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Professor Celestino apresenta com clareza um problema que se arrasta na educação pública do Estado de SP: deixar de fornecer minimamente ao corpo docente tempo e espaço na constituição de seu trabalho.
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Celestino Alves da Silva Júnior
A Escola Pública como local de trabalho
CORT€Z €DITORQ
EDITORA AUTORES
ASSOCIADOS
A ESCOLA PÚBLICA COMO LOCAL DE TRABALHO
CELESTINO ALVES DA SILVA JUNIOR
I ^
i
Introdução
Há algum tempo, em um exame de qualificação ao Mestrado de que
participávamos juntamente com Moacir Gadotti, orientador da candidata, Vitor
Paro referiu-se àquilo que considerava uma impropriedade no trabalho em
discussão: a citação de um texto em que me refiro às relações da escola com a
sociedade política e com a sociedade civil no Brasil. Na íntegra, a citação
contestada por Paro é a seguinte:
Nossas escolas públicas são hoje instrumentos da sociedade política e não da sociedade civil. Servem ao controle do Estado tanto quanto a legislação, a polícia e os tribunais. Devem, no entanto, e podem ser recuperadas pela e para a sociedade civil (Silva Júnior, 1982:40).
Respondida por Luci Silva Samartini, a quem fora dirigida a pergunta,
complementada por mim a resposta e sancionada por Gadotti, a questão foi
considerada esclarecida por Paro. Para mim, no entanto, o episódio suscitou
novas reflexões, que se juntaram às muitas que vinha desenvolvendo e que
acabariam por me levar à proposição formal deste trabalho. O que Samartini
disse a Paro, interpretando corretamente meu pensamento, foi que no Brasil as
escolas comportam-se quase que invariavelmente como instâncias da
sociedade política, embora na tradição teórica que reporta a Gramsci e Marx
devessem ser conceituadas como integradas à sociedade civil. É em virtude das
condições atuais do Estado brasileiro que elas "servem à sociedade política
tanto quanto a legislação, a polícia e os tribunais".
A ambiguidade que deu causa à observação de Paro é uma das marcas
da escola brasileira hoje. Quando particular, ela quase sempre expressa e
materializa os valores e as aspirações dos segmentos sociais que lhe
encaminham seus jovens. Tais valores e aspirações, muitas vezes expressos de
forma intelectualmente sofisticada, pouco diferem, em realidade, do discurso e
da ação governamentais, formalmente voltados para a "modernização das
estruturas" e o "estágio do capitalismo avançado". Ainda quando particular, a
escola brasileira busca ser "alternativa", "renovada" ou "progressista", rótulos
suficientemente ecléticos para atrair setores da classe média urbana
insatisfeitos com o "tradicionalismo" e o "imobilismo" da escola pública. O próprio
"tradicionalismo", no entanto, pode ser um valor de legitimação em algumas
escolas particulares. Valorizam-se tanto as formas tradicionais de selecionar e
apresentar os conteúdos de ensino quanto a própria tradição representada por
determinadas escolas em sua trajetória institucional. Em uma sociedade
submetida à ação de um Estado essencialmente privatizado, como o Estado
brasileiro de hoje, os planos de intersecção de valores e expectativas
frequentemente se manifestam.
A privatização do Estado brasileiro não se manifesta, entretanto, de forma
direta na organização e no funcionamento das escolas que mantém. Quando
pública, a escola brasileira não merece do Estado a atenção e o cuidado que sua
função atual de promotor dos interesses da burguesia poderia fazer supor. Não é
através de suas escolas que o Estado brasileiro difunde de maneira organizada
e valoriza os interesses a que se filia. Tal como na Itália de Gramsci, o Estado
brasileiro "se desinteressa da escola; deixa que os burocratas façam e desfaçam
em seu interior" (Gramsci, 1920:256). Talvez seja pelo desleixo, pela omissão e
pela desagregação resultantes em suas escolas que o Estado brasileiro mais se
desincumba de sua função de realizador de um projeto da burguesia. Propor a
escola para todos e realizá-la no mais baixo padrão possível para a maioria
parece ser a estratégia-síntese do Estado brasileiro em relação à educação
popular.
Ezpeleta e Rockwell observam, entretanto, que a questão da educação
popular não é obrigatoriamente associada à discussão sobre a escola. Ao
contrário, é a dissociação entre ambas que mais frequentemente é observada na
análise das relações entre Estado e classes subalternas. A escola —
necessariamente pública, neste caso — é pensada como o local de que o Estado
se utiliza para assegurar a continuidade do domínio dos que detêm o controle
dos meios de produção e, por extensão, o poder. Por intermédio da escola
estabelecer-se-iam as relações com os grupos dominados, subordinando-os e
limitando suas possibilidades de organização autônoma. Essa explicação
"reprodutivista" acaba por sugerir que a defesa do interesse popular implica o
seu afastamento da escola pública.
A "construção social da escola", que as autoras propõem como objeto de
conhecimento e como dado de realidade, se contrapõe a essa visão
simplificadora do real. Buscando conhecer a escola a partir de "uma visão de
baixo", Ezpeleta e Rockwell assinalam a inadequação das categorias e dos
conceitos comumente utilizados, quer na visão positivista, quer mesmo na
perspectiva crítica, em que a "necessidade de construir um poder alternativo
adota, com frequência, os parâmetros clássicos do positivismo, para efetuar,
com outro conceito, uma leitura 'às avessas' da mesma realidade. Mas,
igualmente, numa perspectiva tomada de cima' (1985: 107) (grifos meus).
Enquanto objeto de conhecimento, a "construção social da escola" lida
com
uma trama em permanente construção que articula histórias locais — pessoais e coletivas — entre as quais a abstrata vontade estatal pode ser absorvida ou ignorada, encadeada ou recriada em forma particular, deixando margens variáveis para uma maior ou menor possibilidade hegemônica. Uma trama, enfim, que é necessário conhecer porque ela constitui, simultaneamente, o ponto de partida e o conteúdo real de novas alternativas, tanto pedagógicas como políticas (Ezpeleta e Rockwell, 1985:108)
A teoria herdada e a história documentada (grifos das autoras) produzem um efeito ocultador do movimento real. Entretanto — é delas ainda a afirmação —
essa história e essa existência documentada da escola, coexistem com outra história e outra existência não documentada, através da qual toma forma material, adquire vida. É a história dos setores da sociedade civil que, através de seus trabalhadores, alunos e pais, se apropriam dos apoios e prescrições estatais e constroem a escola (Ezpeleta e Rockwell, 1985:108) (grifos das autoras).
Os conceitos de "apropriação" e de "vida cotidiana" constituem,
evidentemente, peças fundamentais na discussão proposta. Como
desdobramento de sua explicação, as autoras apontam a necessidade de "uma
releitura das categorias analíticas gramseianas de sociedade civil e sociedade
política, interpretadas como formas de relação historicamente construídas e
ambas presentes na escola" (1986:75).
Como sabemos, o próprio Gramsci se encarregou de ampliar o conceito
de Estado estabelecido por Marx. Em sua visão a sociedade civil não se afasta
do Estado (sociedade política), mas a ele se integra como instância capaz de
promover a sua transformação. No caso do Estado brasileiro atual, uma
recém-desperta sociedade civil volta-se para a escola na tentativa, ainda
incipiente, de "construí-la" socialmente segundo seus interesses e
necessidades. Este movimento social, perceptível por enquanto apenas em
alguns grandes centros urbanos, constitui uma resposta organizada a certas
proposições que, às vezes por ingenuidade, outras tantas por má-fé, pretendem
"retirar" do Estado e "devolver" à sociedade civil a responsabilidade pela
realização do processo de escolarização. Quando se reconhece na realidade
escolar — como o fazem Ezpeleta e Rockwell — um processo de construção
social e uma significação potencial para a formação de classe, "está implícita em
nossa análise uma valorização da escola, da escola pública, laica, de massa e,
inclusive, centralizada (1986:73) (grifos meus).
Recorro a Ezpeleta e Rockwell porque estou convencido da inviabilidade
das generosas tentativas que educadores brasileiros, vêm desenvolvendo em
anos recentes no sentido de construir uma teoria "da escola" ou, mais
limitadamente, de definir critérios específicos para a organização do trabalho "na
escola". Tais tentativas, em sua generalidade, esbarram em uma dificuldade de
origem: a não distinção entre escola pública e escola privada; a não explicitação
das peculiaridades que envolvem um e outro tipo de escola nas condições da
realidade brasileira atual.
Se alguma teoria pudermos construir, esta deverá ser, com certeza, uma
teoria da escola pública no Brasil. Se alguma contribuição pudermos oferecer,
esta também certamente deverá se referir à organização do trabalho na escola
pública brasileira hoje. É assim, nessa perspectiva circunscrita e delimitada, que
este trabalho deve ser lido e procurou ser construído. É de tal forma radical a
diferença entre as formas de manifestação e de existência da escola pública e da
escola privada no Brasil de hoje que não há como abrigá-las em um mesmo
esforço de análise e de reflexão. Pensar a escola pública significa pensar a crise
do Estado brasileiro; significa, consequentemente, reinterpretar a relação entre
sociedade política e sociedade civil no Brasil de hoje. Obviamente, também a
escola privada poderia ser pensada a partir da crise do Estado brasileiro. Mas,
por mais afetada que possa ser por essa crise, a escola privada prosseguirá sua
trajetória de instituição capitalista de prestação de serviços, concebida e
administrada em consonância com a ordem geral da sociedade capitalista em
que se inscreve. Já a escola pública, para além do desafio de sua própria
sobrevivência em condições precárias, enfrenta também a necessidade do
esclarecimento de conceitos e categorias de análise cuja significação se vem
alterando em função mesmo do momento histórico vivido pelo capitalismo
brasileiro. Antes de mais nada é preciso reinterpretar o próprio sentido de
"público" e de "privado" para nos credenciarmos a uma discussão produtiva
sobre o estado atual da escola pública no Brasil.
"Público" e "privado" constituem para Norberto Bobbio "a grande
dicotomia" (Bobbio, 1987:20). Essa dicotomia apresenta-se, na verdade, em dois
planos. Num plano maior, mais intensa e frequentemente discutido, a dicotomia
público/privado diz respeito à alternância do primado do público sobre o privado
e vice-versa; ou seja, diz respeito às relações entre o Estado e seus cidadãos,
ou, entre os direitos comuns e os direitos individuais. Mas, também em um
segundo plano essa dicotomia apresenta-se relevante. Trata-se de um outro
significado, em que o conceito de "público" diz respeito à transparência dos atos
praticados, quer pelo Estado, quer pelos próprios cidadãos. Neste segundo
sentido, o Estado brasileiro se apresenta como muito pouco "público", já que
frequentemente vemo-nos na contingência de desvelar o lado secreto de suas
ações e de suas propostas. Nesse momento atual de sua história, o Estado
brasileiro não faz necessariamente do "público" o declarado; o que anula, em
termos de realidade, a dicotomia com o "privado" correspondente a secreto. O
"segredo de Estado" é apresentado e justificado como de interesse público.
Somos, assim, instados a confiar no aparelho do Estado, ao mesmo tempo em
que o sabemos apropriado por interesses privados.
A escola pública, de que nos ocuparemos neste trabalho, situa-se, em
realidade, na confluência da sociedade civil e da sociedade política. Sendo o
local da luta ideológica, do entrechoque das ideias e das convicções, apraz-nos
colocar a escola como um organismo da sociedade civil. Em seu interior
manifestam-se as tensões e as correlações de forças que atravessam todo o
tecido social. Sendo também, por natureza, o território da persuasão e não o da
coerção, mais ainda nos convencemos da validade da localização da escola no
conjunto das instituições da sociedade civil.
No caso da escola pública brasileira, no entanto, não nos é possível
desconsiderar o fato de que ela se integra efetivamente ao conjunto dos
aparelhos do Estado. Não se trata aqui de reeditar a discussão, a essa altura
cediça, proposta por Althusser e ampliada pelos teóricos do reprodutivismo.
Trata-se, isto sim, de reconhecer a dependência estrutural da escola pública
brasileira em relação ao Estado a que se integra e trata-se também de assinalar
as evasivas com que esse Estado manipula as suas responsabilidades para com
o "público", ou seja, para com o conjunto da população. Veja-se a esse respeito
o cultivo pelo aparelho do Estado das "ideologias de conveniência", do tipo
"descentralização", "participação", "municipalização" ou "ação comunitária". Em
todas elas o Estado "despubliciza" suas responsabilidades, ao mesmo tempo em
que aparenta favorecer o público com a possibilidade que lhe abre de
interveniência em suas decisões.
Quando escrevi a passagem citada por Samartini, tinha em mente esse
comportamento do Estado brasileiro em relação às escolas sob seu controle.
Interessa-se por elas quando, por circunstância, elas parecem favorecer o
alcance de algum objetivo de momento; desobriga-se delas quando o custo de
sua manutenção parece se constituir em obstáculo ao alcance de outros
objetivos considerados prioritários pelos que detêm o controle de seus
aparelhos.
Na oscilação do Estado esconde-se a pouca visibilidade da escola
enquanto elemento da sociedade política. É preciso que nos obriguemos,
entretanto, a assim classificar a escola pública, porque está perfeitamente
configurada nesse momento a demanda da maioria da sociedade civil por ela. O
que as grandes massas populacionais reivindicam — até porque não teriam
como realizar algo diferente — não é o reconhecimento do direito da população
de organizar e manter suas próprias escolas (o primado do privado), mas sim o
atendimento pelo Estado, enquanto suposto promotor do "bem comum", de suas
necessidades e direitos fundamentais, entre os quais se inscreve, obviamente, o
direito de acesso à escola. O que se pleiteia, em suma, é a ação efetiva da
sociedade política em favor da sociedade civil. Nesse sentido, a escola se coloca
como um território de intersecção, para o qual confluem a necessidade da socie-
dade civil e a responsabilidade da sociedade política. Essa escola,
obrigatoriamente pública, apenas em abstrato pode ser comparada às escolas
da sociedade civil. Além da finalidade genérica de "transmissão do saber
historicamente acumulado", nada mais as aproxima ou identifica.
Pensada como um local de trabalho, essa instância da sociedade política
que é a escola pública brasileira apresenta uma curiosa e sugestiva
característica. O Estado "racionalizador" a que ela se vincula e a "administração
científica" que ele afirma promover não parecem preocupados com a
observância de um princípio básico da organização capitalista do trabalho desde
seus primórdios: a reunião e a permanência dos trabalhadores em um único
local durante sua jornada de trabalho. Foi o aparecimento da fábrica que
possibilitou o salto da produtividade "científica", na medida em que instituiu a
definição de tempos e movimentos e garantiu o controle e a determinação das
atividades pela gerência. No dizer de Gorz (1980:81) "o despotismo da fábrica é
tão velho quanto o próprio capitalismo industrial".
Curiosamente, como disse antes, essa velha lição da administração
capitalista não é levada em conta por nossa administração escolar "científica",
embora esta pretenda sustentar sua "cientificidade" exatamente na analogia
entre seus procedimentos e os da administração empresarial. O que o cotidiano
de nossas escolas públicas nos apresenta é a sua desfiguração como local de
trabalho, uma vez que seus trabalhadores frequentemente distribuem sua
jornada de trabalho por diferentes locais, reduzindo, consequentemente, seu
tempo de permanência diário em cada local. Essa dispersão dos locais de
trabalho, cujas razões de ser já estão fartamente apontadas e analisadas,
implica desde logo a inviabilização de qualquer projeto organizacional ou
político- pedagógico. Nem os trabalhadores da escola podem "ser organizados"
— nos moldes científico-gerenciais da administração capitalista — nem podem
"se organizar" — nos limites da elaboração possível de sua vontade política.
Para que as pessoas "se organizem" ou "sejam organizadas" é preciso, antes de
mais nada, que elas se encontrem em seu cotidiano de trabalho. Sem a
presença física do trabalhador individual, o "trabalhador coletivo" não se
constitui, mas também o projeto político não se elabora.
"Jornada de trabalho" e "local de trabalho" são conceitos que não se
associam necessariamente no cotidiano de nossas escolas públicas. No Estado
de São Paulo, pela própria magnitude de seu sistema escolar, essa dissociação
é não apenas perceptível, como rotineira. O próprio conceito de "jornada de
trabalho" constitui um registro recente na legislação do magistério público, fruto
de discussões e reivindicações também relativamente recentes. Por sua vez, o
conceito de "local de trabalho" ainda não constitui referência constante nas
análises sobre a situação de trabalho do magistério público. Por decorrência,
ainda não se estruturou também um propósito de luta em torno de sua
unificação.
Ao longo do tempo os professores e os demais profissionais do magistério
paulista ajustaram-se acriticamente à perspectiva do trabalho múltiplo. Em 1983,
sob a inspiração do chefe de gabinete da Secretaria da Educação, José Mário
Pires Azanha, produziu-se uma extensa e intensa discussão entre esses
profissionais com vistas à "reorientação das atividades da Secretaria da
Educação".1 Dentre as muitíssimas sugestões e solicitações então levantadas
aparecia com significativa frequência a reivindicação de "completar jornada de
trabalho em outro município". A dissociação entre jornada e local de trabalho, aí
claramente manifestada, permanece ainda hoje como algo "natural". A luta pela
melhoria das condições de trabalho e de remuneração ainda não incorporou
decisivamente a necessidade da delimitação do local de trabalho.
Em certo sentido, a jornada de trabalho do magistério paulista nas últimas
décadas percorreu caminho inverso ao da jornada de trabalho do conjunto dos
trabalhadores ao longo do desenvolvimento das sociedades capitalistas e da
própria sociedade brasileira. Enquanto o movimento interno da produção
capitalista determinou e registrou historicamente a progressiva redução da
jornada diária e semanal, a história recente de nosso sistema escolar registrava
de forma crescente a perda do vínculo entre o professor — (o trabalhador) — e a
unidade escolar — (o local de trabalho) —, a multiplicação das horas de trabalho
1 Cf. "Documento preliminar para reorientação das atividades da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo". São Paulo, Secretaria da Educação, 1983.
e a degradação da própria formação profissional. Este último fator explica em
parte a dificuldade de análise pelo pessoal do magistério público paulista do
significado das condições de trabalho em que se encontra.
A atuação do Estado enquanto empregador é resultante das
determinações a que o poder público se subordina nas sociedades de classe.
Advindo suas fontes de rendimento de subtrações feitas ao capital pela via fiscal
ou de apropriações da massa salarial pela via dos impostos, o Estado, limitado
em suas disponibilidades orçamentárias, concentra "naturalmente" seus
investimentos em funções de interesse do capital. Ninguém desconhece a
relutância oficial no desenvolvimento dos equipamentos sociais destinados à
maioria da população. A isso se acrescenta, no caso brasileiro, a retrógrada
"empresarialização" da própria lógica governamental, aparentemente fincada
nos pressupostos da etapa concorrencial do capitalismo.
Relutante e reticente enquanto empregador e enquanto prestador de
serviços, o Estado brasileiro estabelece uma dificuldade adicional aos
trabalhadores que emprega: o confronto, frequentemente estimulado, entre as
necessidades dos seus trabalhadores e as dos trabalhadores aos quais os servi-
ços do Estado devem ser prestados. Ninguém desconhece também a presteza
com que o Estado se dirige à opinião pública quando o trabalho de seus
funcionários é por eles voluntariamente interrompido. Os "prejuízos à população"
são automaticamente debitados à conta da "insensibilidade" c da
"irresponsabilidade" dos trabalhadores em greve. O Estado, "guardião do bem
comum", "agirá com firmeza" para assegurar a "normalidade dos serviços".
Parte integrante do conjunto dos funcionários do Estado, os professores e
os demais trabalhadores da escola pública necessitam urgentemente analisar as
relações de trabalho que mantêm com esse especial tipo de empregador a que
se subordinam. É necessário rever não apenas o sentido das relações funcionais
propriamente ditas, mas também, e principalmente, o sentido da atuação do
Estado brasileiro na atual fase de nosso desenvolvimento capitalista. Isto
significa alcançar e disseminar informação sobre Teorias de Estado e sobre
questões básicas, como o Capitalismo Monopolista de Estado, por exemplo.
Preocupações dessa ordem não têm ainda frequentado o cotidiano de
nossas entidades do magistério. No entanto, é preciso que se instale no interior
dessas entidades um processo continuado de reflexão sobre a natureza do
trabalho que seus membros executam e sobre a natureza das determinações
que pesam sobre esse trabalho. A simples transposição das táticas de luta
sindical dos trabalhadores ligados à produção material não é adequada nem
eficaz para a conquista de reivindicações no interior do aparelho do Estado. Há
que se conhecer a natureza do Estado e o poder político que orienta sua ação
para poder lidar com alguma segurança com as situações de trabalho que ele
propicia ou determina.
Meu propósito com este estudo é incentivar e apoiar essa discussão.
Reconheço, obviamente, as dificuldades de ordem material e mesmo política
que afetam a existência de nossas entidades de representação funcional. Mas,
exatamente por isso, torna-se cada vez mais clara a necessidade de elucidar as
causas estruturais da situação enfrentada. À semelhança do que já ocorre em
outras nações do chamado "capitalismo avançado", e do que ocorre também em
nosso país em setores de ponta da economia, as organizações de professores e
demais especialistas em educação começam a se movimentar em direção a
novos elementos de fundamentação para suas ações. Entre estes se incluem,
certamente, a colaboração recíproca entre as entidades na construção das
referências teórico-conceituais e no desenvolvimento das análises
político-institucionais norteadoras do comportamento da organização e de seus
membros.
Entre as questões centrais a serem permanentemente enfrentadas no
campo teórico e na ação prático-política, a questão da finalidade da escola
pública e a da natureza do trabalho que aí se desenvolve destacam-se por sua
importância e significação. Provavelmente essas questões ainda não tenham
sido suficientemente aclaradas exatamente porque sua discussão ainda não
atingiu em plenitude os locais em que ela deve necessariamente se manifestar: o
interior das escolas públicas de 1.° e 2.° graus e das entidades que congregam
seus trabalhadores. O debate até aqui tem se desenvolvido em termos e
instâncias marcadamente acadêmicos, condição que, embora necessária, não é
suficiente para assegurar a amplitude e a própria qualidade dessa discussão
fundamental.
Minha tese a respeito é simples e clara em sua formulação: a escola
pública é um local de trabalho que, por sua finalidade e por sua natureza
peculiar, supõe critérios especiais de organização. Tais critérios devem ser
estabelecidos a partir das características do trabalho que ali se desenvolve, Esta
tese, simples em sua formulação, revela-se, certamente, bastante complexa aos
que, admitindo-a, pretendem promover sua materialização. Organizar o trabalho
nas escolas públicas brasileiras hoje — em especial nas escolas da rede pública
do Estado de São Paulo que focalizarei neste estudo — implica, para além das
dificuldades de ordem político- material, retomar e reanalisar todo um conjunto
de conceitos r de significações que mais têm prejudicado do que favorecido o
entendimento necessário acerca das condições concretas em que a escola
pública se realiza. Os termos grifados no enunciado identificam as principais
questões sobre as quais acadêmicos e profissionais do ensino público de 1.° e
2.° graus deverão se debruçar em seus esforços para a restauração qualitativa
da escola pública brasileira.
Organizei minha própria discussão da forma que se segue. Em um
primeiro momento retomo a grande questão da organização do trabalho em
geral sob o capitalismo. Entendi que o ponto de partida mais adequado à
discussão que proponho deveria situar-se nas origens e nos desdobramentos do
processo de trabalho assalariado. A intensidade e a frequência das referências
que se fazem à "proletarização do magistério" levaram-me a essa decisão. Esse
quase slogan constitui a um só tempo a grande explicação e a grande
lamentação dos que a ele recorrem. Pareceu-me útil, por isso, rever analítica e
criticamente alguns conceitos e algumas categorias fundamentais expressos na
vasta literatura sobre as relações de trabalho nas sociedades capitalistas.
Obviamente, selecionei autores e referências que a meu critério interpretam
adequadamente as situações em exame.
A "proletarização do magistério" cumpre também em alguns universos
explicativos uma função escatológica. "Degradado" por sua "proletarização", o
professor estaria "purgado" e dispensado de qualquer compromisso com a
realização efetiva da finalidade da escola pública. Essa visão do "proletário"
como homem desqualificado, frequente no senso comum, não pode,
evidentemente, deixar de receber a necessária contestação. Para fazê-lo,
pareceu-me útil também relembrar as condições em que se realiza a subsunção
real do trabalho ao capital e o que isso realmente significa em relação ao
trabalhador enquanto pessoa humana. É a pessoa humana do
trabalhador-professor que, ao se inviabilizar, inviabiliza também o "encontro"
educativo entre ele e seus alunos. A "realização da 'humanidade' de cada um
pela construção da 'humanidade' de todos" (Silva Júnior, 1984:54), marca do
educador politicamente responsável, deixa de constituir o horizonte do trabalho
pedagógico em razão mesmo da limitação imposta ao trabalhador que deveria
materializá-lo.
Delimitar e estipular o trabalho alheio constitui, por outro lado, a marca e a
afirmação pretendidas pela administração "moderna". Sob o capitalismo, como
já se registrou infindáveis vezes, separam-se a concepção e a execução do
trabalho. É preciso, consequentemente, situar em nossa discussão como a
questão da administração do trabalho pedagógico vem sendo considerada e a
prática da administração escolar vem sendo desenvolvida no sistema escolar
brasileiro em geral e no caso particular que nos interessa, o da Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo. Destinei o segundo capítulo para uma
reflexão sobre este momento obrigatório da discussão proposta.
Como indicam Ezpeleta e Rockwell, são as histórias do cotidiano, são os
fatos e as relações que se manifestam na vida concreta das escolas que vão nos
permitir encontrar um sentido e construir um projeto para o trabalho pedagógico
que ali se desenvolve. Por isso, dou a palavra no terceiro capítulo aos
trabalhadores da escola pública, sejam eles professores, diretores,
coordenadores ou supervisores. De todos que ouvi tentei recolher a
manifestação mais espontânea e pessoal sobre seu momento de vida
profissional. Selecionei — decompondo, às vezes — depoimentos e sugestões
que apresentam a visão dos que fazem a escola pública sobre o sentido da
atividade que desenvolvem. Há uma comovedora convergência nesses
documentos: a crença quase inabalável na contribuição que a escola pública
pode e deve oferecer ao atendimento das necessidades populares.
Nu quarto capítulo, busco concretizar a discussão com a análise da mais
rumorosa e politicamente ambiciosa proposta da atual administração do ensino
paulista, a "Jornada Única de Trabalho Discente e Docente". Equívocos concei-
tuais e interesses político-partidários condicionam a proposta. Em que pese a
recenticidade de sua implantação, pareceu-me possível e necessário fechar esta
discussão com o exame do significado atual dessa e de outras duas deter-
minações governamentais que a acompanharam logo em seguida.
Na Conclusão, revejo em síntese o caminho percorrido, tentando fixar o
que de mais significativo pude levantar em relação à discussão proposta e às
razões que me levaram a essa proposição. Percorrido meu trajeto, mantenho e
renovo a esperança de que meus companheiros trabalhadores da escola pública
saberão delimitar sua Jornada e recompor seu Local de Trabalho. Quando isso
ocorrer, este trabalho terá alcançado seu objetivo.
Capítulo 1 O trabalho e a escola pública. Concepções e determinações
" . . . a crença na imbecilidade original do trabalhador é uma necessidade para a gerência; do contrário, ela teria que admitir que está comprometida numa grande empresa de premiar e açular a imbecilidade." Harry Braverman
Impossível não recorrer a Braverman. Provavelmente ninguém, na
literatura recente, conseguiu desvelar como ele a questão do trabalho na
sociedade capitalista. De sua análise, ao mesmo tempo exaustiva e objetiva,
resultaram algumas das mais valiosas observações sobre as condições de vida
no capitalismo dito "avançado". Ê de se notar também que se desenvolvem num
crescendo os pontos de contato entre a sociedade americana por ele analisada e
as circunstâncias típicas do momento atual da sociedade capitalista brasileira.
Evidentemente, ao destacar as semelhanças entre as duas situações
estou fazendo abstração da relação particular de dependência da sociedade
brasileira para com a sociedade americana. Tal dependência, incrustada no
complexo jogo das relações do capitalismo internacional, passa atualmente por
um processo de confrontações que não cabe analisar aqui. Entretanto, no plano
dos critérios e dos .valores que norteiam a organização social propriamente dita,
é notória a absorção plena no Brasil de hoje das regras de poder e de
comportamento determinadas pela expansão e concentração do capital. Tais
regras, obviamente, se refletem na organização e no funcionamento das
instituições escolares do país. Daí a importância de se pensar em especial sobre
sua existência e sua significação, em busca do entendimento maior sobre o
problema que estamos examinando.
1.1 A "ciência do trabalho dos outros" e sua história
Criticando Georges Friedmann em sua avaliação da obra de Taylor,
Braverman cunhou a expressão que dá nome a este tópico e que reflete em sua
riqueza de significado o modo pelo qual o trabalho é percebido e avaliado no
interior da sociedade capitalista. O trabalho refere-se sempre "aos outros" e,
como tal, cabe-me comprá-lo quando dele necessito ou vendê-lo quando outros
necessitam do meu trabalho. Mas, o que se compra e se vende é menos e é
mais do que o trabalho propriamente dito. É menos porque o que se vende ou se
compra não é o próprio trabalho, mas a "força de trabalho", ou seja, a
capacidade humana de realizar trabalho. E é mais, porque, ao vender minha
força de trabalho, vendo também, ainda que não me dê conta disso, meu direito
de exercer controle sobre a realização do meu trabalho. Por isso, o trabalho é
sempre do "outro". Para que ele se realize na sociedade capitalista, na absoluta
maioria dos casos, cabe ao trabalhador submeter-se às estipulações de quem
lhe "compra" o trabalho a ser realizado. Realizar o trabalho significa, pois, quase
inexoravelmente, alienar-se do sentido do trabalho.
Ao contrário do que a economia política tradicional ainda hoje insiste em
sustentar, a compra e venda do trabalho não constitui uma relação igualitária
orientada pelo consenso entre as partes envolvidas. Da mesma forma, não
existe a alternância de posições entre compradores e vendedores que parece
pressuposta em minha observação anterior. O comprador é sempre comprador e
o vendedor, apenas circunstancialmente e em escala individual, se transfigura
em comprador. Ao longo da organização social as posições são definidas e
estáveis: os proprietários de capital compram a força de trabalho de que
necessitam para a elaboração de seus produtos e da riqueza geral; os
não-proprietários vendem sua força de trabalho, recebendo em troca o salário
com que compram os meios de subsistência de que necessitam para continuar
trabalhando.
O que o trabalhador compra habitualmente são, pois, os meios de
subsistência. A possibilidade de o trabalhador comprar o trabalho futuro de outro
trabalhador é apenas eventual e sua manifestação ocorre fora das relações
capitalistas de produção, que são, ao mesmo tempo e necessariamente,
relações sociais de produção. O trabalho doméstico é um dos poucos exemplos
que se poderia levantar de utilização continuada da força de trabalho de um
trabalhador por outro trabalhador. Ainda assim, é preciso considerar que a
natureza peculiar do trabalho doméstico afasta-o das relações capitalistas de
produção, pois, deste ponto de vista, o trabalho doméstico se classifica como
"trabalho improdutivo".
A história da "ciência do trabalho dos outros" é também a história da
ambiguidade da relação "trabalho produtivo"/ "trabalho improdutivo". É sugestivo
observar que, na visão original de Adam Smith, Malthus e Ricardo, essa
ambiguidade não se colocava. Smith fala do trabalhador produtivo como aquele
que "acrescenta (...) ao valor das matérias- primas que trabalha o da sua própria
manutenção, e o do lucro do seu patrão" (Smith, 1984:209). Para Malthus,
Segundo Marx, "trabalhador produtivo é aquele que aumenta a riqueza de seu
patrão" (Marx, 1985:120). A mesma posição é também encontrada em Ricardo,
que observa: "... se a recompensa do trabalhador fosse sempre proporcional ao
que ele produzisse, a quantidade de trabalho aplicada a uma mercadoria, e a
quantidade de trabalho que essa mercadoria compraria, seriam iguais e ambas
poderiam medir com precisão a variação das outras coisas. Mas elas não são
iguais" (Ricardo, 1978:50).
Quando Marx vai se ocupar da controvérsia, ele apenas toma inicialmente
os conceitos que já encontrou elaborados, com a significação que lhes foi
atribuída por quem os elaborou. Ao desenvolver as teorias da mais-valia, Marx
aprofunda e analisa as implicações de algo que a economia clássica já havia
admitido e formulado. A que se deveria, então, a controvérsia?
Na verdade, uma outra posição, minoritária na época, também se
colocava. Por ela, e à luz do bom senso — talvez, mais exatamente, do senso
comum —, trabalho produtivo seria aquele do qual decorreriam produtos úteis;
improdutivo, consequentemente, seria o trabalho gerador de coisas inúteis.
Por óbvias razões de interesse do capital, a segunda interpretação veio a
disseminar-se muito mais que a primeira. Com ela é possível escamotear a
discussão fundamental sobre a exploração presente no processo de trabalho. A
atenção se desloca da natureza do processo de trabalho para fixar-se na
qualidade do produto. A validade do processo seria determinada por seus
resultados e a exploração que o permeia seria justificada pela destinação social
dos produtos. Quando, porém, como Marx o demonstrou, a atenção se fixa no
processo, o que se constata é outra distinção fundamental do trabalho no
processo de produção capitalista: a distinção entre trabalho necessário e
trabalho excedente. É ela que, em última análise, explica o trabalho produtivo.
Excedente é o trabalho que não é pago pelo capitalista; é o trabalho que,
por ir além do trabalho necessário à reposição dos meios de subsistência,
permite ao capitalista a apropriação da mais-valia resultante. É o trabalho
explorado que, por isso mesmo, na lógica do capital, se constitui em trabalho
produtivo. É produtivo porque ao produzir a mais- valia produz também a
ampliação do capital. O conceito de utilidade reaparece aqui com a significação
que a lógica do capital lhe atribui: trabalho produtivo é o trabalho útil para a
ampliação do capital; trabalho improdutivo é o trabalho inútil para a ampliação do
capital.
Correspondendo o salário recebido pelo trabalhador às horas de trabalho
necessárias à reposição de sua subsistência ou de sua "força de trabalho", e
excedendo a jornada de trabalho que cumpre a essas horas de trabalho
necessárias, parte de seu "trabalho vivo" é objeto necessário da exploração
capitalista, já que não remunerado pelo "comprador" do trabalho. Enquanto isso,
a totalidade de seu "trabalho vivo" incorpora-se ao produto, transformando-se,
na esfera da circulação, no "trabalho morto" que o valoriza. Depara- mo-nos aqui
com uma nova distinção relevante: trabalho vivo e trabalho morto.
O trabalho com o qual o trabalhador assegura a realização da produção é
"trabalho vivo" na medida em que se processa em função da elaboração do
produto. É a força de trabalho que o sustenta e que, por isso mesmo, se
consome enquanto o realiza. É "trabalho morto" enquanto valor contido no
produto elaborado, o qual, também por isso mesmo, sustenta seu valor de troca
no trabalho vivo que lhe deu origem e que a ele se incorporou. O trabalho vivo,
consequentemente, se manifesta no processo de produção de mercadorias; o
trabalho morto se manifesta no processo de circulação, mas também se
encontra presente no processo de produção, incorporado aos instrumentos de
produção, objetos, eles próprios, de uma produção anteriormente realizada.2
A prevalência do trabalho morto sobre o trabalho vivo é a chave do
processo de produção capitalista. Desse fato decorre toda uma
"desumanização" do processo de trabalho que é repetida e magistralmente
analisada por Marx em inúmeras passagens de sua obra. Delas, uma das mais
conhecidas é aquela em que Marx nos diz que "não é o operário quem compra
meios de subsistência e meios de produção, mas os meios de subsistência
compram o operário para incorporá-lo aos meios de produção" (Marx, apud
Napoleoni, 1985:55). O trabalho deixa de ser atributo do homem, que determina
sua relação com a natureza: é o próprio homem que passa a ser instrumento do
trabalho, objetivado e determinado pelo processo de produção capitalista.
2 O "trabalho morto" é comumente apresentado apenas como o trabalho realizado pelas máquinas ou pelos " instrumentos de produção", o que, a meu ver, constitui uma simplif icação do conceito. Ver a respeito Napoleoni, Cláudio. Lições sobre o capítulo sexto (inédito) de Marx. São Paulo, Ciências Humanas. 1981.
Reduzido à condição de instrumento — a economia moderna viria a
chamá-lo de "recurso humano" —, o trabalhador individual perde sua
"concretude", ou seja, o domínio efetivo da situação em que seu trabalho se
realiza. De "concreto" o trabalho passa a "abstrato" no capitalismo avançado. De
individual ele passa a coletivo. Mas, nessa passagem, "coletivo" não significa
elaboração do esforço comum e integração consequente das pessoas que o
desenvolvem. O que se apresenta em substituição ao trabalho individual não é o
trabalho coletivo, mas o "trabalhador coletivo". Quer isso dizer, tragicamente,
que a pessoa do trabalhador se desintegra e se dilui na nova situação de
trabalho. O "trabalhador coletivo" não é a soma nem a síntese do pensamento e
da ação de muitos trabalhadores. Ele é, simplesmente, a abstração da pessoa
do trabalhador. O trabalho se torna "abstrato" não porque se elabore teórica ou
conceitualmente, mas exatamente porque não depende mais da reflexão- e da
decisão do trabalhador.
Triste abstração essa que o processo de produção capitalista impõe ao
trabalhador. Para bem subsistir é preciso mal pensar. Para bem pensar e melhor
subsistir é preciso afastar-se do local da produção. Braverman observa a
respeito que
a transformação da humanidade trabalhadora em uma "força de trabalho", em "fator de produção", como instrumento do capital, é um processo incessante e interminável. A condição é repugnante para as vítimas, seja qual for o seu salário, porque viola as condições humanas do trabalho; e uma vez que os trabalhadores não são destruídos como seres humanos, mas simplesmente utilizados de modos inumanos, suas faculdades críticas, inteligentes e conceptuais permanecem sempre, em algum grau, uma ameaça ao capital, por mais enfraquecidas ou diminuídas que estejam (1977:124).
Em consequência, indica ainda Braverman,
a necessidade de ajustar o trabalhador ao trabalho em sua forma capitalista, de superar a resistência natural intensificada pela tecnologia mutável e alternante, relações sociais antagônicas e a sucessão de gerações, não termina com a "organização científica do trabalho", mas se toma um aspecto permanente da sociedade capitalista (1977:124).
Em sua análise, Braverman retoma "The Principies of Scientific
Management", de Taylor, utilizando os relatos da experiência pessoal do criador
da "gerência científica". Os relatos de Taylor, que Braverman apresenta de
forma extensiva, são exemplarmente demonstrativos da obstinação e da crueza
com que Taylor perseguia suas "soluções científicas". Em seu célebre diálogo
com Schmidt, o carregador holandês, frases como as que se seguem aparecem
frequentemente:
Você sabe tanto quanto eu que um homem valioso tem que fazer exatamente como lhe mandam de manhã até a noite. Se você é um homem valioso, você fará exatamente como esse homem lhe disser amanhã, de manhã à noite. Um homem valioso faz exatamente o que lhe mandam fazer, e nada de conversa. Quando esse homem lhe disser para andar, você anda; quando lhe disser para sentar, você senta, e você não lhe responde (Braverman, 1977:97).
Para Taylor, essa "conversa um tanto rude" era não só "apropriada" como
"não indelicada". Por ela, a atenção do trabalhador seria fixada nos "altos
salários" que pretende e desviada do sentido do duro trabalho que executa. Sem
isso o trabalhador "provavelmente acharia impossível o duro trabalho" e não se
disporia a executá-lo. A "delicadeza" de Taylor nada mais é que a garantia da
continuidade da alienação no trabalho que Marx já denunciara.
A apropriação do conhecimento sobre o trabalho pelo administrador, sua
categorização, classificação, estruturação etc. constituem para Taylor o primeiro
grande princípio da organização do trabalho "dos outros". Por ele, o processo de
trabalho se dissocia das especialidades dos trabalhadores. Cabe aos
departamentos de planejamento pensar o trabalho que "os outros" executarão.
Separam-se a concepção e a execução do trabalho; em consequência, o
"trabalho cerebral" vai se realizar fora da oficina e será a "nossa tarefa". Eis aí o
segundo princípio de Taylor. Se somos "nós" que pensamos o trabalho, somos
"nós" também, "logicamente", que devemos controlá-lo. Cabe, pois, também a
"nós" estipular as tarefas que "os outros" deverão executar. Com isso
Taylor enuncia seu terceiro princípio "científico" e, em nome da divisão
técnica do trabalho para fazê-lo mais produtivo, aponta a "necessidade" da
divisão social do trabalho para que a sociedade se desenvolva mais "racional-
mente".
Braverman não se limita a dissecar as origens ideológicas da "ciência do
trabalho dos outros". Quando essa "ciência" teria sofrido sua primeira grande
mudança de paradigma, com a emergência das proposições de Élton Mayo e de
sua "Escola de Relações Humanas", Braverman destaca o que efetivamente se
deu. Não houve o alardeado deslocamento da preocupação com a situação de
trabalho para a preocupação com a pessoa do trabalhador. O que houve foi a
descoberta, logo incorporada aos fatores de incremento da produtividade, de
que outros incentivos, além dos "altos salários", poderiam favorecer a ampliação
das taxas de mais-N valia. O vínculo afetivo do trabalhador com a situação de
trabalho, sua "lealdade" para com o empregador poderiam representar garantias
"naturais" de continuidade do trabalho e de aperfeiçoamento do produto. A
pessoa do trabalhador, "necessariamente" diluída pela "organização racional do
trabalho", seria recomposta e "promovida" pelos suportes especiais que as
"humanitárias" ciências do comportamento passariam a lhe oferecer. A perda do
controle da situação de trabalho encontraria sua contrapartida na recuperação
da individualidade e no atendimento paralelo às suas necessidades
fundamentais. A grande família empresarial asseguraria e ampliaria as
oportunidades de desenvolvimento pessoal do trabalhador. A "ciência do
trabalho dos outros" encontrou, assim, não a sua negação, mas o seu comple-
mento. Para além do controle do trabalho, estabeleceu-se também o controle da
"habituação" ao trabalho.
Indiferente à felicidade ou à infelicidade pessoal do trabalhador, o
capitalista persegue o objetivo básico (e necessário) de expansão de seu capital.
A isso está ele condenado pelas regras da sociedade em que vive. Mesmo que o
desejasse, o capitalista de "boa vontade" não teria como livrar o "ingênuo"
trabalhador da exploração obrigatória de seu trabalho. Pode-se reduzir, sem
dúvida, a diferença entre trabalho necessário e trabalho excedente aumentando
a remuneração do trabalhador pela utilização de sua força de trabalho. Mas essa
redução da parte não paga do trabalho jamais avançaria até o ponto do
pagamento integral de todo o trabalho. Se isso ocorresse, o processo de
produção deixaria de ser capitalista por não possibilitar mais a ampliação do
capital. A exploração do trabalho "dos outros" é intrínseca ao processo de
produção capitalista. Por isso é inevitável a exploração exercida pelos
proprietários dos meios de produção sobre os que apenas possuem sua força de
trabalho disponível. A gerência "científica", nos termos de Taylor, e as "relações
humanas no trabalho", como querem Mayo e seguidores, encarregaram-se de
referendar e legitimar o paradoxo da condição humana no trabalho. Único animal
capaz de conceber o trabalho e seu resultado antes de executá-lo, o homem se
colocou, por isso mesmo, na também única condição de explorador de seu
semelhante. Criou é desenvolveu a "ciência do trabalho dos outros" ao mesmo
tempo em que perdia de vista as necessidades e os objetivos da imensa maioria
da população. É a denúncia dessa "racionalidade irracional" que
fundamentalmente caracteriza a análise crítica de Braverman:
Os mais avançados métodos da ciência e do cálculo racional nas mãos de um sistema social que é antagônico às necessidades humanas nada mais produzem que irracionalidade; quanto mais avançada a ciência e quanto mais racionais os cálculos, mais veloz e calamitosamente essa irracionalidade é engendrada (Braverman, 1977:178).
1.2 O parcelamento das tarefas e a serventia dos patrões
Há quem discorde de Marglin em sua análise do papel desempenhado
pelo capitalista no controle das relações de trabalho. Para alguns de seus
críticos, o papel do capitalista não atingiria as dimensões de relevância que
Marglin lhe atribui. Para outros, a relevância do papel estaria orientada por
outras preocupações, que não as que Marglin assinala. No entanto, tal como
ocorre com Braverman, a análise do pensamento de Marglin parece-me
indispensável para situar a questão da divisão vertical do trabalho, ou seja, a
questão da separação entre os trabalhadores determinada pela estrutura de
poder que os hierarquiza em função de sua proximidade maior ou menor com os
detentores do capital que os controla.
"Para que servem os patrões?" é a pergunta fundamental de Marglin. Em
contraponto a essa indagação ele também observa: "numa sociedade industrial
complexa, pode o trabalho favorecer a realização dos indivíduos ou será que o
preço da prosperidade material é a alienação no trabalho?" Em torno dessas
duas referências básicas Marglin constrói sua argumentação, cujo propósito é
desde logo manifestado: "demonstrar ( . . . ) que não foi por razões de
superioridade técnica que os patrões adotaram as duas medidas decisivas que
despojaram os trabalhadores do controle sobre o produto e sobre o processo de
produção". Sua tese central é a de que "a organização hierárquica do trabalho
não tem como função social a eficácia técnica, mas a acumulação" (Marglin,
1989:41).
São, obviamente, significativas as implicações da tese de Marglin. Escrevi
anteriormente que "se a eficácia não é a pedra de toque do regime capitalista, os
que pretendem abatê-lo não têm por que se sensibilizar exageradamente com a
ideologização que a envolve" (Silva Júnior, 1984).
A observação ainda me parece pertinente. De fato, continuo convencido
de que a razão está com Marglin. Por mais que o discurso
ideológico-promocional do capitalismo tenha se desdobrado nos últimos anos no
Brasil, apontando as vantagens e a imperiosidade do avanço tecnológico, não é
em busca desse avanço e dessa "modernidade" que o capitalista se movimenta
necessariamente. Mais ainda do que aprimorar incessantemente a
produtividade, interessa ao capitalista o poder de prescrever a natureza do
trabalho e a quantidade a produzir«. Coordenando esforços separados o
capitalista define para si um papel na produção, ao mesmo tempo em que
inviabiliza a possibilidade de elaboração de um produto mercantil sem a sua
intervenção. O capital, que é fruto do trabalho, se apresenta, assim, como
condição para que o trabalho e a própria produção possam se realizar. A escolha
do trabalhador reduz-se, desse modo, a trabalhar nas condições do patrão ou a
não trabalhar. O objetivo precípuo da acumulação do capital paira acima de
todos os outros interesses, o que permite ao capitalista dispor do capital
acumulado diferentemente do que talvez o fizessem os indivíduos diretamente
envolvidos na produção, se lhes fosse facultado interferir no processo decisório.
Um importante elemento da análise de Marglin, frequentemente
desconsiderado na discussão do tema, diz respeito às semelhanças — muito
maiores do que normalmente se destaca — entre a organização do trabalho nos
países capitalistas e na União Soviética. Nesta, a exemplo daqueles, também se
optou pela acumulação prioritária do capital, sob a alegação de que uma
mentalidade igualitária não poderia ser criada de um dia para outro e de que a
União Soviética estava pobre demais nos primórdios da revolução socialista
para se permitir uma interrupção na taxa de acumulação. Disso resulta a quase
impossibilidade de se encontrar nas sociedades ditas "modernas" exemplos de
organização igualitária do trabalho em que as taxas de acumulação sejam
determinadas por instituições da coletividade. Para Marglin, uma revolução que
permita transformar a organização do trabalho faz-se necessária tanto na União
Soviética como nos países capitalistas.
Outra sugestiva observação de Marglin refere-se à organização da
produção nas sociedades pré-capitalistas: "uma hierarquia estrita —
mestre-companheiro-aprendiz — que hoje só sobrevive no nosso ensino
superior" (1989:43). Não por acaso, acrescento, as universidades convivem com
dificuldade com as demais instituições da sociedade capitalista. Uma hierarquia
de tipo pré-capitalista difere de uma hierarquia capitalista em pelo menos três
aspectos. Devolvo a palavra a Marglin para que os assinale:
Em primeiro lugar, no ápice como na base da hierarquia pré- capitalista encontrava-se um produtor. O Mestre artesão trabalhava junto com o aprendiz, em vez de indicar-lhe simplesmente o que fazer. Em seguida, a hierarquia era linear e não piramidal: um dia o aprendiz seria companheiro, quase certamente mestre. No capitalismo é raro que um operário chegue até a contramestre; nem falemos de suas oportunidades de chegar a chefe ou a Diretor Geral. Enfim, e talvez isso seja o mais importante, o artesão membro de uma corporação não estava separado do mercado por um intermediário. Vendia igualmente um produto e não seu trabalho; e, por conseguinte, controlava, ao mesmo tempo, o produto e o processo de trabalho (1989:43).
Ao longo do desenvolvimento do capitalismo o trabalhador viu-se privado
inicialmente do controle do produto (subsunção formal do trabalho ao capital) e,
finalmente, do controle do processo de trabalho (subsunção real). Não apenas
lhe foi retirada a possibilidade de estipular o valor de seu trabalho, contido no
produto que elabora, como, principalmente, foi-lhe interditada a possibilidade de
pensar criativamente o trabalho a ser feito. Essa restrição ao pensamento do
trabalhador é a que mais de perto convém ao interesse do capitalista e por isso
tem sido imposta ao trabalhador sob todas as formas e justificada sob os mais
diferentes artifícios. Não estamos mais no tempo em que a especialização,
interpretada como método de dominação, podia ser louvada exatamente por
isso. No capitalismo avançado, a dominação se apresenta sob a capa do
progresso tecnológico, e o interesse dos patrões é apresentado como o
interesse geral da sociedade. Para isso não faltam os ideólogos de aluguel, os
analistas de plantão e a sofisticação disponível da indústria cultural. O que The
Spectator dizia na Londres de 1866 não é substancialmente diferente do que
dizem os editorialistas e certos articulistas da "grande imprensa" na São Paulo
de 1989.
Não é difícil, como Marglin o demonstra, contestar a argumentação básica
que vem à luz nessas oportunidades. Difícil, ou impossível, seria pedir ao
capitalista que admitisse publicamente que a produção é organizada para
explorar o trabalhador e privá-lo do exercício da faculdade essencialmente
humana do pensamento. Esperar por isso seria esperar que o capitalista
afirmasse a razão de Marx quando escreveu que "determinada relação social
entre os próprios homens (...) assume a forma fantasmagórica de uma relação
entre coisas" (Marx, apud Ianni, 1985:21). Para o capitalista, fantasmagórica é
apenas a perspectiva da perda do controle sobre a relação de trabalho.
A explicação corrente para o aparecimento das fábricas no século XVIII —
a necessidade de concentrar as grandes máquinas nas proximidades das fontes
de energia que as acionam — é citada por Marglin através de referências a obras
de Ashton, Mantoux e Landes, historiadores da economia que reconhecem, no
entanto, a vantagem adicional do sistema de disciplina e fiscalização
possibilitado pela fábrica. Para Marglin, como já o sabemos, essa vantagem não
é apenas adicional, mas a razão principal do sucesso da fábrica: "ao opor
operários vigiados e disciplinados a operários domiciliares, ela pôde reduzir seus
custos, sem por isso adotar necessariamente uma tecnologia mais eficaz"
(1989:58). Pode-se, pois, afirmar que "o argumento da* superioridade
tecnológica (... ) não é nem necessário, nem suficiente para explicar o impulso e
o sucesso da fábrica" (1989:58).
Deve-se considerar, em abono à tese de Marglin, que em seus primórdios
a tecelagem de algodão desenvolvida nas fábricas fazia uso dos mesmos teares
manuais empregados pelos tecelões em domicílio. O lucro crescente dos
capitalistas nesses casos só se explicaria pelos critérios de administração
utilizados.
Outro aspecto importante a se considerar diz respeito ao interesse mútuo
que ligava capitalistas e inventores de máquinas e processos de fabricação.
Subordinados ao sistema de patentes, a estes interessava exercer algum tipo de
controle sobre o volume da produção, pois a esse volume estavam ligados
diretamente os rendimentos que lhes seriam atribuídos por suas invenções. Uma
produção concentrada em fábricas certamente se apresentava como mais
favorável à proteção dos direitos do inventor do que a produção distribuída por
inúmeros locais de residência e de trabalho. Pelo lado do capitalista, um
estímulo à invenção significava também a consolidação do processo de fábrica
e, consequentemente, a ampliação de sua taxa de lucro. Para os capitalistas
mais poderosos, a aquisição continuada de licenças de fabricação significava
força e prestígio na disputa com a concorrência.
No discurso legitimador do capitalismo os mecanismos de mercado serão sempre capazes de combinar o interesse particular do produtor com o interesse geral/ Sendo assim, cabe perguntar, como Marglin o faz, por que o sistema de disciplina e controle "adequados" estabelecido pela fábrica não foi também
conseguido pelo regime anterior, o putting- OUt system? Na verdade, Marglin o ressalta, a disciplina e o controle existiam anteriormente, mas- do ponto de vista do operário. Exatamente por isso, do ponto de vista do capitalista coloca-se a necessidade de fustigar a "indisciplina", a "preguiça" ou a "imbecilidade" das classes trabalhadoras.
É fato notório (... ) que a penúria, até certo grau, estimula a indústria; e que o operário que pode prover às suas necessidades trabalhando só três dias, ficará ocioso e bêbado o resto da semana. . . Os pobres, nos condados onde há manufaturas, jamais trabalharão mais horas do que é preciso para custear a alimentação e suas orgias semanais. . . Sem temor podemos dizer que uma redução dos salários nas manufaturas laníferas seria uma bênção e uma vantagem para a nação e não seria um prejuízo real para os pobres. Com esse recurso, poderíamos preservar nosso comércio, manter nossas rendas e, além de tudo, corrigir as pessoas (1989:65).
Reapresento aqui a transcrição que Marglin faz desse texto de 1747
porque a visão de mundo a ele subjacente ainda parece presidir os pensamentos
e as ações de muitos capitalistas no Brasil de nossos dias. Menos presentes,
sem dúvida, no setor industrial do que no setor primário da economia,
explicações dessa ordem, com as devidas adaptações da linguagem, ainda se
fazem notar até mesmo em argumentações oficiais a respeito de questões como
a redução da jornada de trabalho, a diferença entre salário real e salário nominal
e a adoção de práticas recessivas na economia. Nosso capitalismo avançado, tal
como os primeiros proprietários de fábricas, não parece ainda conformado com a
perspectiva de que os trabalhadores possam simplesmente pretender trocar um
eventual aumento de remuneração pelo usufruto do lazer a que todo homem tem
direito.
Igualmente dramática e atual é a referência de Marglin ao trabalho das
crianças da Assistência Pública:
. . . vendidas pelas autoridades paroquiais como "aprendizes de fábrica", por um período que poderia atingir dez anos ou mais, a fim de poupar ao contribuinte local o preço de sua alimentação, vestuário e moradia, esses infelizes não tinham a menor possibilidade de escolha, legal ou outra qualquer. (. .) No fim do século XVIII a instituição do aprendizado deixara de ser um meio de limitar o acesso a ofícios e profissões e de garantir- lhes o nível. De acordo com as exigências da empresa capitalista, a aprendizagem tornara-se um sistema de servidão a longo prazo (1989:72).
Ainda que nossas autoridades paroquiais ou oficiais não vendam
literalmente as crianças sob seu controle para o trabalho na empresa capitalista,
não apenas elas, mas o próprio senso comum "vende" costumeiramente a ideia
de que o trabalho na fábrica faz parte da ordem natural das coisas para os filhos
dos trabalhadores da fábrica. Ou seja-, o que de melhor podem desejar as
crianças da classe trabalhadora é obter um trabalho semelhante ao de seus pais.
Essa situação foi intuída e sua percepção de alguma forma elaborada
pelos mestres, companheiros e aprendizes das antigas corporações. Enquanto
lhes foi possível, resistiram eles à destruição de seu poder político, condição
indispensável ao estabelecimento do puíting-out system. Com a divisão de
trabalho introduzida, a ascensão do aprendiz à condição de mestre deixou de ser
assegurada. Em sua progressão, o próprio ofício do mestre viria a desaparecer.
Inviabilizados os ofícios e sua aprendizagem autônoma, inviabilizaram-se
também as possibilidades de realização da plenitude humana pelo trabalho.
Impedido de se realizar a si mesmo como pessoa humana, o homem passou a
ocupar-se do outro homem, não para ajudá-lo em sua realização no trabalho,
impossível sob o capitalismo, mas para utilizá-lo como suporte e instrumento da
realização de seu interesse individual. Sufocou a solidariedade e erigiu a
competição como seu valor principal. Para materializá-lo, rendeu-se, finalmente,
à hierarquia.
1.3 O trabalho técnico-científico e a divisão social do trabalho
Para alguns trabalhadores a hierarquização de funções no trabalho
reveste-se de significação especial. Se a serventia dos patrões consiste em
assegurar para si o controle do processo de produção, para esses trabalhadores
sua própria serventia consiste em assegurar aos patrões o fornecimento dos
meios necessários à continuidade de seu controle. Ainda que não se preocupem
ou não se deem conta disso, os trabalhadores que produzem ciência e
tecnologia orientam sua produção para as necessidades do capital e dos
capitalistas. Inseridos nas hierarquias ocupacionais das grandes burocracias
empresariais, outros trabalhadores intelectuais utilizam as tecnologias criadas
para o controle da situação de trabalho, de modo a possibilitar a continuidade e o
aprofundamento da organização capitalista do trabalho. A uns e outros
corresponde o papel, valorizado por muitos, de representantes dos interesses do
capital, ainda que, formalmente, devam se definir como trabalhadores
assalariados.
O que leva um trabalhador intelectual assalariado a orientar sua ação em
favor dos interesses do capital? Gramsci, ao se ocupar da questão, estabeleceu
sua hoje célebre distinção entre intelectuais orgânicos e tradicionais. Da mesma
forma, distinguiu também níveis de ação intelectual (intelectuais criadores,
organizadores e difusores). A partir dessas categorias básicas foi possível a
Gramsci analisar a ação habitual dos intelectuais na sociedade capitalista e
indicar a possibilidade de sua contribuição na luta pela emancipação dos
trabalhadores. No entanto, não são muitos os exemplos disponíveis de
vinculação orgânica (por nasci- mento ou por adesão) de intelectuais, ainda que
assalariados, à causa dos trabalhadores. A ideologia do trabalho "dos outros"
parece contaminar também aqueles que, na condição de produtores e
aplicadores da ciência, deveriam estar, por dever de ofício, imunes à ação de
qualquer ideologia.
Evidentemente, as coisas não são assim tão simples e lineares. Ao
contrário, são muitas as mediações que podem explicar o papel da técnica e dos
técnicos na luta de classes. Foi exatamente a respeito desse tema que André
Gorz produziu um dos mais importantes textos da literatura recente sobre
organização do trabalho (Gorz, 1989).
Gorz começa por observar que uma leitura não aprofundada, ou mesmo
enviesada, de determinadas passagens de Marx no Capítulo VI (inédito) de O
Capital pode fornecer argumentos preciosos a teóricos reformistas ou
"revisionistas". De fato, Marx deixa claro nas passagens citadas que considera
irrelevante saber se o trabalhador individual, "que é apenas um membro desse
trabalhador coletivo", está mais próximo ou mais afastado do trabalho manual
imediato. Embora as diferentes capacidades de trabalho que concorrem para a
formação da máquina produtiva no seu conjunto participem de maneira muito
diferenciada do processo de formação de mercadorias, todas essas
capacidades de trabalho, fundadas na utilização da mão ou da cabeça,
subordinam-se por igual ao capital na medida em que trocam seu trabalho pelo
capital e reproduzem o dinheiro dos capitalistas como capital.
É próprio do modo de produção capitalista separar diferentes trabalhos e, portanto, o trabalho intelectual e manual (... ) e atribuí-los a pessoas diferentes, o que não impede, contudo, que o produto material seja o produto comum dessas pessoas (Marx, apud Gorz, 1989).
Marx, entretanto, está aí registrando o ponto de vista do capital. Da
perspectiva do trabalho e do trabalhador a questão da produtividade coloca-se
em termos diferentes. O que é relevante em nossa discussão é a análise do grau
de consciência que o trabalhador técnico-científico possui de sua posição no
mundo da produção e na organização social como um todo. Dela derivará sua
adesão ou sua rejeição às formas de luta do conjunto dos trabalhadores.
Gorz postula a visão da revolução cultural chinesa segundo a qual as
ciências e as técnicas de produção trazem a marca das relações de produção e
da divisão de trabalho capitalistas em sua orientação, delimitação,
especialização, em sua prática e até em sua linguagem. Acredita, por isso, que
os trabalhadores da ciência e da técnica já desenvolvem "no interior de sua
função técnico-científica, a função de reproduzir as condições e as formas de
dominação do capital sobre o trabalho" (Gorz, 1989:217) (grifos do autor).
Para Gorz, a função dos trabalhadores científicos e técnicos não é
determinada pelo próprio processo de produção material e nem pela pesquisa
das técnicas mais eficazes de produção material. A essas hipóteses ele antepõe
sua posição de que a função dos trabalhadores científicos e técnicos é em
realidade determinada pela preocupação do capital em controlar o trabalho vivo
de modo a extrair-lhe o máximo de trabalho excedente, o que leva, inclusive, à
limitação da pesquisa de técnicas de organização do trabalho mais eficazes que
poderiam colocar em xeque o poder do capital sobre o trabalhador coletivo.
Antes que baseada em dados científicos, a definição de qualificações e compe-
tências é fruto da hegemonia ideológica orientada para a continuidade e a
consolidação da divisão social do trabalho existente.
São sugestivos os argumentos que Gorz apresenta em defesa de sua
tese. Embora fale da França, dos Estados Unidos e da Alemanha e exemplifique
com dados e situações de ponta do capitalismo avançado, as referências de que
Gorz se vale são perfeitamente identificáveis no momento atual da
sociedade brasileira. Tal como nos países citados, também nossa produção
industrial se encontra orientada muito mais para a diversificação e a substituição
acelerada de produtos semelhantes, com alterações muitas vezes supérfluas ou
apenas aparentes em sua natureza, do que para inovações substanciais no
processo de produção. No momento que antecedeu a concentração
monopolista, ao contrário, os recursos eram utilizados preferencialmente na
busca de soluções inovadoras para esse processo.
Em que pesem as diferenças de direcionamento da pesquisa
desenvolvida — possibilitar "saltos" tecnológicos ou precipitar a obsolescência
ou o "desgaste moral" dos produtos —, não é possível discordar de Gorz quando
afirma que o desenvolvimento desigual das ciências decorreu da
susceptibilidade também desigual à capitalização e à valorização no processo
de produção. Não por acaso produzem-se muito mais lentamente respostas às
grandes questões da saúde e da higiene públicas, da educação, das condições
de trabalho, da ecologia etc.
Esse desenvolvimento desigual, perceptível de fora, não pode,
evidentemente, passar despercebido ou ser desconsiderado pelos profissionais
da ciência. Não podem eles ignorar, como diz Gorz, que "uma parte apreciável
dos conhecimentos, das competências e da pesquisa científica e técnica só são
'produtivas' e funcionais em relação às orientações e às prioridades particulares
do crescimento monopolista" e que "boa parte desse pessoal científico e técnico
c boa parte dessas pesquisas seriam de fraca ou de nenhuma utilidade numa
sociedade em que a tarefa prioritária fosse a de satisfazer as necessidades
sociais e culturais das massas" (1989:222).
Os desdobramentos políticos dessa situação são particularmente
importantes. Para os trabalhadores científicos e técnicos, a defesa de seus
interesses profissionais imediatos e de seu direito a empregos em que utilizem
suas competências atuais significa, em último caso, uma ação política
conservadora e legitimadora do status quo. A ação política desses
trabalhadores, para ser consequente e progressista, deve envolver
necessariamente a crítica do modo de realização atual de sua atividade
profissional que aponte claramente o substrato ideológico capitalista que a
orienta e direciona.
Ainda que as condições objetivas para a elaboração e o exercício dessa
crítica sejam particularmente difíceis em razão da impregnação ideológica e da
crescente fragmentação das "subculturas" técnico-científicas, dispõe o
trabalhador da ciência — assim como todo trabalhador —, de sua práxis
soberana e de sua condição de intelectual que, aliadas, poderão levá-lo à
transformação de seu comportamento habitual. Situados perante o capital do
mesmo modo que os demais trabalhadores, restará aos trabalhadores técnico-
científicos encontrar seu lugar no interior da população trabalhadora, em relação
à qual têm se comportado tradicionalmente como agentes do capital.
Na busca de sua nova posição junto aos demais trabalhadores, o grande
desafio que se apresentará aos trabalhadores técnico-científicos consistirá, sem
dúvida, no abandono do recurso fácil à autoridade da posição. Acostumados a
fiscalizar, controlar e comandar grupos de trabalhadores manuais, ser-lhes-á
necessário elaborar adequadamente sua consciência de classe e sua vontade
política, de modo a encontrar os suportes necessários à realização de seu novo
projeto de vida e de trabalho. Não lhes será fácil, num primeiro momento,
reinterpretar sua condição de "especialistas" e colocá-la a serviço do projeto
coletivo a que se integram. No entanto, é essa a condição indispensável à
materialização de sua contribuição.
Nem a produtividade máxima do ponto de visla do capital se confunde
automaticamente com a eficácia produtiva máxima, como assinala Gorz, nem,
muito menos, ela se identifica com a produtividade pensada a partir das ne-
cessidades do trabalho:
Do ponto de vista do operário, a produtividade do trabalho só aumenta se ele pode produzir mais sem maior fadiga; do ponto de vista do capital, a produtividade do trabalho aumenta cada vez que ele quiser impor ao operário um dispêndio maior de trabalho sem aumentar-lhe o salário na mesma proporção (1989: 228) (grifos do autor).
É a decidida adoção do ponto de vista do trabalhador que vai permitir ao
trabalhador técnico-científico ajudar a construir novas formas de organização do
trabalho compatíveis com o atendimento das necessidades da pessoa humana.
A "desidiotização" do trabalho, com a supressão da barreira das tarefas e o
enriquecimento permanente do processo, ao contrário do que quase sempre se
afirma, não implica necessariamente perda de produtividade e redução da
riqueza geral. As situações alternativas de organização do trabalho construídas
a partir da visão do trabalhador — reduzidas em número, já que não interessa ao
capital favorecer sua disseminação — estão, no entanto, disponíveis para
atestar a possibilidade de realização econômica ainda maior quando as
prerrogativas da pessoa humana se constituem nas determinantes principais da
situação organizada. Ampliar o conjunto dessas situações e o seu potencial de
intervenção crítica sobre a realidade é a tarefa de que deverão se ocupar priori-
tariamente os trabalhadores técnico-científicos politicamente organizados.
Estabelecidas sobre um fundo de relações antagônicas de classe, as
relações de trabalho implicam "naturalmente" a organização hierárquica e o
controle do trabalho alheio.
Assim interpretadas, essas relações tendem a ser perpetuadas e
disseminadas para o conjunto das atividades sociais, inclusive para as que se
ligam à produção não-material. Foi dessa forma que as escolas e os sistemas
escolares submeteram-se, nas sociedades capitalistas — e o Brasil é o exemplo
mais próximo e mais dramático de que dispomos —, a critérios de administração
e a formas de organização interna que em realidade inviabilizam, em vez de
favorecer, o alcance de seus objetivos.3
Gorz chama de "operários mistificados" àqueles trabalhadores que,
devotados ao culto da hierarquia e ao privilégio da competência técnica, não se
reconhecem como pertencentes à classe trabalhadora. Fechados em suas
convicções, que a experiência escolar plasmou e a experiência de trabalho
alienado sedimentou, apenas os momentos de crise intensa parecem capazes
de propiciar as condições necessárias às conversões ideológicas que
recoloquem os trabalhadores técnico-científicos na trilha de sua consciência e
de seus compromissos de classe. Quando isso se dá, reconhecem eles que
devem: "
1.°) Procurar separar no trabalho, seus conhecimentos técnicos específicos e seu papel na manutenção de uma divisão hierárquica do trabalho;
2.°) Procurar "socializar" "sua competência técnica", ou seja, procurar as modalidades e as condições de seu exercício coletivo (...);
3.°) Recusar os privilégios sociais e o poder hierárquico que supõe, na divisão capitalista do trabalho, o exercício profissional de funções técnicas e intelectuais (1989:239).
O profissionalismo a que Gorz se refere e que condena diz respeito a
situações de status, poder e dinheiro que na organização social capitalista
acompanham e "premiam" o exercício de determinadas funções que favorecem
o desenvolvimento do capital ou que vicejam à sua sombra. É quase sempre a
superioridade do "saber inútil" que determina a posse e a ocupação dessas
posições. Daí a necessidade de transformação do comportamento daqueles
3 Ver capítulo 2.
que, à frente delas, pretendam vincular-se efetivamente a um projeto coletivo de
libertação da classe trabalhadora.
Enquanto isso não ocorre, a contestação eventual dos trabalhadores
técnico-científicos a suas condições de trabalho é significativamente marcada
pela ambiguidade: "insurgem-se não como proletários, mas contra o fato de
serem tratados como proletários" (Gorz, 1989:240). Sua revolta não se dá contra
a situação da classe trabalhadora e as relações de trabalho que promovem a sua
exploração. O que pretendem não é a liberação dos trabalhadores, mas a revo-
gação da "injustiça" que consideram praticada contra a sua condição de
trabalhadores "especiais" porque especializados. Tal situação é perfeitamente
localizável em determinados segmentos dos educadores brasileiros.
Historicamente, o "acoplamento" dos trabalhadores técnico-científicos
aos interesses do capital tende a se enfraquecer na medida em que o próprio
crescimento numérico desse tipo de trabalhador contribui para dificultar o
cumprimento do "contrato implícito" lavrado com a burguesia industrial.
Integrados à classe média por força dos padrões de remuneração e pela
absorção acrítica dos valores dominantes, começam esses trabalhadores a se
sentir lesados em seu devotamento aos interesses do capital. Percebem a difi-
culdade progressiva no atendimento de seus próprios interesses e explodem sua
revolta quando se dão conta de que suas qualificações "especiais" não mais
asseguram um canal especial para a satisfação de suas necessidades.
Despontam, assim, as condições para uma revisão crítico-política dos
interesses e das atitudes dos trabalhadores científicos e técnicos. O
deslocamento do arco de interesses para a direção do movimento organizado
pelos trabalhadores manuais, a atenção colocada nas formas de luta destes
trabalhadores e a crescente sindicalização de seus membros fazem hoje das
categorias de trabalhadores intelectuais aliadas potenciais e frequentemente
efetivas dos trabalhadores manuais em reivindicações abrangentes e de caráter
estrutural. Reencontrando-se os homens que o capitalismo dividiu, recolocam-se
também as condições para a superação no interior de cada homem da divisão
entre o pensar e o fazer que esse mesmo capitalismo sedimentou.
1.4 A função da técnica e a instrumentalização da escola
Recorrendo a Braverman, Marglin e Gorz, procurei traçar uma visão de
síntese das origens e das significações da divisão do trabalho na sociedade
capitalista. A escola de que falo desenvolve seu trabalho no interior de uma
sociedade capitalista marcada por um processo de profunda crise como é a
sociedade brasileira de hoje. Nela se manifestam à saciedade as contradições e
determinações que não apenas Braverman, Marglin e Gorz, mas todo um vasto
conjunto de autores de diferentes tendências têm apontado como próprias do
capitalismo, desde a monumental análise inicial de Marx.
Não é pacífica — ao contrário, é bastante polêmica — a análise
desenvolvida por autores brasileiros a respeito da crise atual de nosso
capitalismo. Da mesma forma, são variadas e, frequentemente, conflitantes as
interpretações sobre a função da escola brasileira nesse particular momento de
nossa história. Há, entretanto, algumas convergências e algumas constantes
nas análises que se produzem sobre o capitalismo brasileiro e a escola que o
integra. A apologia da técnica e sua contrapartida, a crítica do tecnicismo,
constituem duas dessas constantes mais destacadas.
A apologia da técnica (e dos técnicos) desdobra-se em etapas e
momentos de manifestação. As técnicas de produção abrem o caminho e
fornecem a referência para as técnicas de organização. Covre (1986) vincula as
primeiras ao próprio aparecimento da ciência no contexto capitalista,
demarcando- as por volta do século XVII, com Galilei e o método experimental.
Já nesse momento, assinala Covre, o viés da transfiguração do conhecimento
da natureza em técnica começava a se manifestar. No século XIX, o
desenvolvimento das ciências sociais fundado numa perspectiva epistemológica
positivista "projeta essas ciências como técnicas sociais" (Covre, 1986:142).
O que Covre denomina de "transformação das ciências sociais em
técnicas sociais" é o mesmo que estou chamando aqui de apologia da técnica.
Ou seja, trata-se da ideologização da técnica, a que se chega pela imputação do
caráter de neutralidade à ciência de que ela se origina. Essa "velha" questão —
para alguns círculos acadêmicos — ainda permanece intocada em muitos
momentos e em muitos lugares da discussão sobre as condições de trabalho no
interior da escola pública brasileira. Ainda se acredita — ou se proclama — que a
ausência principal é a do "método": o "método" de ensino, para resolver
adequadamente os problemas de sala de aula, e o "método" organizatório, para
encaminhar satisfatoriamente a "montagem" da escola como local de
transmissão do saber. Embora admitidos de passagem, os problemas salariais e
a desfuncionalização dos locais de trabalho determinada pela desvinculação do
professor à escola não chegam a ser considerados como determinantes do
baixo rendimento observado. Tudo se passa como se a técnica adequada, uma
vez identificada e implantada, pudesse se sobrepor às condições concretas do
trabalho e dos trabalhadores que o realizam.
A ideologização da técnica é, antes de mais nada, conveniente às
necessidades do capitalismo monopolista de Estado já instalado no Brasil. De
um lado ela afirma nossa "modernidade" em expansão acelerada; de outro, ela
permite o protelamento e a minimização das políticas sociais pressupostas pelo
próprio estágio monopolista do capitalismo de Estado. "Brasileiramente"
incensamos a técnica, mais que a aplicamos ou a promovemos. Nosso EME
"pelo alto" tem também seus resquícios provincianos e seus "progressismos" de
ocasião. Dentre eles, a noção de "burguesia do Estado", tese muito cara, em
tempos idos, a Fernando Henrique Cardoso, cujo equívoco é demonstrado e
analisado por Carlos Nelson Coutinho (Coutinho, 1984).
Segundo Cardoso, um declarado adepto da "modernização" da sociedade
brasileira, os altos funcionários converteram-se em uma verdadeira "fração de
classe" da burguesia brasileira e orientam a partir de seus interesses particulares
as decisões do Estado. Por essa interpretação, o Estado brasileiro não estaria
integralmente comprometido com o grande capital, mas apenas desfigurado em
seus propósitos e em suas ações pelo comportamento deletério dos tecnocratas
incrustados em seus aparelhos. Coutinho examina a impropriedade da tese de
Cardoso. Além de isentar objetivamente os monopólios privados — "sobretudo e
explicitamente os multinacionais" — pela implantação e sustentação do regime
de 64, Cardoso parece resumir sua proposta de "democracia substantiva" a um
conjunto de medidas antiburocráticas. A esse respeito diz Coutinho:
Não pretendo de modo algum subestimar a importância da luta antiburocrática, ou, mais precisamente, da luta em favor de uma democracia de massas que se estruture "de baixo para cima"; mas essa luta, inclusive para ser efetiva, terá que ser concebida como parte integrante de um processo democrático que implica também — ainda que de modo progressivo — a luta antimonopolista, ou seja, a luta, pela
democratização da esfera econômica (e não apenas das esferas cultural ou política) (Coutinho, 1984: 185).
Essa percepção da globalidade (ou da totalidade) da luta a ser enfrentada
apenas recentemente começou a ser elaborada no interior de nossas escolas
públicas. Por se tratar ainda de um estágio inicial de compreensão, a
instrumentalização da escola pública para o serviço direto ou indireto do grande
capital permanece obscurecida pela desinformação ou pela subordinação
ideológica de muitos de seus trabalhadores.
Caracterizados objetivamente pelo Estado empresariali- zado que os
emprega como "trabalhadores improdutivos", muitos profissionais da educação
ainda recebem tal caracterização, explícita ou implicitamente formulada, como
uma imputação moral injustificável à luz de seu cotidiano de trabalho. Falta-lhes,
evidentemente, o suporte teórico que esclareceria a concretude da categoria
utilizada. Na lógica do capital, prevalecente em nossa administração pública, o
professor e o "especialista" em educação são efetivamente "trabalhadores
improdutivos", de vez que, como já se assinalou aqui, sua atividade e seu
trabalho não concorrem para a acumulação do capital. Por faltar-lhes, também
frequentemente, a coerência e a consistência política desejável, a condição de
"trabalhador improdutivo" é percebida e elaborada apenas como um fator
adverso que compromete o alcance de suas reivindicações salariais e a
funcionalidade de seus instrumentos de luta.
Trabalhadores técnico-científicos por natureza, os profissionais da escola,
pelas mesmas razões aqui mencionadas, dividem-se entre a lealdade ao poder
constituído e o propósito de realização efetiva de seu trabalho. Tal como
assinala
Gorz em relação aos trabalhadores técnico-científicos em geral, também
nossos educadores muitas vezes deblateram não contra as condições de vida e
de trabalho dos proletários, "mas contra o fato de serem tratados como
proletários". Ao fazê-lo, provocam o acirramento de duas dificuldades em
relação às quais é necessário organizar o campo de luta e de compreensão: a
não inserção dos trabalhadores da educação no campo comum das lutas de
todos os trabalhadores e a oposição eventual entre os interesses imediatos dos
trabalhadores da escola e os interesses permanentes do conjunto dos
trabalhadores que pleiteiam a escola pública para si e para seus filhos.
Conforme escrevi anteriormente, "atravessado pela lógica e pelo próprio
comando empresarial, o Estado é pródigo e fértil na exploração política dessa
cisão" (Silva iunior, 1986).
A "construção social da escola", nos termos formulados e propostos por
Ezpeleta e Rockwell, pode ser o ponto de partida para a "desinstrumentalização"
da escola pública do serviço do capital e sua recriação a serviço do trabalho e
dos trabalhadores. A "reconstrução de tramas, partindo de evidências diversas
ou do desenvolvimento concreto de eventos, de pequenas histórias em que se
negociam e se constroem diferentes aspectos da realidade escolar, nos quais
sujeitos particulares apresentam repertórios de práticas e saberes específicos",
aliada à "observação e análise desses episódios cotidianos e (aparentemente)
inconsequentes, dos quais somos testemunhas, permitem elaborar e enriquecer
categorias, precisar conceitos e construir descrições analíticas". . . Concluem as
autoras: "A análise de uma situação particular, = com todo suporte de
conhecimento antecedente, dá a possibilidade de se armar conceitos que
permitam discernir em outras situações os sentidos das ações empreendidas, a
partir de diferentes aspectos do jogo social e político" (Ezpeleta e Rockwell,
1985).
A crença na capacidade de apreensão do sentido da realidade pelos
diferentes segmentos dos trabalhadores da educação é também a crença na
possibilidade de elaboração de sua consciência filosófica. Para nos situarmos
melhor nessa jornada comum rumo ao entendimento é necessário passar a
seguir ao exame da questão da administração do trabalho na escola pública.
Capitulo 2
A administração da escola pública. Equívocos e implicações
"Há no ensino, na função de ensinar, em germem, sempre uma ação administrativa." Anísio Teixeira
A organização do trabalho nas escolas públicas apenas recentemente
atingiu o centro das atenções no debate educacional brasileiro. Até então, a
discussão se concentrava no esforço de definir e conceituar as finalidades dessa
instituição social e de identificar os critérios de seleção e apresentação de seus
conteúdos curriculares. Na década de oitenta, como reflexo do próprio esforço
de redemocratização do país, a questão pressuposta do "poder" do diretor de
escola e dos caminhos a percorrer em sua investidura passa a ocupar posição
de destaque no cenário da discussão.
O direcionamento da discussão para a questão do "poder" e da "gestão
democrática" obscureceu, entretanto, a percepção de questão ainda mais
significativa: a relação necessária entre a administração da escola e o ensino
que se realiza em seu -interior e para o qual a administração deve concorrer, se
efetivamente se preocupa com sua legitimação. Pretendo, a seguir, oferecer
elementos para a compreensão do estado atual dessa relação.
2.1 O trabalho não pedagógico do diretor de escola e suas origens
"As escolas não existem para serem administradas ou inspecionadas.
Elas existem para que as crianças aprendam" (Silva Júnior, 1977:18). Escrevi
essas palavras há cerca de doze anos, em minha dissertação de mestrado
apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Discutia
naquela ocasião a necessidade de uma revisão crítica da prática ainda incipiente
da supervisão em nossos sistemas escolares. Ao longo desse tempo a
administração escolar, corpo teórico-conceitual e processo prático-institucional
que contém em seu interior a supervisão, tornou-se objeto de uma análise e de
um debate que se vêm desdobrando mecanicamente em direção à negação
absoluta da validade da teoria e da prática existentes. Nessa negação, no
entanto, a preocupação com a realização do ensino nas escolas aparece apenas
eventualmente. A teoria existente é sumariamente classificada como "alienada",
e a prática que se manifesta é tida necessariamente como "autoritária". O
circuito da explicação imediata se completa com a afirmação, aparentemente
irrefutável, de que o autoritarismo da prática decorre da alienação da teoria.
"Constatado" e "explicado" o "autoritarismo", urge, então, combatê-lo.
Trata-se de constituir o "colegiado da escola", a fim de que a "administração
participativa" possa se instalar (Rodrigues, 1985). Trata-se também de "eleger" o
diretor da escola, a fim de que o "verticalismo" de sua investidura não determine
a hipertrofia de seu "poder" (Cury, 1985).
Um elemento importante nessa discussão diz respeito às origens
geográficas e institucionais das teses e dos debate- dores que se apresentam.
Não por acaso, a meu ver, as referências do parágrafo anterior se ligam à
produção teórica de Cury e Rodrigues, professores da Universidade Federal de
Minas Gerais. Na maior parte dos casos o debate se alimenta das contribuições
do meio acadêmico e de posições expressas por entidades do magistério de 1.°
e 2.° graus de outros Estados da Federação, que não São Paulo. Evidente-
mente, também aqui a discussão se manifesta, mas em intensidade e
repercussão significativamente menores. Por que isso ocorre?
A resposta a essa indagação supõe o exame de um conjunto de
peculiaridades que realmente fazem do Estado de São Paulo um polo especial
na discussão. É preciso registrar, inicialmente, que, diferentemente de todos os
demais Estados da Federação, inclusive os mais desenvolvidos como, por
exemplo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o Estado de São
Paulo é o único a cultivar uma tradição de realização de concursos públicos para
o acesso à função de diretor de escola. Isso significa, implicitamente, que o
aparelho do Estado acredita na existência de um saber técnico especializado,
cuja posse e domínio se constituem em requisitos prévios para o exercício da
direção de escola. Acredita ainda que esse saber esteja disponível e seja
transmitido nas agências de formação de diretores de escola e acredita,
finalmente, que seja possível avaliar a extensão de seu domínio através de
provas especialmente voltadas a essa finalidade. Para se utilizar de um quase
exaurido e, certamente, equivocado jargão, poder-se-ia afirmar que o Estado de
São Paulo tem tratado a questão da direção de escolas como "uma questão
técnica e não como uma questão política".
Poder-se-ia também, mais acertadamente, afirmar que a política de
administração escolar da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo tem
se pautado por um critério predominantemente técnico. E poder-se-ia também
afirmar, com alguma ousadia adicional, que é exatamente nesse "cri iério
técnico" que repousaria a qualidade política do processo, de vez que nada seria
mais essencialmente democrático que a igualdade de oportunidades
assegurada aos candidatos a um concurso público.
Confrontada à situação de São Paulo, a situação dos demais Estados
brasileiros apresenta também suas peculiaridades. A principal delas é a de que
nesses Estados a direção de escola tem sido tratada prioritariamente como
"questão política", no sentido de que sempre se considerou o diretor de escola
como portador de um "cargo de confiança" da administração pública. Sob esse
aspecto a discussão atual também se circunscreve ao plano político, já que a
proposta de eleição visa retirar a investidura do diretor de escola da órbita
político-partidária para situá-la no universo de decisão dos professores e da
"comunidade escolar". O que se coloca no centro da discussão é a legitimidade
do exercício do poder na escola e não, necessariamente, a finalidade da escola
como instituição social predominantemente voltada à transmissão do saber.
Nessa posição fica implícito o entendimento de que a administração escolar não
se constitui em um saber técnico especializado ou, pelo menos, o de que sua
existência e sua consistência não são suficientemente significativas para
distinguir e credenciar alguém por seu domínio. Em razão disso, o
professor-diretor deveria ser detentor apenas de um mandato e não de um
cargo.
Como se pode observar, uma primeira grande indagação se coloca nessa
discussão: a administração escolar enquanto "saber estruturado com pretensão
à objetividade" (Vale, 1985) teria já alcançado um satisfatório grau de
desenvolvimento que lhe assegurasse, nos termos de Scheffler, por exemplo, o
caráter de ciência subjacente à prática profissional da administração escolar?
(Scheffler, 1974) Admitindo-se para efeito de argumentação como correta a
posição que vem sendo observada em São Paulo, uma indagação comple-
mentar seria: em que consiste esse saber estruturado sobre administração
escolar? Uma nova indagação complementar e necessária seria: que concepção
de ciência orientou e orienta o esforço de construção desse saber?
Em trabalho originalmente elaborado em 1979 e publicado em 1982, forge
Nagle constrói uma perspectiva de respostas a essas indagações. Depois de
afirmar que
os estudos de Administração Escolar, no Brasil, sofrem do mesmo desprezo e participam do mesmo desprestígio que acompanham os estudos pedagógicos, globalmente considerados (Nagle, 1982:5),
Nagle aponta uma extensa relação de deficiências que, a seu ver,
marcam esses estudos e sugere diretrizes para sua reformulação. Das
deficiências que apresenta, a mais significativa é, sem dúvida, a
desconsideração da dimensão histórica das questões e dos problemas de que
os estudos se ocupam. Da mesma forma, "os estudiosos da Administração
Escolar (...) parece que se recusam a relacionar questões e problemas de seu
campo com os movimentos da sociedade". Diz Nagle, a esse respeito:
Considerar a natureza da sociedade, em dado momento, e, assim, o campo das transformações sociais, em particular as de natureza econômica e ideológica, para então entender o significado dos fenômenos administrativos, parece ser orientação bastante remota para eles (Nagle, 1982:11).
Nagle fala, quase que certamente, de estudos que se repetiram com
razoável frequência nos anos setenta. Parece- me importante, a essa altura,
uma referência a um texto de 1968, em que José Querino Ribeiro, um dos
pioneiros desses estudos em São Paulo e no Brasil, busca, em suas palavras,
examinar "os fundamentos, os princípios e os objetivos da Administração ('tout
court') que, admitimos, podem também aplicar-se à empresa qscolar" (Ribeiro,
1968:28) (grifos meus).
Duas certezas parecem nortear esse e outros estudos, anteriores e
posteriores, de Querino Ribeiro: a) a validade do conceito de "empresa escolar"
e b) a possibilidade de uma administração que seja aplicável "à escola como a
qualquer outro tipo de empresa".
Na postulação que estabelece, Querino Ribeiro cinge-se aos aspectos da
extensão e da complexidade envolvidos na atividade escolar para aproximá-la
conceitualmente das organizações produtivas:
A escola é grande empresa enquanto visa atender clientela de milhões; reúne grupos de trabalhadores que somam centenas de milhares; exige financiamentos astronômicos; exige "produção em massa", "alta produtividade" para atender às mais variadas exigências do "mercado social", com o qual tem irrevogáveis compromissos de fornecimento, a tempo, à hora, em quantidades e qualidades que exigem técnicas aperfeiçoadas e complexas (Ribeiro, 1968:27).
Querino Ribeiro desconsidera totalmente o fato de que as organizações
produtivas são definidas pela produção de mais-valia e que é essa sua lógica
fundamental que vai presidir sua organização e seu funcionamento. Se
abstrairmos sua orientação básica para o lucro, estaremos simplesmente nos
afastando de sua natureza, e, nesse caso, nenhuma comparação pode ser
válida. A questão não preocupa o autor, que assim completa o seu raciocínio:
Na administração da grande empresa escolar (grifos do autor) o objetivo direto é o trabalhador, a estrutura, o financiamento, tudo, é claro, a serviço do educando, que, sem embargo, coloca- se como objeto indireto (grifos meus). Nesse sentido a empresa escolar é
semelhante às demais: à hospitalar, à de transporte, e a que outras grandes empresas se possam lembrar (Ribeiro, 1968:28).
A orientação básica desse texto e a indiscutível respeitii bilidade
profissional de seu autor marcam a origem dos estudos de administração escolar
no Brasil. Em sua grande maioria esses estudos se concentram no Estado de
São Paulo, mais exatamente junto ao Setor de Administração Escolar e
Educação Comparada do Departamento de Educação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Desse mesmo Setor
saíra anos antes a proposta de criação de uma Associação Nacional de
Professores de Administração Escolar — ANPAE, que em 1968 assim se
manifestaria pela palavra de seu presidente, Antonio Pithon Pinto:
O interesse em escala ascendente pelo estudo da administração escolar, em nosso meio, reveste-se de significativa importância para o futuro da educação nacional. É um sinal evidente de que já podemos marchar, mais corajosamente, na direção da profissionalização e carreira do administrador escolar, que as nossas leis do ensino começam a sugerir e incentivar (Pinto, 1968:7) (grifos meus).
Temos até aqui consignado um primeiro momento desta reflexão.
Refere-se ele a uma perspectiva de estudos sistemáticos de administração
escolar que viessem a sustentar uma política de profissionalização do exercício
da administração escolar. Esses estudos, cuja significação teórica e prática
analisarei posteriormente, partiram de uma base institucional relativamente
poderosa e deram respaldo à consolidação de uma posição que já se
manifestava no interior do aparelho do Estado. Por ela, a direção de escola em
São Paulo recebia tratamento de questão específica e seus praticantes
deveriam, consequentemente, ser considerados como profissionais
especializados.
Não se esclarecia, entretanto, a natureza peculiar dessa especialização e
nem, muito menos, se indicava de maneira consistente sua articulação e sua
contribuição ao desenvolvimento do processo de ensino.
2.2 A discussão crescente e a relação ausente
Nos anos setenta a ANPAE viria a se transformar na Associação Nacional
dos Profissionais de Administração da Educação. Não foi rápida e nem pacífica
essa transição. Ao contrário, houve resistência interna durante algum tempo
antes que os "profissionais de administração da educação" viessem se juntar
aos "professores de administração escolar" e terminassem por lhes emprestar a
sua própria qualificação. Foi com algum desconforto inicial que os responsáveis
pela elaboração teórica e o ensino da administração escolar viram aproximar-se
aqueles que, em tese, constituíam a materialização de seu trabalho. Como
muitas vezes ocorre, teoria e prática pareciam em dificuldades para conviver
adequadamente em um mesmo espaço institucional.
A ANPAE, em que pese sua indiscutível importância histórica e sua atual
abertura para o debate crítico da administração escolar, é apenas uma
referência em nossa discussão e não necessariamente a principal. O novo
registro importante a se fazer é o da acentuada expansão do sistema escolar
brasileiro, expansão essa que ocorre no bojo das profundas e sucessivas
alterações que se manifestaram no processo político-econômico-social brasileiro
na passagem dos anos sessenta para os setenta e destes para os oitenta. O
"milagre econômico", que atesta a internacionalização da economia brasileira,
gera o incremento da dependência, que se tentaria justificar com a crise do
petróleo (75 a 78), até que chegasse o reconhecimento da própria crise do
modelo.
No plano político, o autoritarismo exacerbado do início da década de
setenta cederia lugar à célebre "distensão", e esta, à "descompressão relativa".
Ideologicamente, caminhamos do nacional-desenvolvimentismo à recuperação
do "espírito pan-americano"; deste ao famoso binômio "segurança e
desenvolvimento"; do binômio, passamos ao "pragmatismo responsável", com o
qual atingimos a "abertura", e, finalmente, a inefável "Nova República". O diretor
de escola que emerge nos anos oitenta é, inevitavelmente, o diretor que convive
com o anseio da redemocratização do país e com a retomada da organização
das entidades do magistério.
Mais uma vez as coisas se colocam diferentemente em São Paulo e nos
demais Estados da Federação brasileira. Favorecido, entre outros fatores, pela
maior concentração de cursos de pós-graduação, o debate em São Paulo logo
adquire ressonância no plano acadêmico, com o aparecimento de trabalhos e
propostas de revisão crítica da literatura de administração escolar existente. No
plano da organização política do magistério, entretanto, a consciência da
necessidade da aproximação em favor de objetivos e necessidades mais
prementes e comuns faz com que as diferentes entidades, em que o magistério
público de São Paulo se subdivide, estabeleçam um acordo tácito no qual a
questão da direção de escolas não chega a ocupar uma posição de relevância.
Em seu lugar, discute-se mais intensa e interessadamente a questão do
Conselho de Escola, afinal consagrado pela legislação específica. A questão da
investidura do diretor permanece em compasso de espera, até porque a
legislação existente a disciplina de forma consistente e historicamente
inquestionada.
Ao longo do Brasil, por outro lado, cresce a disputa e a animosidade entre
"especialistas" e professores. Estes, autoproclamados "proletariado" do sistema
escolar, investem contra a "burguesia" apontada do sistema: diretores, orienta-
dores, supervisores, coordenadores e assistentes pedagógicos. Não sem razão,
argumenta-se com a "inchação burocrática", com a neurose do "controle", com
as marcas e deformações, enfim, produzidas pelo autoritarismo e que, numa
visão ingênuo-reducionista, se apagariam com a eleição do diretor da escola
pela "comunidade". Comentei anteriormente que "a crítica ingênua, segundo a
qual apenas o professor teria condições de interpretar e encaminhar
satisfatoriamente as soluções das questões educacionais funda-se, na verdade,
num estranho postulado. A seu ver, o professor, e apenas ele, teria passado
incólume pelas determinações do contexto autoritário de toda uma época" (Silva
Júnior, 1986).
Os movimentos de professores em muitos Estados brasileiros e vários de
seus ideólogos parecem efetivamente compartilhar essa crença. Em alguns
casos, a crença chega ao paroxismo, ao qual não é alheio o interesse
político-partidário de momento. Em 1984, escreve Nircélio Zabot, assessor do
gabinete da Secretaria da Educação do Estado do Paraná:
A Secretaria da Educação entende que essa eleição é uma importante conquista democrática da escola, um passo fundamental para desencadear, na área educacional, o processo crescente de democratização do poder, um dos pilares do programa de governo do PMDB no Paraná. Trata-se de um exercício de convivência social que fomenta a discussão, o debate, o crescimento de uma comunidade, ensejando gestão participativa e representativa do consenso comunitário escolar em torno de princípios e procedimentos de uma política educacional que defende, acima de tudo, uma educação humanista essencialmente democrática, popular e libertadora (Zabot, 1984:88) (grifos meus).
O eloquente autor-assessor não se detém nem mesmo diante de
afirmações que, por surpreendentes e diferentes da evidência disponível,
demandariam um esforço de documentação e comprovação. Falando da
perspectiva da direção de escola como um exercício profissional devidamente
regulamentado, ele assim se manifesta:
Esse processo tem gerado, em nível nacional, calorosas discussões e, em geral, não se tem chegado a um consenso a respeito. Ele responde essencialmente à crescente burocratização do serviço prestado pela organização escolar (Zabot, 1984:88) (grifos meus).
Sem o mesmo fervor "engajado" do autor paranaense, a proposta de
eleição de diretores de escola é encaminhada por vários outros autores. Cury,
citado no texto de Zabot, é um deles. Sua crítica reiterada ao "verticalismo"
constitui- se em argumento indireto pela eleição:
Um mandato nascido de decisões verticais, ao sabor da tecnocracia ou de alianças eleitoreiras tem possibilidade de se comprometer com a escola e com a comunidade? Será sempre possível conciliar interesses exógenos com a necessidade de grupos de que a escola participa? Como servir a dois senhores, quando ambos são diferentes e convergentes? Dá sempre para ser grato ao "padrinho" e aberto à comunidade? Como estranhar a mútua rejeição se um administrador ignora e não leva em conta a prática acumulada do docente? (Cury, 1985:46).
Por aí vão as múltiplas perguntas de Cury, que, em sua continuada
inquisição, dilui uma indagação fundamental, à vista dos pressupostos em que
se apoia: um posto de diretor de escola resultante de um concurso público
criteriosamente realizado pode ser equiparado a "um mandato nascido de
decisões verticais, ao sabor da tecnocracia"? Não é esta a única questão que se
levanta diante da argumentação de Cury. O "verticalismo" que o preocupa
envolve sempre um compromisso, "talvez de 'gratidão' com o 'padrinho' ", talvez
"um compromisso com a legalidade burocrática, com modelos de gabinete".
Cury, que pretende "um profissional que sabe e sente que os problemas
existentes e sentidos pelos membros da comunidade são fruto de estruturas
socioeconómicas que levam a marca da opressão, da expropriação e do
autoritarismo" e que "toma consciência de que esses problemas são fruto de
determinações mais amplas", aparentemente pretende também que esse saber
e essa consciência não podem integrar a formação profissional do diretor de
escola e que apenas podem resultar das "pontes que liguem democraticamente
direção-escola-comunidade". Se isso for verdadeiro, o "saber estruturado com
vistas à objetividade" jamais emanará dos bancos acadêmicos e a universidade
será necessariamente o reduto inconsequente dos formalismos e dos
reducionismos cientificistas. Não creio que seja essa a posição básica de Cury,
mas me parece importante indicar uma certa ambiguidade que se vai instalando
à medida que a apologia da "participação e decisão comunitárias" se intensifica.
Cury não se precipita apenas nas passagens que indiquei. No mesmo
texto, de 1985, ele registra sua euforia com as eleições de 1982:
Se houve uma figura perdedora, ao menos nas urnas, essa foi a do tecnocrata, isto é, o "fazedor de pacotes". Longe das necessidades sociais, distante do cotidiano, perto do centro do poder, próximo de ambientes assépticos, o tecnocrata fala o monólogo das ordens e espera respostas passivas e conformistas dos interessados. E se houve uma palavra vencedora, essa foi a participação. Já anteriormente incorporada até nas exposições de motivos e documentos oficiais, essa palavra vitoriosa sugere uma nova forma de pensar a administração da coisa pública (Cury, 1985: 45) (grifos meus).
Escrevo em 1989, quatro anos após a publicação das observações de
Cury. Longe da condição de derrotados nas urnas, os tecnocratas — apenas, e,
nem sempre, outros — continuam sua faina de "fazedores de pacotes",
enquanto a "palavra vitoriosa" da "participação" continua aguardando sua
oportunidade de "encarnar e habitar entre nós". De qualquer forma, é justo e
necessário ressaltar que a defesa, por vezes apaixonada, da "decisão
comunitária" cumpre a importante tarefa de recolocar em evidência a discussão
sobre o papel da escola na sociedade brasileira e, ainda que tangencialmente,
direciona essa discussão para seu foco principal, a realização necessária do
processo de ensino. Não existem evidências significativas de que essa
realização venha a ser favorecida pelo abandono da tradição paulista, mas é
relevante consignar o empenho na busca de formas que assegurem sua efetiva
concretização.
Como se pode perceber, a discussão sobre o trabalho do diretor de escola
não privilegia seu aspecto essencial: a finalidade pedagógica de sua ação. O
vínculo necessário ensino/administração é deixado de lado em ambos os polos
do debate. No polo "teórico-técnico", a busca da identidade própria da
administração escolar tende a aproximá-la muito mais da "administração" do que
do "escolar", ou seja, o fato administrativo apresenta-se como substantivo e o
fato pedagógico apenas como contingente. Isso fica bastante evidenciado nos
textos de Querino Ribeiro e em toda corrente de pensamento que se lhes segue.
Como decorrência, o desenvolvimento teórico procurado para a administração
escolar é apenas a continuada apropriação das teorias administrativas de base
empresarial que se vão sucedendo na literatura especializada. As condições
concretas de existência da escola são deixadas de lado. Apenas se supõe que
elas poderão ser alteradas para melhor quando analisadas à luz das "modernas
teorias de administração" que fornecerão as "pistas" para a elaboração de novos
modelos e procedimentos.
No polo "prático-político" o que se contempla é o postulado do "poder" do
diretor e o que se busca é influenciar ou dominar o processo de investidura
nesse poder. As condições concretas de existência da escola são consideradas
enquanto referências para a constituição dos "colégios eleitorais" dos quais deve
partir a decisão sobre a escolha do eleitor. Em um e outro caso a qualidade do
processo de ensino apenas se coloca como uma convenção subjacente. De um
lado espera-se que ela aconteça como decorrência da tranquilidade assegurada
por uma "administração competente". De outro, imagina-se que ela acontecerá
como fruto da "autonomia" de uma escola protegida das injunções
político-partidárias. Em qualquer caso a administração proposta não se
compromete em assegurar ela própria que o ensino de qualidade e de
quantidade se realize como produto de uma ação administrativa
intencionalmente organizada para esse fim. Por caminhos diferentes chega-se à
continuidade da mesma oposição: de um lado a administração e suas tentativas
de "autonomização"; de outro, o ensino e sua tradicional busca de defesas para
a burocratização que o atravessa.
2.3 Revisão crítica da discussão
Discuti há algum tempo (Silva Júnior, 1984) a supervisão da educação
enquanto atividade especializada que se desenvolve no interior do trabalho
pedagógico. Busquei naquele texto examinar algumas das principais
dificuldades que se colocam para essa atividade profissional, tendo em vista o
grau ainda incipiente de sistematização teórica disponível para sua
fundamentação. A insuficiência dessa fundamentação se deve, como é sabido,
não apenas à reduzida significação dos estudos até aqui desenvolvidos, mas
também, e, principalmente, à procedência quase invariável desses estudos,
calcados e determinados pelas circunstâncias estritamente americanas de sua
produção.
Não parece muito diferente o panorama dos estudos relativos à
administração da educação, não obstante a óbvia distância em que eles se
colocam quando confrontados aos de supervisão da educação. É evidentemente
maior e mais conhecida a tradição dos estudos relativos à administração da
educação, já porque eles cobrem um universo teórico mais abrangente e
estruturado, já também porque derivam das ricas vertentes dos estudos de
administração geral c empresarial, fartamente estimulados desde a chamada
Revolução Industrial. Creio, no entanto, que, tal como acontece com a
supervisão, também a administração da educação em suas linhas tradicionais
de desenvolvimento teórico tem-se ocupado muito mais do "administrativo" que
do "educacional". Ou seja, busca-se definir uma especialização profissional no
interior de uma atividade já de si especializada, como é a educação, sem que se
registre a preocupação de identificar aquelas características próprias da
especialidade mais ampla que fatalmente carregam em si os limites e as
determinações a partir dos quais a especialidade mais restrita deverá se
desenvolver. O especialista em administração da educação é, em princípio,
também um especialista em educação. "Também", no caso, não significa
decorrência, mas concomitância necessária. Antes, a especialização em
educação é que se apresenta como uma precondição para o exercício de sua
administração. Não se pode administrar proficientemente uma atividade cuja
natureza peculiar nos escapa. Parece-me, pois, útil reiniciar nossa discussão por
um comentário, ainda que resumido, sobre a questão da especialização em
educação.
No texto a que já fiz referência divido a discussão em dois aspectos: a
especialização em educação e a especialização na educação. No primeiro caso
estou considerando a educação como objeto de estudo, como fenômeno cuja
natureza peculiar deve ser desvelada pelos estudiosos que se dedicam à sua
investigação, no interior dos limites da Universidade ou no espaço social mais
amplo. No segundo, busco considerar o modo pelo qual a divisão de tarefas e de
funções tem se manifestado no interior do trabalho pedagógico, considerada aí a
educação em seu aspecto de prática social em processo. Em um e outro caso
busco consignar as dificuldades de ordem prática e teórica que ainda envolvem
as tentativas de elucidação do significado mais profundo da relação educativa e
das relações do trabalho pedagógico com as outras formas de trabalho social.
Dado como um pressuposto, o significado da educação é, na verdade, algo que
se constrói na historicidade da prática social. É preciso apreendê-lo em seu
movimento para poder lidar adequadamente com o processo em que ele se
manifesta,
Não me parece tranquila a posição dos estudiosos e dos praticantes da
administração da educação a respeito do significado do fenômeno educacional.
A ênfase no "administrativo" apresenta-se assim, ao mesmo tempo, como opção
preferencial face às peculiaridades da disciplina e também como "proteção" face
ao complexo universo teórico-metodológico em que a discussão sobre a
educação se desenvolve. De tal posição resulta o entendimento até aqui
admitido de que é possível estabelecer as formas de realização do processo de
administração da educação independentemente de uma análise mais
aprofundada e conclusiva sobre as características do próprio processo
educacional. O desdobramento desse entendimento leva à convicção de que é
também possível pensar a administração da educação em sua especificidade
própria, válida por si mesma e capaz, consequentemente, de se sobrepor às
condições em que a educação se desenvolve em uma determinada formação
social. Nascem daí as teorias "universais" de administração da educação, cuja
aplicação, segundo se acredita, atestaria o grau de "modernização" de uma
sociedade em busca de solução para seus problemas educacionais. Todo o
vasto arsenal teórico-metodológico-conceitual do funcionalismo, derivado da
epistemologia neopositivista, e tão facilmente localizável em documentos de
nossas agências governamentais, se assenta nessa visão simplificadora da
realidade.
Acredito na possibilidade e na importância de se estabelecer a
especificidade da administração da educação enquanto disciplina acadêmica e
enquanto prática social determinada. As marcas distintivas dessa especificidade
devem, no entanto, a meu ver, ser buscadas não no
"administrativo-genérico-empresarial aplicado à situação escolar", mas sim na
recuperação de propostas originais que buscam identificar as peculiares formas
de contribuição que a administração possa oferecer para que a educação se
realize em sua plenitude e a partir de seus elementos próprios.
É indispensável lembrar Anísio Teixeira quando afirmava que "somente o
educador ou o professor pode fazer administração escolar", para ao final concluir
que "se alguma vez a função de direção faz-se uma função de serviço e não de
mando, esse é o caso da administração escolar" (Teixeira, 1968:17).
A partir do mestre baiano abre-se uma pista para a recuperação do
pensamento crítico brasileiro sobre administração da educação. É possível,
além de necessário, situar o que se espera da administração analisando em
primeiro lugar os fundamentos do fenômeno e do processo a que ela deve servir,
ou seja, a própria educação.
2.4 Ato educativo e processo administrativo
O pedagogo alemão Schmied-Kowarzik chama a atenção para a
necessidade de não se perder de vista a distinção necessária e esclarecedora
entre a Pedagogia, "ciência prática da educação", e a "práxis educacional"
propriamente dita. Os especialistas que produzem a "ciência prática da educa-
ção" só acidentalmente se identificam com os especialistas que conduzem a
"práxis educacional". Ser um "educador- em-processo" significa estabelecer
decisões que dependem do "educador-em-reflexão". Se o administrador da
educação já não se identifica necessariamente com a própria condição de
educador, ou seja, se ele é "da administração" e não "da educação", suas
decisões não serão inspiradas nem pela "ciência prática da educação", que
desconhece, e nem pela "práxis educacional", em que não se reconhece. Não
haverá como concretizar em sua escola a dialética da Pedagogia e da
Educação, se ele como "administrador" não dominar os elementos do "par
dialético" a partir do qual deveria orientar sua ação administrativa.
Não é, infelizmente, privativo do administrador da educação o
desconhecimento ou o desinteresse pelo significado mais profundo da relação
educativa. Professores, supervisores e outros especialistas também parecem
considerar aceitável "fazer educação" sem uma consciência clara da
significação do seu "feito". Daí a "prática pedagógica" não corresponder
necessariamente à "práxis educacional". Agimos frequentemente em educação
sem que nossa ação esteja iluminada por uma concepção de mundo contida na
ação realizada.
Se muitos "administradores não-educadores" determinam a ação de
professores e supervisores "não-muito-educa- dores", o que temos, finalmente,
é o fracasso da administração da educação, que significa inevitavelmente o
fracasso da educação. A recíproca dessa afirmação contém em si a diretriz
necessária: o sucesso da administração da educação é o sucesso da educação.
O que podemos estabelecer como condição para o enfrentamento da
situação? A resposta parece clara, embora sua concretização possa se revelar
complexa: precisamos entender em que consiste a essência mesma do ato
educativo; que condições devem necessariamente se apresentar para que se
evidencie a realização da educação. Assegurar a presença dessas condições
constituirá, então, o critério de legitimidade da ação administrativa na educação.
Estabelecer com clareza quais sejam essas condições constitui o ponto de
partida da ação administrativa, o que significa, finalmente, a necessidade de o
administrador dominar a natureza do processo educacional.
A educação está, pois, no ponto de partida e no ponto de chegada da
ação administrativa. No ponto de chegada, sob a forma da intervenção
processada na "práxis" com o auxílio da administração. No ponto de partida, sob
a forma do subsídio teórico que respalda a ação administrativa a ser elaborada.
Em sentido estrito, a administração é sempre "da educação", que lhe determina
o substrato teórico e a direção da prática.
Voltamos, assim, à questão central de nossa reflexão c ao seu
desdobramento natural: em que consiste a educação a ser administrada e em
que limites essa educação é administrável? Se nos situarmos diante do núcleo
básico do trabalho pedagógico, isto é, diante do ato de ensinar propriamente
dito, poderemos, talvez, começar a organizar nossa resposta.
Quando "ministra" sua aula, o professor "administra" essa aula, ou seja,
estabelece as condições em que a aula se processa. Em seu trabalho docente
fundem-se o comportamento administrativo e o comportamento técnico-didático.
O domínio das condições é a garantia da realização do ato de ensino. O "esforço
humano orientado para a realização de fins", marca essencial do processo
administrativo, tem aí sua possibilidade máxima de viabilização. Um único
indivíduo responde pela ordenação dos meios em relação aos fins a que se
propõe. A aula é, ao mesmo tempo, instrumento e finalidade.
Quando pensamos no trabalho pedagógico tomado em nítido amplo, em
seu caráter de organização de unidades e de sistemas escolares, a questão da
administração da educação desdobra-se, evidentemente, em complexidade.
Trata-se agora de articular meios e fins que se apresentam separadamente e
que são de responsabilidade de indivíduos diferentes. O caminho não está em
"robustecer" a identidade da administração para colocá-la "ao nível do ensino",
mas em manter presente a lição da sala de aula: a administração é "condição
para", e, como tal, é determinada pelo fim a que se destina. Isso significa que a
ordenação das necessidades do trabalho pedagógico é que vai estabelecer os
padrões da administração a ser exercida. Nesse sentido, como muito bem
assinala José Misael Ferreira do Vale (1985), administração escolar é sempre
tarefa supervisora. Trata-se de assegurar permanentemente a existência de
condições para que o ensino se realize. Daí seu apelo, que retomo aqui, às
propostas originais de Anísio Teixeira.
Não desconheço, certamente, as controvérsias existentes sobre o
verdadeiro sentido do pensamento educacional de Anísio Teixeira, controvérsias
essas que se agudizaram com a publicação em anos recentes de alguns
trabalhos que se dividem entre a apologia e a crítica de suas proposições.
Entendo, no entanto, que no caso especial da administração escolar, Anísio
Teixeira atingiu o alvo principal da discussão: indiscutivelmente, tal como ele o
afirma, "a natureza da administração escolar como função que somente pode ser
exercida por educadores (...) é intrinsecamente de subordinação e não de
comando da obra de educação que, efetivamente, se realiza entre o professor e
o aluno, os dois fatores realmente determinantes da sua eficiência" (Teixeira,
1968:17).
Como se percebe, é mais fácil identificar os limites da ação administrativa
na educação do que propriamente definir sua especificidade. Tal como já
assinalei em relação à supervisão, a especificidade da administração da
educação decorre da especificidade da educação. É sobre essa, pois, que
devemos concentrar uma vez mais nossa atenção.
Acredito ter indicado uma pista significativa nessa discussão quando
escrevi que "educar é convencer" e "educar responsavelmente é convencer-se
da necessidade de realizar a 'humanidade' de cada um pela construção da
'humanidade' de todos" (Silva Júnior, 1984). Por aí se vê que a essência do ato
educativo é incompatível com uma administração da educação centrada na
dominação. Orientada para e pela solidariedade, a educação não pode
render-se a uma estrutura definida pela competitividade. Se a educação é, em
seu significado mais profundo, incompatível com os valores da sociedade
capitalista, ela também o é com as formas de administração que essa sociedade
gerou (Silva Júnior, 1986:76).
Para se fazer educação em uma sociedade capitalista é necessário, como
Saviani já o indicou, partir do reconhecimento da desigualdade intrínseca dessa
sociedade. No ponto de chegada estará a igualdade pretendida, que só se alcan-
çará na plenitude com a transformação da sociedade. O instrumento da
aproximação possível é a solidariedade, através da qual o professor dirige a
atividade de seu aluno exatamente porque se coloca a seu serviço, ou seja,
dirige seu aluno para a posição de domínio do saber em que ele, professor, já se
coloca. É esse serviço dirigente que a sociedade capitalista tem dificuldade em
assimilar, ou mesmo, em conceituar. Em seu interior direção se confunde com
dominação. Daí a preocupação de muitos em "prevenir" a dominação do
professor sobre seus alunos, preocupação essa que acaba por resultar no
esvaziamento do trabalho docente: O risco não se coloca diante do "professor
dirigente", do professor que tem a compreensão clara da sua função de serviço.
A mesma compreensão de como se colocar a serviço da educação,
assumindo uma postura dirigente e não dominante, orientará o trabalho do
administrador escolar. Trata- se de alguém que dirige o esforço coletivo dos
professores, orientando-o para o fim comum, ou seja, o domínio do saber escolar
por seus alunos. O administrador é assim alguém a serviço do serviço que os
professores prestam a seus alunos. Será um "dirigente" (no sentido gramsciano
do termo), ou não será um administrador da educação (Silva Júnior, 1986:76).
Os limites da ação administrativa em educação são dados,
consequentemente, pelos limites da própria ação educacional. Tanto quanto a
educação, a administração ultrapassaria suas barreiras próprias se enveredasse
pelo terreno da manipulação. Manipular é dominar; educar é superar a do-
minação; logo, administrar a educação é dirigir a não-manipulação. Será isso
possível, além de desejável? Quem estaria credenciado à realização desse
aspecto especial do trabalho pedagógico? Delineada a especificidade da
administração da educação, resta-nos agora refletir sobre os especialistas
encarregados de sua concretização.
2.5 A natureza do trabalho pedagógico como determinante de sua administração
Ainda que o pretenda, o especialista em administração da educação não
pode orientar sua atuação pela objetivação do trabalho pedagógico, ou seja, não
pode pretender avocar a si o controle do processo de trabalho desenvolvido
pelos professores. Se isso se dá, o que resulta é a subordinação do trabalhador
(professor) ao processo de trabalho que executa, e essa subordinação é
exatamente o que não pode ocorrer, tendo em vista a natureza própria do
trabalho pedagógico. Na relação educativa, conforme Saviani o demonstra, o
professor detém o controle do processo de trabalho que realiza, é ele quem o
planeja, elabora e executa. Mais ainda: o trabalho pedagógico propriamente dito,
a aula, só pode ocorrer na presença simultânea do professor e de seus alunos,
e, como tal, sua produção e seu consumo são indissociáveis. Não há o intervalo
necessário para que da produção resulte uma mercadoria equivalente às demais
mercadorias em circulação. Por isso Marx já indicava que no caso da produção
não material, em que o produto não é separável do ato de produção, "o modo
capitalista de produção só tem lugar de forma limitada, e pela própria natureza
da coisa não se dá senão em algumas esferas" (Marx, 1980:403).
Como se observa, de duas maneiras a natureza do ato educativo
determina as perspectivas de sua administração: marcado pela solidariedade,
ele não pode ser administrado de forma competitiva; permanecendo sob o
controle do trabalhador que o produz, ele é irredutível a uma administração que
implique sua objetivação. Por ambas as razões a administração de fundo
teórico-empresarial não pode, sob pena de desvirtuamento completo da
finalidade da escola pública, aplicar-se à condução das atividades de seus
professores. Não pode também, consequentemente, presidirias organizações
maiores — os sistemas escolares — no interior das quais essas atividades se
desenvolvem.
Apesar de um tanto longa, creio ser útil a citação a seguir de um
texto em que discuto mais abrangentemente a questão da organização do
trabalho na escola:
Não pleiteio, entretanto, que nenhum aspecto das teorias admi-nistrativas elaboradas sob o modo capitalista de produção possa ser aplicado de modo favorável à vida das escolas. Na verdade, é preciso ter claro os dois aspectos principais da teoria e da prática da
administração capitalista. De um lado ela se volta às atividades de gerenciamento, isto é, ao controle das relações de trabalho entre pessoas. De outro, ela se ocupa da racionalização, da distribuição de tarefas especializadas que buscam o incremento da produtividade. Enquanto "gerência", a administração da educação lida com as relações entre educadores; busca articular as diferentes contribuições que se espera estejam em desenvolvimento no interior do trabalho pedagógico. Enquanto "racionalização", a administração da educação pretende elaborar as formas mais eficientes e eficazes de realização dos empreendimentos a que se volta. Nem a gerência nem a racionalidade são elementos antagônicos à realização do ato educativo. Ao contrário, ao buscarem a articulação de pessoas e de procedimentos, gerência e racionalização se apresentam como aquelas condições que ajudam a definir o próprio sentido educativo da ação: afinal, o que se pretende com a educação é que as pessoas se organizem para a construção da "humanidade" de todos e de cada um. As dificuldades se apresentam em função do grande substrato ideológico que se vem acumulando historicamente em torno dos dois conceitos. O "gerente" se identifica com o manipulador, enquanto o "racionalizador" é percebido como o tecnocrata insensível às necessidades das pessoas. Ninguém de bom senso negaria o fundo de verdade dessas pressuposições, que as ocorrências das duas últimas décadas da vida nacional só têm feito confirmar. No entanto, se estamos interessados em discutir as peculiaridades e as possibilidades da organização do trabalho na escola, é necessário passar com acuidade e lucidez pelo exame dessas duas questões. O diretor de escola, em princípio, deve "gerenciar" e "racionalizar" a unidade de ensino pela qual responde. Nesse sentido ele se comportará como o administrador "em geral" (Paro, 1984) deve se comportar, ou seja, orientando o esforço coletivo e os meios disponíveis para os fins que se tem em vista alcançar. Lembrando Snyders, é bom que se destaque uma vez mais que se "o capitalismo é o inimigo a abater, isso nem por sombra significa a negação das conquistas positivas que ele permitiu e, sobretudo, das possibilidades que abre" (Snyders, 1977). Nesse sentido, administrar uma escola é algo que supõe domínio técnico de procedimentos tanto quanto qualquer outro empreendimento social. Onde as peculiaridades da organização escolar devem se manifestar necessariamente como subsídios à sua administração é na determinação dos critérios que vão presidir a esse "gerenciamento" e a essa "racionalização". Uma gerência que domina ou manipula não é uma gerência educacional, assim como também não é educacional uma racionalidade afastada dos elementos substantivos de sua ação (Silva Júnior, 1986).
Estariam os nossos administradores escolares em condições de
discernir esses aspectos preferenciais de seu trabalho? Estariam eles em
condições também de apreender a -historicidade e as limitações das
teorias administrativas normalmente preponderantes em seus ambientes
de trabalho e de formação profissional? Muito provavelmente as respostas
a essas questões devem ser negativas e sobre esse ponto, então, é
necessário que concentremos nossa reflexão.
Quem são nossos administradores escolares? Onde se formam, que
contribuições (ou deformações) trazem de sua experiência profissional
anterior como professores? Como interpretam a passagem da função de
ensino para a função administrativa? E, principalmente, como percebem a
articulação entre as duas funções?
Um primeiro aspecto, de capital importância, é normalmente
desconsiderado quando questões como as acima citadas são colocadas
em exame: a imensa maioria dos administradores escolares não é
formada nos cursos de Pedagogia das grandes universidades, públicas ou
privadas. Basta que se compare, grosso modo, o número de escolas em
funcionamento no Estado de São Paulo com o número de vagas dispo-
níveis para a habilitação em administração escolar em nossas
universidades. A colossal distância é preenchida pelas inúmeras
pequenas faculdades particulares que se multiplicam por bairros da capital
e por cidades do interior, quase sempre sem nenhuma condição
institucional de apoio à pesquisa e à reflexão e muitas vezes também sem
nenhuma preocupação ética ou moral quanto à responsabil idade social
pelas certif icações que oferecem.
A dificuldade não reside só na qualidade dos cursos de formação
profissional que os candidatos a administradores escolares frequentam,
mas também nas condições de trabalho em que se encontram, como
professores, que praticamente inviabilizam, pela sobrecarga que impõem,
qualquer pretensão de uma formação mais consistente e estimulante para a
nova área de atuação profissional pretendida. Temos aqui, repetida de forma
inversa, a situação que deu margem à própria hipertrofia da administração sobre
o ensino em nossos sistemas escolares: a administração, que se desenvolveu
institucionalmente no espaço que o ensino lhe propiciou, atrofia-se agora, em
suas perspectivas de desenvolvimento teórico, em função da impossibilidade
prática de os professores dedicarem-se eficientemente ao seu estudo siste-
mático e à reflexão sobre suas características essenciais. O ensino, subjugado
pela administração institucionalizada, é também atropelado pela inviabilidade da
análise do significado das teorias e das práticas administrativas com que se
defronta.
De qualquer modo, é preciso pensar que existe uma administração
escolar instalada e que essa administração é conduzida por profissionais
autorizados a um exercício mínimo de um processo decisório. Sobre o que e a
partir de que decidem nossos administradores escolares é a discussão que
devemos encetar a seguir.
As decisões mais frequentes do diretor de escola são as que, de um ponto
de vista técnico, costumamos chamar de "decisões operativas", ou seja, dizem
respeito apenas ao modo de execução de deliberações estabelecidas em instân-
cias mais altas do sistema. Como comumente não se questiona o modo de
funcionamento do sistema, os fundamentos das decisões do diretor de escola
costumam ser apenas a necessidade e a obrigatoriedade que lhe são
introjetadas de dar curso às determinações dos níveis mais altos. Nesses níveis
mais altos, frequentemente, o que se considera não são as necessidades reais
do ensino a ser desenvolvido nas escolas, mas os problemas conjunturais da
própria administração. O que temos finalmente, o mais das vezes, é o diretor de
escola decidindo como, em seu âmbito de atuação, poderá colaborar para que a
administração do sistema resolva seus próprios problemas (Vale, 1982).
Há, no entanto, a possibilidade, apontada por Vale, de alterar de alguma
forma essa imposição do modelo burocrático que rege nossas organizações
escolares. A possibilidade decorre das características do próprio modelo e diz
respeito à considerável distância que separa o diretor de escola dos níveis mais
altos da cúpula do sistema. Por outro lado, é ainda Vale quem destaca,
coloca-se a proximidade natural entre o diretor e os professores de sua escola.
São esses dois elementos, a distância da cúpula e a proximidade do ensino, que
dão ao diretor de escola a perspectiva de redirecionar o sentido habitual de seu
trabalho, fazendo com que ele se volte às suas raízes originais.
Desarticulando-se, em termos, dos órgãos centrais e articulando-se com seu
pessoal docente, pode o diretor propiciar condições para que se elabore o
projeto pedagógico de sua escola, aquele projeto que vai dar a marca de seu
trabalho pedagógico e identificar o sentido de seu compromisso educacional.
Para isso, no entanto, o diretor precisará não apenas de espaço institucional,
mas, também, e principalmente, de uma clara compreensão de seu papel de
dirigente.
O dirigente, dizia Gramsci numa das mais conhecidas passagens de sua
obra, é aquele que consegue reunir à sua condição de especialista a sua
condição de político. Por isso se distingue do dominante. Por não se valer da
coerção e por não decidir sem estar credenciado a fazê-lo. Não sendo um
simples delegado da força institucionalizada, o dirigente é ao mesmo tempo
partícipe e condutor do processo que dirige. O que o credencia é o saber
especializado que detém e o que o autoriza é a confiança de seus pares. Ao
primeiro ele terá chegado pelo estudo e pela experiência criticamente analisada.
A segunda ele a terá alcançado pela clareza e a constância de seu propósito de
vida pessoal e profissional.
Um tal diretor será necessariamente alguém comprometido com o
trabalho pedagógico de sua escola. Será alguém consciente da necessidade de
recuperar a função social e a identidade própria da escola; alguém que, por isso
mesmo, se empenhará na revitalização e na organização do ensino que se
desenvolve no interior da instituição que dirige.
Existirá um tal diretor?, perguntará quase que certamente alguém
acostumado a pensar o diretor como o representante obrigatório e inevitável de
um sistema de forças a que serve. A pergunta é cabível à luz da experiência
acumulada dos últimos anos, mas a resposta pode ser positiva quando se
consideram os progressos obtidos pelo debate educacional que se acentua. A
grande dificuldade ainda reside na estratificação de certas posições que, um
pouco por desinformação e outro tanto por calculismo, preferem mitificar o
professor e "protegê-lo" dos "riscos" da aproximação com os educadores que
exercem funções para além dos limites da sala de aula. São as mesmas
posições que sugerem que o diretor nunca foi professor ou que não possa sê-lo
cumulativamente.
Para nos situarmos melhor sobre as posições emergentes entre os
profissionais da escola pública, passo no capítulo seguinte à análise de algumas
de suas percepções e representações.
Capítulo 3
O movimento da escola pública. Percepções e representações
"A escola não é estática nem intocável. A forma que ela assume em cada momento é sempre o resultado precário e provisório de um movimento permanente de transformação impulsionado por tensões, conflitos, esperanças e propostas alternativas."
Equipe do I.D.A.C., citado por Maria Conceição, diretora da "E.E.P.S.G. do Bairro Barreirinho", em Rinópolis, oeste do Estado de São Paulo, no Plano Escolar-1985.
"A quantidade de leis é a prova de um mau governo e da decadência de uma nação, porque são os maus costumes que colocam os homens na contingência de fazer leis."
Tácito, citado por Erasmo de Roterdã no Elogio da loucura, segundo Pedro, supervisor de ensino em Guarulhos, na Grande São Paulo.
Encontrei Pedro e Conceição da mesma maneira que encontrei Fátima,
Edite, Maria José, Suely, Neusa, Dagoberto, Sílvia...: em seu trabalho, refletindo
sobre ele, tentando identificar seu sentido e evidenciar a possibilidade de
transformá-lo. Não é o caso de Claudete, indecisa em "colorar ou não no papel
toda a nossa sensação de inutilidade após 21 anos de serviço", mas, ainda
assim, disposta a "fazer algumas conjeturas... sem a convicção de que possa-
mos mudar ou contribuir para a reversão do caos educacional da atualidade".
Apenas conjeturando, como Claudete, ou apostando sinceramente na
possibilidade da transformação, como a maior parte daqueles com quem me
encontrei, os trabalhadores que fazem a escola pública paulista revelam em
suas manifestações as tensões, os conflitos, as esperanças e as alternativas
cuja existência Maria Conceição registrou em seu Plano Escolar. Embora seu
texto possa sugerir, não sei até onde Maria Conceição se aprofundou em suas
leituras sobre o método dialético. Nem mesmo sei se em algum momento e em
alguma medida isso poderia ter ocorrido. Também não sei se Pedro, de evidente
formação aristotélico- tomista, se debruça sobre a totalidade, as mediações e as
contradições com a mesma aplicação com que recorre, entre outras, às citações
da Ética a Nicômano. Sei com segurança apenas que Pedro, Maria Conceição e
os muitos outros diretores, professores, supervisores, coordenadores e os
poucos orientadores remanescentes na rede paulista de escolas públicas
estaduais respondem efetivamente pela existência material dessas escolas. Ao
socializarem suas experiências comuns no contexto de suas relações de
trabalho, permitem que se possa aprofundar um pouco mais o entendimento
sobre o que de real ocorre em seus locais de trabalho. Sua fala e seus escritos
possibilitam desvendar a trama de sentimentos, desejos e convicções que
estruturam seu cotidiano e que, apesar das muitas frustrações que se renovam,
não impede sua elevação ao nível da "atividade humano-genérica consciente",
ou seja, da atividade prática elevada ao nível da "práxis" (Heller, 1972).
As "ideologias" — visões sociais que servem para legitimar, justificar,
defender ou manter a ordem social do mundo — e as "utopias" — visões sociais
que exercem uma função crítica, negativa, subversiva, ao apontarem para uma
realidade ainda não existente (Lowy, 1985) — manifestam-se de forma
significativa nas percepções e representações dos trabalhadores da escola
pública sobre si mesmos e sobre seu trabalho. É certamente importante lembrar
com Ianni (1985:42) que "as modalidades da consciência e as condições de
existência social não se exprimem nem se relacionam de modo harmônico" e
que "tanto as pessoas como os grupos e as classes sociais apreendem suas
relações sociais de maneira diversa e antagônica, quando não de forma
incompleta, parcial, invertida ou fetichizada".
Ianni, no entanto, assinala também que
no curso de formação de sua consciência política, o proletariado pode confundir a máquina com o seu inimigo; ou aceitar a aliança com a burguesia nascente, para lutar contra os inimigos do seu inimigo. E também pode ser levado a aceitar seitas e doutrinas do socialismo utópico. Paulatinamente, no entanto, a classe operária elabora sua consciência política. Essa é a ocasião em que começa a compreender a burguesia como classe adversa (Ianni, 1985:48).
Seria incorreto pretender que os registros que vão se seguir representem
a emergência da consciência política e da visão de mundo proletária entre os
trabalhadores das escolas públicas paulistas, tal como Ianni o registrou para o
conjunto do proletariado em sua trajetória histórica. Se assim ocorresse,
poderíamos também argumentar que
o ponto de vista do proletariado não é uma condição suficiente para o conhecimento da verdade objetiva, mas, é o que oferece maior possibilidade de acesso a essa verdade (Lowy, 1985:34).
Estaríamos, pois, mais próximos da explicação procurada, Deve-se
considerar, no entanto, que o processo de proletarização do magistério público
paulista ainda não se configura explicitamente. Não o admite o
Estado-empregador que o promove e nem o admite de forma politicamente
consciente a parcela do magistério que não contesta a existência desse
processo, mas a sua inserção no processo. Mas, são também muitos os que
aprofundam sua reflexão para além da aparência imediata e conseguem chegar
à sua "catarsis", tenham ou não se encontrado com Gramsci em sua trajetória
intelectual e profissional.4
3.1 Os problemas e as tensões
Recém-ingressante no cargo de Diretor de Escola, assumi uma Escola de 1.° Grau no Pontal do Paranapanema, região quase inóspita, onde os assentados travam uma luta diária contra o meio e contra as próprias condições de assentados. A escola não foge à situação geral: pobre, feia, empoeirada, desconfortável, sem nenhuma flor a amenizar seu descolorido! Quando cheguei sofri o impacto dos que chegam vindos de uma região bem mais rica — eu vinha de uma escola bem mais organizada. Vi-me sem saber o que fazer, sufocada pela desolação que via e pela inexperiência. E por não saber o que fazer, fiz o que sempre fizera: entreguei-me ao trabalho numa linha que é a minha marca — dedicação. Sozinha, longe da família, fiz da escola o meu refúgio. Passei a ficar nela os três períodos de funcionamento, dando atenção aos alunos, ouvindo professores, ajudando na secretaria, conversando com os demais servidores, orientando as merendeiras. Excursionei pela vizinhança, tentando resolver problemas que surgiam, entrei em contato com a comissão que decide pelos assentados, visitei a Prefeitura, que fica a 70 km de distância, reuni pais, tudo visando a busca de soluções. Mas, quase que de repente, após dois meses de trabalho, abandonei tudo e voltei para minha região: para minha grande alegria fora convocada para prestar serviços à Delegacia de Ensino de meu município de origem! Depois de algum tempo — dois meses, para ser mais precisa — necessitei de um documento e voltei à escola, por um dia apenas, a fim de buscá-lo. E me surpreendi com a decepção da secretária da escola quando soube que eu não voltara para ficar. Aí ela me disse, entre outras coisas, que os alunos, principalmente os do noturno, sentiram minha ausência, que eu era "atirada" e que a escola precisava de mim. Confesso que a conversa da moça cansou um pouco. Achei-a piegas demais e convenci-me de que o que ela queria era forçar-me a ficar, por sentimentalismo, quando eu já tinha decidido que lá não ficaria. Dois meses depois (parece que a minha vida se marca por bimestres), encontro-me num Curso para Especialistas da Educação. E aí (. . .) ouço falar na necessidade de leituras por parte do diretor, que deve ser uma pessoa culta, com sentimento bastante para amar o outro e com inteligência suficiente para situar-se política e historicamente, para adquirir hábitos de reflexão sobre assuntos profundos que fogem ao banal, para conhecer-se e conhecer os limites e possibilidades do âmbito de sua atuação; vejo delinear-se uma História da Educação no Brasil em que se torna nítido o porquê de dado tipo de educação em dada(s) década(s); revela-se a influência da ideologia do poder dominante sobre a educação; mostra-se a necessidade de uma consciência crítica; clareia-se a posição mais atual do diretor de escola, visto hoje como um mediador; aponta-se a diferença entre administração escolar e administração empresarial; alerta-se para os perigos dos modismos em Educação. E, em tudo, vejo o destacar da urgência de uma reflexão e consequente compreensão do papel do diretor no trabalho pedagógico. Um diretor não mais dominador, que manda e impõe, mas alguém que orienta o esforço coletivo e os meios disponíveis para os fins que se tem em vista alcançar. Então, num
4 Com o conceito de "catarsis" Gramsci indica, em suas palavras, a "passagem do momento puramente econômico (ou egoísta-passional) para o ético-político, isto é, de elaboração superior da estrutura em superestrutura, na consciência dos homens".
relance, compreendi por que a moça lá da minha escolinha triste e feia quis me reter: é que eu representei em parte, de maneira muito imperfeita, embora, e por mera intuição, o que o diretor precisa representar. Fui a cultura num meio onde o próprio Diário Oficial chega com atraso de semanas; fui o dinamismo num meio contaminado pela apatia e a indiferença; fui a "humanidade" num meio em que a tônica é a agressão; fui a segurança num meio em que ninguém tem em quem se apoiar; fui o porto tranquilo no exato momento em que as pessoas cansavam-se de navegar a esmo; fui a objetividade num meio sem definição. Mas a compreensão do que fui não me ufana nem me envaidece. Pelo contrário, deixa-me mais do que nunca a clareza de que estou muito, muito aquém de uma plena realização como diretor de escola. A bem da verdade, falta-me tudo: "saber" e "ser". Daqui para frente é preciso que lance mão de tudo que aprendi, li e vivi e caminhe numa linha firme, capaz de me levar ao crescimento. Para ajudar, há todo o sistema, há toda gama de elementos que compõem os módulos da organização escolar. Tais elementos podem contribuir muito, principalmente os supervisores, desde que tenham consciência de que o mais importante não é a inspeção em si, mas a própria presença no interior do trabalho pedagógico, assegurando a difusão do saber, mediando entre a base e a cúpula, interpretando de maneira crítica a burocracia e a legislação de sua competência. De tudo fica por ora o meu entendimento de que Escola não é quartel, com um conjunto de regras e regulamentos para serem observados e cumpridos, mas sim o local onde as novas gerações se apropriam do conhecimento sistematizado, compromissando todos aqueles que recebem essas gerações num fim comum. Nesse contexto, como o diretor é o ponto de convergência dos demais elementos envolvidos naquele compromisso, urge que ele tenha senso de dignidade e de valor pessoal para buscar sempre o equilíbrio entre seus deveres e direitos, evitando assim confusão e desajustamentos; que o diretor tenha hábitos de ordem e previdência para consigo mesmo, para com os dirigidos e de respeito a tudo o que é respeitável; que o diretor se dê conta de sua posição de dirigente, fugindo a um regime de irres-ponsabilidade que fatalmente levaria à desordem e à indisciplina no seio de toda a escola; que o diretor se dedique ao estudo e à reflexão como forma de atualizar-se e obter uma visão crítica do mundo em que vive; que o diretor se inteire das mudanças no sistema, mas que perceba a adequabilidade delas no interior de sua Unidade; que o diretor seja capaz de criar, amar e convencer, lembrando que convencer não é vencer; e, finalmente, que o diretor se esforce para conhecer-se a si próprio, ao mesmo tempo em que conheça seus limites e possibilidades como dirigente de uma Unidade Escolar, adquirindo a maleabilidade necessária para a todo instante fazer uso sábio desse conhecimento (Edite, diretora de escola na região de Adamantina, Oeste do Estado de São Paulo).
A "catarsis" de Edite remete a seu contraponto, a indagação revestida de
perplexidade de Wanda, também diretora de escola no oeste paulista, em
Parapuã:
Ser diretora de escola e assistente social — na medida em que supria carências econômicas, sociais, encaminhava atendimento médico-hospitalar-oftalmológico-dentário, combatendo evasão e repetências — até que ponto me fez sentir vitoriosa?
Geny, assistente de direção em Adamantina, ensaia uma resposta à
dúvida de Wanda:
A responsabilidade dos diretores exige vocação e competência profissional e, simultaneamente, compreensão e disposição para entregarem-se a tudo que podem, a partir do posto de combate que lhes foi designado. O posto cie combate é a escola, aberta aos ares e aos ruídos de fora (grifos meus).
A metáfora militarista, embora bem-intencionada, já foi descartada
previamente por Edite — "escola não é quartel" — e a pergunta de Wanda
transcende, certamente, ao aspecto pessoal. O que se questiona é a assunção
continuada pela escola pública de tarefas e incumbências estranhas à sua
finalidade precípua e a impotência, envolta em ansiedade, com que os
trabalhadores da escola recebem as novas atribuições que o Estado lhes
repassa. Se simplesmente se negam a atendê-las, projetam para o público e
para a própria consciência a imagem-clichê do funcionário omisso, indiferente às
necessidades coletivas. Se buscam satisfazê-las, temem, com razão, atropelar
as já precárias possibilidades de realizar, ainda que minimamente, o trabalho
necessário de transmissão do saber historicamente acumulado. Esse dilema,
cada vez mais presente no cotidiano da escola pública paulista, é repetidamente
apontado por seus trabalhadores:
A escola pública gratuita e obrigatória, considerada um serviço público aberto a todas as crianças, nos últimos anos abarcou para si funções diversas das que se propôs, assumindo também características assistencialistas. É na escola que as classes populares encontram o local ideal para deixar (?), depositar (?) seus filhos enquanto trabalham (Valdeci, membro de equipe técnica em Marília).
Embora cientes de que a escola é, ou deveria ser, um agente de transformação do meio social em que se insere, seus dirigentes se vêem às voltas com um grande rol de obrigações suplementares (vacinação, tratamento dentário, pediculose, campanhas, concursos, levantamento de dados, promoções, etc.), ficando as atividades específicas, por força das circunstâncias, relegadas ao segundo plano (Eunice, idem).
Em alguns momentos, como Diretor, fui colocado em situações que geraram conflitos sérios. Por exemplo: um dia, na escola, me senti um perfeito dono ou gerente de restaurante, pois estava sendo solicitado constantemente a requisitar junto à Prefeitura Municipal os ingredientes para a merenda escolar. Chegou um momento em que parei e fiquei pensando: será que essa é a minha real função? Será que a alimentação passou a ser o objetivo principal da escola de hoje? (Joaquim, diretor de escola em Marília).
Seria possível continuar por muito tempo a citação de manifestações
semelhantes. Todas elas enfatizam a seu modo o problema da
descaracterização da escola como instituição especializada no trabalho de
ensinar. É sugestivo, a esse respeito, lembrar que a substituição ou a
acumulação de objetivos em organizações de serviços constitui matéria
frequentemente examinada na literatura administrativa de base empresarial.
Nessa literatura costuma-se apontar os riscos assumidos pelas organizações
que se propõem a ampliar seus objetivos de trabalho e as cautelas que
necessariamente devem cercar esse procedimento, entre elas uma
indispensável escala de programação e avaliação. Os princípios da admi-
nistração capitalista, naquilo em que eles se apresentam como garantias de
sustentação dos empreendimentos a que se voltam, não chegam a ser cogitados
por nossa "administração científica" quando os interesses da escola pública, de
seus alunos e de seus trabalhadores são atingidos pela profusão de
determinações ou "sugestões" governamentais. No entanto, chega a ser
significativo o número de administradores escolares que, convencidos das
virtudes do capitalismo "moderno", lamentam-se de que seu espírito ainda não
tenha impregnado mais fortemente a organização do trabalho em nossas
escolas. Assim pensa a supervisora Elenir, que sugere:
Reformulação da legislação que rege o funcionalismo público em geral e o quadro do magistério em particular, porque não é cabível que, numa sociedade capitalista de alta competitividade e renovação, as aspirações de patrão e empregados estejam atreladas a normas que instituem "cargos vitalícios" e enfatizam "tempo no serviço público", o que leva a uma não estimulação de compromisso efetivo, reciclagem, melhoria de produção.
É importante analisar os pressupostos subjacentes a esta manifestação.
Aparentemente, "numa sociedade capitalista de alta competitividade e
renovação", como a brasileira, "as aspirações de patrão e empregados"
poderiam caminhar para um ponto de convergência. No serviço público estaria
caracterizado um anacronismo, já que as aspirações comuns a patrão e
empregados estariam prejudicadas por seu atrelamento a critérios inadequados,
como cargos vitalícios e tempo de serviço. Finalmente, o Estado seria
identificado com o "patrão" e os trabalhadores da escola como os "empregados".
O ponto central de todo o pensamento, ainda que não explicitado, é o de que o
erro do "Estado-patrão" reside na sua excessiva complacência para com seus
"empregados", o que, certamente, não ocorreria na "iniciativa privada".
Em nenhum momento essa manifestação se reporta, entretanto, às
condições que o patrão Estado oferece para que seus empregados executem o
trabalho que lhes cabe. Enquanto patrão, o Estado não se obriga a observar as
regras que estipula para outros patrões, nem mesmo as de ordem salarial.
Enquanto "planejador" e "gestor", o Estado também não se obriga a observar os
princípios da racionalidade técnica referentes a local, tempo e instrumentos de
trabalho. No caso da educação pública em São Paulo, o Estado sequer parece
se preocupar com a subsistência ou com a reposição da força de trabalho, já que
nem mesmo assegura assistência médico-hospitalar a seus "empregados".5 O
que, em verdade, precisa ser assinalado é o simplismo com que a questão das
relações de trabalho no serviço público é muitas vezes tratada por alguns dos
próprios "empregados" do Estado. O modelo da administração privada é
identificado, por definição, com a eficiência e a administração pública, também
por definição, é condenada à ineficiência. No caso desta, a ineficiência residiria
na falta de controle sobre os trabalhadores, desconsiderando-se a análise das
condições de trabalho.
Quando o conjunto dos trabalhadores das escolas do Estado produz suas
próprias análises, no entanto, os elementos oferecidos à reflexão delineiam um
quadro muito diferente:
Ao mesmo tempo em que faz uma reunião com os professores do Ciclo Básico, o diretor é interrompido para providenciar reparos em um cano estourado (Cinira, diretora em Teodoro Sampaio, extremo oeste do Estado de São Paulo).
Confesso que é difícil emergir da burocracia de uma secretaria de escola quando somos apenas dois para dar conta de todas as solicitações, além do trabalho de rotina (Naíde, sem identificação funcional).
Sempre trabalhei com uma defasagem muito grande de pessoal. Em São Paulo, numa escola de quatro períodos e quarenta e cinco classes, fiquei durante seis meses sem nenhum assistente e sem inspetor de alunos. Quantas horas eu trabalhei por dia? Contava com o apoio dos professores. A Delegacia de Ensino conhecia o problema, mas não o resolvia. Agora no interior, numa escola minúscula, afastada do centro urbano, pensei ter encontrado o local certo para desenvolver certas ideias de acompanhamento ao professor. Para minha surpresa, a escola só conta com um assistente efetivo, enquadrado politicamente, que "lavou as mãos", uma secretária ineficiente e um servente geralmente em licença-saúde por causa da bebida. Pergunto: me sobra tempo para coordenar pedagogicamente minha escola? Estou há cinco meses ensinando a secretária a fazer pagamentos, pedindo socorro para o assistente e lavando os banheiros para que os professores tenham um ambiente agradável. Quem resolveria esses problemas? A Delegacia, não. Lá eles escutam professores ressabiados quando lhes cobro serviço por horas-atividades, por corrigirem provas durante as aulas, o que deveriam fazer em local
5 O Hospital do Servidor Público, localizado na capital, é o único à disposição dos servidores de todo o Estado de São Paulo.
livre... (Eunice, diretora no distrito de Jaciporã, região da Alta Paulista) (grifos meus).
O depoimento da diretora Eunice por si só constituiria matéria suficiente
para uma síntese representativa da precariedade das condições de trabalho na
escola pública paulista. Por ele perpassam explicitamente problemas
enfrentados na capital e em um pequeno distrito do interior; problemas relativos
à ausência e à desqualificação de pessoal; problemas relativos à sobrecarga de
trabalho; problemas relativos à inviabilização dos objetivos do trabalho;
problemas relativos à inexistência de apoio institucional ao trabalho. . . proble-
mas, problemas, problemas... Subjacente aos problemas explicitados está o
problema maior, razão direta dos proble- mas que se manifestam: o aviltamento
salarial, que concorre para o aviltamento pessoal dos trabalhadores da escola
pública paulista.
3.2 As angústias e os conflitos
Por suas vivências, a diretora Eunice não acredita em Delegacias de
Ensino. Mas é preciso ouvir também Nehy, uma delegada de Ensino, falando de
diretores. . .:
Vê-se neles medo da comunidade. Suas escolas são verdadeiros "feudos", fechados com cadeados e grades, impermeáveis às ne-cessidades vitais do bairro. A população é vista por eles como incapaz, agressiva e arrogante, ou, então, passiva e omissa frente ao encaminhamento da educação dos filhos — "verdadeiros vândalos" — que destroem o "patrimônio da escola". Quando recebem os pais dos alunos fazem-no de modo autoritário ou paternalista, chegando mesmo à discriminação no tratamento das classes sociais diferenciadas.
O passivismo aparente associa-se ao legalismo absorvido, tor-nando-se armas utilizadas sempre que se fazem necessárias. Res-mungam às vezes, baixinho, mas cumprem sempre as ordens de cima, jogando nelas e nas Delegacias de Ensino (e supervisores) o pretexto de não poder diversificar ou sair do trabalho burocrático. A lei, as normas, são usadas também para impedir ou direcionar os avanços democráticos. Não se dispensam aulas, de modo algum, para discutir problemas, fazer planejamentos ou avaliá-los (somente os autorizados), nem para encontros de Conselho de Escola, porém, dispensam-se aulas para arrecadação de dinheiro, para ver partidas de futebol pela televisão. . .
Queixam-se de falta de tempo, mas acumulam cargos estaduais com os de prefeituras e escolas particulares. Queixam-se da burocracia, mas têm apenas olhos voltados para ela. Não se confia no secretário (e o supervisor não confia no diretor de escola). Tem-se que conferir prontuários, notas de alunos e outros papéis. Não se redistribuem funções porque não se liberam decisões. . .
e falando também de professores:
Não há carreira do magistério, apenas professor em carreira para não perder aula. . . Em vez de camaradas, sócios, co-participantes do processo, tornam-se simples conhecidos que se cumprimentam na porta, dando passagem ao outro que entra a seguir. Não se sabe o que estão dando, como tratam os assuntos e nem por que estão ensinando. O planejamento feito no início do ano, mal discutido e copiado do ano anterior (ou dos anos anteriores), nada representa. . . Os professores são também homens solitários dentro da escola e da sociedade. O trabalho é rotineiro (transmite as mesmas informações, do mesmo jeito, num mesmo dia a quatro ou mais classes, repetidamente). Sua atividade causa-lhe desânimo, apatia, chateação. Usa um livro de "Estudo Dirigido", onde embrutece-se, rotiniza-se, não cria, não raciocina, não usa sua capacidade de reflexão. Embrutece também o aluno. Torna-o passivo, puro cumpridor das ordens do livro. O livro resolve sua ação em sala de aula. Seu problema agora é pensar em vender cada vez mais a força de trabalho de que dispõe (a qualquer preço) para poder manter o equilíbrio do consumo costumeiro de sua família. Trabalha em várias escolas, assume "bicos", vende roupas nas horas vagas. Não controla a venda de sua mercadoria mais preciosa que é o seu trabalho. Não controla a direção, nem escolhe as condições em que ela se processa. Depende de atribuição de aula, da concorrência com os outros, do mercado de trabalho que desvaloriza seu produto e que não se importa com sua competência... Se pelo menos pudesse ter o poder de decidir quantas aulas, quais aulas. . .
Nehy oferece sua interpretação dos problemas que aponta e acrescenta
suas indagações:
Anos de ditadura, de não divergência de ordem sindical (problema sindical igual a caso de polícia), sem debate político (o bipartidarismo impedia a representatividade ideológica); grande massificação pelos meios de comunicação modernos, principalmente pela televisão; bloqueio de qualquer criticidade e questionamento nas escolas de 2." grau e nas universidades; desmantelamento de entidades de representação estudantil, tudo isso leva à compreensão do porquê de o homem brasileiro em geral e do educador em particular ter um descompromisso com o processo de mudança e um envolvimento acentuado no individualismo.
Luta-se pela sobrevivência, segurança e consumismo (hábitos adquiridos em épocas de ganhos melhores e acentuados pela propaganda televisiva). Há quase uma impotência na luta pela necessidade de participação social, aceitação social, prestígio e respeito social. Não se vê sentido... As promessas políticas cada vez estão mais desacreditadas. Como ter motivações intrínsecas para o trabalho escolar se as escolas, suas atividades, constituem lugares de frustração e de constrangimento? Como evitar o dirigismo, o hierarquismo, o autoritarismo e as demagogias?
Como muitos companheiros seus, Nehy integrou o grupo dos
"Educadores do PMDB". Suas palavras, colhidas no final do ano de 1987,
refletem dolorosamente as angústias dos que apostaram suas esperanças na
proposta da "transição democrática". Apesar disso, ou talvez por isso mesmo,
suas observações não perdem a validade. A angústia não prejudica
necessariamente a apropriação do real, nem a posição de Nehy é uma posição
isolada e particular. Maria Júlia, supervisora de ensino em Assis, é clara e
objetiva em sua afirmação:
Durante minha trajetória profissional, que dura mais de vinte anos, passando pelas classes de docente (P. III) e especialista (Diretor de Escola e Supervisor de Ensino) tenho assistido e participado do deslocamento do educador da posição que lhe cabe numa sociedade cada vez mais complexa e competitiva, cada vez mais interessada nas conquistas do progresso material. Confesso que estas preocupações têm, às vezes, desestimulado- me do exercício profissional, pois tenho me defrontado com profissionais desinteressados e até mesmo "desligados" de sua própria prática, e eu própria sinto-me, muitas vezes, inútil dentro da escola. As pressões, as acusações, o sentimento de culpa têm-nos desequilibrado, por mais que analisemos suas razões e tentemos encontrar respostas para os questionamentos.
Também a professora Déborah procura a clareza em sua autocrítica:
Acho necessário situar-me dentro da minha formação profissional para ficar mais clara a minha posição. Sou formada em Biologia e recordo-me que durante o curso, eu e meus colegas "detestávamos" as matérias pedagógicas, que eram apelidadas por nós de "perfumarias", dado o caráter não essencial que atribuíamos a elas para nossa formação como biólogos. Não me dediquei à pesquisa e, aprovada em concurso público, ingressei no Magistério Público Oficial. (...) Nomeada em comissão como assistente de diretor e substituindo o cargo de diretor de escola há dois anos, paro hoje para essa reflexão e constato que nada fiz para melhorar a situação do ensino. Preocupada em entender a escola como empresa, gastei grande parte do meu tempo como "gerente" apenas, aprendendo o que é B.F., B.S.D., A.F., Anexo 1, Ficha CRHE, Resolução, Parecer, Decreto etc..., afastando-me completamente de meu lado como educadora, pro-fessora ou profissional comprometida com a educação de todas as pessoas da sociedade.
Maria, diretora substituta na região da Alta Paulista, também admite sua
ansiedade:
Eu mesma sinto complexo de culpa por estar limitada na visão pedagógica, por ler muito pouco. Na escola a burocracia exige leitura de tantos papéis, circulares, apostilas etc., que no pouco tempo de que dispomos evitamos a leitura; estamos saturados, temos necessidade de outro lazer. A leitura e novas visões ficam em planos secundários.
Na rude e necessária franqueza de Maria vemos emergir a ponta de um
outro problema para o qual as soluções até aqui encaminhadas têm se revelado
quase sempre inoperantes: a atualização em serviço do pessoal do magistério.
Associado a este, manifesta-se também o problema que responde em grande
parte pelas dificuldades de atualização profissional: o problema da própria
formação profissional dos trabalhadores da educação.
A bióloga Déborah, transformada em diretora de escola, preocupa-se com
uma deficiência em sua formação que é, na verdade, a menor de todas as
deficiências. Como seus colegas, Déborah via-se como bacharel e não como
licenciada, daí não se preocupar com as "perfumarias" pedagógicas. Mas,
Déborah adquiriu uma sólida formação básica na maior universidade do país, o
que lhe permite encaminhar produtivamente as mudanças em sua trajetória
profissional. As grandes deficiências no campo da formação profissional do
magistério público residem, fundamentalmente, na absoluta omissão e no óbvio
comprometimento dos poderes do Estado para com a mercantilização e o
falseamento presentes na ação de grande número das "IES", "instituições de
ensino superior", "supervisionadas" e "orientadas" pelo Conselho Federal de
Educação, pelo MEC e por alguns Conselhos Estaduais. É nesse território misto
da cupidez empresarial e da corrupção funcional que o problema da formação
profissional do magistério público deita mais profundamente suas raízes. São
muitas as manifestações disponíveis sobre a situação:
Amplamente discutida e dificilmente contestada, a formação do professor em faculdades de final de semana é um empecilho para o bom desempenho profissional (Suzete, diretora na Alta Paulista).
A maioria deles desconhece o aluno e o próprio conteúdo da disciplina. Os professores que estão atuando hoje são, em sua maioria, vindos das faculdades de final de semana (Matilde, coordenadora pedagógica em Marília).
Temos que reconhecer no fracasso que a escola vem apresentando grande parcela de culpa dos mestres, ocasionada pela falta de preparo e de atualização de conhecimentos. Esse despreparo e essa quase ausência de atualização são, sem dúvida alguma, gerados pela necessidade que os mestres têm de sobrevivência, utilizando-se, então, de faculdades de fim de semana para conseguir um melhor lugar ao sol (Edyr, supervisora em Assis).
Na prática o administrador encontra muitas dificuldades para orientar o esforço coletivo e os meios disponíveis para os fins que se tem em vista alcançar, por não ter uma clara compreensão de seu papel de dirigente e tendo em vista a má qualidade dos cursos de formação profissional que a grande maioria dos administradores escolares frequentou. . . (Eunice, coordenadora pedagógica na Alta Paulista).
Temos que ter a visão lúcida dos problemas: o aluno não sabe. . . mas o professor (e o especialista) também não. O professor, cuja origem social se alterou, não fez escola superior pública, fez a particular, que depois de 64 teve um extraordinário crescimento (Maria José, assistente de direção em Ourinhos).
Por aí caminham as referências ao problema da formação profissional. E
por aí também se fecha o circuito da degradação qualitativa da escola pública
paulista. A tão pretendida "reciclagem" não tem como se estabelecer se as
condições de trabalho são adversas e a formação para o trabalho é falseada.
Não há como eximir o Estado, responsável pelas relações de trabalho, da
responsabilidade decorrente pelo insucesso do trabalho.
Os trabalhadores da escola não são, porém, indiferentes aos problemas
da desatualização e da formação inadequada. A própria adversidade das
condições objetivas acaba operando em favor de sua subjetividade, ou seja, em
favor de seu desenvolvimento pessoal. Diz Gramsci (1978:53) que "a estrutura
da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e tornando-o passivo,
transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma
ético-política, em fonte de novas iniciativas". Esse momento "catártico"
corresponde à passagem do "objetivo ao subjetivo" e da "necessidade à
liberdade". São numerosos os exemplos de aproximação ou de realização desse
momento entre os trabalhadores da escola pública:
A visão da historicidade da educação brasileira através da participação das classes populares na escola, concluindo-se que desse ângulo a escola nunca esteve tão bem quanto hoje, foi para mim um fato novo e alentador. Ter sabido que não devo subestimar ou superestimar a função da escola na sociedade contribuiu muito para diminuir a angústia sempre presente em mim, de que a escola nunca cumpriria sua função social (Loyde, diretora em Pompéia).
Eu estava simplesmente gerenciando, e não muito bem, a empresa escolar. . . Conscientizei-me de que a prática sem teoria é falha e tende a se deformar no decorrer do tempo. . . que o retorno às teorias é essencial para a atualização e a renovação de nossa prática. Há necessidade de que se recomece no interior da escola um trabalho para alterar sua situação de reprodutora das desigualdades sociais e transmissora de um conhecimento pobre e defasado (Cleômenes, diretor na região de Assis).
Frente a este desafio, mudo agora o sentido da minha luta. Buscarei com todas as forças derrubar os mitos da escola fracassada e em crise; da inoperância da educação como elemento transformador; da incapacidade dos educadores como agentes transmissores do conhecimento e da cultura; da inutilidade da escola. Pretendo direcionar minha carreira no sentido de fazer restaurar a fé na escola como instituição capaz de, junto com outros fatores, produzir mudanças na sociedade (Elianeth, diretora em Paraguaçu Paulista).
A partir de agora pretendo ter um comportamento mais profissional. Perseguirei a postura de um verdadeiro educador, de forma que meu discurso tenha o poder de inquietar pessoas, de melhorar o mundo à minha volta, de ajudar pessoas a encontrar um verdadeiro e valioso sentido de vida (Margareth, professora III, respondendo pela direção de uma escola agrupada na região de Assis).
Não podemos acreditar que a melhoria da escola pública como um todo virá da população, se nós, profissionais que atuamos nessa escola, não melhorarmos a qualidade do nosso trabalho em favor de nossa classe de origem, a classe trabalhadora (Maria Vilma, diretora em Marília).
Comecei a cobrar de mim mesmo um conhecimento maior a respeito de coisas que dizem muito sobre nosso trabalho: uma visão em profundidade do momento histórico que vivemos e uma análise séria e objetiva da escola que temos. É realmente incrível a nossa tendência a julgar as coisas pelas aparências, a jogar a culpa de tudo na primeira cara que aponta na diretoria, seja ela de aluno, de pai de aluno ou de professor. . . (Walter, diretor em Maracaí).
Todos esses diretores afirmam e, ao mesmo tempo, negam as
manifestações de sua colega Eunice. Da mesma forma, afirmam e negam
também as observações da delegada Nehy. Implicitamente, estão dizendo: são
reais os problemas da escola pública paulista, mas é possível construir a
superação desses problemas. Um depoimento, em especial, demonstra a
possibilidade e projeta a esperança da superação.
3.3 As convicções e as alternativas
Fátima é professora III no Jardim Previdência, Zona Oeste, em São Paulo.
Seu trabalho consiste na formação de outros professores, os professores I, que
irão trabalhar nas séries iniciais da escola de 1.° grau. Há uma serena confiança
e um profundo sentido de compromisso em suas palavras:
Estudei na escola pública e hoje trabalho nesta mesma escola pública porque acredito nela. (...) Como é a escola pública em que atuo? Que tipo de atuação "exige" dos profissionais que fazem parte de seu quadro? Para responder a estas questões procurarei traçar meu percurso nesta escola pública de hoje, mesmo tendo minha formação na escola pública de "ontem".
Sou pedagoga, ou melhor, Pedagoga, ou pelo menos, me esforço por ser Pedagoga. Cursei todas as habilitações: Orientação Educacional, Administração Escolar, Inspeção Escolar, Supervisão Escolar e Magistério das Matérias Pedagógicas do Curso de Formação de Professores, na FEUSP. As disciplinas em que possuo registro no MEC são: Psicologia da Educação, Filosofia da Educação e História da Educação.
É relevante considerar a formação básica de Fátima porque ela ajuda a
entender como foi possível lidar com a quase inacreditável sucessão e
acumulação de tarefas em um único local de trabalho que viria a seguir:
Iniciei minha trajetória no Sistema Estadual de Ensino na H.E.M. (Habilitação Específica para o Magistério), com apenas quatro aulas de Estatística Aplicada à Educação. Quando aceitei essas aulas senti uma insegurança muito grande, apesar de ter tido quatro semestres de
Estatística na Faculdade. Acredito que essa insegurança tenha sido benéfica, porque me fez estudar muito e recorrer a uma bibliografia extensa para dar conta daquilo que eu "sentia" que era importante e até mesmo imprescindível àquelas alunas da H.E.M. para que elas pudessem atuar como profissionais competentes. Isso foi no mês de fevereiro. Em abril, as aulas de Psicologia da Educação dos 20H anos do Magistério ainda não tinham uma professora para ministrá-las. A diretora solicitou que eu me encarregasse também dessas aulas, duas no 2.° E e duas no 2.° F. Assim, reiniciei meus estudos de Psicologia, que na Faculdade tinham um cunho, considerado por mim, muito teórico e que eu acreditava que deveria modificar. Foi nessa ocasião, em que ainda tinha uma visão extremamente teórica e livresca, que percebi que não podemos construir uma prática unicamente a partir de teorias concebidas a priori, e que também não poderia ter uma prática competente ignorando aquela teoria vista na minha formação. Só recentemente, depois de muito tentar, errar, às vezes, acertar, pude perceber este jogo dialético entre teoria e prática, em que uma não deve preceder necessariamente a outra, mas, em que uma não pede prescindir necessariamente da outra (grifos meus).
Assinalado o primeiro ano de trabalho, Fátima prossegue em seu
depoimento:
No ano seguinte, minha pontuação não me permitiu "escolher" as mesmas disciplinas. Uma professora efetiva de Matemática ficou com as aulas de Estatística (os professores efetivos, além de poderem escolher as aulas com prioridade, podem complementar sua carga horária escolhendo as aulas de matérias específicas do Magistério, que quase não possuem professores efetivos, já que o último concurso ocorreu em São Paulo em 1969). As aulas de Psicologia da Educação foram escolhidas por uma professora de Didática que nesse ano não conseguiu escolher aquelas aulas. A princípio acreditei que meu vínculo com aquela escola havia se encerrado, mas a diretora me apresentou as aulas que haviam "sobrado" na escolha: quatro aulas de Teatro Infantil para os 4."s anos e quatro aulas de Sociologia da Educação para os 3.08 anos do Magistério. Eu aceitei e me pus, novamente, a estudar muito, procurando bibliografia especializada e adequada, fugindo, na medida do possível, da "mesmice" que as alunas vinham tendo. Admito que me sentia mais à vontade com a disciplina Sociologia da Educação, porque, seguindo indicação do coordenador pedagógico da escola (um dos únicos da rede estadual de 2.° grau, o professor Celso Ferretti), trabalhei o livro A Escola numa Área Metropolitana, do professor Luis Pereira, o que, acredito, foi muito proveitoso, porque a partir da pesquisa realizada pelo autor e apresentada no livro as alunas e eu mesma partimos para conhecer nossa escola pública de 1 g r a u em todos os seus elementos. Alguns grupos foram conhecer a estrutura administrativa de uma escola estadual e outros, a de uma escola municipal de 1.° grau, entrevistando diretores, assistentes, secretários, serventes, além da observação desses mesmos agentes. Outros grupos foram às escolas para conhecer a relação professores e direção nas duas redes de ensino. Outros, ainda, foram à escola para conhecer ou melhor apreender a relação professor e aluno, observando aulas, recreios, avaliações, passeios etc. Outros grupos, finalmente, entrevistaram pais e a comunidade, além de fazer levantamentos dos aspectos físicos das escolas em questão. Depois de realizado esse trabalho os grupos apresentaram suas conclusões e os mecanismos de coleta de dados. Após todas as apresentações, pudemos ter uma visão, ainda que parcial, da realidade do funcionamento e da estrutura de algumas escolas públicas, Questões referentes à sociologia dos grupos primários e secundários puderam
ser acopladas àquilo que as alunas estavam aprendendo na disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1.° grau.
Já em Teatro Infantil, até mesmo pelas minhas características pessoais de introversão e timidez, o trabalho, acredito, poderia ter sido melhor, se minhas características fossem diferentes. Mesmo assim, acredito que a relação interdisciplinar que procurei estabelecer tornou-se um ponto positivo. Procurei mostrar que a Didática, a Psicologia, a Educação Física Infantil, a Educação Artística, a Literatura Infantil poderiam não só se utilizar do Teatro Infantil, mas que este poderia ser um elemento essencial em todas as disciplinas.
No 3." bimestre a professora de Estatística Aplicada à Educação, licenciada em Matemática e com um trabalho totalmente diverso do meu, que sou pedagoga, deixou a disciplina e eu fui solicitada a preencher mais essa lacuna. Aceitei, e foi muito difícil, porque tudo que considerava importante para o futuro professor, havia sido relegado nos dois primeiros bimestres em função de uma visão meramente matemática e exata. Foi outro desafio (grifos meus).
Em seu terceiro ano de trabalho a professora Fátima iria viver em
plenitude as contradições que marcam o processo de atribuição de aulas e,
consequentemente, o próprio processo de trabalho do professor da escola
pública paulista:
A escolha de aulas no ano seguinte me levou a enveredar por outros caminhos. Sociologia da Educação foi escolhida por uma professora efetiva de Geografia e, a princípio, só Teatro Infantil havia sobrado para escolha. Comecei aquele ano com apenas quatro aulas e terminei com quarenta. Explicarei por que...
Logo ao início do ano, a professora de Português, efetiva, deixou as aulas de Literatura Infantil: quatro aulas para os 4.0S anos do Magistério. Senti que seria uma oportunidade de mostrar que Teatro Infantil poderia estar, ou deveria estar, intimamente ligado à Literatura Infantil, além das outras disciplinas. Nesse mesmo ano eu estava trabalhando para uma editora, fazendo apreciação de originais de livros de literatura infantil. Utilizei essa experiência em saia de aula. Que tipo de obra as editoras vêm publicando... Começamos a analisar e a refletir sobre as ideologias contidas nos textos, sobre o conteúdo, o layout, o tamanho das letras, as ilustrações, a faixa etária para a qual a obra se destinaria etc. Além de utilizarmos textos clássicos da literatura infantil, utilizamos também textos elaborados pelos alunos na disciplina Teatro Infantil. Os textos eram adaptados e nós íamos a creches, EMEIs e escolas de 1 g r a u para apresentá-los.
Comecei a trabalhar também com a disciplina Estrutura e Fun-cionamento do Ensino de 1° Grau nas turmas de 3," ano. Aquela experiência do ano anterior com Sociologia da Educação me levou a trabalhar Estrutura e Funcionamento de forma diferente da que havia tido em minha formação e da que vinha sendo trabalhada anteriormente na escola, com um enfoque meramente legalista, estudando os órgãos oficiais, as leis, os artigos, decretos, burocracia etc. Começamos a trabalhar Estrutura a partir dos estágios, não esquecendo as leis, mas procurando refletir sobre os contextos que levaram à elaboração das Leis de Diretrizes e Bases e procurando fazer uma relação entre o real e o legal. A escola pública e seus problemas sempre foi e continua sendo o objeto de minhas aulas, qualquer que seja a disciplina trabalhada.
No final do 3.° bimestre a professora de Filosofia da Educação dos l."s
anos, de Filosofia e História da Educação dos 3.°' anos, de Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1° Grau dos 2.°- anos e de Fundamentos cla Educação Pré-Escolar licenciou-se, e eu assumi um número de aulas excessivo, que hoje percebo como uma grande loucura, mas que na época assumi para que as "minhas alunas" pudessem se formar, já que professor em escola pública, segundo pesquisas atuais realizadas pela APEOESP, tornou-se artigo raro, desvalorizado, mal remunerado, e elas já estavam sem professor de Biologia desde agosto e de Português desde outubro (o que poderia fazer com que não se completasse o ano letivo para elas). Por semana eu tinha que preparar um total de quarenta aulas: de Teatro Infantil, Literatura Infantil, Estrutura e Funcionamento para os 2.°* e 30S anos, Filosofia para os 1.°" anos (além de aulas extras aos sábados para alunos do 2." ano que não tinham cursado Filosofia no I.°), Filosofia e História da Educação para os 3."" anos e Fundamentos da Educação Pré-Escolar para os 4.'"anos.
Nesse mesmo ano eu trabalhava uma noite por semana em uma Faculdade de Pedagogia, ministrando a disciplina Metodologia e Prática de Ensino de 1.° Grau, além da supervisão de estágio. Consegui chegar com vida ao final desse ano (não sei como. . .), sem uma única reunião pedagógica no Estado, já que o coordenador pedagógico havia pedido afastamento e realizado, como todos os outros professores, um trabalho isolado e solitário (grifos meus).
Como todos os brasileiros informados, Fátima viveu a expectativa da nova
ordenação jurídica do país. Para ela, no entanto, assim como para todos os
demais professores da escola pública paulista, as consequências do Congresso
Constituinte fizeram-se presentes muito mais rapidamente do que para o
conjunto da população, que ainda aguarda a regulamentação da maioria dos
dispositivos constitucionais:
Após a promulgação da Constituição, os professores não concursados com mais de cinco anos de trabalho adquiriram estabilidade e, dessa forma, a atribuição de aulas, que até o ano de 1988 se fazia na própria escola, foi feita nas Delegacias de Ensino para que aqueles professores "estáveis" segundo a Constituição pudessem escolher o local em que poderiam usufruir dessa estabilidade.
Nunca presenciei balbúrdia e desorganização maior. Minha pontuação somente me permitiu escolher duas aulas na escola em que vinha trabalhando. Mas, muitos professores que escolheram suas aulas antes de mim não chegaram a assumi-las, o que me levou a ficar não mais com as duas aulas, mas com vinte e uma, número de aulas que tenho atualmente.
Desde que trabalho na escola pública, em nenhum ano pude me valer do planejamento (ao menos formal) do ano anterior, o que para mim foi muito bom, porque não me levou à acomodação e sim a uma busca constante de bibliografia, o que fez com que eu pudesse estabelecer as relações com as disciplinas já trabalhadas anteriormente, além de procurar adequar essa experiência aos interesses e às necessidades de "minhas alunas".
Este ano estou trabalhando com as seguintes disciplinas: Metodologia do Ensino de Estudos Sociais (História e Geografia); Metodologia do Ensino de Matemática e Ciências; Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1." Grau para os 2.os anos e Fundamentos da Educação Pré-Escolar para os 4."" anos do Magistério. A escola pública hoje exige cada dia mais um profissional que "tape buracos". Eu faço isso, mas faço porque acredito na escola pública, acredito na Educação, acredito que o compromisso político dos profissionais da educação e a competência desses mesmos profissionais (mesmo que essa competência não venha de sua formação, ela pode e deve ser perseguida justamente em função do compromisso e da busca da valorização moral e salarial deste profissional), acredito, enfim, que cada um e todos nós podemos contribuir para a melhoria da qualidade de ensino desta mesma escola pública e, quem sabe, desestabilizar, ao menos um pouco, a hegemonia da classe dominante (grifos meus).
Ao final de seu depoimento Fátima considera ainda importante registrar
sua posição diante da questão da autonomia do professor em sala de aula:
Essa autonomia pode trabalhar a favor ou contra a escola pública. (...) A autonomia do professor por vezes leva um trabalho descompromissado e de má qualidade, sob as mais diversas justificativas: eu ganho pouco. . .; eu trabalho segundo o que ganho. . .; não existe ninguém para "controlar" o meu trabalho, assim eu posso fazer o que quiser, ou até mesmo não fazer nada. . .
Mas, essa mesma autonomia pode levar a um trabalho compro-missado, na medida em que não necessito de alguém para me vigiar, me controlar ou punir para que eu faça um trabalho de boa qualidade. Eu preciso, sim, de uma equipe, de uma coordenação para fugir daquele trabalho isolado e solitário que tanto angustia os professores. Eu posso me valer dessa autonomia para trabalhar não só o que "deve" ser ensinado segundo um programa oficial, mas eu posso desvelar esse conteúdo para refletir junto com os alunos sobre esse mesmo conteúdo e para procurar de alguma forma atender aos seus interesses, necessidades e angústias.
Minha experiência em sala de aula na escola pública mostra que os professores necessitam de um projeto, necessitam de alguém ou "alguéns" para dirigi-lo (não no sentido de conduzir), necessitam que a escola se torne não um dos locais de trabalho, mas, o local de seu trabalho. Um trabalho necessário que, acredito, mesmo contra as opiniões de nosso governador, venha a ser valorizado e justamente remunerado.
3.4 Das representações aos conceitos
A "atribuição de aulas", processo a que a professora Fátima se refere com
frequência para marcar as etapas de seu depoimento, constitui o indicador mais
expressivo da precariedade das condições de trabalho do professor da escola
pública paulista. Basta relembrar algumas expressões do depoimento: "comecei
aquele ano com apenas quatro aulas e terminei com quarenta. . ."; "assumi um
número de aulas excessivo, que hoje percebo como uma grande loucura, mas
que na época assumi para que minhas alunas pudessem se formar. . ."; "minha
pontuação somente me permitiu escolher duas aulas na escola em que vinha
trabalhando, mas muitos professores que escolheram suas aulas antes de mim
não chegaram a assumi-las, o que me levou a ficar não somente com as duas
aulas, mas com vinte e uma. . ."; "a escolha de aulas no ano seguinte me levou a
enveredar por outros caminhos. Sociologia da Educação foi escolhi- da por uma
professora efetiva de Geografia. . . "; "a princípio acreditei que meu vínculo com
aquela escola havia se encerrado, mas a diretoria me apresentou as aulas que
haviam 'sobrado' na escolha". . . Bastam também essas expressões para definir
com clareza a quase impossibilidade, de se organizar o trabalho na escola
pública paulista — mantidas as suas atuais condições — de modo a assegurar o
alcance de suas finalidades e a realização de seus trabalhadores. Nessa escola
os professores não efetivos — a maioria — não possuem vínculo empregatício
que lhes assegure a continuidade do trabalho e também não se obrigam a dar
continuidade ao trabalho que vêm realizando; quando efetivos, podem assumir
disciplinas que pouco ou nada têm a ver com sua formação básica; quando não
efetivos, a formação básica também não se constitui em credencial relevante,
porque é preciso suprir de qualquer forma a ausência dos efetivos; efetivos ou
não, frequentemente são solicitados a trabalhar cumulativamente em diferentes
áreas de conhecimento porque a instabilidade de pessoal em quase todas as
áreas constantemente ameaça a conclusão dos cursos dos alunos...
Registre-se que estas indicações e suas implicações provêm de uma escola
situada na Zona Oeste, a região economicamente mais poderosa da capital do
Estado. Pode-se inferir daí a extensão do problema quando projetado para
outras regiões da capital e para as diferentes regiões do interior.
Como se constata, as diferentes disciplinas componentes dos currículos
das escolas públicas de 1° e 2.° graus não se constituem em referências para a
determinação do número de postos de trabalho correspondentes a cada escola.
O discurso macroscopista dos altos funcionários da Secretaria da Educação,
segundo o qual o "gigantismo" da "máquina" da Secretaria seria um obstáculo
"natural" à realização de seus propósitos, não resistiria a uma análise
comparativa dos números alardeados. Se seria "muito difícil" articular a ação dos
"200.000 professores" e das "6.000 escolas", certamente não seria muito difícil
constatar que da divisão entre esses dois grandes números resultaria um
quociente — 33 — altamente propício ao planejamento e à realização das
atividades de uma unidade escolar. O problema não está no número de
professores ou de escolas, mas no número de critérios altamente aleatórios e
instáveis com que todos os anos se tenta "classificar" e "distribuir" o pessoal
docente. Nas "atribuições de aulas" não se leva em conta primordialmente a
natureza das disciplinas a que as aulas se referem e nem a contribuição relativa
das disciplinas aos currículos a que se integram. As aulas são "atribuídas" a um
professor até uma certa quantidade, após o que passam a ser atribuídas a outro
professor. É óbvio que os professores vão tentar posteriormente "corrigir" as
distorções dessa atribuição basicamente quantitativa, em qualquer direção que
se apresente como mais adequada às suas necessidades pessoais. Dessa
forma, tanto o professor pode multiplicar-se por diferentes disciplinas de uma
mesma escola, como pode responder por uma disciplina em diferentes escolas,
como pode ainda responder por muitas disciplinas em muitas escolas e até por
muitas disciplinas em muitas escolas de diferentes cidades. A situação
certamente convida à ironia: não há trabalhador mais "livre" que o professor da
escola pública paulista... Seu "poder" de trabalhador é ilimitado... "Pode"
trabalhar de manhã, à tarde, à noite. . . em um local de trabalho, dois locais, três
locais... Trata-se de um "todo- poderoso" ao qual o "pobre" Estado não tem como
não se dobrar. ..
Embora Lenin já tenha registrado que ao pobre só restam mesmo duas
armas — a paciência e a ironia —, não será certamente pela evocação dos
clássicos que caminharemos na direção das soluções necessárias. Ainda que
vinculada e referida teoricamente aos grandes postulados da razão e da
"humanização" do homem, a democratização da escola pública paulista,
enquanto finalidade proposta a seus alunos, passa necessariamente pela
"desmontagem" prática das atuais condições de trabalho de seus professores e
dos demais trabalhadores que a integram. Nessa "desmontagem" os "clássicos"
a serem evocados, se quisermos chamá-los assim, serão os proponentes das
teorias "clássicas" e "modernas" de administração geral e empresarial, já que é
em seu nome que as "políticas" e medidas administrativas têm sido formuladas
na área educacional. Administração geral, administração escolar e
administração pública são fundidas num mesmo "pacote" referencial, a partir do
pressuposto de que a administração da escola, ainda que pública, é apenas
mais um caso particular da "ciência geral da administração". Felix (1984; 1986) e
Paro (1984; 1986), entre outros autores, já "desmontaram" esse equívoco e suas
implicações.
A tarefa atual e mais premente é organizar a discussão entre os
trabalhadores da escola pública a respeito das condições de seu trabalho e a
respeito também das implicações que sua omissão na discussão dessa questão
pode representar sobre o avanço necessário da discussão da questão ainda
mais profunda da democratização da escola. Conformando- se à situação de
"horista" ou de "aulista", o trabalhador da escola pública contribui para mantê-la
à margem de situações que, por serem reconhecidas como necessárias, já se
encontram sedimentadas na grande maioria dos locais de trabalho nas
sociedades capitalistas.
Luta-se hoje no mundo do trabalho assalariado pela redução progressiva
da jornada de trabalho e pela supressão da figura das horas extras. Luta-se,
consequentemente, pelo acesso ao lazer e ao usufruto dos bens da cultura.
Luta-se, também, consequentemente, pelo acesso de novos trabalhadores aos
locais de trabalho existentes, no tempo liberado pela redução da jornada, e
luta-se também pela criação de novos locais de trabalho. Comparada à luta dos
trabalhadores da produção material e de serviços por sua afirmação enquanto
categoria profissional, a luta dos trabalhadores da escola pública, aí sim. parece
constituir um anacronismo. Na escola pública brasileira luta-se ainda pela
simples permanência no trabalho, mesmo que essa permanência não assegure
a sobrevivência pelo trabalho. Na vigência do capitalismo monopolista de Estado
no Brasil, as relações de trabalho impostas aos trabalhadores de suas escolas
públicas ainda se conservam próximas das etapas pré-capitalistas dos modos de
produção.
Capítulo 4
O momento da escola pública. Propostas e Realizações
"Os fatos isolados são abstrações; são momentos artificiosamente separados do todo, os quais só quando inseridos no todo correspondente adquirem verdade e concreticidade. Do mesmo modo, o todo de que não foram diferenciados e determinados os momentos é um todo abstrato e vazio." Karel Kosik
É chegado o momento de concretizar nossa discussão. Para isso
diferenciei e determinei três fatos que em sua sequência e em suas relações
consubstanciam o momento atual do trabalho na escola pública paulista. Lembro
que "atual" neste contexto está sendo tomado em sua dupla significação: "atual"
é o momento presente e é também o momento real, ou seja, o momento do
conhecimento do lugar que os fatos ocupam na totalidade do próprio real. Diz a
esse respeito Kosik, em uma passagem bastante conhecida:
Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um processo de concretização que procede do todo para as partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade (...) (Kosik, 1976).
Pensados dialeticamente como momentos de um todo em movimento, os
fatos de que vamos nos ocupar a seguir desempenham em nossa discussão
também uma dupla função: definem-se a si mesmos e definem o todo a que se
integram; buscam conquistar o próprio significado e ao mesmo tempo contribuir
para a construção do sentido do movimento geral da escola pública em São
Paulo.
A "fornada Única Discente e Docente no Ciclo Básico das Escolas
Estaduais", um novo Projeto de Resolução para o Ensino Noturno e a decisão do
governador quanto à implantação da municipalização do ensino através de um
decreto são os fatos cuja análise se impõe para a concretização da discussão
proposta. Por sua natureza, percorrem obrigatoriamente uma trajetória comum:
são decisões políticas estabelecidas nas instâncias mais altas do aparelho do
Estado e, como tal, extraescolares, já que não decorrem de discussão prévia
com os trabalhadores da escola; implicam providências técnico-administrativas
que foram ou serão encaminhadas após a comunicação da decisão "superior" e,
finalmente, pressionam as práticas escolares para que elas se reorganizem em
função das determinações que lhes chegam.
Observa-se uma diferente distribuição no tempo dos três fatos
considerados. A "Jornada Única Discente e Docente" encontra-se em execução
há dois anos letivos; o Projeto para o Ensino Noturno está em fase de
divulgação, e a municipalização é ainda apenas uma decisão controvertida de
cuja materialização se encarregará um novo secretário da Educação nomeado
com esse propósito. Embora com tempos de manifestação diferentes, os três
fatos permanecem identificados pelo seu caráter comum de desconsideração da
cultura escolar, ou seja, pela sua despreocupação com o modo pelo qual as
reformas determinadas serão percebidas e recebidas pelos que vivem o
cotidiano das escolas públicas. Mais adiante procurarei refletir sobre as
possíveis repercussões que as três decisões encontrarão ou começam a
encontrar nos locais de trabalho a que se destinam. Por ora, e de modo genérico,
é importante assinalar o autoritarismo remanescente que impregna as três
proposições, independentemente das intenções que as motivaram. Tal autorita-
rismo, muitas vezes inconsciente, apoia-se na prevalência de valores e critérios
de administração que supõem a adesão obrigatória dos locais de execução às
determinações dos locais de concepção, resguardadas sempre, porque
consideradas "naturais", as distâncias entre os dois tipos de locais.
A cultura da escola é, entretanto, uma cultura de resistência. Embora
ainda pouco numerosos, os estudos sobre a existência no âmbito da escola de
um "saber" não codificado que lhe é próprio indicam a inconsistência dos
estudos mais frequentes que tendem a reduzir o ambiente escolar a local de
transmissão obrigatória de diretrizes políticas e valores ideológicos emanados
da estrutura de poder. É suficiente lembrar, com Gramsci, que "a realidade é
rebelde" ou, com a própria Secretaria da Educação de São Paulo, que "inúmeras
propostas legais de reforma do ensino (...) permaneceram relegadas ao plano
das proposições teóricas ( . . . ) sem contudo atingir a escola e renovar a ação
educativa".6
A resistência da escola às determinações que lhe chegam, explicável e
previsível, é, no entanto, também frequentemente autoritária, porque
"defensivista" e acrítica. Lembre-se a esse respeito as dificuldades que
continuam a ser enfrentadas pelas crianças das classes subalternas ao se
relacionarem em sala de aula com seus professores, em que pese todo o debate
sobre a questão da democratização da escola pública. Para que as práticas
escolares se alterem efetivamente em favor dos interesses e necessidades das
camadas majoritárias da população, há ainda um longo e sinuoso caminho a
percorrer.
6- Cf. Proposta preliminar de ativação do sistema de supervisão. São Paulo, CENP, 1980.
4.1 O dia da escola pública: as múltiplas faces da "jornada única"
A expressão "jornada de trabalho" integrou-se muito recentemente à
discussão sobre a organização do trabalho na escola pública. Apenas na
primeira versão do Estatuto do Magistério, em 1974, é que isso viria a ocorrer e,
ainda assim, de maneira não explicitada. Ao introduzir em seu Artigo 38 a
distinção entre hora-aula e hora-atividade, a Lei Complementar n.° 114 refere-se
à "jornada semanal estabelecida", expressão utilizada como equivalente à
"carga horária semanal de trabalho". A possibilidade levantada pelo Artigo 29
referente a "tempo completo" e "dedicação exclusiva", por analogia com o ensino
superior, classificava o trabalho assim desenvolvido entre os "regimes especiais
de trabalho".
Apenas a Lei Complementar n.° 201, de 09/11/78, iria referir-se
explicitamente à "Jornada de Trabalho Docente", distinguindo-a das "Cargas de
Trabalho Docente". A "Carga Reduzida de Trabalho" refere-se aos docentes cujo
número conjunto de horas-aula e de horas-atividade é inferior ao número fixado
para a "Jornada Parcial de Trabalho". Além desta existem ainda a "Jornada
Completa de Trabalho Docente" e a "Jornada Integral de Trabalho Docente".
Além da "carga reduzida", existe ainda a "carga suplementar de trabalho", que se
constitui, na realidade, em uma extensão das diferentes jornadas de trabalho
docente. Com esses conceitos e mais o de "função-atividade" (trabalho realizado
por professores não titulares de um cargo), o Estatuto do Magistério Público de
São Paulo pretende ordenar as relações de trabalho no interior das unidades
escolares e do próprio sistema escolar mantido pelo Estado de São Paulo.
A "Jornada Única", determinada em 21 de janeiro de 1988 pelo Decreto
n.° 28.170, pretende, por sua vez, "reformular as atividades docente e discente,
a fim de que o processo ensino-aprendizagem se desenvolva com eficiência,
refletida não só nos níveis de aprovação, como também na formação do
educando". A "Jornada Única" propõe-se, consequentemente, a reordenar o que
as combinações das muitas "Jornadas" e "cargas" permitiram que se
desagregasse ao longo de trinta anos de involução nas relações de trabalho a
que se subordina o magistério público.
Titular de uma "cadeira" nos anos sessenta, o docente "efetivo"
confundia-se um pouco com o solene "catedrático" das universidades. A
"cadeira" assegurava o posto de trabalho e este delimitava obrigatoriamente o
local de trabalho. Nesse sentido, a jornada de trabalho era "subsumida" ao local
único em que se realizava.
Os anos iniciais da década de sessenta iriam encontrar o magistério
público paulista em luta pelo reconhecimento oficial de sua condição de
profissionais de nível universitário. A palavra de ordem era a conquista do
"Padrão T", código de referência salarial desses profissionais no serviço público.
A essa reivindicação o governo estadual da época antepôs a observação de que
a carga de "aulas ordinárias" a que o professor se obrigava era limitada a 12
horas semanais e a de que esse tempo era comparativamente menor que o
tempo de trabalho exigido de outros profissionais de nível universitário. No
processo de negociação que se seguiu, a carga de "aulas ordinárias" acabou
ampliada inicialmente para 14, posteriormente para 15 e chegou em poucos
anos às 18 atualmente exigidas.
Durante a década de sessenta e os anos iniciais da década de setenta, as
demais aulas ministradas pelo professor, além da carga obrigatória de "aulas
ordinárias", eram denominadas, por oposição a estas, de "aulas extraordinárias".
Seu valor de remuneração era menor que o das "ordinárias" e seu limite era o de
24 horas semanais. Isso significava que era de 36 horas o limite final de horas de
trabalho docente nas escolas públicas de São Paulo.
Paralelamente à luta pela aplicação do "padrão universitário" caminhou a
luta pela equiparação da remuneração das aulas "ordinárias" e "extraordinárias".
Quando isso se efetivou, constatou-se, paradoxalmente, uma perda quantitativa
real no montante dos vencimentos dos trabalhadores da escola: o limite de 36
horas de trabalho associado à exigência de 18 horas de trabalho necessário
reduzira o limite possível de vencimentos a apenas o dobro do salário básico.
Com o limite mínimo de 12 horas, a possibilidade anterior aproximava-se do
triplo, mesmo considerada a diferença de remuneração.
Foi em plena crise do "milagre econômico" que essa constatação se
estabeleceu. A resposta governamental à situação, admitida e até pleiteada por
setores do movimento docente, foi a extensão dos limites da jornada de trabalho,
embora o conceito como tal continuasse à margem do processo de discussão.
Os trabalhadores da escola pública "puderam" desde então trabalhar 40 horas
semanais, depois, 44, depois, 48. . . A extensão do trabalho necessário não
correspondeu a valorização salarial. Correspondeu, em realidade, a extensão
concomitante do trabalho excedente. Tal como na produção capitalista de baixa
extração tecnológica, a remuneração da "produtividade" do professor foi conce-
bida em termos de "mais-valia absoluta", ou seja, implicou a extensão de sua
jornada de trabalho. Sintomaticamente, neste momento, as aulas
"extraordinárias" deixam de receber essa denominação e passam a ser
designadas como aulas "excedentes".
A variedade e a multiplicidade de combinações possíveis com as
diferentes jornadas e cargas de trabalho, às quais se associa a facilidade do
recurso à "função-atividade", produziram ao longo do tempo sua mais dramática
consequência: a quase extinção do tempo livre do professor. Quando a Lei n.°
201 instituiu a distinção entre hora-aula e hora- atividade, assegurando também
a remuneração desta última, a inovação foi saudada como uma conquista por
estabelecer o princípio de que o trabalho docente não se circunscreve aos
limites da sala de aula. Nos termos do atual Estatuto do Magistério a
hora-atividade é definida como "um tempo remunerado de que disporá o
docente, prioritariamente, para participar de reuniões pedagógicas e, ainda, para
a preparação de aulas, correção de trabalhos e provas, pesquisa, atendimento a
pais e alunos". A jornada de trabalho é constituída pela reunião de horas-aula e
horas-atividade, observando-se uma relação proporcional mínima de 20% e
máxima de 33% destas para com aquelas. A regulamentação estabelece ainda
que 20% do tempo de horas-atividade poderá ser utilizado em horário e local de
trabalho de livre escolha do professor.
A possibilidade de realização de horas-atividade "em horário e local de
trabalho de livre escolha do professor" significa a remessa para o plano
simbólico do conflito efetivo entre as necessidades do trabalhador-professor e as
condições de trabalho que lhe são determinadas pelo Estado- empregador.
Trata-se, em realidade, de uma acomodação "por baixo" em que o conflito se
escamoteia pela aceitação tácita do fato de que a situação de trabalho docente
pode não se organizar e nem se realizar em sua plenitude.
A distinção entre horas-aula e horas-atividade, que representou um
indiscutível avanço nas relações de trabalho do magistério público quando se
constituiu, terá agora que ser submetida a uma revisão crítico-conceitual em que
se elabore uma nova visão dessa distinção e da justaposição de seus
componentes. Na verdade, a aula é uma das atividades de que o trabalho
docente se compõe. Trata-se, sem dúvida, da atividade principal e referencial de
todo trabalho, que sinaliza as atividades de preparação e legitima as atividades
complementares. Mas, exatamente por se tratar do elemento que dá sentido ao
processo, não pode ser visto como um elemento à parte do processo e nem
como um processo de trabalho em si. É no interior do processo de trabalho
docente que a aula encontra seu significado e é no interior da jornada de
trabalho docente, consequentemente, que esse significado tem que ser
construído.
A realização de uma parte da jornada de trabalho em horário e local
indeterminado desqualifica o trabalho docente e avilta sua remuneração. Um
trabalho que pode ser feito em qualquer tempo ou lugar pode também não ser
feito. Uma remuneração que apenas se acrescenta a outra e independe da
realização efetiva do trabalho a que se refere constitui apenas uma "gratificação"
e pode servir mais para depreciar do que para valorizar o processo de trabalho a
que se aplica. Vencida a etapa da ampliação do conceito de trabalho docente, é
necessário agora enfrentar a etapa da delimitação efetiva da jornada de
trabalho, o que passa necessariamente pela definição do tempo e do local em
que ela se realiza. A luta pela ampliação do tempo livre do professor
permanecerá prejudicada enquanto se mantiverem zonas de ambiguidade na
demarcação de suas fronteiras com o tempo de trabalho.
A "Jornada Única de Trabalho Discente e Docente", determinada em
1988, faz tábula rasa de quase todas essas preocupações. A "unicidade"
pretendida — sem dúvida, um avanço — é apenas a do local de trabalho.
Mantém-se a norma da composição da jornada semanal pela agregação das
"horas-atividade" às "horas-aula" e reduz-se a possibilidade de aplicação dessa
jornada apenas aos professores que trabalham no "Ciclo Básico", ou seja, nas
duas séries iniciais da escola de 1.° grau. Não por acaso o caput do Decreto
refere-se inicialmente à Jornada Única Discente. A Jornada Única Docente é
uma decorrência da primeira. Nos "considerandos" do Decreto se afirma que "o
período de permanência diária do aluno na unidade escolar deve ser maior para
que a escola possa atuar mais efetivamente na sua alfabetização" e que "a
permanência do aluno na escola por um período mais prolongado vai influir
beneficamente na sua formação como cidadão, pois o levará a conviver mais
tempo com o grupo social classe/escola" (grifos meus). "O professor,
dedicando-se exclusivamente a uma única unidade escolar, terá condições de
atender pais e comunidade, num trabalho integrado e que contará com a
coordenação de um professor-coordenador", diz ainda outro "considerando", e é
essa a justificativa principal para a implantação da Jornada Única Docente
(grifos meus).
Resoluções posteriores vieram dificultar a escolha de
professores-coordenadores adequados às necessidades do Ciclo Básico e com
isso acabaram por comprometer os propósitos pedagógicos da Jornada Única.
Quando um dos "considerandos" se refere à permanência do aluno na
escola "por um período prolongado", a expressão do legislador deve,
infelizmente, ser entendida literalmente. A Jornada Única Discente não significa
uma jornada escolar diária de oito horas dividida em dois períodos de quatro.
Significa seis horas de atividades continuadas do aluno, ou seja, "um período
prolongado" de trabalho escolar. Com essa deformação do conceito de jornada e
essa superestimação dos limites físico-fisiológicos do esforço infantil, o que o
governo do Estado de São Paulo em verdade pretendeu, embora não o admita,
foi oferecer uma resposta paulista à repercussão nacional de outros projetos de
escola pública de tempo integral originários de outros Estados da Federação,
dos quais o de maior ressonância foi, certamente, o dos Centros Integrados de
Educação Pública, os CIEPs, no Rio de Janeiro.7
Dois anos de "Jornada Ünica Discente e Docente" em São Paulo puderam
evidenciar o paradoxo de sua concepção e a distância entre seus enunciados e
sua materialização. Insuficiente para o professor, a "Jornada" é, ao mesmo
tempo, excessiva para o aluno. Com os problemas que se manifestaram na
escolha e na ação de seus professores-coordenadores, a Jornada se tornou
"única" em suas deficiências: elas atingem por igual alunos e professores.
7 Ver, a respeito, Paro, V. H.; Ferretti, C. J.; Vianna, C. P. e Souza, D. T. Escola de tempo integral; desafio para o ensino público. São Paulo, Cortez, 1988.
4.2 A noite da escola pública: o trabalho da escola com o estudante que trabalha
À noite o professor da escola pública também trabalha. Sua jornada se
estende ao encontro dos alunos que realizam seus cursos no período noturno
porque, como os professores, durante o dia realizam seu trabalho. Em verdade,
a extensão da jornada de trabalho do professor, necessária para o provimento
de sua subsistência, só se faz possível em função de outra necessidade
socialmente gerada: a necessidade de antecipação do tempo de trabalho do
aluno originário das classes subalternas. À noite encontram-se na escola pública
dois grupos de trabalhadores: os trabalhadores docentes que prolongam sua
jornada e os trabalhadores precoces que, em razão disso, frequentemente se
colocam como estudantes defasados no tempo do processo de escolarização.
Nem sempre essa característica de encontro entre trabalhadores é
percebida ou considerada nas análises e nas tentativas de encaminhamento de
soluções dos problemas do ensino noturno. A ênfase é colocada na condição de
trabalhador do estudante sem que se leve em conta o óbvio fato de que,
enquanto o estudante do curso noturno realizava seu trabalho diurno, o
professor desse estudante também realizava seu trabalho de ensinar ao aluno
do curso diurno. Ambos, estudante e professor, chegam ao período noturno
desgastados e, frequentemente, exauridos por seu trabalho no período diurno. A
diferença se coloca apenas em relação à natureza do trabalho que realizam
antes de seu encontro para o trabalho noturno.
Essas mesmas análises e tentativas de solução quase invariavelmente
partem do pressuposto de que o trabalho da escola no período noturno deve se
subordinar às contingências do trabalho do aluno no período diurno. Este é
colocado como um dado, no sentido positivista do termo. Não importa analisá-lo
em sua significação histórica, nem em relação às determinações que o atingem.
Trata-se apenas de algo existente, aparentemente irremovível, com o que é
preciso lidar sem alteração do equilíbrio geral das coisas.
É provável que a insuficiência teórico-política ainda predominante entre
os trabalhadores da escola pública concorra para a recepção acrítica desse
postulado. É provável também que essa mesma insuficiência teórico-política
esteja na base da elaboração das propostas gestadas no seio do aparelho do
Estado. Os "funcionários do Estado" não são necessariamente "maquiáveis" de
plantão à espreita do melhor momento e da melhor forma de atingir as classes
trabalhadoras. Muitas vezes, ou quase sempre, são eles apenas profissionais
limitados que não conseguem vislumbrar o horizonte da transformação social,
embora o jargão correspondente tenha se integrado ao seu discurso habitual.
Uma utopia da subordinação do trabalho do aluno ao trabalho da escola
precisa, no entanto, ser criada. Uma utopia, lembrando outra vez Lowy, é uma
visão social de mundo que tem "uma função crítica, negativa, subversiva", que
aponta para uma realidade ainda não existente. Essa realidade ainda não
existente da subordinação do trabalho do aluno ao trabalho da escola é tão mais
necessária quando se constata que uma outra realidade, também inexistente, é
apontada como cotidiana, rotineira, habitual e hegemônica. No discurso da
normalidade aparente, o aluno do curso noturno e as circunstâncias em que seu
ensino se realiza são apresentados como a exceção, a complementação, o
esforço adicional que o Estado reserva para alguns que, circunstancialmente,
discrepam por suas circunstâncias especiais de vida do conjunto dos alunos das
escolas públicas estaduais. Isso pode se confirmar em relação aos alunos que
concluem o curso noturno, mas, certamente, não prevalece quando se compara
o número dos que iniciam o noturno com o dos que iniciam o diurno. Existe, em
realidade, um equilíbrio numérico na procura por cursos diurnos e noturnos. A
evasão menor no diurno se explica, antes de mais nada, pela quase inexistência
do conflito entre situação de trabalho e situação de ensino. Quando se
considera, porém, que essa possibilidade de estudo sem trabalho concomitante
está restrita à menor parte da população que busca sua escolarização pela via
da escola pública, torna-se evidente que esta deveria fazer do ensino noturno
não o ponto de referência para o exercício da imaginação criadora de seus
técnicos de alto escalão, mas, simplesmente, o registro principal e obrigatório do
planejamento de todas as suas ações. É à noite que a população trabalhadora
pode se dirigir à escola pública e é à noite, consequentemente, que a escola
pública tem que concentrar seus esforços em favor da população trabalhadora.
Isso não significa, obviamente, descurar das séries iniciais do ensino de 1°
g r a u ou de todo ensino diurno, mas é importante lembrar que mesmo nessas
séries cresce a procura pelo ensino noturno.
A utopia da subordinação do trabalho do aluno ao trabalho da escola
significaria inverter o sinal das propostas costumeiramente elaboradas para o
ensino noturno. Não se trataria aqui de acomodar a escola às limitações
impostas pelo trabalho do aluno, mas, de intervir sobre esse trabalho a fim de
que fossem asseguradas ao aluno as condições para poder se inserir
produtivamente no trabalho da escola. Por isso falo em utopia. Parece ainda
muito distante, ou, talvez, inatingível, o dia em que o estudante trabalhador na
sociedade capitalista brasileira poderá sujeitar seu trabalho, sem arriscar-se a
perdê-lo, às exigências e às necessidades da sua condição de estudante.
Perdemos com a recente Constituição mais uma oportunidade histórica para o
enfrentamento da questão. Paradoxalmente, enquanto procuramos erigir o
trabalho em princípio educativo que ordene a elaboração da nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, deixamos de lado a preocupação com
o trabalho concreto e com o trabalhador concreto que precisa desobrigar-se de
seu trabalho para realizar-se como estudante. Ou, mais simplesmente, para
realizar o trabalho de estudar.
Neste momento uma nova proposta para o ensino noturno percorre as
instâncias pedagógicas e administrativas do sistema escolar público paulista.
Como todas as que a antecederam, é também uma proposta originária dos
chamados "órgãos centrais" do sistema. Em sua síntese final o texto da proposta
informa que foi ela "elaborada incorporando contribuições de diferentes
trabalhos teóricos e práticos de profissionais do sistema de ensino do Estado de
São Paulo". Como a proposta se faz acompanhar apenas por gráficos
relativos a rendimento escolar e a matrículas, sem referências bibliográficas que
a informem, não há como verificar a adequação dos "diferentes trabalhos
teóricos" que a apoiam. O texto da proposta registra em suas considerações
iniciais que, "além dos problemas intramuros, as condições de vida e de trabalho
do estudante assalariado são ruins e interferem no rendimento escolar". Tal
como é apresentada, essa passagem leva à suposição de que, alteradas as
condições intra-escolares, estarão ampliadas as possibilidades de melhoria do
rendimento do aluno. Afirma-se em seguida que "se a escola não é responsável
pelas desigualdades sociais, não pode, por outro lado, cristalizar ou aprofundar
essas desigualdades; pelo contrário, sua atuação deve ser democrática,
partindo da reflexão sobre a desigualdade".
As afirmações acima são passíveis de muita discussão. Certamente não
há consenso sobre o fato de que "a escola não é responsável pelas
desigualdades sociais". Em que pese a consistência da crítica à crítica
reprodutivista, é inegável que o reconhecimento da autonomia relativa da escola
não a exime totalmente do comprometimento na reprodução das desigualdades
pela via de inculcação do arbitrário cultural. Se postulamos a autonomia relativa
da escola face ao movimento social, é preciso reconhecer, consequentemente,
que não basta à escola deixar de cristalizar ou de aprofundar desigualdades; é
preciso e possível organizá-la também e principalmente para a contribuição à
superação das desigualdades. Nesse sentido, parecem bastante tímidos os
pressupostos anunciados pela proposta:
a. que o aluno do noturno tenha melhores condições de apro-
veitamento escolar;
b. que o professor do noturno tenha melhores condições de organizar
e desenvolver o seu trabalho e,
c. que a escola no período noturno tenha melhores condições para
atender às especificidades desse horário de funcionamento.
A timidez não se esgota, entretanto, nos pressupostos da proposta, mas,
se expressa mais claramente nas medidas sugeridas para viabilizá-la. Tais
medidas têm seu ponto de partida na afirmação que se segue:
Não se pode negar que um dos problemas efetivos da escola é a desarticulação do trabalho pedagógico. Essa desarticulação está presente, principalmente, no horário noturno, onde a administração e a supervisão se fazem menos presentes e onde os poucos serviços de apoio existentes na escola encontram-se desativados (grifos meus).
À vista da situação,
propõe-se, como primeira medida, que a escola possa contar com um coordenador, eleito por seus pares, a partir de alguns critérios, com a atribuição de dar inicio à construção do trabalho conjunto de reorganização do ensino no período noturno (grifos meus).
Essas primeiras referências já são bastante elucidativas da timidez a que
me refiro. Para sanar a desarticulação presente, "onde a administração e a
supervisão se fazem menos presentes" e "os poucos serviços de apoio
existentes na escola encontram-se desativados", não se propõe que a
administração e a supervisão se façam mais presentes e que os serviços de
apoio sejam ativados; propõe-se, nada menos, que um coordenador, "eleito por
seus pares", dê "início à construção do trabalho conjunto de reorganização do
ensino no período noturno". O que se propõe, objetivamente, é que um
trabalhador docente se incumba, ao final, de fazer as vezes da administração e
da supervisão, que poderão permanecer ausentes ao mesmo tempo em que os
serviços de apoio poderão permanecer desativados. Ao que parece, ima-
gina-se que a eleição pelos pares cumprirá de modo mágico a indispensável
tarefa de sustentar a ação do Estado ali onde ela tem que se manifestar de forma
incisiva e decisiva.
Esse coordenador, assim credenciado e responsabilizado, deverá
"possuir capacidade de organização de trabalho em equipe e facilidade para
articular discussão de problemas e propostas para atendimento do aluno
trabalhador" e, ainda, "disponibilidade de horário para receber orientação técnica
dos diferentes órgãos da Secretaria da Educação". Caber-lhe-á, entre outras
atribuições, "propiciar condições para que todos os professores participem
efetivamente na execução da proposta", "realizar trabalho periódico de es-
clarecimento aos professores" e "desenvolver trabalho conjunto com os
professores, visando a adequação do conteúdo e dos procedimentos de ensino
à realidade de seus alunos".
Para que o trabalho do coordenador possa encontrar condições mínimas
de viabilização, outra medida proposta é a criação do regime de trabalho de
Dedicação Integral ao Noturno (DIN), em que "alguns professores que se
disponham e tenham condição para isso" atenderão preferencialmente aos
problemas desse período. Ao contrário do que o nome possa sugerir, a
dedicação "integral" ao noturno supõe a obrigatoriedade do trabalho no período
diurno para que se complete a jornada semanal de 40 horas. Essa jornada
relativa ao novo regime de trabalho introduziria uma nova variação conceituai.
Além das horas-aula e das horas-atividade, ela seria também composta pelas
"horas de enriquecimento curricular", destinadas "ao preparo de sessões de
estudos, pesquisas, planejamentos de atividades, orientação de estudos dos
alunos nos espaços ociosos destes, atuação na biblioteca ou centros de leitura,
programação e acompanhamento de atividades de recuperação (...)
desenvolvidas com a participação do coordenador do Noturno, quando for o
caso".
Como se observa, as atividades previstas para as "horas de
enriquecimento curricular" poderiam perfeitamente ser desenvolvidas sob a
rubrica das "horas-atividade". Ainda que sem elementos objetivos de referência,
pode-se arriscar a suposição de que essas atividades de "enriquecimento cur-
ricular", por implicarem necessariamente a presença de alunos, receberam uma
denominação que as distingue das "horas-atividade" comuns pelas razões já
analisadas aqui. Algumas "horas-atividade", como vimos, podem, simplesmente,
não se realizar.
Alterações no quadro curricular, proposições de novas metodologias,
alterações também no calendário escolar, com a introdução da possibilidade da
recuperação nos recessos e nas férias e alterações no regime de matrículas,
com a introdução da possibilidade da Dependência nas séries finais do
1 g r a u , completam o conjunto das medidas sugeridas "para que seja possível
interferir no processo, pelo menos no que se refere às causas intra-escolares".
Ao encaminhar sua síntese final, a proposta reafirma que "visa criar as
condições mínimas para que os educadores que atuam no período noturno
construam coletivamente uma escola de melhor qualidade para o aluno
trabalhador" Assume ainda que "a presença e atuação da direção da escola
nesse período, bem como a atuação da supervisão de ensino, são
fundamentais" e registra, finalmente, que "há ainda a considerar que todos os
serviços oferecidos ao diurno devem estar presentes no noturno".
Transportadas, entretanto, para uma minuta de Resolução que chegou a ser
elaborada, essas preocupações diluem-se nos "considerandos" e não chegam a
ser objeto de disposições específicas que assegurem sua materialização.
Instadas a se manifestarem sobre a minuta proposta, algumas Delegacias
de Ensino produziram documentos analíticos em que a fragilidade da nova
tentativa é ressaltada.
Em um deles se registra que "é sempre interessante recuperar um pouco
da recente história da Educação çm São Paulo", lembrando tentativa análoga
durante o governo Montoro:
A experiência realizada na gestão do governo Montoro estava centrada basicamente sobre a figura de um professor da unidade escolar, afastado de suas atribuições normais para exercer as funções de coordenar o trabalho dos professores, na esperança de realizar intervenções durante o processo ensino-aprendizagem, de modo a se obter, no final, ganhos razoáveis em relação à repetência e à evasão.
Não é preciso fazer uma análise profunda da situação para se detectar as razões do fracasso. A Secretaria, como de outras vezes, tentou implantar um projeto de reorganização da escola, acreditando que a criação de uma função extra no quadro da escola seria suficiente para
garantir sua efetivação. A experiência mostrou que essa estratégia, tomada isoladamente, não traz resultados positivos.
A implantação de um projeto, além de ter fixada uma dotação orçamentária previamente definida, implica também na reorganização do trabalho da escola, na rediscussão do papel cios educadores, na elaboração de novas concepções de escola, de ensino noturno e de educação (grifos dos autores).
Os autores enfatizam a razão de ser de sua observação:
Estamos, com isso, querendo dizer que a implantação de um projeto deve trazer, no seu bojo, outras transformações na escola, com o propósito de se evitar o engano de implantar um novo projeto, sobre uma organização envelhecida ou com concepções ultrapassadas em relação ao que vem a se constituir como função pedagógica da escola.
Como corolário de sua observação, destacam: "projetos se realizam, pois,
com verbas, ideias e pessoal capacitado" (grifos meus).
Para a Secretaria da Educação do governo do Estado de São Paulo essa
tríplice exigência parece poder ser dispensada. A seu ver uma boa ideia poderia
gerar por si só pessoal capacitado a desenvolvê-la e a capacitação do pessoal
poderia dispensar a necessária provisão de verbas e de recursos. A referência
feita pela Delegacia de Ensino que estou citando é a uma tentativa realizada em
1984 e 1985, abandonada em seguida, e que também se fundava exclusi-
vamente na expectativa de que a ideia do coordenador pedagógico eleito por
seus pares carregaria em si um potencial de intervenção sobre a realidade capaz
de sobrepor-se à carência de recursos pessoais e materiais. Naquela oportu-
nidade o calendário escolar foi ampliado para duzentos dias letivos e o número
de horas-aula do noturno fixado em quatro diárias, com a duração de quarenta e
cinco minutos cada uma. Isso significou um aumento do tempo de trabalho
obrigatório do professor desproporcional à gratificação semanal arbitrada em
valor correspondente a duas horas-aula. Em síntese, a determinação significou
que à maior permanência do aluno na escola noturna não corresponderia ne-
cessariamente uma remuneração maior pela extensão do trabalho de seus
professores. Tendo estes se rebelado contra a medida, não faltaram mais uma
vez as vozes oficiais de condenação ao "corporativismo" e à "insensibilidade"
dos docentes em relação às dificuldades vividas por seus alunos. A
administração coube apenas lamentar-se mais uma vez pela ausência de "apoio
crítico" aos seus propósitos.
A proposta deste momento para o ensino noturno apresenta um pequeno
avanço em relação à anterior no que se refere às condições de remuneração do
trabalho docente, de vez que incorpora obrigatoriamente os dispositivos ema-
nados da nova Constituição. Nem por isso ela se distingue substancialmente da
proposta anterior, já que continua a tratar o ensino noturno em termos de
excepcionalidade e a apoiar-se mais na conclamação à sensibilidade do
professor do que na garantia de condições de trabalho efetivas a ele e a seus
alunos. Antes, porém, que a nova proposta pudesse ser revista e aperfeiçoada
pela ação e a reflexão dos que deveriam materializá-la, acabou ela por ser
enviada de volta ao túnel do tempo de onde parece ter emergido e condenada a
confundir-se com a noite da escola pública que, de alguma maneira, teria
pretendido iluminar. Um novo Secretário da Educação "desativou" a discussão
da proposta porque no projeto político-partidário a que se filia a aurora da escola
pública paulista adotou as cores da municipalização.
4.3 O "amanhecer" da escola pública: da "desestadualização" à desestatização, via municipalização.
Há quem preveja que a municipalização do ensino público constituirá o
caminho para que o Estado venha a se desobrigar de seu compromisso
constitucional com a educação popular. Nestes tempos de apologia do "Estado
Mínimo" a estrada da privatização máxima parece, certamente, cada vez mais
próxima de ser percorrida. O discurso oficial do Estado, por seu turno, procura
tranquilizar os defensores da escola pública assegurando que sua preocupação
com a municipalização do ensino é fundamentalmente a de promover a "ação
solidária e cooperativa das três esferas da Administração Pública". Entre
inquietudes, apreensões e previsões contraditórias, a proposta de
municipalização do ensino de 1.° e 2.° graus assumiu caráter de determinação
com a edição do Decreto n.° 30.375, de 13 de setembro de 1989, que "institui o
Programa de Municipalização do Ensino Oficial no Estado de São Paulo".
A necessidade de "ação solidária e cooperativa das três esferas da
Administração Pública" aparece entre os Considerandos desse Decreto que
argumenta ainda com a simplificação do processo decisório que seria propiciada
pela municipalização, já que "é no Município que os cidadãos vivenciam seus
reais problemas e, portanto, é nesse espaço que o Poder Público e a
comunidade podem melhor equacioná-los e resolvê-los". O Decreto em seu todo
é justificado por uma Exposição de Motivos da Secretaria da Educação.
Uma argumentação relativamente extensa compõe a Exposição de
Motivos. Como de hábito, ela se inicia pela denúncia da crise na educação e na
administração pública:
Há um consenso entre os responsáveis pela definição e o esta-belecimento de políticas públicas que existe na educação, desde longa data, uma distância relativamente grande entre o que se propõe como ideal, necessário e aquilo que efetivamente tem sido realizado para atender às necessidades e anseios de nossa sociedade. Essa crise da educação, reflexo e componente de uma crise generalizada que se estende a quase todos os setores sociais, atinge, através de seus efeitos negativos, com mais intensidade, as camadas menos favorecidas da população, isto é, justamente as pessoas que mais necessitam dos benefícios gerados pela educação para transformar a realidade de sua condição existencial, concreta.
No Diagnóstico que se segue a crise é localizada em sua manifestação
nas estruturas da administração pública, vitimada pelas consequências
negativas da expansão burocrática e pelo poder da tecno-burocracia de criar
seus próprios objetivos e assegurar a defesa de seus interesses, resistindo a
mudanças que encaminhem o atendimento do interesse coletivo. A
multiplicidade de órgãos intermediários gera lentidão no processo decisório e
lealdade à burocracia e não à criança, razão de ser da escola. Esta, por sua vez,
"voltou-se sobre si mesma e deixou de exercer seu papel de centro cultural da
comunidade". Por força do gigantismo da estrutura burocrática da Secretaria da
Educação, "a preocupação burocrática ocupou o espaço da reflexão e da prática
pedagógica. O burocrata substituiu o educador. As atividades-meio foram
valorizadas em detrimento da atividade-fim".
O "custo de percurso", onerando os recursos financeiros, e a própria
dificuldade das relações entre Estado e Município, gerando muitas vezes
duplicação de esforços em relação às mesmas finalidades, completam o rol dos
fatores adversos identificados pelo Diagnóstico. A esperança de recuperar a
escola como um bem público se reabre, entretanto, pelas novas possibilidades
colocadas pela reforma tributária e pela Constituição Estadual. Um programa de
aperfeiçoamento de pessoal favorecido pelos novos recursos previstos poderá
então sustentar a "conjugação de esforços, num trabalho cooperativo entre
municípios e Estado, no sentido de atacar os graves problemas da escola
pública nos dias atuais".
O Programa de Municipalização do Ensino se apresenta como a
alternativa necessária para a melhoria da qualidade de ensino. Com ele
buscar-se-á "revitalizar o papel da escola como centro cultural da comunidade,
na condição de núcleo de irradiação de conhecimentos e de reflexão sobre a
realidade, assim como um bem público colocado a serviço da comunidade".
Por municipalização não se deve entender "prefeiturização", "ou seja, a
simples transferência de obrigações e responsabilidades do Estado para a
Prefeitura". Assegura- se a autonomia do trabalho docente e do trabalho da
escola, ao mesmo tempo em que se garante a continuidade da relação funcional
e empregatícia com o Estado.
Nas Considerações Finais assegura-se também que os convênios
propostos como instrumento da municipalização serão de livre adesão para os
municípios que se interessarem por eles e seu funcionamento será
criteriosamente resguardado pelas Comissões de Educação do Município, cuja
constituição e composição são também estabelecidas no Decreto.
Nessa síntese bastante abreviada encontram-se os elementos que até
aqui têm alimentado a discussão sobre a municipalização do Ensino no Estado
de São Paulo. A eles se acrescenta aquele elemento que talvez se constitua no
principal determinante da ação governamental: a construção, reforma,
ampliação, conservação e manutenção de prédios escolares. Sobre esse
aspecto da infraestrutura material parece haver também a maior perspectiva de
consenso em relação aos propósitos e aos eventuais benefícios do Decreto.
Ainda no mês de setembro, logo após a publicação do Decreto, o
Secretário de Educação de São Paulo dirigiu carta pessoal a todos os
professores e especialistas de educação da rede pública com o intuito de
sensibilizá-los e, provavelmente, também o de tranquilizá-los em relação ao
conteúdo do programa de municipalização. No documento são repetidos
praticamente todos os argumentos constantes da exposição de motivos que
informou o Decreto do governador e ressaltados ainda os outros documentos
básicos do programa, o "Termo de Convênio do Governo do Estado com os
Municípios" e a própria "Exposição de Motivos". Após informar sobre Concursos
de Ingresso e de Remoção em andamento, o Secretário convida os profissionais
do magistério público a lhe encaminharem diretamente "sugestões, propostas e
críticas" e ao despedir-se retorna ao ponto de partida da exposição de motivos:
"A Secretaria da Educação conta com a sua colaboração na superação da crise
da educação e na recuperação da escola pública".
Pessoal ou coletivamente, os trabalhadores da escola pública vêm
examinando a determinação governamental. Como seria natural e previsível, a
preocupação com a aná- lise e as conjeturas sobre a situação funcional ocupam
o centro desse processo de discussão. Um dos participantes dessa discussão, o
supervisor Darci, da Delegacia de Ensino de Garça, registra em sua análise que
"a municipalização do ensino fundamental é hoje um processo irreversível" em
razão do que estabelece a Constituição Federal, do que está previsto no
anteprojeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e dos convênios
que já se multiplicam entre Estados da Federação e Prefeituras Municipais.
Registrar a realidade não significa, entretanto, para o professor Darci, aderir
acriticamente aos seus contornos:
Discutir a questão da municipalização do ensino de forma isolada, sem considerar o problema da educação a nível nacional, é uma forma de iludir os incautos com o canto da sereia que pode transformá-los em verdadeiros bois de piranha. O estímulo à busca de soluções locais, descompromissadas com a problemática mais geral do país, incentiva o bairrismo, divide e enfraquece as forças que buscam criar condições para a implantação de um sistema educacional democrático.
A ressalva apresentada, por sua vez, também não significa rejeitar in limine a proposição em função dos temores de ordem pessoal que ela suscita:
Se, por um lado, não podemos concordar com a ideia da compartimentalização do ensino, por outro, não devemos assumir, simplesmente, uma postura contra a municipalização por medo do novo ou para defender interesses corporativistas. O que devemos é estudar e refletir sobre o assunto, participar de debates e discussões, para depois tomarmos uma posição consciente a seu respeito. A hora não é de emoções, mas de uso da razão, a fim de analisarmos com isenção de ânimo um problema que afeta toda a população brasileira.
Vou tentar me comportar conforme o sugerido por Darci, embora
circunscrevendo minhas observações aos limites do Estado de São Paulo. Uma
vez que o próprio Decreto informa ter-se apoiado na Exposição de Motivos da
Secretaria, é por esses mesmos motivos que entendo deva ser iniciada a
discussão.
Quando a Secretaria e o Secretário recorrem uma vez mais "à crise do
sistema" para fundamentar sua decisão, parece importante lembrar uma
significativa observação de Gorz: "um dado sistema tende a só colocar os
problemas que possam ser resolvidos no âmbito desse sistema..." (Gorz, 1989).
Levada ao seu limite, a observação de Gorz indica que nada é melhor para a
continuidade de um sistema que a autodenúncia de sua própria crise. No
momento mesmo em que se refere à "multiplicação de órgãos e serviços que
ocasiona uma lentidão no processo de tomada de decisão e na implementação
de ações", a Exposição de Motivos propõe a criação de um novo órgão, a
Comissão de Educação do Município, constituída em sua maioria por
funcionários do Estado que adicionarão, assim, novas atribuições às muitas que
declaram possuir sem condições de atendimento adequado. A crítica à
tecno-burocracia que "desenvolve seus objetivos próprios, desviando as
organizações de suas finalidades mais legítimas e específicas" desagua, assim,
na absolvição prática e na recompensa à mesma tecno-burocracia. Nada há na
Exposição de Motivos ou no Decreto que abale essa tecno-burocracia.
Desobrigada por decreto de algumas incumbências, sobrar-lhe-ão, com certeza,
tempo e engenho para se dedicar à construção de novos obstáculos
institucionais que, uma vez denunciados, permitir-lhe-ão ainda mais alimentar-se
e vicejar à sombra da desobrigação funcional. A análise interna e convencional
que o sistema escolar do Estado de São Paulo faz de seu próprio funcionamento
assemelha-se a uma antítese não intencional e nem percebida da famosa 11a
Tese de Marx sobre Feuerbach: não se trata aqui de transformar a realidade,
mas apenas de interpretá-la... Uma vez interpretada, a realidade permanece
intocada, e as atenções se desviam para a criação de uma nova realidade,
especialmente concebida para dar conta da situação em exame.
A função basicamente discursiva da Exposição de Motivos também se
evidencia na absoluta ausência de indicações no Decreto sobre a eventual
participação do governo federal nas ações de municipalização. Quando se
considera que "os problemas vividos pelo sistema oficial de educação do Estado
devem ser enfrentados pela ação solidária e cooperativa das três esferas do
Poder Público", é necessário que se pergunte sobre a parte reservada ao
governo da União. Essa participação não é indispensável e pode nem mesmo
ser desejável, mas, em termos de coerência lógica do Decreto e de consistência
com as ações preconizadas, teria que ser explicitada. Sua ausência constitui um
outro indicador acerca das possíveis razões ocultas do processo de municipali-
zação do ensino em São Paulo. Juntando-se a essa inconsistência outras
apontadas pelo supervisor Darci, as indagações que ele termina por formular
parecem perfeitamente procedentes e capazes de justificar as inquietudes que a
discussão anterior e os documentos afinal publicados pela Secretaria da
Educação provocaram entre os trabalhadores das escolas públicas paulistas
quanto ao futuro de seu trabalho e a continuidade de algumas garantias
funcionais que o sustentam. Pergunta, antes de mais nada, Darci:
por que tanta pressa na municipalização? Não teria sido mais razoável que a ideia fosse discutida nas bases? Por que não fomos ouvidos? O princípio democrático que rege a municipalização não se torna letra morta, na medida em que ela nasce por decreto?
Pela objetividade com que foram formuladas, as perguntas de Darci já
trazem em si o indicativo das respostas que ele, em virtude da natureza da
discussão que propõe, preferiu não evidenciar. Mas, é certamente muito difícil a
um observador isento desconsiderar o apelo político-partidário embutido na
proposta. Daí a emergência necessária de outras indagações:
A comissão tem uma função meramente de assessoria. E se o prefeito não aceitar suas sugestões? Que força tem essa comissão? Não será ela apenas uma figura criada para dar sustentação política à municipalização do ensino?
A Exposição de Motivos tentou se antecipar a essas questões quando
afirmou que por municipalização do ensino não se deve entender a simples
"prefeiturização" do processo, com a transferência de obrigações e
responsabilidades do Estado para a Prefeitura. Não é apenas a transferência de
esfera administrativa que sobressalta os trabalhadores da escola. A proximidade
maior para o levantamento e o encaminhamento das soluções dos problemas,
apontada pelo Decreto, pode ser também, e frequentemente o é, a possibilidade
maior para a interferência indevida, para a reinstalação do coronelismo e do
clientelismo, para a desmontagem de um sistema de garantias institucionais que
ao longo do tempo fizeram de São Paulo um estado razoavelmente protegido
das injunções aviltantes da prática política localizada. Essas garantias, se não
evitaram a degradação progressiva das condições de trabalho e de
remuneração, cumpriram, entretanto, o indispensável papel de assegurar
isenção de propósitos aos participantes do processo educacional, a mesma
isenção que o supervisor Darci reclama para a análise do processo de
municipalização. Ainda que precária e insuficiente, a autonomia relativa da
escola pública paulista face aos governantes que se sucedem à frente dos
aparelhos do Estado constitui um valor moral que os trabalhadores da escola,
teimosa e gloriosamente, insistem em ver preservado.
Por isso não querem expô-lo à partidarização e à subordinação de
interesses que têm sido a marca das administrações municipais em nosso país.
Entre as inconsistências apontadas nos documentos em que o processo
de municipalização se assenta, encontra-se a indefinição quanto ao vínculo
empregatício dos funcionários e servidores das escolas estaduais. Preocupados
em tranqüilizar professores e especialistas do quadro do magistério, os
documentos deixam em aberto a situação prevista para os demais trabalhadores
da escola. Ficarão eles sob a administração do Estado ou do Município?
Prevalecendo a segunda hipótese, como se conciliarão em um mesmo local de
trabalho responsabilidades e garantias originárias de duas administrações
diferentes, ainda que respeitado o "princípio da ação conjunta e cooperativa"
como quer o Termo de Convênio Proposto?
A indefinição da situação funcional dos trabalhadores auxiliares se soma
à distância observada entre as justificativas contidas na Exposição de Motivos e
as determinações componentes do Decreto n.° 30.375/89. Este não registra em
nenhum de seus artigos a continuidade da relação funcional e empregatícia com
o Estado consignada na Exposição de Motivos. Como a nova Constituição
Estadual também não é suficientemente clara na definição da cooperação
técnica e financeira com os municípios em relação ao ensino fundamental,
exemplos preocupantes como o do Plano Operativo do Ensino Municipal do Rio
Grande do Sul, implantado em 1979, são evocados pelos trabalhadores de todos
os setores das escolas públicas estaduais de São Paulo. Ao que se sabe, ainda
em 1988 restavam indefinidas as situações de muitos professores que,
participando da ação cooperativa entre Estado e Município, acabaram por ter
dificuldades em receber seus salários "tanto do Estado, ao qual estavam vin-
culados, como do município para o qual foram transferidos" (Revista Nova
Escola, agosto/88).
Ao mencionar em sua análise o problema vivido pelos professores
gaúchos, o supervisor Darci o inclui entre os subsídios que reuniu "com a
intenção de auxiliar todos os funcionários e servidores que atuam na área da
educação, bem como as autoridades municipais, a refletirem seriamente sobre a
municipalização do ensino e a partir daí se posicionarem". Sua contribuição e
seu apelo começam a encontrar ressonância. A discussão que começa a se
organizar no interior das entidades do magistério e fora delas ainda não se
estruturou o suficiente para exorcizar o "fantasma" da municipalização que
desde algum tempo povoa as noites e perturba os sonhos dos trabalhadores do
ensino público em São Paulo. Mas, como toda discussão que avança para o
esclarecimento e a compreensão, ela começa a desfazer as primeiras nuvens e
a afastar as primeiras sombras. As pequenas luzes que se vão constituindo
enquanto as visões se estruturam indicam a possibilidade não apenas da
interpretação mas da intervenção sobre a situação estabelecida. Ai de nós,
educadores, dizia Paulo Freire em sua volta ao Brasil, se deixarmos de sonhar
sonhos possíveis. E esclarecia: "quando eu digo sonho possível é porque há na
verdade sonhos impossíveis, e o critério da possibilidade ou impossibilidade dos
sonhos é um critério histórico-social e não individual" (Freire, 1980).
O sonho possível de Freire é o sonho coletivo. É o sonho-construção. É o
sonho-anúncio, que vislumbra o horizonte e define a direção. É o sonho-utopia,
ou é a própria utopia, no sentido em que Lowy a define. Uma visão social crítica,
negativa, subversiva, que aponta para uma realidade ainda não existente. Ainda
não existe a municipalização do ensino. Ao que parece, ela existirá
necessariamente. De sua criação poderão participar os trabalhadores da escola
criticando as propostas e determinações oficiais, negando com disposição e
coerência seus fundamentos apenas aparentes e subvertendo para melhor o
processo de construção dessa nova realidade que, por atingir a todos os
trabalhadores da escola, por todos eles deve ser projetada e construída.
O amanhecer da escola pública paulista depende do trabalho de sonhar
sonhos possíveis. Organizar coletivamente o trabalho em seu interior constitui a
primeira condição para fazer possível o sonho necessário.
Conclusão
Uma escola pública é um local de trabalho único. Não é,
necessariamente, um local de trabalho unitário. Em seu interior trabalhadores se
reúnem para produzir "passagens": do mundo iletrado ao mundo letrado; das
"primeiras letras" ao universo do discurso; da linguagem informal às linguagens
sistematizadas; da cultura "popular" à cultura "erudita"; da intuição pessoal ao
saber historicamente organizado. Em todas essas passagens e em outras que
poderiam ser enumeradas, a ideia-força, o propósito implícito ou manifesto é o
da "elevação". Uma escola, qualquer que seja, existe para "elevar" seus alunos,
para "passá-los" de um momento de vida insuficiente, insatisfatório, incompleto
para outros momentos que se desdobrarão em direção a um horizonte
vislumbrado e em permanente construção. Uma escola pública também é isso,
mas é mais do que isso.
Uma escola pública é mais do que uma escola privada porque os
trabalhadores que se reúnem em seu interior não têm apenas que produzir
"passagens" que signifiquem "elevações" individuais. Eles têm que produzir,
individual e coletivamente, a grande "passagem" do direito postulado à
realização efetiva da educação popular. Nesse sentido ela é única. Apenas ela
se incumbe de pensar e realizar a educação do conjunto da população; de
conceber e promover a materialização do interesse coletivo.
Como construção social que é, a escola pública constrói-se a si mesma ao
mesmo tempo em que constrói os instrumentos de seu trabalho único. Por isso,
é também um local de trabalho único. Única, por sua finalidade, a escola pública
do governo do Estado de São Paulo não é, entretanto, unitária em suas formas
de manifestação. Certamente ela não é sustentada pelo ideal gramsciano do
"trabalho como princípio educativo" e nem conseguiu ainda situar-se
adequadamente diante da indispensável relação "escola e trabalho". Sobre essa
relação, pouco há que permita distinguir a escola pública de São Paulo das
escolas privadas que a circundam. Tal como estas, a escola pública de São
Paulo coloca-se nessa relação numa posição subordinada. O que preocupa as
escolas públicas e privadas diante da questão do trabalho é, fundamentalmente,
encontrar as formas de encaminhamento de seus alunos ao mundo do trabalho;
em uma escala menor preocupam-se também em ajustar-se às limitações que o
mundo do trabalho impõe a seus alunos. Por isso a posição é de subordinação.
A preocupação é o atendimento das expectativas e a observância das determi-
nações; não é a análise crítica do processo de geração das expectativas e de
estabelecimento das determinações.
As questões inerentes à relação escola e trabalho têm sido objeto de
discussão intensa e continuada no debate acadêmico-pedagógico. Minha
intervenção nesse debate teve a intenção precípua de colocar à luz um aspecto
da discussão que, surpreendentemente, tem permanecido na penumbra. A
escola é, ela própria, um local de trabalho. Como tal, tem que ser concebida,
organizada e administrada. É provável que examinando seu interior a escola
pública se capacite a entender melhor e a intervir mais consequentemente sobre
o que acontece para além de seus limites.
Para entender e contribuir melhor é preciso revisitar teorias, categorias e
conceitos. É preciso rever pressupostos, admitir rupturas, produzir superações.
Comecei minha caminhada neste trabalho partindo de um incidente acadêmico.
Espero ter chegado ao final tendo contribuído para uma nova síntese de
conhecimento e de ação.
A finalidade da escola pública e a natureza peculiar do trabalho que
desenvolve são postuladas por mim como as referências principais para a
definição dos critérios de sua organização e administração. Sendo única em
seus propósitos, a escola pública não pode ser organizada e administrada por
critérios de caráter geral. Menos ainda isso poderá ocorrer quando se sabe da
carga ideológica que envolve o conceito de "administração geral". A escola
pública não é um caso particular da administração geral. Ela tem que ser
pensada inicialmente a partir do conceito de "administração em geral", proposto
por Paro, e que se refere ao esforço humano coletivo em prol de uma finalidade.
É a capacidade humana não degradada pelos procedimentos elaborados sob a
inspiração e no interesse da produção capitalista que deve ser retomada e
reavaliada para a construção dos procedimentos e das instâncias
administrativas de que a escola pública necessita para dar conta de sua
finalidade. É também a capacidade humana de realizar trabalho não alienado
que vai dar conta da construção e da utilização dos instrumentos de trabalho
necessários à materialização dessa finalidade.
No âmbito da sociedade política em que materialmente ela se coloca e no
âmbito da sociedade civil em que a tradição teórica a tem colocado, a escola
pública debate-se com incertezas, impropriedades e indefinições. A incerteza
quanto ao acesso e à continuidade do trabalho articula-se negativamente com a
impropriedade na conceituação da jornada e a indefinição do local de trabalho. A
articulação positiva, reciprocamente construtora dos termos da relação entre
jornada e local de trabalho, é a condição para a realização efetiva do trabalho
pedagógico e também para a realização efetiva da pessoa do trabalhador da
escola. O "trabalho como princípio educativo" deve sancionar também a ação do
trabalhador-professor.
Ianni refere-se com frequência à tendência da sociedade capitalista e da
consciência burguesa à "mercantilização geral das relações, pessoas e coisas".
Integrada à sociedade capitalista brasileira, a escola pública paulista não teria
como não se impregnar por antivalores, tais como a alienação no trabalho, o
controle externo do trabalho e o comprometimento do trabalhador com o capital.
Essa mercantilização geral das relações e das coisas precisa ser conhecida pelo
trabalhador da escola pública para que ele se coloque em condições de avaliar a
extensão desse processo em seu ambiente de trabalho. Não podendo ou não
pretendendo ser unitária em suas formas de ação porque tal propósito se choca
com os limites de uma sociedade de classes, a escola pública paulista necessita,
ao menos, assegurar a seu trabalhador a perspectiva do conhecimento e da
ação consequente sobre a unicidade de suas condições. A escola pública é o
único local de trabalho em que, por natureza, o trabalho deve ser concebido,
organizado e executado pelos trabalhadores que o integram.
É necessário conhecer as formas históricas que o trabalho assumiu nas
sociedades de classes exatamente para que se possa estabelecer a
impropriedade da adoção dessas mesmas formas no interior da escola pública.
Não se trata apenas de retirar a subordinação da escola ao mundo do trabalho
capitalista. Trata-se também, e principalmente, de organizar o trabalho da escola
em consonância com a natureza mesma das atividades que aí devem se
desenvolver.
Trabalhadores técnico-científicos, os trabalhadores da escola pública não
se reconhecem necessariamente como trabalhadores. Cidadãos de classe
média quase sempre, relutam em se assumir como "proletários", fazendo-o às
vezes apenas para apontar a "injustiça" contida nesse enquadramento.
Trabalhadores integrados a uma categoria ainda em fase inicial de organização
político-sindical, frequentemente se mostram vulneráveis às pressões diretas ou
indiretas que se levantam contra suas reivindicações. Às voltas com as
contradições que cercam seu trabalho, os trabalhadores da escola pública
paulista não dispõem, via de regra, de garantias e conquistas já integradas ao
cotidiano de outros trabalhadores. Constituem, assim, um segmento
problemático da população trabalhadora. Funcionários indiretos e quase sempre
inconscientes do capital, porque funcionários de um Estado privatizado,
carregam ainda o ônus da desconfiança do conjunto da população trabalhadora
que não os percebe como "iguais" e, frequentemente, também não os respeita
como "superiores".
A redução teórico-ideológica e funcional da escola pública ao mundo do
trabalho capitalista gera ambiguidade na determinação das relações de trabalho
que devem se processar em seu interior. Seus trabalhadores não estão prote-
gidos por dispositivos da legislação do trabalho comumente aplicáveis às
empresas privadas — já que se colocam em princípio como "funcionários
públicos" — e também não dispõem, em grande maioria, das garantias inerentes
ao serviço público — já que muitos deles não conseguem estabelecer vínculos
empregatícios duradouros com o Estado.
Nas condições citadas, a luta proclamada pela "autonomia" da escola
pública chega a se revestir de conotações surrealistas. As escolas públicas de
São Paulo não são, do ponto de vista do planejamento econômico-financeiro,
"unidades orçamentárias" ou "unidades de despesas". Não dispõem,
consequentemente, de um montante de recursos colocados à sua disposição
para ser gerido e aplicado na realização de sua finalidade. O "poder" do diretor
da escola pública paulista é menos que simbólico. Talvez por isso os caminhos
para sua investidura jamais tenham sido claramente questionados.
A mercantilização geral das relações na sociedade capitalista ajuda
também a explicar a desvinculação entre ensino e administração no interior da
escola pública. Desmistificado o "poder" do diretor pela prática do cotidiano,
pouco resta de apelo funcional ou financeiro para atrair os professores ao seu
exercício. A passagem "das tarefas de ensino às de administração dificilmente
se coloca como uma "passagem" dialeticamente concebida e assumida. Para
que isso venha a ocorrer será necessário um avanço significativamente maior no
processo de discussão e na própria organização dos trabalhadores da escola
pública enquanto categoria profissional.
Escrevi em 1977 que "as escolas não existem para serem administradas
ou inspecionadas; elas existem para que os alunos aprendam". Vejo com
satisfação que, após doze anos de um debate recorrente e estéril sobre as
relações entre ensino e administração, alguém se dispõe a afirmar:
A principal garantia de mudança das relações de trabalho no interior da escola será dada pela criação de formas democráticas de gestão escolar que devolvam a escola a seus atores principais: alunos e professores. Não será a eliminação dos especialistas, a abertura destas funções a todos, ou a adoção da eleição direta, a principal garantia. Centrar a discussão do problema na eleição de diretor ou em termos da presença ou não de especialistas na escola tem ofuscado este ponto central da questão, ou seja, o fato do aluno ser o principal protagonista da escola; o fato da escola existir para o aluno (Freitas, 1989:7) (grifos do autor).
Parece agora mais próximo o dia em que os trabalhadores da pesquisa na
universidade e os trabalhadores do ensino na escola pública de 1.° e 2.° graus
encontrar-se-ão para o debate dos modos de construção social da escola e das
formas de organização do trabalho em seu interior. A gestão democrática da
escola pública não é apenas a manifestação em um dos aparelhos do Estado do
ideal de democracia representativa ainda proclamado pelo Estado liberal
brasileiro. Direta ou representativa, a democracia na escola pública é, antes de
mais nada, condição necessária à realização de sua finalidade.
Ainda que tímida e vagarosamente, os professores da escola pública
paulista caminham nessa direção. As manifestações que recolhi indicam a
preocupação com a necessidade de aprimoramento de seu trabalho e de
alteração das condições em que ele se realiza. A busca de uma nova qua-
lificação, horizonte imediato do processo de afirmação profissional, conduz, no
limite, à perspectiva da construção de novas relações de trabalho em que o
próprio Estado-empregador se reconstrua também como instância de
elaboração e de realização do interesse coletivo.
A caminhada do governo do Estado de São Paulo nessa mesma direção
vem ocorrendo de maneira ainda mais lenta. Os dados mais recentes —
situação funcional em outubro de 1989 referente à folha de pagamento de
setembro — demonstram que a precariedade e não a estabilidade do vínculo
empregatício ainda é a marca das relações entre o Estado-patrão e os
trabalhadores da escola pública em todas as categorias docentes. Existem neste
momento, segundo o Departamento de Recursos Humanos da Secretaria da
Educação, 52.562 Professores I "servidores" e 47.004 "funcionários"; 17.247
Professores II "servidores" e apenas 187 "funcionários"; 50.323 Professores III
"servidores" e 42.661 "funcionários". No jargão administrativo do Estado,
"servidores" são os trabalhadores sem estabilidade funcional, enquanto os
"funcionários" são os trabalhadores cuja estabilidade se encontra assegurada
pelo concurso público realizado ou por outras formas legais eventualmente
utilizadas. Os números disponíveis conduzem a um total de 209.984
professores, dos quais 89.852 são "funcionários" e 120.132 são apenas
"servidores". Quer isso dizer que, no alvorecer da última década do século XX,
mais de 57% dos trabalhadores da escola pública no Estado economicamente
mais poderoso da Federação brasileira não dispõem da garantia da continuidade
de seu trabalho. Quer isso dizer também — surpreendente e dolorosamente —
que em mais de 57% dos casos os alunos da escola pública de São Paulo não
dispõem da garantia de se encontrar com seu professor para poder realizar com
ele seu trabalho de estudar.
A precariedade do vínculo funcional se soma à precariedade da
retribuição salarial. Ambas explicam e alimentam a fragmentação da jornada
com a consequente multiplicação dos locais de trabalho. Como pensar a
autonomia da escola, se cada escola pública não detém ainda condições de
construir sua própria identidade? Como construir uma identidade institucional, se
cada trabalhador da escola não detém ainda condições de realizar sua própria
identidade pessoal como trabalhador?
As respostas a essas perguntas, que parecem não preocupar os
ocupantes de posições decisórias no aparelho do Estado, são procuradas pelos
trabalhadores da escola pública nos poucos momentos em que conseguem se
reunir para discutir sua situação. Como já observei, são ainda precárias as
tentativas de respostas porque são também eventuais e precários os momentos
de elaboração dessas respostas. Em realidade, a precariedade é o sinal e o
símbolo do projeto do Estado para com a escola pública.
No movimento da escola pública em São Paulo localizam-se problemas,
tensões, conflitos, mas também convicções, alternativas, esperanças. Na fala
dos professores e especialistas manifestam-se as contradições e também as
mediações que fazem desse movimento uma totalidade concreta.
Dialeticamente, o movimento sugere mudanças, impulsiona transformações.
Ainda intuitivamente na maioria dos casos, mas, de forma crescentemente
consciente em outra boa parte, os participantes desse movimento fazem a vida
da escola pública paulista, refletindo, discutindo, propondo. A seu modo e com
os recursos à sua disposição, buscam intervir no curso dos acontecimentos.
Talvez muitos não saibam que a ação é a categoria dialética por excelência, mas
sua intuição, que o pensar dialético jamais desconsidera, os leva, ainda assim, à
negação crítica do existente e também à negação dessa negação, ou seja, à
superação pela reconstrução do significado e pela construção do novo
pensamento e da nova ação.
Por isso, a jornada "única" determinada pelo governo do Estado não é
única, nem unitária. Para que fosse única seria preciso que abrigasse todos os
trabalhadores da escola pública e que os dispensasse de qualquer outra forma
assalariada ou eventual de trabalho; para ser unitária seria preciso que fosse
produto e expressão da vontade coletiva dos trabalhadores que a realizam e
sintetizasse em seu cotidiano o projeto do Estado de atendimento às
necessidades da população trabalhadora.
Uma jornada de trabalho, que atualmente é "única" apenas por efeito de
uma denominação oficial, poderá, no entanto, tornar-se verdadeiramente única
na medida do movimento e da direção das forças sociais que venham a se
articular para sua concretização. O momento da jornada única real nem está
próximo, nem é inatingível. O mesmo pode ser dito da real organização do
trabalho escolar para o período noturno e da real municipalização do ensino
público de 1.° e 2° graus. Nesta controvertida questão, assim como em todas as
demais, é preciso ainda constatar em que medida os argumentos favoráveis à
sua implantação efetivamente superam aqueles que se lhe antepõem. Se e
quando isso se evidenciar, será então chegado o momento de sua
concretização.
Como um todo estruturado que se desenvolve e se cria, o real da escola
pública paulista não é apenas o campo das proposições legais nem o do
exercício abusivo do poder, como se observa ainda nesse momento na relação
do governo do Estado com as prefeituras visando à imposição dos convênios de
municipalização. Essas pressões integram o real, no sentido de que
manifestam-se em seu interior e nada têm, evidentemente, de metafísicas. Mas,
ao integrarem-se ao real, esses fatos constituem momentos e geram outros fa-
tos: complementares, alguns; antagônicos, outros. O dinamismo do real e a
intensidade das forças que o compõem é que vão "realizar" ou concretizar o
significado dos fatos que se manifestam.
Força emergente no movimento da escola pública em São Paulo, a
organização das entidades do magistério vive a elevação de sua própria
passagem do momento "econô- mico-corporativo" ao momento "econômico"
propriamente dito e, deste, ao momento propriamente "político", nos termos de
Gramsci. Enfrentada a etapa preliminar e necessária da homogeneização do
grupo profissional e da necessidade de organizá-la, e desdobrando-se já a luta
para o campo da solidariedade dos interesses entre os membros do grupo social
mais amplo, apresenta-se agora o momento da percepção e da aglutinação dos
interesses de todos os grupos sociais subordinados. Os trabalhadores da escola
pública, elevados ao nível da consciência política, têm agora, por sua condição e
pela natureza de seu trabalho, a responsabilidade histórica de redirecionar sua
ação no interior da escola pública para que essa mesma escola pública possa
redirecionar sua ação em busca da concretização de sua finalidade. Para que a
população trabalhadora construa sua hegemonia, é necessário, ainda que não
suficiente, que os trabalhadores da escola pública construam sua escola.
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