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Fernando Whitaker da Cunha
ESTADO, DEMOCRACIA E CULTURA
****
1967
SUMÁRIO
Pág.
O PÓSGUERRA E A DEMOCRACIA CRISTÃ ............ 3
UTOPIA E IDEAL HISTÓRICO .................................. 19
A DEMOCRACIA ANTIGA ......................................... 20
HERÁCLITO E A POLÍTICA ...................................... 26
O ADVENTO DO CRISTIANISMO ............................ 30
EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LIBERAL ............. 36
BURGUESIA E LIBERALISMO ................................. 48
ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE CULTURA ... 53
A SEPARAÇÃO DE FUNÇÕES .................................. 56
OS DOIS GLÁDIOS ..................................................... 71
O “WELTANSCHAUUNGSSTAAT” ........................... 73
ESTADO-MEIO E ESTADO-FIM ................................ 74
A CRISE DA CULTURA .............................................. 79
CIVILIZAÇÃO E CULTURA ...................................... 83
A TEORIA DEMOCRÁTICA ....................................... 85
EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA.................................. 88
CONCEITO DE DEMOCRACIA ................................. 93
CONCLUSÃO ............................................................... 94
O PÓSGUERRA E A DEMOCRACIA CRISTÃ
Os períodos de pós-guerra se caracterizam por
uma extensa faina de reconstrução em todos os setores,
tornando, por vêzes, difícil, quando não impossível, que
dêles se trace um retrato completo.
As guerras e as revoluções, fenômenos
impostergáveis, criam novas cosmovisões não só para as
nações vencidas e neutras, mas principalmente para as
potências vitoriosas que assim reformulam a própria
conduta política, revendo êrros de perspectiva. Mas um
certo cáos pósbélico é inevitável pelas próprias
circunstâncias. Limitando-se ao aspecto legislativo
consignou Carlos Ollero1: “A quien hoy quiera estudiar
em España el Derecho Constitucional de la postguerra,
no le será muy fácil cumplir su propósito, especialmente
por dos razones: una, la cantidad de documentos de essa
índole producidos em estos últimos años; outra, el
entorpecimiento que para tal labor significa no encontrar
a mano los textos necesarios”.
Mais do que nunca os problemas pósbélicos são
problemas de reconstrução política, mostrando a
iniludível união do Direito Constitucional e da Ciência
Política, mas são problemas labirínticos em que as
doutrinas esgrimam com impaciência e mesmo com
incerteza em face das novas condições sócio-econômicas
que ousaram enfrentar. Apontar, nessa conjuntura,
tendências, ou como dizia Vicente Rao, idéias, ou
práticas, “em processo, em marcha, para a consecução de
um fim”, não é tarefa fácil ao estudioso.
Guétzévitch apontou como tonalidade
1 “El Derecho Constitucional de la Postguerra”, Barcelona, 1949, pg.
5.
predominante do primeiro pósguerra a unidade e a
supremacia do Direito, expressas no fenômeno que
denominou, como se sabe, de racionalização do poder,
vale dizer a “tendência para se sujeitar ao Direito todo o
conjunto da vida coletiva”.
O apêgo ao Direito seria assim uma tábua de
salvação para evitar as guerras e mesmo as revoluções.
Pinto Antunes, entre nós, bem estudou a concepção da
Democracia Jurídica, em seu opinar a “forma definitiva
de govêrno”2.
O primeiro pósguerra, por isso, consagrou a
predominância do Parlamentarismo temeroso de conferir,
ao Executivo, prerrogativas maiores, embora concedesse
ao Gabinete importantes funções. Essa inópia do
Executivo, por sua vez, gerou uma certa instabilidade
política, de que se aproveitaram ideologias para
robustecerem novamente o Executivo, como gestor de
um Estado Orgânico ou Totalitário, lipidarmente definido
por John Baker, como aquêle sistema de govêrno “em
que os atos dos indivíduos são em grande parte
controlados por uma autoridade central planificadora”3.
Em tal espécie de Estado se implanta um princípio
monárquico, tendo o Direito apenas valor instrumental.
Afirmava Hitler que “a verdade é um fenômeno
social, e como qualquer outro fenômeno social tem cmoo
limites o proveito ou o dano que proporciona à
comunidade.” Freud lamentava que, em certos lugares,
perdesse a própria ciência a sua imparcialidade, porque
se apaixonou4. Percebe-se assim como certa supremacia
do Direito pode degenerar no materialismo jurídico dos
regimes de força, negadores do próprio Direito.
2 “Raciocracia”, pg. 83. São Paulo, 1933. 3 “A Ciência e o Estado Planificado”, pg. 14, Coimbra 1947. 4 “Psicanálise dos Tempos Neuróticos”, pg. 21 s/d.
Guetzévitch alertara5 que determinadas constituições não
davam “a necessária competência ao Executivo,
estabelecendo o primado absoluto do Legislativo”, por
sua vez enfraquecido pelas disputas partidárias.
Ao que pensamos não é o primado dêste ou
daquêle Poder que irá colimar a ordem democrática
almejada pela técnica constitucional, que é uma “técnica
de liberdade”, mas o estabelecimento de um poderoso
sistema de “freios e contrapesos”, tal qual nos legou a
Constituição dos Estados Unidos, insuperável lição de
sabedoria política.
Como se observou ainda, o constitucionalismo do
anterior pósguerra fulminou o liberalismo clássico,
ampliou os direitos sociais, protegeu as minorias
nacionais, prestigiou a Câmara baixa e extendeu
consideràvelmente os institutos do Referendum (votação
popular) e da Iniciativa Popular. Conhecida a
classificação da Democracia em direta, semi-direta e
indireta, os mencionados tipos jurídicos não poderiam
pertencer, por sua natureza, à última das formas
mencionadas, repelindo mesmo o art. 59 da Constituição
de 1967 a intervenção popular na iniciativa das leis,
tarefa atribuída a qualquer membro da Câmara ou
Senado, ao Presidente da República, e aos Tribunais
Federais com jurisdição em todo o território nacional. O
Referendum é uma espécie de consulta popular que
obriga o poder consultante, havendo, todavia, consultas
que objetivam apenas auscultar a opinião pública, não
traçando limites à ação governamental e podendo existir
na Democracia Indireta. Uma lei votada, antes de vigir é
levada à consideração do povo que a referenda ou não.
Distingue-se o referendum pròpriamente dito do
5 “As Novas Tendências do Direito Constitucional”, p. 25, Cia. ed.
Nac. 1933.
referendum facultativo ou Veto Popular, onde a lei com
fôrça, por já revestida de suas formalidades, é levada, em
certo prazo, à apreciação popular para saver se ela se
opõe ou não à sua aplicação, e do referendum
consultativo, no qual se submete, não uma lei feita, mas
uma lei a fazer. O Plebiscito é também instituto no qual a
decisão popular é que confere, ou não, valor jurídico ao
ato. Contudo, é fenômeno de forma democrática diversa
da do Referendum e do Veto Popular. Duguit considera-o
próprio do govêrno representativo, e Nelson de Souza
Sampaio, do govêrno direto, discrepando ambos ainda
quanto ao Referendum, por estimar o autor francês que
êle é elemento da forma democrática direta e o brasileiro
por enquadrá-lo na forma semi-direta, juntamente com o
Veto Popular. Pensamos, apesar de a matéria não ser
pacífica, que o Referendum pode existir quer na
democracia Direta, quer na Semi-Direta, e que o
Plebiscito pode surgir tanto no govêrno direto como no
representativo, uma vez que, como preleciona o próprio
Duguit, o povo pode delegar poderes, por via
plebiscitária, a um homem e encarregá-lo de fazer uma
Constituição.
Interessante feição democrática tem o Recall
(conforme a prática americana, revogação do mandato de
representantes e juízes eletivos pleiteado por um certo
número de eleitores, obrigados a prestar caução
prèviamente, para garantir as despesas de reeleição do
“recalled”, caso êste a consiga), usado principalmente
nos Estados Unidos e na Suíça. A União Soviética, pelo
art. 147 de sua Constituição o admite apenas para os
cargos legislativos.
Segundo Darcy Azambuja, em seu conhecido
manual de Teoria do Estado, “entre nós, a Constituição
do Rio Grande do Sul, de 14 de julho de 1891, admitia a
'revogação do mandato' de deputado à Assembléia dos
Representantes e dos Intendentes Municipais”. Era,
contudo, isso uma sobrevivência retardatária do Mandato
Imperativo, e não o “recall” como se o concebe.
A supremacia do Direito, na forma romântica com
que a sintetizou o primeiro pósguerra, foi uma das causas
da segunda grande conflagração mundial. A Liga das
Nações, sem qualquer eficácia, pretendia, desconhecendo
as realidades, resolver, em torno de mesas de chá,
problemas cruciantes de ordem internacional, sendo certo
que seus mais respeitáveis paladinos foram os primeiros,
como demonstrou Luis Schwalbach6, “a afastarem do seu
veredito as questões de importância capital, definhando
assim sua missão”.
A Itália ocupou Corfu; a Inglaterra agiu
descomedidamente no Egito e a França e a Espanha,
fazendo parte dêsse coral de violências, não aceitaram
qualquer arbitragem na questão do noroeste africano.
Resta saber a situação do segundo pósguerra, em
têrmos gerais, e verificar se êle expurgou os êrros
cometidos pelo primeiro.
Qualquer digressão de Política Internacional exige
de expositor, como o reclamou Barcia Telles7 tomada de
posição, uma vez que se a construção oferecida não tiver
outro mérito, deve ao menos “reflejar la visión personal
del autor”.
Nós vemos a problemática do segundo pósguerra
sob o ângulo da unidade do mundo num crivo
democrático autêntico que para isso nutre-se em suas
raízes, ansiosos, como Freeman8, em lapidar estudo, de
6 “O Mundo depois da Grande Guerra”, pg. 117, Lisboa s/d. 7 “El Problema de la Unidad del Mundo Posbélico”, pg. 9, São
Paulo, 1953. 8 “Le Dévelopement de la Contitution Anglaise”, pg. 2, Paris, 1877.
contemplar “pour la première fois la liberté face a face
dans sa plus pure et plus antique forme”.
Por essa razão, não podemos deixar de denunciar
o renascimento dos perigosos nacionalismos e do
primeiro pósguerra, como o incremento do Neo-Nazismo
do Neo-Fascismo, em grande parte do mundo.
O Neo-Nazismo encontrou sucessor, na
Alemanha, no Partido Nacional Democrata que, em Hess,
ganhou oito cadeiras no Parlamento, e o Neo-Fascismo
no Movimento Social Italiano. Tanto um como outro já se
fazem sentir, na Inglaterra, na Holanda, na França e nos
países escandinavos, como revela Ana Elisabeth
Kislhorn9, mas principalmente acrescentamos, nos
Estados Unidos, onde organizações secretas e outras,
como a “John Birch Society”, aspiram restaurar o
totalitarismo da direita, às escancaras.
O segundo pósguerra, ao lado de propiciar o
confronto entre a União Soviética e os Estados Unidos,
possibilitou o fortalecimento das esquerdas, inclusive das
não comunistas, cedendo a democracia política lugar à
democracia social. Como ensina Pablo Verdú existem, no
mundo atual, três formas de govêrno: a) as Repúblicas
Clássicas; b) as Repúblicas Progressistas; c) os Estados
Totalitários.
Os últimos, de que são exemplos Portugal,
Espanha, Paraguai, entre outros, têm insignificante papel
político pelo esquema retardatário que os caracteriza. O
ideal democrático, hodiernamente na prática, coloca os
dois blocos em que o mundo está dividido, devendo-se
notar que em cada uma delas existem dissidências,
embora Drago Ivanovic10
pregue , sem razão, a unidade
do bloco socialista, pois o próprio Titismo se apresenta
9 “Dicionário de Têrmos Políticos”, pg. 135, S.P., s/d. 10 “A Ioguslávia de Tito”, Ed. Saraiva, 1963.
como forma de realismo político superior à soviética,
para não mencionarmos a aludida discrepância ideológica
sino-russam benéfica à paz, uma vez que a elevação
paulatina do nível de vida soviético, além de faer
emergir, em têrmos, uma classe média, tornou o povo,
agora sem o temor do Ocidente que antes possuia,
amante de seus pequenos confôrtos, considerando que a
solução para o problema de suas divergências com o
mundo capitalista, pode encontrar outro meio que não a
guerra, como quer a China, a qual pouco teria a perder na
hipótese de uma conflagração. Os chineses, ao lado dos
quais se encontram os trotsquistas, acusam de
conservadora a burocracia russa que, interpretando
facciosamente Lenin, admite uma certa coexistência
pacífica com o regime oposto. É curioso observar que a
China comunista desconhece os “sovietes”, substituindo-
os pelas “comunas”, forma de organização territorial de
conduta dinâmica que, no entendimento de alguns
autores, não resolve o problema da participação política
das massas. São palavras de J. Posadas11
: “Daí a
necessidade em que tanto insistimos: a comuna não se
opõe ao soviete: o soviete deve existir na própria
comuna”.
O Nasserismo, por sua vez, é um movimento
tìpicamente nacionalista, defendendo no aspecto externo
um movimento pan-árabe, sob a hegemonia do Egito, e
na órbita interna a extinção do feudalismo, o
unipartidarismo, e a implantação, pela Revolução
Egípcia, de um socialismo estatal.
Embora as referidas concepções de Democracia
não sejam inatacáveis, como adiante veremos, o conflito
ideológico entre a democracia clássica e a progressista,
que abrange não só a União Soviética como as chamadas
11 “A Divergência Sino-Soviética”, pg. 104; Doxa Ed. s/d
“Democracias Populares” ou “Novas Democracias”, não
deve resolver-se por meios bélicos, pelo menos no que
concerne às relações russo-americanas, eixo sôbre o qual
repousa o mundo contemporâneo.
Em livro de extraordinária visão política,
publicado durante a última conflagração mundial, e que,
no pósguerra, infuenciou mesmo o comportamento dos
Estados Unidos, Walter Lippmann, além de mostrar a
necessidade do govêrno americano reformular a sua
política externa, que se deu em bons resultados no século
passado despreparou a nação para enfrentar as
vicissitudes da presente centuria, abandonando os
conselhos de Jefferson, Madison e Monroe, provou que
“a história das relações russo-americanas é uma
impressionante demonstração de como para a
determinação de uma política é a ideologia pouco
importante, e decisivo o interêsse nacional”.
Com efeito, como diz Clinton Poole, cada uma
das duas nações acima referidas tem sido sempre
“potencial amiga da outra na retaguarda de inimigos
potenciais”. O passado isso corrobora. Quando, na
Guerra Civil, pretendeu-se reconhecer a Confederação,
contra a qual lutava Lincoln, o Czar enviou suas frotas
aos portos da União; quando da Guerra da Criméia,
mativeram os Estados Unidos estrita neutralidade
diplomática, e quando, após 1918, as tropas americanas
evacuaram Vladisvostoc e a zona marítima da Sibéria, os
Estados Unidos exigiram também a retirada das forças
japonêsas. Embora a antipatia política sempre existente
entre as duas potências, uma tinha sempre interêsse na
preservação da outra. Êsse interêsse nacional,
paradoxalmente, ainda hoje perdura, mórmente quando
se sabe que a China surge como uma perigosa terceira
força, almejando pela primeira vez, uma projeção política
de importância. Os Estados Unidos, por outro lado, que
tinham na China um obstáculo ao imperialismo nipônico,
vêm hoje o antigo Celeste Império ameaçá-los em seus
interêsses e compromissos no Extremo Oriente. Cremos,
pois, viável uma coligação russo-americana para
enfrentar o nôvo perigo. O resto é matéria para
vaticinadores e não para estudiosos da Ciência Política.
Uma das principais consequências teóricas do
segundo pósguerra é a proeminência que se tem
procurado dar ao interêsse da maioria sôbre o da minoria,
e êsse fator pode vir a constituir o denominador comum,
almejado por Bertrand Russel, para colimar a paz
permanente.
A condenação teórica das oligarquias, contudo, só
na concepção cristã da democracia, muito citada nas
pouco seguida, pode adquirir eficácia, pela pregaçaõ da
igualdade de todos perante Deus, da união dos povos e da
condenação do egoismo.
O segundo pósguerra, ligado umbilicalmente ao
primeiro, mostrou, por outro lado, à Igreja a necessidade
de se fazer sentir com mais presença no campo social,
como o comprovam os apostolados esclarecidos de João
XXIII e Paulo VI, que retomaram, atualizando-os, os
roteiros legados por Leão XIII e Pio XI, que ofereciam a
solução da Igreja aos problemas sociais levantados pelo
último século. Embora para Jonathas Serrano12
não exista
um “socialismo cristão”, o que é matéria polêmica, é
certo que não se pode ignorar a interpretação cristã do
fenômeno social, debalde algumas lacunas apontadas
pelo Padre Aloysio Guerra13
.
Aliás, a Igreja não é responsável pelas
interpretações de alguns de seus filhos, que confundem
12 “Filosofia do Direito”, Briguiet, 1942. 13 “O Catolicismo ainda é cristão?”, Fulgor, 1963.
os leigos. A visão que Bossuet tinha do Direito Divino,
forma autocrática e não democrática de edificaão da
soberania, não era, por exemplo, a concepção cristã, e
sim a de um cristão que falava em nome próprio,
objetivando de embasar a Monarquia Absoluta, mesmo
porque o Direito Divino, como se vê em Santo Thomaz,
atuava de maneira abstrata e não concreta.
Dois sacerdotes, a meu ver, se destacam no
segundo pósguerra como pensadores políticos de reais
merecimentos, debalde já anteriormente trabalhassem
com excelentes frutos: Luigi Sturzo e Primo Mazzolari.
Dom Sturzo foi nomeado, então, senator a vita”,
cargo que, na Itália, só pode ser ocupado por cidadãos de
grande projeção moral, intelectual e política, como reza o
art. 59 da Constituição Italiana: “Il Presidente della
Republica puó nominare senatori a vita cinque cittadini
che hanno illustrate la Patria per altissimi meriti nel
cmapo sociale, scientifico, artistico e letterario”.
Do eminente prelado e filósofo, aliás, é que
brotou o Partido Democrata Cristão, na Itália, que serviu
de modêlo aos partidos congêneres do mundo inteiro.
Encarnando, como poucos, o espírito das encíclicas e das
preocupações sociais da Igreja, Dom Sturzo se opusera à
longa noite fascista, mostrando ainda que apesar dos
êrros de perspectiva de alguns antístites a Igreja, embora
polìticamente neutra, a respeito do totalitarismo, não o
era moralmente, por suas próprias tradições. O
esclarecido nacionalismo do sacerdote italiano, que
postulara pelo regime republicano constitucional,
abandonando a instituição monárquica, amenizou mesmo
a situação da Itália, com repação aos aliados, justamente
sospicazes, revelando-lhes a realidade peninsular. Foi por
isso que Summer Welles, prefaciando um de seus livros
escreveu: “Dom Luiz Sturzo está singularmente
qualificado a apresentar o ponto de vista da nova Itália ao
povo dêste país”.14
Em conhecido ensaio15
, Dom Sturzo, dissertando
sôbre a autonomia da Democracia Cristã, cujos
postulados mais ardentemente foram revividos no
segundo pósguerra, fixou-lhe os três limites: o orgânico
(o povo, limitado na sua ação de autogoverno, limita, por
sua vez, seus representantes), o ético (a vontade popular
está limitada por leis naturais e morais), e o político (o
respeito do povo pela ordem constitucional).
Como Dom Luigi, Dom Primo Mazzolari, o
combativo pároco de Bozzolo, usava como lema uma
citação de São Lucas (XX, 19): “ma adesso chi há un
mantello lo venda e compari una spada”. Dêle afirmou
Lorenzo Bedeschi que “concebia uma esquerda católica
ideològicamente democrata, não organizada em quadros,
despida de tôda limitação discriminatória, imune a
qualquer tabu totalitário ou partidário, promotora da
coexistência e da competição no terreno das idéias”.
Pouco se conhece no Brasil do vigoroso
pensamento dêsse homem humilde que surdamente
combateu o Fascismo, e as interessadas comodidades que
êle oferecia à Igreja, em estudos pertinentes e agudos,
que fundaram as “Vanguardas Cristãs” e o jornal
“Adesso” e que estavam impregnados do ensinamento de
São Bernardo: “Se crês no Reino de Deus, deves te
transformar num irrequieto”. O Cristianismo, aliás,
mostrara a necessidade de uma revolução espiritual
(Metanoia).
Dom Primo estava convicto dos deveres da Igreja
Militante e êsse é o ponto nodal de sua atividade como
14 “Depois do Fascismo”, pg. 11, Agir, 1947. 15 “Fundamentos de la Democracia”, pg. 32. Buenos Aires, 1957. Ed.
Atlântico.
escritor. “O cristão, ensinou êle, é obrigado a ser realista:
realismo cristão. Cristo não foi um sonhador; a sia é uma
religião que se encarna”16
. Pio XII que, pràticamente,
inaugurou o diálogo da Igreja com o mundo moderno,
afirmou que a hora da ação já havia soado. Tal a
orientação ainda das encíclicas “Mater et Magistra”,
“Pacem in Terris”, “Ecclesiam Suam” e “Populorum
Progressio”.
Em setembro de 1962, Aldo Moro, penalista de
renome, que ingressara no P.D.C., como Segni, Scelba,
De Gasperi e outros, leu um longo trabalho no Teatro São
Carlos, de Nápoles, por ocasião de um congresso
partidário, onde bem examina a Democracia Cristã, como
aquela que se funda numa “concepción cristana de la vida
y su constante referencia a los valores religiosos,
espirituales y morales que em ella se reafirman”17
.
Eis porque remataria Maritain: “o impulso
democrático surgiu na história, como uma manifestação
temporal da inspiração evangélica”18
.
A Itália, como se sabe, adota um regime
multipartidário, como a França, trazendo-lhe o período
posbélico partidos como o Democrata Cristão, o
Socialismo, o Republicano, o Liberal e outros.
A principal característica da Democracia Cristã,
atualmente, é a “aperture a sinistra” que prevê o contato
com tôdas as esquerdas a fim de colimar certos objetivos
de interêsse coletivo e social, desde que essa aliança não
venha a vulnerar seus princípios. A própria Igreja, aliás,
com essa “abertura” deu o exemplo.
A Democracia Cristã evita a improvisação e o
16 “A Igreja, O Fascismo e a Guerra”, pg. 35, Rio 1966. 17 “La Democracia Cristiana por el Gobierno de país y el desarollo
democrático de la sociedad italiana”. 18 “Cristianismo e Democracia”, pg. 41, Agir, 1949.
preconceito, fundando-se numa sólida ideologia, que não
é instrumento de classes nem de oligarquias, e que
apresenta soluções enraizadas no Evangelho, para as
questões políticas, sociais e econômicas.
Afirmou-se com relação aos Estados Unidos que
“os acontecimentos do período posbélico trouxeram
novas ideias e novas orientações nas relações entre o
movimento sindical e o govêrno e a conseqüência mais
imediata foi a atividade sistemática e permanente da ação
política das forças de trabalhadores”19
.
É evidente que não pretendemos assinalar as
tendências do pósguerra em cada um dos países, tarefa
para uma equipe, mas sim acentuar as principais
características dêsse período que defluem de uma só
causa: a ascenção das esquerdas, quer as comunistas que
as não comunistas, que têm alguns objetivos comuns,
mas que são buscadas por métodos diferentes.
A extinção do colonialismo é disso um exemplo,
sendo um fenômeno inevitável que aguarda sua
oportunidade. Perigosa, pois, a afirmativa de J.P. Costa
Leite20
que identifica “o destino do Ultramar com o
destino da Nação portuguêsa”.
Assim também o Pan-Africanismo, sôbre o qual
nos deu Philippe Decraene excelente síntese21
. O
nacionalismo africano será, aliás, o perigo que uma
coligação russo-americana terá de enfrentar após
solucionar eventualmente o problema chinês ao qual, no
opinar de Doak Barnett22
, “tanto Moscou quanto
Washington ver-se-ão forçados a consagrar uma atenção
crescente nos anos vindouros”.
19 “Realismo Social”, Cad. 2, pg. 144. 20 “Colonialismo Internacional”, pg. 23, Ática, 1967. 21 “O Pan-Africanismo”, Dif. Eur. Liv. 1962. 22 “A China Comunista em Perspectiva”, pg. 102, Ed. CRD 1962.
Conseqüência política das mais importantes do
último pósguerra foi o incremento do Comunismo
Internacional facilitado pelas precárias condições socio-
econômicas, sendo certo que, embora juridicamente não
se possa falar num constitucionalismo nôvo, no referido
período convém apontar o subido interêsse pela
problemática do Partido Político e, nas ordenações de
estrutura filosoviética, o decisivo aparecimento do
“Presidium” (comissões permanentes das assembléias),
com importantes funções executivas e legislativas.
Falando mais aos interesses das classes espoliadas que à
sua razão, o seu sucesso nasceu mais dêsse fator do que
de alguns indiscutíveis méritos de sua ideologia. A luta
ideológica que se vai travar é, por conseguinte, entre a
esquerda comunista ou subversiva e a esquerda não
comunista. A ação daquela só pode ser obstada por uma
reeducação dos próprios govêrnos das nações que sofrem
o seu perigo, dando-se aos desamparados a efetiva
assistência que lhes tem sido adiada ou subtraída por
falsos democratas. Não se pode combater o comunismo
sem combatermos antes a desarmonia social, o egoismo e
a hipersuficiência econômica que lhe servem de caldo
criminógeno. O comunismo ameaça não porque vem de
fora, mas porque encontra dentro das nações
desorganizadas ressonância na miséria e na necessidade,
surgindo como uma solução desesperada, por isso não
lógica, e por conseguinte, errada. Como argumentou o
Professor Ritchie Calder, a “Democracia é uma palavra
que ressoa sem sentido em estômagos vazios”, não
devendo ser o paraíso dos financistas inescrupulosos, na
expressão de Sorel.
É preciso, pois, combater o desequilíbrio social
econômico e a arritmia política para estabelecer uma
eficaz defesa contra o Comunismo Internacional,
devendo-se encarar com reservas o afirmado por Chester
Bowles de que êle “como força ideológica está em
declínio”23
.
A unidade do mundo é uma das aspirações do
mundo atual, que a O.N.U., melhor aparelhada que sua
antecessora, visa favorecer. Desejam-na os comunistas e
os não comunistas. Alguns dêsses últimos, entretando,
querem-na em moldes democráticos e autênticos; com “a
consecução, diria Ann Thomaz, dum Direito
Internacional baseado na moral e na ética”24
; com a
ciência objetivando o conhecimento e não a mera
utilidade e com uma visceral concepção, enfim, dos
direitos humanos.
Os primeiros aspiram a unidade sob o marxismo
totalitário que não é bem internacional, mas universal em
seu último estágio, onde o Direito Internacional deiaria
de existir, pela ausência de nações, e se tornaria um
Direito Público provisòriamente, no caminho do
“comunismo integral” onde não haveria nem Estado, nem
Direito, mas apenas a comunhão comunista na qual
inexistiriam os desníveis sociais e as lutas de classe.
Alguns autores comunistas, entretando, como
Pascinkanis, têm reconsiderado a afirmativa sôbre a
extinção do Direito, admitindo mais que uma
“regulamentação técnica”.
Entre o Direito e o Marxismo, há pois
antagonismos insuperáveis, utilizando o segundo ao
primeiro apenas como uma necessidade provisória e
circunstancial. A finalidade, abstratamente considerada,
dos verdadeiros marxistas, merece admiração, mas não só
23 “Declínio do Comunismo como Forma Ideológica”, pg. 5,
Presença, s/d. 24 “O Comunismo Contra o Direito Internacional”, pg. 107, Saraiva,
1958.
a consideramos inatingível como anti-científica, e nos
opomos a seus processos de consecução por vulnerarem
as liberdades individuais.
UTOPIA E IDEAL HISTÓRICO
Maritain distinguiu entre um Ideal Histórico
Concreto e uma Utopia. A segunda é apenas um “ser de
razão” construído imaginàriamente, “isolado de tôda
existência datada, e de todo clima histórico particular,
exprimindo um máximo absoluto de perfeição social e
política e da arquitetura do qual a minúcia imaginária é
levada tão longe quão possível, por isto que se trata de
um môdelo fictício proposto ao espírito no lugar da
realidade”25
.
O primeiro, todavia, “não é um ser de razão,
porém uma essência ideal realizável”. Entrosado na
experiência humana a Democracia Cristã tem por escopo,
por conseguinte, um Ideal Histórico Concreto e não uma
Utopia, mas para alcançá-lo tem que desenvolver uma
ação política de longo alcance, fundada na realidade.
Eis os motivos pelos quais nós brasileiros que
vivemos os angustiosos capítulos de nossa hipo-
suficiência econômica, precisamos olhar com grande
coragem para nossas verdades históricas, sem quaisquer
dissimulações, pugnando por uma compreensão realista e
autêntica de nossos fenômenos sociais, pois só uma visão
clara do Brasil de hoje dará força e estímulo para a
construção do de amanhã.
A ordem seguida na presente exposição conduz
necessàriamente à reformulação do conceito de
Democracia, umbilicalmente ligado, entre outros, aos
problemas da Representação e dos Partidos Políticos.
25 “Humanismo Integral”, pg. 124, Cia. Ed. Nacional, 1945.
A DEMOCRACIA ANTIGA
Torna-se necessário uma revisão do conceito de
Democracia a fim de que possa êle embasar-se em suas
autênticas e lídimas fontes, e não sirva de rótulo para os
extremismos ou regimes incaracterísticos. “Democracia”
é hoje uma palavra esvaziada de seu humanismo e de seu
significado, despojada de sua categoria de vernáculismo
político para se constituir no “argot” ininteligível das
plataformas eleitorais. E porque êste ensaio não é fruto
apenas de um modesto esfôrço intelectual, mas sobretudo
de um ideal, é mister que façamos neste capítulo, mais
uma vez, a nossa profissão de fé democrática, acretitando
que só o respeito aos direitos humanos, em consonância
com os magnos interêsses do Estado poderão estruturar a
doutrina democrática. Nem o individualismo abusivo e
egoista, nem o coletivismo indecomponível do Estado-
Moloch, mas o equilíbrio entre o Poder e a dignidade
humana, o comando e a liberdade.
Se pelo milagre, admiràvelmente narrado por
Bernardes, um grego ao cultuar as hermas de seus deuses,
não sentisse a passagem dos séculos e, retornando ao
Odeon, percebesse que estava em outra época, mais
confundido ficaria com o significado atribuído à
Democracia que com a mudança dos costumes e dos
comportamentos. “A constituição que nos rege,
proclamou Péricles na importal 'Oração aos mortos de
Atenas', nada tem que invejar às de outros povos; não as
imita; antes, serve-lhes de modêlo; ela recebeu a
denominação de democracia porque seu fim é a utilidade
da maioria e não da minoria”26
.
26 in Antonio Faustino Porto Sobrinho, “Antologia da Eloqüência
Universal”, pg. 17, Rio, 1961.
O fato de o indivíduo viver em função do Estado
não lhe impedia, contudo, de gozar das prerrogativas da
Isonomia, da Isotimia e da Isagoria. Em completa
monografia27
, Paulino Jacques demonstra que a igualdade
perante a lei traduz uma igualdade de condições e
circunstâncias, que Pontes de Miranda estima ser formal
“porque não igualiza materialmente”, sendo certo que a
Isotimia implica numa igualdade de acesso aos cargos
públicos, e a Isagoria numa igualdade de participação na
vida pública, inclusive a liberdade de crítica.
Interessantes, aliás, as observações que, a
respeito, faz Machado Paupério28
. Sabemos, entretanto,
que entre os aqueus a igualdade estava condicionada a
uma determinada estrutura socio-político-econômica que,
a rigor, desconhecia os direitos individuais, conquista dos
tempos modernos, como assinalou Bluntschli, tendo
Jellinek colocado suas origens na Alemanha luterana
como Boutmy as situou na Inglaterra e Janet nos Estados
Unidos. Paulino Jacques estima, entretanto, que o
Princípio da Isonomia se edificou devidamente à luz de
uma colaboração ideológica franco-americano-britânica.
Kant29
considerava que certos problemas, como a
paz, era antes moral do que político ou jurídico. É certo,
porém, que a consagração e a cogência de um princípio
ético só advém com a sua normatividade, embora aceito
pelos espíritos. O Cristianismo, é verdade, defendera a
igualdade dos homens perante Deus, mas só depois de
um complexo processo histórico e uma lenta elaboração
doutrinária, de que muitos clérigos participaram, é que o
liberalismo incorporou o princípio na órbita jurídica.
27 “Da Igualdade Perante a Lei”, Forense, 1ª ed. 1947, ed. 1957. 28 “Exigências da Democracia”, pg. 37, Forense, 1964. 29 “A Paz Perpétua”, Rio 1939.
Razão tinha Aristóteles em observar que se nas coisas
naturais a potência precede o ato, no campo espiritual dá-
se o contrário, pois “as virtudes adquirimo-las sendo
antes ativos”30
. Essa vivência pregava-a o próprio Cristo.
Só após a Idade Média é que na área política se
pôde pretendeer “existir” os direitos individuais,
nascendo a necessidade de seu reconhecimento pela lei.
Lévy-Bruhl, referindo-se à etimologia da palavra
direito, comprova que ela “provém de uma metáfora onde
a figura geométrica adquiriu sentido moral e em seguida
jurídico”31
.
Não é ocasião de fazer um estudo aprofundado do
Estado grego, representado, em substância, pelas
instituições atenienses, mas é mister realçar que a
existência da escravidão, o pouco aprêço aos
estrangeiros, a humilhante posição da mulher e a situação
peculiar dos direitos políticos davam ao sentimento
democrático uma tonalidade completamente diversa
daquela trazida pelo advento do Cristianismo. “O Estado
dos gregos, sublinha Queiroz Lima32
, caracteriza-se pela
sua onipotência; absorve integralmente o indivíduo”.
É oportuno observar que, para Aristóteles, era a
Democracia uma forma viciosa de govêrno popular,
assim como a tirania o era da monarquia e a oligarquia da
aristocracia. E complementava o Filósofo: “Porque la
tirania es señorio de uno encaminado a la utilidad del que
es señor, y la oligarquia es señorio enderezado al
provecho de los ricos y poderosos, y la democracia es
señorio enderezado al provecho de los más necesitados, y
30 “A Ética”, pg. 63, Ed. de Ouro, 1965. 31 “Sociologia do Direito”, pg. 7, Dif. Eur. Livr., 1964. 32 “Teoría do Estado”, pg. 62, 8ª ed., Record, 1957.
gente popular, pero ninguna de ellas se dirige a lo que
conviene a todos comúnmente”33
.
Alguns autores, todavia, interpretam o
pensamento aristotélico como se a demagogia é que fosse
a forma impura da democracia, o que, ao que penso, não
encontra amparo nos textos. Embora se forcejeno sentido
de condicionar a obra de publicista do estagirita, à
política heleno-macedônica, é certo que ela não foi ela
elaborada para justificar Felipe e Alexandre, estimulados
por Isócrates, como se lê em seus “Discursos Históricos e
Políticos”, e sim para uso geral dos reis e dos povos.
“De todos los sectores del espíritu sobre los que
há influido com intensidad inigualada durante dos
milenios la filosofia aristotélica, ensina Kelsen34
,
ninguno há estado tan profundamente penetrado hasta la
más reciente actualidad por las opiniones del filósofo de
Estagira como la teoría ético-política”.
Em verdade é surpreendente como Aristóteles se
faz presente na obra de todos os mais significativos
pensadores políticos.
Os antigos preocupavam-se, deveras, com a
melhor forma de govêrno. São conhecidas de todos a
discussão dos chefes persas, após a derrota de Smerdis,
relatada por Heródoto, as observações de Políbio sôbre o
ecletismo político romano e as ideias de Cícero: “Por
minha parte, creio que a melhor forma política é uma
quarta constituição formada da mescla e da reunião das
três primeiras”35
.
33 “La Política”, pg. 103, Ed. Perrot, 1958. 34 “La Idea del Derecho Natural y Otros Ensayos”, pg. 147, Ed.
Losada, 1946. 35 “Da República”, pg. 48, Athena Ed., s/d.
Observe-se que o conceito antigo da Democracia
não satisfazia espíritos pré-cristãos, preocupados com a
idéia de justiça. De um dêles, asseverou Léon Robin: “O
Estado justo é aquêle que realizar a maior unidade
possível, e, por outro lado, êsse resultado só pode ser
obtido se o govêrno estiver nas mãos de verdadeiros
filósofos”36
.
Em magistral discurso pronunciado no Athénée Royal de
Paris em 181937
, distinguiu Benjamin Constant que o
mundo antigo (especialmente o helênico) se caracterizava
pela “liberté collective, l'assujettissement complet de
l'individu à l'autorité de l'ensemble”.
Coulanges retomou posteriormente a tese para
acrescentar que a natureza cívico-religiosa da “Polis” era
a razão de suas instituições e da onipotência do Poder do
Estado, desconhecedor das liberdades individuais, e que
era preciso estudá-la na devida perspectiva histórica.
Atentando para a íntima relação entre as idéias e o “statu
quo” social, afirmou o escritor: “Atentai para as
instituições dos antigos sem pensar nas suas crenças e
acha-las-eis confusas, extravagantes, inexplicáveis”38
.
As relativas liberdades então gozadas eram
privilégios dos cidadãos, como parte de um todo, e não
das pessoas, num conceito individualista. Hauriou e
Glotz entretanto pensam que as restrições apontadas ao
mundo clássico são injustas e que havia equilíbrio entre
os direitos do homem e o poder público.
O bom entendimento está, entrementes, com
Reale: “Havia, pois, um tipo especial de liberdade, que só
36 “Platão”, pg. 31, 2ª ed., Ed. Inquérito, s/d. 37 “De la Liberté des Anciens Comparée a Celle des Modernes”. 38 “A Cidade Antiga”, 7ª ed., 1º vol., pg. 7 Lisboa, 1950.
brilhava em sua plenitude quando o cidadão afirmava a
sua vontade dentro dos limites da 'polis', decidindo no
tumulto das assembléias”39
.
De qualquer forma, a experiência democrática
surge na Grécia, da qual Roma, filosòficamente, foi mera
legatária, e que nos deixou, como grande lição, na
fórmula do eminente professor paulista, em outro livro40
“a liberdade de pensar como pluralidade de pensar. Daí a
liberdade para os gregos ter sido acima de tudo igual
direito de falar, isegoria, direito de participar igualmente
da direção da coisa pública”.
39 “Horizontes do Direito e da História”, pg. 44, Saraiva, 1956. 40 “Pluralismo e Liberdade, pg. 288, Saraiva, 1963.
HERÁCLITO E A POLÍTICA
As referências que estamos fazendo ao mundo
helênico são necessárias às nossas considerações. Antes
de nelas continuarmos, uma ligeira observação sôbre as
idéias políticas de Heráclito, surgida de nossas pesquisas,
se impõe paralelamente, pelo interêsse que possa
despertar.
Pensador de méritos, Alcântara Nogueira nutriu-
se na cultura grega, na obra de Giordano Bruno e no
panteismo de Spinoza, dando a seus estudos um
iniludível contingente de idéias próprias. O universo para
êle é fonte do conhecimento, uma forma de existência
“superior a anterior a tudo que seja percepção”41
, um
resultado das convergências do espaço, do tempo, da
matéria e da energia. O seu pensamento é finalista e
densamente elaborado.
Em bem urdido livro42
, Nogueira, que apresenta
pontos de contato com Eudoro de Souza e Vicente
Ferreira da Silva, uma intensa e ardente vocação
filosófica, cujo prematuro desaparecimento todos
lastimamos, expende conceitos sôbre Heráclito
(fascinante pensador que, no sentir de Kierkegaard43
,
usava as idéias como armadura, motivo pelo qual
depositou seus escritos no Templo de Diana), que vêm de
encontro às preocupações minhas.
Cosmólogo, estudioso das leis físicas, não
enunciador de princípios lógicos, como desriva da leitura
de Lassalle, influenciado por Hegel44
, Heráclito, por
41 “O Universo”, pg. 10, Pongetti, 1950. 42 “Idéias Vivas e Idéias Mortas”, Org. Simões. 43 “Temor e Tremor”, pg. 115. 44 apud Djacir Meneses “Temas de Política e Filosofia” pg. 136,
vêzes, talvez deliberadamente obscuro (“skoteinós”),
orientou suas especulações no sentido de uma reação a
Parmenides e à Escola de Elea. Seu culto à razão
influenciou, entre muitos outros, Hegel, Nietzsche e
Spengler que muito sorveram na filosofia grega.
Defendeu ainda o princípio do movimento (“panta rhei”)
e do fogo, êsse último visando, como os antigos jônios,
estabelecer um elemento único, “como origem comum de
todos os sêres”, no conceito de Leonel Franca45
, e atingiu
um hilozoismo panteista.
Os estudos sociais, em sua época, estavam ligados
aos conhecimentos físicos e sob cautelas especiais devem
aí ser pesquisadas a Ciência Política e Teoria do Estado,
disciplinas que, a bem dizer, se originaram das atividades
dos sofistas, ampliadores, no julgar de Jaeger, dos
domínios da ciência jônica, essencialmente natural,
objetivando abranger também aspectos sociais e éticos.
Nogueira, com tôda a procedência, divide a
filosofia do efesiano em cosmológica, metafísica e
política, chegando-se à concepção de “uma sociedade
que, obrigatòriamente, possui dominadores e
dominados”. Daí a Duverger, a Duguit, a Gumplowicz e
a Marx, é um passo, e se constata que interpretado de
certa forma, se torna o filósofo grego fonte remota de
extremismo e das teorias da origem violenta do Estado,
mesmo porque obtemperou Mendolfo, “por cierto que
Heráclito con su identidad y conversión mutua de los
opuestos influyó poderosamente sobre Hegel y su
dialéctica, y a pesar de su própria orientación política
reacionaria estimuló, a igual con Hegel con su dialéctica,
a pensadores revolucionarios”.
DASP, 1962.
45 “Noções de História da Filosofia”pg. 34, 16ª ed., AGIR, 1960.
Mas o que deve ser ressaltado também em Heráclito é
seu respeito pela norma legal, como ordenamento
fundamental. “La ley era para Heráclito, está em Werner
Jaeger46
, la expresión más alta del imperio de la razón em
la vida humana, como se deduce de outro de sus
aforismos: 'El pueblo lute por su ley como por sus
muros'”. Santo Thomas e Ihering não seriam estranhos a
essas considerações. Também à idéia de justiça que, no
dizer de Camus, “imaginava estabelecer fronteiras até
para o mundo físico”, era sensível o raciocínio
heraclitiano que registrou: “O sol não ultrapassará seus
limites, pois de outro modo as Erínias que guardam a
Justiça o saberão descobrir”.
Desdobrada do naturalismo, a Ciência Política,
como se viu, ligou-se por outro lado à Moral. Esta
simbiose perdurou por séculos até Maquiavel proclamar a
autonomia do político. Sob aquela sintonia, hoje
defendida por um Sampay, escreveram os antigos,
inclusive Heráclito, sem dúvida o mais destacado
representante da Escola Jônica e que Lahr considera ter
influido no próprio Bergson47
.
A literatura grega refletia a preocupação, acima
apontada, e as obras dos poetas e dramaturgos portavam
significativo conteúdo político. Pode-se mesmo buscar
nela as raízes do “engagement” ou do “compromisso”,
como fruto das tensões básicas da vida social, se bem
afirma Lukacs: “o que é verdadeiramente social na
literatura é a forma”. É na ficção que a Ideologia
encontra, constantemente, seu veículo ideal, mas como já
se observou, os líderes gregos “jamais usaram a arte
como propaganda e nem forçaram o artista a glorificar
46 “Alabanza de la Ley”, pg. 43, Madrid, 1953. 47 “História da Filosofia”, pg. 12, Pôrto, 1933.
qualquer idéia política”. É a opinião encampada por
Adonias Filho48
. Todavia, razão tem Miranda Neto: “Os
detentores do poder, desde os mais remotos tempos,
amaram a servir-se da arte para fins políticos”49
. Não só o
materialismo dialético, mas a direita pretende remontar a
Heráclito, por ter escrito; “tôdas as coisas saem do uno e
o uno sai de tôdas as coisas”. Na verdade, porém, o uno
se identifica com Deus, a quem o pensador deu caráter
mais real que ao múltiplo. Estamos com Joaquim Braga
quando anota que “foi com metafísica que deu origem à
sua concepção dialética da existência”. Êsse o aspecto
também da sua concepção da eternidade da matéria,
como ser ou devir.
48 “Bloqueio Cultural”. 49 “A Arte e o Poder”, in J.C. de 19-3-67.
O ADVENTO DO CRISTIANISMO
Unamuno50
, em obra famosa, demonstrou que o
Cristianismo nos trouxe a luta e não a paz. A luta
espiritual, é de se complementar, pelos valores eternos. A
rebeldia de Cristo foi eminentemente subjetiva, pela
dignificação do homem e da personalidade, pela
espiritualização das velhas escrituras e pela igualdade
que pregou de todos perante Deus. Não o poderiam
entender o materialismo hebráico e tampouco as águias
romanas, temerosas de um surto nacionalista, qual o
desencadeado por Macabeu, e almejado pelo grupo
radical dos Zelotas, na conturbada província da Palestina,
ansiosa pela libertação e esquecidas de o Homem ter
separado o reino de Deus do reino de Cesar e ter dito que
o seu reino não era dêste mundo, embora sentisse
extremado amor pela pátria e fôsse o exemplo do “homo
politicus”. A reforma social do Cristianismo foi uma
conseqüência da reforma ética que empreendeu
desassombradamente contra todos os obstáculos e todos
os preconceitos, encarnando um másculo conformismo.
Não havia em Cristo um inimigo do Estado, mas um
tenaz adversário da hipocrisia das oligarquias, como
Buda combatera a casta sacerdotal, incapazes de se
aperceberem da magnitude da revolução espiritual que se
deflagrava e de reconhecerem a soberania individual. O
equilíbrio, pois, entre o Poder e o Indivíduo estava nas
miras do Reformador que traçava novos padrões de
conduta e de comportamentos, revelando as verdades
substanciais acima dos textos empedernidos.
“Então, narra Mateus51
, chegaram aos pés de Jesus uns
50 15, 2 e 3. 51 15, 2 1 3.
escribas e fariseus de Jerusalem, dizendo: Porque
transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos?
Pois não lavam as mãos quando comem pão. Êle, porém,
respondendo, disse-lhes: Porque transgredis vós também
o mandamento de Deus pela vossa tradição?”
Por mais alegóricas que fossem, as palavras de
Cristo eram de liderança e energia: “Agora, que aquêle
que tem um saco lhe pegue, e pegue também na bolsa; e
que aquêle que nada tem venda a túnica e compre um
gládio”.
Sabendo das oposições que sofreria a sia doutrina,
advertiu Cristo, segundo São Mateus52
: “Não cuidais que
vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a
espada”.
A autenticidade pregada pelo cristianismo teria
que desafiar a moral existente, a rotina estéril e os falsos
valores em pról de uma nova dimensão axiológica. Não
que a doutrina viesse combater a lei mosaica, mas sim
depurá-la, (Não penseis que vim abolir a Lei ou os
Profetas: não os vim abolir, mas levá-los à perfeição”)
por ter ela sido elaborada em virtude da “dureza” dos
corações, conforme o evangelista. Por isso incidia a
censura de Cristo, precìpuamente, sôbre os sacerdotes, os
anciãos e os escribas, jurisconsultos êsses últimos
incapazes de uma interpretação vertical da lei judaica. O
apostolado da reforma ética impunha, em decorrência,
uma transformação radical na consciência jurídica, e por
isso Cristo conhecia profundamente os textos.
E foram êsses homens representativos de uma
socciedade, “sepulcros caiados por fora”, que se
escandalizando com a ceia do Pastor com publicanos e
52 10, 34.
pedadores (“Eu não vim chamar os justos, mas sim os
pecadores, ao arrependimento”), a quebra do jejum e o
trabalho no sábado (“O sábado foi feito por causa do
homem, e não o homem por causa do sábado”), com uma
reformulação do conceito de família (“Porque qualquer
que fizer a vontade de Deus êsse é meu irmão, e minha
irmã e minha mãe”), e outras atitudes, que aguardaram o
momento propício do ódio e da inveja. “E os escribas e
príncipes dos sacerdotes, historia São Marcos53
, tendo
ouvido isto, buscavam ocasião para o matar; pois êles o
temim, porque tôda a multidão estava admirada acerca de
sua doutrina”.
O Cristianismo já se havia tornado então um
movimento social, com repercussões políticas, em
virtude do momento histórico, e essa trajetória era
impossível evitar, malgrado as advertências do próprio
Cristo com pertinência à sua missão. Aguardavam os
judeus o Messias-Rei que iria libertá-los com espadas
chamejantes, e surgir em seu meio Alguém que lhes
falava numa linguagem ardente e misteriosa (“E sem
parábolas nunca lhes falava; porém tudo declarava em
particular aos seus discípulos”, porque “A vós é dado
saber do reino de Deus, mas aos que estão por fora tôdas
estas coisas se dizem por parábolas”), sôbre uma outra
espécie de liberdade, oriunda do amor a Deus, ao
próximo, da fé, da caridade e da consciência. Daí a
beleza do conceito de Leoncio Correia54
: “O Cristianismo
começou vencendo pela poesia”.
Mas êsse deslumbramento pelo Pregador que
tinham as multidões arrefeceu, trabalhadas essas pelos
poderosos inimigos da Verdade, que lhe imputavam
53 11, 18. 54 “Panóplias”, pg. 41, 1955.
blasfêmias, malgrado a disparidade dos depoimentos. O
nacionalismo judáico transformava o processo de Cristo
num caso político. Acreditava-se firmemente, diz
Stratmann55
, que “a missão religiosa do Messias estava
indissolùvelmente ligada à sua missão política”. Não foi
outra a razão pela qual preferiu o povo a Barrabás prêso
em virtude de uma sedição onde matara um homem por
ocasião das festividades da Páscoa. Num país amotinado,
onde sufocara duas importantes revoltas, temeu Pilatos,
por sua vez, soltar o Homem a quem chamavam de “Rei
dos Judeus”, mas temeu por Roma, embora
imotivadamente. E assim a sua atitude estava
condicionada a uma “razão de estado”, mais do que a
uma pusilanimidade.
Embora recomendando que seus milagres não
fossem revelados, Cristo viu-se cercado por uma
poopularidade interessada em favores de tôda a sorte.
Inimigos, admiradores e discípulos, espicaçados pelo
nacionalismo, provocavam-No, vêzes inúmeras, para que
revelasse os Seus poderes. Após a segunda multiplicação
dos pães, os fariseus pediram-lhe “um sinal do céu” (“Em
verdade vos digo que a esta geração não se dará sinal”), e
os Seus seguidores imediatos, no barco, não tinham mais
que um pão. Disse-lhes Cristo: “Olhae, guardae-vos do
fermento dos fariseus e do fermento de Herodes”.
Alguns exegetas, como Pickl, chegam a admitir
que Iscariotes tivesse objetivado, com a traição, que o
Intérprete de Deus manifestasse o seu poderio e se
decidisse pela batalha de libertação nacional. Guardini vê
em Judas um patriota desiludido, distinguindo em Cristo
um perigo para Israel. O fato de constituirem o povo
escolhido por Deus fazia com que os judeus
55 “Cristo e o Estado”, pg. 121, Lisboa, 1956.
considerassem a sua Lei superior à dos outros povos.
Essa Lei fundamentava mesmo o orgulho nacional,
embora polìticamente tenha sido insignificante o papel do
Estado Hebreu na Antiguidade.
A ocupação romana, como era habitual, respeitava
a religião dos vencidos, enquanto não fosse prejudicial
aos interêsses da metrópole nem desconhecesse ao menos
formalmente, a supremacia de seus deuses. Por isso
evitava susceptibilizar os filhos de Israel com a exibição
da imagem dos imperadores, gozando a Palestina uma
relativa liberdade, semi-liberdade, aliás, que alguns
judeus temiam perder, caso explorasse Cristo, num
sentido político, a fé nêle depositada, arregimentando o
povo para a revolução libertadora que, suocada, traria a
escravidão total.
Cristo viveu e morreu sob o signo político. Desde
criança foi considerado “um perigo nacional”, como
relata Stratmann (op. Cit., pg. 76), tendo que fugir de
Herodes, e em sua vida pública foi sempre visto com
desconfiança pelas oligarquias que o ameaçavam,
temerosas de seu prestígio, e receiosas de cederem o
poder, como anunciavam as profecias, debalde pregasse o
Homem as excelências de um mundo subjetivo. O
sentimento de fraternidade universal, evangelizado por
Cristo, não poderia ser entendido por um nacionalismo
estreito, apaixonadamente extraído de uma religião
absorvente que fornecia os princípios, “pontos de
orientação”, diria Sertillanges, para a conduta política e
jurídica.
A mensagem cristã é, no aspecto social, sobretudo
um convite à alteridade e à intersubjetividade, uma
valorização da pessôa, através a consciência. Até então
era o homem a parte de um todo coletivo, simples
conseqüência do Estado. Passava agora, pela sua
dignidade, a merecer o respeito do Poder Político, um e
outro iguais perante a lei divina, dependentes um do
outro para a manutenção da ordem social. Por isso era
pregado: “Bem-aventurados os que têm fome e sêde de
justiça, porque serão saciados”.*
Ao mesmo tempo, por conseguinte, que se
elevava o homem, tornava-se o responsável, mais do que
nunca, pelos seus atos, em virtude do arbítrio e da
escolha entre o bem e o mal.
O advento do Cristianismo é, com tôda a
evidência, o ponto de partida dos direitos humanos e é
nêle que se há de buscar as fontes do real sentimento
democrático.
EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LIBERAL
Nós que não concebemos outra solução para os
problemas do Estado e do Direito senão a oferecida pela
constelação histórica, temos recorrido contìnuamente a
ela no presente trabalho, sem pretendermos, entretanto,
fazer trabalho de historiador, pela desnecessidade, nêsse
aspecto, de uma exposição sistemática, uma vez que
apenas nos ocupamos de alguns pontos culminantes da
orografia do pensamento político.
O ideal democrático, por isso, até a modernidade
foi mantido doutrinàriamente pela Igreja e por aquêles
ligados à sua filosofia, ou que embora formados dentro
dela chegaram, muita vez por idealismo, até à heresia.
Absorvida, em certa fase, pelo Império, que se
tornara senhor das investiduras em decorrência da
consagração, o clero se deixara levar pela simonia e o
próprio Papa se tornara um capelão dos reis. Daí uma
certa volúpia posterior dos Pontífices pelo temporal. Foi
contra essa situação e não contra a Igreja, na pureza de
sua substância, defenida por eminentes Padres, que não
deixavam de invectivar os males da organização
eclesiástica, insuflada pelo laicismo, que se levantou, por
exemplo, Dante, precursor do patriotismo de Maquiavel,
e que como o florentino almejava a liberdade da Itália e
sua unificação. Confessava Guicciardini que, antes da
morte, três coisas queria ver: uma república organizada, a
libertação nacional e a extinção da tirania dos clérigos. A
“Monarquia” é, por tôdas as razões, uma obra
democrática, mostrando que existiam os reis para o povo
e não o povo para os reis, como mais tarde reafirmou
Nicolo Oresme, autor de “Songe du Verger”. Observou
Carlo Prina56
que o sumo poeta “adorava a pátria,
desejando-a livre da escravidão e da violência dos
poderosos”.* Também Guilherme de Ockan se colocava
ao lado dos príncipes contra o Papa. A elaboração do
pensamento democrático, cujo marco, para fins didáticos,
Inácio da Silva Telles57
coloca em Dante*, prossegue
densamente tecido por Marsílio de Pádua, autor do
“Defensor Pacis”, juntamente com Jean de Jaudun e
reitor da Universidade de Paris, que defendendo a tese de
ter o povo a sede do poder político, tornou-se, para
alguns, precursor do contratualismo. Por outro lado,
firmaram êsses doutores averroistas o princípio da
soberania do Estado contra a Igreja. Outra não foi a
orientação de Coluccio Salutati, em o “Tirano”. Poucos
estudaram êsse autor, como Cirell Czerna58
, cujas
observações são válidas. Na sua obra polêmica “De
Nobilitate Legum et Medicinae”, contudo, coloca-se
Salutati, como um verdadeiro jusfilósofo, afirmando:
“Legum autem finis est directio actuum humanorum.
Obiectum autem est bonum, nec solummodo bonum
simpliciter, sed quod longe divinius est, communo
bonum”.
Sente-se claramente a tradição tomista em grande
parte dos escritores que, na época, trataram do tema.
O hugenote Hotman, por sua vez, em “Franco
Galia”, defendia a monarquia eletiva jungida aos Estados
Gerais e os monarcômanos, entre os quais inúmeros
clérigos, almejavam a extinção dos reis em benefício da
56 “O Sermão da Montanha”, pg. 87, José Olympio, 1956. 57 “Dante Político e Matemático”, in “Democracia Cristã”, de
setembro de 1963. 58 “Conceito de Democracia no Mundo Contemporâneo”, pg. 24, São
Paulo, 1964.
vontade da nação. A tese contratualista prosseguia com o
calvinista Marie Solomonis e com Althusius, autor da
“Politica Methodico Digesta”, cujo pensamento influiu
em Wolff e em Rousseau. Paralelamente, dava-se um
nôvo incremento do Direito Natural.
Na Inglaterra, Hooker e Milton, cuja admirável
“Arepagítica” é um brado imperecível pela liberdade de
imprensa, colocam-se nas raízes do pensamento de
Locke, propugnador da propriedade privada, dos direitos
individuais, do sufrágio universal e da tolerância. Bacon
e Filmer o antecedem também em sérias preocupações
políticas e a oposição a Hobbes mostra que a sua doutrina
penetrara bem fundo na construção loquena.
“Certas teorias filosóficas que parecem à primeira
vista mui semelhantes, pondera Mons. Grabman59
, se
revelam pelo contrário bastante diferentes, quando se
considera a diversidade do meio histórico de que se
originaram.”
É o que se dá com diversas correntes de
naturalismo contratual, sendo certo que anteriormente já
havíamos aflorado a questão. Hadfield considera o
“Leviatã” a mais importante obra de filosofia política
produzida em inglês e, sem dúvida, constitui ela também
uma das mais profundas exposições sôbre o Estado e o
homem. Nutrido em Tucidides e de como viviam os
gregos antigos, em estado permanente de guerra, edificou
Hobbes a sua tese, fundando-se no estudo do próprio
homem. Agudamente comentou Gooch60
: “While James
proclaimed the divinity of lawful kings and Bacon
preached the ideals of the Tudor monarchy, Hobbes, the
59 “Introdução à Suma Teológica”, pg. 122, Ed. Vozes, 1959. 60 “Political Thought in England from Bacon to Halifax”, pg. 23,
Oxford Press, 1946.
author of the first comprehensive political system
produced in England, derived his theory of the State
neither from theology nor from tradition, bot from the
study of human nature”. Hobbes mantinha, pois, o
“isolamento” do político, iniciado por Maquiavel, e mais
tarde continuando por Halifaz, que mantinha um lúcido
espírito empírico, enquanto seus contemporâneos
lastravam seus escritos com as Escrituras, sem maior
exame. É exato que Hobbes produziu o “Leviatã” para
justificar o absolutismo, representado por Carlos I, mas a
sua exposição transcende o próprio momento histórico,
para se tornar tema permanente de controvérsias. Aliás,
obedecendo, muitas vêzes, injunções, os escritores e os
artistas procuram, malgrado isso, dar a seus trabalhos um
“tonus” intemporal. Partindo da premissa de que o
homem era mau e egoísta, envolvendo-se em contínuas
disputas com seus semelhantes (“homo hominis lupus”) e
que só poderia viver em sociedade se conferisse poderes
a uma instituição que garantisse a vida em comum,
Hobbes considera aquela como portadora de
prerrogativas absolutas. O totalitarismo, a
indivisibilidade do Poder, como em Rousseau, e a
estatalidade do Direito encontram nêle um aotêntico
precursor. A maldade original do homem não foi aceita
por Locke, nem por Rousseau, defensor do “bon
sauvage” corrompido pela sociedade. Além de partirem
de diferentes critérios éticos, o contratualismo de Hobbes
conduzia ao absolutismo e o de Locke ao liberalismo,
como já se notou.
Influenciado por Descartes, cujas idéias, como as
de Newton, não foram ainda devidamente aferidas, com
pertinência à ressonância que tiveram no mundo político,
Locke colocou o “sense” para refletir em sua obra as
conquistas trazidas pela “Glorious Revolution” de 1688
que pôs término ao absolutismo de Jaime II,
aproveitando-se, por essa razão, para refutar Filmer para
quem a Monarquia era de Direito Divino. “The State is
the extension of the family, the King being the father, the
people his children”, observa Gooch (op. cit., pg. 125).
O conceito moderno de liberalismo deve ser
estudado, ao que entendemos, da obra de Locke, mas
antes algumas considerações serão feitas.
Numa rápida resenha que seja do pensamento
liberal, não podem ser esquecidas as figuras de Algernon
Sidney e Coke que, com Locke, impregnaram
profundamente as instituições americanas. O amor de
Sidney pela liberdade e pela justiça levaram-no à morte e
Coke, advogado magistral, juiz eminente e parlamentar
notável, assinalou-se pela defesa dos direitos individuais.
Enquanto Bacon, filósofo insigne, mas político de caráter
duvidoso, sustentava os princípios da Monarquia
Absoluta, interessadamente, para ser agradável aos
Tudor, Coke demonstrava que embora não sujeito a
qualquer homem, estava o rei sob Deus e a lei, mantendo
altiva a figura dos tribunais perante a Coroa. O rei se
informava assim de que não bastava uma razão natural
para bem julgar, mas uma razão artificial fundada no
conhecimento e na experiência das leis. Já passara,
felizmente, o tempo em que Henrique II julgava as
causas pessoalmente. Por tudo isso, o “Segundo
Instituto”, de Coke, comentando a Magna Carta, tornou-
se uma obra de grande repercussão histórica. Disse bem
Roscoe Pound, do grande jurista: “Afirmava a
independência judicial e se opunha a qualquer tentativa
do rei no sentido de ampliar-lhe as prerrogativas.
Conforme agora diremos mais completamente, mostrava
claramente que o rei não tinha qualquer poder judicial
pessoal”61
. A posição de Hume deve ser também fixada.
Defendendo a existência de dois direitos: ao poder e à
propriedade, o liberalismo humeano preocupava-se com a
origem do Estado, buscando uma solução racional e
embora não antagonizasse a idéia contratualista, achava-a
pouco científica. São suas expressões62
: “A minha
intenção aqui não é negar que o consentimento do povo
seja um fundamento justo para o govêrno. Onde houver
lugar para êle, será com certeza o melhor e o mais
sagrado de todos. Afirmo sòmente que mui raramente
teve lugar em qualquer grau, e quase nunca em todo a sua
extensão, e, portanto, tem-se de admitir algum outro
fundamento para o govêrno”.
O contratualismo de Rousseau foi influenciado
por Locke, mas dêle se distingue em vários e importantes
aspectos. Em primeiro lugar, a obra do pensador francês
não possuía serenidade, escrita com paixão
verdadeiramente demagógica, não transmitindo ao leitor
aquela segurança doutrinária do escritor inglês. Em
Rousseau havia sublimidade, em Locke beleza. “Lo
sublime, ensina Kant63
, conmueve, lo bello encanta.” *
Admitia o inglês a propriedade privada e que na
constituição da sociedade alienava, o homem, uma parte
de seus direitos. Negava essas afirmativas o francês, cujo
pensamento, por ocasiões, equívoco, tanto nutriu o mais
ardente liberalismo, como o mais sombrio despotismo.
Ao contrário, Locke seguia uma ordem racional de
congeminações, sem possibilidade de deturpação em suas
coordenadas básicas, e principalmente de contradições
61 “Desenvolvimento das Garantias Constitucionais de Liberdade”,
pg. 35, Ibrasa, 1965. 62 “Ensaios Políticos”, pg. 49, Ibrasa, 1963. 63 “Da Igualdade Perante a Lei”, Forense 1ª ed. 1947, 2ª ed. 1957.
substanciais. Rousseau tinha em mira, ao que parece, a
liberdade, como a fruiam os antigos, realçando o poder
do Estado.
Bem anotou Faguet: “Rousseau reconnait
(obscurémont) les droits de l’homme; et puis, après les
avoir reconnus, ou tout em les reconnaissant, il les
soumet à la volonté nationale, il les sacrifie à la volonté
nationale et, tout comte fait, il les supprime net”64
.
O “Contrat Social” é, apesar de tudo, o reflexo
mais sistemático de uma época de abissais
transformações políticas e de uma existência
perigosamente situada nos labirintos das neuroses e do
desequilíbrio emocional. Mas essa obra genial, frustrada
em suas dimensões, eclodiu como um grito de revolta e
iluminou como um facho que se erguesse do túmulo dos
oradores antigos, acelerando assim o processo
revolucionário, um dos três “R” combatido por Maurras.
Não é nosso propósito um exame detalhado do
pensamento de Rousseau, o que se encontra em excelente
trabalho comemorativo65
, mas o seu trabalho principal
não pode ser bem apreendido sem a tese apresentada à
Academia de Dijon, sôbre a desigualdade, concebido sob
duas formas: a natural ou física, estabelecida pela
Natureza e que consiste na diferença de idade, de saúde,
de fôrças e das qualidades psicológicas, e “l’autre qu’on
peut appeler inégalité morale, ou politique, parce qu’elle
dépend d’une sorte de convention, et qu’elle est établie
ou du mois sutorisée par le consentement des hommes.
Celle-ci consiste dans les privilèges, dont quelques-uns
jouissent, au préjudice des autres, comme d’êtres plus
64 “Discussions Politiques”, pg. 172, Paris, 1909. 65 “Estudos em Homenagem a J.J. Rousseau” (vários autores) Fund.
Getúlio Vargas, 1967.
riches, plus honorés, plus puissants qu’eux, ou même de
s’en faire obéir”66
. Rousseau poderia repetir com Lutero:
“Ich kann nicht anders”.
Realmente, o que está no seco do “Contrato
Social” é a luta contra os privilégios de alguns, contra os
interêsses da maioria sofredora sem horizontes e sem
auroras, e que na sua humildade mesma é o grande motor
dos acontecimentos históricos. Muitas de suas ideias
ainda hoje perduram e atuam sôbre as instituições. O
contratualismo é, contudo, uma hipótese fantástica que
não pode ser aceita no estado atual dos estudos políticos,
aplicando-se a êle perfeitamente o que considerou Hume,
acima citado.
Os elementos democráticos e liberais, até certo
ponto, se confundem e, por essa razão, a evolução de
ambos a partir de certa época deve ser estudada em
conjunto ae que distinções se imponham, uma vez que
estão vinculados ao respeito do indivíduo, cujas
prerrogativas, na órbita pública, no que concerne à
“praxis”, encontrou impulso na alma germânica,
conforme descreve Tácito67
. As brumosas florestas
teutônicas geraram uma autonomia pessoal que os
próprios reis acatavam. Com a queda do Império
Romano, a aculturação entre as instituições em atrito
permitiu, debalde, a vitória da cultura superior, o
escambo entre mundividências. Os germânicos, dessa
forma, plantaram o germe do individualismo que, em
algumas heresias, como o pelagismo, se fêz sentir de
forma perigosa às concepções cristãs, debeladas a tempo
por Santo Agostinho. A Reforma, pelo exposto, não foi
66 “Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité”, pg. 43,
Gallimard, 1965. 67 “Germania”.
mais que uma conseqüência do processo evolutivo da
alma alemã ou melhor da alma germânica, preparada que
foi ainda pelo evolver do racionalismo científico. O livre
exame, a análise pessoal, a crítica, o ensaio, a iniciativa
privada encontram, então, um grande estímulo,
auxiliados por um anquilosamento da Escolástica,
submissa aos dogmas, abusando da dedução e do
silogismo e se caracterizando, segundo Pedro Lessa,
“pela extrema subtileza das análises, em geral verbais,
pela tendência a dar realidade a meras abstrações”.
A Reforma, iniludìvelmente, se encontra nas
bases do liberalismo, nutrindo o racionalismo posterior,
assim como as revoluções francesas e americana e a
estruturação do regime britânico.
Assim sendo, os documentos principais do
liberalismo podem ser considerados a Carta da Liberdade
de Henrique I, de 1.100, os Artigos dos Barões, de 1215,
a Magna Carta, também de 1215, a Primeira Carta de
Henrique II, de 1216, que reproduzia substancialmente a
Magna Carta, com a omissão de certos artigos, alguns
julgados dos Tribunais do Rei, as obras de Bracton e
Coke, a “Petition of Rights” de 1627, o “Bill of Rights”
de 1688, sem contarmos o “Act of Settlement”, de
Cromwell e o “Habeas Corpus Act”, de Carlos II.
Um dos motivos que explicam a sobrevivência da
nobreza britânica foi o de ela ter se identificado, desde
logo, com o povo, sacrificando-se, às vêzes, mais do que
êle em o suportar o ônus nacional.
Em 1222, a aristocracia húngara obtinha do rei a
“Bula de Ouro”, notòriamente semelhante à Magna
Carta. O porque da pouca ressonância histórica dêsse
diploma dá-lo Wilson68
: “Os nobres da Hungria lutavam
pelos privilégios de uma classe, enquanto os barões da
Inglaterra tinham em vista os privilégios de uma nação,
não pretendendo os inglêses estabelecer nova lei ou
privilégio, mas recobrar e restabelecer o que tinham e
temiam perder. Outro motivo, e não menos significativo,
consiste em que os inglêses montaram um mecanismo
para a manutenção do acôrdo, enquanto os húngaros tal
não fizeram”.
Com relação aos Estados Unidos é importante
destacar as Cartas Coloniais, a Declaração de Direitos do
Congresso Continental, de 1774, a Constituição de 1787
e as decisões da Suprema Corte. Estabelecia-se,
pràticamente, o govêrno constitucional moderno que, na
definição de Wilson (op. cit. pg. 3), é aquêle “cujos
poderes foram adaptados aos interêsses do povo e à
manutenção da liberdade individual”. Por fim as
inúmeras constituições revolucionárias francesas e o
Código Napoleão. Daí então se propagam as idéias
liberais nas constituições dos outros países como as da
Espanha (1812) da própria França (1814), da Bélgica
(1831) e a de Portugal, influindo a primeira, a segunda e
a última na Constituição Imperial do Brasil, de 1824.
Vale observar que em constituições como as do
Chile (1828), da Argentina (1853) e do México foram os
direitos mais amplamente consagrados que na França,
onde o Código Civil (art. 11) determina: “O estrangeiro
gozará na França os mesmos direitos civis que são
concedidos aos franceses pelos tratados com a nação à
qual o estrangeiro pertence.” Êsse princípio da
reciprocidade, entretanto, não foi acolhido no Código
68 “O Govêrno Constitucional dos Estados Unidos”, pg. 7, Ibraza,
1963.
Civil Italiano de 1865, tendência que se refletiu em nosso
Código Civil (art. 3º), por exemplo, e no Código
Bustamante (art. 1º), onde se lê: “Os estrangeiros que
pertençam a qualquer dos Estados contratantes gozam, no
território dos demais, dos mesmos direitos civis que se
concedem aos nacionais”.
Queremos, todavia, chamar a atenção para uma
das glórias da prática inglesa, o “Habeas Corpus Act”, de
1679, cuja fonte se encontrava no art. 39 da Magna Carta
que, no sentir de Chattam, valia por todos os clássicos
reunidos. “Nullus liber homo” rezava êsse último
documento, “capiatur, vel imerisenetur, aut dissai isitur,
aut lagetur, aut aliquo modo destruactur, nec super eum
ibimus, nisi por legale judicium parium suorum vel por
legem terrae”.
O Ato de Carlos II que, na lição de João
Mendes69
, foi “considerado pelos inglêses como uma
outra magna carta, teve por escopo acabar com as
controvérsias que os remédios, então existentes,
despertavam. Tais eram êles: “writ of mainprise”, “writ
de ódio et atia”, “writ de hominine replegiando” e “writ
of habeas corpus”, limitando-se êsse último em ser um
meio de transferir prêsos de um tribunal para outro,
facilitando a administração da justiça. Poderia ser êsse
“writ”, “habeas corpus, ad respondendum”, “ad
satisfaciendum”, “ad pressequendum, ad testificandum,
ad deliberandum” etc., “ad faciendum et recipiendum”,
também chamado “eum causa” e “ad subjiciendum”, o
mais importante e que era expedido contra o detentor
para que apresentasse o prêso, indicando a data e a causa
da prisão. Contudo, para procrastinar a soltura dos
presos, substituia-se constantemente, êsse Habeas Corpus
69 Processo Criminal Brasileiro”, vol. II, pg. 309, Rio, 1920.
pelo “ad deliberandum”, destinado à transferência dos
detentos de um lugar para o outro.
Para terminar os abusos indicados é que teve
lugar, por conseguinte, o decreto de Carlos II que firmou
definitivamente a garantia individual.
Carlos Sanchez Viamante que, como advogado
ilustre e eminente cidadão, pugnou sempre,
destemidamente, pelas liberdades pessoais, demonstrou
ser inexata a tese daquêles que buscam antecedentes do
remédio heróico nas magistraturas antigas e no “Justicia
Mayor de Aragon”70
, embora pudessem êles, por vêzes,
contar os excessos do poder.
70 “El Habeas Corpus”, pg. 17, Ed. Perrot, 1956.
BURGUESIA E LIBERALISMO
Para melhor elucidação do que pretendemos, mister se
torna isolar o elemento democrático, cujas origens já
indicamos, do elemento liberal, de formação mais
recente. Entre a Reforma e a Revolução Francesa uma
classe social adventícia projeta-se profundamente no jôgo
histórico, disputando o domínio do Estado: a burguesia.
Tal classe não trazia apenas uma nova teoria, mas
encarnava, o que era mais importante, um nôvo tipo de
comportamento, indisfarçàvelmente vinculado ao
progresso científico que procurava substituir a religião
nas preocupações mentais do homem. O liberalismo
(conceito político-jurídico) e o liberismo (conceito
econômico), marcharam inicialmente juntos, sendo certo
que o personalismo, então cultivado, abeirava-se de um
certo materialismo. Notou bem Laski: “lo que produjo al
liberalismo fue la aparición de una nueva sociedad
económica hacia al final de la Edad Media”71
. “Le
libéralisme est, en dernière analyse, l’expression des
intérêts économiques de la bourgeoisie,” concorda
Jacques Droz72
. Outra origem não tem, por outro lado, o
capitalismo, embalado pelo individualismo e a livre
emprêsa estimulados pela Reforma, conforme Weber.
Liberalismo e Capitalismo são, em conseqüência,
inseparáveis, preterindo-se uma concepção social por
uma concepção personalista dos fenômenos da vida
coletiva. Por aí já se percebe que se há no sentimento
democrático um determinado conteúdo liberal, a
recíproca nem sempre se deu, como a História fàcilmente
71 “El Liberalismo Europeo”, pg. 16, Fondo de Cultura Económica,
1961. 72 “Histoire des Doctrines Politiques en France”, pg. 69, Presses
Universitaires, 1966.
o comprova. Os “burgos podres”, como os de Old Serum
e Gaton, que permitiam ficar a Câmara dos Comuns nas
mãos dos proprietários de terra era um fenômeno liberal,
mas não democrático. E Bentham, que se batera pelo Act
de 1832, expirou um dia antes de sua vitória. O reinado
de Napoleão III, como de outros monarcas, foi liberal,
mas não democrático, a ponto de ser dito que em sia
época se perdera a noção da prática constitucional. Com
relação ao preconceito racial nos Estados Unidos, taxou-
o o Ministro Djaci Falcão como “uma tradição
antidemocrática, sobretudo anti-humana”73
.
A Revolução Francesa, a Revolução Portuguêsa
de 1910, e outros movimentos que encetaram a
perseguição religiosa e limitaram ou extinguiram a
liberdade de crença, eram manifestações liberais, mas
jamais democráticas, assim como o famigerado
“reconhecimento de poderes”, na 1ª República. Os
exemplos seriam, aliás, inúmeros. Entendemos que
enquanto o Liberalismo enaltece o interêsse individual,
precipitando-se nos exagêros do Estado Gendarme, a
Democracia volta-se para o interêsse geral, ensejando o
Estado Social. Legaz y Lagambra mostra bem como
ambas as fôrças históricas são “idéias distintas”, embora,
sob certo ângulo, tenham progredido juntas.
A concepção liberal é, em desenvolvimento, uma
teoria elaborada contra o Estado e as suas inalienáveis
prerrogativas e foi desacreditada pràticamente no
primeiro pós-guerra, como preleciona Paulo Benavides74
,
sendo certo que o regime capitalista, seu irmão, teve de
atualizar-se pactuando com o “Welfare State”. O
Liberalismo já cumpriu sua missão histórica, investindo
73 “A Igualdade perante a Lei”, Rev. Forense, vol. 192. 74 “Do Estado Liberal ao Estado Social”, pg. 143, Saraiva, 1961.
contra o Absolutismo, embora movido por interêsses
econômicos de uma classe que subia e ambicionava
destronar a aristocracia. “O objetivo das leis, consta de
um catecismo do século XVIII, citado por Lindsay (op.
cit., pg. 171), é confirmar os ricos na posse de seus bens
e conter os pobres maléficos”.
O conceito de liberdade, então, surgiu
anàrquicamente, como se lê em Laski75
, como uma
“ausência de limitações”, como uma fundamental
restrição do poder público e um total desprestígio do
Estado. Bertrand Russel doutrinou que a liberdade, no
sentido abstrato, consiste numa “ausência de obstáculos
exteriores para a realização dos desejos”. Spencer já
fizera sentir, todavia, que “se não se tomam as
precauções convenientes o acréscimo da liberdade
aparente será seguido de uma diminuição da liberdade
real”, explicando que “a maior parte dos que passam
atualmente por liberais, são conservadores de uma nova
espécie”76
. É curiosa a circunstância de que grande parte
do Movimento liberal tenha sido animado pela
Maçonaria que, profligando pela fraternidade universal,
forçosamente teria que substituir a noção de Estado pela
de Humanidade. Eram, aliás, seus princípios: Perfeição
do homem, Liberdade nativa e inalienável, Igualdade
natural e inalterável, Fraternidade universal e a Negação
do pecado original. Ocultando suas finalidades políticas,
o art. 1º da Constituição Maçônica prescreve: “A
maçonaria, instituição essencialmente filosófica e
progressiva, tem por objeto a investigação da verdade, o
estudo da moral e a prática da solidariedade; trabalha
75 “A Liberdade”, pg. 7, Livr. Progresso, 1958. “Ensaios Céticos”, pg. 37. 76 “O Indivíduo contra o Estado”, pg. 5 e 7, São Paulo, 1935.
pelo melhoramento material e moral, o aperfeiçoamento
intelectual e social da humanidade. Tem, como princípio,
a mútua tolerância, o respeito dos outros e de si mesmo e
a liberdade de consciência”.
As teses liberais, por suas próprias características
altissonantes, possibilitaram, por outro aspecto, um
renascimento da arte oratória, cuja maior tatuagem era a
busca da palavra pela palavra, o patético e o heroísmo de
expressões. A eloqüência dominava a Paris novecentista,
como relatamos em trabalho anterior77
, e era mais útil ter
uma frase feliz nos lábios que cem luzes no bôlso.
Excetuada a Inglaterra, onde peculiarmente, sempre
houve uma sintonia entre as concepções democráticas e
liberais, mòrmente após Carlos II, quando surgiram essas
últimas, consoante Spencer, e onde a Oratória firmou o
sistema parlamentarista com titãs como Pitt, Walpole,
Sheridan, Fox, Burke (do qual disse Hélio Sodré que se
distinguia “pela beleza serena de seus períodos e pela
extensão de sua cultura” e ainda pelos “conceitos
fundamentados em sólidas convicções filosóficas”78
)
Gladstone, Disraeli, e outros, a arte da palavra,
enaltecendo frenèticamente os direitos do homem sem
lembrar seus deveres e relegando o Estado a plano
secundário, contribuiu para o desgaste do próprio “modus
vivendi” que defendia. Alcalá-Zamora (“La Oratoria
Española, pg. 13, Ed. Atalaiga, 1946), afirma estar a
oratória parlamentar ligada, como “alma e voz”, ao
regime constitucional moderno.
A missão histórica precípua do Liberalismo
consistiu naquilo que Schumpeter denominou de
“patrimonialização do indivíduo”, isto é, “o processo
77 “A Seara de Bronze”, Ed. Cupolo, 1960. 78 “História Universal da Eloqüência”, pg. 189, José Olympio, 1948.
pelo qual o indivíduo se liberta das obrigações e atitudes
da relação feudal, tornando-se teòricamente um cidadão
entregue aos seus próprios desejos, modelando a sua vida
privada mais ou menos à sua vontade, mesmo que no
momento ainda estivesse gozando de privilégios
especiais e prêso a formas sociais fixas”79
. Êle tornava,
assim paulatinamente, realidade social e política, sob
certo critério, um dos ângulos da pregação cristã.
79 “Imperialismo e Classes Sociais, pg. 172, Zahar, 1961.
ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE CULTURA
Decorre da evolução liberal-democrática, numa
cadéia de acontecimentos perfeitamente ordenada, o
Estado de Direito já por nós referido e definido por Kant
como “a reunião de um grande número de homens sob
leis jurídicas”, levando principalmente em conta a
relação govêrno-povo. Kant, aliás, contratualista
influenciado, como Beccaria, por Rousseau, mais
moderado entretanto do que êle, está nas bases da
democracia moderna. Sua importância no
desenvolvimento da filosofia ocidental pode ser
resumida, conforme Cirell Czerna80
, da seguinte maneira:
“a atitude crítica e o sentido do transcedental, na espera
teorética; o princípio da autonomia e da liberdade, no
campo prático ou ético, ou seja, no terreno da moral e da
filosofia social”.
Mas o Estado de Direito não visa apenas
estabelecer o regimento formal da conduta de uma
determinada sociedade global, prescrevendo
comportamentos, mas também ter sob contrôle o próprio
Poder, sem o que não passará de um simulacro, como
apontou San Tiago Dantas. Embora, contudo, seja o
Estado um fenômeno essencialmente jurídico, não é
ùnicamente jurídico, em virtude das plúrimas exigências
sociais a serem atendidas pelo Govêrno. Vai daí que o
Estado de Direito, numa consideração ortodoxa,
encontra-se hodiernamente ultrapassado, como se deduz,
integrando o chamado Estado de Cultura,
(“Kukturstaat”).
“As coisas políticas e os Estados nem são seres da
natureza nem seres ideais, esclarece Moncada.
80 “Ensaio de Filosofia Jurídica e Social”, pg. 64, Saraiva, 1965.
Pertencem, na sua complexa ontologia
caracterìsticamente, ao domínio da ‘cultura’. E êste é,
como se sabe, um domínio intermédio entre natureza e
espírito” (op. cit., pg. 18). Esta é a nossa orientação desde
que escrevemos “O Conceito de História”, já sob o
poderoso influxo do pensamento de Reale que afirma: “O
problema do direito é, assim, antes de tudo, um problema
de vida e de cultura. Ao Estado realizador do direito
sucede o Estado realizador de cultura, mas sem divórcio
ou conflito com as garantias jurídicas, as quais não
podem deixar de ser consideradas os esteios inamovíveis
de qualquer ordem civil, compondo-se a justiça com o
valor impostergável da certeza” (“Direito e Estado Numa
Comunidade Concreta”). Por isso que uma reforma da
Constituição deve ser realidade quando essa está em
desacôrdo com uma realidade cultural, como observa
Tehophilo Cavalcanti Filho (“Pressupostos Filosófico-
Jurídicos da Revisão Constitucional”). A nossa
concepção do estado, por ser uma concepção cultural, é
conseqüentemente uma visão histórica e axiológica do
problema.
Entendemos que o Estado de Direito, debalde
reafirmado pelo princípio da “racionalização do poder”,
não se livrou ainda do tipo de vida social que nutriu: a
sociedade individualista que submete os valores culturais
e a personalidade coletiva ao indivíduo, sem a
perspectiva do bem comum. A forma oposta, a sociedade
supra-individualista, pode conduzir ao totalitarismo, por
subordinar os valores da cultura e da personalidade à
coletividade. Apenas a sociedade transpessoal pode
colimar os verdadeiros objetivos sociais, colocando o
indivíduo e a coletividade sob a obra cultural.
Comentando a posição de Radbruch, assevera Paulo
Dourado de Gusmão81
: “Cada um dêsses tipos de vida
social tem o seu ideal. Para a sociedade individualista, a
liberdade, para a supra-individualista é o poder, e para a
transpersonalista é a cultura”.
81 “O Pensamento Jurídico Contemporâneo”, pg. 34, Saraiva, 1955.
A SEPARAÇÃO DE FUNÇÕES
Em interessante resenha exprime-se José Manuel
de Arruda Alvim Neto82
: “A tripartição dos poderes foi o
instrumento de que se serviu a burguesia para garantir-se
contra os poderes do Estado, o que vale dizer, contra a
sua soberania”. Já analisamos, sob o crivo ontológico,
essa questão, e é óbvio que êsse expediente liberal não
pode ser mais aceito na forma em que foi formulado, em
vista da indivisibilidade do Poder Político que, em
substância, é íntegro e coeso, permitindo, entretanto, uma
separação das funções, sôbre a qual não é pacífica a
doutrina.
“A divisão do poder, imprópria, mas
tradicionalmente chamada de separação dos poderes,
estabelece Manoel Gonçalves Ferreira Filho83
, não
merece a reverência quase religiosa que por vêzes recebe.
Não sendo uma classificação científica das funções do
Estado, não sendo um dogma do sistema democrático, é
uma “receita” da liberdade, cujo valor prático depende
das circunstâncias”.
A origem burguêsa da separação das funções, tal
como surgiu e que atualmente deve ser entendida como
de fundamental interêsse do Poder Político, para
devidamente atuar, é de uma evidência incontratável na
Europa continental. Embora pressentida já por
Aristóteles, formulou-a, modernamente, Montesquieu,
estudando a prática inglêsa e interpretando-a, segundo as
conveniências de sua própria formação liberal, em
82 “O Poder Judiciário e a Constituição”, in “Rev. Do Instituto de
Direito Público”, nº 1. 83 “Os Partidos Políticos nas Constituições Democráticas, pg. 80,
Belo Horizonte, 1966.
conhecida obra que lhe ocupou grande parte da existência
e que foi laboriosamente pensada, fundadora que é, no
entender de Lanson84
, da “politique abstraite qui monte
les contitutions comme des machines”, procurando,
lembre-se, estabelecer a relação entre as instituições e os
climas. Faguet considerou muito bem que o autor francês
se deixara impregnar de um “fatalismo científico”,
desenvolvido, ao que se sabe, por Mme. De Staël e
Ratzel, entre outros, que fundaram uma orientação
geopolítica.
Concebia Montesquieu três espécies de poderes
constituídos: “la puissance législative, la puissance
exécutive des choses qui dépend du droit des gens, la
puissance exécutivede celles qui dépendent du droit
civil”. O segundo seria o poder executivo “tout court”, e
o terceiro constituiria o poder de julgar, pròpriamente
dito. Rousseau, por ser partidário da indivisibilidade da
soberania popular, assim chamada, esclarece Roberto
Lyra, por pertencer à “própria coletividade), não
encontrava razão para a divisão referida, antecipando-se
às modernas concepções doutrinárias que defendem a
unidade do Poder Público, que assim evita se enfraqueça
a autoridade e se propicie a irresponsabilidade
governamental, como denuncia Luiz Silveira de Mello85
.
Locke, influenciado, além de outros já
mencionados, por Buchanan que argumentava derivar o
poder do povo e não do rei por direito divino, expendera,
contudo, anteriormente a Montesquieu a teoria da
separação dos poderes, com marcante personalidade,
encontrando certos precedentes no “Instrumento of
84 “Hommes et Livres”, pg. 179, Paris, 1895. 85 “O Poder Político e o Govêrno Democrático”, pg. 42, São Paulo,
1953.
Government” de Cromwell, de 1653, e em algumas
cidades alemãs do fim da Idade Média, como
Estrasburgo. “Compreender o poder político é, portanto,
também derivá-lo da sua origem e reconstituir pela
análise abstrata a formação da sociedade, a partir do
estado natural do homem, antes de tal poder existir”,
elucida Cabral de Moncada86
. Assim a separação
oferecida pelo filósofo inglês está em perfeita
consinância com seu contratualismo, um dos aspectos
dos quais deve ser destacado. Sabe-se que, para Locke,
só o pacto dos homens, concordando em se unirem para
formar uma comunidade e fundar um corpo político,
fazia cesar o estado da natureza, uma vez que outros
contratos poderiam ser feitos, nêsse estado, obrigando as
partes como homens e não como membros da sociedade,
admitindo o escritor, apoiado em Hooker, que a causa da
formação das sociedades políticas foi suprir as
deficiências da vida em solidão.
“Haverá sociedade política, diz Locke87
, sòmente
quando cada um dos membros renunciar ao próprio poder
natural, passando-o às mãos da comunidade em todos os
casos que não lhe impeçam de recorrer à proteção da lei
por ela estabelecida”. Não resta dúvida que facilitar, ao
homem, a proteção da lei foi a razão para a doutrina
loqueana a respeito dos poderes, assim concebidos:
Legislativo, Executivo, Federativo e Prerrogativo. O
terceiro é conceituado pelo pensador como o que encerra
“o poder de guerra e de paz, de ligas e alianças, e tôdas as
transações com tôdas as pessoas e comunidades estranhas
à sociedade, podendo-se chamar federativo. Se
entenderem a questão, fico indiferente ao nome” (op. cit.,
86 “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, pg. 211, Saraiva, 1950. 87 “Segundo Tratado Sôbre o Govêrno”, pg. 54, Ibrasa, 1963.
pg. 92). O quarto, por sua vez, se formula como o “poder
de agir de acôrdo com a discrição a favor do bem
público, sem a prescrição da lei e muitas vêzes mesmo
contra ela”. Essa concepção, que antecipa o “direito
livre” de Kantorowicz, o poder regulamentar autônomo
consistia mesmo em “o poder de fazer o bem público
sem se subordinar a regras” (op. cit., pg. 106). A
Prerrogativa era atribuída ao Executivo para evitar as
delongas no processo legislativo, armando-o de uma
super-faculdade, uma vez que admitia Locke ser êle
permanente, ao passo que o Legislativo poderia não estar
sempre reunido. Para nós isso constitui um paradoxo
dentro da sistemática loqueana, uma vez que ela
considera que o poder que dão as leis é necessàriamente
superior, sòmente havendo “um poder supremo, que é o
legislativo, ao qual tudo o mais deve ficar subordinado”.
O liberalismo e o tradicionalismo do filósofo não
deixavam, como se constata, de fazer concessões
habilidosas ao monarca.
O “isolamento” do Judiciário como poder
autônomo é, pràticamente, obra de experiência
americana, que não tinha motivos para pôr em suspeição
os juízes, anteriormente instrumentos dos reis. O mêdo
da tirania fê-la consagrar a independência da toga,
embora os constituintes da Filadelfia, ao criar a figura do
Presidente, a tivessem moldada à imagem do Príncipe.
A Prerrogativa, ao que supomos, teria influido na
construção doutrinária de Benjamin Constant, para a qual
os poderes eram: Real, Executivo, Representativo e
Judiciário, acrescidos depois do Municipal. Enquanto o
segundo poder era exercido pelo colégio ministerial, o
terceiro o era pelos legisladores nas assembléias
representativas e o quarto pelos tribunais. “Le roi est ao
milieu de ces trois pouvoirs, teoriza Constant (“Politique
Const.”, vol. 1º, pg. 178), autorité neutre et intermédiaire,
sans aucun intérêt bien entendu à déranger l’équilibre, et
ayant, au contraire, tout intérêt à le maintenir”. Ao lado,
por conseguinte, de um poder que fazia as leis, de outro
que as executava e ainda de outro que as aplicava a casos
particulares, concebia-se um quarto, o Poder Real, que
era “en quelque sorte le pouvoir judiciaire des autres
pouvoirs” (op. cit. pg. 181) sempre tendo em mira o
interêsse coletivo.
O art. 9º da Constituição do Império do Brasil
sintomàticamente exarava: “A divisão e harmonia dos
poderes políticos é o princípio conservador dos direitos
dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as
garantias que a Constituição oferece”. O art. 10
reconhecia, por sua vez, quatro poderes: o Moderador, o
Executivo, o Legislativo e o Judicial.
Note-se que o liberalismo da época impunha uma
“divisão” e não uma “independência” dos poderes,
almejando fragmentar, no interêsse da burguesia, sob cuja
inspiração Comte produziu, o Poder Político.
Seguindo a lição de Constant, os elaboradores da
Carta Imperial, além de considerarem o Imperador, chefe
do Executivo que exercitava através de seus ministros
(art. 102), prescreveram: “O poder moderador é a chave
de tôda a organização política, e é delegado
privativamente ao Imperador, como chefe supremo da
nação, e seu primeiro representante, para que
incessantemente vele sôbre a manutenção da
independência, equilíbrio e harmonia dos poderes
políticos” (art. 98).
Poder conservador por excelência, o Moderador
soscitou polêmicas acerbas sôbre sua natureza e se o seu
titular era ou não responsável, em vista de sua
inviolabilidade (art. 99), por atos de que resultassem
prejuízos aos interêsses nacionais. Sôbre êle escreveram
monografistas como Braz Florentino e Zacarias e
tratadistas como São Vicente e Uruguai, todos
monárquicos. Só a pena desaçaimada e inconformista de
Tobias Barreto levantou-se corajosamente contra o Poder
Neutro, na verdade um super-poder tão anti-democrático
quanto qualquer hipertrofia política. A Constituição do
Império, na verdade, criara um só poder ao qual os
demais estavam manietados e subordinados,
transportando para nossos quadros políticos instituições
exóticas e sem raízes em nossas tradições. Era necessário
buscar soluções brasileiras para os problemas nacionais.
Bradava Tobias88
: “Logo, o único meio de salvar
e engrandecer o Brasil é tratar de colocá-lo em condições
de poder êle tirar de si mesmo, quero dizer, do seio de
sua história, a direção que lhe convém”.
A divisão dos poderes foi, como exposto, uma
técnica da burguesia, objetivando o dessoramento do
Estado, em seu próprio benefício. Condorcet referia-se
até à volúpia de se criar poderes para se opô-los uns aos
outros, numa gangorra política.
A separação de funções na forma clássica e que a
Constituição americana adotou em virtude do “Plano de
Virgínia”, elaborado por Randolph, que recebera as
influências já referidas anteriormente, sobre variações
por parte de autores que não a julgam exaustiva, ou que a
interpretam sob novas luzes.
Kant considerava o Legislativo, “irrepreensível”,
o Executivo, “irresistível”, e o Judiciário, “inapelável”.
88 “A Questão do Poder Moderador”, in “Estudos de Direito”, pg.
440, Livr. Progresso, 1951.
Hegel admite a separação das funções, mas de forma a
não causar a desagregação do Estado, subordinado ao
Poder Real o Legislativo e o Executivo, de maneira
orgânica, de sorte a manter a unidade do Poder.
“Hegel, confronta Paulo Bonavides, reelaborou as bases
do princípio da separação dos poderes, fundou-o na ideia
organicista de interdependência e, reconciliando a tese
dos poderes que se excluem com a tese dos poderes que
se coordenam, deu, por último, ao poder a base ética
necessária que o liberalismo extremado do século XVIII
lhe solapara”. Sabatini, aceitando a distinção tradicional,
subdivide o Poder de Justiça em função jurisdicional e
função judiciária, cabendo a essa a tarefa da execução
penal ou civil.
Para Renard o Poder se dividia em Jurídico e
Político, e êsse em Executivo, Legislativo e Eleitoral;
para Hauriou, em Executivo, Deliberativo e de Sufrágio e
Siyès nos ofereceu uma distinção estrutural importante:
Poder Constituinte e Poder Constituído.
De modo geral todo aquêle que preconiza reformas de
base e propõe nova forma de govêrno e organização da
sociedade, oferece uma nova classificação de funções.
Souza Lobo89
apresenta nove poderes: o Opinativo, o
Senatorial, o Judiciário, o Ministério Público, o de
Segurança Nacional, o Educativo, o Provedor, o
Tributivo e o Fiscal.
O saudoso Fernando Nobre que, na esteira de
Saint Girons, pregava a unidade do poder e a separação
das funções, reconhecia além das tradicionais o Poder
Pecuniário, o Militar, o Publicitário e o Universitário
(“Sinergia dos Poderes Governamentais”).
89“A Libercracia”, Edigraf, 1958.
Pensamos que outras funções, como o Ministério
Público, poderiam ser desdobradas, com independência e
harmonia, do Poder Político para facilitar a sua
operatividade, mas de qualquer forma deve uma das
funções do Estado, por sua natureza equidistante, ter uma
atividade moderadora, sem que isso importe em
aglutinação de atribuições. Essa função é a judiciária,
embora Gilberto Amado tenha reparado que as fôrças
armadas, em determinados períodos de nossa história,
tenham pretendido exercer a função moderadora,
desempenhada em algumas repúblicas parlamentaristas
pelo Presidente da República.
“O Poder Judiciário, pronunciou-se o Des.
Augusto Moura90
, é o poder moderador por excelência e,
conseqüentemente, não compartilha de extremismo
algum”, acrescentando o Des. Aloysio Maria Teixeira (“A
Missão do Poder Judiciário”) ter sido êle, pela
necessidade natural da administração da justiça, antes
mesmo das normas, o primeiro poder cronològicamente a
aparecer.
Não são as garantias que fazem do Judiciário uma
função do Poder, mas essa é que impõe aquelas para
desenvolver o leque de suas possibilidades no mundo da
cultura. As constituições não acolhem de modo igual
essas garantias, em sua parte orgânica, que monta o
sistema de poderes, ao lado da parte dogmática, que fixa
a órbita da liberdade individual. Enquanto consagram a
irredutibilidade, os códigos políticos do Brasil, da
Argentina e dos Estados Unidos, não a adotam os de
Portugal, da Espanha (1931) e da Alemanha (de Weimar).
A inamovibilidade é reconhecida no Brasil, na
90 “Poder Judiciário – Poder Moderador”, in “Rev. Jur. Do T.J. do
Est. da GB”, nº. 4.
Tchecoeslováquia e na China, entre poucos mais, e a
vitaliciedade não tem superior alcance numérico à
precedente garantia, mas, de modo geral, se procura
reconhecer a independência da Magistratura, por ocasiões
de forma puramente platônica, uma vez que, sendo essa
independência, conforme Bryce, um arnês em pról do
Direito e da Justiça, pouca eficácia teria sem as garantias
mencionadas.
Os critérios de escolha e promoção dos juízes não
são idênticos também nos diversos países. Rejeitamos o
critério da eleição, como na União Soviética e em
algumas unidades dos Estados Unidos, por absolutamente
inadmissível, bem como a nomeação e a ascenção na
carreira, por atos do Executivo que podem colocar os
magistrados em certas órbitas de influência.
Preconizamos que após o concurso de provas e títulos, ao
Judiciário deveria caber a nomeação e promoção de seus
membros, para nos atermos à esfera estadual, embora a
Justiça Federal, criada pela atual Constituição, pudesse
adotar êsse princípio. Pensamos também que ao Supremo
Tribunal Federal deveria caber a escolha de seus
membros, debalde o seu conteúdo eminentemente
político. Com relação ao acesso, as Constituições de
1934 e 1937 consagravam o princípio de que a promoção
na carreira de Magistrados deveria ser alternadamente
por merecimento e por antiguidade. A Constituinte de
1946 debateu uma emenda do Professor Mário Mazagão,
a qual estabelecia que, da primeira para a segunda
entrância, deveria ser a promoção por antiguidade, e da
terceira entrância em diante só por merecimento,
terminando por rejeitá-la. Emenda foi apresentada, então
pelo Senador Ivo d’Aquino, com aplausos de Adrealdo
Mesquita da Costa, que completava a emenda do
Professor Mazagão, principalmente no sentido de
estabelecer que para o Tribunal de Justiça a promoção
deveria ser feita pelo critério de 2/3 por merecimento e
um terço por antiguidade. Essa emenda foi aprovada nas
sub-comissões, e só foi rejeitada em Plenário, através de
uma outra emenda do Deputado Dantas Júnior, um ex-
magistrado, o qual defendia a tese de que o critério de
promoção deveria ser o mesmo para tôdas as entrâncias,
alternando-se a antiguidade e o merecimento.
Sem dúvida que para a vitória da emenda Dantas
Júnior contribuíram bastante as impugnações feitas por
Ferreira de souza de que a emenda Mazagão, embora
tivesse lógica, escapava um pouco à realidade das coisas,
esquecendo “um pouco as fraquezas humanas”. Afirmou
então o vibrante parlamentar que a “antiguidade é meio
de corrigir certas injustiças a que estão sujeitas as listas
de merecimento”, acrescentando mais adiante que “não
há critério absoluto para julgar o merecimento e a
formação das listas depende do julgamento pessoal, do
voto dos juízes, votos que podem obedecer a motivos
relevantes, mas que não traduzem rigorosa justiça”.
Tal foi o ponto de vista vitorioso, em Plenário,
como se constatava no livro do Desembargador José
Duarte sôbre a Constituição de 1946 (pág. 447, 2º
volume). É êsse também o critério da Constituição de
1967 (art. 136).
A função executiva se desnastra em outras, como
fàcilmente se pode deduzir, entre as quais destacam, além
do poder de sanção e do poder de veto, o Poder
Disciplinar, que não é exclusivo; e o Poder
Regulamentar. O terceiro é inerente às prerrogativas da
Administração aplicando-se de acôrdo com as normas
que regulam as infrações dos servidores das repartições
administrativas e as respectivas sanções. O Direito
Disciplinar está vinculado ao advento do funcionalismo,
que se fêz necessário em virtude das maiores tarefas que
se exigiu da Administração, carente de pessoal
capacitado que veio a constituir a Burocracia, definida
por José Duarte como “um corpo permanente de
servidores públicos, com tradição profissional, que faz de
sua atividade no serviço do Estado, sua profissão habitual
e fonte de seus meios de subsistência”91
.
O Poder Regulamentar vem da faculdade do
Executivo em editar normas destinadas a facilitar a
execução das leis. O regulamento tem por isso um campo
limitado, não podendo inovar nem criar hipóteses que
não estejam previstas em lei. Pode restar-lhe todavia uma
área residual quando a lei estabelece normas
programáticas. Por não poder contradizer a lei, o
regulamento tem que obedecer, em conclusão, em sua
elaboração as formas prescritas por ela, não podendo
abranger senão matérias não legislativas, como está em
Vedel, uma vez que a extensão dêsse poder pode consistir
numa delegação disfarçada.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho92
é de opinião
que o Brasil não tem escapado a essa delegação por
fórmulas oblíquas, especialmente por meio de
regulamentos que inovam”.
A doutrina encara três espécies de regulamento: o
de execução, o de complementação e o autônomo.O
primeiro é o regulamento clássico de que acima tratamos;
o segundo, também já referido, dá-se quando o legislador
assenta apenas normas fundamentais; o terceiro constitue
um verdadeiro “poder normativo governamental”.
91 “O Poder Disciplinador”, in Arq. Min. Just. nº 61. 92 “Autonomia do Poder Regulamentar na Constituição Francêsa de
1958”, in “Justitia”, vol. 51.
Agitada pela instabilidade de seu
parlamentarismo, pela fragilidade do Executivo e pelos
problemas ultra-marinos, a França viu-se na contingência
de elaborar a sua atual Constituição, onde se nota um
vigoroso robustecimento da figura do Presidente da
República. De Gaulle, como observam os juristas
francêses, necessitou de uma Carta à sua imagem, que
seduz maus que a sua doutrina, como quer Malraux, para
enfrentar a conjuntura político-histórica. Daí a amplitude
que ganhou o Poder Regulamentar na chamada 5ª
República, exercido com o auxílio do Conselho de
Estado e que pràticamente legisla, estando subordinado
ùnicamente à Cosntituição, podendo, por isso, modificar
ou derrogar leis anteriores. Entendemos que a autonomia
do regulamento não deve constituir uma instituição
permanente. Embora se reconheça que o Executivo se
vem revigorando, numa tendência geral, a sua
transformação em super-poder vulnera o princípio
democrático. Razoável é, no entanto, a delegação,
especificados seu conteúdo e os têrmos de seu exercício.
Sob um outro critério, o Executivo pode ainda exercer
poderes inerentes, implícitos e resultantes, estando os
primeiros vinculados à própria natureza do Govêrno, os
segundos derivados de disposições expressas, como
decorrência inevitável, e os terceiros ligados ao uso das
prerrogativas regulares. A Suprema Corte dos Estados
Unidos ainda não firmou jurisprudência sôbre os poderes
inerentes, ligados às necessidades das circunstâncias,
reconhecendo-os no caso Neagle e rejeitando-os no caso
Kansas versus Colorado. Os poderes implícitos, ao invés,
como demonstra Oswaldo Trigueiro93
, “têm tido na
jurisprudência e na teoria política desde o caso
93 “ Os Poderes do Presidente da República”, in “Estudos sôbre a
Constituição Brasileira”.
McCulloche versus Maryland, que é de 1819, aceitação
quase isenta de controvérsias”, defendendo Marshall a
tesse de que os poderes do govêrno supunham os meios
ordinários de sua execução. Posteriormente o Chief
Justice Waite sustentou o conteúdo progressivo dêsses
poderes que se adaptavam ao desenvolvimento do tempo
e das circunstâncias.
A China apresenta, em sua Cosntituição, um
sistema de cinco poderes representados por “Yuans”
(Conselhos), que formalmente briga com a classificação
tripartida: o Legislativo, o Executivo, o Judicial, o de
Exame e o de Contrôle, os dois últimos, no dizer de
Ollero, formando competências extraídas aos três
primeiros, de problemática autonomia. O “Yuan” de
Exame incide sôbre a verificação das contas públicas,
visando estabelecer um sistema de efetiva
responsabilidade, e o de Contrôle sôbre questões ligadas
ao funcionalismo, e serviços da Administração. O “Yuan”
Legislativo, embora ordinàriamente exerça a missão de
legislar, se não confunde com a Assembléia Nacional que
possue algumas prerrogativas, nem o “Yuan” Executivo,
que óe órgão colegiado, se identifica com a figura do
Presidente da República que, com a Assembléia, não
participa da engrenagem dos poderes.
A necessidade de uma atuação mais vertical na
sociedade obrigou o Poder Político a separar as funções,
antes visceralmente unidas na figura do Chefe e depois
do Rei, cujas prerrogativas, entretanto, sempre
subordinavam às demais. A efetiva separação é, pode-se
dizer, recente na História Política.
O Des. Vieira Ferreira, em seu estudo histórico
sôbre juízes e tribunais do 1º reinado e da Regência,
mostra como essas funções ainda se confundiam, se bem
que um documento transcrito por Augusto de Lima
Júnior94
revelasse já um certo liberalismo reinol: “Não
poderá o Governador e Capitão General, ou outra pessoa,
tirar-vos do dito cargo (referia-se a certos magistrados),
prender-vos ou suspender-vos e, fazendo-o, vós não vos
dareis por suspensos e os prendereis; e ao Governador ou
Capitão-Mor, emprezareis para, diante dos Corregedores
do Crime da Côrte, fazendo Autos dos excessos que
convosco tiverem. E mando aos Oficiais de Justiça e
Guerra, vos obedeçam nisso, sob pena de suspensão de
seus ofícios, e das mais penas que houver por meu
serviço e, sendo o caso, o que não espero que cometais
algum crime ou excesso que pareça deverdes ser deposto
antes da Residência, farão disso Autos, que vós não
impedireis e os remeterão ao Conselho Ultramarino, com
clareza do delito, para eu mandar o que houver por meu
serviço; e nas Residências dos Governadores e Catães-
Mores, se perguntará por isso. E sendo caso que cometais
algum excesso, o que não será tão grave que por êle e
pelas Leis mereçais pena de morte, então sòmente
podereis ser prêso no flagrante, e de outra maneira não”.
O Poder é, de forma geral, a vontade do Estado
que é uma, não se concebendo, como resulta dêste
ensaio, a sua divisão e sim a separação de suas funções,
tendo em vista o interêsse coletivo. Percebeu-o Saint
Girons: “La vraie formule de la séparation des pouvoirs
affirme la nécessité de rendre les pouvoirs législatif et
exécutif indépendants dans leur existense, unis dans une
action commune pour la gestion des affaires publiques”95
.
Em seu apreciado “Manuel” (pg. 157), Vedel, o
abalizado prof. Da Faculdade de Direito de Toulouse,
94 “As Primeiras Vilas do Ouro”, pg. 130. 95 “Manuel de Droit Constitutionnel”, pg. 83, Paris, 1885.
consigna por sua vez: “L’idée fondamentale de tout
principe de séparation des pouvoirs se rattache, comme
l’a très clairement montré M. Berlia, à l’idée qu’il n’y a
pas de liberté possible su l’un des organes représentatifs
de la Nation exerce la plénitude de la souveraineté, alors
que cette souveraineté appartient à la Nation elle-même”.
OS DOIS GLÁDIOS
O Bem Comum foi também o motivo pelo qual
Cristo pregava a separação dos poderes espiritual e
temporal, (assim chamado, orou Vieira, porque dura
pouco). Assim se evitaria, pensamos, não só a tirania,
como uma simbiiose comprometedora para o poder
espiritual. A razçaõ está com Ivan Lins quando escreve
que outro aspecto “que patenteia, de modo insofismável,
as graves imperfeições do regime social dos antigos, é
confusão dos dois poderes”96
. A doutrina dos “dois
gládios”, baseada numa passagem do Evangelho, tão bem
analizada por Dante, está, conseqüentemente, nos
fundamentos do problema que ora abordamos, mas é
preciso que se diga ter sempre a Igreja, através de seus
mais lídimos intérpretes, como Santo Thomaz,
interpretado a “Republica Christiana” como um fato do
mundo moral e das consciências, e não como um desejo
de aglutinação do poder temporal, embora alguns
pontífices, demasiado influenciados pelas contingências
históricas, disso se tivessem onvidado. Quando após o
flagelo Pilatos, ao não receber resposta a uma pergunta
que fizera a Cristo, Lhe diz: “Ignoras que tenho o poder
de te libertar e o poder de te crucificar?”, ouve estas
palavras: “Tu não terias sôbre mim nenhum poder se êle
não te tivesse vindo do alto”, acrescidas de mais estas: “É
por isso que aquêle que me entregou a ti tem um pecado
maior”. Referia-se a Anaz. Esta passagem do Evangelho,
que fundamentou o Direito Divino dos Reis, era ainda
interpretada como que, na separação dos “dois poderes”,
tinha i espiritual maior gradação, por mais responsável
perante Deus. Santo Thomaz, que reconhecia a
96 “A Idade Média, a Cavalaria e as Cruzadas”, pg. 18, Livr. São
José, 1958.
mencionada “separação”, opinava, entretanto, que em
causa de discordância entre os poderes, deveria
prevalecer a vontade do Espiritual.
Parece-me, apesar disso, que, demarcando
nìtidamente as duas competências, Cristo quiz
demonstrar estar o Poder Espiritual, pela natureza de sua
missão, mais ligado a Deus que ao Poder Civil, devendo
por essa razão, responder mais gravemente por seus
abusos. Na Encíclica “Immortale Dei” doutrinou Leão
XIII que as duas autoridades eram justapostas, soberanas
nos seus domínios respectivos. “Cada um é, no seu
gênero, o mais alto”, proclamou o grande Pontífice.
A tardia separação dos dois poderes motivou um
retardamento da autocrítica do poder civvil, que
possibilitou uma distinção mais lúcida de suas funções
que, em substância, são harmônicas e interdependentes,
em significativo equilíbrio. O destaque circunstancial de
uma ou de outra, por sismos políticos, conduzirá
invevitàvelmente ao ritmo perdido para a salvaguarda da
própria ordem democrática.
O “WELTANSCHAUUNGSSTAAT”
A Revolução Francêsa, como a viu Hamon97
, foi mais
política do que social, deflagrando um perigoso
individualismo que, seguidamente entrou em conflito
com o interêsse geral. O Estado democrático moderno,
que Lindsay estima ter surgido nos meados do século
XIX e contra o qual o bolchevismo, o fascismo e o
nazismo são “reações conscientes”, tem, em suas
coordenadas básicas, de ser entendido como um
“Weltanschauungsstaat”, vale dizer como aquêle que se
dispõe à missão de “représenter un idéal politique et
social et de diriger la nation d’une manière active et
consciente vers sa réalisation”.
97 “La Revolución a traves de los siglos”, pg. 95, Ed. Tor, 1943.
ESTADO-MEIO E ESTADO-FIM
Antes de concluirmos êste despretencioso levantamento
de alguns pressupostos da ação política, com uma
referência direta à teoria democrática, se nos impõe a
natureza do trabalho a tomada de posição sôbre o
problema dos fins do Estado. A impostação do mesmo
transcende à acadêmica questão do Estado-meio ou do
Estado-Fim, aquêle fruto de um personalismo exacerbado
e êsse último mal reputado por ter se constituído na
cápsula de totalitarismos, embora Hitler (op. cit., pg. 326)
tivesse escrito: “O grande princípio que nunca deveremos
perder de vista é que o Estado é um meio e não um fim. É
a base sôbre a qual deve repousar uma mais elevada
cultura humana, mas não é a causa da mesma”. Essa
causa seria a existência de uma raça superior, razão pela
qual a finalidade principal do Estado seria a conservação
dos primitivos elementos raciais. Como se percebe, a
matéria deve ser abordada com sutileza e arejamento para
o seu devido entendimento. O Estado como fâmulo e
guarda do indivíduo é hoje fossil político que não tem
meios de ser reanimado, porque na verdade entre a
Sociedade organizada e o homem há uma interação e
uma interdependência contínua. Aquela é uma “vontade
coletiva”, segundo Durkheim, que reflete êsse último de
forma absorvente. Platão, aliás, já sentira isso. O
macrocosmo da vida estatal está condicionado ao
microcosmo da vida individual; daí portando o Estado
um conteúdo violentamente humano, que o identifica
com cada um de seus componentes. A Psicologia Social e
a das Multidões cada vez mais concretizam essa
observação, podendo-se hoje falar numa Psicanálise do
Estado, susceptível, como qualquer pessoa, de
complexos, frustrações, compulsões, sublimações,
derivações e neurosos. Êsse humanismo do Estado não
foi ainda devidamente realçado, embora um autor como
Porrua Perez tenha advertido: “El Estado no debe ser
entendido como una abstración, sino que se le ha de
comprender em función misma de los hombres que lo
originan con su actividad expresando en su contenido la
necesidad de realizar sus deseos y sus aspiraciones”98
. A
eficiência humana através a História, numa contínua
atividade cultural, elaborou o Estado para preservá-la e
garanti-la, e por isso dêle não pode prescindir, em seu
jôgo existencial, porque é dessa entidade concreta que o
organismo social recebe o oxigênio para manter-se com
vida própria e com personalidade jurídica. Em clássica
monografia, Ataliba Nogueira escreve: “O estado não é
fim do homem; sua missão é ajudar o homem a conseguir
o seu fim. É meio, visa a ordem externa para a
prosperidade comum dos homens”99
. “Data vênia” do
eminente professor, cujo apostolado liberal é um exemplo
de idealismo e congruência de princípios, a sua
concepção é de um individualista. A Democracia é fruto
de “decisões coletivas essenciais”, para usar a fórmula de
Vedel, e sendo assim o bem público não pode ser um bem
intermediário e sim um bem final que se colima. O limite
da liberdade, em substância, é o bem comum, como Kant
anteviu, e é êsse bem que garante os direitos humanos,
constituindo a função primordial do Estado.
Vomo ensina o insuspeito Amoroso Lima, em sua
“Política”, a causa final da sociedade organizada é o bem
comum, como a causa formal é a união entre seis
membros, a causa material, são seis próprios
componentes, e a causa eficiente é aquilo de que provêm
o vínculo social.
98 “Teoría del Estado”, pg. 413, 3º ed., México, 1962. 99 “O Estado é Meio e Não Fim”, pg. 153, 2º ed., Saraiva, 1945.
Charles Journet (“Exigences Chrétiennes en
Politique”) considera que a comunidade política é
querida por Deus que, por meio dela, objetiva a plena
realização da vida humana. Isso, entanto, só pode ser
conseguido com a colimação anterior do bem comum,
porque é cristão que o interêsse geral sobrepuje o de cada
um. A minha posição no problema consiste em que
considere o Estado principalmente um fim e
secundàriamente um meio, ou melhor uma finalidade
com duas destinações: primeiro o bem comum e em
decorrência o bem individual. Nem o Estado é mero
instrumento do homem, nem êsse despersonalizado se
encontra absorvido por aquêle, senão que o seu interêsse
deve estar subordinado ao interêsse coletivo.
Ressalvado isso, podemos subscrever a lição de
Reale: “O Estado é um fim e um meio, como já tive
ocasião de dizer: Fim, porque age como agiria a
sociedade tôda se tivesse consciência própria, e não
apenas segundo a resultante mecânica das vontades
individuais; meio, porque é através dêle que o homem
consegue atuar as fôrças que tem em potencialidade”100
.
Nota Goffredo Telles Júnior101
que o Estado, embora
“cingindo-se a sua missão de meio, ordena-se por um
ideal de finalidade”.
A finalidade essencial do homem, como membro
da sociedade e portador de uma dignidade natural, deve
ser pois o bem público, que possibilita a todos os
elementos materiais e espirituais para sua realização
plena.
Porrua Perez, autor da linha neo-tomista, observa,
100 “O Estado Moderno”, pg. 187, José Olympio, 1934. 101 “Justiça e Jury no Estado Moderno”, pg. 31, in “Rev dos
Tribunais”, 1938.
por isso, que o Estado “habrá de sacrificar el bien
particular por el bien general” (op. cit., pg. 481), o qual
em nosso pensar se identifica com a sociedade política e
jurìdicamente organizada que o realiza paralela e
concomitantemente com sua própria categoria
existencial. Como se verifica pela exposição meste livro,
a nossa orientação é culturológica e existencial, e é sob
êsse crivo que encararemos o problema da Democracia,
que não é apenas uma questão político-jurídica, mas
também psicológica e moral e também egológica, para
citarmos Cossio. Modo de ser a Democracia depende,
para a sua integração, de ser vivida em plenitude por cada
membro do corpo social, vivência que poderemos
denominar de sensibilidade democrática. Ela não desce
do Estado para o seu elemento humano, mas dêsse é que
deve ascender para aquêle, como uma indefectível infra-
estrutura psicológica tão importante, por vêzes, como o
fator econômico subliminar. As classes sociais não
deixam de ser também “estados de ânimo” como refere
Simone de Beauvoir, em livro polêmico102
.
Koestler, tratando das “neuroses políticas”, explica as
tendências de alguns intelectuais, como decorrente da
“fatiga de los sinapsis”, isto é, “de um debilitamiento
general de las conexiones entre las células cerebrales por
las que deberia passar la impulsión merviosa... La
violencia indefinida de la conciência del sujeto puede
producir esa fatiga”.
Não que levemos a exagêros tais a interpretação
psicológica da História, utilizada por Nietzsche, mas
queremos ressaltar o elemento psicológico que se entrosa
constantemente com o elemento econômico no subsolo
social. Acreditamos que de nada vale ser o Estado
102 “El Pensamiento Político de la Derecha”, Ed. Leviatan, 1956.
democrático se a Nação não o for. Essa contradição
Estado-Nação, ainda não devidamente estudada, é uma
das causas da crise de nossos tempos que afeta
profundamente a organização social e jurídica.
A CRISE DA CULTURA
O Direito está em crise pelo afastamento da
realidade social, pela ruptura da “coerência” que nêsse
aspecto deve manter, como diz José Saraiva103
e que é
critério do mundo jurídico, pela decadência de seu
conteúdo ético, que conduz à sua finalidade de realização
da Justiça, conceito cultural-histórico, pela má
elaboração e execução das leis e, por ocasiões, pela sua
aplicação.
A crise do Direito é também, em decorrência,
crise do Estado através de seus poderes e de antinomias
comprometedoras.
Rippert bem estudou o “declínio do Direito” pelo
divórcio da “tentativa do justo”, pregada por Stammler,
dos fatos sociais que deve tutelar, tendo Assis Ribeiro
incidido sua crítica sôbre o ângulo moral do problema104
.
Não fala quem identifique crise do Direito com
crise do romanismo, cujos tipos de ordenamentos se
caracterizam pelo racionalismo e pelo personalismo,
incompreensível numa época em que o “yo”, como
advertiu Couture, cede lugar ao “nosotros”. Parece-nos,
contudo, que a crise mencionada exorbita dos países de
tradições romanistas, para se tornar uma crise geral,
alimentada por um individualismo jurídico que se
apresenta camuflado nos interêsses de partidos, grupos
sociais e até classes.
Com pertinência ao Estado, o sistema de “freios e
contrapesos” é mais uma fórmula de equilíbrio mais dos
defeitos que das virtudes dos poderes, contaminados o
103 “A Crise do Direito”, pg. 53, Lisboa, 1964. 104 “Reflexões sôbre a Crise do Direito”, Freitas Bastos, 1951.
Executivo e o Legislativo pelas deficiências do sistema
eleitoral e o Judiciário pela perda de uma perspectiva
dinâmica e cultural da norma jurídica. A hipertrofia
ocasional de qualquer dêles pode justificar os escrúpulos
de Royer-Collard: “A la place d’um despotisme simple,
nous aurions um despotisme composé” (op. cit., pg. 42).
O intervencionismo estatal nas relações privadas apenas
teòricamente freiou o individualismo egoista que será
sempre um óbice para a realização da autêntica idéia
democrática, com a qual precisamos retomar contacto,
embora o referido movimento doutrinário não tenha
deixado de ser um vigoroso fator para o reaparelhamento
dos espíritos. Com a publicação do livro de Gaston
Morin, “La Révolte du Droit contre le Code”, considera
Paulino Jacques105
, “não houve mais dúvida quanto à
restrição à autonomia dos indivíduos, à decadência da
soberania do contrato e à limitação da propriedade
individual”. E complementa Alvim Lima (“Ver. Fac. Dir.
SP.”, vol. XXXV): “As novas doutrinas se enfeixaram
contra os princípios do Código Napoleão”. Não se pode
discutir que o desprestígio da Escola da Exegese veio
espiritualizar o Direito, mas êle continua servindo
lacunosamente a circunstância desvinculada de sua
transcendência, permanecendo entològicamente
desajustado. É preciso abrir uma janela para a
transcendência, proclamou Jaspers.
O marginalismo jurídico para nós se caracteriza,
ainda, por dois pontos além dos já mencionados, entre os
quais se destaca a falta de sintonia com a realidade social
que o Direito imperfeitamente procura refletir: o seu
caráter esotérico, com pertinência ao seu
desconhecimento pelas massas que nêle não vêm um
105 “Da Norma Jurídica”, pg. 35, Forense, 1963, 2ª ed.
conteúdo humanístico nem o “catecismo”, de que falava
Bentham, e a posição de vanguarda de alguns institutos
para os quais o povo ainda não amadureceu
conscienciològicamente. Resulta disso tudo que o Direito
pode se encontrar em dissonância com o meio social, não
só por se encontrar aquém como além dêle, repercutindo
essas alternativas no Estado.
Mas a crise que se vem estudando é acima de
tudo, como percebeu Orlando Gomes106
, uma síntese “do
desajustamento espiritual dos tempos presentes”. Com a
queda do índice de aprovisionamento da espiritualidade,
entrou em crise a própria cultura da qual o Direito e o
Estado são das mais importantes manifestações. Eis a
razão pela qual, em “ultima ratio”, nos defrontamos com
uma crise da Cultura, isto é, do próprio homem em sua
trajetória histórica, e não ùnicamente como uma crise de
clases como querem os marxistas.
O problema da reformulação do homem, necessária para
uma democracia integral, encontra solução na educação
adequada.
“O hábito, confessou João Lyra Filho107
, faz-me
repetir que a instrução é a arma de cabeceira da
democracia”.
Adiante concluiremos melhor o pensamento.
Alguns, como Vordú, consideram a Democracia
uma forma de Estado, espécie de sociedade estatizada;
outros a enquadram como forma de Gôverno; finalmente
terceiros a concebem como um método, ponto de vista
encampado pela Constituição Italiana (art. 49): “Tutti i
citadini hanno diritto di associarsi liberamente in partiti
106 “A Crise do Direito”, pg. 5, Max Limonad, 1955. 107 “Universidade e Democracia”, pg. 5, Rio s/d.
per concorrere com metodo democratico a determinare la
politica nazionale”.
Para nós a Democracia é forma de Gôverno,
modo de ser do Poder Político, reflexo da ordem social,
representando o “estuário das manifestações intrínsecas”,
na feliz expressão de João de Deus Lacerda Menna
Barreto108
. O Preâmbulo da Constituição de 1946 referia-
se a “regime democrático”, e embora haja discordâncias
na doutrina, entendemos que a Forma de Gôverno se
complementa com o Regime, que pode ser republicano,
monárquico e aristocrático, sendo um “prius”, com
relação a êle. Guelli (op. cit., pg. 43) conceitua o regime
como a “realização do princípio político, que informa a
relação fundamental de uma relação estadual, no
princípio jurídico constitucional da mesma e,
tendencialmente, em todo o seu ordenamento jurídico”.
Em trabalho de fundo culturológico afirma Nelson
Saldanha109
que “o regime pressupõe a forma sôbre cujas
possibilidades decide as variações”, O Sistema de
governo, por sua vez, que pode ser presidencial,
parlamentar e colegiado, é, em suma, modo de
governação do Estado. Uma efetiva percepção do
histórico é, aliás, necessária para as distinções feitas.
108 “Estado e Gôverno Através das Formas”, pg. 14, Rio, 1962. 109 “As Formas de Gôverno e o Ponto de Vista Histórico”, pg. 38,
Belo Horizonte, 1960.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Em trabalho substancioso110
Leslie Lipson
defende o ponto de vista de que a Política, inquieta área
de controvérsias, pode ser compendiada em certos
problemas fundamentais que não variam, a não ser nas
soluções apresentadas. O campo que estamos
percorrendo, levados por nosso objetivo, embora
delimitado por questões básicas do Estado e da Cultura, e
por isso mesmo, é içado de dificuldades e obstáculos,
compensados já pela autenticidade dos propósitos que
almejamos demonstrar.
Não identificamos Civilização e Cultura. Para nós
a primeira é um ascender no plano axiológico material, e
a segunda um evolver integral e valorativo da
espiritualidade, que assim vai sendo acondicionada. É a
orientação de Simmel e Berdiaeff. Os estágios que uma e
outra passam através os períodos históricos constituem o
progresso que, para Condorcet, é contínuo e indefinido, o
que Nicéforo quis comprovar estatìsticamente. Não se
confunda, todavia, progresso e evolução. Esta é o
movimento de transformação dos sêres animados e
inanimados, como exprime Ferraz Alvim111
. Para nós, a
Civilização é um meio e a cultura um fim, no que
estamos com MacIver112
: “Nossa cultura é o que somos e
a civilização o que usamos (meios)”. Passagem para a
Cultura, a Civilização não pode ser considerada um
“fim”, sob pena de esclorosamento daquela, como
doutrinou Spengler que, como Sorokin (e como
Schumpeter com relação ao Capitalismo), admite ser a
110 “Os Grandes Problemas da Ciência Política”, Zahar, 1967. 111 “Sociologia”. 112 “O Estado”, Livr. Martins, 1945.
Cultura regulada por normas idênticas às que presidem os
sêres vivos, sem se precipitar, é evidente, num
organicismo novecentista.
A subordinação do Estado à Cultura, em
prosseguimento à sua submissão ao Direito,
possibilitando a perfeita integração de suas entidades
constitutivas, parece-nos, pois, lógica. “O Estado
democrático – Estado eminentemente social – pensa
Oldegar Franco Vieira113
, só a Cultura, com efeito, pode
realizá-lo, pois a Cultura, compreensiva do Direito, não
se conclui na negação do homem pelo homem”.
Vedel dispôs-se a “envisager les problèmes du
droit constitutionel sous l’angle de la signification de la
démocratie”, impregnando sua construção fortemente
dêsse sentimento, cuja inspiração é a liberdade limitada
pelo bem de todos. A procura da “democracia real” e não
da “democracia formal” é por isso dever dos estudiosos
da Ciência Política.
113 “Introdução ao Direito Público”, pg. 111, Liv. Progresso, 1957.
A TEORIA DEMOCRÁTICA
Burdeau que, com propriedade, sentenciou ser a
democracia “uma filosofia, um modo de viver, uma
religião e, quase acessòriamente, uma forma de
gôverno”114
concebe duas espécies de Democracia: a
Democracia Governada, forma primitiva ligada a uma
concepção liberal da função estatal, e a Democracia
Governante, aquela em que a vontade do povo real
domina, forma jungida a uma interpretação social da
missão do Poder, que deve ser forte sem se tornar
arbitrário. O Estado não é apenas a ordem jurídica, mas
substancialmente é êle um poder embasado nessa ordem,
razão porque está em planosuperior aos indivíduos que o
compõe e que estão subordinados às suas prescrições.
Adoto êsse postulado porquanto, como se lê em Kelsen, a
“Teoria Geral do Estado só deixará de nos aparecer como
um agregado, mais ou menos arbitrário, de questões
heteróclitas, só demonstrará a sua unidade científica,
quando conseguir estudar e resolver todos os problemas
reunidos sob seu nome, por intermédio de um só
princípio fundamental”115
.
Entendemos que o problema democrático está no
cerne da Sociologia Política e que todas as questões
devem ser estudadas à luz daquela magna preocupação. A
leitura de nossa dissertação revela claramente que
colocamos o interêsse público acima do bem individual
que a êle se subordina, ensejando uma democracia
enérgica, discricionária dentro dos moldes legais, bem
distante, considere-se, de quaisquer despotismos, pela
conciliação entre o Direito e o Poder. O liberalismo
114 “A Democracia”, pg. 9, Lisboa, 1962. 115 “Teoria Geral do Estado”, pg. 6, Coimbra, 1951.
atento admite mesmo nêsse sentido um Estado forte, o
“Liberales Machtstaat”. A Política de hoje não é mais,
como irònicamente acentuou Valéry, a “arte de impedir
que nos envolvamos naquilo que nos diz respeito”,
porque a gravidade de suas questões impõem ao homem
a responsabilidade de uma escolha. Daí um nexo entre
doutrinação e heroismo pela fidelidade que se exige
àquela a sua própria vocação.
A situação política não mais admite que a
consideremos como um contrato leonino em que o
indivíduo só tem direitos e o Estado deveres, ou que
aqueles superem êsses. “Jus et obligata sunt correlata”,
admoestavam os romanos, e é dêsse equilíbrio que se
deve nutrir a verdadeira Democracia, sob pena de
advento de extremismos.
Se a liberdade, conclamou Machado Paupério,
“pode levar o espírito à libertação mais completa, pode-o
arrastar também à mais total escravidão”. Era essa a idéia
de Platão, na “República”: “El exceso de liberdad em el
indivíduo y en el Estado debe llevar a un exceso de
servidumbre”.
A Democracia não é imcompatível, pois, com a
presença e a intervenção do Estado, no interêsse coletivo
e na sua missão de Cultura, estando, por isso, sob o
reinado “ab aeterno” do Direito, como prega Haroldo
Valadão116
.
Marigildo de Camargo Braga117
considera que “o
Estado Liberal não podia prevalecer e que o
individualismo conduz à destruição da moralidade
pública, entregando o homem à sua própria sorte,
116 “Direito, Solidariedade, Justiça, pg. 163, José Olympio, 1943. 117 “Ingerência do Estado na vida do trabalhador”, pg. 63
seguindo o destino que lhe convier”.
O espírito alerta de Paulino Jacques118
já havia
mostrado, por sua vez, que “nem a ditadura do
proletariado, nem a democracia capitalista se
compadecem com as necessidades sociais e os interesses
individuais de nossos dias”.
Com pertinência à realidade brasileira, é oportuno
o depoimento de Sérgio Buarque de Holanda119
: “O
Estado, entre nós, de fato não precisa e não deve ser
despótico – o despotismo condiz mal com a doçura de
nosso gênio – mas necessita de pujança e de compostura,
de grandeza e de solicitude, ao mesmo tempo, se quiser
adquirir alguma fôrça e também essa respeitabilidade que
os nossos pais ibéricos nos ensinaram a considerar como
a virtude suprema entre tôdas”.
Aderson de Menezes, em bem informado
compêndio120
, percebera também a necessidade de não
ser abalada a harmonia do binômio Estado-indivíduo.
Cambo assoalhara que “a mais funesta manifestação da
demagogia é a constante exaltação da democracia-direito,
sem que aí se fale jamais na democracia-dever”, e
Oliveira Vianna121
já explicara que, entre nós, mui
peculiarmente vive a “democracia em estado atomístico”,
fundando-se ùnicamente no indivíduo.
Também Themístocles Cavalcanti122
, “com uma
consideração tôda particular pelo interêsse social”,
mostra as inconveniências do Estado liberal e os abusos
do individualismo.
118 “Democracia Parlamentar”, pg. 33, Rio, 1947. 119 “Raízes do Brasil”, pg. 142, José Olympio, 1936. 120 “Teoria Geral do Estado”, pg. 69, Forense, 1960. 121 “Problemas de Política Objetiva”, pg. 120, Ed. Nac., 1930. 122 “Teoria Geral do Estado”, pg. 115, Borsoi, 1958.
EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA
Devidamente organizada, em sua totalidade
cultural, a democracia necessita de energia para manter-
se e garantir a ordem social. “Es necesario que haya un
Gobierno flerte, exortou o grande democrata Angel
Ossório123
para impedir que nazca un Gobierno de fuerza.
Que son cosas completamente distinctas”. Era também o
pensar de Roosevelt. Nós que não aceitamos a
Democracia Política, como já dissemos, e sim a
Democracia Social, pactuamos com José Augusto,
quando escreve a respeito dessa última que “prega a
supressão da luta de classes, buscando realizar a idéia de
socialização humana e criar, graças às condições de
existência que sorgirão, e graças também a uma educação
adequada à juventude, a nova consciência solidária dessa
socialização”. Realizar-se-á, então, “o mundo nôvo da
solidariedade e da liberdade”, apregoado por Max Adler.
E timbrando mais uma vez o papel da instrução,
lembramos o ensinamento de William Robson: “A
democracia não é sòmente a forma mais difícil de
govêrno. É também aquela que exige maior
conhecimentos tanto dos governantes como dos
governados”124
.
Quando na presente exposição usamos os
vocábulos “social” e “socialista”, é conveniente deixar
claro, o fazemos como antônimos de “individual” e
“pessoal”, preferencialmente, sem que necessàriamente
traduzam conceitos próprios do materialismo dialético.
Desejamos, isso sim, alicerçar o Direito e o Estado, como
123 “Nociones de Derecho Político”, pg. 69, 3º ed. Atlantida, 1963. 124 “O Ensino Universitário das Ciências Sociais”, pg. 123, Fund.
Getúlio Vargas, 1958.
fala Duguit, “sôbre o caráter social e as obrigações
sociais do homem”. Wilson de Lima Bastos125
, como
Maritain, estima necessário indicar a verdadeira essência
da democracia e realizá-la em tôda sua autenticidade.
Realmente, está aí a solução para a grande crise de nosso
tempo, em “que los valores fundamentales de la cultura,
denunciou Bodenheimer, están siendo desafiados y
atacados”.126
Quando a República, no Brasil, somou trinta e
cinco anos, vários intelectuais depuseram sôbre ela no
livro “À Margem da História da República” que, em
conclusão, é um registro de decepções. Carneiro Leão
assinalava ser o Brasil propriedade de grupos; Celso
Vieira, apontava o desajustamento entre a Constituição e
o homem; Gilberto Amado declarava que, por ser a
educação inadequada, inadequados eram as leis, as
instituições e o mundo político social, tese absolutamente
certa. Jonathas Serrano, evocando a vibrante figura de
pregador do padre Julio Maria, frizava a necessidade de a
Igreja ir ao encontro do povo, tema retomado pelo
Concílio do Vaticano II; Oliveira Viana mostrava a de se
substituir uma concepção estética da Constituição pela
sua adequação; Pontes de Miranda proclamava a falência
do regime, caracterizado por seu desamor às coisas
públicas. Nêsse ról de críticas estão Nuno Pinheiro e
Tristão de Athaide. Vicente Licínio Cardoso acentuava a
carência de um Idealismo Orgânico e Construtor
Nacional. As únicas exceções foram Ronald de Carvalho
e Tasso da Silveira. E porque a República estava em
crise? Exatamente pela crise de sentimento democrático
que se realiza numa base popular dinâmica.
125 “Crise de Autoridade”, pg. 121, Juiz de Fora, 1956. 126 “Teoria del Derecho”, pg. 9, 3ª ed., Fondo de Cultura, 1964.
Nós nos filiamos à Democracia Cristã e
modestamente adotamos as atitudes de sua vanguarda, na
qual, é evidente, sobressaem Luigi Sturzo e Primo
Mazzolari, como apóstolos da Igreja Militante em sua
faceta mais realista e dinâmica.
“L’espressione ‘democracia cristiana’ (qualque
volta sostituita anche dal termine ‘socialismo cristiano’ o
‘cristianismo sociale’) sta a significare, assenta Wolf
Giusti127
, uma corrente cattolica che, in considerazione
dei programi social dela democrazia, del socialismo e poi
dei moderni movimenti totalitari, ha voluto congiungere
l’osservanza per la fede cattolica com il riconoscimiento
dell’esistenza di uma “questione sociale”, da risolversi
secondo certi legitimi desideri e bidogni dele classe
lavoratrici”.
Concebendo o humanismo como um princípio de
integração do homem na vida social, como indica Yves
Simon, e o Poder como uma integração funcional da vida
comum estatizada, é evidente que para nós a Demoracia
não só tem caráter quantitativo, como relação à vontade
da maioria, como qualitativo pelas dimensões da
integração que a justifica. Monti (op. cit., pg. 25) teoriza
que o voto deve ter em mira o bem comum e que “o bem
particular deve ser subordinado ao geral”.
É lógico que acreditamos que só através dos
princípios evangélicos podemos colimar o bem geral e
realizar a Democracia.
Não destoa La Pira (op. cit., pg. 224): “a pessoa
está subordinada ao verdadeiro bem comum social e
político que é sempre, em última análise, o bem integral
da pessoa”. Remeta Plínio Salgado que a Democracia
127 “La Democrazia”, pg. 51, Milão, 1945.
“vivifica a liberdade dos homens e a autoridade do
Estado, fazendo a primeira fundamento da segunda e a
segunda condição da primeira”128
, estando sua base,
repise-se nos ensinamentos do Evangelho. Eis o motivo
pelo qual a Democracia pode mudar de forma, mas não
de essência. Dissera, exaltadamente, Lamennais (op. cit.,
pg. 156): “O que devemos querer? O bem de todos,
sacrificando-lhe, se necessário, o nosso bem pessoal”.
Em consequência, “quanto mais confundirmos a
nossa vontade com a do Estado, tanto mais
completamente livres nos tornamos” (Laski), mesmo
porque o Estado tem lutado em pról do indivíduo contra
os grupos secundários que o oprimem. “Rompeu-lhe as
cadeias e abriu-lhe novos horizontes”, completa Lévy-
Bruhl (op. cit., pg. 22).
Não se pode mais falar no “Estado boleeiro”,
baseado naquela famosa passagem de Courier, em que se
via o Poder Político, como um símbolo, dirigindo a
carruagem, onde o indivíduo lhe apontava os caminhos.
Mortos estão, não só o liberalismo político, em
sua forma pura, como o liberalismo econômico, assim
definido por Pinto Antunes: “A intervenção do Estado na
ordem econômica só se justifica para garantia do direito à
propriedade privada em tôda sua compreensão e
extensão. O resto vai por si, num automatismo
impressionante, a modo de uma harmonia preestabelecida
por Espírito Superior”129
; na vontade da maioria,
conteúdo da forma democrática, vamos o respeito pela
minoria devidamente representada e cujas idéias poderão
tornar-se maioria na flutuação histórica, jamais com o
128 “O Conceito Cristão da Democracia”, São Paulo, 1951. 129 “Os Direitos do Homem no Regime Capitalista”, pg. 28, São
Paulo, 1947.
caráter de onipotência. Essa circulação é aliás fenômeno
normal no campo socio-político.
Mas é exatamente para a realização da idéia
democrática que se torna necessário preparar os homens
que irão constituir a categoria dirigente, por ser
inseparável a idéia de organização social a idéia de
oligárquico, no bom sentido, de uma elite governamental
que se impõe seja difundida.
“A fórmula do ‘Govêrno do povo pelo povo’ diz
Duverger, deve ser substituída por esta: ‘Govêrno do
poro por uma elite nascida do povo”.
A minoria criadora de cultura deve ser preparada
no sentido de orientar as grandes massas, esclarecê-las e
aparelhá-las para que delas brotem novas elites. A
monoria séria então como um reflexo ensejado pela
vocação democrática da maioria que com ela, sua “longa
manus”, se harmonizaria na consecução do bem comum.
Gasset, a quem preocupou o problema da “rebelião das
massas”, e com o qual afinamos, de modo geral, via a
organização das elites, num sentido educacional, como a
salvaguarda da própria Cultura.
A Democracia só pode concretizar-se, pois, com a
formação de classes dirigentes perfeitamente integradas
nas reivindicações da maioria, maioria que um dia será
também criadora, abrindo-se como um pálio por todas as
nações, sedimentando a paz pela fraternidade e pelo
Direito, dentro de um Estado robustecido pelo interêsse
coletivo na culminância de um processo cultural.
CONCEITO DE DEMOCRACIA
Pronunciou-se Fondizi130
: “La educación
permitirá elevar, aún más, a las masas, las que, lenta y
seguramente, se van incorporando a la vida de la cultura;
además permitirá orientar, em sentido espiritual, ciertas
tendencias equivocadas del hombre moderno, debidas,
más que nada, al médio em que vivió. Con una y otra
cosa, quedará abierta a todos la senda que conduce a la
única y verdadera vida: la del espíritú”. O conceito de
Democracia de Thomaz Cooper, em 1795, “é o govêrno
do povo e para o povo”, depois retomado e completado
por Lincoln, é hoje incompleto, ainda mais que a
Democracia se apresenta como fé, sistema de vida e
objetivo universal, na indicação de Powel Davies131
.
Aceitável, “a grosso modo”, o de Merrian132
: “é uma
forma de organização política em que o contrôle geral e a
direção dos interêsses coletivos são habitualmente
exercidos segundo convenções e normas que garantem a
participação e o consenso dos governados”.
Seja-nos lícito, entrementes, exprimir o nosso
conceito: Democracia é a forma enérgica de govêrno
exercida por elites dirigentes, para isso preparadas, que,
por delegação da vontade da maioria, respeitadora das
prerrogativas da minoria, objetiva o bem comum através
o desenvolvimento de um processo de Cultura.
130 “El Estado Moderno”, pg. 197, Depalma, 1954. 131 “Uma Definição da Democracia”, Biblioteca do Exército, 1956. 132 “Que é Democracia”, pg. 30, Ed. Assunção, 1947.
CONCLUSÃO
Estamos cinvictos que a sua essência está na
mensagem ainda não seguida dos evangelhos que
assinala o ápice de um processo histórico no mundo
antigo e à qual devemos retornar para transpôr a crise de
consciências que é, em suma, a crise do próprio Homem.
*****
Pedimos escusas pela seguinte
ERRATA
Pg. 35 As palavras de Cristo referidas no texto
pertencem ao “Sermão da Montanha”.
Pg. 37 É de autoria de Carlo Prina o trabalho:
“Dante Político e Matemático”, colocado
ao pé da pg. 37.
Pg. 37 É de autoria de Inácio Silva Telles o
“Conceito de Democracia no Mundo
Contemporâneo” e de Cirell Czerna “A
Justiça como História”, onde estuda
Salutatti, trabalho que faz parte de
“Ensaios de Filosofia do Direito” (vários
autores). Saraiva, 1952.
Pg. 41 A citação de Kant consta de “Lo Bello e
lo Sublime”, pg. 14. Espasa-Calpe,
Madrid, 1957, sendo que o trabalho que
figura em seu lugar se encontra
devidamente colocado na pg. 49.
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