James presente na coletnea de artigos To Free the Cinema: Jonas Mekas and the New York Underground, esto includos como filmes-dirio de Mekas: Lost Lost Lost (1949-1975); Walden (tambm chamado Diaries, Notes and Sketches, 1964 1969); In Between (1964-1978); He Stands in a Desert Counting the Seconds of His Life (1969-1985); Reminiscences of a Journey to Lithuania (1971-1972); Paradise Not Yet Lost (1977-1979). 18 Alguns exemplos de filmes experimentais influenciados pelos filmes-dirio de Mekas: News From Home (Chantal Akerman, 1976); Daughter Rite (Michelle Citron, 1978); Weather Diary1/Weather Diary 3 (George Kuchar, 1986 e 1988); A Place Called Lovely/It Wasnt Love (Sadie Benning, 1991); Hide and Seek (Su Friedrich, 1996); para citar apenas alguns.17

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25 Nascido em 1922 na cidade de Semeniskiai ao norte da Litunia, Jonas Mekas, o ento poeta expatriado para Nova York em 1949 por ocasio da Segunda Guerra Mundial, buscou no cinema e posteriormente na linguagem esttica do filme de famlia os substitutos para a poesia escrita em sua lngua materna, para tudo aquilo que lhe era mais familiar.

Desde ento, Jonas Mekas tornou-se sinnimo de Cinema Experimental. No artigo Home Movies of the Avant-Garde: Jonas Mekas and the New York Art World, Jeffrey Ruoff demonstra como o contedo e a esttica do trabalho realizado por Mekas na dcada de 60 foram elementos-chave para o estabelecimento de uma cooperao no mundo das artes fundamental para a institucionalizao de um novo (e polmico) conceito de produo cinematogrfica que desafiava tanto o abstracionismo reinante na vanguarda de 1920/1940, como o poder massivo de produo e distribuio dos estdios de Hollywood.

O esforo de Mekas para instituir todo um conjunto de elementos capaz de dar sustentao obra de cineastas, artistas plsticos, atores, performers e crticos de sua poca vincula-se claramente escolha do filme de famlia como testemunha ocular/guardio da memria de indivduos que precisavam reconhecer a si mesmos como membros de uma mesma coletividade. Segundo o prprio Mekas: Durante os ltimos 15 anos eu estive to envolvido com o filme independente que acabei no tendo tempo algum de sobra para meus prprios filmes nos intervalos da Film-Makers Cooperative, da Film-Makers Cinematheque, da revista Film Culture e agora do Anthology Film Archives. (Sitney, 1978: 190)

Foi assim, tornando familiar o cotidiano dividido por vrios cineastas procura de uma linguagem flmica extremamente subjetiva que Mekas teve a oportunidade nica de reunir em Diaries, Notes and Sketches alguns ilustres personagens que permearam seu microcosmo como: Ken Jacobs, Adolfas Mekas (seu irmo e tambm cineasta), Marie Menken, Gary Snyder, Gregory Markopoulos, Jerome Hill, Lou Reed, Harry Smith, Willard Van Dyke, Amalie Rothschild, Stan Brakhage, Bruce Baille, Gregory Corso, Leroi Jones, Peter Bogdanovich, Edouard de Laurot, Louis Brigante, Herman Weinberg, Tony Conrad, Ed Emshwiller, George Maciunas, Richard Foreman, Robert Frank, Nam June Paik, Hollis

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26 Frampton, Norman Mailer, Hans Richter, Jim McBride, Richard Serra, Peter Kubelka, Annette Michelson, Andy Warhol, Allen Ginsberg, John Lennon, Yoko Ono, P. Adams Sitney, alm das tantas participaes especiais. (Ruoff, 1992: 295)

Da mesma forma que os filmes de famlia apiam-se em informaes contextuais para que seu significado coletivo possa emergir, tambm os filmes-dirio de Mekas so voltados para um pblico conhecido. Como Ruoff explicita em seu artigo, assistir a um dos filmesdirio de Mekas ser convidado a participar simbolicamente da comunidade de cineastas experimentais, tornar-se tambm um membro, dividir as mesmas lutas e homenagear os mesmos pioneiros do cinema de arte. (Ruoff, 1992: 302)

Colcha de retalhos: colagem e pastiche nos filmes de famlia

Talvez uma das questes mais importantes inscritas nos filmes-dirio e em uma nova gama de filmes pessoais, inegavelmente oriunda desta fase de emancipao do cinema experimental, esteja ligada a duas caractersticas-sntese do momento histrico em que estes elementos estticos foram inseridos: a colagem e o pastiche.

Na medida em que buscamos entender a significao socialmente construda destes elementos culturais definidores da ps-modernidade (a colagem e o pastiche), a questo da autenticidade do filme de famlia, do verdadeiro espao privado ou da autenticidade dos gneros flmicos passa a ser deslocada em direo compreenso da especificidade e da transitoriedade imanentes at mesmo s representaes sociais camufladas pela objetividade tcnica, como o caso da fotografia e dos filmes de no-fico.

Sem dvida, tentador analisar determinadas produes flmicas como mais realistas ou, num sentido etnogrfico, mais documentais e genunas que outras. No entanto, a antropologia visual e as cincias sociais podem correr o risco de reproduzirem ad infinitum os mesmos padres que acabam por contribuir involuntariamente para a naturalizao de categorias em constante luta. At recentemente, a famlia, por exemplo, era continuamente

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27 percebida como o lugar de felicidade e unio e seus conflitos eram pouco mostrados nos filmes e fotos de famlia. Dessa forma, se num primeiro momento os filmes de famlia se caracterizavam pela falta de conhecimento tcnico e pela esfera estritamente ntima de produo e de veiculao dos filmes, praticamente relegando-os ao controle direto de um ou de alguns poucos membros da famlia, os filmes-dirio e os filmes pessoais, diretamente influenciados por uma srie de transformaes sociais em voga nos anos 60, re-contextualizaram a produo amadora. Nas palavras de Laurence Allard:

Um filme de famlia celebra o lao familiar ao preservar as imagens de dias felizes. Mas a famlia em questo pode igualmente referir-se quela pelo prprio indivduo. Neste caso, pode-se dizer que os escolhida cineastas

experimentais produziram os verdadeiros filmes de famlia. ... Se o filme de famlia fixa os acontecimentos ligados vida domstica, os filmes pessoais so igualmente ancorados na intimidade propriamente dita de seus realizadores, ampliando assim os limites da intimidade passvel de ser mostrada para alm dos rituais festivos ou dos momentos de lazer. (Allard, 1995: 114-115)19

Ao invs de uma simples re-apropriao artstica, os filmes pessoais, livremente inspirados nos filmes de famlia clssicos, inauguram, de certa forma, um novo territrio de representao onde o indivduo/membro da famlia impelido a construir e reconstruir sua prpria histria(s) e a escolher quem so estes personagens afetivamente mais prximos; quem de fato constitui sua prpria famlia(s).

A esttica crua e pouco elaborada que atestava a autenticidade dos filmes de famlia incorpora como numa colcha de retalhos inmeras referncias de vrias naturezas, como imagens de arquivo (de jornais, revistas, televiso, vdeo), fotografias de famlia, documentos, trilhas sonoras (em oposio ao som ambiente), narraes, entre-ttulos, legendas, web sites, encenaes; enfim, tudo que estiver ao alcance da imaginao daquele que conta (filma/edita) a prpria histria.19

Traduo minha

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Em Representaes so fatos sociais: modernidade e ps-modernidade na antropologia, Rabinow traa um interessante paralelo entre os dilemas da escrita etnogrfica contempornea e a anlise da cultura ps-moderna realizada por Jameson em Postmodernism and Consumer Society. Embora ambos os autores preservem uma postura bastante crtica acerca do significado do ps-modernismo, Rabinow busca ressaltar na teoria de Jameson uma dimenso mais complexa do pastiche, indo assim na contra-mo dos estudos que responsabilizam o pastiche pela crise de identidade da cultura ps dcada de 60.

O pastiche ps-modernista tanto uma posio crtica quanto uma dimenso do mundo contemporneo. A anlise de Jameson nos ajuda a estabelecer uma compreenso das interconexes ps-modernistas e atravs disto evita universalizar e ontologizar uma situao histrica particular. (Rabinow, 1999: 93)

Se os filmes-dirio e os filmes pessoais por um lado deturpam a ingenuidade e a naturalidade atribudas aos filmes de famlia, por outro, eles denunciam a necessidade atual de uma relao diversa com o passado e com a memria familiar, tal como expressa nos filmes de famlia. Em Filme (vdeo) de famlia: do registro familiar ao artefato histrico20, Peixoto assinala que:

Os filmes (e fotografias) produzem este efeito de ativar a memria, nos dando essa sensao confusa de (re)viver situaes que foram registradas no curso da vida. (...) como eles revelam comportamentos e valores da vida familiar, os filmes/vdeos de famlia podem atuar como artefatos histricos no mbito da histria social e cultural de uma dada sociedade. (Peixoto, 2004)

Trabalho apresentado no Simpsio Antropologia e suas linguagens, na 24 Reunio Brasileira de Antropologia, Recife, 2004, no prelo.

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29 importante, contudo, que a representao de representaes no seja equivocadamente avaliada como desprovida de sentido. Se a colagem e o pastiche rompem a relao moderna com normas, eles tambm evocam, por sua vez, um olhar particular sobre o real.

O ps-modernismo vai alm (o que agora parece ser algo confortante) do estranhamento do historicismo que olhava, de longe, outras culturas como totalidades. A dialtica do self e do outro talvez tenha produzido uma relao alienada, mas era uma relao com normas, identidades e relaes definveis. Hoje, para alm do estranhamento e do relativismo, est o pastiche. (Rabinow, 1999: 90)

Quando Odin aponta a montagem dos filmes pessoais, bem como a inteno prvia de sua veiculao em ambientes que extrapolam o seio familiar, como tentativas de correo do filme de famlia, tomando-se por norma os filmes ficcionais; na verdade, o que est em jogo nesta discusso no a verossimilhana dos filmes de famlia, mas a defesa da pureza dos gneros narrativos.

Hbridos por excelncia, no so poucos os atuais exemplos que atestam a contaminao promovida pelos tais filmes pessoais nos mais diversos gneros flmicos por toda parte. CQ (Seek You - 2001), primeiro longa-metragem de Roman Coppola (filho de Francis Ford Coppola) um interessante exemplo da combinao de vrios nveis narrativos no interior de um filme de fico. No toa que a trama central do filme gira em torno do prprio fazer cinematogrfico e imagens pessoais do personagem principal concluem de forma potica o filme dentro do filme. Outro instigante exemplo desta mutao de gneros o documentrio Na Captura dos Friedmans (Capturing the Friedmans 2003). Apropriando-se do gnero jornalismo investigativo, como em programas de televiso a cabo norte-americanos do tipo Lei e Ordem (Law and Order), o primeiro documentrio de Andrew Jarecki utiliza-se de um vasto arquivo de filmes de famlia realizados pelo patriarca e posteriormente por seu filho mais velho (com cerca de 18 anos na poca) para desvendar uma infinidade de erros cometidos no julgamento dos prprios Friedmans

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30 (Arnold e seu filho Jesse), ambos acusados de molestar sexualmente crianas que tomavam aulas particulares de informtica no poro de sua casa.21

Ao enfocar o filme de famlia no contexto da produo ps-moderna, este captulo tem por inteno debater a questo da autenticidade, bem como o processo de legitimao cultural de sub-gneros flmicos afins surgidos na dcada de 60, como o filme dirio e o filme pessoal. A proliferao deste tipo de produo uma espcie de meio-termo entre autoetnografias e filmes de arte - desafia as cincias sociais e, mais especificamente, a antropologia visual contempornea a compreender a emergncia de novas formas audiovisuais de representao social. A partir do estudo pioneiro de Bourdieu sobre a funo social da fotografia, busco debater a estetizao do territrio familiar e a funo social do filme amador.

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O documentrio do diretor estreante recebeu uma indicao ao Oscar e ganhou o Grande Prmio do Jri

documentrio, no Sundance Film Festival. O DVD do filme exibe ainda boa parte dos filmes de famlia dos Friedmans que ficou de fora da edio final e mais algumas entrevistas com os familiares e pessoas envolvidas no caso.

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31 CAPTULO TRS

A DESCONSTRUO E A RECICLAGEM DO CINEMA NO CONTEXTO PS-MODERNO

No cabe a este trabalho apresentar e esmiuar todo o desenvolvimento da teoria psmoderna ou explicitar detidamente as relaes entre antropologia e ps-modernidade, visto que este no o foco central da pesquisa e, inevitavelmente, tal tentativa incorreria em grosso reducionismo. Alm disso, inmeros autores tm se dedicado especificamente a analisar esta questo 22. Interessa aqui discutir como o contexto de produo cultural psmoderno influenciou o aparecimento de uma srie de discursos autnomos e nototalizantes que relacionam a dualidade indivduo/sociedade a partir de novos princpios. Produtos diretos destes discursos, os filmes pessoais (na esfera cultural) e a etnografia experimental servem, aqui, como bons indcios para pensar outras formas de representao social, adversas a ideologias e a metadiscursos legitimadores.

Contudo, cabe assinalar que a pedra fundamental da antropologia ps-moderna foi, sem sombra de dvida, o livro Writing Culture, editado em 1986 por Clifford e Marcus.23

Esta

coletnea de artigos resultou do Seminrio de Santa F, realizado em 1984 pela School of American Research, na cidade do Novo Mxico. Embora a vertente ps-moderna seja filha legtima de uma das correntes internas da prpria antropologia - a antropologia interpretativa seu nascimento coincidiu com a morte do pai por alguns de seus discpulos mais fiis. Se A Interpretao das Culturas (1973) de Geertz tido por inmeros tericos como o pontap inicial para o questionamento do conceito de representao, um dos temas mais caros antropologia ps-moderna; a prpria suplantao dos postuladosVer Clifford (1986), Crapanzano (1986), Derrida (1974), Fischer (1986), Foster (1984; 1998), Jameson (1984), Kirby (1989), Marcus (1986), Owens (1985), Rabinow (1986), Reynoso (1988), Tyler (1984; 1986), Vattimo (1986), para citar apenas alguns. 23 Vale lembrar, contudo, que o primeiro autor a utilizar o termo ps-moderno no ttulo de um artigo foi Stephen Tyler em The Poetic Turn in Postmodern Anthropology: The poetry of Paul Friedrichs, de 1984.22

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32 interpretativos de Geertz no Seminrio de Santa F viria a desencadear todo o novo processo, conforme nos mostra Reynoso em sua introduo a El surgimiento de la antropologia posmoderna:

Com a realizao do Seminrio de Santa F e ante ao efeito causado pela publicao de Writing Culture, a etnografia ps-moderna alcana uma identidade que j deve pouco ou nada ao programa de descrio densa, ocupando-se muito mais de abordar os textos sobre a cultura do que a cultura como texto. Os alunos superaram o mestre e se apropriaram do timo para fixar o rumo que agora todos seguem, mestre inclusive; se algum processo acadmico observado mediante a esta ruptura, este o da absoro da proposta simblica e interpretativa sob os auspcios do ps-modernismo; dito de outra forma: para estar em dia, o prprio Geertz teve de assumir o estilo ps-moderno de argumentao, situando-se na fila dos convertidos. (Reynoso, 2003: 31) 24

Principais antecedentes

importante ressaltar que o ps-modernismo no um movimento linear, de estrutura demarcada. Diversos antecedentes podem ser apontados como constituintes do pensamento ps-moderno, como o ps-industrialismo diagnosticado por Bell25 e a ps-histria representada pelo filsofo Vattimo26. Contudo, o antecedente de maior expresso na teoria antropolgica foi decerto o ps-estruturalismo de Foucault e Derrida.

... Existem reflexes reconhecidamente ps-modernas em literatura, em artes plsticas, em arquitetura, em semitica, em epistemologia. Naturalmente, o ps-modernismo tinha que chegar alguma vez antropologia. E

chegou, com efeito; chegou como reflexo de uma leitura norte-americana24 25

Traduo minha. Ver El advenimiento de la sociedad postindustrial (1976), de Bell. 26 Ver El fin de la modernidad (1986), de Vattimo.

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33 (muito norte-americana, ante seu aspecto deslumbrado e acrtico) de certas

instncias do ps-modernismo francs, e em especial de dois pensadores caracterizados anteriormente como ps-estruturalistas: Foucault e Derrida. De ambos foram aproveitados os traos mais chamativos: tudo se passa mediante uma leitura que reduz o aporte de Foucault ao convencional argumento relativista e que identifica a desconstruo de Derrida com um mtodo crtico elementar, por ser to previsvel e mecanicamente assptico. Com o correr do tempo estes referentes ficaram relegados s notas de p de pgina, e o ps-modernismo antropolgico ltima etapa das antropologias interpretativas - adquiriu certa individualidade e homogeneidade estilstica e temtica. (...) de certo, os temas abarcados pelos ps-modernos se reduzem a um s: prtica antropolgica vista sob o ngulo da escritura etnogrfica. (Reynoso, 2003: 27)27

Em Foucault, a questo da arbitrariedade das epistemes foi amplamente incorporada discusso antropolgica sobre representao. Em livros como Arqueologia do saber, A ordem do discurso e As palavras e as coisas, Foucault demonstra a intrnseca relao entre a verdade - a sistematizao do conhecimento e o poder. O problema das representaes corretas no estaria restrito ao mundo dos teoremas lgicos e histria da filosofia ocidental, mas seria fruto de toda uma teia de prticas sociais e polticas constitutivas do mundo moderno. Em seus artigos, percebemos uma desnaturalizao de categorias analticas bsicas das cincias sociais e da cincia em geral. Noes como homem, loucura e conhecimento so colocadas em suspenso.

O projeto de Foucault no era decidir sobre a verdade ou a falsidade de reivindicaes na histria mas ver historicamente como efeitos de verdade so produzidos dentro de discursos que, em si mesmos, no so nem verdadeiros nem falsos. 28 ... Foucault props trs hipteses de trabalho: (1) A verdade para ser entendida como um sistema de procedimentos ordenados para a regulamentao,

27 28

Traduo minha Foucault apud Rabinow

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34 distribuio e operao de afirmaes. (2) A verdade est conectada, numa relao circular, com sistemas de poder que ela induz e que a estendem. (3) Este regime no meramente ideolgico ou superestrutural; foi uma condio para a formao e o desenvolvimento do capitalismo. 29 (Rabinow, 1999: 79)

Segundo Reynoso, exceo de Lvi-Strauss, muito provvel que Foucault tenha sido o primeiro autor francs de grande absoro pelos at ento hermticos departamentos de antropologia norte-americanos.

Derrida, por sua vez, atravs do legado de sua metodologia desconstrucionista, viria a influenciar profundamente a maior parte dos trabalhos antropolgicos norte-americanos produzidos sob o signo do ps-modernismo. A partir deste momento, os trabalhos dos prprios antroplogos tornar-se-iam alvo no mais do mero olhar crtico de colegas, e sim, da refutao do conjunto de suas premissas pela recente gerao de antroplogos.

A colagem e o pastiche no desconstrutivismo de Derrida

No captulo anterior, foi brevemente exposto como a colagem e o pastiche, do ponto de vista estritamente esttico, teriam sido responsveis por certa re-contextualizao da produo amadora de filmes (de famlia/pessoais) na dcada de 60.

Atendo-nos agora teoria desconstrutivista de Derrida, podemos levar em conta como estes mesmos elementos estticos originalmente ligados vanguarda moderna - ao cubismo de Braque e Picasso foram subseqentemente incorporados como conceitos-chave da teoria ps-moderna.

O novo conceito de escrita proposto por Derrida no admite a existncia de um significado puro, anterior ao signo material. De acordo com a Gramatologia, somente atravs da29

Foucault apud Rabinow

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35 diferenciao que os signos so construdos. Todos os elementos textuais seriam transformaes de outros textos. The notion of the gram30 is especially useful for theorizing the evident fact, much discussed in structuralist psychoanalysis (Lacan) and ideological criticism (Althusser), that signifieds and signifiers are continually breaking apart and reattaching in new combinations, thus revealing the inadequacy of Saussures model of the sign, according to which the signifier and the signified relate as if they were two sides of the same sheet of paper. The tendency of Western philosophy

throughout its history (logocentrism) to try to pin down and fix a specific signified to a given signifier violates, according to grammatology, the nature of language, which functions not in terms of matched pairs (signifier/signifieds) but of couplers or couplings (Ulmer, 1998: 100)

Antes de continuar, faz-se necessria uma breve definio daquilo que chamamos aqui de colagem, montagem e pastiche.

Os princpios da colagem/montagem referem-se suspenso de dados elementos originalmente pertencentes a outros objetos, imagens, textos pr-existentes, que so reintegrados segundo uma nova lgica de criao, de maneira a produzir um novo todo, cujas vrias rupturas expressam uma variedade de novos sentidos. Enquanto a colagem seria a transferncia de materiais de um contexto a outro, a montagem seria a disseminao destes emprstimos por meio de uma nova forma de exibio. (Group Mu) Sobre a relao entre pastiche e ps-modernismo, Rabinow assinala:

O que ps-modernismo? O primeiro elemento sua localizao histrica como uma contra-reao ao modernismo. Indo alm da j clssica definio de Lyotard31 o fim das metanarrativas Jameson agrega o pastiche como outro elemento constitutivo do ps-modernismo. A definio do dicionrio no

30 31

O gram de Derrida seria uma unidade lingstica ainda mais bsica que o signo do estruturalismo. Ver Lyotard em A Condio Ps-moderna. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1998.

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36 suficiente: (1) uma composio artstica derivada de vrias fontes (2) guisado (hodge podge). Pound, por exemplo, bebeu de muitas fontes. Jameson aponta para um uso de pastiche que perdeu as suas bases normativas, que v a barafunda de elementos como tudo o que existe. Hodge podge definido como uma mistura confusa, mas provm do francs hochepot, um recozido, e nisso reside a diferena. 32 (Rabinow, 1999: 89).

No foi por acaso que a fotografia e o cinema emergiram como cones da teoria ps-crtica. Se no estruturalismo, era a relao entre o objeto e a fala (ou texto) a base de todo o pensamento, j em 1935, Benjamin, atravs dos aclamados artigos A obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica e O autor como produtor, prenunciava a futura revoluo dos tradicionais modelos representacionais e dos valores sociais empreendida a partir do desconstrutivismo.33 A eterna busca pelo original, pelo significado puro, pelo realismo, cedeu espao aos crescentes recursos de automao, cpia, colagem e montagem. A importncia do significante, da autoridade do objeto, sofria assim um forte abalo.

In the same way today, by the absolute emphasis on its exhibition value the work of art becomes a creation with entirely new functions, among which the one we are conscious of, the artistic function, later may be recognized as incidental. This much is certain: today photography and film are the most serviceable exemplifications of this new function. (Benjamin, 1935)

Em seu artigo The Object of Post-Criticism, Ulmer demonstra como a fotografia (e posteriormente o filme) representaria, tanto do ponto de vista do realismo quanto da semitica, uma espcie de corporificao do conceito de colagem, chamando-a mesmo de mquina-de-colagem (collage machine). Enquanto produtora de simulacros do mundo real, a fotografia operaria constantemente sob um princpio de recorte-e-cole, ou seja,32 33

Grifos meus. A tarefa da teoria ps-crtica, em outras palavras, pensar as conseqncias dos novos meios de reprodutibilidade tcnica (filme e fita magntica tecnologias que requerem uma composio a partir dos princpios de colagem/montagem) para a representao crtica, do mesmo modo que Brecht o fez, como Benjamin assinalou em The author as Producer, em relao representao teatral. Derrida formula seu novo conceito de sobreposio da mimesis em termos de imitao. (Ulmer, 1998)

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37 selecionando e transferindo fragmentos do todo visual a uma nova moldura. Citando Bazin e Eisenstein, Ulmer caracteriza respectivamente a abordagem realista e a abordagem semitica da fotografia. De acordo com a primeira, a imagem fotogrfica funcionaria como um tipo de decalque ou transfer, constituindo em si o prprio objeto (Bazin). A semitica, por sua vez, veria na fotografia (e no filme) uma linguagem em que o real utilizado como elemento do discurso (Eisenstein). A imagem fotogrfica teria, assim, um valor duplo, funcionando a um s tempo como significado (ou seja, si mesma como objeto) e significante (ao deslocar o objeto/significante anterior e reintroduzi-lo num novo contexto).

A partir dos novos princpios postulados por Benjamin e dos debates entre importantes nomes da teoria crtica (Lukcs, Brecht, Adorno, etc.), Derrida adaptou o conceito de mimesis34

aos novos modelos de representao oriundos do impacto da reproduo

mecnica. Mime, a nova mimesis proposta por Derrida, alega que na era da reprodutibilidade tcnica, a perda dos referenciais platnicos torna-se aparente. Cpias exatas e cpias das cpias passam a produzir novos textos no a partir de uma relao direta com um referente primevo, mas a partir de uma descontextualizao desta imagem ou objeto anterior.

Desta forma, o filme recriaria uma linguagem prpria ao deslocar cpias visuais e sonoras perfeitas (provocando, assim, uma perda do significado anterior), para ento reagrup-las num novo sistema. Ao defender a necessidade de uma nova abordagem verdadeiramente apropriada Antropologia Visual, David MacDougall estabelece um interessante dilogo com a teoria de Deleuze (outro importante ps-estruturalista) relativamente anlogo gramatologia de Derrida. Respeitando as diferenas entre os respectivos paradigmas tericos dos autores, ambos ressaltam a materialidade e a corporalidade dos elementos que compem um filme em detrimento da primazia do significado, da lingstica tradicional. O no-conceitual e o concreto ganham um estatuto totalmente diverso de nossa herana platnica e o filme o melhor smbolo na era da reprodutibilidade tcnica do potencial alegrico desta teoria do objeto.

34

Segundo o conceito platnico de mimesis (imitao), toda e qualquer imagem corresponderia a um referente essencial. Ver Platos Pharmacy e The double session, in Dissemination (1981), Derrida.

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38

Mas, como Gilles Deleuze demonstrou, o filme em muitos aspectos uma forma pr-lingustica, bombardiando-nos no com seus clamores, mas com objetos. Antes de um filme, a imagem nada, presena fsica. No conhecimento. No enunciao. No traduo. No sequer um cdigo. , nos termos de Deleuze, pronuncivel (utterable), mas no ainda um dito (utterance ) ... Assim, antes de tudo, um filme uma coleo de materiais que o constituem: num primeiro nvel, imagens fotogrficas em celulide; num segundo, traos de objetos vistos pela cmera e o cineasta. Como experimentamos estes objetos, pessoas e lugares fugazes? Igualar esta experincia com a da fala ou escrita , em face disto, um absurdo. Trata-se de um mundo experiencialmente diferente o qual no necessariamente inferior leitura de um texto, mas que deve ser compreendido de outra forma. Acredito que no devemos evitar o aspecto pr-lingustico do filme e vdeo, ou a antropologia visual que possa emergir da. Ao contrrio, ele nos permite re-introduzir os espaos corporais das nossas e de outras vidas maneira pela qual todos ns, enquanto criaturas sociais, assimilamos formas e texturas atravs de nossos sentidos, aprendemos coisas antes de compreend-las, dividimos experincias com outros e nos deslocamos pelos vrios ambientes sociais que nos cercam. (MacDougall, 2006)

Alegoria e cinema: as imagens recicladas

Utilizando-se da obra de Derrida e De Man, Owens um dos principais tericos a esclarecer a funo central da alegoria no pensamento ps-moderno. Enquanto a vanguarda modernista acreditava na substituio do objeto de arte por seu referente, expressando um desejo de sublimar a arte no cotidiano, os ps-modernos interessam-se pela problematizao da prpria atividade referencial. Na ps-modernidade, a busca pela utopia substituda pela busca do real, mas no o real. A capacidade do filme de reproduzir uma gramtica de imagens funde passado e presente, documental e ficcional. o impulso

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39 alegrico da imagem fotogrfica, inicialmente discutido por Benjamin. Ao aludir ao passado, a imagem recria uma espcie de histria-sem-fim. O naturalismo histrico reificado pela narrativa linear cede espao por meio dos princpios de colagem e montagem histria alegrica. A combinao de imagens afirma constantemente diante de nossos olhos que tudo passvel de ser recontado, re-significado. De acordo com Owens, a narrativa alegrica favoreceria a concretude do significante a despeito do significado. Se o smbolo um signo motivado, ento a alegoria, concebida como sua anttese, ser identificada como a arena do arbitrrio, do convencional, do imotivado. 35

Embora Benjamin, Derrida e Deleuze refiram-se ao cinema como um todo ao apontarem uma srie de repercusses na arte, na filosofia e na sociedade em geral provenientes de um novo padro referencial introduzido pelo advento do meio audiovisual, interessante voltar nossa ateno a um tipo especfico de produo cinematogrfica que tem por caracterstica a prpria desnaturalizao da recepo de sua linguagem.

Mais conhecido enquanto sub-gnero por sua alcunha inglesa - Found Footage, que traduzida ao p da letra equivaleria a imagem achada, este tipo de produo, como o nome sugere, constitudo inteiramente de trechos de outros filmes (que podem ser desde comerciais de TV, filmes de famlia, imagens de arquivo, filmes etnogrficos, at tomadas no utilizadas de uma gravao qualquer). Se inicialmente o que chamou a ateno dos tericos acima citados foi o cinema enquanto meio, aqui, num momento em que o psmoderno comea a desdobrar-se sobre si mesmo, o cinema reconstri-se criticamente a partir de seus dejetos. uma tcnica essencialmente moderna foram incorporadas uma esttica e uma temtica ps-modernas.

Se ainda hoje o pastiche caracterstico deste tipo de produo visto com maus olhos por tericos defensores da conscincia histrica e crticos da alienao ps-modernista, por outro lado, com o decorrer do tempo, torna-se cada vez mais difcil sustentar uma relao fixa com o passado. A contnua descentralizao dos poderes, ao menos no nvel

35

Ver Craig Owens, The Allegorical Impulse: Toward a Theory of Postmodernism In The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Nova York, The New Press: 1984.

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40 discursivo, impede qualquer retorno a algum outro metadiscurso legitimador. Narrativas totalizantes como A Histria e grandes saberes como A Cincia passaram a ser encarados com desconfiana. As constantes interpenetraes entre arte/cincia/tecnologia impossibilitam um retorno s categorias plenas.

Na falta de um termo mais apropriado, chamemos por ora os Found Footage de imagens-recicladas. Traduzir este termo por imagens de arquivo seria um equvoco, visto que as imagens de arquivo corresponderiam a apenas um dos tipos de matria-prima (recursos) dos quais este sub-gnero dispe.

Se as imagens-recicladas de certa maneira banalizam suas fontes ao descontextualiz-las, ao mesmo tempo trata-se de um fazer cinematogrfico extremamente iconoclasta. Seus filmes foram o pblico a reler o contedo j absorvido por imagens da cultura ocidental muitas vezes totmicas. Por isso as imagens-recicladas constituem um timo objeto para pensar a relao filme etnogrfico/ps-modernismo. Enquanto a natureza de suas imagens factual, as imagens-recicladas constroem uma narrativa crtica e interativa sem necessariamente recarem no didtico ou no panfletrio.

Sem dvida, um dos principais representantes da esttica da reciclagem de imagens Bruce Conner. Atravs de filmes como A Movie (1958) e Report (1965), Conner apropria-se de grandes narrativas sedimentadas no imaginrio coletivo ocidental o apocalipse representado pela iminncia de uma guerra nuclear e o assassinato de John Kennedy e as dissolve em meio a outras narrativas visuais de violncia e catstrofe o faroeste/filme-deguerra e a reportagem policial - apontando com muita ironia certa correspondncia na mediao do factual e do entretenimento na sociedade de consumo norte-americana do psguerra.

Segundo Sitney, a natural ironia presente neste tipo de esttica flmica cria uma distncia entre a imagem exibida e nossa experincia daquilo que assistido.36

Quando

36

Ver o captulo Apocalypses and Picaresques In Visionary Film: The American Avant-Garde 19431978. Oxford, Nova York, Toronto, Melbourne: Oxford University Press: 1979.

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41 descontextualizadas, a carga narrativa destas imagens vai para segundo plano, desvelando os elementos discursivos dos quais esto impregnadas.

Aplicando a teoria do crtico alemo Huyssen s imagens-recicladas, Russell sugere a constituio de um novo tipo de temporalidade etnogrfica que seria proveniente de uma utilizao ps-moderna das tcnicas cinematogrficas de colagem e montagem.

Andreas Huyssen argued in 1986 that the historical avant-garde is a thing of the past, and it is useless to try to revive it. Technologized mass culture, he argued, has taken over the techniques on which the avant-garde was built, although it has also preserved the avant-gardes utopian aspiration in distorted form. In a more recent book, Twilight Memories, Huyssen has shifted his position slightly, saying that the task of the avant-garde in postmodernity is a creative act of forgetting. To reconstruct memory in the face of historical amnesia is to interrupt the eternal present of simulation culture. Memory as a form of radical time is a means by which the avant-garde can productively engage with cultural history and revitalize its aspirations of social transformation. In the cinema, found-footage filmmaking is one practice that might point the way of a postmodern avant-garde, not simply because it is based on an appropriation of technologized mass culture, but because it is a discourse of memory and history ... I want to argue that it also constitutes a specific type of ethnographic temporality. 37 (Russell, 1999: 239)

Enquanto a montagem realizada pelo cinema documentrio apropria-se de imagens de arquivo e de fotografias para alimentar uma narrativa pr-concebida, quer seja atravs do voice-over (tambm conhecido por voz off em portugus), de legendas ou de entrevistas roteirizadas e costuradas havendo assim uma notvel prevalncia do oral/textual sobre o imagtico as imagens recicladas operam sob uma lgica inversa. Elas se apoderam de imagens j impregnadas destas narrativas e, como num tipo de charada, o pblico facilmente reconhece seu contedo. Contudo, a ironia e o absurdo na montagem de suas seqncias substituem o anseio por uma resposta definitiva (j que a narrativa padro 37

Grifos meus

41

42 identificada de antemo) pelo jogo do olhar. Cada expectador recorre s suas prprias fontes na tentativa v de re-organizar o quebra-cabeas. O resultado aproxima-se mais da revelao das peas envolvidas e do gozo em recombin-las, do que propriamente de uma reproduo fiel de um quadro famoso. Sons, imagens e trilhas sonoras so deliberadamente misturados, provocando, num primeiro momento, uma relao metonmica com o novo filme em questo que tende a se dissipar aos poucos, cedendo espao ao dilogo e contnua intertextualidade.

Nos filmes de Bruce Conner, desde os ttulos como A Movie - que equivaleria a Um Filme e Report, ou Reportagem em portugus, at a utilizao de entre-ttulos e o aparecimento da prpria pelcula durante a exibio; todos os elementos flmicos de conhecimento do pblico so utilizados de modo a reverter, num tom extremamente irnico, algumas convenes narrativas. A primeira seqncia de A Movie une cavalos trotando sados de faroestes, elefantes, trens em movimento, carros de corrida e tanques de guerra indo e vindo em direes opostas, como num colossal pique-pega. Ento, carros de corrida colidem e um outro cai de um precipcio para em seguida surgir (ainda no comeo do filme) um apotetico The End. Neste novo contexto, os recursos de colagem e montagem (anteriormente explorados pela vanguarda europia em meados da dcada de 20) ao invs de retratarem o incipiente cotidiano da metrpole como nas Sinfonias da Cidade (City Symphonies), retratam um cotidiano miditico. Se filmes como Rien que les Heures (1926) e Berlin: Sinfonia da Cidade (1927) primavam pela experimentao (atravs da sincronizao orquestral de msica e imagens, do uso de fades, de novos ngulos, da discreta combinao de imagens factuais e de encenaes, dentre outros elementos); filmes como A Movie e Report desincronizam imagens provenientes de antigos newsreels, documentrios, comerciais de TV e filmes de fico. As Sinfonias da Cidade utilizavamse do moderno para atrair e cativar um pblico ainda pouco acostumado com as maravilhas da stima arte. As imagens-recicladas, por sua vez, aproveitam-se do banal, de sobras e de imagens descartadas para despertar seus expectadores.

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43 Um interessante comentrio de Sitney emblemtico do tipo de esttica praticada por Bruce Conner: ... A Movie faz com que irrompam de objetos nostlgicos uma srie de fuses violentas. 38

Embora se refir