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Fernando Whitaker da Cunha ESTADO, DEMOCRACIA E CULTURA **** 1967

Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

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Fernando Whitaker da Cunha

ESTADO, DEMOCRACIA E CULTURA

****

1967

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SUMÁRIO

Pág.

O PÓSGUERRA E A DEMOCRACIA CRISTÃ ............ 3

UTOPIA E IDEAL HISTÓRICO .................................. 19

A DEMOCRACIA ANTIGA ......................................... 20

HERÁCLITO E A POLÍTICA ...................................... 26

O ADVENTO DO CRISTIANISMO ............................ 30

EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LIBERAL ............. 36

BURGUESIA E LIBERALISMO ................................. 48

ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE CULTURA ... 53

A SEPARAÇÃO DE FUNÇÕES .................................. 56

OS DOIS GLÁDIOS ..................................................... 71

O “WELTANSCHAUUNGSSTAAT” ........................... 73

ESTADO-MEIO E ESTADO-FIM ................................ 74

A CRISE DA CULTURA .............................................. 79

CIVILIZAÇÃO E CULTURA ...................................... 83

A TEORIA DEMOCRÁTICA ....................................... 85

EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA.................................. 88

CONCEITO DE DEMOCRACIA ................................. 93

CONCLUSÃO ............................................................... 94

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O PÓSGUERRA E A DEMOCRACIA CRISTÃ

Os períodos de pós-guerra se caracterizam por

uma extensa faina de reconstrução em todos os setores,

tornando, por vêzes, difícil, quando não impossível, que

dêles se trace um retrato completo.

As guerras e as revoluções, fenômenos

impostergáveis, criam novas cosmovisões não só para as

nações vencidas e neutras, mas principalmente para as

potências vitoriosas que assim reformulam a própria

conduta política, revendo êrros de perspectiva. Mas um

certo cáos pósbélico é inevitável pelas próprias

circunstâncias. Limitando-se ao aspecto legislativo

consignou Carlos Ollero1: “A quien hoy quiera estudiar

em España el Derecho Constitucional de la postguerra,

no le será muy fácil cumplir su propósito, especialmente

por dos razones: una, la cantidad de documentos de essa

índole producidos em estos últimos años; outra, el

entorpecimiento que para tal labor significa no encontrar

a mano los textos necesarios”.

Mais do que nunca os problemas pósbélicos são

problemas de reconstrução política, mostrando a

iniludível união do Direito Constitucional e da Ciência

Política, mas são problemas labirínticos em que as

doutrinas esgrimam com impaciência e mesmo com

incerteza em face das novas condições sócio-econômicas

que ousaram enfrentar. Apontar, nessa conjuntura,

tendências, ou como dizia Vicente Rao, idéias, ou

práticas, “em processo, em marcha, para a consecução de

um fim”, não é tarefa fácil ao estudioso.

Guétzévitch apontou como tonalidade

1 “El Derecho Constitucional de la Postguerra”, Barcelona, 1949, pg.

5.

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predominante do primeiro pósguerra a unidade e a

supremacia do Direito, expressas no fenômeno que

denominou, como se sabe, de racionalização do poder,

vale dizer a “tendência para se sujeitar ao Direito todo o

conjunto da vida coletiva”.

O apêgo ao Direito seria assim uma tábua de

salvação para evitar as guerras e mesmo as revoluções.

Pinto Antunes, entre nós, bem estudou a concepção da

Democracia Jurídica, em seu opinar a “forma definitiva

de govêrno”2.

O primeiro pósguerra, por isso, consagrou a

predominância do Parlamentarismo temeroso de conferir,

ao Executivo, prerrogativas maiores, embora concedesse

ao Gabinete importantes funções. Essa inópia do

Executivo, por sua vez, gerou uma certa instabilidade

política, de que se aproveitaram ideologias para

robustecerem novamente o Executivo, como gestor de

um Estado Orgânico ou Totalitário, lipidarmente definido

por John Baker, como aquêle sistema de govêrno “em

que os atos dos indivíduos são em grande parte

controlados por uma autoridade central planificadora”3.

Em tal espécie de Estado se implanta um princípio

monárquico, tendo o Direito apenas valor instrumental.

Afirmava Hitler que “a verdade é um fenômeno

social, e como qualquer outro fenômeno social tem cmoo

limites o proveito ou o dano que proporciona à

comunidade.” Freud lamentava que, em certos lugares,

perdesse a própria ciência a sua imparcialidade, porque

se apaixonou4. Percebe-se assim como certa supremacia

do Direito pode degenerar no materialismo jurídico dos

regimes de força, negadores do próprio Direito.

2 “Raciocracia”, pg. 83. São Paulo, 1933. 3 “A Ciência e o Estado Planificado”, pg. 14, Coimbra 1947. 4 “Psicanálise dos Tempos Neuróticos”, pg. 21 s/d.

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Guetzévitch alertara5 que determinadas constituições não

davam “a necessária competência ao Executivo,

estabelecendo o primado absoluto do Legislativo”, por

sua vez enfraquecido pelas disputas partidárias.

Ao que pensamos não é o primado dêste ou

daquêle Poder que irá colimar a ordem democrática

almejada pela técnica constitucional, que é uma “técnica

de liberdade”, mas o estabelecimento de um poderoso

sistema de “freios e contrapesos”, tal qual nos legou a

Constituição dos Estados Unidos, insuperável lição de

sabedoria política.

Como se observou ainda, o constitucionalismo do

anterior pósguerra fulminou o liberalismo clássico,

ampliou os direitos sociais, protegeu as minorias

nacionais, prestigiou a Câmara baixa e extendeu

consideràvelmente os institutos do Referendum (votação

popular) e da Iniciativa Popular. Conhecida a

classificação da Democracia em direta, semi-direta e

indireta, os mencionados tipos jurídicos não poderiam

pertencer, por sua natureza, à última das formas

mencionadas, repelindo mesmo o art. 59 da Constituição

de 1967 a intervenção popular na iniciativa das leis,

tarefa atribuída a qualquer membro da Câmara ou

Senado, ao Presidente da República, e aos Tribunais

Federais com jurisdição em todo o território nacional. O

Referendum é uma espécie de consulta popular que

obriga o poder consultante, havendo, todavia, consultas

que objetivam apenas auscultar a opinião pública, não

traçando limites à ação governamental e podendo existir

na Democracia Indireta. Uma lei votada, antes de vigir é

levada à consideração do povo que a referenda ou não.

Distingue-se o referendum pròpriamente dito do

5 “As Novas Tendências do Direito Constitucional”, p. 25, Cia. ed.

Nac. 1933.

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referendum facultativo ou Veto Popular, onde a lei com

fôrça, por já revestida de suas formalidades, é levada, em

certo prazo, à apreciação popular para saver se ela se

opõe ou não à sua aplicação, e do referendum

consultativo, no qual se submete, não uma lei feita, mas

uma lei a fazer. O Plebiscito é também instituto no qual a

decisão popular é que confere, ou não, valor jurídico ao

ato. Contudo, é fenômeno de forma democrática diversa

da do Referendum e do Veto Popular. Duguit considera-o

próprio do govêrno representativo, e Nelson de Souza

Sampaio, do govêrno direto, discrepando ambos ainda

quanto ao Referendum, por estimar o autor francês que

êle é elemento da forma democrática direta e o brasileiro

por enquadrá-lo na forma semi-direta, juntamente com o

Veto Popular. Pensamos, apesar de a matéria não ser

pacífica, que o Referendum pode existir quer na

democracia Direta, quer na Semi-Direta, e que o

Plebiscito pode surgir tanto no govêrno direto como no

representativo, uma vez que, como preleciona o próprio

Duguit, o povo pode delegar poderes, por via

plebiscitária, a um homem e encarregá-lo de fazer uma

Constituição.

Interessante feição democrática tem o Recall

(conforme a prática americana, revogação do mandato de

representantes e juízes eletivos pleiteado por um certo

número de eleitores, obrigados a prestar caução

prèviamente, para garantir as despesas de reeleição do

“recalled”, caso êste a consiga), usado principalmente

nos Estados Unidos e na Suíça. A União Soviética, pelo

art. 147 de sua Constituição o admite apenas para os

cargos legislativos.

Segundo Darcy Azambuja, em seu conhecido

manual de Teoria do Estado, “entre nós, a Constituição

do Rio Grande do Sul, de 14 de julho de 1891, admitia a

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'revogação do mandato' de deputado à Assembléia dos

Representantes e dos Intendentes Municipais”. Era,

contudo, isso uma sobrevivência retardatária do Mandato

Imperativo, e não o “recall” como se o concebe.

A supremacia do Direito, na forma romântica com

que a sintetizou o primeiro pósguerra, foi uma das causas

da segunda grande conflagração mundial. A Liga das

Nações, sem qualquer eficácia, pretendia, desconhecendo

as realidades, resolver, em torno de mesas de chá,

problemas cruciantes de ordem internacional, sendo certo

que seus mais respeitáveis paladinos foram os primeiros,

como demonstrou Luis Schwalbach6, “a afastarem do seu

veredito as questões de importância capital, definhando

assim sua missão”.

A Itália ocupou Corfu; a Inglaterra agiu

descomedidamente no Egito e a França e a Espanha,

fazendo parte dêsse coral de violências, não aceitaram

qualquer arbitragem na questão do noroeste africano.

Resta saber a situação do segundo pósguerra, em

têrmos gerais, e verificar se êle expurgou os êrros

cometidos pelo primeiro.

Qualquer digressão de Política Internacional exige

de expositor, como o reclamou Barcia Telles7 tomada de

posição, uma vez que se a construção oferecida não tiver

outro mérito, deve ao menos “reflejar la visión personal

del autor”.

Nós vemos a problemática do segundo pósguerra

sob o ângulo da unidade do mundo num crivo

democrático autêntico que para isso nutre-se em suas

raízes, ansiosos, como Freeman8, em lapidar estudo, de

6 “O Mundo depois da Grande Guerra”, pg. 117, Lisboa s/d. 7 “El Problema de la Unidad del Mundo Posbélico”, pg. 9, São

Paulo, 1953. 8 “Le Dévelopement de la Contitution Anglaise”, pg. 2, Paris, 1877.

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contemplar “pour la première fois la liberté face a face

dans sa plus pure et plus antique forme”.

Por essa razão, não podemos deixar de denunciar

o renascimento dos perigosos nacionalismos e do

primeiro pósguerra, como o incremento do Neo-Nazismo

do Neo-Fascismo, em grande parte do mundo.

O Neo-Nazismo encontrou sucessor, na

Alemanha, no Partido Nacional Democrata que, em Hess,

ganhou oito cadeiras no Parlamento, e o Neo-Fascismo

no Movimento Social Italiano. Tanto um como outro já se

fazem sentir, na Inglaterra, na Holanda, na França e nos

países escandinavos, como revela Ana Elisabeth

Kislhorn9, mas principalmente acrescentamos, nos

Estados Unidos, onde organizações secretas e outras,

como a “John Birch Society”, aspiram restaurar o

totalitarismo da direita, às escancaras.

O segundo pósguerra, ao lado de propiciar o

confronto entre a União Soviética e os Estados Unidos,

possibilitou o fortalecimento das esquerdas, inclusive das

não comunistas, cedendo a democracia política lugar à

democracia social. Como ensina Pablo Verdú existem, no

mundo atual, três formas de govêrno: a) as Repúblicas

Clássicas; b) as Repúblicas Progressistas; c) os Estados

Totalitários.

Os últimos, de que são exemplos Portugal,

Espanha, Paraguai, entre outros, têm insignificante papel

político pelo esquema retardatário que os caracteriza. O

ideal democrático, hodiernamente na prática, coloca os

dois blocos em que o mundo está dividido, devendo-se

notar que em cada uma delas existem dissidências,

embora Drago Ivanovic10

pregue , sem razão, a unidade

do bloco socialista, pois o próprio Titismo se apresenta

9 “Dicionário de Têrmos Políticos”, pg. 135, S.P., s/d. 10 “A Ioguslávia de Tito”, Ed. Saraiva, 1963.

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como forma de realismo político superior à soviética,

para não mencionarmos a aludida discrepância ideológica

sino-russam benéfica à paz, uma vez que a elevação

paulatina do nível de vida soviético, além de faer

emergir, em têrmos, uma classe média, tornou o povo,

agora sem o temor do Ocidente que antes possuia,

amante de seus pequenos confôrtos, considerando que a

solução para o problema de suas divergências com o

mundo capitalista, pode encontrar outro meio que não a

guerra, como quer a China, a qual pouco teria a perder na

hipótese de uma conflagração. Os chineses, ao lado dos

quais se encontram os trotsquistas, acusam de

conservadora a burocracia russa que, interpretando

facciosamente Lenin, admite uma certa coexistência

pacífica com o regime oposto. É curioso observar que a

China comunista desconhece os “sovietes”, substituindo-

os pelas “comunas”, forma de organização territorial de

conduta dinâmica que, no entendimento de alguns

autores, não resolve o problema da participação política

das massas. São palavras de J. Posadas11

: “Daí a

necessidade em que tanto insistimos: a comuna não se

opõe ao soviete: o soviete deve existir na própria

comuna”.

O Nasserismo, por sua vez, é um movimento

tìpicamente nacionalista, defendendo no aspecto externo

um movimento pan-árabe, sob a hegemonia do Egito, e

na órbita interna a extinção do feudalismo, o

unipartidarismo, e a implantação, pela Revolução

Egípcia, de um socialismo estatal.

Embora as referidas concepções de Democracia

não sejam inatacáveis, como adiante veremos, o conflito

ideológico entre a democracia clássica e a progressista,

que abrange não só a União Soviética como as chamadas

11 “A Divergência Sino-Soviética”, pg. 104; Doxa Ed. s/d

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“Democracias Populares” ou “Novas Democracias”, não

deve resolver-se por meios bélicos, pelo menos no que

concerne às relações russo-americanas, eixo sôbre o qual

repousa o mundo contemporâneo.

Em livro de extraordinária visão política,

publicado durante a última conflagração mundial, e que,

no pósguerra, infuenciou mesmo o comportamento dos

Estados Unidos, Walter Lippmann, além de mostrar a

necessidade do govêrno americano reformular a sua

política externa, que se deu em bons resultados no século

passado despreparou a nação para enfrentar as

vicissitudes da presente centuria, abandonando os

conselhos de Jefferson, Madison e Monroe, provou que

“a história das relações russo-americanas é uma

impressionante demonstração de como para a

determinação de uma política é a ideologia pouco

importante, e decisivo o interêsse nacional”.

Com efeito, como diz Clinton Poole, cada uma

das duas nações acima referidas tem sido sempre

“potencial amiga da outra na retaguarda de inimigos

potenciais”. O passado isso corrobora. Quando, na

Guerra Civil, pretendeu-se reconhecer a Confederação,

contra a qual lutava Lincoln, o Czar enviou suas frotas

aos portos da União; quando da Guerra da Criméia,

mativeram os Estados Unidos estrita neutralidade

diplomática, e quando, após 1918, as tropas americanas

evacuaram Vladisvostoc e a zona marítima da Sibéria, os

Estados Unidos exigiram também a retirada das forças

japonêsas. Embora a antipatia política sempre existente

entre as duas potências, uma tinha sempre interêsse na

preservação da outra. Êsse interêsse nacional,

paradoxalmente, ainda hoje perdura, mórmente quando

se sabe que a China surge como uma perigosa terceira

força, almejando pela primeira vez, uma projeção política

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de importância. Os Estados Unidos, por outro lado, que

tinham na China um obstáculo ao imperialismo nipônico,

vêm hoje o antigo Celeste Império ameaçá-los em seus

interêsses e compromissos no Extremo Oriente. Cremos,

pois, viável uma coligação russo-americana para

enfrentar o nôvo perigo. O resto é matéria para

vaticinadores e não para estudiosos da Ciência Política.

Uma das principais consequências teóricas do

segundo pósguerra é a proeminência que se tem

procurado dar ao interêsse da maioria sôbre o da minoria,

e êsse fator pode vir a constituir o denominador comum,

almejado por Bertrand Russel, para colimar a paz

permanente.

A condenação teórica das oligarquias, contudo, só

na concepção cristã da democracia, muito citada nas

pouco seguida, pode adquirir eficácia, pela pregaçaõ da

igualdade de todos perante Deus, da união dos povos e da

condenação do egoismo.

O segundo pósguerra, ligado umbilicalmente ao

primeiro, mostrou, por outro lado, à Igreja a necessidade

de se fazer sentir com mais presença no campo social,

como o comprovam os apostolados esclarecidos de João

XXIII e Paulo VI, que retomaram, atualizando-os, os

roteiros legados por Leão XIII e Pio XI, que ofereciam a

solução da Igreja aos problemas sociais levantados pelo

último século. Embora para Jonathas Serrano12

não exista

um “socialismo cristão”, o que é matéria polêmica, é

certo que não se pode ignorar a interpretação cristã do

fenômeno social, debalde algumas lacunas apontadas

pelo Padre Aloysio Guerra13

.

Aliás, a Igreja não é responsável pelas

interpretações de alguns de seus filhos, que confundem

12 “Filosofia do Direito”, Briguiet, 1942. 13 “O Catolicismo ainda é cristão?”, Fulgor, 1963.

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os leigos. A visão que Bossuet tinha do Direito Divino,

forma autocrática e não democrática de edificaão da

soberania, não era, por exemplo, a concepção cristã, e

sim a de um cristão que falava em nome próprio,

objetivando de embasar a Monarquia Absoluta, mesmo

porque o Direito Divino, como se vê em Santo Thomaz,

atuava de maneira abstrata e não concreta.

Dois sacerdotes, a meu ver, se destacam no

segundo pósguerra como pensadores políticos de reais

merecimentos, debalde já anteriormente trabalhassem

com excelentes frutos: Luigi Sturzo e Primo Mazzolari.

Dom Sturzo foi nomeado, então, senator a vita”,

cargo que, na Itália, só pode ser ocupado por cidadãos de

grande projeção moral, intelectual e política, como reza o

art. 59 da Constituição Italiana: “Il Presidente della

Republica puó nominare senatori a vita cinque cittadini

che hanno illustrate la Patria per altissimi meriti nel

cmapo sociale, scientifico, artistico e letterario”.

Do eminente prelado e filósofo, aliás, é que

brotou o Partido Democrata Cristão, na Itália, que serviu

de modêlo aos partidos congêneres do mundo inteiro.

Encarnando, como poucos, o espírito das encíclicas e das

preocupações sociais da Igreja, Dom Sturzo se opusera à

longa noite fascista, mostrando ainda que apesar dos

êrros de perspectiva de alguns antístites a Igreja, embora

polìticamente neutra, a respeito do totalitarismo, não o

era moralmente, por suas próprias tradições. O

esclarecido nacionalismo do sacerdote italiano, que

postulara pelo regime republicano constitucional,

abandonando a instituição monárquica, amenizou mesmo

a situação da Itália, com repação aos aliados, justamente

sospicazes, revelando-lhes a realidade peninsular. Foi por

isso que Summer Welles, prefaciando um de seus livros

escreveu: “Dom Luiz Sturzo está singularmente

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qualificado a apresentar o ponto de vista da nova Itália ao

povo dêste país”.14

Em conhecido ensaio15

, Dom Sturzo, dissertando

sôbre a autonomia da Democracia Cristã, cujos

postulados mais ardentemente foram revividos no

segundo pósguerra, fixou-lhe os três limites: o orgânico

(o povo, limitado na sua ação de autogoverno, limita, por

sua vez, seus representantes), o ético (a vontade popular

está limitada por leis naturais e morais), e o político (o

respeito do povo pela ordem constitucional).

Como Dom Luigi, Dom Primo Mazzolari, o

combativo pároco de Bozzolo, usava como lema uma

citação de São Lucas (XX, 19): “ma adesso chi há un

mantello lo venda e compari una spada”. Dêle afirmou

Lorenzo Bedeschi que “concebia uma esquerda católica

ideològicamente democrata, não organizada em quadros,

despida de tôda limitação discriminatória, imune a

qualquer tabu totalitário ou partidário, promotora da

coexistência e da competição no terreno das idéias”.

Pouco se conhece no Brasil do vigoroso

pensamento dêsse homem humilde que surdamente

combateu o Fascismo, e as interessadas comodidades que

êle oferecia à Igreja, em estudos pertinentes e agudos,

que fundaram as “Vanguardas Cristãs” e o jornal

“Adesso” e que estavam impregnados do ensinamento de

São Bernardo: “Se crês no Reino de Deus, deves te

transformar num irrequieto”. O Cristianismo, aliás,

mostrara a necessidade de uma revolução espiritual

(Metanoia).

Dom Primo estava convicto dos deveres da Igreja

Militante e êsse é o ponto nodal de sua atividade como

14 “Depois do Fascismo”, pg. 11, Agir, 1947. 15 “Fundamentos de la Democracia”, pg. 32. Buenos Aires, 1957. Ed.

Atlântico.

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escritor. “O cristão, ensinou êle, é obrigado a ser realista:

realismo cristão. Cristo não foi um sonhador; a sia é uma

religião que se encarna”16

. Pio XII que, pràticamente,

inaugurou o diálogo da Igreja com o mundo moderno,

afirmou que a hora da ação já havia soado. Tal a

orientação ainda das encíclicas “Mater et Magistra”,

“Pacem in Terris”, “Ecclesiam Suam” e “Populorum

Progressio”.

Em setembro de 1962, Aldo Moro, penalista de

renome, que ingressara no P.D.C., como Segni, Scelba,

De Gasperi e outros, leu um longo trabalho no Teatro São

Carlos, de Nápoles, por ocasião de um congresso

partidário, onde bem examina a Democracia Cristã, como

aquela que se funda numa “concepción cristana de la vida

y su constante referencia a los valores religiosos,

espirituales y morales que em ella se reafirman”17

.

Eis porque remataria Maritain: “o impulso

democrático surgiu na história, como uma manifestação

temporal da inspiração evangélica”18

.

A Itália, como se sabe, adota um regime

multipartidário, como a França, trazendo-lhe o período

posbélico partidos como o Democrata Cristão, o

Socialismo, o Republicano, o Liberal e outros.

A principal característica da Democracia Cristã,

atualmente, é a “aperture a sinistra” que prevê o contato

com tôdas as esquerdas a fim de colimar certos objetivos

de interêsse coletivo e social, desde que essa aliança não

venha a vulnerar seus princípios. A própria Igreja, aliás,

com essa “abertura” deu o exemplo.

A Democracia Cristã evita a improvisação e o

16 “A Igreja, O Fascismo e a Guerra”, pg. 35, Rio 1966. 17 “La Democracia Cristiana por el Gobierno de país y el desarollo

democrático de la sociedad italiana”. 18 “Cristianismo e Democracia”, pg. 41, Agir, 1949.

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preconceito, fundando-se numa sólida ideologia, que não

é instrumento de classes nem de oligarquias, e que

apresenta soluções enraizadas no Evangelho, para as

questões políticas, sociais e econômicas.

Afirmou-se com relação aos Estados Unidos que

“os acontecimentos do período posbélico trouxeram

novas ideias e novas orientações nas relações entre o

movimento sindical e o govêrno e a conseqüência mais

imediata foi a atividade sistemática e permanente da ação

política das forças de trabalhadores”19

.

É evidente que não pretendemos assinalar as

tendências do pósguerra em cada um dos países, tarefa

para uma equipe, mas sim acentuar as principais

características dêsse período que defluem de uma só

causa: a ascenção das esquerdas, quer as comunistas que

as não comunistas, que têm alguns objetivos comuns,

mas que são buscadas por métodos diferentes.

A extinção do colonialismo é disso um exemplo,

sendo um fenômeno inevitável que aguarda sua

oportunidade. Perigosa, pois, a afirmativa de J.P. Costa

Leite20

que identifica “o destino do Ultramar com o

destino da Nação portuguêsa”.

Assim também o Pan-Africanismo, sôbre o qual

nos deu Philippe Decraene excelente síntese21

. O

nacionalismo africano será, aliás, o perigo que uma

coligação russo-americana terá de enfrentar após

solucionar eventualmente o problema chinês ao qual, no

opinar de Doak Barnett22

, “tanto Moscou quanto

Washington ver-se-ão forçados a consagrar uma atenção

crescente nos anos vindouros”.

19 “Realismo Social”, Cad. 2, pg. 144. 20 “Colonialismo Internacional”, pg. 23, Ática, 1967. 21 “O Pan-Africanismo”, Dif. Eur. Liv. 1962. 22 “A China Comunista em Perspectiva”, pg. 102, Ed. CRD 1962.

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Conseqüência política das mais importantes do

último pósguerra foi o incremento do Comunismo

Internacional facilitado pelas precárias condições socio-

econômicas, sendo certo que, embora juridicamente não

se possa falar num constitucionalismo nôvo, no referido

período convém apontar o subido interêsse pela

problemática do Partido Político e, nas ordenações de

estrutura filosoviética, o decisivo aparecimento do

“Presidium” (comissões permanentes das assembléias),

com importantes funções executivas e legislativas.

Falando mais aos interesses das classes espoliadas que à

sua razão, o seu sucesso nasceu mais dêsse fator do que

de alguns indiscutíveis méritos de sua ideologia. A luta

ideológica que se vai travar é, por conseguinte, entre a

esquerda comunista ou subversiva e a esquerda não

comunista. A ação daquela só pode ser obstada por uma

reeducação dos próprios govêrnos das nações que sofrem

o seu perigo, dando-se aos desamparados a efetiva

assistência que lhes tem sido adiada ou subtraída por

falsos democratas. Não se pode combater o comunismo

sem combatermos antes a desarmonia social, o egoismo e

a hipersuficiência econômica que lhe servem de caldo

criminógeno. O comunismo ameaça não porque vem de

fora, mas porque encontra dentro das nações

desorganizadas ressonância na miséria e na necessidade,

surgindo como uma solução desesperada, por isso não

lógica, e por conseguinte, errada. Como argumentou o

Professor Ritchie Calder, a “Democracia é uma palavra

que ressoa sem sentido em estômagos vazios”, não

devendo ser o paraíso dos financistas inescrupulosos, na

expressão de Sorel.

É preciso, pois, combater o desequilíbrio social

econômico e a arritmia política para estabelecer uma

eficaz defesa contra o Comunismo Internacional,

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devendo-se encarar com reservas o afirmado por Chester

Bowles de que êle “como força ideológica está em

declínio”23

.

A unidade do mundo é uma das aspirações do

mundo atual, que a O.N.U., melhor aparelhada que sua

antecessora, visa favorecer. Desejam-na os comunistas e

os não comunistas. Alguns dêsses últimos, entretando,

querem-na em moldes democráticos e autênticos; com “a

consecução, diria Ann Thomaz, dum Direito

Internacional baseado na moral e na ética”24

; com a

ciência objetivando o conhecimento e não a mera

utilidade e com uma visceral concepção, enfim, dos

direitos humanos.

Os primeiros aspiram a unidade sob o marxismo

totalitário que não é bem internacional, mas universal em

seu último estágio, onde o Direito Internacional deiaria

de existir, pela ausência de nações, e se tornaria um

Direito Público provisòriamente, no caminho do

“comunismo integral” onde não haveria nem Estado, nem

Direito, mas apenas a comunhão comunista na qual

inexistiriam os desníveis sociais e as lutas de classe.

Alguns autores comunistas, entretando, como

Pascinkanis, têm reconsiderado a afirmativa sôbre a

extinção do Direito, admitindo mais que uma

“regulamentação técnica”.

Entre o Direito e o Marxismo, há pois

antagonismos insuperáveis, utilizando o segundo ao

primeiro apenas como uma necessidade provisória e

circunstancial. A finalidade, abstratamente considerada,

dos verdadeiros marxistas, merece admiração, mas não só

23 “Declínio do Comunismo como Forma Ideológica”, pg. 5,

Presença, s/d. 24 “O Comunismo Contra o Direito Internacional”, pg. 107, Saraiva,

1958.

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a consideramos inatingível como anti-científica, e nos

opomos a seus processos de consecução por vulnerarem

as liberdades individuais.

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UTOPIA E IDEAL HISTÓRICO

Maritain distinguiu entre um Ideal Histórico

Concreto e uma Utopia. A segunda é apenas um “ser de

razão” construído imaginàriamente, “isolado de tôda

existência datada, e de todo clima histórico particular,

exprimindo um máximo absoluto de perfeição social e

política e da arquitetura do qual a minúcia imaginária é

levada tão longe quão possível, por isto que se trata de

um môdelo fictício proposto ao espírito no lugar da

realidade”25

.

O primeiro, todavia, “não é um ser de razão,

porém uma essência ideal realizável”. Entrosado na

experiência humana a Democracia Cristã tem por escopo,

por conseguinte, um Ideal Histórico Concreto e não uma

Utopia, mas para alcançá-lo tem que desenvolver uma

ação política de longo alcance, fundada na realidade.

Eis os motivos pelos quais nós brasileiros que

vivemos os angustiosos capítulos de nossa hipo-

suficiência econômica, precisamos olhar com grande

coragem para nossas verdades históricas, sem quaisquer

dissimulações, pugnando por uma compreensão realista e

autêntica de nossos fenômenos sociais, pois só uma visão

clara do Brasil de hoje dará força e estímulo para a

construção do de amanhã.

A ordem seguida na presente exposição conduz

necessàriamente à reformulação do conceito de

Democracia, umbilicalmente ligado, entre outros, aos

problemas da Representação e dos Partidos Políticos.

25 “Humanismo Integral”, pg. 124, Cia. Ed. Nacional, 1945.

Page 20: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

A DEMOCRACIA ANTIGA

Torna-se necessário uma revisão do conceito de

Democracia a fim de que possa êle embasar-se em suas

autênticas e lídimas fontes, e não sirva de rótulo para os

extremismos ou regimes incaracterísticos. “Democracia”

é hoje uma palavra esvaziada de seu humanismo e de seu

significado, despojada de sua categoria de vernáculismo

político para se constituir no “argot” ininteligível das

plataformas eleitorais. E porque êste ensaio não é fruto

apenas de um modesto esfôrço intelectual, mas sobretudo

de um ideal, é mister que façamos neste capítulo, mais

uma vez, a nossa profissão de fé democrática, acretitando

que só o respeito aos direitos humanos, em consonância

com os magnos interêsses do Estado poderão estruturar a

doutrina democrática. Nem o individualismo abusivo e

egoista, nem o coletivismo indecomponível do Estado-

Moloch, mas o equilíbrio entre o Poder e a dignidade

humana, o comando e a liberdade.

Se pelo milagre, admiràvelmente narrado por

Bernardes, um grego ao cultuar as hermas de seus deuses,

não sentisse a passagem dos séculos e, retornando ao

Odeon, percebesse que estava em outra época, mais

confundido ficaria com o significado atribuído à

Democracia que com a mudança dos costumes e dos

comportamentos. “A constituição que nos rege,

proclamou Péricles na importal 'Oração aos mortos de

Atenas', nada tem que invejar às de outros povos; não as

imita; antes, serve-lhes de modêlo; ela recebeu a

denominação de democracia porque seu fim é a utilidade

da maioria e não da minoria”26

.

26 in Antonio Faustino Porto Sobrinho, “Antologia da Eloqüência

Universal”, pg. 17, Rio, 1961.

Page 21: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

O fato de o indivíduo viver em função do Estado

não lhe impedia, contudo, de gozar das prerrogativas da

Isonomia, da Isotimia e da Isagoria. Em completa

monografia27

, Paulino Jacques demonstra que a igualdade

perante a lei traduz uma igualdade de condições e

circunstâncias, que Pontes de Miranda estima ser formal

“porque não igualiza materialmente”, sendo certo que a

Isotimia implica numa igualdade de acesso aos cargos

públicos, e a Isagoria numa igualdade de participação na

vida pública, inclusive a liberdade de crítica.

Interessantes, aliás, as observações que, a

respeito, faz Machado Paupério28

. Sabemos, entretanto,

que entre os aqueus a igualdade estava condicionada a

uma determinada estrutura socio-político-econômica que,

a rigor, desconhecia os direitos individuais, conquista dos

tempos modernos, como assinalou Bluntschli, tendo

Jellinek colocado suas origens na Alemanha luterana

como Boutmy as situou na Inglaterra e Janet nos Estados

Unidos. Paulino Jacques estima, entretanto, que o

Princípio da Isonomia se edificou devidamente à luz de

uma colaboração ideológica franco-americano-britânica.

Kant29

considerava que certos problemas, como a

paz, era antes moral do que político ou jurídico. É certo,

porém, que a consagração e a cogência de um princípio

ético só advém com a sua normatividade, embora aceito

pelos espíritos. O Cristianismo, é verdade, defendera a

igualdade dos homens perante Deus, mas só depois de

um complexo processo histórico e uma lenta elaboração

doutrinária, de que muitos clérigos participaram, é que o

liberalismo incorporou o princípio na órbita jurídica.

27 “Da Igualdade Perante a Lei”, Forense, 1ª ed. 1947, ed. 1957. 28 “Exigências da Democracia”, pg. 37, Forense, 1964. 29 “A Paz Perpétua”, Rio 1939.

Page 22: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Razão tinha Aristóteles em observar que se nas coisas

naturais a potência precede o ato, no campo espiritual dá-

se o contrário, pois “as virtudes adquirimo-las sendo

antes ativos”30

. Essa vivência pregava-a o próprio Cristo.

Só após a Idade Média é que na área política se

pôde pretendeer “existir” os direitos individuais,

nascendo a necessidade de seu reconhecimento pela lei.

Lévy-Bruhl, referindo-se à etimologia da palavra

direito, comprova que ela “provém de uma metáfora onde

a figura geométrica adquiriu sentido moral e em seguida

jurídico”31

.

Não é ocasião de fazer um estudo aprofundado do

Estado grego, representado, em substância, pelas

instituições atenienses, mas é mister realçar que a

existência da escravidão, o pouco aprêço aos

estrangeiros, a humilhante posição da mulher e a situação

peculiar dos direitos políticos davam ao sentimento

democrático uma tonalidade completamente diversa

daquela trazida pelo advento do Cristianismo. “O Estado

dos gregos, sublinha Queiroz Lima32

, caracteriza-se pela

sua onipotência; absorve integralmente o indivíduo”.

É oportuno observar que, para Aristóteles, era a

Democracia uma forma viciosa de govêrno popular,

assim como a tirania o era da monarquia e a oligarquia da

aristocracia. E complementava o Filósofo: “Porque la

tirania es señorio de uno encaminado a la utilidad del que

es señor, y la oligarquia es señorio enderezado al

provecho de los ricos y poderosos, y la democracia es

señorio enderezado al provecho de los más necesitados, y

30 “A Ética”, pg. 63, Ed. de Ouro, 1965. 31 “Sociologia do Direito”, pg. 7, Dif. Eur. Livr., 1964. 32 “Teoría do Estado”, pg. 62, 8ª ed., Record, 1957.

Page 23: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

gente popular, pero ninguna de ellas se dirige a lo que

conviene a todos comúnmente”33

.

Alguns autores, todavia, interpretam o

pensamento aristotélico como se a demagogia é que fosse

a forma impura da democracia, o que, ao que penso, não

encontra amparo nos textos. Embora se forcejeno sentido

de condicionar a obra de publicista do estagirita, à

política heleno-macedônica, é certo que ela não foi ela

elaborada para justificar Felipe e Alexandre, estimulados

por Isócrates, como se lê em seus “Discursos Históricos e

Políticos”, e sim para uso geral dos reis e dos povos.

“De todos los sectores del espíritu sobre los que

há influido com intensidad inigualada durante dos

milenios la filosofia aristotélica, ensina Kelsen34

,

ninguno há estado tan profundamente penetrado hasta la

más reciente actualidad por las opiniones del filósofo de

Estagira como la teoría ético-política”.

Em verdade é surpreendente como Aristóteles se

faz presente na obra de todos os mais significativos

pensadores políticos.

Os antigos preocupavam-se, deveras, com a

melhor forma de govêrno. São conhecidas de todos a

discussão dos chefes persas, após a derrota de Smerdis,

relatada por Heródoto, as observações de Políbio sôbre o

ecletismo político romano e as ideias de Cícero: “Por

minha parte, creio que a melhor forma política é uma

quarta constituição formada da mescla e da reunião das

três primeiras”35

.

33 “La Política”, pg. 103, Ed. Perrot, 1958. 34 “La Idea del Derecho Natural y Otros Ensayos”, pg. 147, Ed.

Losada, 1946. 35 “Da República”, pg. 48, Athena Ed., s/d.

Page 24: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Observe-se que o conceito antigo da Democracia

não satisfazia espíritos pré-cristãos, preocupados com a

idéia de justiça. De um dêles, asseverou Léon Robin: “O

Estado justo é aquêle que realizar a maior unidade

possível, e, por outro lado, êsse resultado só pode ser

obtido se o govêrno estiver nas mãos de verdadeiros

filósofos”36

.

Em magistral discurso pronunciado no Athénée Royal de

Paris em 181937

, distinguiu Benjamin Constant que o

mundo antigo (especialmente o helênico) se caracterizava

pela “liberté collective, l'assujettissement complet de

l'individu à l'autorité de l'ensemble”.

Coulanges retomou posteriormente a tese para

acrescentar que a natureza cívico-religiosa da “Polis” era

a razão de suas instituições e da onipotência do Poder do

Estado, desconhecedor das liberdades individuais, e que

era preciso estudá-la na devida perspectiva histórica.

Atentando para a íntima relação entre as idéias e o “statu

quo” social, afirmou o escritor: “Atentai para as

instituições dos antigos sem pensar nas suas crenças e

acha-las-eis confusas, extravagantes, inexplicáveis”38

.

As relativas liberdades então gozadas eram

privilégios dos cidadãos, como parte de um todo, e não

das pessoas, num conceito individualista. Hauriou e

Glotz entretanto pensam que as restrições apontadas ao

mundo clássico são injustas e que havia equilíbrio entre

os direitos do homem e o poder público.

O bom entendimento está, entrementes, com

Reale: “Havia, pois, um tipo especial de liberdade, que só

36 “Platão”, pg. 31, 2ª ed., Ed. Inquérito, s/d. 37 “De la Liberté des Anciens Comparée a Celle des Modernes”. 38 “A Cidade Antiga”, 7ª ed., 1º vol., pg. 7 Lisboa, 1950.

Page 25: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

brilhava em sua plenitude quando o cidadão afirmava a

sua vontade dentro dos limites da 'polis', decidindo no

tumulto das assembléias”39

.

De qualquer forma, a experiência democrática

surge na Grécia, da qual Roma, filosòficamente, foi mera

legatária, e que nos deixou, como grande lição, na

fórmula do eminente professor paulista, em outro livro40

“a liberdade de pensar como pluralidade de pensar. Daí a

liberdade para os gregos ter sido acima de tudo igual

direito de falar, isegoria, direito de participar igualmente

da direção da coisa pública”.

39 “Horizontes do Direito e da História”, pg. 44, Saraiva, 1956. 40 “Pluralismo e Liberdade, pg. 288, Saraiva, 1963.

Page 26: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

HERÁCLITO E A POLÍTICA

As referências que estamos fazendo ao mundo

helênico são necessárias às nossas considerações. Antes

de nelas continuarmos, uma ligeira observação sôbre as

idéias políticas de Heráclito, surgida de nossas pesquisas,

se impõe paralelamente, pelo interêsse que possa

despertar.

Pensador de méritos, Alcântara Nogueira nutriu-

se na cultura grega, na obra de Giordano Bruno e no

panteismo de Spinoza, dando a seus estudos um

iniludível contingente de idéias próprias. O universo para

êle é fonte do conhecimento, uma forma de existência

“superior a anterior a tudo que seja percepção”41

, um

resultado das convergências do espaço, do tempo, da

matéria e da energia. O seu pensamento é finalista e

densamente elaborado.

Em bem urdido livro42

, Nogueira, que apresenta

pontos de contato com Eudoro de Souza e Vicente

Ferreira da Silva, uma intensa e ardente vocação

filosófica, cujo prematuro desaparecimento todos

lastimamos, expende conceitos sôbre Heráclito

(fascinante pensador que, no sentir de Kierkegaard43

,

usava as idéias como armadura, motivo pelo qual

depositou seus escritos no Templo de Diana), que vêm de

encontro às preocupações minhas.

Cosmólogo, estudioso das leis físicas, não

enunciador de princípios lógicos, como desriva da leitura

de Lassalle, influenciado por Hegel44

, Heráclito, por

41 “O Universo”, pg. 10, Pongetti, 1950. 42 “Idéias Vivas e Idéias Mortas”, Org. Simões. 43 “Temor e Tremor”, pg. 115. 44 apud Djacir Meneses “Temas de Política e Filosofia” pg. 136,

Page 27: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

vêzes, talvez deliberadamente obscuro (“skoteinós”),

orientou suas especulações no sentido de uma reação a

Parmenides e à Escola de Elea. Seu culto à razão

influenciou, entre muitos outros, Hegel, Nietzsche e

Spengler que muito sorveram na filosofia grega.

Defendeu ainda o princípio do movimento (“panta rhei”)

e do fogo, êsse último visando, como os antigos jônios,

estabelecer um elemento único, “como origem comum de

todos os sêres”, no conceito de Leonel Franca45

, e atingiu

um hilozoismo panteista.

Os estudos sociais, em sua época, estavam ligados

aos conhecimentos físicos e sob cautelas especiais devem

aí ser pesquisadas a Ciência Política e Teoria do Estado,

disciplinas que, a bem dizer, se originaram das atividades

dos sofistas, ampliadores, no julgar de Jaeger, dos

domínios da ciência jônica, essencialmente natural,

objetivando abranger também aspectos sociais e éticos.

Nogueira, com tôda a procedência, divide a

filosofia do efesiano em cosmológica, metafísica e

política, chegando-se à concepção de “uma sociedade

que, obrigatòriamente, possui dominadores e

dominados”. Daí a Duverger, a Duguit, a Gumplowicz e

a Marx, é um passo, e se constata que interpretado de

certa forma, se torna o filósofo grego fonte remota de

extremismo e das teorias da origem violenta do Estado,

mesmo porque obtemperou Mendolfo, “por cierto que

Heráclito con su identidad y conversión mutua de los

opuestos influyó poderosamente sobre Hegel y su

dialéctica, y a pesar de su própria orientación política

reacionaria estimuló, a igual con Hegel con su dialéctica,

a pensadores revolucionarios”.

DASP, 1962.

45 “Noções de História da Filosofia”pg. 34, 16ª ed., AGIR, 1960.

Page 28: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Mas o que deve ser ressaltado também em Heráclito é

seu respeito pela norma legal, como ordenamento

fundamental. “La ley era para Heráclito, está em Werner

Jaeger46

, la expresión más alta del imperio de la razón em

la vida humana, como se deduce de outro de sus

aforismos: 'El pueblo lute por su ley como por sus

muros'”. Santo Thomas e Ihering não seriam estranhos a

essas considerações. Também à idéia de justiça que, no

dizer de Camus, “imaginava estabelecer fronteiras até

para o mundo físico”, era sensível o raciocínio

heraclitiano que registrou: “O sol não ultrapassará seus

limites, pois de outro modo as Erínias que guardam a

Justiça o saberão descobrir”.

Desdobrada do naturalismo, a Ciência Política,

como se viu, ligou-se por outro lado à Moral. Esta

simbiose perdurou por séculos até Maquiavel proclamar a

autonomia do político. Sob aquela sintonia, hoje

defendida por um Sampay, escreveram os antigos,

inclusive Heráclito, sem dúvida o mais destacado

representante da Escola Jônica e que Lahr considera ter

influido no próprio Bergson47

.

A literatura grega refletia a preocupação, acima

apontada, e as obras dos poetas e dramaturgos portavam

significativo conteúdo político. Pode-se mesmo buscar

nela as raízes do “engagement” ou do “compromisso”,

como fruto das tensões básicas da vida social, se bem

afirma Lukacs: “o que é verdadeiramente social na

literatura é a forma”. É na ficção que a Ideologia

encontra, constantemente, seu veículo ideal, mas como já

se observou, os líderes gregos “jamais usaram a arte

como propaganda e nem forçaram o artista a glorificar

46 “Alabanza de la Ley”, pg. 43, Madrid, 1953. 47 “História da Filosofia”, pg. 12, Pôrto, 1933.

Page 29: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

qualquer idéia política”. É a opinião encampada por

Adonias Filho48

. Todavia, razão tem Miranda Neto: “Os

detentores do poder, desde os mais remotos tempos,

amaram a servir-se da arte para fins políticos”49

. Não só o

materialismo dialético, mas a direita pretende remontar a

Heráclito, por ter escrito; “tôdas as coisas saem do uno e

o uno sai de tôdas as coisas”. Na verdade, porém, o uno

se identifica com Deus, a quem o pensador deu caráter

mais real que ao múltiplo. Estamos com Joaquim Braga

quando anota que “foi com metafísica que deu origem à

sua concepção dialética da existência”. Êsse o aspecto

também da sua concepção da eternidade da matéria,

como ser ou devir.

48 “Bloqueio Cultural”. 49 “A Arte e o Poder”, in J.C. de 19-3-67.

Page 30: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

O ADVENTO DO CRISTIANISMO

Unamuno50

, em obra famosa, demonstrou que o

Cristianismo nos trouxe a luta e não a paz. A luta

espiritual, é de se complementar, pelos valores eternos. A

rebeldia de Cristo foi eminentemente subjetiva, pela

dignificação do homem e da personalidade, pela

espiritualização das velhas escrituras e pela igualdade

que pregou de todos perante Deus. Não o poderiam

entender o materialismo hebráico e tampouco as águias

romanas, temerosas de um surto nacionalista, qual o

desencadeado por Macabeu, e almejado pelo grupo

radical dos Zelotas, na conturbada província da Palestina,

ansiosa pela libertação e esquecidas de o Homem ter

separado o reino de Deus do reino de Cesar e ter dito que

o seu reino não era dêste mundo, embora sentisse

extremado amor pela pátria e fôsse o exemplo do “homo

politicus”. A reforma social do Cristianismo foi uma

conseqüência da reforma ética que empreendeu

desassombradamente contra todos os obstáculos e todos

os preconceitos, encarnando um másculo conformismo.

Não havia em Cristo um inimigo do Estado, mas um

tenaz adversário da hipocrisia das oligarquias, como

Buda combatera a casta sacerdotal, incapazes de se

aperceberem da magnitude da revolução espiritual que se

deflagrava e de reconhecerem a soberania individual. O

equilíbrio, pois, entre o Poder e o Indivíduo estava nas

miras do Reformador que traçava novos padrões de

conduta e de comportamentos, revelando as verdades

substanciais acima dos textos empedernidos.

“Então, narra Mateus51

, chegaram aos pés de Jesus uns

50 15, 2 e 3. 51 15, 2 1 3.

Page 31: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

escribas e fariseus de Jerusalem, dizendo: Porque

transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos?

Pois não lavam as mãos quando comem pão. Êle, porém,

respondendo, disse-lhes: Porque transgredis vós também

o mandamento de Deus pela vossa tradição?”

Por mais alegóricas que fossem, as palavras de

Cristo eram de liderança e energia: “Agora, que aquêle

que tem um saco lhe pegue, e pegue também na bolsa; e

que aquêle que nada tem venda a túnica e compre um

gládio”.

Sabendo das oposições que sofreria a sia doutrina,

advertiu Cristo, segundo São Mateus52

: “Não cuidais que

vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a

espada”.

A autenticidade pregada pelo cristianismo teria

que desafiar a moral existente, a rotina estéril e os falsos

valores em pról de uma nova dimensão axiológica. Não

que a doutrina viesse combater a lei mosaica, mas sim

depurá-la, (Não penseis que vim abolir a Lei ou os

Profetas: não os vim abolir, mas levá-los à perfeição”)

por ter ela sido elaborada em virtude da “dureza” dos

corações, conforme o evangelista. Por isso incidia a

censura de Cristo, precìpuamente, sôbre os sacerdotes, os

anciãos e os escribas, jurisconsultos êsses últimos

incapazes de uma interpretação vertical da lei judaica. O

apostolado da reforma ética impunha, em decorrência,

uma transformação radical na consciência jurídica, e por

isso Cristo conhecia profundamente os textos.

E foram êsses homens representativos de uma

socciedade, “sepulcros caiados por fora”, que se

escandalizando com a ceia do Pastor com publicanos e

52 10, 34.

Page 32: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

pedadores (“Eu não vim chamar os justos, mas sim os

pecadores, ao arrependimento”), a quebra do jejum e o

trabalho no sábado (“O sábado foi feito por causa do

homem, e não o homem por causa do sábado”), com uma

reformulação do conceito de família (“Porque qualquer

que fizer a vontade de Deus êsse é meu irmão, e minha

irmã e minha mãe”), e outras atitudes, que aguardaram o

momento propício do ódio e da inveja. “E os escribas e

príncipes dos sacerdotes, historia São Marcos53

, tendo

ouvido isto, buscavam ocasião para o matar; pois êles o

temim, porque tôda a multidão estava admirada acerca de

sua doutrina”.

O Cristianismo já se havia tornado então um

movimento social, com repercussões políticas, em

virtude do momento histórico, e essa trajetória era

impossível evitar, malgrado as advertências do próprio

Cristo com pertinência à sua missão. Aguardavam os

judeus o Messias-Rei que iria libertá-los com espadas

chamejantes, e surgir em seu meio Alguém que lhes

falava numa linguagem ardente e misteriosa (“E sem

parábolas nunca lhes falava; porém tudo declarava em

particular aos seus discípulos”, porque “A vós é dado

saber do reino de Deus, mas aos que estão por fora tôdas

estas coisas se dizem por parábolas”), sôbre uma outra

espécie de liberdade, oriunda do amor a Deus, ao

próximo, da fé, da caridade e da consciência. Daí a

beleza do conceito de Leoncio Correia54

: “O Cristianismo

começou vencendo pela poesia”.

Mas êsse deslumbramento pelo Pregador que

tinham as multidões arrefeceu, trabalhadas essas pelos

poderosos inimigos da Verdade, que lhe imputavam

53 11, 18. 54 “Panóplias”, pg. 41, 1955.

Page 33: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

blasfêmias, malgrado a disparidade dos depoimentos. O

nacionalismo judáico transformava o processo de Cristo

num caso político. Acreditava-se firmemente, diz

Stratmann55

, que “a missão religiosa do Messias estava

indissolùvelmente ligada à sua missão política”. Não foi

outra a razão pela qual preferiu o povo a Barrabás prêso

em virtude de uma sedição onde matara um homem por

ocasião das festividades da Páscoa. Num país amotinado,

onde sufocara duas importantes revoltas, temeu Pilatos,

por sua vez, soltar o Homem a quem chamavam de “Rei

dos Judeus”, mas temeu por Roma, embora

imotivadamente. E assim a sua atitude estava

condicionada a uma “razão de estado”, mais do que a

uma pusilanimidade.

Embora recomendando que seus milagres não

fossem revelados, Cristo viu-se cercado por uma

poopularidade interessada em favores de tôda a sorte.

Inimigos, admiradores e discípulos, espicaçados pelo

nacionalismo, provocavam-No, vêzes inúmeras, para que

revelasse os Seus poderes. Após a segunda multiplicação

dos pães, os fariseus pediram-lhe “um sinal do céu” (“Em

verdade vos digo que a esta geração não se dará sinal”), e

os Seus seguidores imediatos, no barco, não tinham mais

que um pão. Disse-lhes Cristo: “Olhae, guardae-vos do

fermento dos fariseus e do fermento de Herodes”.

Alguns exegetas, como Pickl, chegam a admitir

que Iscariotes tivesse objetivado, com a traição, que o

Intérprete de Deus manifestasse o seu poderio e se

decidisse pela batalha de libertação nacional. Guardini vê

em Judas um patriota desiludido, distinguindo em Cristo

um perigo para Israel. O fato de constituirem o povo

escolhido por Deus fazia com que os judeus

55 “Cristo e o Estado”, pg. 121, Lisboa, 1956.

Page 34: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

considerassem a sua Lei superior à dos outros povos.

Essa Lei fundamentava mesmo o orgulho nacional,

embora polìticamente tenha sido insignificante o papel do

Estado Hebreu na Antiguidade.

A ocupação romana, como era habitual, respeitava

a religião dos vencidos, enquanto não fosse prejudicial

aos interêsses da metrópole nem desconhecesse ao menos

formalmente, a supremacia de seus deuses. Por isso

evitava susceptibilizar os filhos de Israel com a exibição

da imagem dos imperadores, gozando a Palestina uma

relativa liberdade, semi-liberdade, aliás, que alguns

judeus temiam perder, caso explorasse Cristo, num

sentido político, a fé nêle depositada, arregimentando o

povo para a revolução libertadora que, suocada, traria a

escravidão total.

Cristo viveu e morreu sob o signo político. Desde

criança foi considerado “um perigo nacional”, como

relata Stratmann (op. Cit., pg. 76), tendo que fugir de

Herodes, e em sua vida pública foi sempre visto com

desconfiança pelas oligarquias que o ameaçavam,

temerosas de seu prestígio, e receiosas de cederem o

poder, como anunciavam as profecias, debalde pregasse o

Homem as excelências de um mundo subjetivo. O

sentimento de fraternidade universal, evangelizado por

Cristo, não poderia ser entendido por um nacionalismo

estreito, apaixonadamente extraído de uma religião

absorvente que fornecia os princípios, “pontos de

orientação”, diria Sertillanges, para a conduta política e

jurídica.

A mensagem cristã é, no aspecto social, sobretudo

um convite à alteridade e à intersubjetividade, uma

valorização da pessôa, através a consciência. Até então

era o homem a parte de um todo coletivo, simples

Page 35: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

conseqüência do Estado. Passava agora, pela sua

dignidade, a merecer o respeito do Poder Político, um e

outro iguais perante a lei divina, dependentes um do

outro para a manutenção da ordem social. Por isso era

pregado: “Bem-aventurados os que têm fome e sêde de

justiça, porque serão saciados”.*

Ao mesmo tempo, por conseguinte, que se

elevava o homem, tornava-se o responsável, mais do que

nunca, pelos seus atos, em virtude do arbítrio e da

escolha entre o bem e o mal.

O advento do Cristianismo é, com tôda a

evidência, o ponto de partida dos direitos humanos e é

nêle que se há de buscar as fontes do real sentimento

democrático.

Page 36: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LIBERAL

Nós que não concebemos outra solução para os

problemas do Estado e do Direito senão a oferecida pela

constelação histórica, temos recorrido contìnuamente a

ela no presente trabalho, sem pretendermos, entretanto,

fazer trabalho de historiador, pela desnecessidade, nêsse

aspecto, de uma exposição sistemática, uma vez que

apenas nos ocupamos de alguns pontos culminantes da

orografia do pensamento político.

O ideal democrático, por isso, até a modernidade

foi mantido doutrinàriamente pela Igreja e por aquêles

ligados à sua filosofia, ou que embora formados dentro

dela chegaram, muita vez por idealismo, até à heresia.

Absorvida, em certa fase, pelo Império, que se

tornara senhor das investiduras em decorrência da

consagração, o clero se deixara levar pela simonia e o

próprio Papa se tornara um capelão dos reis. Daí uma

certa volúpia posterior dos Pontífices pelo temporal. Foi

contra essa situação e não contra a Igreja, na pureza de

sua substância, defenida por eminentes Padres, que não

deixavam de invectivar os males da organização

eclesiástica, insuflada pelo laicismo, que se levantou, por

exemplo, Dante, precursor do patriotismo de Maquiavel,

e que como o florentino almejava a liberdade da Itália e

sua unificação. Confessava Guicciardini que, antes da

morte, três coisas queria ver: uma república organizada, a

libertação nacional e a extinção da tirania dos clérigos. A

“Monarquia” é, por tôdas as razões, uma obra

democrática, mostrando que existiam os reis para o povo

e não o povo para os reis, como mais tarde reafirmou

Nicolo Oresme, autor de “Songe du Verger”. Observou

Page 37: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Carlo Prina56

que o sumo poeta “adorava a pátria,

desejando-a livre da escravidão e da violência dos

poderosos”.* Também Guilherme de Ockan se colocava

ao lado dos príncipes contra o Papa. A elaboração do

pensamento democrático, cujo marco, para fins didáticos,

Inácio da Silva Telles57

coloca em Dante*, prossegue

densamente tecido por Marsílio de Pádua, autor do

“Defensor Pacis”, juntamente com Jean de Jaudun e

reitor da Universidade de Paris, que defendendo a tese de

ter o povo a sede do poder político, tornou-se, para

alguns, precursor do contratualismo. Por outro lado,

firmaram êsses doutores averroistas o princípio da

soberania do Estado contra a Igreja. Outra não foi a

orientação de Coluccio Salutati, em o “Tirano”. Poucos

estudaram êsse autor, como Cirell Czerna58

, cujas

observações são válidas. Na sua obra polêmica “De

Nobilitate Legum et Medicinae”, contudo, coloca-se

Salutati, como um verdadeiro jusfilósofo, afirmando:

“Legum autem finis est directio actuum humanorum.

Obiectum autem est bonum, nec solummodo bonum

simpliciter, sed quod longe divinius est, communo

bonum”.

Sente-se claramente a tradição tomista em grande

parte dos escritores que, na época, trataram do tema.

O hugenote Hotman, por sua vez, em “Franco

Galia”, defendia a monarquia eletiva jungida aos Estados

Gerais e os monarcômanos, entre os quais inúmeros

clérigos, almejavam a extinção dos reis em benefício da

56 “O Sermão da Montanha”, pg. 87, José Olympio, 1956. 57 “Dante Político e Matemático”, in “Democracia Cristã”, de

setembro de 1963. 58 “Conceito de Democracia no Mundo Contemporâneo”, pg. 24, São

Paulo, 1964.

Page 38: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

vontade da nação. A tese contratualista prosseguia com o

calvinista Marie Solomonis e com Althusius, autor da

“Politica Methodico Digesta”, cujo pensamento influiu

em Wolff e em Rousseau. Paralelamente, dava-se um

nôvo incremento do Direito Natural.

Na Inglaterra, Hooker e Milton, cuja admirável

“Arepagítica” é um brado imperecível pela liberdade de

imprensa, colocam-se nas raízes do pensamento de

Locke, propugnador da propriedade privada, dos direitos

individuais, do sufrágio universal e da tolerância. Bacon

e Filmer o antecedem também em sérias preocupações

políticas e a oposição a Hobbes mostra que a sua doutrina

penetrara bem fundo na construção loquena.

“Certas teorias filosóficas que parecem à primeira

vista mui semelhantes, pondera Mons. Grabman59

, se

revelam pelo contrário bastante diferentes, quando se

considera a diversidade do meio histórico de que se

originaram.”

É o que se dá com diversas correntes de

naturalismo contratual, sendo certo que anteriormente já

havíamos aflorado a questão. Hadfield considera o

“Leviatã” a mais importante obra de filosofia política

produzida em inglês e, sem dúvida, constitui ela também

uma das mais profundas exposições sôbre o Estado e o

homem. Nutrido em Tucidides e de como viviam os

gregos antigos, em estado permanente de guerra, edificou

Hobbes a sua tese, fundando-se no estudo do próprio

homem. Agudamente comentou Gooch60

: “While James

proclaimed the divinity of lawful kings and Bacon

preached the ideals of the Tudor monarchy, Hobbes, the

59 “Introdução à Suma Teológica”, pg. 122, Ed. Vozes, 1959. 60 “Political Thought in England from Bacon to Halifax”, pg. 23,

Oxford Press, 1946.

Page 39: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

author of the first comprehensive political system

produced in England, derived his theory of the State

neither from theology nor from tradition, bot from the

study of human nature”. Hobbes mantinha, pois, o

“isolamento” do político, iniciado por Maquiavel, e mais

tarde continuando por Halifaz, que mantinha um lúcido

espírito empírico, enquanto seus contemporâneos

lastravam seus escritos com as Escrituras, sem maior

exame. É exato que Hobbes produziu o “Leviatã” para

justificar o absolutismo, representado por Carlos I, mas a

sua exposição transcende o próprio momento histórico,

para se tornar tema permanente de controvérsias. Aliás,

obedecendo, muitas vêzes, injunções, os escritores e os

artistas procuram, malgrado isso, dar a seus trabalhos um

“tonus” intemporal. Partindo da premissa de que o

homem era mau e egoísta, envolvendo-se em contínuas

disputas com seus semelhantes (“homo hominis lupus”) e

que só poderia viver em sociedade se conferisse poderes

a uma instituição que garantisse a vida em comum,

Hobbes considera aquela como portadora de

prerrogativas absolutas. O totalitarismo, a

indivisibilidade do Poder, como em Rousseau, e a

estatalidade do Direito encontram nêle um aotêntico

precursor. A maldade original do homem não foi aceita

por Locke, nem por Rousseau, defensor do “bon

sauvage” corrompido pela sociedade. Além de partirem

de diferentes critérios éticos, o contratualismo de Hobbes

conduzia ao absolutismo e o de Locke ao liberalismo,

como já se notou.

Influenciado por Descartes, cujas idéias, como as

de Newton, não foram ainda devidamente aferidas, com

pertinência à ressonância que tiveram no mundo político,

Locke colocou o “sense” para refletir em sua obra as

conquistas trazidas pela “Glorious Revolution” de 1688

Page 40: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

que pôs término ao absolutismo de Jaime II,

aproveitando-se, por essa razão, para refutar Filmer para

quem a Monarquia era de Direito Divino. “The State is

the extension of the family, the King being the father, the

people his children”, observa Gooch (op. cit., pg. 125).

O conceito moderno de liberalismo deve ser

estudado, ao que entendemos, da obra de Locke, mas

antes algumas considerações serão feitas.

Numa rápida resenha que seja do pensamento

liberal, não podem ser esquecidas as figuras de Algernon

Sidney e Coke que, com Locke, impregnaram

profundamente as instituições americanas. O amor de

Sidney pela liberdade e pela justiça levaram-no à morte e

Coke, advogado magistral, juiz eminente e parlamentar

notável, assinalou-se pela defesa dos direitos individuais.

Enquanto Bacon, filósofo insigne, mas político de caráter

duvidoso, sustentava os princípios da Monarquia

Absoluta, interessadamente, para ser agradável aos

Tudor, Coke demonstrava que embora não sujeito a

qualquer homem, estava o rei sob Deus e a lei, mantendo

altiva a figura dos tribunais perante a Coroa. O rei se

informava assim de que não bastava uma razão natural

para bem julgar, mas uma razão artificial fundada no

conhecimento e na experiência das leis. Já passara,

felizmente, o tempo em que Henrique II julgava as

causas pessoalmente. Por tudo isso, o “Segundo

Instituto”, de Coke, comentando a Magna Carta, tornou-

se uma obra de grande repercussão histórica. Disse bem

Roscoe Pound, do grande jurista: “Afirmava a

independência judicial e se opunha a qualquer tentativa

do rei no sentido de ampliar-lhe as prerrogativas.

Conforme agora diremos mais completamente, mostrava

claramente que o rei não tinha qualquer poder judicial

Page 41: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

pessoal”61

. A posição de Hume deve ser também fixada.

Defendendo a existência de dois direitos: ao poder e à

propriedade, o liberalismo humeano preocupava-se com a

origem do Estado, buscando uma solução racional e

embora não antagonizasse a idéia contratualista, achava-a

pouco científica. São suas expressões62

: “A minha

intenção aqui não é negar que o consentimento do povo

seja um fundamento justo para o govêrno. Onde houver

lugar para êle, será com certeza o melhor e o mais

sagrado de todos. Afirmo sòmente que mui raramente

teve lugar em qualquer grau, e quase nunca em todo a sua

extensão, e, portanto, tem-se de admitir algum outro

fundamento para o govêrno”.

O contratualismo de Rousseau foi influenciado

por Locke, mas dêle se distingue em vários e importantes

aspectos. Em primeiro lugar, a obra do pensador francês

não possuía serenidade, escrita com paixão

verdadeiramente demagógica, não transmitindo ao leitor

aquela segurança doutrinária do escritor inglês. Em

Rousseau havia sublimidade, em Locke beleza. “Lo

sublime, ensina Kant63

, conmueve, lo bello encanta.” *

Admitia o inglês a propriedade privada e que na

constituição da sociedade alienava, o homem, uma parte

de seus direitos. Negava essas afirmativas o francês, cujo

pensamento, por ocasiões, equívoco, tanto nutriu o mais

ardente liberalismo, como o mais sombrio despotismo.

Ao contrário, Locke seguia uma ordem racional de

congeminações, sem possibilidade de deturpação em suas

coordenadas básicas, e principalmente de contradições

61 “Desenvolvimento das Garantias Constitucionais de Liberdade”,

pg. 35, Ibrasa, 1965. 62 “Ensaios Políticos”, pg. 49, Ibrasa, 1963. 63 “Da Igualdade Perante a Lei”, Forense 1ª ed. 1947, 2ª ed. 1957.

Page 42: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

substanciais. Rousseau tinha em mira, ao que parece, a

liberdade, como a fruiam os antigos, realçando o poder

do Estado.

Bem anotou Faguet: “Rousseau reconnait

(obscurémont) les droits de l’homme; et puis, après les

avoir reconnus, ou tout em les reconnaissant, il les

soumet à la volonté nationale, il les sacrifie à la volonté

nationale et, tout comte fait, il les supprime net”64

.

O “Contrat Social” é, apesar de tudo, o reflexo

mais sistemático de uma época de abissais

transformações políticas e de uma existência

perigosamente situada nos labirintos das neuroses e do

desequilíbrio emocional. Mas essa obra genial, frustrada

em suas dimensões, eclodiu como um grito de revolta e

iluminou como um facho que se erguesse do túmulo dos

oradores antigos, acelerando assim o processo

revolucionário, um dos três “R” combatido por Maurras.

Não é nosso propósito um exame detalhado do

pensamento de Rousseau, o que se encontra em excelente

trabalho comemorativo65

, mas o seu trabalho principal

não pode ser bem apreendido sem a tese apresentada à

Academia de Dijon, sôbre a desigualdade, concebido sob

duas formas: a natural ou física, estabelecida pela

Natureza e que consiste na diferença de idade, de saúde,

de fôrças e das qualidades psicológicas, e “l’autre qu’on

peut appeler inégalité morale, ou politique, parce qu’elle

dépend d’une sorte de convention, et qu’elle est établie

ou du mois sutorisée par le consentement des hommes.

Celle-ci consiste dans les privilèges, dont quelques-uns

jouissent, au préjudice des autres, comme d’êtres plus

64 “Discussions Politiques”, pg. 172, Paris, 1909. 65 “Estudos em Homenagem a J.J. Rousseau” (vários autores) Fund.

Getúlio Vargas, 1967.

Page 43: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

riches, plus honorés, plus puissants qu’eux, ou même de

s’en faire obéir”66

. Rousseau poderia repetir com Lutero:

“Ich kann nicht anders”.

Realmente, o que está no seco do “Contrato

Social” é a luta contra os privilégios de alguns, contra os

interêsses da maioria sofredora sem horizontes e sem

auroras, e que na sua humildade mesma é o grande motor

dos acontecimentos históricos. Muitas de suas ideias

ainda hoje perduram e atuam sôbre as instituições. O

contratualismo é, contudo, uma hipótese fantástica que

não pode ser aceita no estado atual dos estudos políticos,

aplicando-se a êle perfeitamente o que considerou Hume,

acima citado.

Os elementos democráticos e liberais, até certo

ponto, se confundem e, por essa razão, a evolução de

ambos a partir de certa época deve ser estudada em

conjunto ae que distinções se imponham, uma vez que

estão vinculados ao respeito do indivíduo, cujas

prerrogativas, na órbita pública, no que concerne à

“praxis”, encontrou impulso na alma germânica,

conforme descreve Tácito67

. As brumosas florestas

teutônicas geraram uma autonomia pessoal que os

próprios reis acatavam. Com a queda do Império

Romano, a aculturação entre as instituições em atrito

permitiu, debalde, a vitória da cultura superior, o

escambo entre mundividências. Os germânicos, dessa

forma, plantaram o germe do individualismo que, em

algumas heresias, como o pelagismo, se fêz sentir de

forma perigosa às concepções cristãs, debeladas a tempo

por Santo Agostinho. A Reforma, pelo exposto, não foi

66 “Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité”, pg. 43,

Gallimard, 1965. 67 “Germania”.

Page 44: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

mais que uma conseqüência do processo evolutivo da

alma alemã ou melhor da alma germânica, preparada que

foi ainda pelo evolver do racionalismo científico. O livre

exame, a análise pessoal, a crítica, o ensaio, a iniciativa

privada encontram, então, um grande estímulo,

auxiliados por um anquilosamento da Escolástica,

submissa aos dogmas, abusando da dedução e do

silogismo e se caracterizando, segundo Pedro Lessa,

“pela extrema subtileza das análises, em geral verbais,

pela tendência a dar realidade a meras abstrações”.

A Reforma, iniludìvelmente, se encontra nas

bases do liberalismo, nutrindo o racionalismo posterior,

assim como as revoluções francesas e americana e a

estruturação do regime britânico.

Assim sendo, os documentos principais do

liberalismo podem ser considerados a Carta da Liberdade

de Henrique I, de 1.100, os Artigos dos Barões, de 1215,

a Magna Carta, também de 1215, a Primeira Carta de

Henrique II, de 1216, que reproduzia substancialmente a

Magna Carta, com a omissão de certos artigos, alguns

julgados dos Tribunais do Rei, as obras de Bracton e

Coke, a “Petition of Rights” de 1627, o “Bill of Rights”

de 1688, sem contarmos o “Act of Settlement”, de

Cromwell e o “Habeas Corpus Act”, de Carlos II.

Um dos motivos que explicam a sobrevivência da

nobreza britânica foi o de ela ter se identificado, desde

logo, com o povo, sacrificando-se, às vêzes, mais do que

êle em o suportar o ônus nacional.

Em 1222, a aristocracia húngara obtinha do rei a

“Bula de Ouro”, notòriamente semelhante à Magna

Carta. O porque da pouca ressonância histórica dêsse

Page 45: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

diploma dá-lo Wilson68

: “Os nobres da Hungria lutavam

pelos privilégios de uma classe, enquanto os barões da

Inglaterra tinham em vista os privilégios de uma nação,

não pretendendo os inglêses estabelecer nova lei ou

privilégio, mas recobrar e restabelecer o que tinham e

temiam perder. Outro motivo, e não menos significativo,

consiste em que os inglêses montaram um mecanismo

para a manutenção do acôrdo, enquanto os húngaros tal

não fizeram”.

Com relação aos Estados Unidos é importante

destacar as Cartas Coloniais, a Declaração de Direitos do

Congresso Continental, de 1774, a Constituição de 1787

e as decisões da Suprema Corte. Estabelecia-se,

pràticamente, o govêrno constitucional moderno que, na

definição de Wilson (op. cit. pg. 3), é aquêle “cujos

poderes foram adaptados aos interêsses do povo e à

manutenção da liberdade individual”. Por fim as

inúmeras constituições revolucionárias francesas e o

Código Napoleão. Daí então se propagam as idéias

liberais nas constituições dos outros países como as da

Espanha (1812) da própria França (1814), da Bélgica

(1831) e a de Portugal, influindo a primeira, a segunda e

a última na Constituição Imperial do Brasil, de 1824.

Vale observar que em constituições como as do

Chile (1828), da Argentina (1853) e do México foram os

direitos mais amplamente consagrados que na França,

onde o Código Civil (art. 11) determina: “O estrangeiro

gozará na França os mesmos direitos civis que são

concedidos aos franceses pelos tratados com a nação à

qual o estrangeiro pertence.” Êsse princípio da

reciprocidade, entretanto, não foi acolhido no Código

68 “O Govêrno Constitucional dos Estados Unidos”, pg. 7, Ibraza,

1963.

Page 46: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Civil Italiano de 1865, tendência que se refletiu em nosso

Código Civil (art. 3º), por exemplo, e no Código

Bustamante (art. 1º), onde se lê: “Os estrangeiros que

pertençam a qualquer dos Estados contratantes gozam, no

território dos demais, dos mesmos direitos civis que se

concedem aos nacionais”.

Queremos, todavia, chamar a atenção para uma

das glórias da prática inglesa, o “Habeas Corpus Act”, de

1679, cuja fonte se encontrava no art. 39 da Magna Carta

que, no sentir de Chattam, valia por todos os clássicos

reunidos. “Nullus liber homo” rezava êsse último

documento, “capiatur, vel imerisenetur, aut dissai isitur,

aut lagetur, aut aliquo modo destruactur, nec super eum

ibimus, nisi por legale judicium parium suorum vel por

legem terrae”.

O Ato de Carlos II que, na lição de João

Mendes69

, foi “considerado pelos inglêses como uma

outra magna carta, teve por escopo acabar com as

controvérsias que os remédios, então existentes,

despertavam. Tais eram êles: “writ of mainprise”, “writ

de ódio et atia”, “writ de hominine replegiando” e “writ

of habeas corpus”, limitando-se êsse último em ser um

meio de transferir prêsos de um tribunal para outro,

facilitando a administração da justiça. Poderia ser êsse

“writ”, “habeas corpus, ad respondendum”, “ad

satisfaciendum”, “ad pressequendum, ad testificandum,

ad deliberandum” etc., “ad faciendum et recipiendum”,

também chamado “eum causa” e “ad subjiciendum”, o

mais importante e que era expedido contra o detentor

para que apresentasse o prêso, indicando a data e a causa

da prisão. Contudo, para procrastinar a soltura dos

presos, substituia-se constantemente, êsse Habeas Corpus

69 Processo Criminal Brasileiro”, vol. II, pg. 309, Rio, 1920.

Page 47: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

pelo “ad deliberandum”, destinado à transferência dos

detentos de um lugar para o outro.

Para terminar os abusos indicados é que teve

lugar, por conseguinte, o decreto de Carlos II que firmou

definitivamente a garantia individual.

Carlos Sanchez Viamante que, como advogado

ilustre e eminente cidadão, pugnou sempre,

destemidamente, pelas liberdades pessoais, demonstrou

ser inexata a tese daquêles que buscam antecedentes do

remédio heróico nas magistraturas antigas e no “Justicia

Mayor de Aragon”70

, embora pudessem êles, por vêzes,

contar os excessos do poder.

70 “El Habeas Corpus”, pg. 17, Ed. Perrot, 1956.

Page 48: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

BURGUESIA E LIBERALISMO

Para melhor elucidação do que pretendemos, mister se

torna isolar o elemento democrático, cujas origens já

indicamos, do elemento liberal, de formação mais

recente. Entre a Reforma e a Revolução Francesa uma

classe social adventícia projeta-se profundamente no jôgo

histórico, disputando o domínio do Estado: a burguesia.

Tal classe não trazia apenas uma nova teoria, mas

encarnava, o que era mais importante, um nôvo tipo de

comportamento, indisfarçàvelmente vinculado ao

progresso científico que procurava substituir a religião

nas preocupações mentais do homem. O liberalismo

(conceito político-jurídico) e o liberismo (conceito

econômico), marcharam inicialmente juntos, sendo certo

que o personalismo, então cultivado, abeirava-se de um

certo materialismo. Notou bem Laski: “lo que produjo al

liberalismo fue la aparición de una nueva sociedad

económica hacia al final de la Edad Media”71

. “Le

libéralisme est, en dernière analyse, l’expression des

intérêts économiques de la bourgeoisie,” concorda

Jacques Droz72

. Outra origem não tem, por outro lado, o

capitalismo, embalado pelo individualismo e a livre

emprêsa estimulados pela Reforma, conforme Weber.

Liberalismo e Capitalismo são, em conseqüência,

inseparáveis, preterindo-se uma concepção social por

uma concepção personalista dos fenômenos da vida

coletiva. Por aí já se percebe que se há no sentimento

democrático um determinado conteúdo liberal, a

recíproca nem sempre se deu, como a História fàcilmente

71 “El Liberalismo Europeo”, pg. 16, Fondo de Cultura Económica,

1961. 72 “Histoire des Doctrines Politiques en France”, pg. 69, Presses

Universitaires, 1966.

Page 49: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

o comprova. Os “burgos podres”, como os de Old Serum

e Gaton, que permitiam ficar a Câmara dos Comuns nas

mãos dos proprietários de terra era um fenômeno liberal,

mas não democrático. E Bentham, que se batera pelo Act

de 1832, expirou um dia antes de sua vitória. O reinado

de Napoleão III, como de outros monarcas, foi liberal,

mas não democrático, a ponto de ser dito que em sia

época se perdera a noção da prática constitucional. Com

relação ao preconceito racial nos Estados Unidos, taxou-

o o Ministro Djaci Falcão como “uma tradição

antidemocrática, sobretudo anti-humana”73

.

A Revolução Francesa, a Revolução Portuguêsa

de 1910, e outros movimentos que encetaram a

perseguição religiosa e limitaram ou extinguiram a

liberdade de crença, eram manifestações liberais, mas

jamais democráticas, assim como o famigerado

“reconhecimento de poderes”, na 1ª República. Os

exemplos seriam, aliás, inúmeros. Entendemos que

enquanto o Liberalismo enaltece o interêsse individual,

precipitando-se nos exagêros do Estado Gendarme, a

Democracia volta-se para o interêsse geral, ensejando o

Estado Social. Legaz y Lagambra mostra bem como

ambas as fôrças históricas são “idéias distintas”, embora,

sob certo ângulo, tenham progredido juntas.

A concepção liberal é, em desenvolvimento, uma

teoria elaborada contra o Estado e as suas inalienáveis

prerrogativas e foi desacreditada pràticamente no

primeiro pós-guerra, como preleciona Paulo Benavides74

,

sendo certo que o regime capitalista, seu irmão, teve de

atualizar-se pactuando com o “Welfare State”. O

Liberalismo já cumpriu sua missão histórica, investindo

73 “A Igualdade perante a Lei”, Rev. Forense, vol. 192. 74 “Do Estado Liberal ao Estado Social”, pg. 143, Saraiva, 1961.

Page 50: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

contra o Absolutismo, embora movido por interêsses

econômicos de uma classe que subia e ambicionava

destronar a aristocracia. “O objetivo das leis, consta de

um catecismo do século XVIII, citado por Lindsay (op.

cit., pg. 171), é confirmar os ricos na posse de seus bens

e conter os pobres maléficos”.

O conceito de liberdade, então, surgiu

anàrquicamente, como se lê em Laski75

, como uma

“ausência de limitações”, como uma fundamental

restrição do poder público e um total desprestígio do

Estado. Bertrand Russel doutrinou que a liberdade, no

sentido abstrato, consiste numa “ausência de obstáculos

exteriores para a realização dos desejos”. Spencer já

fizera sentir, todavia, que “se não se tomam as

precauções convenientes o acréscimo da liberdade

aparente será seguido de uma diminuição da liberdade

real”, explicando que “a maior parte dos que passam

atualmente por liberais, são conservadores de uma nova

espécie”76

. É curiosa a circunstância de que grande parte

do Movimento liberal tenha sido animado pela

Maçonaria que, profligando pela fraternidade universal,

forçosamente teria que substituir a noção de Estado pela

de Humanidade. Eram, aliás, seus princípios: Perfeição

do homem, Liberdade nativa e inalienável, Igualdade

natural e inalterável, Fraternidade universal e a Negação

do pecado original. Ocultando suas finalidades políticas,

o art. 1º da Constituição Maçônica prescreve: “A

maçonaria, instituição essencialmente filosófica e

progressiva, tem por objeto a investigação da verdade, o

estudo da moral e a prática da solidariedade; trabalha

75 “A Liberdade”, pg. 7, Livr. Progresso, 1958. “Ensaios Céticos”, pg. 37. 76 “O Indivíduo contra o Estado”, pg. 5 e 7, São Paulo, 1935.

Page 51: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

pelo melhoramento material e moral, o aperfeiçoamento

intelectual e social da humanidade. Tem, como princípio,

a mútua tolerância, o respeito dos outros e de si mesmo e

a liberdade de consciência”.

As teses liberais, por suas próprias características

altissonantes, possibilitaram, por outro aspecto, um

renascimento da arte oratória, cuja maior tatuagem era a

busca da palavra pela palavra, o patético e o heroísmo de

expressões. A eloqüência dominava a Paris novecentista,

como relatamos em trabalho anterior77

, e era mais útil ter

uma frase feliz nos lábios que cem luzes no bôlso.

Excetuada a Inglaterra, onde peculiarmente, sempre

houve uma sintonia entre as concepções democráticas e

liberais, mòrmente após Carlos II, quando surgiram essas

últimas, consoante Spencer, e onde a Oratória firmou o

sistema parlamentarista com titãs como Pitt, Walpole,

Sheridan, Fox, Burke (do qual disse Hélio Sodré que se

distinguia “pela beleza serena de seus períodos e pela

extensão de sua cultura” e ainda pelos “conceitos

fundamentados em sólidas convicções filosóficas”78

)

Gladstone, Disraeli, e outros, a arte da palavra,

enaltecendo frenèticamente os direitos do homem sem

lembrar seus deveres e relegando o Estado a plano

secundário, contribuiu para o desgaste do próprio “modus

vivendi” que defendia. Alcalá-Zamora (“La Oratoria

Española, pg. 13, Ed. Atalaiga, 1946), afirma estar a

oratória parlamentar ligada, como “alma e voz”, ao

regime constitucional moderno.

A missão histórica precípua do Liberalismo

consistiu naquilo que Schumpeter denominou de

“patrimonialização do indivíduo”, isto é, “o processo

77 “A Seara de Bronze”, Ed. Cupolo, 1960. 78 “História Universal da Eloqüência”, pg. 189, José Olympio, 1948.

Page 52: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

pelo qual o indivíduo se liberta das obrigações e atitudes

da relação feudal, tornando-se teòricamente um cidadão

entregue aos seus próprios desejos, modelando a sua vida

privada mais ou menos à sua vontade, mesmo que no

momento ainda estivesse gozando de privilégios

especiais e prêso a formas sociais fixas”79

. Êle tornava,

assim paulatinamente, realidade social e política, sob

certo critério, um dos ângulos da pregação cristã.

79 “Imperialismo e Classes Sociais, pg. 172, Zahar, 1961.

Page 53: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE CULTURA

Decorre da evolução liberal-democrática, numa

cadéia de acontecimentos perfeitamente ordenada, o

Estado de Direito já por nós referido e definido por Kant

como “a reunião de um grande número de homens sob

leis jurídicas”, levando principalmente em conta a

relação govêrno-povo. Kant, aliás, contratualista

influenciado, como Beccaria, por Rousseau, mais

moderado entretanto do que êle, está nas bases da

democracia moderna. Sua importância no

desenvolvimento da filosofia ocidental pode ser

resumida, conforme Cirell Czerna80

, da seguinte maneira:

“a atitude crítica e o sentido do transcedental, na espera

teorética; o princípio da autonomia e da liberdade, no

campo prático ou ético, ou seja, no terreno da moral e da

filosofia social”.

Mas o Estado de Direito não visa apenas

estabelecer o regimento formal da conduta de uma

determinada sociedade global, prescrevendo

comportamentos, mas também ter sob contrôle o próprio

Poder, sem o que não passará de um simulacro, como

apontou San Tiago Dantas. Embora, contudo, seja o

Estado um fenômeno essencialmente jurídico, não é

ùnicamente jurídico, em virtude das plúrimas exigências

sociais a serem atendidas pelo Govêrno. Vai daí que o

Estado de Direito, numa consideração ortodoxa,

encontra-se hodiernamente ultrapassado, como se deduz,

integrando o chamado Estado de Cultura,

(“Kukturstaat”).

“As coisas políticas e os Estados nem são seres da

natureza nem seres ideais, esclarece Moncada.

80 “Ensaio de Filosofia Jurídica e Social”, pg. 64, Saraiva, 1965.

Page 54: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Pertencem, na sua complexa ontologia

caracterìsticamente, ao domínio da ‘cultura’. E êste é,

como se sabe, um domínio intermédio entre natureza e

espírito” (op. cit., pg. 18). Esta é a nossa orientação desde

que escrevemos “O Conceito de História”, já sob o

poderoso influxo do pensamento de Reale que afirma: “O

problema do direito é, assim, antes de tudo, um problema

de vida e de cultura. Ao Estado realizador do direito

sucede o Estado realizador de cultura, mas sem divórcio

ou conflito com as garantias jurídicas, as quais não

podem deixar de ser consideradas os esteios inamovíveis

de qualquer ordem civil, compondo-se a justiça com o

valor impostergável da certeza” (“Direito e Estado Numa

Comunidade Concreta”). Por isso que uma reforma da

Constituição deve ser realidade quando essa está em

desacôrdo com uma realidade cultural, como observa

Tehophilo Cavalcanti Filho (“Pressupostos Filosófico-

Jurídicos da Revisão Constitucional”). A nossa

concepção do estado, por ser uma concepção cultural, é

conseqüentemente uma visão histórica e axiológica do

problema.

Entendemos que o Estado de Direito, debalde

reafirmado pelo princípio da “racionalização do poder”,

não se livrou ainda do tipo de vida social que nutriu: a

sociedade individualista que submete os valores culturais

e a personalidade coletiva ao indivíduo, sem a

perspectiva do bem comum. A forma oposta, a sociedade

supra-individualista, pode conduzir ao totalitarismo, por

subordinar os valores da cultura e da personalidade à

coletividade. Apenas a sociedade transpessoal pode

colimar os verdadeiros objetivos sociais, colocando o

indivíduo e a coletividade sob a obra cultural.

Comentando a posição de Radbruch, assevera Paulo

Page 55: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Dourado de Gusmão81

: “Cada um dêsses tipos de vida

social tem o seu ideal. Para a sociedade individualista, a

liberdade, para a supra-individualista é o poder, e para a

transpersonalista é a cultura”.

81 “O Pensamento Jurídico Contemporâneo”, pg. 34, Saraiva, 1955.

Page 56: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

A SEPARAÇÃO DE FUNÇÕES

Em interessante resenha exprime-se José Manuel

de Arruda Alvim Neto82

: “A tripartição dos poderes foi o

instrumento de que se serviu a burguesia para garantir-se

contra os poderes do Estado, o que vale dizer, contra a

sua soberania”. Já analisamos, sob o crivo ontológico,

essa questão, e é óbvio que êsse expediente liberal não

pode ser mais aceito na forma em que foi formulado, em

vista da indivisibilidade do Poder Político que, em

substância, é íntegro e coeso, permitindo, entretanto, uma

separação das funções, sôbre a qual não é pacífica a

doutrina.

“A divisão do poder, imprópria, mas

tradicionalmente chamada de separação dos poderes,

estabelece Manoel Gonçalves Ferreira Filho83

, não

merece a reverência quase religiosa que por vêzes recebe.

Não sendo uma classificação científica das funções do

Estado, não sendo um dogma do sistema democrático, é

uma “receita” da liberdade, cujo valor prático depende

das circunstâncias”.

A origem burguêsa da separação das funções, tal

como surgiu e que atualmente deve ser entendida como

de fundamental interêsse do Poder Político, para

devidamente atuar, é de uma evidência incontratável na

Europa continental. Embora pressentida já por

Aristóteles, formulou-a, modernamente, Montesquieu,

estudando a prática inglêsa e interpretando-a, segundo as

conveniências de sua própria formação liberal, em

82 “O Poder Judiciário e a Constituição”, in “Rev. Do Instituto de

Direito Público”, nº 1. 83 “Os Partidos Políticos nas Constituições Democráticas, pg. 80,

Belo Horizonte, 1966.

Page 57: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

conhecida obra que lhe ocupou grande parte da existência

e que foi laboriosamente pensada, fundadora que é, no

entender de Lanson84

, da “politique abstraite qui monte

les contitutions comme des machines”, procurando,

lembre-se, estabelecer a relação entre as instituições e os

climas. Faguet considerou muito bem que o autor francês

se deixara impregnar de um “fatalismo científico”,

desenvolvido, ao que se sabe, por Mme. De Staël e

Ratzel, entre outros, que fundaram uma orientação

geopolítica.

Concebia Montesquieu três espécies de poderes

constituídos: “la puissance législative, la puissance

exécutive des choses qui dépend du droit des gens, la

puissance exécutivede celles qui dépendent du droit

civil”. O segundo seria o poder executivo “tout court”, e

o terceiro constituiria o poder de julgar, pròpriamente

dito. Rousseau, por ser partidário da indivisibilidade da

soberania popular, assim chamada, esclarece Roberto

Lyra, por pertencer à “própria coletividade), não

encontrava razão para a divisão referida, antecipando-se

às modernas concepções doutrinárias que defendem a

unidade do Poder Público, que assim evita se enfraqueça

a autoridade e se propicie a irresponsabilidade

governamental, como denuncia Luiz Silveira de Mello85

.

Locke, influenciado, além de outros já

mencionados, por Buchanan que argumentava derivar o

poder do povo e não do rei por direito divino, expendera,

contudo, anteriormente a Montesquieu a teoria da

separação dos poderes, com marcante personalidade,

encontrando certos precedentes no “Instrumento of

84 “Hommes et Livres”, pg. 179, Paris, 1895. 85 “O Poder Político e o Govêrno Democrático”, pg. 42, São Paulo,

1953.

Page 58: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Government” de Cromwell, de 1653, e em algumas

cidades alemãs do fim da Idade Média, como

Estrasburgo. “Compreender o poder político é, portanto,

também derivá-lo da sua origem e reconstituir pela

análise abstrata a formação da sociedade, a partir do

estado natural do homem, antes de tal poder existir”,

elucida Cabral de Moncada86

. Assim a separação

oferecida pelo filósofo inglês está em perfeita

consinância com seu contratualismo, um dos aspectos

dos quais deve ser destacado. Sabe-se que, para Locke,

só o pacto dos homens, concordando em se unirem para

formar uma comunidade e fundar um corpo político,

fazia cesar o estado da natureza, uma vez que outros

contratos poderiam ser feitos, nêsse estado, obrigando as

partes como homens e não como membros da sociedade,

admitindo o escritor, apoiado em Hooker, que a causa da

formação das sociedades políticas foi suprir as

deficiências da vida em solidão.

“Haverá sociedade política, diz Locke87

, sòmente

quando cada um dos membros renunciar ao próprio poder

natural, passando-o às mãos da comunidade em todos os

casos que não lhe impeçam de recorrer à proteção da lei

por ela estabelecida”. Não resta dúvida que facilitar, ao

homem, a proteção da lei foi a razão para a doutrina

loqueana a respeito dos poderes, assim concebidos:

Legislativo, Executivo, Federativo e Prerrogativo. O

terceiro é conceituado pelo pensador como o que encerra

“o poder de guerra e de paz, de ligas e alianças, e tôdas as

transações com tôdas as pessoas e comunidades estranhas

à sociedade, podendo-se chamar federativo. Se

entenderem a questão, fico indiferente ao nome” (op. cit.,

86 “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, pg. 211, Saraiva, 1950. 87 “Segundo Tratado Sôbre o Govêrno”, pg. 54, Ibrasa, 1963.

Page 59: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

pg. 92). O quarto, por sua vez, se formula como o “poder

de agir de acôrdo com a discrição a favor do bem

público, sem a prescrição da lei e muitas vêzes mesmo

contra ela”. Essa concepção, que antecipa o “direito

livre” de Kantorowicz, o poder regulamentar autônomo

consistia mesmo em “o poder de fazer o bem público

sem se subordinar a regras” (op. cit., pg. 106). A

Prerrogativa era atribuída ao Executivo para evitar as

delongas no processo legislativo, armando-o de uma

super-faculdade, uma vez que admitia Locke ser êle

permanente, ao passo que o Legislativo poderia não estar

sempre reunido. Para nós isso constitui um paradoxo

dentro da sistemática loqueana, uma vez que ela

considera que o poder que dão as leis é necessàriamente

superior, sòmente havendo “um poder supremo, que é o

legislativo, ao qual tudo o mais deve ficar subordinado”.

O liberalismo e o tradicionalismo do filósofo não

deixavam, como se constata, de fazer concessões

habilidosas ao monarca.

O “isolamento” do Judiciário como poder

autônomo é, pràticamente, obra de experiência

americana, que não tinha motivos para pôr em suspeição

os juízes, anteriormente instrumentos dos reis. O mêdo

da tirania fê-la consagrar a independência da toga,

embora os constituintes da Filadelfia, ao criar a figura do

Presidente, a tivessem moldada à imagem do Príncipe.

A Prerrogativa, ao que supomos, teria influido na

construção doutrinária de Benjamin Constant, para a qual

os poderes eram: Real, Executivo, Representativo e

Judiciário, acrescidos depois do Municipal. Enquanto o

segundo poder era exercido pelo colégio ministerial, o

terceiro o era pelos legisladores nas assembléias

representativas e o quarto pelos tribunais. “Le roi est ao

milieu de ces trois pouvoirs, teoriza Constant (“Politique

Page 60: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Const.”, vol. 1º, pg. 178), autorité neutre et intermédiaire,

sans aucun intérêt bien entendu à déranger l’équilibre, et

ayant, au contraire, tout intérêt à le maintenir”. Ao lado,

por conseguinte, de um poder que fazia as leis, de outro

que as executava e ainda de outro que as aplicava a casos

particulares, concebia-se um quarto, o Poder Real, que

era “en quelque sorte le pouvoir judiciaire des autres

pouvoirs” (op. cit. pg. 181) sempre tendo em mira o

interêsse coletivo.

O art. 9º da Constituição do Império do Brasil

sintomàticamente exarava: “A divisão e harmonia dos

poderes políticos é o princípio conservador dos direitos

dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as

garantias que a Constituição oferece”. O art. 10

reconhecia, por sua vez, quatro poderes: o Moderador, o

Executivo, o Legislativo e o Judicial.

Note-se que o liberalismo da época impunha uma

“divisão” e não uma “independência” dos poderes,

almejando fragmentar, no interêsse da burguesia, sob cuja

inspiração Comte produziu, o Poder Político.

Seguindo a lição de Constant, os elaboradores da

Carta Imperial, além de considerarem o Imperador, chefe

do Executivo que exercitava através de seus ministros

(art. 102), prescreveram: “O poder moderador é a chave

de tôda a organização política, e é delegado

privativamente ao Imperador, como chefe supremo da

nação, e seu primeiro representante, para que

incessantemente vele sôbre a manutenção da

independência, equilíbrio e harmonia dos poderes

políticos” (art. 98).

Poder conservador por excelência, o Moderador

soscitou polêmicas acerbas sôbre sua natureza e se o seu

titular era ou não responsável, em vista de sua

Page 61: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

inviolabilidade (art. 99), por atos de que resultassem

prejuízos aos interêsses nacionais. Sôbre êle escreveram

monografistas como Braz Florentino e Zacarias e

tratadistas como São Vicente e Uruguai, todos

monárquicos. Só a pena desaçaimada e inconformista de

Tobias Barreto levantou-se corajosamente contra o Poder

Neutro, na verdade um super-poder tão anti-democrático

quanto qualquer hipertrofia política. A Constituição do

Império, na verdade, criara um só poder ao qual os

demais estavam manietados e subordinados,

transportando para nossos quadros políticos instituições

exóticas e sem raízes em nossas tradições. Era necessário

buscar soluções brasileiras para os problemas nacionais.

Bradava Tobias88

: “Logo, o único meio de salvar

e engrandecer o Brasil é tratar de colocá-lo em condições

de poder êle tirar de si mesmo, quero dizer, do seio de

sua história, a direção que lhe convém”.

A divisão dos poderes foi, como exposto, uma

técnica da burguesia, objetivando o dessoramento do

Estado, em seu próprio benefício. Condorcet referia-se

até à volúpia de se criar poderes para se opô-los uns aos

outros, numa gangorra política.

A separação de funções na forma clássica e que a

Constituição americana adotou em virtude do “Plano de

Virgínia”, elaborado por Randolph, que recebera as

influências já referidas anteriormente, sobre variações

por parte de autores que não a julgam exaustiva, ou que a

interpretam sob novas luzes.

Kant considerava o Legislativo, “irrepreensível”,

o Executivo, “irresistível”, e o Judiciário, “inapelável”.

88 “A Questão do Poder Moderador”, in “Estudos de Direito”, pg.

440, Livr. Progresso, 1951.

Page 62: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Hegel admite a separação das funções, mas de forma a

não causar a desagregação do Estado, subordinado ao

Poder Real o Legislativo e o Executivo, de maneira

orgânica, de sorte a manter a unidade do Poder.

“Hegel, confronta Paulo Bonavides, reelaborou as bases

do princípio da separação dos poderes, fundou-o na ideia

organicista de interdependência e, reconciliando a tese

dos poderes que se excluem com a tese dos poderes que

se coordenam, deu, por último, ao poder a base ética

necessária que o liberalismo extremado do século XVIII

lhe solapara”. Sabatini, aceitando a distinção tradicional,

subdivide o Poder de Justiça em função jurisdicional e

função judiciária, cabendo a essa a tarefa da execução

penal ou civil.

Para Renard o Poder se dividia em Jurídico e

Político, e êsse em Executivo, Legislativo e Eleitoral;

para Hauriou, em Executivo, Deliberativo e de Sufrágio e

Siyès nos ofereceu uma distinção estrutural importante:

Poder Constituinte e Poder Constituído.

De modo geral todo aquêle que preconiza reformas de

base e propõe nova forma de govêrno e organização da

sociedade, oferece uma nova classificação de funções.

Souza Lobo89

apresenta nove poderes: o Opinativo, o

Senatorial, o Judiciário, o Ministério Público, o de

Segurança Nacional, o Educativo, o Provedor, o

Tributivo e o Fiscal.

O saudoso Fernando Nobre que, na esteira de

Saint Girons, pregava a unidade do poder e a separação

das funções, reconhecia além das tradicionais o Poder

Pecuniário, o Militar, o Publicitário e o Universitário

(“Sinergia dos Poderes Governamentais”).

89“A Libercracia”, Edigraf, 1958.

Page 63: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Pensamos que outras funções, como o Ministério

Público, poderiam ser desdobradas, com independência e

harmonia, do Poder Político para facilitar a sua

operatividade, mas de qualquer forma deve uma das

funções do Estado, por sua natureza equidistante, ter uma

atividade moderadora, sem que isso importe em

aglutinação de atribuições. Essa função é a judiciária,

embora Gilberto Amado tenha reparado que as fôrças

armadas, em determinados períodos de nossa história,

tenham pretendido exercer a função moderadora,

desempenhada em algumas repúblicas parlamentaristas

pelo Presidente da República.

“O Poder Judiciário, pronunciou-se o Des.

Augusto Moura90

, é o poder moderador por excelência e,

conseqüentemente, não compartilha de extremismo

algum”, acrescentando o Des. Aloysio Maria Teixeira (“A

Missão do Poder Judiciário”) ter sido êle, pela

necessidade natural da administração da justiça, antes

mesmo das normas, o primeiro poder cronològicamente a

aparecer.

Não são as garantias que fazem do Judiciário uma

função do Poder, mas essa é que impõe aquelas para

desenvolver o leque de suas possibilidades no mundo da

cultura. As constituições não acolhem de modo igual

essas garantias, em sua parte orgânica, que monta o

sistema de poderes, ao lado da parte dogmática, que fixa

a órbita da liberdade individual. Enquanto consagram a

irredutibilidade, os códigos políticos do Brasil, da

Argentina e dos Estados Unidos, não a adotam os de

Portugal, da Espanha (1931) e da Alemanha (de Weimar).

A inamovibilidade é reconhecida no Brasil, na

90 “Poder Judiciário – Poder Moderador”, in “Rev. Jur. Do T.J. do

Est. da GB”, nº. 4.

Page 64: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Tchecoeslováquia e na China, entre poucos mais, e a

vitaliciedade não tem superior alcance numérico à

precedente garantia, mas, de modo geral, se procura

reconhecer a independência da Magistratura, por ocasiões

de forma puramente platônica, uma vez que, sendo essa

independência, conforme Bryce, um arnês em pról do

Direito e da Justiça, pouca eficácia teria sem as garantias

mencionadas.

Os critérios de escolha e promoção dos juízes não

são idênticos também nos diversos países. Rejeitamos o

critério da eleição, como na União Soviética e em

algumas unidades dos Estados Unidos, por absolutamente

inadmissível, bem como a nomeação e a ascenção na

carreira, por atos do Executivo que podem colocar os

magistrados em certas órbitas de influência.

Preconizamos que após o concurso de provas e títulos, ao

Judiciário deveria caber a nomeação e promoção de seus

membros, para nos atermos à esfera estadual, embora a

Justiça Federal, criada pela atual Constituição, pudesse

adotar êsse princípio. Pensamos também que ao Supremo

Tribunal Federal deveria caber a escolha de seus

membros, debalde o seu conteúdo eminentemente

político. Com relação ao acesso, as Constituições de

1934 e 1937 consagravam o princípio de que a promoção

na carreira de Magistrados deveria ser alternadamente

por merecimento e por antiguidade. A Constituinte de

1946 debateu uma emenda do Professor Mário Mazagão,

a qual estabelecia que, da primeira para a segunda

entrância, deveria ser a promoção por antiguidade, e da

terceira entrância em diante só por merecimento,

terminando por rejeitá-la. Emenda foi apresentada, então

pelo Senador Ivo d’Aquino, com aplausos de Adrealdo

Mesquita da Costa, que completava a emenda do

Professor Mazagão, principalmente no sentido de

Page 65: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

estabelecer que para o Tribunal de Justiça a promoção

deveria ser feita pelo critério de 2/3 por merecimento e

um terço por antiguidade. Essa emenda foi aprovada nas

sub-comissões, e só foi rejeitada em Plenário, através de

uma outra emenda do Deputado Dantas Júnior, um ex-

magistrado, o qual defendia a tese de que o critério de

promoção deveria ser o mesmo para tôdas as entrâncias,

alternando-se a antiguidade e o merecimento.

Sem dúvida que para a vitória da emenda Dantas

Júnior contribuíram bastante as impugnações feitas por

Ferreira de souza de que a emenda Mazagão, embora

tivesse lógica, escapava um pouco à realidade das coisas,

esquecendo “um pouco as fraquezas humanas”. Afirmou

então o vibrante parlamentar que a “antiguidade é meio

de corrigir certas injustiças a que estão sujeitas as listas

de merecimento”, acrescentando mais adiante que “não

há critério absoluto para julgar o merecimento e a

formação das listas depende do julgamento pessoal, do

voto dos juízes, votos que podem obedecer a motivos

relevantes, mas que não traduzem rigorosa justiça”.

Tal foi o ponto de vista vitorioso, em Plenário,

como se constatava no livro do Desembargador José

Duarte sôbre a Constituição de 1946 (pág. 447, 2º

volume). É êsse também o critério da Constituição de

1967 (art. 136).

A função executiva se desnastra em outras, como

fàcilmente se pode deduzir, entre as quais destacam, além

do poder de sanção e do poder de veto, o Poder

Disciplinar, que não é exclusivo; e o Poder

Regulamentar. O terceiro é inerente às prerrogativas da

Administração aplicando-se de acôrdo com as normas

que regulam as infrações dos servidores das repartições

administrativas e as respectivas sanções. O Direito

Page 66: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Disciplinar está vinculado ao advento do funcionalismo,

que se fêz necessário em virtude das maiores tarefas que

se exigiu da Administração, carente de pessoal

capacitado que veio a constituir a Burocracia, definida

por José Duarte como “um corpo permanente de

servidores públicos, com tradição profissional, que faz de

sua atividade no serviço do Estado, sua profissão habitual

e fonte de seus meios de subsistência”91

.

O Poder Regulamentar vem da faculdade do

Executivo em editar normas destinadas a facilitar a

execução das leis. O regulamento tem por isso um campo

limitado, não podendo inovar nem criar hipóteses que

não estejam previstas em lei. Pode restar-lhe todavia uma

área residual quando a lei estabelece normas

programáticas. Por não poder contradizer a lei, o

regulamento tem que obedecer, em conclusão, em sua

elaboração as formas prescritas por ela, não podendo

abranger senão matérias não legislativas, como está em

Vedel, uma vez que a extensão dêsse poder pode consistir

numa delegação disfarçada.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho92

é de opinião

que o Brasil não tem escapado a essa delegação por

fórmulas oblíquas, especialmente por meio de

regulamentos que inovam”.

A doutrina encara três espécies de regulamento: o

de execução, o de complementação e o autônomo.O

primeiro é o regulamento clássico de que acima tratamos;

o segundo, também já referido, dá-se quando o legislador

assenta apenas normas fundamentais; o terceiro constitue

um verdadeiro “poder normativo governamental”.

91 “O Poder Disciplinador”, in Arq. Min. Just. nº 61. 92 “Autonomia do Poder Regulamentar na Constituição Francêsa de

1958”, in “Justitia”, vol. 51.

Page 67: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Agitada pela instabilidade de seu

parlamentarismo, pela fragilidade do Executivo e pelos

problemas ultra-marinos, a França viu-se na contingência

de elaborar a sua atual Constituição, onde se nota um

vigoroso robustecimento da figura do Presidente da

República. De Gaulle, como observam os juristas

francêses, necessitou de uma Carta à sua imagem, que

seduz maus que a sua doutrina, como quer Malraux, para

enfrentar a conjuntura político-histórica. Daí a amplitude

que ganhou o Poder Regulamentar na chamada 5ª

República, exercido com o auxílio do Conselho de

Estado e que pràticamente legisla, estando subordinado

ùnicamente à Cosntituição, podendo, por isso, modificar

ou derrogar leis anteriores. Entendemos que a autonomia

do regulamento não deve constituir uma instituição

permanente. Embora se reconheça que o Executivo se

vem revigorando, numa tendência geral, a sua

transformação em super-poder vulnera o princípio

democrático. Razoável é, no entanto, a delegação,

especificados seu conteúdo e os têrmos de seu exercício.

Sob um outro critério, o Executivo pode ainda exercer

poderes inerentes, implícitos e resultantes, estando os

primeiros vinculados à própria natureza do Govêrno, os

segundos derivados de disposições expressas, como

decorrência inevitável, e os terceiros ligados ao uso das

prerrogativas regulares. A Suprema Corte dos Estados

Unidos ainda não firmou jurisprudência sôbre os poderes

inerentes, ligados às necessidades das circunstâncias,

reconhecendo-os no caso Neagle e rejeitando-os no caso

Kansas versus Colorado. Os poderes implícitos, ao invés,

como demonstra Oswaldo Trigueiro93

, “têm tido na

jurisprudência e na teoria política desde o caso

93 “ Os Poderes do Presidente da República”, in “Estudos sôbre a

Constituição Brasileira”.

Page 68: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

McCulloche versus Maryland, que é de 1819, aceitação

quase isenta de controvérsias”, defendendo Marshall a

tesse de que os poderes do govêrno supunham os meios

ordinários de sua execução. Posteriormente o Chief

Justice Waite sustentou o conteúdo progressivo dêsses

poderes que se adaptavam ao desenvolvimento do tempo

e das circunstâncias.

A China apresenta, em sua Cosntituição, um

sistema de cinco poderes representados por “Yuans”

(Conselhos), que formalmente briga com a classificação

tripartida: o Legislativo, o Executivo, o Judicial, o de

Exame e o de Contrôle, os dois últimos, no dizer de

Ollero, formando competências extraídas aos três

primeiros, de problemática autonomia. O “Yuan” de

Exame incide sôbre a verificação das contas públicas,

visando estabelecer um sistema de efetiva

responsabilidade, e o de Contrôle sôbre questões ligadas

ao funcionalismo, e serviços da Administração. O “Yuan”

Legislativo, embora ordinàriamente exerça a missão de

legislar, se não confunde com a Assembléia Nacional que

possue algumas prerrogativas, nem o “Yuan” Executivo,

que óe órgão colegiado, se identifica com a figura do

Presidente da República que, com a Assembléia, não

participa da engrenagem dos poderes.

A necessidade de uma atuação mais vertical na

sociedade obrigou o Poder Político a separar as funções,

antes visceralmente unidas na figura do Chefe e depois

do Rei, cujas prerrogativas, entretanto, sempre

subordinavam às demais. A efetiva separação é, pode-se

dizer, recente na História Política.

O Des. Vieira Ferreira, em seu estudo histórico

sôbre juízes e tribunais do 1º reinado e da Regência,

mostra como essas funções ainda se confundiam, se bem

Page 69: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

que um documento transcrito por Augusto de Lima

Júnior94

revelasse já um certo liberalismo reinol: “Não

poderá o Governador e Capitão General, ou outra pessoa,

tirar-vos do dito cargo (referia-se a certos magistrados),

prender-vos ou suspender-vos e, fazendo-o, vós não vos

dareis por suspensos e os prendereis; e ao Governador ou

Capitão-Mor, emprezareis para, diante dos Corregedores

do Crime da Côrte, fazendo Autos dos excessos que

convosco tiverem. E mando aos Oficiais de Justiça e

Guerra, vos obedeçam nisso, sob pena de suspensão de

seus ofícios, e das mais penas que houver por meu

serviço e, sendo o caso, o que não espero que cometais

algum crime ou excesso que pareça deverdes ser deposto

antes da Residência, farão disso Autos, que vós não

impedireis e os remeterão ao Conselho Ultramarino, com

clareza do delito, para eu mandar o que houver por meu

serviço; e nas Residências dos Governadores e Catães-

Mores, se perguntará por isso. E sendo caso que cometais

algum excesso, o que não será tão grave que por êle e

pelas Leis mereçais pena de morte, então sòmente

podereis ser prêso no flagrante, e de outra maneira não”.

O Poder é, de forma geral, a vontade do Estado

que é uma, não se concebendo, como resulta dêste

ensaio, a sua divisão e sim a separação de suas funções,

tendo em vista o interêsse coletivo. Percebeu-o Saint

Girons: “La vraie formule de la séparation des pouvoirs

affirme la nécessité de rendre les pouvoirs législatif et

exécutif indépendants dans leur existense, unis dans une

action commune pour la gestion des affaires publiques”95

.

Em seu apreciado “Manuel” (pg. 157), Vedel, o

abalizado prof. Da Faculdade de Direito de Toulouse,

94 “As Primeiras Vilas do Ouro”, pg. 130. 95 “Manuel de Droit Constitutionnel”, pg. 83, Paris, 1885.

Page 70: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

consigna por sua vez: “L’idée fondamentale de tout

principe de séparation des pouvoirs se rattache, comme

l’a très clairement montré M. Berlia, à l’idée qu’il n’y a

pas de liberté possible su l’un des organes représentatifs

de la Nation exerce la plénitude de la souveraineté, alors

que cette souveraineté appartient à la Nation elle-même”.

Page 71: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

OS DOIS GLÁDIOS

O Bem Comum foi também o motivo pelo qual

Cristo pregava a separação dos poderes espiritual e

temporal, (assim chamado, orou Vieira, porque dura

pouco). Assim se evitaria, pensamos, não só a tirania,

como uma simbiiose comprometedora para o poder

espiritual. A razçaõ está com Ivan Lins quando escreve

que outro aspecto “que patenteia, de modo insofismável,

as graves imperfeições do regime social dos antigos, é

confusão dos dois poderes”96

. A doutrina dos “dois

gládios”, baseada numa passagem do Evangelho, tão bem

analizada por Dante, está, conseqüentemente, nos

fundamentos do problema que ora abordamos, mas é

preciso que se diga ter sempre a Igreja, através de seus

mais lídimos intérpretes, como Santo Thomaz,

interpretado a “Republica Christiana” como um fato do

mundo moral e das consciências, e não como um desejo

de aglutinação do poder temporal, embora alguns

pontífices, demasiado influenciados pelas contingências

históricas, disso se tivessem onvidado. Quando após o

flagelo Pilatos, ao não receber resposta a uma pergunta

que fizera a Cristo, Lhe diz: “Ignoras que tenho o poder

de te libertar e o poder de te crucificar?”, ouve estas

palavras: “Tu não terias sôbre mim nenhum poder se êle

não te tivesse vindo do alto”, acrescidas de mais estas: “É

por isso que aquêle que me entregou a ti tem um pecado

maior”. Referia-se a Anaz. Esta passagem do Evangelho,

que fundamentou o Direito Divino dos Reis, era ainda

interpretada como que, na separação dos “dois poderes”,

tinha i espiritual maior gradação, por mais responsável

perante Deus. Santo Thomaz, que reconhecia a

96 “A Idade Média, a Cavalaria e as Cruzadas”, pg. 18, Livr. São

José, 1958.

Page 72: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

mencionada “separação”, opinava, entretanto, que em

causa de discordância entre os poderes, deveria

prevalecer a vontade do Espiritual.

Parece-me, apesar disso, que, demarcando

nìtidamente as duas competências, Cristo quiz

demonstrar estar o Poder Espiritual, pela natureza de sua

missão, mais ligado a Deus que ao Poder Civil, devendo

por essa razão, responder mais gravemente por seus

abusos. Na Encíclica “Immortale Dei” doutrinou Leão

XIII que as duas autoridades eram justapostas, soberanas

nos seus domínios respectivos. “Cada um é, no seu

gênero, o mais alto”, proclamou o grande Pontífice.

A tardia separação dos dois poderes motivou um

retardamento da autocrítica do poder civvil, que

possibilitou uma distinção mais lúcida de suas funções

que, em substância, são harmônicas e interdependentes,

em significativo equilíbrio. O destaque circunstancial de

uma ou de outra, por sismos políticos, conduzirá

invevitàvelmente ao ritmo perdido para a salvaguarda da

própria ordem democrática.

Page 73: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

O “WELTANSCHAUUNGSSTAAT”

A Revolução Francêsa, como a viu Hamon97

, foi mais

política do que social, deflagrando um perigoso

individualismo que, seguidamente entrou em conflito

com o interêsse geral. O Estado democrático moderno,

que Lindsay estima ter surgido nos meados do século

XIX e contra o qual o bolchevismo, o fascismo e o

nazismo são “reações conscientes”, tem, em suas

coordenadas básicas, de ser entendido como um

“Weltanschauungsstaat”, vale dizer como aquêle que se

dispõe à missão de “représenter un idéal politique et

social et de diriger la nation d’une manière active et

consciente vers sa réalisation”.

97 “La Revolución a traves de los siglos”, pg. 95, Ed. Tor, 1943.

Page 74: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

ESTADO-MEIO E ESTADO-FIM

Antes de concluirmos êste despretencioso levantamento

de alguns pressupostos da ação política, com uma

referência direta à teoria democrática, se nos impõe a

natureza do trabalho a tomada de posição sôbre o

problema dos fins do Estado. A impostação do mesmo

transcende à acadêmica questão do Estado-meio ou do

Estado-Fim, aquêle fruto de um personalismo exacerbado

e êsse último mal reputado por ter se constituído na

cápsula de totalitarismos, embora Hitler (op. cit., pg. 326)

tivesse escrito: “O grande princípio que nunca deveremos

perder de vista é que o Estado é um meio e não um fim. É

a base sôbre a qual deve repousar uma mais elevada

cultura humana, mas não é a causa da mesma”. Essa

causa seria a existência de uma raça superior, razão pela

qual a finalidade principal do Estado seria a conservação

dos primitivos elementos raciais. Como se percebe, a

matéria deve ser abordada com sutileza e arejamento para

o seu devido entendimento. O Estado como fâmulo e

guarda do indivíduo é hoje fossil político que não tem

meios de ser reanimado, porque na verdade entre a

Sociedade organizada e o homem há uma interação e

uma interdependência contínua. Aquela é uma “vontade

coletiva”, segundo Durkheim, que reflete êsse último de

forma absorvente. Platão, aliás, já sentira isso. O

macrocosmo da vida estatal está condicionado ao

microcosmo da vida individual; daí portando o Estado

um conteúdo violentamente humano, que o identifica

com cada um de seus componentes. A Psicologia Social e

a das Multidões cada vez mais concretizam essa

observação, podendo-se hoje falar numa Psicanálise do

Estado, susceptível, como qualquer pessoa, de

complexos, frustrações, compulsões, sublimações,

derivações e neurosos. Êsse humanismo do Estado não

Page 75: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

foi ainda devidamente realçado, embora um autor como

Porrua Perez tenha advertido: “El Estado no debe ser

entendido como una abstración, sino que se le ha de

comprender em función misma de los hombres que lo

originan con su actividad expresando en su contenido la

necesidad de realizar sus deseos y sus aspiraciones”98

. A

eficiência humana através a História, numa contínua

atividade cultural, elaborou o Estado para preservá-la e

garanti-la, e por isso dêle não pode prescindir, em seu

jôgo existencial, porque é dessa entidade concreta que o

organismo social recebe o oxigênio para manter-se com

vida própria e com personalidade jurídica. Em clássica

monografia, Ataliba Nogueira escreve: “O estado não é

fim do homem; sua missão é ajudar o homem a conseguir

o seu fim. É meio, visa a ordem externa para a

prosperidade comum dos homens”99

. “Data vênia” do

eminente professor, cujo apostolado liberal é um exemplo

de idealismo e congruência de princípios, a sua

concepção é de um individualista. A Democracia é fruto

de “decisões coletivas essenciais”, para usar a fórmula de

Vedel, e sendo assim o bem público não pode ser um bem

intermediário e sim um bem final que se colima. O limite

da liberdade, em substância, é o bem comum, como Kant

anteviu, e é êsse bem que garante os direitos humanos,

constituindo a função primordial do Estado.

Vomo ensina o insuspeito Amoroso Lima, em sua

“Política”, a causa final da sociedade organizada é o bem

comum, como a causa formal é a união entre seis

membros, a causa material, são seis próprios

componentes, e a causa eficiente é aquilo de que provêm

o vínculo social.

98 “Teoría del Estado”, pg. 413, 3º ed., México, 1962. 99 “O Estado é Meio e Não Fim”, pg. 153, 2º ed., Saraiva, 1945.

Page 76: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Charles Journet (“Exigences Chrétiennes en

Politique”) considera que a comunidade política é

querida por Deus que, por meio dela, objetiva a plena

realização da vida humana. Isso, entanto, só pode ser

conseguido com a colimação anterior do bem comum,

porque é cristão que o interêsse geral sobrepuje o de cada

um. A minha posição no problema consiste em que

considere o Estado principalmente um fim e

secundàriamente um meio, ou melhor uma finalidade

com duas destinações: primeiro o bem comum e em

decorrência o bem individual. Nem o Estado é mero

instrumento do homem, nem êsse despersonalizado se

encontra absorvido por aquêle, senão que o seu interêsse

deve estar subordinado ao interêsse coletivo.

Ressalvado isso, podemos subscrever a lição de

Reale: “O Estado é um fim e um meio, como já tive

ocasião de dizer: Fim, porque age como agiria a

sociedade tôda se tivesse consciência própria, e não

apenas segundo a resultante mecânica das vontades

individuais; meio, porque é através dêle que o homem

consegue atuar as fôrças que tem em potencialidade”100

.

Nota Goffredo Telles Júnior101

que o Estado, embora

“cingindo-se a sua missão de meio, ordena-se por um

ideal de finalidade”.

A finalidade essencial do homem, como membro

da sociedade e portador de uma dignidade natural, deve

ser pois o bem público, que possibilita a todos os

elementos materiais e espirituais para sua realização

plena.

Porrua Perez, autor da linha neo-tomista, observa,

100 “O Estado Moderno”, pg. 187, José Olympio, 1934. 101 “Justiça e Jury no Estado Moderno”, pg. 31, in “Rev dos

Tribunais”, 1938.

Page 77: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

por isso, que o Estado “habrá de sacrificar el bien

particular por el bien general” (op. cit., pg. 481), o qual

em nosso pensar se identifica com a sociedade política e

jurìdicamente organizada que o realiza paralela e

concomitantemente com sua própria categoria

existencial. Como se verifica pela exposição meste livro,

a nossa orientação é culturológica e existencial, e é sob

êsse crivo que encararemos o problema da Democracia,

que não é apenas uma questão político-jurídica, mas

também psicológica e moral e também egológica, para

citarmos Cossio. Modo de ser a Democracia depende,

para a sua integração, de ser vivida em plenitude por cada

membro do corpo social, vivência que poderemos

denominar de sensibilidade democrática. Ela não desce

do Estado para o seu elemento humano, mas dêsse é que

deve ascender para aquêle, como uma indefectível infra-

estrutura psicológica tão importante, por vêzes, como o

fator econômico subliminar. As classes sociais não

deixam de ser também “estados de ânimo” como refere

Simone de Beauvoir, em livro polêmico102

.

Koestler, tratando das “neuroses políticas”, explica as

tendências de alguns intelectuais, como decorrente da

“fatiga de los sinapsis”, isto é, “de um debilitamiento

general de las conexiones entre las células cerebrales por

las que deberia passar la impulsión merviosa... La

violencia indefinida de la conciência del sujeto puede

producir esa fatiga”.

Não que levemos a exagêros tais a interpretação

psicológica da História, utilizada por Nietzsche, mas

queremos ressaltar o elemento psicológico que se entrosa

constantemente com o elemento econômico no subsolo

social. Acreditamos que de nada vale ser o Estado

102 “El Pensamiento Político de la Derecha”, Ed. Leviatan, 1956.

Page 78: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

democrático se a Nação não o for. Essa contradição

Estado-Nação, ainda não devidamente estudada, é uma

das causas da crise de nossos tempos que afeta

profundamente a organização social e jurídica.

Page 79: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

A CRISE DA CULTURA

O Direito está em crise pelo afastamento da

realidade social, pela ruptura da “coerência” que nêsse

aspecto deve manter, como diz José Saraiva103

e que é

critério do mundo jurídico, pela decadência de seu

conteúdo ético, que conduz à sua finalidade de realização

da Justiça, conceito cultural-histórico, pela má

elaboração e execução das leis e, por ocasiões, pela sua

aplicação.

A crise do Direito é também, em decorrência,

crise do Estado através de seus poderes e de antinomias

comprometedoras.

Rippert bem estudou o “declínio do Direito” pelo

divórcio da “tentativa do justo”, pregada por Stammler,

dos fatos sociais que deve tutelar, tendo Assis Ribeiro

incidido sua crítica sôbre o ângulo moral do problema104

.

Não fala quem identifique crise do Direito com

crise do romanismo, cujos tipos de ordenamentos se

caracterizam pelo racionalismo e pelo personalismo,

incompreensível numa época em que o “yo”, como

advertiu Couture, cede lugar ao “nosotros”. Parece-nos,

contudo, que a crise mencionada exorbita dos países de

tradições romanistas, para se tornar uma crise geral,

alimentada por um individualismo jurídico que se

apresenta camuflado nos interêsses de partidos, grupos

sociais e até classes.

Com pertinência ao Estado, o sistema de “freios e

contrapesos” é mais uma fórmula de equilíbrio mais dos

defeitos que das virtudes dos poderes, contaminados o

103 “A Crise do Direito”, pg. 53, Lisboa, 1964. 104 “Reflexões sôbre a Crise do Direito”, Freitas Bastos, 1951.

Page 80: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Executivo e o Legislativo pelas deficiências do sistema

eleitoral e o Judiciário pela perda de uma perspectiva

dinâmica e cultural da norma jurídica. A hipertrofia

ocasional de qualquer dêles pode justificar os escrúpulos

de Royer-Collard: “A la place d’um despotisme simple,

nous aurions um despotisme composé” (op. cit., pg. 42).

O intervencionismo estatal nas relações privadas apenas

teòricamente freiou o individualismo egoista que será

sempre um óbice para a realização da autêntica idéia

democrática, com a qual precisamos retomar contacto,

embora o referido movimento doutrinário não tenha

deixado de ser um vigoroso fator para o reaparelhamento

dos espíritos. Com a publicação do livro de Gaston

Morin, “La Révolte du Droit contre le Code”, considera

Paulino Jacques105

, “não houve mais dúvida quanto à

restrição à autonomia dos indivíduos, à decadência da

soberania do contrato e à limitação da propriedade

individual”. E complementa Alvim Lima (“Ver. Fac. Dir.

SP.”, vol. XXXV): “As novas doutrinas se enfeixaram

contra os princípios do Código Napoleão”. Não se pode

discutir que o desprestígio da Escola da Exegese veio

espiritualizar o Direito, mas êle continua servindo

lacunosamente a circunstância desvinculada de sua

transcendência, permanecendo entològicamente

desajustado. É preciso abrir uma janela para a

transcendência, proclamou Jaspers.

O marginalismo jurídico para nós se caracteriza,

ainda, por dois pontos além dos já mencionados, entre os

quais se destaca a falta de sintonia com a realidade social

que o Direito imperfeitamente procura refletir: o seu

caráter esotérico, com pertinência ao seu

desconhecimento pelas massas que nêle não vêm um

105 “Da Norma Jurídica”, pg. 35, Forense, 1963, 2ª ed.

Page 81: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

conteúdo humanístico nem o “catecismo”, de que falava

Bentham, e a posição de vanguarda de alguns institutos

para os quais o povo ainda não amadureceu

conscienciològicamente. Resulta disso tudo que o Direito

pode se encontrar em dissonância com o meio social, não

só por se encontrar aquém como além dêle, repercutindo

essas alternativas no Estado.

Mas a crise que se vem estudando é acima de

tudo, como percebeu Orlando Gomes106

, uma síntese “do

desajustamento espiritual dos tempos presentes”. Com a

queda do índice de aprovisionamento da espiritualidade,

entrou em crise a própria cultura da qual o Direito e o

Estado são das mais importantes manifestações. Eis a

razão pela qual, em “ultima ratio”, nos defrontamos com

uma crise da Cultura, isto é, do próprio homem em sua

trajetória histórica, e não ùnicamente como uma crise de

clases como querem os marxistas.

O problema da reformulação do homem, necessária para

uma democracia integral, encontra solução na educação

adequada.

“O hábito, confessou João Lyra Filho107

, faz-me

repetir que a instrução é a arma de cabeceira da

democracia”.

Adiante concluiremos melhor o pensamento.

Alguns, como Vordú, consideram a Democracia

uma forma de Estado, espécie de sociedade estatizada;

outros a enquadram como forma de Gôverno; finalmente

terceiros a concebem como um método, ponto de vista

encampado pela Constituição Italiana (art. 49): “Tutti i

citadini hanno diritto di associarsi liberamente in partiti

106 “A Crise do Direito”, pg. 5, Max Limonad, 1955. 107 “Universidade e Democracia”, pg. 5, Rio s/d.

Page 82: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

per concorrere com metodo democratico a determinare la

politica nazionale”.

Para nós a Democracia é forma de Gôverno,

modo de ser do Poder Político, reflexo da ordem social,

representando o “estuário das manifestações intrínsecas”,

na feliz expressão de João de Deus Lacerda Menna

Barreto108

. O Preâmbulo da Constituição de 1946 referia-

se a “regime democrático”, e embora haja discordâncias

na doutrina, entendemos que a Forma de Gôverno se

complementa com o Regime, que pode ser republicano,

monárquico e aristocrático, sendo um “prius”, com

relação a êle. Guelli (op. cit., pg. 43) conceitua o regime

como a “realização do princípio político, que informa a

relação fundamental de uma relação estadual, no

princípio jurídico constitucional da mesma e,

tendencialmente, em todo o seu ordenamento jurídico”.

Em trabalho de fundo culturológico afirma Nelson

Saldanha109

que “o regime pressupõe a forma sôbre cujas

possibilidades decide as variações”, O Sistema de

governo, por sua vez, que pode ser presidencial,

parlamentar e colegiado, é, em suma, modo de

governação do Estado. Uma efetiva percepção do

histórico é, aliás, necessária para as distinções feitas.

108 “Estado e Gôverno Através das Formas”, pg. 14, Rio, 1962. 109 “As Formas de Gôverno e o Ponto de Vista Histórico”, pg. 38,

Belo Horizonte, 1960.

Page 83: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Em trabalho substancioso110

Leslie Lipson

defende o ponto de vista de que a Política, inquieta área

de controvérsias, pode ser compendiada em certos

problemas fundamentais que não variam, a não ser nas

soluções apresentadas. O campo que estamos

percorrendo, levados por nosso objetivo, embora

delimitado por questões básicas do Estado e da Cultura, e

por isso mesmo, é içado de dificuldades e obstáculos,

compensados já pela autenticidade dos propósitos que

almejamos demonstrar.

Não identificamos Civilização e Cultura. Para nós

a primeira é um ascender no plano axiológico material, e

a segunda um evolver integral e valorativo da

espiritualidade, que assim vai sendo acondicionada. É a

orientação de Simmel e Berdiaeff. Os estágios que uma e

outra passam através os períodos históricos constituem o

progresso que, para Condorcet, é contínuo e indefinido, o

que Nicéforo quis comprovar estatìsticamente. Não se

confunda, todavia, progresso e evolução. Esta é o

movimento de transformação dos sêres animados e

inanimados, como exprime Ferraz Alvim111

. Para nós, a

Civilização é um meio e a cultura um fim, no que

estamos com MacIver112

: “Nossa cultura é o que somos e

a civilização o que usamos (meios)”. Passagem para a

Cultura, a Civilização não pode ser considerada um

“fim”, sob pena de esclorosamento daquela, como

doutrinou Spengler que, como Sorokin (e como

Schumpeter com relação ao Capitalismo), admite ser a

110 “Os Grandes Problemas da Ciência Política”, Zahar, 1967. 111 “Sociologia”. 112 “O Estado”, Livr. Martins, 1945.

Page 84: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Cultura regulada por normas idênticas às que presidem os

sêres vivos, sem se precipitar, é evidente, num

organicismo novecentista.

A subordinação do Estado à Cultura, em

prosseguimento à sua submissão ao Direito,

possibilitando a perfeita integração de suas entidades

constitutivas, parece-nos, pois, lógica. “O Estado

democrático – Estado eminentemente social – pensa

Oldegar Franco Vieira113

, só a Cultura, com efeito, pode

realizá-lo, pois a Cultura, compreensiva do Direito, não

se conclui na negação do homem pelo homem”.

Vedel dispôs-se a “envisager les problèmes du

droit constitutionel sous l’angle de la signification de la

démocratie”, impregnando sua construção fortemente

dêsse sentimento, cuja inspiração é a liberdade limitada

pelo bem de todos. A procura da “democracia real” e não

da “democracia formal” é por isso dever dos estudiosos

da Ciência Política.

113 “Introdução ao Direito Público”, pg. 111, Liv. Progresso, 1957.

Page 85: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

A TEORIA DEMOCRÁTICA

Burdeau que, com propriedade, sentenciou ser a

democracia “uma filosofia, um modo de viver, uma

religião e, quase acessòriamente, uma forma de

gôverno”114

concebe duas espécies de Democracia: a

Democracia Governada, forma primitiva ligada a uma

concepção liberal da função estatal, e a Democracia

Governante, aquela em que a vontade do povo real

domina, forma jungida a uma interpretação social da

missão do Poder, que deve ser forte sem se tornar

arbitrário. O Estado não é apenas a ordem jurídica, mas

substancialmente é êle um poder embasado nessa ordem,

razão porque está em planosuperior aos indivíduos que o

compõe e que estão subordinados às suas prescrições.

Adoto êsse postulado porquanto, como se lê em Kelsen, a

“Teoria Geral do Estado só deixará de nos aparecer como

um agregado, mais ou menos arbitrário, de questões

heteróclitas, só demonstrará a sua unidade científica,

quando conseguir estudar e resolver todos os problemas

reunidos sob seu nome, por intermédio de um só

princípio fundamental”115

.

Entendemos que o problema democrático está no

cerne da Sociologia Política e que todas as questões

devem ser estudadas à luz daquela magna preocupação. A

leitura de nossa dissertação revela claramente que

colocamos o interêsse público acima do bem individual

que a êle se subordina, ensejando uma democracia

enérgica, discricionária dentro dos moldes legais, bem

distante, considere-se, de quaisquer despotismos, pela

conciliação entre o Direito e o Poder. O liberalismo

114 “A Democracia”, pg. 9, Lisboa, 1962. 115 “Teoria Geral do Estado”, pg. 6, Coimbra, 1951.

Page 86: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

atento admite mesmo nêsse sentido um Estado forte, o

“Liberales Machtstaat”. A Política de hoje não é mais,

como irònicamente acentuou Valéry, a “arte de impedir

que nos envolvamos naquilo que nos diz respeito”,

porque a gravidade de suas questões impõem ao homem

a responsabilidade de uma escolha. Daí um nexo entre

doutrinação e heroismo pela fidelidade que se exige

àquela a sua própria vocação.

A situação política não mais admite que a

consideremos como um contrato leonino em que o

indivíduo só tem direitos e o Estado deveres, ou que

aqueles superem êsses. “Jus et obligata sunt correlata”,

admoestavam os romanos, e é dêsse equilíbrio que se

deve nutrir a verdadeira Democracia, sob pena de

advento de extremismos.

Se a liberdade, conclamou Machado Paupério,

“pode levar o espírito à libertação mais completa, pode-o

arrastar também à mais total escravidão”. Era essa a idéia

de Platão, na “República”: “El exceso de liberdad em el

indivíduo y en el Estado debe llevar a un exceso de

servidumbre”.

A Democracia não é imcompatível, pois, com a

presença e a intervenção do Estado, no interêsse coletivo

e na sua missão de Cultura, estando, por isso, sob o

reinado “ab aeterno” do Direito, como prega Haroldo

Valadão116

.

Marigildo de Camargo Braga117

considera que “o

Estado Liberal não podia prevalecer e que o

individualismo conduz à destruição da moralidade

pública, entregando o homem à sua própria sorte,

116 “Direito, Solidariedade, Justiça, pg. 163, José Olympio, 1943. 117 “Ingerência do Estado na vida do trabalhador”, pg. 63

Page 87: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

seguindo o destino que lhe convier”.

O espírito alerta de Paulino Jacques118

já havia

mostrado, por sua vez, que “nem a ditadura do

proletariado, nem a democracia capitalista se

compadecem com as necessidades sociais e os interesses

individuais de nossos dias”.

Com pertinência à realidade brasileira, é oportuno

o depoimento de Sérgio Buarque de Holanda119

: “O

Estado, entre nós, de fato não precisa e não deve ser

despótico – o despotismo condiz mal com a doçura de

nosso gênio – mas necessita de pujança e de compostura,

de grandeza e de solicitude, ao mesmo tempo, se quiser

adquirir alguma fôrça e também essa respeitabilidade que

os nossos pais ibéricos nos ensinaram a considerar como

a virtude suprema entre tôdas”.

Aderson de Menezes, em bem informado

compêndio120

, percebera também a necessidade de não

ser abalada a harmonia do binômio Estado-indivíduo.

Cambo assoalhara que “a mais funesta manifestação da

demagogia é a constante exaltação da democracia-direito,

sem que aí se fale jamais na democracia-dever”, e

Oliveira Vianna121

já explicara que, entre nós, mui

peculiarmente vive a “democracia em estado atomístico”,

fundando-se ùnicamente no indivíduo.

Também Themístocles Cavalcanti122

, “com uma

consideração tôda particular pelo interêsse social”,

mostra as inconveniências do Estado liberal e os abusos

do individualismo.

118 “Democracia Parlamentar”, pg. 33, Rio, 1947. 119 “Raízes do Brasil”, pg. 142, José Olympio, 1936. 120 “Teoria Geral do Estado”, pg. 69, Forense, 1960. 121 “Problemas de Política Objetiva”, pg. 120, Ed. Nac., 1930. 122 “Teoria Geral do Estado”, pg. 115, Borsoi, 1958.

Page 88: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA

Devidamente organizada, em sua totalidade

cultural, a democracia necessita de energia para manter-

se e garantir a ordem social. “Es necesario que haya un

Gobierno flerte, exortou o grande democrata Angel

Ossório123

para impedir que nazca un Gobierno de fuerza.

Que son cosas completamente distinctas”. Era também o

pensar de Roosevelt. Nós que não aceitamos a

Democracia Política, como já dissemos, e sim a

Democracia Social, pactuamos com José Augusto,

quando escreve a respeito dessa última que “prega a

supressão da luta de classes, buscando realizar a idéia de

socialização humana e criar, graças às condições de

existência que sorgirão, e graças também a uma educação

adequada à juventude, a nova consciência solidária dessa

socialização”. Realizar-se-á, então, “o mundo nôvo da

solidariedade e da liberdade”, apregoado por Max Adler.

E timbrando mais uma vez o papel da instrução,

lembramos o ensinamento de William Robson: “A

democracia não é sòmente a forma mais difícil de

govêrno. É também aquela que exige maior

conhecimentos tanto dos governantes como dos

governados”124

.

Quando na presente exposição usamos os

vocábulos “social” e “socialista”, é conveniente deixar

claro, o fazemos como antônimos de “individual” e

“pessoal”, preferencialmente, sem que necessàriamente

traduzam conceitos próprios do materialismo dialético.

Desejamos, isso sim, alicerçar o Direito e o Estado, como

123 “Nociones de Derecho Político”, pg. 69, 3º ed. Atlantida, 1963. 124 “O Ensino Universitário das Ciências Sociais”, pg. 123, Fund.

Getúlio Vargas, 1958.

Page 89: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

fala Duguit, “sôbre o caráter social e as obrigações

sociais do homem”. Wilson de Lima Bastos125

, como

Maritain, estima necessário indicar a verdadeira essência

da democracia e realizá-la em tôda sua autenticidade.

Realmente, está aí a solução para a grande crise de nosso

tempo, em “que los valores fundamentales de la cultura,

denunciou Bodenheimer, están siendo desafiados y

atacados”.126

Quando a República, no Brasil, somou trinta e

cinco anos, vários intelectuais depuseram sôbre ela no

livro “À Margem da História da República” que, em

conclusão, é um registro de decepções. Carneiro Leão

assinalava ser o Brasil propriedade de grupos; Celso

Vieira, apontava o desajustamento entre a Constituição e

o homem; Gilberto Amado declarava que, por ser a

educação inadequada, inadequados eram as leis, as

instituições e o mundo político social, tese absolutamente

certa. Jonathas Serrano, evocando a vibrante figura de

pregador do padre Julio Maria, frizava a necessidade de a

Igreja ir ao encontro do povo, tema retomado pelo

Concílio do Vaticano II; Oliveira Viana mostrava a de se

substituir uma concepção estética da Constituição pela

sua adequação; Pontes de Miranda proclamava a falência

do regime, caracterizado por seu desamor às coisas

públicas. Nêsse ról de críticas estão Nuno Pinheiro e

Tristão de Athaide. Vicente Licínio Cardoso acentuava a

carência de um Idealismo Orgânico e Construtor

Nacional. As únicas exceções foram Ronald de Carvalho

e Tasso da Silveira. E porque a República estava em

crise? Exatamente pela crise de sentimento democrático

que se realiza numa base popular dinâmica.

125 “Crise de Autoridade”, pg. 121, Juiz de Fora, 1956. 126 “Teoria del Derecho”, pg. 9, 3ª ed., Fondo de Cultura, 1964.

Page 90: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Nós nos filiamos à Democracia Cristã e

modestamente adotamos as atitudes de sua vanguarda, na

qual, é evidente, sobressaem Luigi Sturzo e Primo

Mazzolari, como apóstolos da Igreja Militante em sua

faceta mais realista e dinâmica.

“L’espressione ‘democracia cristiana’ (qualque

volta sostituita anche dal termine ‘socialismo cristiano’ o

‘cristianismo sociale’) sta a significare, assenta Wolf

Giusti127

, uma corrente cattolica che, in considerazione

dei programi social dela democrazia, del socialismo e poi

dei moderni movimenti totalitari, ha voluto congiungere

l’osservanza per la fede cattolica com il riconoscimiento

dell’esistenza di uma “questione sociale”, da risolversi

secondo certi legitimi desideri e bidogni dele classe

lavoratrici”.

Concebendo o humanismo como um princípio de

integração do homem na vida social, como indica Yves

Simon, e o Poder como uma integração funcional da vida

comum estatizada, é evidente que para nós a Demoracia

não só tem caráter quantitativo, como relação à vontade

da maioria, como qualitativo pelas dimensões da

integração que a justifica. Monti (op. cit., pg. 25) teoriza

que o voto deve ter em mira o bem comum e que “o bem

particular deve ser subordinado ao geral”.

É lógico que acreditamos que só através dos

princípios evangélicos podemos colimar o bem geral e

realizar a Democracia.

Não destoa La Pira (op. cit., pg. 224): “a pessoa

está subordinada ao verdadeiro bem comum social e

político que é sempre, em última análise, o bem integral

da pessoa”. Remeta Plínio Salgado que a Democracia

127 “La Democrazia”, pg. 51, Milão, 1945.

Page 91: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

“vivifica a liberdade dos homens e a autoridade do

Estado, fazendo a primeira fundamento da segunda e a

segunda condição da primeira”128

, estando sua base,

repise-se nos ensinamentos do Evangelho. Eis o motivo

pelo qual a Democracia pode mudar de forma, mas não

de essência. Dissera, exaltadamente, Lamennais (op. cit.,

pg. 156): “O que devemos querer? O bem de todos,

sacrificando-lhe, se necessário, o nosso bem pessoal”.

Em consequência, “quanto mais confundirmos a

nossa vontade com a do Estado, tanto mais

completamente livres nos tornamos” (Laski), mesmo

porque o Estado tem lutado em pról do indivíduo contra

os grupos secundários que o oprimem. “Rompeu-lhe as

cadeias e abriu-lhe novos horizontes”, completa Lévy-

Bruhl (op. cit., pg. 22).

Não se pode mais falar no “Estado boleeiro”,

baseado naquela famosa passagem de Courier, em que se

via o Poder Político, como um símbolo, dirigindo a

carruagem, onde o indivíduo lhe apontava os caminhos.

Mortos estão, não só o liberalismo político, em

sua forma pura, como o liberalismo econômico, assim

definido por Pinto Antunes: “A intervenção do Estado na

ordem econômica só se justifica para garantia do direito à

propriedade privada em tôda sua compreensão e

extensão. O resto vai por si, num automatismo

impressionante, a modo de uma harmonia preestabelecida

por Espírito Superior”129

; na vontade da maioria,

conteúdo da forma democrática, vamos o respeito pela

minoria devidamente representada e cujas idéias poderão

tornar-se maioria na flutuação histórica, jamais com o

128 “O Conceito Cristão da Democracia”, São Paulo, 1951. 129 “Os Direitos do Homem no Regime Capitalista”, pg. 28, São

Paulo, 1947.

Page 92: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

caráter de onipotência. Essa circulação é aliás fenômeno

normal no campo socio-político.

Mas é exatamente para a realização da idéia

democrática que se torna necessário preparar os homens

que irão constituir a categoria dirigente, por ser

inseparável a idéia de organização social a idéia de

oligárquico, no bom sentido, de uma elite governamental

que se impõe seja difundida.

“A fórmula do ‘Govêrno do povo pelo povo’ diz

Duverger, deve ser substituída por esta: ‘Govêrno do

poro por uma elite nascida do povo”.

A minoria criadora de cultura deve ser preparada

no sentido de orientar as grandes massas, esclarecê-las e

aparelhá-las para que delas brotem novas elites. A

monoria séria então como um reflexo ensejado pela

vocação democrática da maioria que com ela, sua “longa

manus”, se harmonizaria na consecução do bem comum.

Gasset, a quem preocupou o problema da “rebelião das

massas”, e com o qual afinamos, de modo geral, via a

organização das elites, num sentido educacional, como a

salvaguarda da própria Cultura.

A Democracia só pode concretizar-se, pois, com a

formação de classes dirigentes perfeitamente integradas

nas reivindicações da maioria, maioria que um dia será

também criadora, abrindo-se como um pálio por todas as

nações, sedimentando a paz pela fraternidade e pelo

Direito, dentro de um Estado robustecido pelo interêsse

coletivo na culminância de um processo cultural.

Page 93: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

CONCEITO DE DEMOCRACIA

Pronunciou-se Fondizi130

: “La educación

permitirá elevar, aún más, a las masas, las que, lenta y

seguramente, se van incorporando a la vida de la cultura;

además permitirá orientar, em sentido espiritual, ciertas

tendencias equivocadas del hombre moderno, debidas,

más que nada, al médio em que vivió. Con una y otra

cosa, quedará abierta a todos la senda que conduce a la

única y verdadera vida: la del espíritú”. O conceito de

Democracia de Thomaz Cooper, em 1795, “é o govêrno

do povo e para o povo”, depois retomado e completado

por Lincoln, é hoje incompleto, ainda mais que a

Democracia se apresenta como fé, sistema de vida e

objetivo universal, na indicação de Powel Davies131

.

Aceitável, “a grosso modo”, o de Merrian132

: “é uma

forma de organização política em que o contrôle geral e a

direção dos interêsses coletivos são habitualmente

exercidos segundo convenções e normas que garantem a

participação e o consenso dos governados”.

Seja-nos lícito, entrementes, exprimir o nosso

conceito: Democracia é a forma enérgica de govêrno

exercida por elites dirigentes, para isso preparadas, que,

por delegação da vontade da maioria, respeitadora das

prerrogativas da minoria, objetiva o bem comum através

o desenvolvimento de um processo de Cultura.

130 “El Estado Moderno”, pg. 197, Depalma, 1954. 131 “Uma Definição da Democracia”, Biblioteca do Exército, 1956. 132 “Que é Democracia”, pg. 30, Ed. Assunção, 1947.

Page 94: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

CONCLUSÃO

Estamos cinvictos que a sua essência está na

mensagem ainda não seguida dos evangelhos que

assinala o ápice de um processo histórico no mundo

antigo e à qual devemos retornar para transpôr a crise de

consciências que é, em suma, a crise do próprio Homem.

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Page 95: Estado Democracia e Cultura - Fernando Whitaker Da Cunha

Pedimos escusas pela seguinte

ERRATA

Pg. 35 As palavras de Cristo referidas no texto

pertencem ao “Sermão da Montanha”.

Pg. 37 É de autoria de Carlo Prina o trabalho:

“Dante Político e Matemático”, colocado

ao pé da pg. 37.

Pg. 37 É de autoria de Inácio Silva Telles o

“Conceito de Democracia no Mundo

Contemporâneo” e de Cirell Czerna “A

Justiça como História”, onde estuda

Salutatti, trabalho que faz parte de

“Ensaios de Filosofia do Direito” (vários

autores). Saraiva, 1952.

Pg. 41 A citação de Kant consta de “Lo Bello e

lo Sublime”, pg. 14. Espasa-Calpe,

Madrid, 1957, sendo que o trabalho que

figura em seu lugar se encontra

devidamente colocado na pg. 49.

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