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ESTRATÉGIA DE PROJETOS: CULTURA, INTERDISCIPLINARIDADE E CONHECIMENTO – PÁTARO, Cristina Satiê de Oliveira;
PÁTARO, Ricardo Fernandes.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 20, p. 32-50
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ESTRATÉGIA DE PROJETOS: CULTURA,
INTERDISCIPLINARIDADE E CONHECIMENTO
PÁTARO, Cristina Satiê de Oliveira
Professora do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Desenvolvimento da Universidade Estadual do
Paraná - UNESPAR/Campo Mourão - PR
PÁTARO, Ricardo Fernandes
Estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEM – Universidade Estadual
de Maringá e professor do Colegiado de Pedagogia da UNESPAR/Campo Mourão - PR
RESUMO
Abordaremos, no presente trabalho, de que maneira a prática de projetos na escola pode ser encarada
como uma estratégia pedagógica que permite um trabalho interdisciplinar contextualizado na cultura de
alunos e alunas. Partimos do pressuposto de que a cultura é um conjunto de práticas que produzem
significados compartilhados por um determinado grupo social e a escola é um espaço de cruzamento
de culturas. Diante disso, os saberes e práticas escolares devem ser compreendidos no contexto das
diferentes culturas presentes na sociedade. No artigo, analisamos atividades de um projeto realizado
com crianças do 4º ano do Ensino Fundamental. O objetivo foi identificar como tais atividades
possibilitaram um trabalho interdisciplinar que partiu do estudo de um tema de relevância social e
permitiu que a cultura e questões conflituosas da vida cotidiana de alunos e alunas fossem
abordadas na escola.
Palavras-chave: Educação básica. Interdisciplinaridade. Contextualização do conhecimento.
ABSTRACT
We discuss, in this paper, how project-based curriculum allows an interdisciplinary work contextualized
in student's culture. We assume that culture is a set of practices produced and shared by a particular
social group and the school is an institution who allows the crossing of cultures. It is defended that the
knowledge and school practices must be understood in the context of different cultures. This paper
discuss a project developed with a ten years old students of brazilian elementary school. The objective
was to identify how the project-based curriculum may enable an interdisciplinary school work
introducing studies of nowadays social problems, social conflicts and issues of culture.
Key-words: Elementary school. Interdisciplinarity. Contextualized knowledge.
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INTRODUCÃO
O presente texto aborda algumas possibilidades que a estratégia de projetos oferece para
o desenvolvimento de um trabalho escolar interdisciplinar e contextualizado. Partimos do
pressuposto de que a cultura é um conjunto de práticas que produzem significados
compartilhados por um determinado grupo social. Para além da hierarquização e priorização de
padrões relacionados a grupos e culturas dominantes, a compreensão que adotamos permite
olhar para a cultura em seu caráter dinâmico, compreendendo-a em suas aceitações e conflitos
travados entre diferentes grupos culturais. Acreditamos que os saberes e práticas da escola
podem ser compreendidos no contexto das diferentes culturas presentes na sociedade e o
currículo escolar deve ser visto como espaço de produção e reprodução da cultura. Diante disso,
partimos do pressuposto de que que não é possível discutir a escola sem compreender sua
relação com a(s) cultura(s) de alunos(as) e grupos sociais aos quais pertencem. Nesse sentido, a
estratégia de projetos possibilita um trabalho interdisciplinar que promove não só a interligação
entre saberes disciplinares, mas entre estes e a cultura dos(as) estudantes, almejando uma
educação contextualizada que leve em consideração a diversidade de alunos(as), suas
condições de vida, experiências e interesses na construção de uma aprendizagem significativa.
ESCOLA, CULTURA E MUNDO CONTEMPORÂNEO
Para compreender a ideia de contextualização do conhecimento escolar na cultura de
alunos(as) é importante abordar as relações entre escola e cultura. O intuito é reconhecer a
diversidade cultural presente na escola e a necessidade de valorização das diferentes
experiências de alunos(as). De início vale lembrar que a palavra cultura possui uma diversidade
de interpretações. Diante disso, recorremos ao trabalho de Moreira e Candau (2007) para
definir cultura. De acordo com esses autores há vários significados da palavra na literatura,
relacionando o termo desde ao cultivo da terra e da mente até ideias recentes que admitem a
necessidade de reconhecermos a existência de várias culturas. Em seu trabalho, Moreira e
Candau adotam um sentido proveniente da antropologia social. A interpretação dos autores
toma a cultura como um conjunto de significados compartilhados, dissociando o entendimento
do conceito de cultura daquela ideia de conhecimentos e práticas de determinados grupos,
classes sociais e nações, que supostamente possuiriam os padrões elevados e o refinamento que
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os caracterizariam como cultos. Ao contrário disso, a ênfase recai sobre as práticas de produção
e atribuição dos significados por meio da linguagem. Em outras palavras:
Quando um grupo compartilha uma cultura, compartilha um conjunto de
significados, construídos, ensinados e aprendidos nas práticas de utilização da
linguagem. A palavra cultura implica, portanto, o conjunto de práticas por
meio das quais significados são produzidos e compartilhados em um grupo.
São os arranjos e as relações envolvidas em um evento que passam,
dominantemente, a despertar a atenção dos que analisam a cultura com base
nessa quinta perspectiva, passível de ser resumida na ideia de que cultura
representa um conjunto de práticas significantes. (MOREIRA, CANDAU,
2007, p. 27).
A partir dessa compreensão, entendemos que as diferentes culturas presentes na
sociedade são o resultado de diferentes práticas por meio das quais são construídos e
compartilhados significados. Essas práticas não são estáticas, e não representam uma produção
pronta, mas estão em transformação, em um movimento de produção e reprodução da cultura.
É fundamental compreendermos, portanto, que as diferentes culturas expressam os
interesses e as condições de cada um dos grupos existentes, conduzindo a manifestações
culturais muitas vezes opostas, que disputam entre si. Isso significa dizer que a diversidade
cultural que caracteriza nossa sociedade se expressa em conflitos, confrontos e disputas.
Em discussões sobre a sociedade contemporânea (HALL, 1997) a dimensão cultural
tem sido reconhecida, valorizada e posta como central na compreensão da sociedade.
Entende-se, assim, que a cultura se faz presente em todas as práticas sociais, inclusive nas
práticas escolares. Diante disso, evidencia-se que a escola e suas práticas devem ser
compreendidas no contexto dos significados e da(s) cultura(s) que constituem a sociedade
contemporânea. Sabemos que a escola trabalha com os saberes escolares, são selecionados
dentre o vasto conhecimento construído historicamente pela humanidade. Atualmente, os tais
saberes se organizam nas diferentes disciplinas, como: língua portuguesa, matemática, história,
geografia, ciências, dentre outras. Para além dos conteúdos trabalhados, podemos dizer que
todo o currículo da escola expressa um conjunto de práticas que produzem significados,
associados a determinados grupos sociais – em especial os dominantes. As relações entre o
currículo escolar e a cultura, portanto, ficam evidentes. Por meio do currículo escolar,
apresentam-se os conflitos, os embates e as disputas entre as culturas. Em outras palavras:
Se, em uma sociedade cindida, a cultura é um terreno no qual se processam
disputas pela preservação ou pela superação das divisões sociais, o currículo é
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um espaço em que esse mesmo conflito se manifesta. O currículo é um campo
em que se tenta impor tanto a definição particular de cultura de um dado grupo
quanto o conteúdo dessa cultura. O currículo é um território em que se travam
ferozes competições em torno dos significados. O currículo não é um veículo
que transporta algo a ser transmitido e absorvido, mas sim um lugar em que,
ativamente, em meio a tensões, se produz e se reproduz a cultura.
(MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 28)
Sabemos que a escola é a instituição criada pela sociedade para transmitir a cultura, os
saberes e as produções significativas da humanidade às novas gerações. No entanto, muitas
vezes a escola, por meio de seu currículo, procura impor uma determinada cultura – isto é, um
conjunto de práticas que produzem significados compartilhados por um determinado grupo
social. Diante desse quadro, cabe-nos questionar: Quem define os aspectos culturais que
orientam as práticas e os saberes trabalhados na escola? Será que a escola de fato contempla as
diferentes culturas presentes na sociedade?
Diante desses e outros questionamentos, estudos e pesquisas educacionais demonstram
que a escola tem se baseado em uma visão monocultural de educação (DAYRELL, 1996). Isso
significa que a escola vem se baseando em uma visão que busca homogeneizar e padronizar os
conhecimentos e os sujeitos que a frequentam, o que dificulta um olhar para a diversidade. Para
melhor compreensão dessas ideias, vejamos o trecho a seguir, no qual de Dayrell aborda a
concepção homogeneizante, ou monocultural, adotada frequentemente pela escola:
Sob o discurso da democratização da escola, ou mesmo da escola única, essa
perspectiva homogeneizante expressa uma determinada forma de conceber a
educação, o ser humano e seus processos formativos [...]. Expressa uma lógica
instrumental, que reduz a compreensão da educação e de seus processos a uma
forma de instrução centrada na transmissão de informações. [...] Essa
perspectiva implementa a homogeneidade de conteúdos, ritmos e estratégias,
e não a diversidade. Explica-se assim a forma como a escola organiza seus
tempos, espaços e ritmos bem como o seu fracasso. Afinal de contas, não
podemos esquecer – o que essa lógica esquece – que os alunos chegam à
escola marcados pela diversidade, reflexo dos desenvolvimentos cognitivo,
afetivo e social, evidentemente desiguais, em virtude da quantidade e
qualidade de suas experiências e relações sociais, prévias e paralelas à escola.
O tratamento uniforme dado pela escola só vem consagrar a desigualdade e as
injustiças das origens sociais dos alunos. (DAYRELL, 1996, p.139-140).
O trecho apresentado demonstra de que modo a visão homogeneizante, a partir da qual a
escola, em geral, se organiza, acaba por resultar em uma educação que desconsidera a
diversidade de seus alunos e alunas, suas condições de vida, experiências e interesses. A partir
do que nos traz o autor, verificamos que tal homogeneização se faz presente tanto na concepção
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de que os saberes escolares são conhecimentos prontos e acabados – e que devem ser
transmitidos aos alunos e alunas como informações, em geral, desvinculadas de seu cotidiano –
quanto na homogeneização dos conteúdos, ritmos, estratégias e propostas educativas, e na não
valorização das experiências e relações vivenciadas por estudantes e docentes fora do espaço
escolar. Desse modo, ao tratar todos como iguais e desconsiderar as diferenças, a escola acaba
por acentuar as desigualdades e injustiças presentes na sociedade.
Diante do exposto, Dayrell (1996) argumenta sobre a necessidade de considerarmos a
escola não com um sentido único, mas como polissêmica, compreendendo que seus espaços,
seus tempos, suas relações, seus saberes, dentre outros, são significados de modo diferente
pelos diferentes sujeitos que a frequentam. O autor também chama a atenção para a necessidade
de a escola, para além da transmissão de conteúdos, tornar-se um lugar de reflexão, um espaço
onde seja possível a ampliação de experiências.
Sabemos que, no último século, o acesso à escola foi democratizado: grupos e classes
sociais que até então não tinham acesso à escola, passaram a frequentá-la. A educação escolar,
ao ser concebida como direito de todos e todas, trouxe novos sujeitos, pouco habituados ao
universo escolar, para dentro das salas de aula. O processo de democratização trouxe consigo a
necessidade de considerar a diversidade cultural que passou a se fazer presente na escola. No
entanto, podemos dizer que a estrutura, as práticas e o currículo escolar pouco se alteraram, e
continuam a ter em vista uma educação que era para poucos.
Cabe ressaltar que os apelos para que a escola passe a reconhecer as diferenças e levar
em conta a diversidade em seu cotidiano – no currículo, nas práticas, nas relações, nos saberes
priorizados – são fruto de reivindicações de grupos até então excluídos pela sociedade e pela
escola. No Brasil, os movimentos sociais que impulsionaram esses debates, sobretudo a partir
da década de 1990, foram compostos pelos grupos feministas, grupos de diferentes etnias,
movimento negro, grupos de homoafetivos, etc.
Diante desse quadro, a escola não pode mais ser vista como transmissora de uma cultura
“verdadeira”, mas deve ser entendida como espaço de cruzamento de culturas, onde se fazem
presentes diferentes manifestações culturais que dialogam e conflitam entre si. Compreender a
escola como espaço de cruzamento de culturas significa, em primeiro lugar, reconhecer as
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diferentes culturas existentes no cotidiano escolar. Mais do que isso, implica buscar novas
formas e novas práticas que passem a contemplar essa diversidade:
Em vez de preservar uma tradição monocultural, a escola está sendo chamada
a lidar com a pluralidade de culturas, reconhecer os diferentes sujeitos
socioculturais presentes em seu contexto, abrir espaços para a manifestação e
valorização das diferenças. É essa, a nosso ver, a questão hoje posta.
(MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 161).
É importante que a escola se abra à diversidade cultural que caracteriza a sociedade
contemporânea. Para superar a visão monocultural de educação, é necessário que se
problematize as práticas escolares, os conteúdos e até mesmo o papel desempenhado pela
escola na sociedade. Atualmente, portanto, acreditamos que cabe-nos questionar: Qual deve ser
o papel da escola nesse novo contexto no qual está inserida? É o que trataremos a seguir.
OS OBJETIVOS DA ESCOLA: INSTRUÇÃO E FORMAÇÃO ÉTICA
A sociedade contemporânea – com a globalização, as novas tecnologias e outras
mudanças de ordem política, econômica e social – vem aproximando cada vez mais as culturas
e os povos, e redimensionando os tempos e espaços que estruturam a vida dos indivíduos. Nesse
contexto, saber conviver com as diferenças e lidar com os conflitos e as tensões decorrentes
desta nova realidade torna-se fundamentais aos seres humanos. Ao mesmo tempo, é preciso
reconhecer que a sociedade contemporânea traz consigo diferentes formas de acesso ao
conhecimento sistematizado, de modo que a escola deixou de ser a única fonte de saber. Nesse
novo contexto, portanto, a função desempenhada pela escola deve ser muito maior do que
apenas a transmissão de conhecimentos. Segundo Araújo (2003, p.30), a função central da
escola atualmente deveria girar em torno de dois eixos básicos: a instrução e a formação ética.
O eixo da instrução escolar refere-se à construção dos conhecimentos historicamente
acumulados pela humanidade, delimitados pelas disciplinas escolares. Já o eixo da formação
ética diz respeito ao desenvolvimento de condições físicas, psíquicas, cognitivas e culturais
necessárias para o desenvolvimento de uma vida saudável, como define Araújo, e que permitam
a participação, de forma crítica e autônoma, na vida política e pública da sociedade
contemporânea, buscando, em última instância, a superação das desigualdades e injustiças.
Trata-se, em última instância, de um trabalho voltado para os valores e as disposições internas
dos sujeitos, que são construídos nas interações e aprendizagens que ocorrem na escola.
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De acordo com Araújo, o trabalho com o eixo da instrução é importante, mas sozinho
não atende à formação ética. À escola cabe mais do que transmitir saberes, cabe um trabalho
que se volte para o desenvolvimento da autonomia dos estudantes, que estimule a reflexão, o
diálogo e as ações pautadas em princípios de democracia e justiça. Para tanto, o trabalho da
escola deve se articular às vivências dos estudantes, levando em conta seus contextos, suas
experiências, seus conflitos e inquietações. Nesse sentido, Paulo Freire (1996) nos auxilia ao
defender que as experiências e conflitos vivenciados por estudantes devem ser problematizados
pela escola. Deste modo, torna-se possível que o conteúdo das disciplinas seja articulado à
cultura e à realidade dos diferentes grupos sociais que frenquentam a escola, e que tem sido
deixada de fora dos muros escolares. Nas palavras de Paulo Freire:
Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da
cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição
dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os
lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no
coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros
urbanos? É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia.
Por que não discutir com os alunos a realidade concreta que se deva associar a
disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é
a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que
com a vida? Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes
curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como
indivíduos? (FREIRE, 1996, p.33-34).
Entendemos que a articulação entre os conhecimentos escolares e a experiência de
alunos(as), como nos lembra Paulo Freire, deve ser vista como um caminho possível na busca
por uma educação que contemple as diferentes culturas presentes na escola. Apontamos como
positiva a articulação entre conhecimentos escolares e a cultura de alunos(as) como
possibilidade de aproximar o trabalho escolar dos conflitos e das vivências cotidianas de seus
estudantes e de seu entorno. É nesse sentido que apresentamos o trabalho com projetos como
uma estratégia que pode, interdisciplinarmente, abordar os eixos da instrução e da formação
ética, simultaneamente, possibilitando uma educação que vá além da transmissão de conteúdos
e contemple a contextualização dos conhecimentos escolares na cultura de alunos e alunas.
Antes de abordarmos a estratégia de projetos, no entanto, consideramos importante
apresentar algumas bases históricas que influenciaram a forma como a escola está organizada
em nossa sociedade. Depois desse breve histórico será possível reconhecer a importância de ir
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além da atual estrutura disciplinar da escola, buscando a interdisciplinaridade e uma educação
contextualizada com as atuais preocupações da sociedade contemporânea.
ALGUMAS ORIGENS DO PENSAMENTO DISCIPLINAR
Uma das matrizes da organização disciplinar encontra-se nas ideias do filósofo francês
René Descartes (1596-1650). Descartes estruturou o conhecimento em um método, depois
chamado de científico, que se baseava na linguagem matemática e aproximava o
funcionamento da natureza ao de máquinas, regidas por leis imutáveis, naturais, necessárias e
eternas (DESCARTES, 2000). O relógio e suas engrenagens compõem a metáfora que foi
empregada para explicar a natureza. Da mesma forma que o tempo passou a ser contido dentro
do relógio, permitindo sua matematização, a natureza pôde ser dividida em inúmeras partes,
mais simples. O relógio podia ser analisado desmontando-o em pequenas peças que, sendo mais
simples, tornavam mais fácil a compreensão de seu funcionamento. A natureza e o ser humano
começaram a ser analisados também dessa maneira, sendo divididos em partes, mais fáceis de
estudar. O pressuposto adotado foi o de que se entendendo as partes entender-se-ia o todo.
Essa forma de encarar a realidade contribuiu para a divisão disciplinar da natureza. A
formação de especialistas em cada uma das disciplinas que iam sendo criadas forneceu
condições únicas na história para que os fenômenos fossem melhor compreendidos. Tais ideias,
revolucionárias, foram sistematizadas nos séculos seguintes por cientistas e filósofos como
Newton, Leibnz e Kant, e propiciaram avanços inacreditáveis para a compreensão da natureza e
da vida humana. Sua consolidação efetiva ocorreu no século XIX e foram, imediatamente,
trazidas para o âmbito acadêmico universitário e, posteriormente, escolar.
É importante reconhecer que o desenvolvimento da ciência em áreas disciplinares
trouxe a vantagem da divisão do trabalho. No entanto, precisamos entender que, se por um lado
o desenvolvimento do chamado método científico e a especialização disciplinar permitiram ao
ser humano tentar dominar e controlar a natureza – e foram eficazes para o progresso científico
dos séculos XVIII, XIX e XX – a superespecialização gerou também ignorância ao não
considerar a complexidade que caracteriza os fenômenos da natureza. De acordo com Morin
(1997), tal forma de ver a realidade constitui um “paradigma de simplificação”, cujos princípios
são a disjunção, a redução e abstração. O pensamento simplificante, oriundo das ideias de
Descartes, tende a fragmentar os fenômenos da natureza ao estudar apenas algumas partes da
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realidade (disjunção); entendendo tal realidade exclusivamente a partir dessas partes
fragmentadas (redução); e distanciando o objeto de estudo do contexto que o produziu
(abstração). Tal pensamento influencia a organização escolar e a disjunção se manifesta nos
conteúdos e disciplinas que estão separados e não se relacionam (ARAÚJO, 2002). Em paralelo
é possível verificar na escola a redução do complexo ao simples, na medida em que se supõe
que basta estudar as partes simplificadas que formam a realidade complexa para se ter uma
visão do todo e dominar a realidade. Já a abstração, que consiste em formalizar o conteúdo e
afastar-se do objeto de estudo, pode conduzir a um ensino distante do cotidiano a que
pertencem estudantes. A simplificação, portanto, pode promover fragmentação e distanciar
alunos(as) e realidade, fazendo com que a escola se desconecte da vida.
Enfim, essa organização educacional tradicional baseada nos princípios da disjunção,
redução e abstração está associada à ideia de programas curriculares, que são sequências
lineares de ações que têm por finalidade atingir objetivos pré-determinados. Sabemos que a
vantagem que se encontra nesta forma de organização tradicional é a economia de tempo, pois a
rigidez dos programas curriculares não permite alterações e nem requer maiores reflexões. Por
outro lado, os programas podem se tornar falhos, as disciplinas estudadas não se relacionam
entre si e a necessidade de seguir uma sequência pensada previamente deixa de lado as
novidades que surgem durante o desenvolvimento do trabalho. Isso ocorre porque os programas
disciplinares engessam as ações de professores e professoras, reduzindo a natureza do objeto de
estudo e dificultando uma participação mais ativa dos alunos e alunas na construção do
conhecimento, já que o caminho do estudo está todo traçado pelo programa.
Assim, falar de programas curriculares implica uma visão de conhecimento disciplinar,
linear e hierarquizado. Essa visão encerra a realidade dentro dos limites das disciplinas, o que
dificulta às crianças e jovens a construção de uma visão global sobre os fenômenos.
As propostas para uma reorganização desse conhecimento escolar baseado no
pensamento cartesiano têm início com a ideia de interdisciplinaridade. A partir do
entendimento do conceito de interdisciplinaridade, poderemos dar sequência às possibilidades
que a estratégia de projetos oferece à construção de processos de contextualização e de
articulação dos conhecimentos das diferentes áreas e disciplinas escolares.
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INTERDISCIPLINARIDADE
Os avanços científicos alcançados no século XX evidenciaram que o estudo disciplinar
no qual a escola se baseia já não é suficiente para explicar a complexidade da realidade à nossa
volta. Cada vez mais, em diferentes pesquisas, vimos como os estudos dos fenômenos exigem a
colaboração de especialistas de diversas áreas do conhecimento. Há vários exemplos do
surgimento de novas ciências que reúnem elementos de diversas disciplinas, até então tidas
como isoladas entre si. Este é o caso da ecologia, por exemplo, que estabelece relações com as
ciências biológicas e políticas, na medida em que a degradação ocasionada pelos seres humanos
ao planeta traz consequências sociais e políticas para os seres humanos enquanto espécie.
Assim também ocorre com a demografia, que era um problema puramente biológico, mas
tornou-se político quando a questão do controle da natalidade e o aumento da população
tornaram-se preocupações de ordem social (MORIN, 1997).
Assim, ao se tornar interdisciplinar, um objeto de estudo deixa de ter um caráter fechado
e passa a levar em consideração suas interações com diferentes campos disciplinares. No
entanto, valorizar a interdisciplinaridade não significa desvalorizar as disciplinas. Ao contrário,
a disciplinarização continua sendo importante, pois as disciplinas tomam como objeto de
análise uma parte da realidade que ajuda a compreender o todo, como veremos a seguir.
ESTRATÉGIA DE PROJETOS
Quando a escola adota uma visão monocultural de educação – homogeneizando e
padronizando os conhecimentos e os sujeitos que a frequentam – isso dificulta o
desenvolvimento de um olhar pluridimensional, que valorize a diversidade de culturas
presentes em nossa sociedade. Como alternativa a essa visão monocultural, afirmamos a
necessidade dos saberes e práticas escolares passarem a ser entendidos no contexto das
diferentes culturas, como vimos anteriormente. Em termos práticos, a escola deve considerar a
necessidade de trabalhar com os conhecimentos curriculares tradicionais – situados no âmbito
da instrução – ao mesmo tempo em que incorpora as experiências culturais de alunos(as). Dessa
maneira, os conhecimentos escolares abririam espaço para a diversidade cultural que se faz
presente no interior da escola, auxiliando na produção e reprodução da cultura.
A visão disciplinar de conhecimento – fruto de um pensamento que considera a
linearidade como única forma de se alcançar o saber – hierarquiza fortemente os conteúdos
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escolares e os organiza sob a forma de programas curriculares rígidos. Tais programas
dificultam as relações interdisciplinares entre os diferentes campos do saber e não
proporcionam às crianças e jovens a construção de uma visão global sobre os fenômenos
estudados. Dessa forma, o estudo dos conteúdos é visto como um fim em si mesmo, e a escola
se afasta cada vez mais da realidade cotidiana. Com esse afastamento, a educação acaba por
desconectar-se das temáticas socialmente relevantes que poderiam religar de maneira
interdisciplinar as áreas do saber às necessidades da sociedade contemporânea.
Nesse sentido, a estratégia de projetos visa a superação da visão monocultural e tem
como ponto de partida a cultura, as necessidades e os interesses particulares a crianças e jovens
em idade escolar. Essa estratégia pedagógica nos ajuda a pensar uma forma diferente de
concretizar as relações e o trabalho com as disciplinas dentro de sala de aula, além de colocar
alunos e alunas no centro do processo educativo, na tentativa de responder aos problemas
sociais. Assuntos de relevância social e temáticas atuais, estudadas na escola com ajuda da
estratégia de projetos, passam a servir de guia para o trabalho escolar e o objetivo da educação
deixa de ser apenas o trabalho com os conteúdos e a interpretação da realidade em que vivemos,
passando a considerar também a necessidade de atuação para transformação dessa realidade em
busca de um ensino preocupado com as necessidades da maioria da população.
Diante disso, podemos afirmar que o trabalho com a estratégia de projetos contempla,
ao mesmo tempo, os dois objetivos da escola: a instrução e a formação. Ao considerar como
complementares essas duas dimensões do trabalho escolar, passamos a observar a realidade a
partir de múltiplos pontos de vista, e não apenas sob a ótica da divisão disciplinar do
conhecimento. Isso quer dizer que não se trata de olhar para a educação e optar apenas pela
instrução ou pela formação das futuras gerações, mas adotar como objetivos da escola tanto a
instrução quanto a formação em valores de crianças e jovens. A seguir, apresentaremos os
pressupostos da estratégia de projetos e como ela pode ser desenvolvida na escola.
O PROJETO COMO ESTRATÉGIA PEDAGÓGICA
A palavra projeto é utilizada em nosso dia-a-dia com diferentes significados. As ideias
de realizar um empreendimento, por exemplo, um plano para o futuro e até mesmo um plano
geral a ser realizado, todas estão relacionadas à palavra projeto. Em nosso caso, vamos recorrer
ao trabalho de Machado (2006), que nos ajuda a entender o significado de um projeto na escola
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e suas implicações para o planejamento docente. Na escola, a palavra projeto envolve a busca
por objetivos, o que não necessariamente pressupõe percorrer um único caminho para
alcançá-los. Se projetar envolve a busca por metas, envolve também um planejamento, que é
responsabilidade do(a) professor(a) e serve para guiar essa busca. Mas, como um projeto
pressupõe o engajamento em algo ainda em construção, esse processo envolve riscos e
incertezas. Portanto, a ideia de ter um projeto implica uma referência ao futuro, que está em
aberto e depende das ações e decisões de alunos(as) e professores(as).
A ideia de que um projeto envolve decisões e, portanto, riscos e incertezas, nos leva a
um outro conceito, o de estratégia. Como alternativa à visão de programas curriculares
tradicionais que discutimos anteriormente, apresentamos a noção de estratégia pedagógica por
acreditar que ela nos ajuda a superar a ideia de um conhecimento linear e hierarquizado,
previamente definido. Assim, a estratégia de projetos está fundamentada no pensamento
complexo (MORIN, 1997) e não apresenta a rigidez do programa, permitindo ampliar a visão
disciplinar, tendo em vista que se pode organizar o currículo escolar também a partir dos
imprevistos que surgem durante o processo de construção do conhecimento.
Diante do que foi exposto, um projeto ajuda a concretizar os princípios de
interdisciplinaridade ao permitir que os conhecimentos disciplinares se integrem e se abram a
relações com feixes externos ao currículo escolar. A estratégia de projetos aponta, portanto para
novas perspectivas de trabalho com o conhecimento no âmbito da educação básica.
AS ETAPAS DE UM PROJETO
Como vimos anteriormente, um dos possíveis caminhos para concretizar a
interdisciplinaridade é o trabalho com projetos. Tal proposta vem sendo desenvolvida em
escolas públicas e privadas a partir de uma metodologia que envolve quatro procedimentos.
1. Proposição de um tema de relevância social: O planejamento se inicia com a
escolha de um tema a ser desenvolvido no projeto, considerando uma temática que seja
socialmente relevante. A escolha do tema deve centrar-se em conteúdos relacionados à
ética – por exemplo, as questões relacionadas aos direitos humanos (ARAÚJO, 2001). Os
conteúdos escolares também devem ser levados em consideração nesta etapa.
2. Elaboração de questões: Depois de apresentar o tema à classe, são elaboradas as
questões que nortearão o projeto. Tais questões são formuladas pelas próprias crianças
com a mediação docente. Esta é uma forma de valorizar as diferentes experiências e
interesses dos alunos e alunas, sem deixar de lado o trabalho com os conteúdos. Os(as)
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estudantes participam elaborando perguntas e atuando na busca por respostas junto ao
docente, que planeja as aulas, os conteúdos e as pesquisas.
3. Planejamento das estratégias e metodologias: Aqui, o(a) professor(a) começa a
articular as questões levantadas pelos alunos(as) aos conteúdos que auxiliarão na
compreensão de cada resposta. Ò(a) professor(a) planeja os conteúdos e métodos para a
busca por respostas às questões do projeto. A metodologia utilizada deve ser variada,
contemplando diferentes recursos e articulando diferentes disciplinas.
4. Início do projeto: O projeto se inicia com a busca pelas respostas às questões. É
importante que cada atividade desenvolvida articule os conteúdos disciplinares à temática
escolhida, em um trabalho que ressalte a autoria dos(as) alunos(as) no desenvolvimento e
registro das atividades. Ao longo do projeto, registra-se o trabalho em portfólios
individuais e/ou coletivos, contendo as produções da turma, avaliações, comentários
do(a) professor(a) e as reflexões de ambos.
A dinâmica entre as etapas descritas anteriormente contempla, de forma breve, os
princípios de contextualização da cultura e interdisciplinaridade presentes no trabalho com
projetos na escola. A seguir, apresentaremos um exemplo de projeto, na intenção de discutir o
projeto como método pedagógico para um ensino contextualizado e interdisciplinar.
O PROJETO “PIADAS E PROPAGANDAS DISCRIMINATÓRIAS”
O projeto aqui exemplificado possibilitou momentos de articulação entre a temática
abordada (direito à não-discriminação) e os conteúdos curriculares previstos para o 4º ano do
Ensino Fundamental. No presente tópico, apresentaremos alguns desses momentos para indicar
como o conhecimento na perspectiva dos projetos pode adquirir significado ao constituir-se por
meio da contribuição entre as áreas do saber e temáticas atuais. Ao analisar os exemplos
verificaremos como os conteúdos de algumas matérias curriculares foram trabalhados, não
como finalidades em si mesmos, mas como instrumentos para compreender e transformar a
realidade, promovendo uma educação que contempla os dois eixos básicos – instrução e
formação ética – e preocupada com a melhoria da sociedade.
O projeto iniciou-se com a apresentação do artigo II da Declaração Universal dos
Direitos Humanos – direito à não-discriminação. O tema específico foi escolhido pelos(as)
estudantes e chamado “Piadas e propagandas discriminatórias”. Esse tema expressa a
diversidade cultural de nossa sociedade expressa em conflitos, confrontos e disputas. Na figura
1, vemos a rede do projeto, as perguntas de alunos(as) e os conteúdos planejados pelo professor.
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Figura 1: Rede do projeto “Piadas e propagandas discriminatórias”. Embora não seja assunto de reflexão
no presente artigo, a metáfora da rede é discutida por Araújo (2003) e Machado (2011) como alternativa
à concepção linear e fragmentada de conhecimento e adotada no trabalho com projetos.
Em um dos estudos do projeto, o texto “O bife e a pipoca”, de Lygia Bojunga foi
trabalhado. A história narra o encontro, amizade e percalços entre um menino rico e um menino
pobre. Vários conteúdos foram trabalhados nesse momento, entre eles o “texto carta”. Foram
encaminhadas cartas a uma escola vizinha, onde trabalhava a mãe de um aluno da classe.
Essa possibilidade de articulação entre escola e comunidade foi fundamental para o
projeto. Na concepção que adotamos assumimos que não se pode isolar a escola do restante da
sociedade. Por isso decidimos valorizar os sujeitos, suas culturas, bem como fatos e conflitos da
comunidade de entorno, na construção de um projeto que levou em consideração a participação
de professores, alunos, alunas, pais e demais membros da comunidade. A partir desse contato,
foram desenvolvidas várias atividades. As turmas de escolas diferentes passaram a trabalhar
juntas em busca de formas de diminuir a discriminação oriunda de piadas e propagandas,
vivenciando um processo contextualizado com preocupações da sociedade contemporânea.
Entre outras atividades, foram escritos textos narrando trabalhos realizados, cartas, teatros,
músicas, todos registrados em portfólios, onde constam os trabalhos desenvolvidos no projeto.
Uma das atividades consistia em um trabalho com a música “Inclassificáveis”, de
Arnaldo Antunes, quando discutiu-se o conceito de miscigenação – base da formação de nossa
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sociedade. Tal conceito transformou-se em um importante apoio para o entendimento da
questão racial e cultural que permeava o projeto, como expresso na figura 2 abaixo.
Figura 2: Colagem realizada por estudantes das duas escolas como representação do conceito de
miscigenação estudado no projeto.
Pesquisando em busca de uma resposta à pergunta “Existe algum órgão que fiscaliza as
propagandas?” a turma encontrou uma organização não-governamental que fiscaliza
propagandas potencialmente discriminatórias. Trata-se do CONAR (Conselho Nacional de
Auto-Regulamentação Publicitária), que observa propagandas e a discriminação presente nelas,
fazendo com a publicidade esteja de acordo com o artigo II da DUDH.
Foram encontradas pela classe, inclusive, algumas propagandas em jornais e revistas
entendidas como discriminatórias. A partir da análise dessas propagandas, forma produzidas
novas propagandas, com alterações objetivando minimizar os aspectos discriminatórios.
Abaixo, podemos ver o exemplo de uma propaganda refeita pelas crianças. É importante
destacar que a propaganda original colocava um homem chegando à frente de uma mulher na
“corrida para o mercado de trabalho”. Ao refazer a propaganda, as crianças colocaram os dois,
mulher e homem, chegando juntos, como pode ser visto na figura 3 a seguir.
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Figura 3: Atividade de “releitura de propaganda discriminatória” desenvolvida no projeto.
No trabalho com a questão “Como podemos diminuir a discriminação racial?”, as
crianças tiveram a ideia de confeccionar uma cartilha a respeito da discriminação. Para compor
a cartilha, entre outros materiais, foram produzidos textos, tirinhas, músicas, etc. com a
intenção de conscientizar as pessoas a respeito da necessidade de respeito à diversidade. Foi
realizada até mesmo uma pesquisa para saber quantas pessoas já tinham se sentido
discriminadas ao ouvir piadas preconceituosas. A pesquisa foi feita com alunos, alunas,
professores, pais e comunidade escolar em geral. Isso possibilitou um trabalho com vários
conteúdos, em especial de português e matemática, para interpretação e organização dos dados
numéricos. Nessa atividade, ficam evidenciadas as possibilidades que a estratégia de projetos
ofecere para atuação de estudantes na transformação da realidade. Ao abordar a discriminação
presente em nossa sociedade o objetivo do projeto foi desenvolver um ensino contextualizado
na cultura de alunos e alunas e preocupado com as necessidades da maioria da população. Na
figura 4 abaixo, podemos ver algumas páginas da cartilha.
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Figura 4: Trechos da cartilha produzida por alunos e alunas para tratar da discriminação com a
comunidade de entorno da escola.
De maneira específica, o trabalho com a cartilha nesse projeto possibilitou uma série de
discussões e reflexões a respeito de condutas que valorizam as diferenças e a diversidade
humana. A articulação entre os conteúdos trabalhados e a cultura de alunos(as), transformou-se
em possibilidade de aproximar o trabalho escolar dos conflitos e das vivências cotidianas de
estudantes e de seu entorno. Os conteúdos trabalhados ganharam significado ao ajudarem a
compreender que a discriminação está presente em nosso cotidiano, o que nos leva a crer que a
atividade prestou auxílio não só ao estudo dos conteúdos (eixo da instrução), mas também à
educação em valores (formação ética), já que as crianças partiram para a tentativa de
transformação de sua realidade a partir da articulação entre a temática estudada e os conteúdos.
As atividades exemplificam um conhecimento visto sob a ótica da interdisciplinaridade
e da contextualização – trabalhado a partir da estratégia de projetos – que pode adquirir maior
significado para alunos e alunas da escola básica, ajudando a formar sujeitos que almejem por
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uma vida mais justa, digna e feliz para todos os membros de nossa organização social.
Importante destacar que, na perspectiva do trabalho com projetos, a contextualização dos
conhecimentos escolares na cultura de alunos(as) é uma ferramenta para a constituição de uma
escola que tenta responder a problemas sociais e se conectar a vida das pessoas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto analisado no presente artigo exemplifica com professor e alunos(as)
refletiram sobre o significado das diferenças individuais e desigualdades sociais, realizando um
trabalho para além do discurso e promovendo questionamentos a respeito de atitudes e valores
preconceituosos – que muitas vezes, por serem “velados”, passam despercebidos e nosso
cotidiano. Este é um exemplo de como entender a escola como espaço de cruzamento de
culturas e não mais como transmissora de uma cultura “verdadeira” hierarquicamente superior.
Partindo do pressuposto de que escola é um espaço onde se fazem presentes diferentes
manifestações culturais que dialogam e conflitam entre si, o estudo de temáticas socialmente
relevantes proporcionado pela estratégia de projetos possibilita que a cultura e questões
conflituosas da vida cotidiana sejam abordadas na escola – como foi o caso da discriminação,
no projeto analisado no presente artigo. Em vista disso, vale lembrar que os temas de projetos
não são novos campos disciplinares, mas sim áreas do conhecimento que atravessam as
diferentes disciplinas do currículo escolar de maneira interdisciplinar, promovendo uma
integração entre os saberes e a realidade vivida por alunos e alunas.
Bale lembrar também, a partir do que discutimos ao longo do artigo, que o trabalho com
a estratégia de projetos na escola ultrapassa os aspectos metodológicos e assume também um
pressuposto epistemológico, na medida em que permite questionar quais os tipos de
conhecimentos a humanidade e a ciência devem produzir.
Em suma, o trabalho com a estratégia de projetos na escola não objetiva apenas a
contextualização dos conhecimentos científicos na cultura e cotidiano das pessoas. Ao partir de
temáticas socialmente relevantes, o objetivo de um projeto escola passa a ser a busca de
soluções para essas temáticas, de forma que as ações docentes não objetivam apenas o trabalho
com os conteúdos e a interpretação da realidade, mas também a transformação da própria
realidade. Esta é uma das maneiras de contemplar o que consideramos os dois objetivos da
educação: a instrução e a formação ética das futuras gerações, almejando uma educação que
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leve em consideração a diversidade cultural de seus alunos e alunas, condições de vida,
experiências e interesses na construção de uma aprendizagem significativa.
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