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ariane-rodrigues
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“Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte.”
Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno - Primeira Elegia
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Prólogo
Nate eleva os pés do chão. Suas asas abertas estendem-se de um lado ao
outro do quarto, tocando as paredes. E ele permanece assim, imóvel, como se
fosse um afresco no teto do meu quarto. Toda a beleza, todos os movimentos
artísticos, sem paralelo para os meus sentidos: tudo está aqui.
― Estou reincidindo no mesmo erro ― diz ele, de repente.
― Por amor. Quem ama não erra.
― Como anjo, o meu amor não deve ser restrito ou diferenciado, Clara.
― Como anjo, Nate. Você deve ser tão humano quanto anjo.
Com meu corpo agora estendido na cama, gostaria de flutuar também e
me juntar a ele.
― Ah, Clara... ― ele suspira ― você não quer mesmo entender. Como
pode sequer supor que eu seja as duas coisas?
― É como eu vejo você. Como o equinócio, a tenuíssima linha
imaginária que separa o dia e a noite em partes iguais. O dia e a noite
convivem, mas nunca se encontram. Para que um se revele, o outro precisa se
esconder. O instante em que isso acontece e os astros se cruzam, é aquele em
que você decide ser quem é.
― Como pode divagar numa hora dessas?
― Você não deve se esconder de mim e de si mesmo por mim. Somos
todos parte do equilíbrio, Nate. Todos temos um equinócio dentro de nós. Há
uma proporção entre o que somos e o que pensamos ser. Eu sei o que você é
para mim e sei que é o mesmo que você pensa que não é.
Ele continua planando sobre mim. Estamos perto o suficiente para eu
estender meu braço e fazer de conta que o posso tocar e sentir como o homem
que eu preciso que ele seja.
― Preciso que você assuma.
E preciso mais do que um protetor com as asas sempre prontas a se
estenderem sobre mim. Nunca estive tão segura e ao mesmo tempo nunca me
senti tão insegura. Para que eu alcance o inatingível e possa provar aos meus
sentidos que amar o sobrenatural é natural, Nate precisa amanhecer um lado
para que o outro anoiteça. Eu preciso ver o homem que se eclipsa na sombra
do anjo.
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1 – Gelo
“Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com
tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata...”
(Carlos Drummond de Andrade)
Rio de Janeiro, Brasil - 8 anos antes
Naquele caixão de vidro e alumínio estava Beatriz. Como uma Branca de
Neve, intocável, que dormia silenciosamente um sono profundo e eterno.
Ela tinha o rosto como o de uma boneca de porcelana; branco e sem
expressão. Os cabelos dourados, penteados e perfumados, descansavam em
cachos sobre o colo. As mãos pequenas pousadas em prece sobre o corpo
imóvel, continham as linhas de uma vida interrompida precocemente. Ela
preservava o último sorriso nos lábios como se ainda guardasse a memória.
Dormia tão serenamente que era como se estivesse morta. E estava.
Maurício a observava com os olhos frios e o coração dilacerado. O
coração chorava as lágrimas que dos olhos não caíam. Sua incapacidade de
chorar o atormentava fazia cinco horas, quando Beatriz fechou os olhos pela
última vez. Todas as manobras de reanimação foram feitas ainda na
ambulância, mas em apenas uma tentativa ele apostou todo o seu
conhecimento médico e científico: a criogenia.
O processo de congelamento de seres humanos para ressuscitamento no
futuro, quando houvesse forma de extrair a doença, era um método científico
que desafiava muitas teorias, mas lhe deu esperança desde que a doença da
mulher fora diagnosticada. Durante a sua doença, ele esteve debruçado sobre
essas pesquisas, viajou a todos os congressos sobre o tema, investiu uma
fortuna em equipamento, tornou-se um especialista em nanotecnologia e não
sossegou enquanto não obteve resultados otimistas. Mas, sobre isso, Maurício
não contou a ninguém. No seu íntimo pensava estar fazendo algo contrário à
lei da natureza humana, que estava interferindo no ciclo da vida e decidiu,
naquele momento, guardar o segredo para si.
Ele queria tocá-la, mas já não podia. Ele queria ver os olhos dela mais
uma vez. Para isso, teria que esperar. Tempo era uma palavra vaga, mas como
cientista ele precisava ser realista. Talvez não estivesse vivo quando a cura
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para o câncer de Beatriz fosse descoberta e essa seria uma injustiça que ele
não queria aceitar. Era a razão pela qual trabalharia sua vida inteira, para
encontrar a cura para todas as doenças, para imortalizar as pessoas. Maurício
não acreditava em milagres, mas queria fazer um.
Seus olhos passeavam pelos equipamentos espalhados pelo laboratório.
O kit portátil de aspersão que substituiu o sangue de Beatriz pelo crioprotetor
ainda estava sujo, jogado a um canto. A manta térmica que usara para fazer o
transporte do corpo para o laboratório estava a seus pés. O computador que
monitorava o procedimento indicava que estava na hora: o corpo de Beatriz já
estava resfriado à temperatura do fluido criogênico. Era o momento da
despedida.
Ele beijou a mulher através do vidro da cabine e a seguir pôs o dedo
indicador sobre o botão que a levaria para dentro do tanque de nitrogênio.
Antes de pressioná-lo sentiu uma carícia rasteando seu rosto. Sua pele estava
tão gelada que a lágrima era quente.
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2 - Tudo normal
“E a vida fez sentido até o dia seguinte”
(Walt Whitman)
A Lua prateada reina sem súditos num céu sem estrelas. Sob esse véu
negro e amparada pela maresia, caminho e deixo pegadas que aos poucos o
mar desfaz.
Sinto o vento roçar meu rosto, um sabor salgado na língua, o cheiro do
mar cada vez mais forte e a areia fria e dura sob os meus pés. Uma lágrima se
mistura, contrastando com o sabor salgado. No peito, meu coração se agita
como as ondas que encontram as rochas. Com os olhos marejados, só enxergo
meus pés.
De repente, uma densa névoa se forma ao meu redor e eu me vejo
obrigada a parar de caminhar. Sento-me e colho um punhado de areia, que
escapa entre meus dedos. Aqui ninguém pode ouvir, ninguém vai dizer nada.
Estou só comigo mesma.
A Lua Cheia desaparece por trás das nuvens. Faz frio, mas não tenho
vontade de levantar e prosseguir. Prefiro ficar aqui até adormecer. Seria bom
se eu sonhasse, se me transportasse para um lugar mais aconchegante, onde
em vez do mar bravio, houvesse calmaria e onde o tempo não existisse.
Os primeiros pingos de chuva lavam as lágrimas do meu rosto. Encolho
o corpo abraçando os joelhos. De olhos fechados, saboreio a chuva. Até
consigo sorrir por um breve instante.
Apago.
***
A brisa morna afasta a cortina e os raios de sol invadem o quarto me
dificultando abrir os olhos. O celular insiste, mas não tenho pressa de levantar
da cama e procurar por ele. O rádio-relógio marca onze em ponto.
Ao afastar o cobertor e pousar os pés no chão, reparo que há grãos de
areia neles. De uma mecha de cabelo caído sobre os ombros sinto cheiro de
maresia. Sinais de que eu estive mesmo numa praia, de que nada daquilo foi
alucinação ou sonho. Não consigo lembrar por que fui parar lá nem como
voltei para casa.
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Ligo o chuveiro e deixo a água correr pelo ralo até o vapor embaçar o
espelho. Ao limpá-lo, vejo minha imagem turva. Esfrego os olhos até ver com
clareza o rímel escorrido, manchando meu rosto. Vestígios de um dia que eu
havia esquecido.
Debaixo da água, fico imóvel, de olhos cerrados, deixando a pressão da
ducha massagear meu corpo. O banho dura mais tempo do que de costume.
Vou ao armário e escolho um jeans stretch e a camiseta azul-clara que ganhei
no meu último aniversário.
Girls Just wanna Have Fun. Um toque com mais efeito do que qualquer
despertador. De alguma forma Cindy Lauper nos tempos áureos tem muito em
comum com a minha melhor amiga, Christiane. Pego no celular e pronuncio
um alô arrastado.
― Clara! ― ela soa cansada e ofegante. ― Onde você está, sua doida?
― pergunta com uma ponta de irritação.
― Em casa...
Minha amiga bufa do outro lado. Silêncio vindo de Chris é perturbador.
― Mas por que “doida”? Tínhamos alguma coisa marcada? ― meu
desconfiômetro pisca incessantemente dizendo que sim.
― Você ainda pergunta?! ― o timbre estridente me obriga a afastar o
telefone. ― A primeira prova do meu vestido de noiva, mulher! Meu
casamento é daqui a três meses e você não está nem aí! Você é uma madrinha
desnaturada, Clara.
Desta vez sou eu quem fico em silêncio. Vindo de mim, o silêncio é
natural, principalmente, quando piso na bola. A recriminação de Chris parte o
meu coração, porque ela é a minha melhor amiga e nada poderia justificar o
que eu fiz.
― Clara, eu te liguei várias vezes! Fiquei te esperando durante mais de
uma hora até a estilista começar a surtar e escalar as paredes!
Emudeço de novo diante da confusão dos meus pensamentos. Neste
momento, tudo o que se ouve do outro lado da linha é o barulho do trânsito.
― Olha, eu não posso falar agora porque estou correndo para o dentista,
às onze e meia. Já estou atrasadíssima!
Um pedido de desculpas fica engasgado diante da chamada
abruptamente interrompida. Olho atordoada para o telefone na minha mão.
Durante alguns instantes, um vazio se alastra em minha mente e eu não sei o
que fazer. Então guardo o celular na bolsa e automaticamente desço as
escadas para a cozinha, onde, pelo cheiro de alho e cebola refogados que se
espalhou pela casa toda, está Maria, preparando o almoço. Ela dá pela minha
presença como se tivesse um sensor.
― Bom dia, querida! ― ela continua encostada à bancada cortando os
tomates em rodelas, sem se virar para mim. ― Sua irmã já saiu para a escola e
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seu pai está conversando com o Dr. Walter no portão. O almoço sai em dez
minutos. Põe estes pratos na mesa, por favor?
Ela falou naturalmente, como se hoje fosse um dia normal como
qualquer outro.
― Maria, está tudo bem?
― Tudo, querida. Peguei essa receita de lombo assado no programa da
Ana Maria Braga ontem ― vira-se de frente para mim com um sorriso
lisonjeiro como se estivesse a espera que eu confirmasse que a Ana Maria
Braga entende muito de culinária.
― Você não precisa de receita para cozinhar bem, Maria.
Agora sim ela me dá um sorriso de verdade. Pelo ronco na barriga, não
devo comer há muitas horas. Ela se volta para a panela de arroz e eu coloco o
último prato à mesa.
― Maria, você não estranha o fato de eu estar em casa a essa hora? Eu
perdi um compromisso com a Chris... não comentei nada com você ontem?
― Não, querida ― vira-se novamente para mim. ― Ahhhh... ― sua
longa onomatopeia me deixa em suspense. ― Eu devia ter preparado uma
sobremesa! Você podia ter avisado com mais antecedência que ia almoçar em
casa, meu bem.
Maria foi minha babá e também de Olívia, minha irmã mais nova de
onze anos. Sempre foi como uma mãe. Dedica-se à nossa família desde
quando minha mãe ainda era viva. Além de governanta faz-tudo, Maria é o
tronco da família Chevallier.
Nossa indispensável governanta nasceu em 1960, em Araripe, no Ceará.
Aos quatro anos de idade, com seus pais e sua irmã dois anos mais nova,
Vilma, migrou para o Rio de Janeiro. A família morava numa casinha de
alvenaria na Rocinha. Quando Maria completou sete anos, perdeu os pais num
incêndio que começou no barraco vizinho e se alastrou. Seu pai conseguiu
salvá-las, mas não resistiu. Maria e Vilma foram encaminhadas a um orfanato.
Um ano depois, Vilma foi adotada e a família não quis ficar com Maria
porque já estava muito crescida. Dois anos depois, um casal idoso a adotou.
Eles lhe proporcionam estudos até o segundo grau e Maria cuidou deles até os
dois falecerem. Nunca mais soube do paradeiro da irmã. Nos vinte e dois anos
que ela convive com a minha família, nunca desistiu de procurar por Vilma.
Ao contrário das desventuras pelas quais passou Maria, eu e Olívia
tivemos uma infância com algum conforto. Vivemos toda a nossa vida num
bairro de classe média da cidade do Rio de Janeiro, num condomínio de
dezoito casas, cada uma com jardim, piscina e cercas baixas ― uma raridade
nesta cidade.
Papai senta-se à mesa a meu lado, me dá um beijo na testa e diz boa
tarde sem entusiasmo. Ele se espicha sobre a travessa com o lombo assado
fumegante e começa a se servir. Tento puxar conversa sobre ontem, mas ele
foge do assunto comentando sobre a previsão do tempo. Essa estratégia
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sempre me irritou, mas se ele está desviando assunto e se eu já não me sinto
normal, é uma situação estranha ao quadrado.
― ... e talvez o ar seco tenha a ver com a massa de ar quente que invadiu
o estado ontem à tarde. Tudo papo furado! Esses Institutos de Meteorol...
― Pai?! Alô-ô? Se eu quiser saber a previsão do tempo, ligo a tevê ―
pego o controle remoto e aponto para a tela presa à parede.
Ele parou de falar e ficou olhando para mim.
― Sobre o que quer falar, filha?
― Sobre ontem. Aconteceu alguma coisa?
Papai continuou me encarando, até pegar o controle remoto da minha
mão e ligar a tevê. Eu não sou a pessoa mais observadora do mundo e
provavelmente não repararia nisso se não estivesse suspeitando, mas o objeto
treme na mão dele. Papai sempre fica meio trêmulo quando está ansioso.
― Tive problemas no laboratório... hoje resolvo tudo.
Ele presta atenção ao facão do sushiman do canal japonês NHK como se
aquela técnica de corte de peixe lhe tivesse interessado a vida inteira.
― Está mesmo tudo bem com você? Por que eu não estou...
Ele coloca a mão na minha testa. Eu reviro os olhos.
― É impressão sua, filha. Você está normal.
― Perdi um compromisso com a Chris.
― Ela vai te perdoar. É sua melhor amiga ― Ele se levanta, pega a pasta
sobre a bancada e me dá mais um beijo na testa. ― Tudo ficará bem... tudo
ficará bem.
Ele falava aquilo mais para ele mesmo do que para mim e repetiu até
deixar a cozinha pela porta dos fundos. Demorei mais tempo que o habitual
almoçando. Tenho um apetite razoável para uma garota de vinte e um anos,
magra e de estatura mediana, mas hoje exagerei um pouquinho.
Ajudo Maria a tirar a mesa e depois com a limpeza da louça. Ambas em
silêncio, como máquinas programadas, uma lava e a outra seca. Não consigo
pronunciar uma única palavra, pensar em nenhum assunto, raciocinar sobre
nada. Um vazio me consome de novo.
Enquanto enxugo os talheres, penso que eu sou a mesma de sempre nesta
tarde, que minha vida até agora é a mesma de sempre, mesmo me sentindo
diferente. Começo a supor que eu esteja desenvolvendo alguma forma de
sonambulismo. Preciso entender o que se passou comigo para ter ido parar na
praia e passado a noite lá.
Eu estava sozinha na praia. Terei que me conformar com meu próprio
testemunho e com os grãos de areia em meus pés. Lembro perfeitamente que
chorava. Por que não queria sair de lá, voltar para casa? Por que eu chorava?
Tenho a ideia de verificar se há areia dentro do carro. Corro até a
garagem, abro a porta do meu Mini Cooper S vermelho, tiro os tapetes,
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sacudo-os e nada: nem um grãozinho para esclarecer ao menos como eu voltei
para casa na noite de ontem. A pé? Bom, ainda teria sido pelo menos um
quilômetro de caminhada.
***
No estacionamento da faculdade de medicina da Universidade Federal,
bato a porta do carro com mais força do que habitualmente, estressada pelo
trânsito. Já foi o tempo em que não havia engarrafamento nesta cidade. Eu não
existia naquela época, mas meu pai enche a boca para dizer que o Rio de
Janeiro já foi, além de um paraíso natural, um paraíso urbano. Eu sou deste
tempo em que, a qualquer hora, em qualquer lugar, há filas quilométricas para
tudo.
Estou me dirigindo à guarita do estacionamento quando ouço o roncar
agressivo de uma moto e sinto cheiro de combustível queimando. Tento
inutilmente descobrir a direção de onde partem os sinais desagradáveis
enquanto continuo a caminhada acelerando mais o passo. Queria não pensar
no pior, mas esse repentino frio na barriga só aparece quando uma
determinada pessoa está por perto. E nunca tenho tempo de fugir. Um sopro
de vento ― por pouco não seria exagero dizer tornado ― provoca uma onda
de terra sobre mim. Em segundos, estou cega e imunda dos pés à cabeça.
Posso sentir a terra entranhada nos meus pulmões e mesmo sem ter aberto a
boca estou com um sabor horrível como se tivesse acabado de lamber pó de
cimento. Cuspir e tossir não está adiantando nada.
Enquanto me enraiveço e abano a poeira ainda suspensa, eis que da
névoa escura de pó, surge Jonas Bauer, montado na sua Harley Davidson
Heritage Softail. Ele ri, guturalmente, convencido e infantiloide como sempre.
A melhor parte da sua diversão deve ser esta, em que me assiste, na maioria
das vezes revoltosa, depois de terminar o seu número teatral. Ele está com
aquela sua tradicional expressão, uma espécie de sorriso para dentro, meio
torto e meio desequilibrado entre o maníaco e o diabólico. Que espécie de
pensamentos paranoides terá esse garoto? Por mais que eu tente encontrar
uma explicação para toda a espécie de confusão que ele apronta e,
principalmente, para sua implicância comigo desde a aurora da infância, não
consigo.
Poderia ter a ver com a minha reação. Sem querer, eu poderia o estar
incentivando. Para tirar a dúvida, comecei a reagir aos seus ataques de várias
formas diferentes. Houve vezes que o confrontei, noutras saí correndo, já
gritei de raiva, mostrei-lhe o dedo médio, lançei-lhe olhares sinistros, ri de
mim mesma. Nada o dissuade a largar do meu pé. Finalmente chegou o dia em
que preciso assumir que, independentemente de como eu reaja, por alguma
razão provavelmente doentia, sou o perfil ideal de vítima para ele. Por isso,
desta vez, enquanto sua risada ainda ecoa, simplesmente dou as costas e
limito-me a fazer de conta que o ignoro.
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Ao fim do corredor do bloco A onde curso todas as disciplinas deste
semestre, encontro meus amigos Marcus e Jéssica, de mãos dadas. Ele,
vestindo uma camisa carvão com a capa de 1939 da revista “Detective
Comics”, uma de suas cem camisas da marca DC Comics, e Jess com a pasta
da Hello Kitty cobrindo o decote da blusa 95% elastano, 5% algodão que ela
pode ter usado pela manhã na aula de spinning na academia. Ela geralmente
faz isso, troca as bolas quando se arruma.
― E aí, Clara? Tudo be... uau! ― ele arregala os olhos castanhos. ― O
que aconteceu com você?
― Amiga, que estrago! ― diz Jess, removendo com a unha ainda
cheirando a esmalte um “pedaço” de lama do meu cabelo. ― Vamos já para o
banheiro!
Eles sabem, não só pelo meu estado lastimável, mas pelo meu olhar
vingativo, que cruzei com o “motoqueiro fantasma”. Para preservar a
segurança pública do campus, Jess impede Marcus de tecer comentários
provocativos e ofensivos ― uma das peculiares características dele,
acentuadas quando se refere ao Jonas ―, mas sua expressão de solidariedade
só me enfurece mais. Jess conseguiu me arrastar até o banheiro, mas
estávamos atrasadas para a minha aula preferida e eu procurei ignorar que eu
parecia ter saído das profundezas de um lixão. Não seria por causa daquele
garoto mimado que eu perderia mais um minuto que fosse da minha vida.
Marcus e Jéssica são os responsáveis pelas cenas de romance
agarradinho da faculdade. Começou há dois anos, por conta de um trabalho de
grupo sobre samambaias que fizemos no segundo ano. Tudo bem, samambaias
não têm nada de românticas, mas depois de horas encafuados nos corredores
da Biblioteca Nacional até um manual de direito administrativo pode se tornar
um pretexto para esticar um programinha. Desde então, são como pinhão e
coroa numa engrenagem: inseparáveis. Para Jess, os planos de morar juntos
incluem um casal de filhos (de preferência, que ambos herdem o perfil leonino
de Marcus), um cachorro da IG e uma casa tipo chalé com cercas brancas em
Itaipava. Para Marcus, bem, ele prefere apenas não discordar.
A aula de Medicina Interna é imperdível, aquela que mais prende a
minha atenção e por isso a que passa mais depressa. Assim que nossa turma é
dispensada, Jéssica se despede. Eu e Marcus permanecemos na mesma sala
para a aula de Patologia Forense. Metade da turma conversa animadamente e
a outra metade está conectada no Facebook testando a paciência do professor,
até que ele encontra um bom motivo para testar nossa capacidade de ficar em
silêncio e afastados das redes sociais.
E cá estamos nós, formando grupos para um trabalho valendo nota. A
ausência de Christiane e Jéssica nos deixa desfalcados mas, inesperadamente,
senta-se Wotan ao meu lado. Ele praticamente impõe a sua participação.
Marcus não se importa com a intrusão do nosso estranho colega porque Wotan
é, por excelência, o CDF da turma.
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Wotan pertence a um grupo com mais dois rapazes, sendo que ele age
como uma espécie de líder dos outros dois. Estes, que fazem lembrar irmãos
siameses, chamam-se Ahriman e Lugh. Intrigados por seus nomes incomuns,
alguns colegas ― que não tinham mais o que fazer ― pesquisaram e
começaram a referir-se aos três como pagãos. Como é de suspeitar, esta
referência advém das origens de seus nomes, deuses antigos da mitologia; O
apelido tomou a boca do povo da universidade e os pagãos são reconhecidos
como a mais silenciosa e misteriosa panelinha da Universidade. Fisicamente
são muito altos, magros e pálidos ― sendo Wotan o mais alto, medindo cerca
de 1,90m. ― Bastariam estas razões para sobressaírem entre os demais
alunos, em sua maioria, cariocas sorridentes e bronzeados. Os pagãos são
antissociais, praticamente nunca falam com ninguém e se alguém se aproxima
deles, encontram sempre forma de espantarem essa pessoa ou de
simplesmente desaparecerem.
Portanto, é com a figurinha mais esquisita de todo o campus de medicina
que trabalhamos neste momento. Wotan mal pronuncia uma palavra,
limitando-se a concordar com minhas audaciosas sugestões e com as respostas
certeiras de Marcus. Já é impossível ignorar a insistência do olhar intimidador
de Wotan sobre mim, mas Marcus não enxerga outra coisa senão as questões.
Com o término da aula, arrumo depressa o caderno e o estojo na mochila
e agarro Marcus pela manga do casaco, arrastando-o comigo pelas escadas
para ganhar distância de Wotan. Para nosso espanto, ele nos intercepta no
meio do caminho convidando-se para ir conosco: “Também vou à Toca”. É
estranho como conseguiu nos alcançar sem darmos por isso e ainda mais
estranho ouvi-lo pronunciar uma frase com mais de três palavras; foi, talvez, a
sua frase mais longa nos quatro anos que cursamos juntos esta faculdade.
A lanchonete do campus, Toca do Coelho, é o nosso point. O „Coelho‟ é
um senhor baixinho, gordo, de bochechas rosadas e fartos bigodes que atende
pelo nome de... Seu Coelho, claro. Nos intervalos é muito fácil encontrar aqui
todas as tribos e etnias, numa miscigenação harmônica e desorganizada. É
uma confusão, uma barulheira, uma disputa para conseguir mesa, que é mais
complicada durante os intervalos da manhã, pois à tarde podemos sempre
escolher. Preferi a mesa mais central do bar, aquela que está cercada de todas
as outras mesas ocupadas. Não costumo ser desconfiada, mas a súbita
aproximação de Wotan não me deixou alternativa.
Avisto Christiane caminhando em nossa direção, leve e fagueira em um
vestido rosa pink esvoaçante bem demarcado com um cinto de corda trançado.
Neste momento, Wotan está de costas para ela. Ela não disfarça a careta de
perplexidade quando se apercebe que é Wotan que está conosco, sentado de
frente para mim. Pela primeira vez ― desde que ele grudou em nós ―
consigo exprimir um ar de riso. Com olhos fundos e inexpressivos, Wotan me
observa, sorumbático e hipnotizado. Marcus finalmente cai na real, percebe a
situação embaraçosa e passa a encarar o branquelo com mais austeridade.
Wotan desvia a atenção de mim como se fizesse um favor em dirigir-se para
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Marcus. Bastou um segundo nesse cruzamento de olhares, para que Marcus
levantasse e derrubasse a cadeira num estrondo arrastado de metal roçando o
cimento.
Agora que todos os presentes se voltaram para nossa mesa, Marcus e
Wotan rasgam sorrisos para a plateia. Pareceria mero vedetismo se eu já não
conhecesse o sorriso zombeteiro de Marcus. Já o sorriso de Wotan não é
divertido, é irado.
― Qual é a tua, pagão? Descobriu o sexo oposto?
Wotan ergue o queixo ensaiando um tom superior na resposta que não
veio. A chegada triunfal de Christiane é a saída de emergência que eu
procurava. Trocamos olhares cúmplices e, agarrando-a pelo braço, rebocamos
Marcus e seguimos juntos em direção ao campo polidesportivo. Ao
chegarmos à primeira quadra onde um grupo entretido de rapazes recolhe a
rede de tênis, Chris começa o interrogatório:
― Vamos, desembuchem: que barraco foi aquele com o pagão? Quero o
relatório completo ― dispara ela sacudindo os cachos dourados.
― Chris, não alimenta o estresse, ok? O pagão juntou-se à nós num
trabalho de Patologia Forense e depois nos seguiu até a Toca, sentou com a
gente e ficou me encarando... foi só isso.
Christiane arregala os expressivos olhos verdes. Ela nem precisa externar
seus pensamentos. Eu conheço todas as suas expressões.
― Encarando você, amiga? Então um dos pagãos está a fim de você?
Urgh..., eu não queria estar na sua pele!
Qualquer descrição não fará jus à careta de Chris.
― Eu ia quebrar os dentes feios dele... ― resmunga Marcus com o
maxilar endurecido.
Coloco a mão em seu ombro e Chris se coloca entre nós, passando o
braço por trás de nossas costas. Seguimos mudos, lado a lado, contornando as
quadras até chegarmos aos jardins do campus. Ele já está repleto de flores
prestes a desabrochar com a chegada da primavera dentro de uma semana.
O celular de Marcus toca e, de um jeito meio alheio, ele se despede. Ele
tem a expressão pesada e ríspida, como quem resmunga para dentro. Então, ao
me despedir afago-lhe o cabelo, um gesto que tomei por hábito e que ele
recebe sempre com um sorriso. Marcus faz um tipo meio torrão, mas tem o
coração mais mole que pudim. Jéssica, sua namorada, sabe se aproveitar
disso; Se depender dele, os dois nunca brigam.
Eu e Chris nos acomodamos num banquinho. Ela segura sua bolsa no
colo e procura o estojo de batom. Quer me mostrar a cor que escolheu para
usar no dia do casamento. Seu assunto preferido atualmente são os
preparativos, de modo que se a função da madrinha é a de, no mínimo,
demonstrar entusiasmo, eu já devia ter me demitido do cargo há muito tempo.
Mas a verdade é que faço qualquer sacrifício ― até ser madrinha de
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casamento ― pela minha melhor amiga. Eu dei um pouco de corda e de
repente já estava quase me enforcando com ela. Chris começou a se empolgar,
me questionou sobre ter ou não alças no vestido de noiva, sobre o local da
igreja, as cores e texturas dos convites (tons quentes ou tons pastel? Ela
prefere pastel), sobre o chef que está elaborando o menu do buffet, as flores da
estação, do book do fotógrafo e até sobre o formato dos guardanapos.
De repente (não tão de repente assim), já passa das três da tarde e temos
dois tempos de Medicina Interna III, no grande auditório do Bloco A. Para
alívio de uma turma já irriquieta nas carteiras, a aula termina quinze minutos
mais cedo, às quatro da tarde. Como habitualmente, nos despedimos no
parque de estacionamento. Cada uma no seu carro, partimos em direções
opostas.
Há algumas semanas faço o percurso até a minha casa ouvindo The
Killers para levantar o astral, mas desta vez não ouvi sequer metade das faixas
do CD e já estou na Barra.Justamente onde menos esperaria encontrar trânsito,
é onde sou obrigada a reduzir a velocidade. Não avisto acidente nenhum, mas
ao me aproximar da entrada do condomínio dou com um aglomerado de
pessoas; algumas paradas, conversando, outras seguindo na mesma direção
que eu.
Ao passar pela guarita vazia, vejo que a movimentação vai dar
exatamente na terceira casa à direita da rua: a de fachada azul e janelas
brancas. É a minha casa.
15
3 - Pai
São principalmente vizinhos e poucos rostos desconhecidos. Sou
obrigada a reduzir ainda mais a velocidade para não atropelar ninguém no
meio da rua.
O que poderia ter atraído a atenção de D. Filomena, aquela velhinha que
quase nunca passa do portão de sua casa? O que quer que seja, não provoca
somente a curiosidade das pessoas. Há um clima de consternação no ar e nos
olhares fixos voltados para a minha casa. Os carros da imprensa e as viaturas
da polícia com as sirenes luminosas fazem uma cena de filme. Há jornalistas
próximos à varanda onde a entrada é vigiada por dois policiais fardados.
Meus olhos estão inquietos, percorrendo rostos, as luzes e o jardim, e
não se detendo em nada. Pois nada disso está fazendo sentido. Sinto o coração
acelerar e minhas mãos gelam. Paro o carro de qualquer maneira e,
empurrando aqueles à minha frente, chego até a fita amarela onde o policial
mais alto tenta me interceptar:
― Eu moro aqui. O que está acontecendo? ― pergunto ofegante.
― Deve ser a filha do Dr. Chevallier ― responde o outro policial, se
aproximando de mim. ― Aloísio ― vira-se para o policial a quem perguntei
―, chame o Dr. Alvarez, que eu espero com ela aqui.
― Como assim? Não posso entrar na minha casa? Quem é Dr. Alvarez e
por que vocês estão aqui? ― tantas perguntas querendo respostas e o silêncio
do policial alimentando meu desespero.
― Eu sinto muito, moça. Você não pode entrar agora. São ordens do
delegado, o Dr. Alvarez. Mas mantenha a calma que ele já vem ―
contemporiza ele que, diante da minha impaciência, segura o meu braço.
Calma é tudo o que eu não consigo ter nesse momento. Com a porta
entreaberta vejo vultos dentro da casa. Não avisto Maria. Meu pai a esta hora
está trabalhando. Olívia deve estar chegando a qualquer momento no ônibus
escolar. Começo a pensar no dia a dia comum, em que todos estão onde
devem estar. Movimento meu braço com brusquidão para forçar passagem e o
policial o agarra com força. Meu olhar de protesto é suficiente para ele
libertar-me.
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De repente, a porta se abre totalmente e acompanhado de outro policial,
um homem de meia-idade, calvo, vestindo um terno cinza claro, aparece à
minha frente.
― Senhorita Clara Chevallier, o meu nome é Carlos Alvarez, sou o
delegado ― apresenta-se, estendendo a mão para me cumprimentar. Num
gesto automático estendo também a minha, mas o cumprimento é
interrompido por um ato de reflexo do delegado. ― Suas mãos estão geladas,
senhorita. Acalme-se.
― Eu quero entrar na minha casa ― digo com aspereza. ― Agora.
Ele ficou me encarando durante um bom tempo e eu já ia repetir, quando
ele falou:
― Estamos diante de uma situação delicada, por isso eu preferi vir ao
seu encontro para conversarmos ― as palavras do delegado são pausadas, o
que me deixa ainda mais impaciente pois a palavra “delicada” não soa nada
tranquilizadora neste contexto.
Num impulso, passo por baixo da fita, empurrando o delegado à minha
frente. O movimento é tão rápido que os policiais só se dão conta quando já
estou no hall. Ao tocar o interruptor da luz, imediatamente vejo aos meus pés
um rastro de sangue se estendendo ao longo de todo o corredor até a sala.
Meu corpo fraqueja e com a tontura me apoio nas paredes para continuar
de pé. A imagem de Maria me vem à cabeça e eu pronuncio seu nome
inúmeras vezes, até começar a gritar por ela. Olho em volta e a sala está toda
revirada, objetos pelo chão, móveis caídos, nada no lugar.
Desabo sobre o sofá e minha vista começa a tornar-se turva até escurecer
completamente. Não sei quanto tempo se passou, quando, bem ao longe, ouço
uma voz conhecida. Sua voz vai se tornando encorpada, até que consigo
perceber o que me diz, baixinho e serenamente:
― Clara, acorda querida. Vamos, acorda... ― as mãos macias na minha
testa são confortantes. O tom da voz aumenta: ― Ela está abrindo os olhos!
― vejo o rosto gentil de Maria, seus olhos negros, cansados, avermelhados de
chorar. ― Você me ouve, querida? ― pergunta ela com um sorriso caloroso
tentando desabrochar no semblante duro.
― Que bom que você está aqui. Eu pensei... ― interrompo a frase
tentando organizar as ideias na minha mente confusa. ― Onde está o meu pai?
E a minha irmã? O que está acontecendo, Maria? ― seguro seus braços com
firmeza, eu ainda deitada no sofá e ela sentada ao meu lado. ― Fala!
Nossos olhos estão fixos uma na outra; os dela são espelhos, mas há mais
do que o meu reflexo neles: há desespero, angústia, temor. Há respostas sem
palavras, mas há olhares que valem mais do que mil palavras.
― Clara, o seu pai... ― ela desvia o rosto para o lado, depois volta-se
para mim novamente. ― Querida, o seu pai... ― as palavras saem arrastadas e
eu já não quero ouvir. A voz se embarga, os olhos fecham e lágrimas
escorrem. Eu continuo a mirá-la fixamente, incrédula, e ao mesmo tempo
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certa de que a sua hesitação, o sangue no chão, a desordem na casa, podem
significar que...
― Meu pai morreu? ― as palavras escapam depressa, como se
pronunciá-las de uma só vez fosse menos doloroso.
Diante do silêncio de Maria, levanto do sofá e giro em torno de mim
mesma. Meus olhos encontram os porta-retratos que foram derrubados no
chão. Abaixo-me para pegar um deles e, na fotografia antiga em preto e
branco, observo os meus avós paternos ainda jovens. O vidro partido faz um
pequeno corte em minha mão, mas não sinto; estou imune a qualquer dor
física; a sensação é de que estou também em pedaços.
Maurício Chevallier, meu pai, nasceu na França em 1961 e veio para o
Brasil ainda bebê. Casou-se aos vinte e seis anos com minha mãe, a bailarina
Beatriz Abravanel. Eu nasci um ano depois. Papai escolheu meu nome, Clara,
em homenagem à minha avó paterna, Claire, que eu não conheci porque
morrera quando papai ainda era criança, na França.
O meu avô, Rômulo, foi um importante investigador brasileiro da área
das ciências biológicas que foi estudar e trabalhar na França. Lá, ele
especializou-se em Biofísica e em suas inúmeras pesquisas, encontrou
respostas para questões científicas até então indecifráveis. Ganhou nome, uma
excelente reputação, muito dinheiro e adotou um sobrenome francês. Rômulo
conheceu Claire na Universidade de Sorbonne, onde ela lecionava literatura.
Papai me contou que foi amor à primeira vista.
Quando vovô percebeu que já havia conquistado sucesso profissional e
uma linda família, decidiu regressar para o Brasil com vovó. Foi na véspera da
viagem que ela descobriu que estava grávida. Então eles preferiram esperar o
bebê nascer porque queriam chegar ao Brasil como uma família completa.
Vovô faleceu logo após a formatura de papai. E vovó, logo depois dele.
Papai conta que ela não conseguiu viver sem ele.
O cientista Maurício Chevallier não só se formou em medicina, que ele
não chegou a exercer, como também seguiu os passos de seu pai na área das
ciências biológicas. Mas foi muito além dos estudos universitários. Papai fez
várias especializações, além de mestrado e doutorado, relacionadas à biologia
e genética molecular, área que escolheu para trabalhar. Graças a seu currículo
de pesquisas e descobertas importantes no ramo da biologia, o Dr. Chevallier,
com o título de PhD em nanotecnologia molecular tirado na MIT em
Cambridge, hoje trabalha para o maior centro científico do país com sede no
Rio de Janeiro e filiais em vários países da Europa e dos Estados Unidos, os
Laboratórios S. Bauer.
Meu pai sente-se orgulhoso por perpetuar o sobrenome adotado por vovô
na França, e o tornou mundialmente conhecido no meio da ciência; um
sobrenome que nasceu do nada, simplesmente porque meu avô gostava da
pronúncia.
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Devolvo o porta-retrato à mesinha onde antes estavam também o abajur
e o telefone. O delegado, que me observava pensativo do corredor, anuncia
em alta voz:
― Vamos embora, pessoal. Já não há mais nada a fazer aqui hoje.
Podem ir sem mim, vou na outra viatura com o Clayton ― determina ele, com
a voz rouca pelo tabaco.
Depois vira-se para mim e protesta, num tom respeitoso e ao mesmo
tempo autoritário:
― Senhorita Clara, sei que está naturalmente perturbada com esta
situação, mas sabe que não deveria ter feito o que fez; entrado de qualquer
jeito na casa ainda sob investigação. Poderia ter prejudicado o trabalho da
perícia ― Ele ajeita os óculos no nariz com o dedo indicador e prossegue
cauteloso, com a voz meio ácida. ― Aparentemente, o crime aconteceu entre
duas e três da tarde. Sem o corpo, não podemos ter certeza. Mas não se
preocupe. Haveremos de encontrar algum indício revelador.
Diante do silêncio da minha expectativa, ele conclui:
― Revelador sobre se foi latrocínio ou... ― faz uma pausa e inclina
levemente a cabeça para baixo, denunciando suas olheiras profundas ―
...suicídio.
O delegado senta-se no sofá e eu fico parada de pé, estática, refletindo
sobre sua suspeita. Conhecendo papai como ninguém, suicídio é uma hipótese
a não ser considerada. Meu pai jamais poria fim à própria vida, muito menos
em nossa casa.
― Suicídio nunca ― replico encarando-o com a expressão afrontada. ―
O senhor não o conhece; meu pai nunca faria uma coisa dessas. Não nos
abandonaria, nunca... ― de repente lágrimas deslizam pelo meu rosto. Ao me
dar conta da situação, enxugo o rosto e ergo o queixo. De jeito nenhum posso
demonstrar fraqueza. Isso seria demonstrar insegurança.
Sentando-me ao lado do delegado na beirada do sofá, continuo meu
raciocínio, meticulando as palavras friamente:
― Tudo aqui leva a crer que houve um roubo, Dr. delegado. Lembre-se
de que se tivesse sido suicídio, o corpo estaria presente. Ou o senhor acha que
alguém o teria ajudado num plano macabro, ocultando o corpo?
A pergunta soa propositadamente jocosa. Se não fosse pelo
acontecimento fatídico, soaria mesmo como uma piada de mau gosto. Fito o
vazio e me surpreendo com o rumo que tomaram os meus pensamentos ao
dialogar com Dr. Alvarez. Vista por este ângulo, a possibilidade de suicídio é
ainda mais absurda. Ainda assim, o delegado faz suas conjecturas baseado na
mesma hipótese:
― Ou que alguém teria acobertado um ato de fraqueza para preservar a
honra de um grande cientista ― a seguir, explica-se demoradamente, com ar
presunçoso: ― Seu pai era um homem público, senhorita. E como um bom
pai, queria poupar as filhas de embaraços ou de sentimentos como esses que
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tenta evitar, de que seu pai nunca seria capaz de abandonar a família. Não ia
pegar bem, uma manchete estampada em primeira página: “Cientista Maurício
Chevallier comete suicídio” ― e completa, com uma certa crueldade no
tempo condicional: ― Se ele vos amava, não as exporia.
Essa hipótese não tem qualquer nexo porque sempre partirei do
pressuposto que meu pai não nos abandonaria. Ele daria a vida por nós. Isso,
sim. Jamais nos deixaria à própria sorte. Além de mim e de minha irmã, meu
pai tem um outro motivo para querer viver. E este motivo apenas eu conheço.
― É melhor não especular tanto, Dr. delegado. Não chegaremos a lugar
nenhum assim. Na minha opinião, o senhor perde tempo precioso trabalhando
essa hipótese. Mas este é o seu trabalho, não o meu. Ajudarei no que for
necessário mas, por favor, descubra o que aconteceu com o meu pai. Por que
escolheram a nossa casa, o que fizeram com o meu pai... preciso saber onde
ele está. E... se morreu, quero poder enterrá-lo dignamente.
Mesmo com os olhos ardentes e embaçados, resisto a não piscar. Não
derramarei mais nenhuma lágrima na presença deste homem frio que agora se
refastela no meu sofá. Ainda sentada na beirada, sinto-me cada vez mais
desconfortável com a sua presença em minha casa. Ele dá um breve suspiro e
se recosta, como se pretendesse ficar ainda mais tempo trocando figurinhas
comigo.
― Pois bem... conversaremos mais sobre este assunto, senhorita Clara.
Você será chamada a depor. A D. Maria também será intimada, pois teremos
que confirmar o álibi dela com os funcionários do mercado, onde alega ter
estado depois que a senhorita foi para a Universidade. Precisaremos de
contatos do seu pai, de conhecidos, familiares, colegas de trabalho, amigos e
inimigos. Precisaremos saber se ele tinha em posse algo de valor que pudesse
ser objeto de cobiça de alguém ― ele faz uma pausa enquanto tira um cigarro
do bolso. ― Talvez seu pai nem esteja morto, mas tenha sido sequestrado e
esteja neste momento escondido em algum canto da cidade.
Arregalo os olhos diante desta pequena chama de esperança lançada pelo
Dr. Alvarez. Ele acende o cigarro, dá uma baforada e diz, concluindo:
― Bom, não a vou perturbar mais, mas acredite: farei o que estiver ao
meu alcance para encontrar a verdade.
Enquanto ainda organizo os pensamentos confusos, sua mão fica
estendida durante algum tempo à espera do meu cumprimento. Já a caminho
da porta da rua, ele para subitamente e se volta para mim e para Maria, que
tem a mão esquerda no meu ombro:
― Fiquem atentas ao telefone. Se o Dr. Chevallier foi sequestrado, os
criminosos podem entrar em contato ainda hoje ou amanhã.
Continuo de pé, inerte, no meio da sala de estar. Maria acompanha o
delegado e o policial até a porta da frente. Ao ouvir o som abafado da porta a
bater, estremeço lembrando de que, em breve, ela se abrirá para entrar a minha
irmã caçula, ainda alheia a esta realidade devastadora.
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São cinco e meia da tarde e Maria está na cozinha preparando um lanche.
Ela insiste para que eu coma alguma coisa, como se fosse possível me abstrair
da tragédia que se instalou em minha casa.
Subo as escadas e vou até o quarto de meus pais. Não gosto de entrar
neste quarto porque lembra demais a minha mãe. Foi aqui que nos despedimos
― quando eu ainda nem sabia o que significava saudade. Um crucifixo antigo,
de madeira escura e um cristo de prata, é o único adorno da parede pálida.
Olhando para ele, começo a lembrar que todas as noites rezávamos juntas.
Mamãe ensinou-me muitas orações, entre as quais a do anjo da guarda, a
primeira que aprendi. Ficava ao seu lado nesta cama, enquanto lia histórias da
carochinha e eu adormecia nos seus braços já fracos, sonhando com reinos
longínquos, príncipes e princesas encantados. Lembro-me de brincar com seus
cabelos dourados e levemente ondulados que estavam sempre penteados. Os
olhos azuis emoldurados por seus cílios longos faziam deles os mais belos que
eu já conheci. Olívia herdou a cor dos olhos e eu, os cabelos ondulados.
Sua doença não foi longa, não havia tempo para o tratamento.
Emagreceu e perdeu o brilho dos olhos, o viço da pele, mas mesmo assim,
continuou bonita até o último suspiro. Morreu serena, pela manhã do primeiro
dia de primavera. Eu tinha doze anos e Olívia apenas três aninhos. Papai
estava ao lado dela na despedida. Ele contou que mesmo depois que ela
fechou os olhos, manteve o sorriso no rosto. Papai não quis que eu a visse
morta e por isso não vi esse sorriso. Mas saber que ela morreu sorrindo é
muito importante para mim.
Sua ausência sempre foi uma tortura para ele. Meu pai nunca se
recuperou da perda de mamãe, não se conforma e não percebe o por quê de
Deus nos tê-la tirado tão jovem, tão cedo. A nós, que tínhamos uma família
perfeita, que éramos felizes demais. Por esta mesma razão, ele se distanciou
da fé em Deus, começou a duvidar da existência Dele. Um homem da ciência,
racional acima de tudo, mas católico praticante, transformou-se num ateu
convicto, cético sobre qualquer assunto relacionado à religião.
***
Um dia meu pai me chamou para conversar. Mamãe morrera havia três
anos. Eu estava em plena adolescência, andava distante dele, passava o dia
inteiro fora de casa com os amigos ou ajudando Olívia com seus trabalhos;
por sua vez ele estava sempre correndo, pesquisando, viajando o mundo todo,
ocupando-se ao máximo com o seu trabalho. Mas num determinado dia, não
sei por que, quis abrir seu coração. Nunca vou esquecer a sua coragem, a
confiança que depositou em mim e as palavras reveladas que mudaram a
forma como eu passei a olhar para ele.
― Clara, quero falar com você ― disse, acanhado, por trás da porta
entreaberta do meu quarto.
21
Pulei da cama e tirei dos ouvidos os fones de música enquanto
caminhava para o seu quarto, que estava com a porta aberta. Havia somente
um abajur aceso e ele estava na penumbra me esperando.
― Posso entrar? ― perguntei já com um pé no seu quarto.
― Sente-se aqui do meu lado ― ele deu dois tapinhas no colchão e me
fitou com aquele olhar de pai coruja, repleto de ternura. ― Você já é uma
mocinha e...
Neste momento, imediatamente imaginei onde ele queria chegar com
aquela introdução e interrompi-o:
― Ah não, pai... não precisa conversar comigo sobre esse assunto. Já sei
de tudo. Na escola tenho aula de educação sexual, essas coisas...
Sentia-me bem em poupá-lo de um provável constrangimento, mas ele
reagiu com um ar de espanto, as sobrancelhas levantadas numa interrogação e
a boca escancarada.
― Não... não é nada disso, filha. É outro assunto ― abanou a cabeça
para os lados e fez uma pausa constrangedora. ― Pensando agora, nem sei se
você já tem um namorado! Tem?!
― Ah, pai... essa não! Você disse que era outro assunto ― outra pausa
diante dos seus olhos crescentes de expectativa e pregados em mim. ― Tudo
bem, essa eu respondo. Não, não tenho namorado ― e pensando para mim
mesma, mordi o lábio inferior: não tinha, nem nunca tinha tido,
verdadeiramente, um namorado.
― Você sabe como é o seu pai, sempre desligado... não me dei conta de
como você já está mocinha ― reparei nos seus olhos marejados. ― Hoje
acordei e vi você ajudando a Maria na cozinha. De repente começei a enxergar
você: minha filhota de quinze anos!
Naquele momento senti como se tivesse não quinze, mas quatro anos.
― Filha, você cresceu! ― constatou ele com um largo sorriso nos lábios.
― Pois é, cresci. E já faz algum tempo, pai ― dei um suspiro de
insatisfação por naqueles anos ter me sentido tão invisível para o meu pai e
emendei para não aprofundar um assunto que me magoava: ― Mas isso não
importa agora. Sobre o que quer falar comigo, então?
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4 - O segredo
A mão de meu pai estava gelada. Ele segurava a minha com força e me
olhava sem piscar; seus olhos negros, fundos e cansados nos meus olhos
castanhos, brilhantes e curiosos.
― Filha, eu tenho um segredo ― fez uma pausa enquanto mirava o
crucifixo na parede. ― Chegou a hora de revelá-lo a você.
O silêncio durou pelo menos um minuto. Com a repentina seriedade de
meu pai e o suspense que se instalava entre mim e ele, algumas rugas se
formaram na minha testa. Tentei soltar minha mão num ímpeto, mas ele
segurou-a ainda com mais força. Foi quando proclamou com a voz grave:
― Vou trazer a sua mãe de volta.
Eu encarava papai nitidamente assustada. Levantei-me bruscamente.
Quando meus olhos já estavam ausentes, passeando entre as casas ao redor da
nossa, ele quebrou o silêncio, anunciando enfaticamente:
― Eu sei como fazer isso acontecer.
Eu bem que tentei ignorar a revelação, mas meu coração acelerou num
compasso alucinado. Pela janela, ainda observava o ritmo normal da
vizinhança: crianças correndo na rua, D. Filomena podando a roseira de seu
jardim, um casal fazendo cooper; ouvia o latido dos cães da família Sousa, os
passarinhos nas árvores do nosso quintal e até a batida desritmada do meu
coração. Meus sentidos estavam mais sensíveis e apurados e mesmo assim eu
não conseguia me concentrar na frase que meu pai dissera. Era uma frase
deslocada e sem nexo. Mas também uma afirmação séria e corajosa ― Meu
pai não poderia ter enlouquecido! ― pensei.
― Clara, venha cá. Sente-se aqui ao meu lado... ― e suplicou. ― Por
favor, Clara...
Eu continuava parada em frente à janela, sem jeito de olhar para ele.
Rendido pela forma como eu o ignorava, ele disse com o olhar lânguido:
― Filha, eu não enlouqueci, se é isso que você está pensando. Parece
loucura o que acabei de dizer, mas... ― ele parou subitamente de falar e virei-
me para ele. ― ... Mas eu precisava desabafar com alguém e você é a pessoa
que sei que poderá entender.
Aproximei-me dele e peguei em sua mão. Estava realmente gelada.
23
― Pai, agora eu estou muito preocupada com você. Você disse que tinha
um segredo. Mas isso não é um segredo. É uma declaração mórbida e sem
sentido nenhum. Ela está morta e enterrada. Certo? ― a pergunta saiu sem
querer, mas eu já não sabia do que devia ter certeza.
― Sim, Clara. Sua mãe morreu ― levantou e colocou-se diante de mim.
― Mas pode não ser para sempre.
― Como pode dizer que a morte não é definitiva? Pai, mamãe já não
está aqui! ― exclamei quase ralhando com ele.
Naquele momento, várias memórias invadiram meus pensamentos,
algumas vagas, outras precisas; lembranças do dia do enterro, das flores, das
lágrimas. A imagem mais nítida foi a de papai com Olívia em seu colo.
Observávamos o caixão descer lentamente, enquanto familiares e amigos se
despediam atirando flores para dentro do jazigo, numa última despedida.
Antes do caixão desaparecer sob meus pés, atirei o medalhão de ouro que
pretendia lhe dar no seu aniversário. Mamãe morreu uma semana antes de
completar trinta e nove anos. Num dia de alguma inspiração artística, recortei
e colei dentro do medalhão, fotos recentes minhas e de Olívia. Queria que ela
tivesse visto o nosso presente.
― Sua mãe não foi enterrada, Clara. Seu corpo está sendo preservado
para quando eu puder iniciar o processo ― declarou com naturalidade. Isso
me soou como um delírio.
Balancei a cabeça inquieta, meus olhos dançavam pelo quarto
procurando alguém que não estava ali. ― Quem é este homem à minha
frente? Onde está o meu pai? ― pensei, franzindo o cenho de incredulidade.
― Do que você está falando? Isso parece conversa de doidos... Como
não foi enterrada? Que processo? ― eu trovejava, indignada.
Tentei recordar as memórias mais vagas do velório de mamãe e recordei
minha inconformidade diante do caixão lacrado.
― Filha, estou confiando este segredo a você. Ouça com atenção: estou
pesquisando a fundo um processo para dar nova vida a pessoas que morreram
mas tiveram seus corpos preservados através do congelamento.
Naquele momento eu sentia um misto de medo, dor, desespero e até
curiosidade. É difícil descrever meu rosto. Ele estava vazio como se muitas
expressões se transformassem em expressão nenhuma.
― Pai, não brinque comigo. Começo a achar que isso é tudo uma
brincadeira, e que você andou assistindo filmes de ficção científica demais.
Ressuscitar a mamãe?! ― perguntei numa exclamação quase debochada.
Muitas questões povoavam o meu imaginário, tantas imagens se
confundiam, passadas e futuras.
― Você não está levando a sério o que estou falando, Clara. Vou trazer
sua mãe de volta através de um processo científico chamado criônica ― sua
voz firme suspendeu minha respiração.
24
― Crio... crio-o o quê?
― Criônica é um campo da criobiologia, filha. A criobiologia estuda as
interações do corpo humano quando exposto à hipotermia. Estuda como a vida
se comporta em ambientes frios ― explicou ele diante de meus olhos
esbugalhados. ― A criônica é um processo de criopreservação de seres
humanos, ou seja, preservação através das baixas temperaturas, com o
objetivo de reanimação no futuro.
― Mas como essa tal criônica pode servir para ressuscitá-la? Como é
que pode, pai?! ― as palavras saíam da minha boca sem que eu tivesse exato
domínio sobre meus pensamentos. Eu estava indignada. No entanto,
estranhamente curiosa.
Papai explicou devagar e serenamente, como se estivesse lecionando
numa sala de aula para iniciantes desconhecidos:
― Imediatamente após a morte cerebral, uma espécie de coração-pulmão
artificial impede a formação de coágulos de sangue. Depois disso, o sangue é
substituído por uma solução de glicose que impede a formação de cristais de
gelo e faz as células se preservarem. Ao mesmo tempo, a temperatura do
corpo é reduzida o mais rapidamente possível, até se igualar à temperatura do
gelo seco. O corpo é transferido paradewars, que são cilindros, contendo
nitrogênio líquido a -196°C. Nessa temperatura, não há ameaça biológica e
assim o organismo pode permanecer inalterado por centenas de anos.
Mas eu não era uma desconhecida. E a sua explicação fria e científica
não me satisfez. Na verdade, ele poderia explicar a teoria do Big Bang que
para mim ia dar no mesmo. O pressuposto estava errado, aquela história, o seu
segredo, nunca poderia fazer sentido para mim.
Os músculos de minha face se contraíram de pânico e aversão à simples
ideia de ser possível ressuscitar alguém. A frieza de papai me assustava. Ele
continuou.
― A fórmula nanotecnológica que estou desenvolvendo na criônica vai
revolucionar o mundo científico! ― ele arregalou os olhos me lembrando
mais um cientista aloprado. Onde está o meu pai? ― Mas não está pronta.
Estou ainda na fase inicial dos testes, principalmente no que toca a
preservação da estrutura e da química do cérebro, nomeadamente da memória.
O que está atrasando as experiências são os escassos recursos para
desenvolver testes e aperfeiçar os equipamentos... ― desabafou ele, enquanto
eu continuava muda, encarando-o em estado de choque.
Ele não parecia se importar com minha reação, quer dizer, com minha
apatia.
― Os últimos testes foram muito animadores! Dentro de poucos anos
poderei fazer experiências no primeiro ser humano, a sua mãe. Ah, Clara, por
favor, não me olhe assim! ― pediu, refererindo-se ao modo inquisidor com
que eu o fitava, com a mão sustentando o meu queixo.
O entusiasmo dele era apavorante.
25
― Mas você está falando de mamãe como se ela fosse uma cobaia! E
está falando da vida e da alma como se fossem um mero experimento seu! Pai,
eu acredito em Deus. Acredito que morremos. Que nossa alma vai para o céu
ou para o inferno. E acredito que a mamãe esteja neste momento no céu e nos
observando agora, totalmente horrorizada com o que você está fazendo e
dizendo para mim ― minhas palavras severas o recriminaram mas não me
senti aliviada por isso.
Ele tentou me interromper diversas vezes pronunciando o meu nome.
― Clara... ― os olhos dele agora fitavam o chão numa expressão
abatida.
― A mamãe não teve tempo para me ensinar muitas coisas. Mas o mais
importante ela me ensinou: aprendi a rezar, buscar a minha fé, ter a
consciência de que o mundo é uma passagem e que depois de cumprirmos a
nossa missão, temos vida eterna pela frente. E a vida eterna não é aqui. Não
vale a pena discutir a minha fé ― lancei-lhe, por fim, um olhar indignado.
Eu não pretendia afrontá-lo. Mas naquele momento sabia que não
podíamos nos entender. Sempre respeitei muito o meu pai e ele a mim. Apesar
do distanciamento provocado pela morte de minha mãe, nunca deixamos de
nos amar. Nossa ligação de pai e filha sempre foi muito especial porque temos
uma sutil, porém verdadeira cumplicidade no olhar. Muitas vezes as palavras
não precisam ser ditas. Basta um olhar. Excepcionalmente, naquele dia, ao
chegarmos naquele ponto da conversa, nossos olhares já quase não se
cruzavam.
― Não é isso que eu pretendo, filha. Respeito muito a sua fé e admiro
você por preservá-la. Ela é uma sementinha que sua mãe plantou no seu
coração.
Ele deitou os olhos ternos em mim. Eu finalmente consegui não desviar.
― Me responda, filha: se Ele existe, por que me deu os melhores
momentos de minha vida para depois cruelmente tirar de mim o que eu tinha
de mais precioso?
Papai fez uma pausa e encolheu as pálpebras pesadas, deixando cair uma
lágrima. Eu não conseguia dizer nada.
― Ela não queria ir.
Assisti a dor se estender pelo semblante inconformado. Sem saber ao
certo o que dizer para atenuar aquele sentimento, procurei balancear as poucas
certezas que tinha com as certezas que papai perdeu.
― Ninguém quer ir, pai. Mas é preciso, pois esta vida é um ciclo. Você é
o meu pai e eu te amo muito, mas não posso concordar com o que você pensa
― Fiz um instante de silêncio e, por fim, disparei categórica e certeira, com a
minha intenção de atingir o seu ego: ― Você pode ser um dos melhores
cientistas do mundo, mas não é Deus.
26
O rumo da conversa era perigoso e havia o risco de tocar em temas como
ética e religião, mas eu precisava que ele soubesse que não ia me convencer a
aceitar suas intenções.
― Não consegue mesmo compreender o que estou fazendo, filha? ―
perguntou já desesperançoso, porém, com um brilho incomum no olhar, que
eu imediatamente ofusquei, respondendo com outra pergunta:
― Como posso concordar com essa ideia maluca, pai? Não tem pé nem
cabeça! Não faz sentido! A mamãe também não ia concordar. E tem mais,
para concordar eu teria que primeiro acreditar. E eu ainda acho que isso é um
pesadelo! ― passei a mão pela testa e cerrei fortemente os olhos, ordenando
para mim mesma: Acorda!
O olhar de papai se perdeu pelo quarto. Deixando um vestígio de sorriso
no ar, ele começou a desvairar novamente:
― Filha, imagine a sua mãe aqui em casa de novo, jovem e saudável,
sem aquela maldita doença que a devorou por dentro. Sentada à mesa de jantar
conosco, colocando você e sua irmã para dormir... ― apelou ele, com uma
ideia que soava para mim mais mórbida do que propriamente saudosista. ―
Se ela pudesse escolher não teria ido. Se pudesse escolher, ela voltaria.
― Que situação tão... tão... ― hesitei porque a palavra não seria esta,
mas eu não o queria magoar, quando ele parecia tão doente: ― surreal! Além
disso, minha mãe hoje não me poria para dormir. Não sou mais uma criança
― e de repente me dei conta de uma coisa, que disse como um desabafo: ―
Você parou no tempo, pai!
Ele ficou pasmado por um instante, assentiu com a cabeça e depois
assumiu:
― Sim, eu parei mesmo. No dia em que sua mãe nos deixou, eu deixei
de viver com ela. E enquanto eu não concluir estes estudos, não vou sossegar
― e fitando os meus olhos, os meus e os dele lacrimejantes, pegou em minha
mão. ― Eu sei que com tempo e reflexão, você vai entender. Se eu tenho esse
talento, porque não me aproveitar disso em prol da nossa família? Filha, nunca
mais serei um cientista completo, nem um pai completo se não voltar a ser um
homem completo.
― Sei que é inútil insistir. Mesmo que eu não concorde você seguirá
adiante desenvolvendo essa tal pesquisa. Mas confesso que fico assustada ao
tentar imaginar como vou lidar com a situação de ter a mamãe de volta um dia
― minha apreensão o fez sorrir de uma insana satisfação.
― Ela será como sempre foi, terá a mesma aparência e voltará a
envelhecer a partir do momento em que seus olhos se abrirem novamente.
Vamos envelhecer juntos, até ficarmos bem velhinhos e morrermos juntos. E
você e sua irmã a terão presente nas ocasiões mais importantes da vida de
vocês, no casamento, no nascimento dos filhos, nos Natais vindouros.
27
As lágrimas que até aquele momento só teimavam, caíram de seu rosto
áspero de barba por fazer e eu continuava atônita, não conseguindo assimilar
aquele segredo.
Passaram-se os anos e minha relação com meu pai foi gradativamente
voltando a ser mais próxima e calorosa, como costumava ser na época em que
mamãe era viva. Por mais difícil que fosse aceitá-lo, o segredo nos
aproximou. Eu tomei consciência do papel importante que tinha na vida de
papai, do quanto ele ainda precisaria de mim.
As palavras que foram ditas naquele quarto, nunca saíram dali. E nunca
mais foram repetidas. O assunto não tinha virado um tabu. Não tocávamos
nele, talvez, simplesmente, para não discutirmos. Apesar do abismo que existe
entre nossas opiniões, éramos e continuamos unidos pelo mesmo sentimento:
o amor por Beatriz.
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5 - Irmãs
Talvez para provar a mim mesma, mais do que a meu pai, que não penso
como ele sobre a vida e a morte, decidi cursar medicina. Sempre soube que
não encontraria nela todas as minhas respostas, mas que os desafios e
responsabilidades da profissão, podem me fortalecer. Nela preciso aprender
com as derrotas e a ser capaz de impedir que o orgulho das vitórias me faça
sentir e pensar que posso mais do que Deus. Por isso, a medicina é um desafio
que estou buscando não só por mim mas também por meu pai.
Quando optei por esta profissão, sabia que teria que lidar com a vida, a
morte e o sutil intervalo que separa um momento do outro. Mas a
possibilidade de impedir a morte ou de ser capaz de ressuscitar alguém
enquanto ainda existe esperança, isto é, de poder controlar esse sutil intervalo,
não me deixou dúvidas. Eu nunca disse nada a papai, no entanto, acredito que
ele suspeite que de certo modo influenciou na minha decisão. Antes daquela
noite, daquele segredo, os médicos significavam pessoas de sangue frio sob
uma bata branca. Hoje, ser médico para mim significa ser o anjo da guarda de
alguém. E não há missão mais nobre do que esta.
No anos que se seguiram, não houve noite que eu não pensasse no
segredo de papai antes de fechar os olhos. Muitas vezes eu pensava tanto, que
tinha pesadelos terríveis ao ponto de acordar no meio da noite suando frio. Por
causa disso, já não deixava minha irmã dormir no meu quarto quando tinha
medo. No começo achou que havia algo de errado com ela, mas consegui
convencê-la aos poucos de que o problema era comigo, de que eu precisava
estar sozinha.
Olívia foi crescendo e sua beleza se revelava cada dia mais semelhante à
imagem de minha mãe quando tinha a sua idade, o que percebi no álbum de
fotografias que eu muitas vezes folheava; não só os cabelos e a cor dos olhos,
mas o corpo magro, de aparência frágil e a pele alva como a neve. Talvez seja
por essa razão, uma razão meramente estética, que papai aparenta alguma
dificuldade em estar com ela. E Olívia sente isso, comenta comigo sobre a
predileção dele por mim e eu explico a ela sobre a sua semelhança com
mamãe e sobre como as lembranças dela ainda o influenciam. Nunca enganei
minha irmã. Nunca.
Olívia tem onze anos e quer ser astrônoma. Ela sempre adorou observar
as estrelas. Conhece todas as constelações, suas histórias e mitos e o porquê
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de seus nomes. Todos os dias ajudo-a com as tarefas da escola, rimos e
brincamos. Tento ser para ela um pouco do que a mamãe seria se estivesse
conosco. Mas muitas vezes ela é que acaba cedendo seu colo para mim.
***
Às seis da tarde o soar da campainha interrompe as minhas lembranças.
Desço correndo as escadas e encontro com Maria no hall. Nos entreolhamos e
em poucos segundos nossas expressões se transfiguram. Não havendo
palavras para preencher o vazio entre nós, vemos o reflexo do desespero uma
na outra: não há como adiar, temos que contar a Olívia e será agora.
Ainda estou absorta em minhas lembranças, tentando buscar nelas
alguma explicação para o que está acontecendo, ainda perdida em dúvidas e
questionamentos. Não me ocorre nenhuma maneira de contar a trágica notícia
à minha irmãzinha.
― Temos que abrir a porta, Maria. Eu vou conversar sozinha com ela.
Prepare um copo com água e açúcar ― disse em tom de voz quase inaudível
tomando, contrariada, as rédeas da nova realidade. Agora sou a única
responsável por Olívia.
Minha irmã entra contente. Como de costume, à frente da porta ainda
aberta, ela dá um abraço apertado em Maria, que o devolve timidamente
enquanto se esforça por reter o choro no sorriso mais triste que já vi. Pego a
mochila das costas de Olívia e conduzo-a pela mão até o quarto.
Abrimos espaço entre os ursos e coelhos de pelúcia sobre o edredom e
sentamos na sua cama, ornamentada com um dossel coberto por suaves véus
brancos e azuis. Ao contrário de mim que gosto de deitar na cama de barriga
para cima e ficar horas admirando o teto, minha irmã nunca abriu mão dessa
cama de princesa. Eu olho em volta, reparo na escrivaninha cheia de cadernos,
no globo terrestre sobre o armário, na velha penteadeira vitoriana de madeira
branca que antes ficava no quarto de nossos pais, na parede azul salpicada de
estrelinhas light glow, no tapete em forma de ursinho que decora o chão.
Penso comigo: minha irmã ainda é tão pequena! Tantos sonhos estão aqui,
neste quarto. E diante de mim está ela sentada, ainda como uma criança feliz,
prestes a perder algum encanto de sua infância com o que eu estou prestes a
lhe dizer.
Olívia olha para mim de um jeito que oscila entre a curiosidade e a
preocupação. Então me permito esboçar um sorriso afável para tranquilizá-la.
― Olívia, tenho que te dizer uma coisa. Não é fácil e por isso tente me
ajudar ― eu sei que se lhe der alguma responsabilidade, será mais fácil
manter o seu controle.
― Pode falar, mana ― sua voz se confunde com o canto de um
passarinho no parapeito da janela.
Eu ainda não sei como começar. E quando é assim, costuma--se dizer
que devemos começar do começo.
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― Hoje quando eu cheguei da faculdade encontrei um senhor aqui em
casa. O senhor me explicou que alguém tinha entrado em nossa casa e
machucado o nosso pai.
Seus olhos se apertaram e para a minha surpresa, ao invés de reagir,
ficou em silêncio a espera de que eu continuasse.
― Esse senhor, um policial, ainda não sabe o que aconteceu. Não sabe se
nosso pai está mesmo machucado ou onde ele está ― lágimas descem pelo
rosto macio de Olívia. Ela continua a olhar para mim a espera de mais
detalhes e eu percebo que está preparada para a verdade. ― Ele pode ter
morrido.
Ele pode ter morrido. As palavras ecoam em minha cabeça e eu me dou
conta de que não acredito que papai esteja mesmo morto, apesar de ter visto
sangue no chão. Eu não o vi morto. Na intenção de preservar minha irmã,
acabo por assegurar a mim mesma o que para o delegado é apenas uma
possibilidade, mas que sempre foi certeza no meu subconsciente: ainda há
esperança.
Olívia continua a olhar para mim, agora com o nariz vermelho,
apertando os lábios, prendendo o choro. E então ela diz:
― Clara, temos que encontrar o papai. Ele não morreu. Eu sei ― afirma
com mansidão.
― Como você pode ter essa certeza, Olívia? ― desta vez sou eu quem
oscila entre a curiosidade e a preocupação.
― Mana, eu simplesmente sei ― diz, enxugando o rosto.
Diante da firmeza de suas palavras, reforço minhas esperanças. Seu
autocontrole me impressiona, mas também preocupa. Há quem diga que as
crianças sempre nos surpreendem quando passam por alguma situação difícil.
Estamos sempre tentando poupá-las da dor e do sofrimento, mas contanto que
não se sintam sozinhas, elas são capazes de suportar estes sentimentos melhor
do que os adultos. Eu preciso que minha irmã sinta que não está sozinha, que
eu estarei sempre ao lado dela.
― Clara, estamos juntas, só nós agora. Precisamos ser fortes para buscar
pistas sobre o nosso pai ― a voz mansa ganha um tom imperativo e os olhos
da cor do céu são o espelho de uma mudança que eu sei que está por vir.
Olho em volta e me lembro do que senti quando entrei em seu quarto há
alguns minutos para lhe dar a notícia. Olívia poderia ter continuado a ser
aquela criança que tem ursinhos de pelúcia sobre a cama e sonha com
histórias de mitos ao adormecer olhando para o teto estrelado. Mas, de
repente, minha irmã caçula fala comigo como se tivéssemos a mesma idade.
Na verdade ela me faz sentir como se fosse ela a irmã mais velha, confiante,
segura, adulta! Com isso, uma profunda sensação de conforto se apodera de
mim, minha tensão se esvai e deixo escapar um suspiro de alívio. A partir de
agora, me dou conta de que não estou sozinha.
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Levanto da cama e olho pela janela, de onde já vejo algumas estrelas
cintilando no céu.
― Qual o nome daquela estrela ali? ― pergunto, apontando o dedo em
direção a estrela mais brilhante que avisto no firmamento.
Olívia responde confiante, ao meu lado:
― Aquela ali se chama Sírius A. É a estrela mais brilhante no céu e
pertence à constelação de Cão Maior. Tem uma luminosidade 23 vezes maior
do que a do Sol e está a uma distância de apenas 8,7 anos-luz da Terra.
Entre olhar, boquiaberta, para minha irmã-gênio e voltar os olhos para
Sírius, fiquei hipnotizada ao imaginar que olhávamos para oito anos atrás. Há
oito anos, eu e Olívia perdíamos a nossa mãe. Hoje, não sabemos onde está o
nosso pai.
Ela pega em minha mão e me puxa para fora do quarto. Descemos as
escadas e nos dirigimos até a cozinha onde, aflita, aguardava Maria com o
copo de água com açúcar em punho. Ela corre ao nos ver entrar.
― Como você está, minha pequena? ― pergunta com ternura maternal
na voz.
― Clara e eu encontraremos o papai.
― Encontrar o pai de vocês? Como? ― Maria se vira para mim com ar
de espanto. ― Mas, afinal... o que você disse a ela, Clara?!
― Eu não menti, Maria. Nosso pai está desaparecido, vivo ou morto.
Nós acreditamos que esteja vivo ― digo-lhe satisfeita por poder admitir para
mim mesma que não é loucura acreditar no que fala o coração. São dois
corações, o meu e o de Olívia.
Maria transmite no olhar aquilo que não quer dizer para não nos
desesperançar. Mal sabe o quanto seus pensamentos sempre nos foram
transparentes.
Nenhuma de nós tem fome. É hora do jantar e, num dia comum,
sentaríamos todos à mesa com papai à espera que Maria nos servisse uma
deliciosa refeição. As refeições sempre começavam com uma oração. Um
hábito deixado por mamãe. Num dia eu rezava, no seguinte rezava a Olívia.
Papai ouvia e se limitava a dizer “amém”. E então, Maria trazia o jantar para a
mesa, onde também se sentava conosco e, em paz, confraternizávamos no
único momento de reunião familiar do dia.
Somos uma família típica, com suas tradições e rituais. E como toda
família assim, há particularidades no modo de ser e de estar de cada um de
seus membros. A cadeira vazia de mamãe ao jantar sempre incomodava o
papai. O olhar dele baixava e ele mudava quando seus olhos batiam naquele
lugar vazio. Emudecia. Todos os dias era assim. Eu e Olívia tentávamos
descontraí-lo e Maria também ajudava a alegrar o ambiente com suas piadas.
Vivenciar aqueles momentos diariamente me ajudou a refletir todas as
noites sobre o segredo de papai. Eu não suportava vê-lo daquele jeito,
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entregue à tristeza, perdido em meio às memórias dos dias felizes em que a
família era completa. Para mim e para a minha irmã, nossa família estava
completa quando tínhamos a presença dele. Quando ele emudecia, aí sim,
estávamos sozinhas. Ele não percebia isso. Não sabia o quanto nos atingia e
magoava sabê-lo tão inconformado.
Papai desapareceu quando tenho tanto para lhe dizer. Hoje tenho a
resposta que há três anos ele cobrava de mim. Ele queria o meu consentimento
e eu demorei demasiado tempo para lhe dizer; dizer que por ele eu sou capaz
de tudo: até de ignorar a minha própria fé.
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6 - Sonho
“- A noite de hoje está me parecendo um sonho.
- Mas não é. É que a realidade é inacreditável.”
(Clarice Lispector, in Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres)
Nem eu, nem Olívia sabemos como começar nossa busca por respostas,
nessa jornada à procura de papai.
Esta noite resolvemos pegar o terço que mamãe me presenteou quando
fiz a primeira comunhão. Olívia teve a ideia e eu, que há muitos anos não via
aquele singelo objeto de contas cor-de-rosa, encontrei-o no fundo de uma
gaveta. Então, antes de nos prepararmos para dormir, entramos no quarto dos
nossos pais. Eu segurando o terço e Olívia rezando alto a oração do anjo da
guarda, ambas ajoelhamos diante do velho crucifixo na parede, que foi dos
meus bisavós maternos.
Coloco minha irmã em sua cama e cubro-a com o lençol.
― Sonhe com os anjos, Olívia.
― Você também, mana ― responde ela, serena, com os olhos miúdos de
sono.
Desligo o abajur da cabeceira e saio de seu quarto, deixando a porta
encostada. Sei que a notícia de hoje a perturbou, apesar do seu aparente
controle emocional. Imagino que Olívia poderá aparecer em meu quarto no
meio da noite, assustada, querendo algum conforto na minha companhia e
deixo também a minha porta encostada.
No momento em que entro, sinto um cheiro estranho no ar. Uma
fragância que lembra jasmim. Isso me remete aos meus tempos de infância,
quando Olívia ainda não existia e papai me acompanhava até a escola a pé.
Era uma caminhada curta e conversávamos pelo caminho de jasmineiros, a
dobrar a esquina de nosso condomínio.
Enquanto o aroma desaparece, ou eu me acostumo com ele, abro a janela
e convido a noite a entrar. Consigo sorrir, encantada com aquele instante num
dia repleto de tristezas e preocupações.
As cortinas de seda dançam com o soprar da noite. Na cama, fico
observando o vai e vem do tecido, leve e delicado, quando começo a sentir as
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pálpebras pesarem. Já mal consigo manter os olhos abertos, mas ainda consigo
desligar a luz do abajur.
Sinto o vento roçar meu rosto, o sabor salgado na língua, o cheiro do mar
cada vez mais forte, a areia fria e dura sob os meus pés.
Estou aqui, de novo?
A Lua prateada reina sem súditos num céu sem estrelas. Sob esse véu
negro e amparada pela maresia, caminho e deixo pegadas que aos poucos o
mar desfaz.
Sinto o vento roçar meu rosto, um sabor salgado na língua, o cheiro do
mar cada vez mais forte e a areia fria e dura sob os meus pés. Uma lágrima se
mistura, contrastando com o sabor salgado. No peito, meu coração se agita
como as ondas que encontram as rochas. Com os olhos marejados, só enxergo
meus pés.
De repente, uma densa névoa se forma ao meu redor e eu me vejo
obrigada a parar de caminhar. Sento-me e colho um punhado de areia, que
escapa entre meus dedos. Aqui ninguém pode ouvir, ninguém vai dizer nada.
Estou só comigo mesma.
A Lua Cheia desaparece por trás das nuvens. Faz frio, mas não tenho
vontade de levantar e prosseguir. Prefiro ficar aqui até adormecer. Seria bom
se eu sonhasse, se me transportasse para um lugar mais aconchegante, onde
em vez do mar bravio, houvesse calmaria e onde o tempo não existisse.
Os primeiros pingos de chuva lavam as lágrimas do meu rosto. Encolho
o corpo abraçando os joelhos. De olhos fechados, saboreio a chuva. Até
consigo sorrir por um breve instante.
Apago.
Todas as sensações se repetem.
Uma luz intensa atravessa a névoa e chega aos meus olhos. O sabor e o
cheiro da maresia são repentinamente substituídos por um aroma adocicado.
Com os olhos impossibilitados de ver, apuro o meu olfato. A fragrância que
me provoca é jasmim.
Uma fonte de energia se apropria de mim. Os meus sentidos estão presos
a este instante, como que coordenados por algo ou alguém. O quê ou quem
quer que esteja provocando estas sensações, está muito perto de mim.
Mentalizo uma figura que vai se tornando nítida à medida em que a luz se
esvai. Tenho a impressão de estar imaginando, mas na verdade meus olhos
estão bem abertos e eu de fato consigo ver. Primeiro o contorno. De repente a
luz cintila e envolve a figura.
Meus olhos mentem ou minha mente é que vê além de meus olhos?
Estou confusa, o olhar estreitado, tentando perceber quem é esta pessoa.
Esfrego meus olhos ardentes pela maresia e consigo perceber que é um
homem.
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Ele tem um semblante sereno e tranquilizador. Seus olhos de um verde
expressivo, são tristes mas sorriem para mim; a sobrancelha é grossa, bem
definida sobre os cílios longamente curvilíneos. Sua boca parece desenhada à
pincel, são lábios finos e delicados, num tom acerejado contrastando com sua
pele clara. Os cabelos são longos e lisos, amendoados ou dourados, não sei
bem. É muito alto e magro mas tem um tórax bem definido, com peito e
ombros largos, e braços torneados em músculos.
Toda esta riqueza de traços fisionômicos tão singulares e nobres
contrasta com seu estilo casual, largado e bangunçado. Ele veste uma camisa
branca e uma calça jeans surrada. E está descalço. Sua postura ereta e seu ar
altivo não intimidam, mas não combinam com sua juventude, pois impõem
um certo respeito.
Por melhor que eu consiga descrevê-lo, não encontro as palavras certas
para a sua beleza. Tudo nele é simétrico e na devida proporção. Não lembra
ninguém, não parece ser deste mundo. Há alguma coisa inatingível nele.
Não posso estar no meu juízo perfeito. Fecho os olhos por breves
instantes à espera que a imagem do misterioso Adônis de mármore se dissipe,
mas ele ainda está diante de mim, imóvel, me encarando. Seu olhar é
impactante e invasivo. Parece me atravessar. Instintivamente desvio meus
olhos dos dele. E é neste momento que ouço sua voz mansa:
― Não tenha medo. Estou aqui para ajudar você.
Ele me estende a mão, mas hesitante, adio o gesto duas vezes antes de
aceitar. Na segunda vez, reparo na sua mão a espera da minha. É grande, os
dedos são longos e delicados e no indicador, um anel de prata com símbolos
de pirâmides invertidas. De repente sinto como se uma corrente elétrica me
impulsionasse a soltá-la, mas estranhamente a maciez de sua pele relaxa
minha mão. Seu toque é quente. Ele segura firme e me ajuda a ficar de pé.
― Quem é você?
― Meu nome é Nath-Aniel. Mas me chame de Nate.
― Como apareceu aqui? De onde você é? E aquela luz toda, o que era
aquilo?
Ele sorri por cortesia diante da minha impaciência.
― Moro aqui perto. Avistei você de longe e como a neblina estava
intensa, achei que podia estar perdida, precisando de ajuda ― ele agora
estende um sorriso mais acolhedor e continua. ― E quanto à luz, é dos faróis
de neblina do meu jipe.
― Ok... mas não preciso de ajuda nenhuma, não. Não estou perdida e
estou muito bem ― digo cautelosa, mal conseguindo evitar o tilintar dos meus
dentes.
― Dá pra notar ― diz ele com ar de riso diante do meu iminente
congelamento.
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Estou tremendo e horrorosa, descabelada, pálida, com os lábios roxos e
com olheiras. E ele, lindo, sem um fio de cabelo fora do lugar e cheirando a
jasmim.
― Esse perfume é seu? ― pergunto curiosa enquanto inspiro o ar a sua
volta.
― Não... Quer dizer, sim. Foi uma oferta de minha mãe.
Ele fita o vazio e eu deduzo que o deixei desconfortável.
― Desculpa. Foi uma pergunta intrometida... e eu nem te conheço. Não
queria embaraçar você ― digo, sem graça.
Ele ensaia um novo sorriso que escapa sorrateiramente pelo canto dos
lábios.
― De maneira alguma. Não é nada fácil me embaraçar, como você diz
― sinto meu rosto ruborizar e ele inevitavelmente repara. ― Você é que ficou
corada!
Impulsivamente abaixo os olhos e sinto o calor tomar conta do meu
rosto.
― Não precisa disfarçar... ― diz ele de um jeito terno.
Fico tão sem jeito que enrubesço ainda mais. Será que sou assim tão
óbvia?
E ele convida, me estendendo a mão novamente:
― Vamos, eu levo você até a sua casa. Está ficando cada vez mais frio
aqui.
Não me faço de rogada, seguro sua mão e instintivamente sinto um
arrepio. Ou eu estou gelada demais ou ele está absurdamente quente. Por mim
está bom, pois tudo o que preciso agora é de um pouco de calor para me
aquecer.
O som da chuva nos vidros do carro é abafado pela música do Paralamas
do Sucesso. De alguma forma “Lanterna dos Afogados” parece, pela primeira
vez, fazer algum sentido para mim.
O rapaz tem os olhos fixos na estrada escura enquanto eu tento espioná-
lo com meu olhar indireto. Na ausência de conversa, a música parece falar por
nós dois. Meus olhos passeiam pelo espelho retrovisor, o câmbio, o painel e
acompanham o relógio digital marcar os segundos das três horas e dois
minutos da madrugada. Por fim, se atém aos meus joelhos, apertados pela
calça jeans encharcada. Isso me faz pensar no trabalho que ele terá para secar
o estofado do banco e me encolho envergonhada.
― Ainda tem frio? ― pergunta, interpretando a minha atitude brusca.
― Não... aqui está confortável.
― Pode escolher outra música se quiser... ― diz com gentileza.
― Não! Eu adoro o Paralamas... está ótimo.
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Ele dirige com muita perícia apesar da alta velocidade. A viagem é
rápida até em casa, cerca de um quilômetro, mas neste pequeno trajeto
consigo avaliar que ele parece pouco mais velho que eu. Aparenta ter uns
vinte e poucos anos, o que é bastante intrigante tendo em conta seu excessivo
formalismo.
Quando ele reduz a velocidade para entrar no condomínio, começo a
sentir um estranho aperto no peito. O tempo se esvai com os pingos pesados
de chuva que deslizam depressa no para-brisa.
Penso em lhe perguntar onde estuda, o que estuda, em que rua mora, o
seu telefone...? Alguma destas perguntas preciso fazer! Inspiro profundamente
e preparo a voz.
― Você... ― as palavras hesitam em sair, fugindo ao meu controle. ―
É... ― hesito de novo e então bloqueio de vez. ― Você me desculpa aí o lago
no estofado do seu carro. Foi mal.
Me desculpa aí? Foi mal? De onde é que eu fui buscar isso... terrível!
Pane total.
― Não se preocupe com isso ― diz simplesmente e para o carro em
frente à minha casa. Não encosta na calçada, não desliga o motor, não
pretende demorar. É só o tempo de agradecer, me despedir e saltar logo para
fora do seu jipe.
Meu coração se aperta mais. Ele se volta para mim com as mãos ainda
no volante e ensaio virar também para ele mas me retraio.
― Então, aqui estamos ― anuncia, melodiosamente.
Minha segunda tentativa funciona e por apenas três segundos meus olhos
encontram os dele. Uma frase inteira engasga na minha garganta e até
conseguir emitir as palavras ainda levo algum tempo, o que parece uma
eternidade quando não sabemos o que dizer. Quando isso acontece, opta-se
por dizer o óbvio.
― Obrigada pela carona.
Ele responde depressa:
― Não agradeça.
Ainda mais sem jeito, coloco a mão na maçaneta demorando a abrir.
Além da temperatura morna dentro do carro, gosto daquele perfume e da sua
companhia. Eu seria capaz de adormecer aqui mas é claro que isso não iria
pegar nada bem. Adormecer no carro de um estranho?
O estranho é que ele não me parece um estranho.
Diante da minha morosidade em sair do seu carro, ele gira a cintura e
apoia o braço esquerdo no volante, olhando fixamente para mim. Fico
admirando o piscar de seus volumosos cílios castanhos. O verde do seu olhar
se intensifica e ao olhar para mim desse jeito penetrante, começo novamente a
ter a sensação de que fiquei transparente. Ele finalmente rompe o silêncio
contrangedor:
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― Ficará bem se tomar um chá quentinho e deitar debaixo de um
cobertor. Garanto que num instante estará sonhando com Morfeu! ― diz
zeloso, mas redondamente enganado. Se eu tiver que sonhar com alguém, não
será com Morfeu.
Ainda dentro do carro penso no que ele estará pensando de mim. Olho
pelo retrovisor e vejo meu reflexo. Sou uma aberração. Que espécie de atração
ele poderia desenvolver por mim, descabelada desse jeito? Precisaria de uma
segunda oportunidade.
O espelho é um objeto que eu nunca recorri para julgar minha aparência
diante de um rapaz. Esta é a primeira vez que não fico indiferente diante de
um espelho. É a primeira vez que não quero ser indiferente a um rapaz.
Ele espera que eu me despeça. É educado demais para pedir que eu saia
do carro ou para tomar a iniciativa de se despedir. Considerando o novo
silêncio, a minha esperança de reencontrá-lo é mínima.
― Foi um prazer te conhecer, Nate.
Ele esboça um sorriso leve revelando mais uma vez sua encantadora
timidez. Finalmente puxo a maçaneta.
― E à propósito, gostei do seu nome.
Ele abaixa os olhos. Será que eu disse algo errado? Antes de dizer mais
bobagem, puxo finalmente a maçaneta da porta.
― Então, adeus ― digo colocando um pé fora do carro.
― Até breve ― diante da minha expressão de surpresa, complementa:
― Eu não digo adeus.
Sustenho a respiração. Seus olhos mais uma vez encontram os meus e
por longos segundos não desviamos. Em transe. É como me sinto enquanto
mergulho neles.
― Claro. Passe por aqui qualquer dia... ― convido, atenta a não mostrar
entusiasmo.
Mas mal consigo conter a felicidade e acabo demonstrando isso num
sorriso. Quando retomo o autocontrole, ele dispara:
― Você tem um sorriso espontâneo. Não o repreenda.
Não respondo porque não sei se percebi o que ele quis dizer. Foi um
elogio? Ele sorri com a cabeça baixa. Ainda bem que não viu minha expressão
apalermada.
― Então, tchau ― minha hesitação em bater a porta do carro deixou
praticamente evidente que eu adoraria ficar mais tempo perto dele.
Espero que ele tenha percebido essa evidência. Ou será melhor que não?
Afastei-me e ele arrancou depressa, desaparecendo ao final da rua, como
uma luz que mingua ao fim de um túnel. Encho os pulmões de ar como se não
o fizesse há horas e elevo os ombros numa sensação maravilhosa.
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Eu sei que se ficar suspirando durante o dia de amanhã deverei tomar
providências, como por exemplo, procurá-lo. Ele disse que mora perto da
praia e com o nome invulgar que tem, não deve ser difícil encontrá-lo.
Ao entrar em casa, é como se eu estivesse entrando num outro mundo, o
mundo real. E ter que encará-lo é um pesadelo pois parece que eu regressei de
um sonho.
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7 - Déjà vu
Entro a passos leves em meu quarto e deito na cama. De um instante para
o outro, meu corpo está totalmente relaxado, meus olhos fechados, aquela
preguiça do despertar antes da hora.
Há uma luz incidindo diretamente no meu rosto. Há algo quente perto de
mim. A lembrança da luz e do calor me faz pensar no rapaz da praia. Abro os
olhos e sento na cama num rompante.
― Olívia?! ― no impulso, pronuncio seu nome em voz alta sem querer.
Ela ainda dorme, serena, aconchegada a mim.
Volto a deitar na cama, ao lado dela. O dia já está claro e a luz do sol
entra pela janela que eu deixei aberta. Tenho a impressão de que não dormi
nada, de que a noite voou, mas sinto que estou descansada como se tivesse
tido um sono tranquilo. Já me aconteceu isso outras vezes, mas é a primeira
que dou importância.
A lembrança do que aconteceu esta noite invade os meus pensamentos e
me dou conta de que eu já tinha estado naquela praia, na mesma situação.
Mas como pode ter sido um déjà vu, se eu tinha estado lá de fato
anteontem à noite?
Não encontro explicação. Desta vez, sei que coloquei minha irmã na sua
cama, voltei para o meu quarto, abri a janela e desliguei a luz. Daí em diante,
o que terá me motivado a ir até a praia, por que eu chorava, não sei. Há um
hiato em minha memória.
É verdade que tenho muitos motivos para chorar, minha vida nunca
esteve tão complicada, mas eu estava exausta e praticamente desmaiei na
cama! Não posso ter saído deste quarto consciente. Além disso, como é que a
minha irmã entraria aqui durante a noite, deitaria na minha cama e não
perceberia que eu não estava?
Sei que Olívia precisa descansar, mas se esta situação não for esclarecida
vou enlouquecer.
― Olívia... acorda ― digo baixinho, balançando de leve o seu ombro.
― Já amanheceu? ― balbucia ela.
― Sim, amanheceu. Não sinto como se tivesse dormido. E você?
Ela abre os olhos com dificuldade e vira-se para mim:
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― Só consegui dormir bem depois que vim para o seu quarto ― ela
muda de expressão e a testa se enruga. ― Eu tive um sonho e fiquei com
medo.
― Um sonho? Se foi um sonho, não pode ter sido ruim! Só os pesadelos
nos deixam com medo.
― Não, Clara. Os sonhos também podem nos dar medo. Mas sei que não
foi um pesadelo porque eu não estava em perigo ― seu rosto volta a ficar
sereno.
― Quer me contar como foi?
― Você tem que prometer que não vai pensar que estou ficando maluca
― condiciona ela sustentando meus olhos.
― Claro que não vou pensar isso de você! Os sonhos nem sempre fazem
sentido.
Ela olha em volta, como se pudesse apanhar as palavras certas no ar e
diz:
― Sonhei que um anjo me visitava. Ele esteve no meu quarto e falou
comigo.
― Um anjo?!
Ela confirma com a cabeça baixa.
― Você viu o anjo e ele falou com você...?
Procuro disfarçar minha descrença por entender como deve estar sendo
difícil para ela falar sobre isso, sem saber que eu realmente estou duvidando
dela.
― Você está impressionada.
― Eu sabia que ia duvidar de mim!
Ontem Olívia me deu muitas provas de que é uma menina à frente da sua
idade. Ela me surpreendeu, positivamente. No entanto, por mais que minha
irmã mereça créditos, não posso aceitar que tenha visto e falado de fato com
um anjo. Acredito que possa ter sonhado e depois do choque de ontem,
fantasiado a ponto de acreditar ter sido real.
― Não sei se foi para o meu bem ― ela continua.
― Por que diz isso? O que o anjo lhe disse?
― Ele disse que virão turbulências pela frente, mas que eu não devo
desanimar. Que em breve saberemos de tudo o que está acontecendo.
Engulo em seco. Olívia nunca foi de inventar histórias. Ajeito-me no
encosto da cama e imediatamente olho para o meu terço na mesinha de
cabeceira. Seria verdade?
― E o que aconteceu depois que ele te disse isso?
― Fiquei com medo e me cobri. Quando tirei a coberta ele já não estava
lá ― ela suspira com ar de arrependimento: ― Então eu corri para o seu
quarto e me deitei ao seu lado.
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― Ao meu lado?!
― Você dormia tão profundamente que eu não quis te acordar. Me senti
segura ao seu lado e adormeci depressa ― seus lábios rosados esboçam um
sorriso.
― A que horas foi isso? ― tento parecer normal. Em vão.
― Eu já tinha dormido quando o anjo apareceu. Acordei com uma luz
forte ― ela aperta os olhos por breves instantes. ― Acho que vim para o seu
quarto por volta das três. Por quê?
Às três horas e dois minutos eu estava no carro com Nate. Lembro
nítidamente de ter visto o relógio piscando no painel do carro dele. Neste
instante é como se uma cratera tivesse sido aberta no chão e eu estivesse na
beira, prestes a desequilibrar e cair. A única coisa que me sustenta é a mão de
minha irmã, agarrada na minha. Se eu cair, ela cai junto. Preciso manter o
equilíbrio, por nós duas. E preciso recuperar o juízo. A sensação do
hipotético déjà vu não sai da minha cabeça. Eu já teria esquecido as duas
vezes em que estive naquela praia se tivesse sido um sonho. E, no entanto, eu
lembro de todos os detalhes. Por alguma razão, estive duas vezes vivendo a
mesma cena, no mesmo lugar. Mais complicado é explicar como eu poderia
ter estado na praia e em minha cama ao mesmo tempo.
A brandura da voz de minha irmã interrompe o caos dos meus
pensamentos:
― Eu te contei o meu sonho, mas não era para te pôr assim tão
preocupada. Achei que você precisava saber, porque se o que o anjo disse for
verdade, estamos no caminho certo.
Meus olhos se enchem de lágrimas e o mundo se desmancha à minha
frente.
― Mana, porque você ficou assim? Pode contar ― diz, carinhosa, sem
sequer perceber que os papéis estão invertidos e agora sou eu a irmã mais
nova.
Explico que tinha estado na praia naquela noite e que conhecera um
rapaz que gentilmente me trouxe de volta para casa; que enquanto estava na
praia, lembrei de que já tinha estado lá, na mesma situação, na noite que
precedeu o desaprecimento de papai. Comento que o mais intrigante é que se
tivessem sido sonhos, não haveria areia nos meus pés, não haveria Nate...
Meu coração bate tão forte que quase posso ouvi-lo. Estou concentrada
no meu batimento cardíaco, quando Olívia diz, com uma admirável
autocofiança que desde ontem se tornara habitual:
― Você sonhou.
Encaro-a, atônita e quase ofendida. Foi tudo tão real: a areia nos meus
pés, o cheiro de maresia no cabelo, a presença de Nate e o que ele havia
provocado em mim. Não pode ter sido um sonho.
43
― Não. Eu estive mesmo na praia! Anteontem, quando acordei também
não conseguia lembrar o que tinha ido fazer lá, como tinha ido parar naquele
lugar. De manhã, eu estava com areia nos pés, tomei banho e a Chris me ligou
chateada porque eu havia esquecido a prova do vestido. Fui para a faculdade
tentando lembrar o que tinha acontecido comigo naquela noite. E então,
quando voltei para casa, fui surpreendida pelos policiais em nossa casa. Na
noite passada, eu sei que te deixei na cama, que fui para o meu quarto e que
adormeci. Também não lembro de ter saído de casa, mas lembro de ter estado
lá até o rapaz aparecer e me trazer de volta...
Enquanto tento organizar as ideias e juntar as peças das duas últimas
noites, ela se levanta da cama e, calçando os chinelos, sugere:
― Clara, há muitas coisas estranhas acontecendo. Primeiro, você tem o
sonho de que está na praia. Depois, papai desaparece. E ontem à noite,
enquanto eu tenho a visão com o anjo, você volta a estar na praia, como uma
repetição e ao mesmo tempo como se continuasse o sonho.
― Uma repetição e uma continuação... ― murmuro.
― Eu penso que você sonhou em ambas as vezes.
― E como você explica a areia nos meus pés? Como explica o rapaz da
carona?
Ela dá de ombros.
― Era tudo muito real. E o mais incrível é que eu lembro de tudo com
detalhes. Nunca lembrei de nenhum sonho! ― como é patética a minha
tentativa de me convencer.
― Só o tempo vai dizer o que está acontecendo com você. Agora, temos
que encontrar o papai. E para isso, estamos ficando sem tempo ― ela bateu o
martelo, dando por encerrada a conversa e deixou o quarto.
***
É sábado. Hoje vou à delegacia conversar com o Dr. Alvarez. Embora
ele esteja considerando uma ou outra hipótese descabida, sei que sozinhas, eu
e Olívia não conseguiremos nada. Tenho que convencê-lo de que meu pai está
vivo e que se não apareceu até agora, é porque certamente está correndo
perigo.
Penso na hipótese levantada de sequestro, imagino meu pai sendo
torturado por bandidos e a cada minuto fico mais apreensiva com minha
impotência. Ninguém entrou em contato conosco ainda.
Escolho uma roupa no armário pensando na eventualidade de Nate
aparecer e me sinto imediatamente culpada por pensar em flertes num
momento tão dramático da minha vida. O sentimento de culpa me faz escolher
a velha calça jeans e o sweater marrom desbotado.
Tiro o celular da bolsa e verifico que já tenho chamadas não atendidas de
Christiane e de colegas da faculdade. Eles devem estar sabendo do que
44
aconteceu, já deve ter dado nos jornais e na TV. Não posso fugir disso. Então,
pego o celular e seleciono o número da Chris, que atende ao primeiro toque:
― Amiga! Como você está? ― pergunta com a voz aflita.
― Tudo bem.
― Bem? ― ela faz uma pausa e diante do meu silêncio, prossegue com a
voz mais mansa. ― Eu soube de tudo.
― Como soube de tudo?! ― exalto só de pensar no que terá sido
publicado nas notícias. ― Nem eu sei! Na verdade, não sei de nada.
― Sobre... seu pai?
― O caso está sendo investigado.
― Você está tão fria e distante... deve estar muito afetada, claro ―
constata ela em tom de pesar.
Como Christiane está à parte do que se passa comigo, a ligação não é
produtiva e me causa algum incômodo. Mas não quero ser desagradável com
ela. Não devia ter ligado. Por isso, o melhor é cortar suas expectativas.
― Chris, eu não quero falar sobre isso.
― Tudo bem, então não falamos. Mas não desapareça. Sabe que pode
contar comigo.
― Eu sei, amiga ― bufo discretamente por não poder lhe contar o que
está acontecendo quando mais preciso da minha melhor amiga.
Faz-se um curto silêncio na ligação.
― Meu casamento é daqui a três meses. Você não vai sumir, né?
― Chris, eu nunca faltaria ao seu casamento.
― Não quer sair para tomar um café? Eu passo aí, é num instante, só vou
tomar uma ducha! ― insiste ela, animada.
― Não, obrigada. Hoje preciso estar sozinha com minha irmã ― dito
isso, ela não contesta e desligamos.
Se eu tive um sonho ou se foi uma mera sensação de déjà vu, o tempo
dirá. Mas não posso evitar pensar nisso e me baralhar cada vez mais.
Principalmente quando meu pensamento me conduz sempre até Nate. Terá ele
a resposta? Ou será mesmo fruto de um sonho?
45
8 - Investigação
Olívia me espera na sala. Ela quer ir comigo à delegacia. Explico que
devemos dividir as tarefas e que esta deve ser minha parte no nosso trabalho
de investigação. Coube à Maria atender todos os telefonemas.
Estaciono o carro em frente à 16ª DP. Esta é a primeira vez que entro
numa delegacia e o faço sem olhar em volta para não aumentar meu pânico. O
policial pede que eu aguarde numa sala. Passam-se vinte minutos e começo a
ficar impaciente.
De repente, a porta se abre e um outro policial me acompanha até o
gabinete. É a primeira porta de um extenso corredor, onde alguns bancos
vazios dão a impressão de não ser uma delegacia muito movimentada. Pelo
menos num sábado pela manhã. Melhor assim.
― Ora, bom dia! Sente-se, por favor, senhorita Clara ― exclama como
um barítono, ajeitando-se na cadeira e puxando-a para mais perto da mesa, na
qual a primeira coisa que reparei foi na fotografia do delegado com sua
família.
― Bom dia, Dr. Alvarez. Eu vim... ― começo hesitante e sem jeito
enquanto me acomodo na larga cadeira de frente para o delegado.
― Veio saber o resultado da perícia, certo? Fez muito bem ―
interrompe ele e voltando-se para o lado, grita: ― Freitas, peça a D. Zezé para
preparar um cafezinho!
― Pois é, Dr. delegado. Já tem alguma pista sobre o que aconteceu com
o meu pai? ― pergunto olhando firme nos olhos dele.
― Receio ter boas e más notícias para a senhorita. Qual quer ouvir
primeiro? ― indaga como se fosse o momento adequado para este tipo de
suspense. Diante do meu silêncio e olhar apreensivo, ele prossegue. ― A boa
notícia é que os resultados da perícia saíram excepcionalmente depressa. Sabe
como são essas coisas, este caso tem alguma exposição na mídia e isso acaba
por acelerar as coisas. A má notícia é que não temos nada de conclusivo ainda,
mas os exames indicam que o sangue encontrado na sua casa é do seu pai ―
meu coração dispara e minhas mãos ficam tão geladas que começam a tremer
involuntariamente.
― Quer um pouco de água com açúcar? ― preocupa-se o delegado,
nitidamente arrependindo por não ter se precavido antes.
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― Não, não é preciso. Estou bem.
― Não parece nada bem, está pálida como se fosse desmaiar a qualquer
momento. É, o melhor é baixar a cabeça, parece que teve uma queda de
pressão ― diz ele demonstrando inédita sensibilidade.
― Eu tenho a pressão baixa. Mas logo passa. Por favor, continue.
― Das impressões digitais não pudemos apurar nada de novo, uma vez
que pertencem apenas aos moradores da casa. Além das impressões do seu
pai, encontramos impressões suas, de sua irmã e de Maria ― o delegado
aparenta desânimo e, de imediato, pergunta o fundamental. ― Receberam
algum telefonema suspeito?
Observo que o delegado não ficou decepcionado com minha resposta
negativa e emendo:
― Mas independentemente de entrarem em contato, qual é o próximo
passo da polícia, doutor?
Batem à porta e entra a D. Zezé com uma bandeja e duas xícaras. Ela nos
serve o café e sob meu olhar impaciente, rapidamente se retira do gabinete.
― O próximo passo é continuar a espera que entrem em contato. Se não
tivermos nenhum contato, decorridas 48 horas do acontecimento,
descartaremos a possibilidade de sequestro. Entretanto vou providenciar a
intimação dos colegas, conhecidos, amigos do seu pai a depor. Também
precisaremos do depoimento da empregada, D. Maria, do seu e de sua irmã ―
refere ele, mexendo impaciente o seu cafezinho.
― Eu estou aqui. Pode tirar o meu depoimento agora ― digo
sugestivamente aproximando minha cadeira da mesa.
― Não é assim, senhorita. Há uma ordem de trabalhos a seguir neste
processo ― esquiva-se, dando um gole no café.
― Mas a ordem não é mais importante do que a vida de meu pai. E ele
pode estar correndo risco de vida enquanto estamos aqui conversando!
― Então acredita mesmo que seu pai está vivo? ― surpreende--se o
delegado, pondo a xícara sobre a mesa.
― Eu tenho certeza disso.
― Por quê? ― questiona de imediato, com a sobrancelha direita mais
arqueada.
― Por que sou filha dele. O senhor é pai ― direciono o olhar para o
retrato sobre a mesa ― e deve saber que entre pais e filhos há uma ligação
muito forte. Um sexto sentido, sei lá ― ao dizer isso, ele me fita incrédulo e
dá um meio sorriso sonoro, mais curto do que um soluço, enquanto balança a
cabeça negativamente.
― Não vou dizer que não acredito em sexto sentido, mas não posso
basear minhas investigações nisso.
― Tudo bem. Mas peço que considere o que eu penso. Ele está vivo em
algum lugar. Precisamos encontrá-lo.
47
― Eu percebo a sua angústia, senhorita. Mas os trâmites legais devem
ser cumpridos. Nós já estamos investigando o desaparecimento do seu pai. Se
tiver sido sequestro, os sequestradores têm que entrar em contato. Temos que
aguardar ― conclui, remexendo-se na cadeira como se desse por encerrado o
assunto. ― Agora se me dá licença, tenho muito trabalho. Sei que a delegacia
parece calma, mas há muitos inquéritos correndo aqui. E dou a atenção
necessária a todos eles, da mesma forma. Não há privilégios na minha
delegacia ― refere, dando-me a sensação de ter lido meus pensamentos.
― Eu imagino ― concordo frustrada.
― Não vai tomar o seu café? ― pergunta cinicamente.
― Não, obrigada. Bom trabalho para o senhor ― e estendo a mão para
cumprimentá-lo.
― Obrigado. Passe bem ― diz formalmente, devolvendo o cumprimento
com as mãos pesadas e ásperas apertando fortemente as minhas, quase
esmagando meus dedos.
Deixo o lugar com a sensação de dever mal cumprido. Mas não havia
como ser mais incisiva e insistente sobre a questão de papai estar vivo. Depois
do que Dr. Alvarez disse sobre o relatório da perícia, minha fundamentação
ainda soou mais inconsistente. Sexto sentido... Ora, claro que ele não ia, nem
vai considerar isso. Preciso de alguma prova física. Mas como? Eu e Olívia
nos baseamos simplesmente num sentimento.
Enquanto dirijo de volta para casa, penso que o tempo para considerar a
hipótese de sequestro se esvai depressa. Provar que meu pai foi levado de
nossa casa contra a sua vontade é impossível sem que haja contato do
sequestrador. Eu sei que papai não desapareceria sozinho, que se aquele
sangue é dele é porque lutou com alguém. Por que não entram em contato?
A desmotivação do delegado em relação a um possível contato de
sequestradores me faz concluir que as hipóteses de assassinato, latrocínio ou
suicídio são realmente as suas preferidas. Sem pistas sobre bandidos, sem
impressões digitais, sem corpo, o delegado pode encerrar as investigações por
falta de provas. E assim, é menos um problema para ele.
***
Ao entrar em casa, Olívia está a minha espera na cozinha, conversando
com Maria. Explico a elas o que se passou na delegacia e após ouvir atenta as
minhas explicações, de braços cruzados, Maria resolve dizer o que pensa.
Desta vez, sem nos poupar:
― Queridas, eu não quero desanimá-las, mas não acredito que o Dr.
Chevallier esteja vivo. As provas também não mentem. O sangue era do pai
de vocês. Vocês não deveriam criar falsas expectativas. E eu não vou
alimentar isso em vocês.
48
― Não, Maria, não são falsas expectativas! ― olho para Olívia e depois
para ela novamente. ― Não precisa acreditar em nós. Apenas não nos
desestimule, ok?
― Façam o que acharem que têm que fazer. Se eu puder ajudar, contem
comigo. Nunca vou abandonar as minhas meninas.
Ela nos abre os braços. Ficamos ali na cozinha, as três, abraçadas durante
alguns minutos. O calor do corpo de Maria é confortante. Ela é gordinha e tem
um cheiro de mãe.
― Hora de preparar o almoço! ― lembra-se ela, enxugando os olhos,
possivelmente porque estava chorando, calada e discretamente.
Maria se levanta num ímpeto e tira as panelas do armário, ainda
fungando, tentando disfarçar, de costas para nós, ainda sentadas à mesa. Eu e
Olívia nos entreolhamos, Sherlock e Watson, cúmplices como nunca.
Levantamos e depressa já estamos abraçadas a Maria de novo.
― Você não nos engana, sua boba! ― dou um beijo em sua bochecha
rosada.
― Eu sei. Vocês sempre foram espertinhas. Mas o que eu posso fazer?
Me emociono com vocês.
― Não chore, Maria ― pede Olívia. ― Nós estamos bem.
Conversando com Olívia e Maria sobre as amizades de papai, surgiu o
nome de um amigo antigo, um cientista bioquímico, colega de papai no
laboratório onde ele trabalha também dando palestras e cursos, o Dr. Alencar.
Deixando o almoço praticamente todo ainda no prato, corro até o quarto de
papai e tiro da gaveta de sua cabeceira o caderninho antigo de telefones.
Aquele caderninho demos a ele num aniversário, ainda antes de surgirem as
primeiras agendas eletrônicas. Apesar de fã de toda a gama de gadgets e já
detentor de um PDA moderníssimo, papai guardava e atualizava o caderninho
frequentemente. Ele sempre fez muitos contatos durante o dia. Meu pai
conhece meio mundo científico.
Sem hesitar, ligo para o celular do Dr. Alencar. Ele adivinhou o assunto
e marcou um encontro comigo no laboratório. Como eu e Olívia
suspeitávamos, chegando ao laboratório, não nos deixaram entrar porque só
permitem a entrada de pessoas autorizadas e credenciadas no sistema de
segurança.
***
Eu e Olívia aguardamos no estacionamento, à frente ao portão de entrada
do edifício alfa, o principal. Observamos o movimento, que é praticamente
nenhum aos sábados. Lembrei de papai me contar que costumava frequentar o
laboratório no sábado justamente por esta razão. Assim podia dedicar-se com
mais afinco às suas pesquisas. Avisto um carro Mercedes prata, o carro do Dr.
Alencar. Descemos do Mini e caminhamos até ele.
49
― Clara! Olívia! Vocês estão tão crescidas e bonitas! ― exclama o
doutor. ― A última vez que nos vimos, se não me engano, foi na primavera,
há um ano! Fomos ao Jardim Botânico, lembram-se?
― Estava tendo uma exposição de orquídeas exóticas e o senhor nos
ofereceu um vasinho ― refiro com um sorriso cordial.
― Exatamente. Mas me digam, como vocês estão? ― sua expressão
transforma-se de exaltação a pesar quase que automaticamente.
― Não muito bem, é claro. Para aliviar a angústia estamos em busca de
qualquer informação relevante que possa nos levar a descobrir o que
aconteceu com ele. E é por isso que queremos falar com o senhor.
― Vamos até o meu gabinete.
Acompanhamos o Dr. Alencar até a entrada do prédio alfa onde o
sistema de segurança funciona por escaneamento biométrico e senha. Ele
encosta o dedo polegar no aparelho instalado na parede e imediatamente
aparece uma fotografia sua no monitor solicitando uma senha. É confirmada a
entrada e todos passamos para dentro do prédio antigo. No elevador, somos
conduzidas até o quinto andar, onde ao final de um longo corredor paramos
em frente à uma porta, na qual uma placa prateada indica em letras garrafais:
Dr. Maurício Chevallier – vice-diretor. Dr. Alencar volta-se cabisbaixo para
nós e comunica o óbvio:
― É aqui que trabalha o pai de vocês.
Aquela inscrição apertou o meu coração. Estar presente aqui, em frente
ao gabinete vazio de papai, faz parecer ainda mais real o seu desaparecimento
e o nosso sofrimento. Eu e Olívia nos entreolhamos. Nunca estivemos aqui,
não conhecemos o gabinete por dentro, onde ele passa a maior tempo do seu
tempo. Onde, só eu sei, pode estar guardado um segredo que poderá mudar
drasticamente o rumo da humanidade.
Continuamos a caminhar até o final do corredor. E na última porta, o Dr.
Alencar insere seu cartão magnético. Digita uma senha liberando a entrada.
Não imaginava ser preciso um sistema de segurança desse nível. Decobrir isso
me deixa apreensiva. Sinto um frio na barriga quando me dou conta de que
por estes corredores passam diariamente grandes cientistas e que,
consequentemente, muitas descobertas são feitas aqui. A voz grave do Dr.
Alencar interrompe meus pensamentos:
― Então, em que posso ajudar? ― pergunta ele, sério, sentando-se na
poltrona de couro imponente que decora a sala de espera do seu gabinete. ―
Por favor, sentem-se também ― pede, cerimonioso.
― O senhor é a pessoa mais próxima de papai aqui no laboratório. Sabe
me dizer se nos últimos tempos ele recebeu alguma visita não habitual? ―
Sento-me noutra poltrona, menos imponente, mas não menos antiga. Olívia
prefere sentar-se no meu colo.
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― Seu pai sempre recebe muitas visitas, Clara. É complicado dizer. Eu
não conheço todas as pessoas que costumam visitar seu pai ― lentamente, ele
tira um cigarro do maço.
― Tente se lembrar ― insisto com o olhar fixo no dele.
― Clara, eu entendo que vocês queiram descobrir o que aconteceu, mas
a polícia fará este trabalho. Não se preocupe.
― Dr. Alencar, por favor. Viemos até aqui porque temos certeza de que
nosso pai foi sequestrado e corre perigo.
Ele arregala os olhos.
― Mas eu li nos jornais que... ― ele interrompe com um pigarro ― ...
que ele pode ter sido assassinado porque foi encontrado vestígio de sangue na
casa.
― Sim, é verdade. A polícia trabalha com todas as hipóteses, inclusive
essa. Mas eu e minha irmã sabemos que papai está vivo. Temos que encontrar
alguma pista que nos leve até ele. E por isso, qualquer coisa que o senhor se
lembre é muito importante neste momento. Receamos que o delegado encerre
as investigações por falta de provas ― coloco o cabelo por trás da orelha,
observando a forma metódica com que o Dr. Alencar expulsa a cinza da ponta
do seu cigarro.
― Mas a investigação só ontem começou. É muito cedo para concluir o
inquérito. Há outros procedimentos antes que isso aconteça.
― Eu sei. Mas quero me antecipar a estes procedimentos. O delegado já
deu a entender que não trata o caso do desaparecimento de papai com
urgência.
― Aham ― ele entope os pulmões de toxinas e depois expele a fumaça
satisfeito, como se prejudicasse menos a sua saúde. ― Eu queria realmente
poder ajudá-la, Clara. E a Olívia, tão jovem ainda e envolvida nisso. Não seria
melhor protegê-la e mantê-la afastada disso, minha filha? ― pergunta ele
dirigindo um olhar de ternura e ao mesmo tempo de compaixão para Olívia.
― Eu não posso estar de fora, Dr. Alencar ― responde-lhe minha irmã,
altiva, enquanto eu fito o vazio, pensando que de fato ele tem razão.
― A Olívia tem que saber de tudo, doutor ― não deixo que ele perceba
minha insegurança.
― É verdade que desde que a mãe de vocês morreu, ele nunca mais foi o
mesmo, distanciou-se dos amigos. Mas nessa última semana seu pai andava
muito misterioso, seu estado de instrospecção se agravou. Por isso é ainda
mais difícil ajudá-las. Chevallier praticamente fugia das pessoas! ― relata
com ênfase nesta última frase, com uma ponta de reclamação.
― Isso já é alguma coisa. Muito obrigada. Se o senhor se lembrar de
algo, nos ligue. ― concluo, já me levantando para sair.
― Claro... ― balbucia ele devagar. ― Mas espere! ― exclama levando
o dedo indicador ao ar.
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― Sim! ― encaro-o atentamente.
Os olhos de Dr. Alencar não estão nesta sala.
― Eu estava na cantina para almoçar com ele na terça-feira, conforme
havíamos combinado no dia anterior. Chevallier estava atrasado e liguei, mas
não me atendeu. Então fui até o gabinete e fiquei à porta, à espera. Ele se
aproximou com uma pessoa desconhecida. Era um senhor alto, bem vestido,
de cerca de trinta anos, com uma cicatriz enorme no rosto ― suspende o ar
por instantes e depois expira. ― Era uma companhia estranha, de fato.
― E então?
― Bom, seu pai disse que não podia almoçar comigo porque tinha um
compromisso de última hora e entrou com o tal homem no gabinete ― diz o
doutor coçando a barba rala no queixo.
Como vice-diretor, papai sempre recebeu muitas pessoas em seu
gabinete. Mas este me parece um fato relevante. Eu preciso saber o nome
daquela pessoa. Preciso chegar até ela.
― Depois disso viu de novo este homem? Ouviu o nome dele?
― Não. Mas também poucas vezes vi seu pai nesta última semana.
Depois de terça-feira, só o vi na quinta e ele não me dirigiu a palavra. Passou
por mim muito depressa.
Despedimo-nos e ele nos fez prometer que não nos meteríamos em
nenhuma confusão com nossa investigação paralela. Em troca, o fiz prometer
que entraria em contato comigo logo que soubesse ou lembrasse de mais
alguma coisa.
Chegamos em casa já com o pôr do sol e Maria nos esperava no jardim,
regando as novas flores que o jardineiro havia plantado pela manhã. Nosso
jardim está sempre impecável. Era o passatempo favorito de mamãe e papai
nunca descuidou daquele oásis particular.
Mais um dia que chega ao fim e nenhum contato por parte de quem o
teria levado. Não temos nada de concreto. Apenas especulações e frágeis
indícios de que ele andava mais estranho do que era seu hábito nos dias que
antecederam o seu desaparecimento. Nossa única certeza: papai está vivo e
precisando de nossa ajuda. Esta certeza, nem eu nem Olívia queremos deixar
morrer.
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9 - Mal´Hak
“Aos teus anjos Ele mandou que te guardem em todos os teus
caminhos.”
(Salmo 91)
O Sol dá lugar à Lua. Sozinha no meu quarto admiro-a da janela, bela e
branca. Seu reflexo dá a minha pele um tom mais alvo.
Minha irmã está no seu quarto. Disse que ia tentar dormir porque no dia
seguinte quer me acompanhar à igreja bem cedinho para rezar por papai.
Ainda é cedo, passa das oito e diante de toda a reviravolta que deu a
minha vida da noite para o dia, estou inquieta, ansiosa, sem sono algum.
Precisaria amarrar uma âncora ao pescoço que me lançasse à cama agora.
Quando a única alternativa parece ser esta, me viro para o computador. E, ao
me conectar ao Firefox, uma explosão acontece. De repente tenho cinco ou
seis janelas sobrepostas na tela, cada uma com a sua vida própria interferindo
na minha própria vida. São tweets acumulados na timeline e zilhões de
mensagens offline no MSN que daria para eu passar o resto da minha vida
respondendo.
Confesso que durante algum tempo tentei resistir ao apelo das mídias
sociais e ao de Chris (“se você não entrar no Twitter vai se tornar uma pária!”,
preocupava-se ela). Meu preconceito com a voluntária exposição da vida
privada e alheia só foi deixado de lado quando soube que até a Rainha
Elizabeth II se comunica legitimamente com seus súditos pelo Facebook e que
Deus (isso mesmo, vulgo “@OCriador”) tem um perfil fakeno qual está
onipresente, onisciente, onipotente e online com mais de 770.000 seguidores
no Twitter. Foi, então, que me dei conta de que é impossível viver (por que
não dizer „sobreviver‟?) sem conexão com a rede.
Preparo-me calmamente para o castigo, pois costumo acessar minha
conta no Yahoo! duas vezes por dia, o que não tem acontecido ultimamente.
Um clique e uma avalanche de e-mails inunda a caixa de entrada. Se cada e-
mail equivalesse a um floquinho de neve, eu estaria soterrada neste momento.
Muitos são de Christiane (só ela para encontrar mais de dez sinônimos para a
pergunta “como você está?”), outros de colegas da faculdade e desconhecidos
que alegam me conhecer (Lucas Maia, que “estudou” comigo no jardim de
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infância?! Diz que lembra das minhas tranças. Eu nunca usei tranças! Gabriel
S. Paiva, que dançou quadrilha comigo numa festa junina do colégio?! Ele
tropeçou no meu pé? Acho que lembro disso, mas e daí? Carolina Mendonça
Freitas, que fez aula de francês comigo?! Ela sentava atrás de mim? Espero
que não tenha reprovado!). Todos procurando saber de mim, alguns
preocupados e outros, a grande maioria dos “Lucas, Gabrieis e Carolinas”,
indiscretamente interessados numa notícia de primeira mão.
Enquanto apago tais mensagens indesejáveis, uma em particular me
chama a atenção. À primeira vista me parece uma daquelas correntes
chatérrimas em que a gente lê até o fim, quando aparece a condição coercitiva
de que se a mensagem não for enviada para um número infindável de pessoas,
uma desgraça sem precedentes poderá acontecer. Meu dedo desliza até a
tecla delete e faz pressão sobre a tecla.
É tão simples apagar quanto abrir e, na hesitação, me apercebo de que
minha curiosidade ainda está me cobrando sobre a história da visita do anjo
que Olívia me contou. Mesmo a razão dizendo não, meus dedos desobedecem
e mudam de trajeto clicando em abrir. Se for vírus, paciência. Em algum
momento meu antivírus tem que mostrar eficiência.
Enquanto o e-mail carrega na tela, mordo as unhas já descascadas da
mão esquerda.
Para: [email protected]
Enviada: quarta-feira, 17 de setembro às 20h07
Assunto: Visita do anjo da guarda
Clara,
Não durma esta noite. Preciso conversar com você.
― Credo! ― digo em alta voz.
Apago imediatamente a mensagem, já certa de que se o antivírus não
entrar em ação posso perder todos os meus arquivos e meus trabalhos da
faculdade!
Nada acontece. Na dúvida, desligo depressa o computador e fico olhando
apalermada para a tela em preto, estática e pensando com os meus botões:
“Que porcaria eu fui fazer?!”.
Mas agora não adianta chorar sobre a mensagem derramada. Há coisas
mais importantes para me preocupar do que com um vírus no computador.
Olho para o telefone e arquejo profundamente de desânimo. O melhor é tentar
54
adormecer mesmo sem sono porque amanhã vai ser mais um dia em que
preciso estar atenta a tudo.
Deito na cama e fico virando de um lado para o outro. Não encontro
posição confortável. Dobro e desdobro o travesseiro algumas vezes. Ele
parece mais baixo do que de costume e eu detesto travesseiro baixo. Será
implicância ou de fato estou sem sono mesmo, ou ainda, as duas coisas. Para
dificultar, faz calor e não entra sequer brisa pela janela.
Fecho levemente os olhos e tento pensar no buraco negro. Quando eu era
criança e tinha dificuldades em dormir, mamãe dizia para eu fechar os olhos e
pensar no buraco negro. Ela me explicou o significado de forma suficiente
para eu entender quando criança.
Por não ser nenhuma especialista como minha irmã ― só precisava
mesmo ter uma noção para me satisfazer ― recorri ao Wikipedia e confirmei
que o buraco negro é um fenômeno do Universo que suga qualquer planeta,
estrela, cometa, ou até mesmo luz, que se aproxima dele. Ele aumenta de
tamanho graças à energia desses objetos.
Até hoje uso esta definição para dormir. E é nesta hora que jogo no
abismo todas as minhas frustrações, todo o meu desânimo, toda a tristeza do
meu dia. É na hora de dormir que preciso me livrar daquilo que aconteceu de
ruim comigo.
― Maldito buraco negro... ― reflito em voz alta ao apertar o rosto
contra o travesseiro teimoso. ― Acho que esta noite ele vai aumentar muito
de tamanho!
Uma forte ventania sacode a cortina. É quando ouço uma voz masculina.
― Não vai, não.
***
Levanto bruscamente da cama e fico de pé. Não vejo ninguém no quarto.
Olho em volta, mas não sei determinar a direção da voz. Ela pareceu falar
dentro da minha cabeça.
― Quem está aí?! ― não há resposta em dois segundos, então insisto: ―
Apareça! Eu ouvi! Sei que tem alguém aqui! ― preparo--me para pegar da
parede o bumerangue que ganhei de papai da última vez em que viajou a
trabalho para a Austrália.
Meu quarto é repleto de objetos exóticos. Talvez eu devesse ter
escolhido a lança asteca que papai me trouxe do México. Mas continuo
procurando em volta de mim, segurando agora o objeto contundente com as
duas mãos, até que ouço a resposta.
― Vejo que se preparou para me receber.
Engulo em seco.
― Quem é você que entra no quarto de alguém sem ser convidado? Diga
logo quem é você!
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Sinto uma onda de bem-estar percorrer meu corpo, anestesiando meus
músculos tensos. Uma estranha sensação de conforto. A voz não parece
ameaçadora, pelo contrário: é uma voz acalentadora.
― Não tema. Não estou aqui para lhe fazer mal. Não precisa se proteger
de mim ― diz com ar de riso e continua: ― Adivinhe quem eu sou.
Baixo a guarda descendo o braço com o bumerangue.
A luz da Lua continua a iluminar o quarto e ainda com mais intensidade.
É quando reparo numa estranha sombra por cima da minha cama. Parece
distorcida, o contorno não é bem definido. Não parece uma silhueta humana.
Tento decifrar-lhe. Parece uma... uma asa?
Pisco os olhos e então percebo que o desenho sombrio se move ao
comando da brisa que entra pela janela. É a cortina que sacode formando
figuras amorfas na minha cama. Estou apenas impressionada. Ando nervosa
por causa dos últimos acontecimentos, com muito o que pensar em tão pouco
tempo. Ainda por cima recebo aquele vírus esquisito por e-mail falando sobre
a visita de um anjo.
Inesperadamente a cortina balança com um vento forte que derruba os
objetos sobre a penteadeira. O único objeto que se mantém de pé é um anjinho
de barro que comprei numa feira em Pernambuco.
Espera aí! ― penso comigo ― É só somar os fatos. A voz pode estar me
dando as pistas. Primeiro o e-mail sobre a visita, o bibelô sobre a mesa, a luz
da Lua fazendo sombra...
Penso alto:
Anjo?
Desta vez é uma brisa mais suave que invade o quarto e traz com ela um
aroma de flores. Ela acaricia meu rosto.
― Diga o meu nome três vezes para que eu possa aparecer para você! ―
pede a voz, ansiosa.
O perfume é inconfundível. Deixo-me invadir por ele e sinto o corpo
ficar mais leve. Minha mente me conduz até a praia onde estive nas duas
últimas noites. O aroma de jasmim foi marcante na última visita à praia. Eu
não estava sozinha.
― Diga o meu nome, por favor ― insiste, ainda mais ansioso.
Com a voz fraca, pronuncio:
― Nate... Nat...aniel...
― Diga com convicção ― pede ele.
Por um instante tenho dúvidas se quero mesmo vê-lo. Mas a curiosidade
não me deixa hesitar:
― Nath-Aniel! Nath-Aniel! Nath-Aniel! ― repito depressa.
Indecisa sobre em que direção olhar, mantenho-me inerte, de pé, ao lado
da cama e de frente para a janela. Uma sensação de torpor me invade
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repentinamente, o coração desacelera e a respiração se interrompe. Eu sei que
ele vai aparecer a qualquer momento.
A intensa luminosidade que entra pela janela começa a diminuir
lentamente, como se a Lua estivesse ficando encoberta. Debruço-me para fora
e elevo os olhos para o céu. Um eclipse?
***
A Lua fica encoberta pelo Sol. Não vejo nada em meu quarto. Estranho
que Olívia não tenha me dito nada sobre um eclipse esta noite. Ela não o
perderia por nada. O eclipse lunar está acontecendo para mim, só para mim.
Minha pretensão dá espaço à ansiedade. Já faz pelo menos cinco minutos
desde que pronunciei seu nome três vezes e ele não aparece. Terá desistido?
Bem devagar, a Lua volta a refletir a luz solar e eu consigo novamente
ver mais do que só o contorno dos meus pés. Levanto a cabeça e bem de
frente para mim está ele. Será que o próprio Sol deixou seu posto e desceu até
o meu quarto?
Durante breves instantes o clarão provoca um branco intenso na minha
visão. Aos poucos a luz se dissipa e minha vista o encontra.
Ele está vestido com uma túnica cinza grafite com bordados em fios de
prata, um capuz e uma capa igualmente cinza, deixando apenas as correias das
sandálias à vista. A túnica é lindíssima e lembra um roupão persa, uma veste
de um arqueiro aquemênida. Um cinturão de aço com uma inscrição
indecifrável para mim adorna sua cintura.
Enquanto meus olhos o admiram encantados ele me observa cauteloso e
com alguma curiosidade.
Durante alguns segundos nossos olhos se cruzam e algo magnetizante
acontece nos impedindo de desviá-los. Até que ele toca levemente o capuz,
que cai sobre suas costas.
Será real?
De uma coisa estou certa: nunca meus olhos tocaram tanta beleza.
Ele é mais alto do que me lembro, terá talvez dois metros. Os cabelos
escorridos e longos são sedosos, castanhos cor de mel e mesclados com fios
dourados. Os olhos verdes-esmeralda lampejam, orbitando num ponto
equidistante entre mim e algum lugar do vazio. Reparo que suas orelhas são
levemente pontiagudas, como as dos elfos dos livros de Tolkien. Não me
lembro de serem assim quando o vi pela primeira vez na praia. O nariz é
proporcional e retilíneo como o de um perfil romano. Não vejo textura em sua
pele, é etérea. Ele parece intocável e eterno, como uma pintura de Da Vinci.
Aguardo que ele diga alguma coisa. Seus olhos, fixos nos meus, parecem
atravessar o meu corpo e invadir a minha alma. Lembro desta mesma
sensação na praia. Mas desta vez não desviarei o olhar. Nem um segundo
sequer.
57
― Talvez você não devesse me deixar ler seus pensamentos ―
aconselha ele.
― Por quê? ― pergunto vendo meus olhos refletidos nos dele.
― Porque se fosse humano não gostaria que lessem os meus.
Ele baixa o olhar.
― Mas você pode ler meus pensamentos de qualquer jeito. Não posso
impedir. Ou posso?
Ele volta o olhar para mim.
― Pode impedir. Se não olhar nos meus olhos.
E sem jeito, eu confesso sentindo o rosto inteiro corar:
― Não consigo desviar o meu olhar.
― Por quê? ― pergunta depressa demais para me dar tempo de pensar.
Agora, instintivamente, consigo desviar.
― Você já deve ter lido a resposta no meu pensamento.
E ele diz:
― Prefiro ouvi-la.
― Porque você é simplesmente lindo. Desculpa... ― pronto. Eu disse
exatamente o que me veio à cabeça. E agora tudo o que consigo fazer é
escorrer as mãos nervosamente pelo cabelo, toda atrapalhada. ― Não sei o
que dizer... como agir diante de você...
― Não peça desculpas ― ele dá um largo passo no ar se aproximando de
mim e diz: ― Não quero assustar você, mas já que falou em estética, saiba
que eu não tenho forma. Na verdade, sou como um fóton, não passo de uma
partícula que reflete a luz. Como a Lua no sistema solar em que você vive.
Mas eu o vejo como um ser humano. A sua beleza vai além da estética, é
algo que transmite com o olhar. E ao mesmo tempo que sua figura é tão real
quanto imaginária, ele parece não ter matéria. Algo que não posso tocar. Ou
posso?
Desafio meus sentidos estendendo o braço em sua direção. Passo por ele
como se não houvesse nada em seu lugar, como se ele fosse uma imagem
projetada. Sinto um breve mal-estar e recolho o braço timidamente.
― Sou energia apenas, não tenho matéria. O que você está vendo agora é
uma espécie de código que sua mente reconhece. Com esta imagem, posso
agir e sentir como todo o ser humano. Posso sentir sede e frio, por exemplo,
mas de uma forma mais intensa. Quando um anjo como eu, um mal´hak, um
mensageiro, se movimenta, somos mais rápidos do que a luz. Você não sente
o tempo entre um movimento e outro.
Com um golpe de vento ele desaparece da minha frente. Mas seu aroma
de jasmim perdura e o encontro nas minhas costas. Agora elevo a cabeça, lhe
entregando os meus olhos. Não me importo em demonstrar o que me vai na
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alma. O que estou sentindo neste momento, ainda não sei ao certo. É mais do
que fascinação.
― Hoje me apresentei como humano e para isso deixei de emitir luz. Me
afasto do espaço celeste e me aproximo do mundo terreno.
― A ausência de luz... foi por isso que você usou o eclipse para eu
adivinhar ― constato satisfeita.
Olhando para mim com ternura, ele pronuncia pela primeira vez o meu
nome:
― Clara, eu tenho muito para lhe dizer.
De algum modo o fato do anjo ter pronunciado meu nome me fez sentir
mais próxima dele. Eu senti como se o conhecesse há muito tempo. E
certamente conheço. Ele deve saber de toda a minha vida, até daquilo que eu
ainda não sei.
― Temos a noite toda! ― exclamo impetuosa.
Ele declina o olhar. Não preciso ter o poder de ler a mente para perceber
que não; nós não temos a noite toda.
― Meu horário na Terra é de 1 hora e 32 minutos. E sempre durante a
noite, depois que a Lua está alta no céu.
Disfarço minha desilusão com um sorriso que me escapa incompleto e
desengonçado. Talvez ele tenha percebido.
― Então vamos aproveitar o tempo. Sei que não veio aqui jogar o jogo
da velha comigo até me fazer adormecer.
Ele talvez nem saiba o que é o jogo da velha, mas esboça o que eu penso
ser um sorriso.
― Sou seu anjo da guarda e não a tenho protegido como deveria. Não
era para estar passando por isso.
O rosto dele parece que reflete a Lua.
― Como assim?
Ele se aproxima mais de mim, o suficiente para eu me enxergar nas íris
dos seus olhos.
― Seu pai tem um segredo que você conhece. E eu sou responsável por
isso.
Ele não precisa ouvir para saber de minhas apreensões.
― O que seu pai pretende fazer vai contra a evolução natural da
humanidade e instiga a ambição dos inimigos do Criador.
― Está me assustando. Sei que meu pai está errado, mas ele não é um
monstro. É um homem de bem.
Sinto necessidade de ser ainda mais veemente e de advogar por meu pai.
Mas lembro mais uma vez de que, como anjo, ele deverá saber ― ainda mais
do que eu ― tudo sobre ele. E sobre mim.
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― Não quero assustá-la, mas não há outro modo de lhe contar e fazê-la
entender o risco em que ele se colocou, também a você e a toda a humanidade.
Paramos de falar e o silêncio se instala unindo nossos olhares mais uma
vez.
― O que exatamente o segredo do meu pai tem a ver comigo e com
você?
― Eu sou o seu anjo de nascimento, o seu guardião. Sou
o mal´hak designado para protegê-la do primeiro ao último dia da sua vida.
Sou também o anjo da guarda de seu pai.
Inclino a cabeça para o lado pensando sobre o que ele acabou de me
revelar.
― Será por isso que embora sejamos tão diferentes, entre mim e ele
exista tanta cumplicidade?
― Sou um elo entre vocês ― seus olhos obscurecem repentinamente. ―
Aproveitei isso para convencer Maurício a lhe revelar o segredo.
Propositadamente ele não pode se lembrar do sonho que teve comigo, mas
conversamos. Ele lhe contou, mas não a escutou como eu pensei que
escutaria. Fui inconsequente e agora você corre perigo.
― Mas você sabe onde está o meu pai?!
Ele assente com a cabeça. Sinto meu coração bater mais forte, como se
me lembrasse de que ainda tenho pulsação depois dos últimos dias de
angústia.
― E ele está bem?
― Neste momento seu pai está preso e sendo ameaçado, mas está bem
de saúde. Eles querem que seu pai finalize suas experiências.
Meu rosto se transforma num ponto de interrogação gigante.
― Por que os bandidos querem essa experiência?
― Não são exatamente bandidos. É uma longa história.
De repente seu olhar se torna distante, como se visse em várias direções
ao mesmo tempo.
― Está quase na hora.
Ao ouvir aquelas palavras não desfarço a decepção.
― Mas já? Tenho tanta coisa pra perguntar! ― ele me encara expectante
e eu aproveito. ― Quando você apareceu na praia, usava roupas humanas e
até falava com um sotaque carioquês... Por que agora apareceu como um anjo
de verdade?
― Essencialmente e por enquanto podemos nos encontrar de dois
modos, Clara: em sonho ou em visita. Em sonho, eu posso apresentar minha
figura humana como quiser. Em visita, não.
― Então eu estava sonhando mesmo... ― reflito impressionada. ― mas
foi o mesmo sonho ambas as vezes... quer dizer... até você aparecer!
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― Da primeira vez eu não quis que soubesse que estive lá, não era o
momento ainda. Eu a tirei de lá, mas você não me viu, apenas sentiu a minha
presença de uma forma insconsciente, ao ponto de ter imaginado ver areia nos
pés quando a areia não estava lá. Da segunda vez, você precisou
verdadeiramente de mim e então eu apareci.
De tudo o que ele acabou de dizer, eu só retive o mais importante: posso
estar com ele em sonho.
― Então posso sonhar com você mais vezes?
― Pode, mas deve haver sintonia entre nós. Não é fácil no começo.
Normalmente acontece por acaso provocado porque preciso alertá-la sobre
alguma ameaça iminente. Ou então você pode provocar o nosso encontro
explorando seu subconsciente ― ele se dirige para a janela, os pés sem tocar o
chão.
Percebendo que aquela é a hora da despedida, ainda tento mais uma
pergunta:
― Quando...?
E de repente vejo Nate desintegrar-se em pontinhos de luz que se unem e
se transformam numa única partícula. E como um feixe de luz ele voa até
desaparecer da minha vista.
Sei que muitos estudiosos tentaram e tentam explicar a essência e a
aparência dos anjos. As figuras barrocas de feições infantis, corpo roliço,
bochechas rosadas e cabelinhos encaracolados estão muito distantes da
realidade. Sinto algum alívio por isso. Aqueles anjinhos fofos nunca me
convenceram mesmo. Penso em Dionísio, Santo Thomás de Aquino,
Hildegarda de Bingen, Dante Alighieri e em outros estudiosos sobre anjos. Eu
queria ter me interessado por angelologia antes. Talvez eu agora entendesse
porque estou tendo o privilégio que outros não tiveram.
E diante disso, uma pergunta não quer calar: por que eu?
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10 - Domingo
“Tomei a decisão de fingir que todas as coisas que até então haviam
entrado na minha mente não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos
meus sonhos.”
(René Descartes)
Não consegui pregar o olho.
O domingo amanheceu ensolarado e minha vontade é passar o dia todo
na cama, recordando a noite da praia e a de ontem. Para ser franca, estou
simplesmente pensando nele, com um sentimento de culpa terrível.
Mas quando lembro de seu rosto, seu olhar, sua voz, o tempo para.
Imagino-o diante de mim, como homem e como anjo, recordo com precisão
cada detalhe. Faço força para mantê-lo aqui, mas quando as duas imagens dele
se confundem e desfazem, fico indignada comigo: “O que está acontecendo?
Estou confundindo tudo.”
Saber que minha família corre perigo me abalou profundamente. No
entanto, o fato de pensar em Nate com essa confusão de sentimentos é o que
me deixa mais instabilizada. Como posso pensar tanto em Nate quando meu
pai está em perigo?
Que angústia! Preciso ir à igreja rezar muito, me penitenciar. Agora e
depressa!
Não encontro explicação para o que estou sentindo. Sei que nunca
precisei tanto de um ombro amigo como agora. Ombro amigo? Por mais que
eu tente me enganar, de agora em diante, sei que meu coração e minha razão
estarão em eterno confronto. Nas duas vezes em que estive com Nate, minha
mente pensou uma coisa e o meu corpo reagiu a outra.
Lavo o rosto com água fria. Minha imagem no espelho do banheiro
envergonha-se de mim.
Visto uma roupa bem discreta, uma blusa bege bem larga com a estampa
do Gato Risonho e calça legging preta e corro para o quarto de Olívia. Pela
porta entreaberta, vejo que ela ainda dorme. No relógio sobre sua mesinha de
cabeceira, os ponteiros marcam ainda seis e dez. Desespero ao pensar que a
missa é só às nove da manhã. Não consigo esperar tanto tempo. Abaixo-me,
dou um beijinho em minha irmã e deixo seu quarto encostando a porta.
62
Na cozinha, procuro uma maçã e não encontro. Antes de sair, deixo um
bilhete na porta da geladeira:
Olívia, eu precisei sair. Peça a Maria que te acompanhe
até a Missa e depois passem na feira e comprem frutas.
Estarei em casa quando voltarem. Amo você.
Beijos, Clara.
***
Em dia sem trânsito chego à igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema,
em menos de meia hora. As poucas pessoas que andam na rua dirigem-se para
assistir à missa das sete da manhã.
Sento-me no último banco, longe do altar. Meus pensamentos e
sentimentos, em conflito, me condenam. Mesmo cercada de pessoas
ajoelhadas, não me sinto confortável.
Sem perceber, me ponho a admirar a abóboda central, os anjos nos
afrescos. Meus olhos varrem os vitrais, as esculturas, e depois voltam-se para
as pessoas, concentradas em suas preces. Dez minutos depois ainda as
observo, cada vez mais aflita por não conseguir me abstrair da possível
presença de Nate aqui. E neste lugar de paz, mais do que em qualquer outro.
Ao término da celebração as pessoas se dispersam e a igreja se esvazia
lentamente. Espero todos saírem para me aproximar do altar. Tenho apenas
uns poucos minutos antes do início da próxima missa. Ajoelho-me contrita
diante da cruz e, em posição de oração, peço perdão por meus pensamentos,
agradeço por todas as graças e, em especial, por papai estar vivo. Por fim,
agradeço a visita de Nate com o objetivo de me alertar contra o perigo que
está por vir.
Subitamente, uma brisa perfumada de jasmim passa por mim, não dura
muito, mas o suficiente para que eu me dê conta de como fui abençoada pela
oportunidade de conhecer o meu anjo da guarda. Ao terminar, meus olhos vão
de encontro à duas estátuas de anjos guerreiros que ladeiam o altar. Talvez ele
esteja agora ao meu lado.
Deixo a igreja com o coração mais leve, mas não menos culpada.
Resolvo caminhar na praia e espairecer um pouco. Sentir o cheiro da maresia
me faz bem. Perco a noção das horas contando as ondas que vem e vão
enquanto arrasto a areia com os pés.
Antes de atravessar a avenida ao encontro do mar, avisto Christiane com
seu noivo Gustavo, e meus amigos Marcus e Jéssica, no quiosque. Eles estão
conversando alegremente e bebendo água de coco. É melhor que não me
63
vejam porque não sou boa companhia para ninguém. Dou meia volta quando
ouço uma voz aguda romper o som do tráfego:
― Claraaa! ― exclama Chris com três pulmões.
Ela me viu. Tarde demais. Não posso fugir. Me aproximo da mesa deles.
― Oi, gente! ― exclamo disfarçando o mal-estar.
― Deixou a burca em casa, Clara! ― brinca Gustavo.
Nos entreolhamos sem nada dizermos. Ninguém se atreveria a rir da
piada, mesmo que tivesse graça. Mas Gustavo, cujo radar nunca funcionou
direito, esperava outra reação e ainda tentou explicar:
― Finalmente largou o disfarce e resolveu aparecer para os amigos!
― É natural que ela andasse sumida, Gu. O pai dela... ― sussurra Chris
ao pé do ouvido dele.
Ele dá um tapa na própria face, mas quem reage com interjeições de dor
somos nós.
― Ô Clara, eu esqueci completamente... foi mal... como é que você está?
― pergunta ele, super sem graça, arrastando as palavras.
― Estou bem ― digo com um sorriso meio forçado e, reparando nos
rostos de interrogação à minha frente, completo: ― É verdade, gente! Eu
estou bem! Não quero clima, ok?
― Claro, claro... ― concorda Marcus depressa.
― Ninguém vai fazer clima, Clara ― complementa Jéssica balançando a
cabeça.
Conversamos sobre tudo e quando esgotamos o papo de botequim
partimos para debates mais sérios como as perspectivas profissionais diante
das opções de residência. Meu olhar, no entanto, esteve e está distante,
perdido, focando o horizonte por entre os dois casais de namorados que
piscam apaixonados e evitam se beijar só por minha causa. Não importa o que
eles não façam, posso até ouvir os violinos e „Al di Lá‟ tocando ao fundo. Eu
já vi esse filme, „O Candelabro Italiano‟, um marco do romantismo no cinema
dos anos 60, mas não estou sintonizada neste canal agora. Meu canal atual é
algo como o Discovery Channel e meu programa favorito, algo como o
„Caçadores de Tempestades‟. Sintomático, tendo em vista o meu status de
solteira. Antes que essa conclusão começasse a me deprimir e os namorados a
suspirar, chegou o momento de deixá-los de fininho.
Arrasto a cadeira vermelha para trás, começando a levantar.
― Bom, amigos, já vou indo.
― Já vai, amiga? Fica mais! Vamos à Chaika tomar um mega sunday!
Vem com a gente... ― pede Christiane, quase choramingando. ― Eu vou
pedir aquele sabor que a gente sempre divide... ― ela até passa a língua nos
lábios cor-de-rosa cintilante. ― Chocolate italiano! Mmmmm!
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É difícil não ceder ao apelo de seus grandes olhos verdes e o gostinho do
chocolate já derretendo na memória gustativa.
― Italiano... ― digo baixinho engolindo a saliva. ― Desculpa, mas eu
tenho mesmo que ir, Chris.
Diante dos rostos de frustração dos meus amigos e pensando que lhes
devo alguma explicação, encaro-os um por um e faço uma confissão:
― Vocês sabem que minha vida anda complicada. Embora eu não queira
falar no assunto e também acho que não é legal encher vocês com essas
coisas, quero que saibam que todos são muito importantes pra mim.
― A gente sabe! ― retruca Jéssica.
― É Clara, você não tem que se explicar ― continua Marcus. ― Tem
todo o direito de estar distante, de querer um tempo da gente.
O porta-voz entendeu tudo errado.
― Não! Mas não é isso, Marcus! Não quero um tempo de vocês, de jeito
nenhum.
Nosso abraço quíntuplo quase me faz ir às lágrimas. Somos um grupo
pequeno, mas muito unido. Não me sinto bem em não lhes contar o que está
acontecendo, pois sempre trocamos confidências. É verdade que preciso
urgentemente desabafar, mas enquanto eu não tiver a noção exata da dimensão
dos meus problemas, o melhor é preservar meus amigos.
***
O Arpoador é o meu lugar preferido no Rio de Janeiro. É para lá que
caminho, para onde possa libertar meus pensamentos. A imensidão do mar
provoca esta sensação de amplitude, de infinito. Imagino meus pensamentos
partindo como gaivotas que desaparecem no horizonte para sempre. Só que
elas vão e vêm, tal como os meus pensamentos, teimosos e traiçoeiros.
O esforço para não pensar em Nate é sobre-humano. E pensar no que é
sobre-humano me faz pensar nele. A natureza me faz lembrá-lo, pois sinto a
sua presença em todo o lugar e em tudo o que vejo: nos pássaros, nas
montanhas, no mar, no céu, na própria pedra do Arpoador. Estou cercada de
natureza. Estou cercada por ele.
Sentada na encosta, ouço as ondas baterem nas rochas, crianças rindo e
saltando para a água. Vejo casais de mãos dadas, os olhares cúmplices e as
trocas de carinhos. Vejo também pessoas solitárias, como eu; contemplando o
mar e a paisagem, absortas em seus pensamentos.
***
Estaciono o carro na garagem. Olívia está no jardim, sentada na escada à
frente da porta de casa. Por sua expressão fisionômica e corporal, é logo de se
notar que não está nada contente. Tem os braços cruzados, o rosto sisudo e os
olhos apertados e cabisbaixos. Aproximo-me dela e toco em seu cabelo loiro,
ao que ela desvia rapidamente.
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― Por que está chateada? ― pergunto.
Ela levanta os olhos na minha direção:
― Você saiu sem mim.
― Olívia, eu não posso fazer tudo grudada em você! ― digo,
rispidamente.
― Somos uma dupla ― afima ela, demonstrando, enfim, o lado infantil
que andava evitando há dias. Eu já sentia falta disso.
― Precisei sair sozinha, mas já estou aqui e tenho coisas importantes
para contar.
Os olhos dela recuperam o brilho habitual, refletindo a sua curiosidade.
Enquanto Maria prepara um suco de manga, estamos sentadas nas
cadeiras à beira da piscina, onde está mais fresquinho, abrigadas do Sol forte
das onze. À minha frente, Olívia está na expectativa de que eu comece logo a
falar e suas perninhas balançando no ar, como um relógio tiquetaqueando, são
a expressão de sua ansiedade.
Mais uma vez as palavras me fogem. Procuro a melhor forma de lhe
contar que eu também recebi a visita de um anjo. Olívia já abriu um
precedente para o assunto. O que me incomoda nesta situação não é o juízo
que ela fará de mim, mas o quanto eu mesma desconheço os limites da minha
racionalidade.
― Olívia, eu preciso te contar uma coisa ― ela retribui meu olhar
incisivo e aguarda sem piscar. ― Um anjo me visitou.
Minha irmã continua a me encarar. Não sei como consegue ficar tanto
tempo sem piscar. Não sai nenhuma palavra de sua boca pequenina. Então,
continuo:
― Disse que papai está bem.
Mal termino de pronunciar a última palavra, Olívia já se atirou ao meu
colo entusiasmada.
― Calma, calma... ― afasto-a um pouco e concluo: ― É verdade, são
ótimas notícias, mas... ― interrompo por instinto ― ... mas papai ainda corre
perigo e nós também.
― Mas eu já tinha dito que precisamos nos preparar.
― Eu sei. Mas ouvir diretamente de um anjo é um tanto assustador.
― Eu te disse! Não é bem um sonho, mas também não é um pesadelo...
Silenciosamente, discordo de minha irmã. Para mim, foi um sonho.
― O anjo te disse mais alguma coisa? Disse onde está papai?
Balanço a cabeça.
― Mas ele vai aparecer de novo? ― pergunta, ansiosa.
― Espero que sim! ― minha exclamação quase que foi ouvida pela D.
Filomena, nossa vizinha meio surda que avisto passar por nossa cerca.
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Um pouco mais aliviada com as notícias, ela insiste que eu entre na
piscina com ela. Apesar do Sol convidativo, não tenho vontade de me divertir.
Hoje não tenho vontade de nada, de tanto que penso na vida. Afinal, não é à
toa que existe o domingo.
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11 - Corcovado
“O acaso é, talvez, o pseudônimo de Deus, quando não quer assinar.”
( Théophile Gautier )
Do meu quarto, ouço as risadas na piscina. Não sei qual delas, se Olívia
ou se Maria, é a mais criança.
Além das risadas estridentes, só mesmo o cantarolar de passarinhos
rompe o silêncio em meu quarto. Não quero nenhum som de fora. Preciso me
concentrar em mim. Então, ligo o iPod e deixo a música tomar conta do
espaço e de mim.
Deitada, observo o teto. Quem pensa que o teto não tem nada de
interessante, está enganado. O vazio que ele transmite pode ser inspirador.
Principalmente se o objetivo é não pensar nada. Posso muito bem não pensar
em nada se ficar olhando para o teto o dia todo.
A questão é que sou muito dispersa, e mesmo no vazio do teto, eu vejo
além: ele é branco, plano e como minha casa tem o pé direito alto, não
consigo chegar até ele sem uma escada. Por isso, neste momento ele é
intocável.
E inalcançável. A palavra ecoa na minha mente. Nate. Um nome que não
sai da minha cabeça.
Posso tentar de inúmeras maneiras que não consigo parar de pensar nele.
Tenha a santa paciência! Até o vazio me lembra Nate.
Vazio...
***
De repente ouço meu celular tocar. O número é desconhecido.
― Alô?
― Clara, preciso falar com você. Agora.
Aquela voz é inconfundível, mas o tom é grave.
― Nate?! ― mal consigo controlar um grito que fica engasgado na
garganta e gaguejo ― Como...? Co-como é que você...? Você tem celular?
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― Posso ter tudo no sonho. Ou... quase tudo ― responde, com reservas,
mas me ajudando a concluir, animada:
― Isso é um sonho?
― Olhe pela janela.
Corro para a janela e avisto-o, acenando para mim, encostado no mesmo
jipe que usou na noite da praia, um Range Rover Evoque prateado. É tudo tão
real e surreal ao mesmo tempo. Nunca pensei que pudesse sonhar e ter
consciência de estar vivendo o sonho.
Nate está vestido com uma regata branca e uma bermuda de praia num
tom de azul-celeste, havaianas nos pés e segura os longos cabelos com os
óculos escuros na cabeça. A imagem de um típico carioca.
― Você está bem... fantasiado.
― Vou tomar como um elogio. Obrigado.
Acho que “disfarçado” teria servido melhor. Mas agora é tarde. Isso para
não dizer “gato”, “gostoso”, “interessante” e por aí afora. Ele fita o vazio, não
me olha nos olhos, certamente para não ser obrigado a invadir meus
pensamentos. Melhor para ele. Como se não tivesse percebido que minha
respiração falhou no momento em que vi os músculos do seu bíceps se
contraírem ao amarrar o cabelo com um elástico.
― Temos um problema.
― Eu imaginei. Você não apareceria se não fosse por isso.
Ele abre a porta do carro para mim.
― Não necessariamente. Eu poderia aparecer por acaso ― retruca.
― Eu não acredito no acaso. Acasos não existem.
Nate dá partida no carro e se vira para mim.
― Esta é uma meia-verdade, Clara. Podemos provocar o acaso quando
necessário. Conhece o conceito de sincronicidade definido por Carl Gustav
Jung?
Balanço a cabeça positivamente.
― Aquele que procura explicar eventos que se relacionam numa
coincidência significativa...
― A interferência dos anjos na vida dos humanos é por vezes
interpretada como uma coincidência temporal, onde não há relação causal; há
um significado que vem de encontro com o subconsciente da pessoa. Jung
podia estar muito inspirado quando escreveu sua teoria, mas entre o céu e a
terra, se existe um significado em tudo o que acontece, existe uma causa que
determina que aconteça.
Jung provavelmente teve tantos insights ao escrever seus estudos que
ficou confuso... como eu estou agora.
― Os humanos não são seres comandados. Têm livre-arbítrio. No
entanto, há momentos em que precisamos interferir. E são estes momentos
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que provocamos que vocês interpretam como o acaso. Tudo o que acontece,
inclusive o que não se sabe explicar, tem uma razão; acontece para manter o
equilíbrio. O acaso é um artifício e há muitas formas para manifestá-lo.
Enquanto ele conversa, dirige e gesticula, meus olhos percorrem cada
centímetro do seu rosto. E não só. Das suas mãos, dos braços, da nuca, dos
cabelos presos, do tórax. Apesar de um dos meus sentidos estar
completamente refém de cada detalhe dele, procuro ouvi-lo com atenção.
― Os anjos também não são comandados, mas têm limitações nos seus
poderes e interferências. Não podemos manipular o livre-arbítrio dos homens,
por exemplo. Podemos apresentar uma finalidade a ser atingida e o homem
cumpre ou não, respondendo pelo que fizer de errado ou pelo que deixar de
fazer certo, por suas ações ou omissões. Toda causa gera um efeito. Essa
responsabilização também é imposta aos seres celestes.
Ele faz uma curta pausa e depois revela:
― Como começei a explicar no último encontro, foi isso o que fiz com
seu pai durante um sonho. Agora eu tenho que consertar o meu erro, é minha
responsabilidade por ter interferido com imprudência. Então, Clara, se existe o
livre-arbítrio entre o que é matéria e o que é espírito, entre o que é natural e o
que é sobrenatural, existe o acaso também. Não são necessariamente
conflituantes, pois nada está determinado, embora esteja previsto. Mas é
preciso que haja um equilíbrio em tudo. O acaso não precisa acontecer
sempre, por acaso. Entendeu?
Não quero admitir diante de sua empolgação ― ele é sempre tão efusivo
ao me explicar o inexplicável ―, mas tantos conceitos e interpretações me
deixam confusa.
― Isso é um pouco, ou melhor, bastante complexo... e contraditório.
Você distorceu, inverteu e reinventou totalmente o conceito de acaso. Sempre
acreditei que tudo tem uma razão de ser, um propósito, uma finalidade. Pelo
menos agora sei que faz sentido a ideia que sempre tive de que o que não
acontecesse para o meu bem, mesmo que contrariando a minha vontade, teria
uma motivação divina.
Encaro-o; ele tem uma expressão enigmática no perfil sereno.
― É consolador pensar assim e, como eu disse, não está totalmente certo
nem totalmente errado. A verdade não é absoluta. Clara, o ser humano está
sempre tentando encontrar explicações para tudo. O que nunca foi
questionado, será. O que já foi questionado, voltará a ser ― e ele diz, por fim.
― Os referenciais do homem podem mudar o tempo todo, mas o Universo
continuará em seu equilíbrio, inalterado.
Estou atônita e sem fala.
― Mas não é para filosofar que eu estou aqui.
Que alívio.
70
― Como eu imaginava, os renegados vêm atrás de você e de sua irmã.
Eles chantagearam seu pai e ele cedeu. Vai revelar a fórmula da experiência.
E será amanhã.
Arregalo meus olhos mais pela precisão da previsão do que por ter me
tornado com Olívia objeto de barganha de diabinhos.
― Você precisa me explicar exatamente o que está acontecendo. Eu só
conheço alguns trechos da história. Não consigo tirar nenhuma conclusão
segura assim ― protesto, soltando meu cabelo do rabo de cavalo.
O vento que entra pela minha janela o desperta e ele me vira o rosto,
desviando sua atenção da estrada. Se eu não tivesse certeza dos seus dons,
neste momento estaria apavorada com o gesto imprudente. Mas não dá para
pensar em imprudências agora. Eu só vejo aqueles olhos, sempre tão
dispersos, estacionados em mim. As pupilas contraídas, fixando em mim o
foco de sua visão. Em mim. Parece que eu o consegui distrair. Mesmo que por
um milésimo de segundo, fui o centro de toda a sua atenção.
Os pneus quase nem tocam o asfalto. É como se voássemos pelas pistas.
Uma coisa passa pela minha cabeça, mas estou sem jeito para perguntar.
Balanço a cabeça negativamente dizendo a mim mesma “Bobagem, pergunta
boba...” e ele percebe.
― O que foi? Algum problema?
― Não. Quer dizer, muitos. Você sabe quais são ― respondo um pouco
sonsa.
Não convencido, ele insiste:
― No que você está pensando?
― Nada.
― Impossível ― permite-se olhar para mim por dois segundos. ― Eu
posso descobrir.
― Não seja malvado.
― Eu sou bonzinho ― diz, erguendo o canto esquerdo dos lábios.
― É que... eu estava aqui pensando e fiquei curiosa com uma coisa. Os
anjos têm asas?
Diante de sua mudez, fico ainda mais sem graça. Sinto as bochechas
queimarem e ponho as mãos nelas para confirmar enquanto ainda tento
emendar o constrangimento:
― É uma pergunta idiota, eu sei... esquece! ― abaixo a cabeça e apoio-a
com as mãos na testa, tapando meus olhos. ― Como você usa o carro para se
locomover...
― Temos ― e com a mesma naturalidade, comenta: ― É que dirigir é
mais divertido do que voar.
Eu poderia perfeitamente discordar dele, mas agora sou eu que perco a
fala imaginando como serão as asas dos anjos. Imediatamente me vem à
71
mente as asas de Ícaro. É preciso um bom par de asas para sustentar um
homem com o tamanho de Nate. Olho para o seu perfil irretocável e
imediatamente volto a mirar em frente, não conseguindo distinguir a paisagem
borrada que vai ficando para trás. E ele continua:
― Sua pergunta não é idiota, Clara. Desde os tempos mais antigos o
homem tenta ilustrar a imagem dos anjos. Sempre que podemos, ajudamos,
claro. Mas há algumas que, não necessariamente por vontade do artista,
precisaram ser deturpadas. Refiro-me principalmente às pinturas
renascentistas ― explica ele, fazendo uma careta que não prejudica em nada a
sua bela fisionomia.
― Se você está se referindo àqueles anjinhos gorduchinhos, realmente
eles não tem nada a ver com a realidade... ― ainda me sentindo mais
ignorante, aperto os lábios de vergonha, pensando: “Boca fechada de agora
em diante”.
― Clara, você é muito engraçada ― diz ele, abrindo um sorriso.
― Você acha? Eu diria antes “sem graça”.
E os dois rimos do trocadilho. É quando olho pela janela e reparo no
quanto nós subimos. Nate freia o carro bruscamente e volta-se para mim.
― É aqui.
Estamos no alto do Corcovado. Não reconheci o caminho. O que ficava
para trás parecia uma pintura impressionista, eu só enxergava a variedade dos
tons de verde da Mata Atlântica, misturados como numa paleta. Desço do
carro e Nate já está plantado diante de mim. Indago-me do porquê de ele ter
escolhido este local, tão alto, tão distante...
― É tão mágico! É que vou lhe falar de coisas que fogem ao natural.
Elevo os olhos. Sobre nós, imponente, nos abraça a estátua do Cristo
Redentor.
― Temos uma testemunha. Ai de você se contar alguma mentirinha! ―
brinco, piscando o olho para ele.
Ele esboça um ar de riso, mas logo é como se o tempo fechasse. Seus
olhos enublecem.
― Vou lhe contar uma história.
Não há ninguém no Cristo à esta hora. Pela posição do Sol no horizonte
já está perto de escurecer. Sozinhos no Corcovado com a cidade maravilhosa a
nossos pés...
Até onde os sonhos podem nos levar?
72
12 - Poderes
Estamos sentados na escadaria, de costas para a estátua e de frente para o
pôr do sol.
Nate se levanta e estende a mão para mim. Eu já tinha sentido o seu
toque aveludado quando ele foi ao meu encontro na praia, mas não sabia que
ele era um anjo. Sua mão me transmitiu energia, sua pele era morna. Mas
desta vez a descarga transferida me incomodou mais. Encolho-a por reflexo e
ele pede desculpas, sem jeito.
― A energia em mim não é constante. Não a posso controlar porque a
intensidade depende do que estou sentindo.
― E o que está sentindo?
Ele evita olhar nos meus olhos atrevidos. Vira-se de costas para mim, de
frente para o Cristo e diz:
― Não sei bem. Não era para estar assim. O magnetismo deveria ter sido
neutralizado, o que acontece quando atravessamos o campo dos sonhos. Mas
quando estou com você... ― ele inspira forte.
― Quando está comigo...
E ele continua com a expressão séria:
― Acontece o oposto do que deveria.
Toco seu ombro.
― Desculpa por provocar isso...
E esta foi a mentira mais deslavada que disse em toda a minha vida.
― O problema não está em você, Clara. Está em mim ― ele sustenta
meus olhos, e diz: ― Enquanto os anjos do mal estiverem ameaçando você e
seu pai, estarei mais perto do que sempre estive, independentemente da sua
vontade.
Como se eu não quisesse a presença dele...
― Eu me sinto protegida com você ao meu lado. Não tenho medo de
nada ― digo com a mão ainda pousada em seu ombro.
Ele se esquiva.
― Eu a coloquei em risco quando deveria protegê-la.
73
Percebo que este sentimento de culpa está sendo um grande desafio para
ele.
― Nate, não se culpe. Você não tinha como saber.
Ele se distancia de mim e começa a descer as escadas.
― Eu tenho o dom da premonição.
Sei que há muito ainda a descobrir sobre Nate. Cada revelação é uma
surpresa, embora eu já saiba que posso esperar qualquer coisa. Qualquer coisa,
mesmo.
― Então você previu o sequestro do meu pai?!
Ele já está distante de mim o suficiente para também inflexionar a voz
mas não precisa. Eu o ouço da mesma forma como se ele falasse ao pé do meu
ouvido.
― Não. Posso prever os acontecimentos, mas realmente há fatos que não
existem, não estão determinados. São mutáveis porque o ser humano é guiado
o tempo inteiro pelos sentimentos. É difícil captá-los porque se misturam. Eu
sentia que algo ruim ia acontecer e senti a aflição do seu pai. Ele me
confundiu e eu envolvi você porque sempre me pareceu muito equilibrada.
― Então a sua intuição se enganou quanto a mim? ― pergunto, com os
olhos apertados.
De repente ele está à minha frente de novo. Há um segundo estava lá
embaixo no início da escadaria e agora consigo ver as íris dos seus olhos mais
verdes do que nunca.
― Seus sentimentos são confusos. Em toda a minha existência, só
conheci um ser humano assim tão difícil de decifrar ― ele fita o vazio com o
rosto inexpressivo.
Balanço a cabeça, inconformada.
― Eu sabia... a culpa é minha! Eu te confundi. Você confiou em mim!
― Não! Não pense assim! ― ele faz menção de esticar o braço para me
tocar, mas o recolhe depressa. ― Essa sua inconstância não é culpa sua, nem é
errado o ser humano ser assim. Os laços entre vocês são muito fortes e o fato
de estar constantemente na fronteira dos sentimentos é uma característica
humana. Você tem uma forte relação com o seu pai e isso é normal, Clara. O
que foge ao normal é um anjo interferir, como eu fiz, na vida de seus
protegidos.
Ele pensa que assumindo toda a responsabilidade me fará sentir menos
mal. Nate pode até ser o meu guardião, mas ainda tem muito a conhecer sobre
mim. E eu ainda não sei se quero que ele me conheça realmente. Pode não
gostar do que vai descobrir.
O Sol começa a descer rapidamente. O vento sopra mais forte e, numa
rajada, meus cabelos atingem violentamente meus olhos. Tiro do bolso o
elástico de cabelo. Estamos de novo sentados na escadaria, vidrados no
movimento descedente do Sol em direção ao mar.
74
― É a primeira vez que vejo o pôr do sol daqui.
Enquanto só posso admirar durante escassos segundos, Nate olha
fixamente para o Sol durante pelo menos um minuto. Que inveja! Sem nunca
desviar os olhos daquele momento mágico que transforma o dia em noite, ele
diz:
― Como deve imaginar, eu já vi muitos.
― Não pode haver pôr do sol mais perfeito do que este, visto aqui de
cima...
― É um fenômeno que sempre se repete ― ele volta o rosto níveo para
mim. ― Mas hoje ele é único.
Passa pela minha cabeça perguntar por quê. Passa pela minha cabeça
pretenciosamente concluir o porquê. Mas não tenho coragem. Há vezes ―
como agora ― que sinto como se eu fosse uma pessoa diferente na presença
dele; retraio meus sentimentos e pensamentos. Tenho medo de pensar o que
quer que seja. E não pelo fato de correr o risco de expor meus pensamentos,
mas porque tenho repulsa a este sentimento presunçoso de acreditar ser sua
protegida mais importante. Como seu eu fosse sua única protegida.
Ele volta o rosto para o horizonte onde os últimos raios de Sol se
esvaem. Eu lhe pergunto se os anjos interferem na escolha do lugar onde se
passam os sonhos e ele me diz que é fruto da imaginação do ser humano.
Ficamos calados por algum tempo até que sinto um cisco em meu olho.
Esfrego-o vigorosamente até que sou interrompida por Nate, que segura as
minhas mãos. Mal consigo abrir o olho irritado quando ele o sopra,
suavizando o incômodo. Não é preciso ser sobrenatural para remover um
cisco, mas eu garanto que o seu sopro fez mais do que isso, devolveu às cores
da minha visão um upgrade de pixeis.
― Por que será que eu escolhi o Corcovado?
― Talvez você quisesse estar mais perto Dele ― diz Nate, elevando o
rosto para o céu.
O seu palpite me convence.
Eu tenho medo do que ele precisa me contar. Se eu escolhi este lugar
abençoado para sonhar, meu subconsciente devia saber o que estava fazendo.
Eu prefiria continuar em silêncio. Mas o anjo está aqui por uma razão e esta
razão envolve as pessoas mais importantes da minha vida.
― Me conte tudo, Nate. Tudo o que pode me contar. E o que não pode
também.
Ele franze a testa e nossos olhares se encontram.
― Para entender por que seu pai está desestabilizando as estruturas que
protegem o frágil acordo de paz entre celestes e renegados, é importante que
entenda os poderes dos anjos, a relação dos seres do bem com os seres do mal,
as hierarquias dos seres celestiais, os limites das leis divinas. Você está
preparada?
75
Eu inclino afirmativamente a cabeça.
“Existem anjos do bem e anjos do mal. Os anjos do bem, os mal´hak ―
anjos da guarda, os mensageiros ―, ou seres celestes, são dotados de poderes
que só devem ser usados para praticar o bem. Entre os poderes que possuem
está o da intuição. Somos intuitivos o tempo todo. Essa intuição é muitas
vezes usada como premonição, com a finalidade de proteger os humanos. Os
anjos desenvolvem e aprimoram o sentido de intuir o tempo todo”.
Nate interrompe repentinamente a sua explicação. Ainda estava
assimilando suas últimas palavras sobre a intuição quando ele desaparece bem
diante dos meus olhos. Dou uma volta de 180º e o encontro de pé sobre a
mureta do mirante.
― Posso me deslocar de um lugar para o outro sem lapso de tempo. Este
poder significa que o meu movimento se dá no tempo, mas não da maneira
que os movimentos corpóreos se dão. Assim, o tempo não passa para mim.
Não me canso e nem envelheço. Vivo num eterno presente. Isto é, em tese,
não tenho passado nem futuro.
― Ok. Esse truque estilo The Flash eu já conhecia. Agora, desça daí!
No mesmo instante ele atira-se com um mergulho no vazio. Meu berro
pôde ser ouvido no Jockey. Corro o mais depressa que posso e me debruço na
mureta. Uma ventania sacode os meus cabelos e uma sombra arqueada
estende-se sobre mim. Levanto a cabeça e vejo que de suas costas abriu-se um
leque de plumas brancas, acetinadas e luzidias, enganchadas umas às outras
em inúmeras ramificações. As asas são imensas e majestosas. As maiores
plumas são mais longas que o cumprimento do meu braço e têm o contorno
brilhante, como se fossem salpicadas com um pó de ouro. Aparentam textura
tão sedosa, que me sinto tentada a tocá-las. Mas ele ainda está no alto,
planando contra o vento que não abala em nada o seu equilíbrio. Meus cabelos
dançam à cada bafejar morno de suas asas e em meu rosto desvelado e
exposto devo ter a expressão mais apalermada que ele já viu. Se é que ele tem
algum referencial de comparação, se é que alguma vez algum humano se
deparou com tamanha magnificência. É a primeira vez que o vejo
inteiramente, tal como ele é: como um ser alado.
― Que susto você me deu! Não precisava ter feito isso...
A bronca intencional foi apenas para desviar sua atenção dos meus olhos
ainda arregalados. Estou fascinada com o adorno em suas costas e não consigo
disfarçar.
― Os anjos não têm tendências suicidas, Clara.
Sonso. Nate volta a pousar os pés no chão recolhendo as asas tão
depressa que não as vejo desparecer. Fico por um instante imaginando onde
ele as terá guardado e é então que me apercebo de que elas não estão
embutidas em seu corpo. As asas de Nate são como um acessório etéreo,
como ele é como em seu todo, um ser etéreo.
― Então, o que mais fazem os anjos, além de pregar sustos nas pessoas?
76
Ele me estende uma flor. Não é muito atrativa. Na verdade, nem parece
uma flor. É um ramo de pinho.
― Temos os sentidos mais aguçados.
Encosto o nariz na planta e não sinto nenhum perfume especial que não o
seu próprio cheiro, meio amadeirado. Com o vento, o pólen me faz espirrar.
Nate toma novamente o ramo e esmaga-o entre os dedos. Depois, aproxima a
mão do meu nariz e me diz que é como ele sente o cheiro das plantas, como se
seus brotos e seus ramos fossem destilados a vapor. Por alguns instantes me
imaginei cercada por araucárias. Mas elas não são predominantes no Rio de
Janeiro. Foi só mesmo a minha imaginação. E a mágica de Nate.
― Aposto no número cinco ― diz ele debruçando-se na mureta.
― Como?
― Vamos, Clara... faça um placê comigo.
No hipódromo do Jockey mal consigo enxergar qualquer movimentação
na pista. Forço ao máximo a minha visão e consigo enxergar que existem
cavalos correndo.
― Não vou apostar com você. Muito menos à esta distância... nem
consigo ver quem está na frente! Só se eu fosse doida.
Nate tira um aparelho celular do bolso e conecta ao vivo, não o site do
JCB mas o canal 15 da Net. Acompanhamos o páreo quatro ao vivo e em
cores, da tela de um iPhone. É a tecnologia a serviço da paranormalidade.
― Escolha um número... qualquer um. Por favor.
Ele nem precisava pedir por favor.
― Ok. Sete.
Claro que escolhi o cavalo que está na frente.
― Se você ganhar nunca mais aposto com você! ― ameaço diante de
seu sorrisinho matreiro.
― Você não deveria torcer pelos cavalos. Deveria torcer por nós dois.
Não entendi muito bem o que ele quis dizer porque já estava interessada
demais na disputa acirrada na telinha do celular. O cavalo três está na frente.
Num arranque formidável, o número cinco, que estava a três cavalos de
distância do primeiro colocado, ultrapassa dois cavalos e se coloca páreo a
páreo com o número sete. A vantagem do sete é de poucos metros e vai se
tornando cada vez menor. A linha de chegada se aproxima e...
― Ganhei! ― exclamo num gritinho infantil.
― Não seja individualista. Ganhamos os dois ― contesta ele. ―
Fizemos um placê e o cinco chegou em segundo lugar.
― Você já sabia que o sete ia ser o vencedor deste páreo?
― Não fique decepcionada mas fui eu quem escolheu o cavalo sete.
Influenciei a sua decisão.
77
― Como assim?! Eu admito que escolhi o sete só porque ele estava na
frente.
― Você não pretendia escolher o sete. Sua cor preferida é o vermelho e
você pretendia escolher o jockey de vermelho, o cavalo número quatro.
Um minuto. Eu preciso pensar por um minuto. Ele acabou de invadir o
meu subconsciente, que eu desconhecia que decidia as coisas por mim de
forma tão superficial.
― Telepatia e clarisciência. Ok. Parabéns pelos seus dons ― digo com
rispidez.
― Clara, não é para você ficar chateada. Não por causa disso. Eu fiz
muito pior ao influenciar seu pai a contá-la sobre a criônica.
― Uma coisa que você ainda não sabe sobre mim: eu sou uma péssima
perdedora.
― Prometo que nunca mais disputaremos nada. Palavra de anjo ― sua
voz morna derreteria uma geleira inteira da Patagônia.
Acho que posso confiar nele. Afinal, aparentemente temos algo em
comum: ele também não gosta de perder. Do contrário, não teria escolhido o
cavalo número cinco.
― Tenho uma curiosidade... se eu estou sonhando agora, posso fazer o
que eu quiser, não posso?
― Depende.
Ele se esforça por conseguir fixar meus olhos, mas não o deixo. Agora
que eu sei o que ele é capaz de fazer com o meu pensamento, nem pensar! Ele
se rende e pergunta:
― No que está pensando? ― pergunta ele, apreensivo.
― Eu poderia voar? ― indago com um fio de esperança.
― Este é um sonho programado, Clara. Eu chamei você aqui.
― Então, não é um sonho meu... é um sonho seu.
― Digamos que é um sonho nosso.
Ele não precisa ler meu pensamento para perceber a frustração em meu
olhar.
― Mas posso fazer isso por você. Com a telecinese.
Antes que eu pudesse contestá-lo, meus pés descolaram do chão e, com
uma força vencendo a gravidade, ele me sustenta no ar com o poder de sua
mente. A levitação dura alguns minutos com Nate mantendo meu corpo
suspenso. Não ouso me mexer. Ele nota minha insegurança.
― Tem medo de altura, Clara?
Sacudo a cabeça negativamente. Nunca lhe admitiria tamanha fraqueza
depois de tudo o que ele tem me mostrado. Estou me sentindo tão pequena
aqui em cima! Tão pequena diante dele...
― Que tal sentar lá em cima? ― pergunta ele.
78
Seus olhos sugestivamente guiam os meus até o braço da estátua do
Cristo. Ele não pode estar pensando em...
Grito, inutilmente, enquanto ele me faz subir.
Em vez de estar ao sabor do vento, que me guiaria na direção oposta,
estou ao sabor da vontade dele. Delicadamente, Nate consegue me fazer sentar
sobre o braço direito da estátua. Finco meus dedos na pedra áspera, petrificada
de pavor. Não consigo piscar, respirar, mover. Não demora nem dois
segundos, ele está sentado a meu lado, sorridente e com o ar vitorioso.
― Não acredito que você fez isso... ― resmungo entredentes,
inamovível.
― Relaxe e admire a paisagem. Não é todos os dias que se pode ver a
cidade daqui.
― E se eu cair?! É uma queda e tanto... eu morreria.
― Não confia em mim?
― Claro que confio no meu anjo da guarda! ― exclamo alto como se
fosse mais fácil convencê-lo gritando.
― Você está sonhando, lembra? Ninguém morre num sonho ― diz ele.
A ventania é gelada nesta altitude. Estamos a cerca de 750 metros acima
no nível do mar. Estremeço a cada rajada mais forte. Eu me aproximo dele e
sinto imediatamente um alívio aconchegante. Ele percebe.
― A fotocinese é outro dos meus poderes.
― Essa aula sobre poderes extraordinários é divertida, Nate ― deito
minha cabeça em seu ombro e como ele não se esquiva, eu me aproveito.
― Há outros poderes que você irá conhecer. Posso controlar a aura de
qualquer ser vivo, curar, teletransportar-me mentalmente, tornar-me invisível
e assumir qualquer forma humana, viajar entre dimensões e planos etéreos
pela transmutação, atravessar a matéria. Por teletransporte e através dos
sonhos, posso ocupar matéria e massa no espaço corpóreo, sentindo e fazendo
tudo que os seres terrenos sentem e fazem, como agora. Posso inclusive
projetar campos de força magnética, tamanha é a energia que carrego comigo.
Um anjo pode tudo isso, Clara.
― É incrível, mas o mais incrível é você falar de tudo isso sem
entusiasmo!
― Para um anjo nada disso é extraordinário. E existem princípios. Estes
poderes devem ser usados para o bem e em circunstâncias realmente
necessárias.
― Tá bom... então toda essa sua demonstração foi realmente necessária
― desdenho e cutuco seu ombro. ― Confessa, vai! Você queria se divertir!
― Clara... ― balbucia ele.
― Confessa!
― Um anjo não se diverte ― diz ele com frieza.
79
― Você disse que nos sonhos os anjos podem sentir tudo o que sente um
humano. Portanto, se estou me divertindo, você também deveria estar. A
menos que eu seja uma péssima companhia...
Nate ignora o desafio. Já percebeu a minha implicância e com toda a
razão, não quer me dar mais intimidade. Ele já confiou demais em mim. E
toda essa demonstração de poderes que me fez presenciar deve ser por conta
da responsabilidade a que se impõe por ter me exposto ao perigo.
O vento não dá trégua e algumas mechas de cabelo escapam do meu rabo
de cavalo. Como não consigo desprender minhas mãos que já fazem parte da
rocha da estátua, Nate gentilmente arruma o cabelo rebelde por trás das
minhas orelhas.
― A evolução da mente de um anjo está associada ao poder de intuição.
As premonições não são seguras. Mesmo treinando a intuição e evoluindo
como anjo, há fatos que não podem ser previstos com exatidão. E é
angustiante porque você depende cada vez mais de mim.
Ele me deixa desconcertada, mas nem por isso posso poupá--lo de uma
pergunta.
― Mas com tantos poderes... do que você tem medo?
Ele pensa antes de responder.
― De mim.
80
13 - Pecadores
“Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento.
Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu
mergulhei. Eu sou uma pergunta.”
(Clarice Lispector)
Perdi a noção das horas ― como se sonhos tivessem tempo. O fato é que
o movimento de rotação da Terra continua. A Lua está alta no céu e estamos
os dois ainda no braço da estátua, nossos rostos voltados na direção da Baía de
Guanabara. Não me importava de congelar estes momentos, contanto que
sempre tivesse a fotocinese de Nate para não congelar aqui em cima!
― Vamos ver se entendi tudo direito até agora. Os anjos têm intuição
moral e, consequentemente, têm o poder de interferir e induzir acontecimentos
naturais, em diversos campos da ciência, como na meteorologia e na
astrologia. E vocês também têm o poder de interferir no livre-arbítrio do ser
humano para protegê-lo.
― A única limitação em relação a este poder é o agir ou o deixar de agir
pelo humano.
― Foi esta limitação que você desrespeitou ao interferir nos sonhos do
meu pai.
― E estou novamente desrespeitando isso ao estar aqui com você ―
completa ele.
― Então como é que você faria para me alertar de algum perigo sem
interferir nas minhas decisões?
― Eu deveria apenas apresentar a você diversas possibilidades e entre
elas, você depois de avaliar, decidiria conforme a sua vontade. Não poderia
impôr nenhuma realidade ou consequência de qualquer atitude a você ―
responde ele, virando o rosto para mim.
Isso é complicado. Eu poderia entender tudo errado e pensando estar
fazendo o certo, não o faria por interpretar errado. Lendo meu pensamento, ele
explica:
― É por isso que existe o acaso como forma de apresentar as
possibilidades de escolha.
81
― Você me explicou isso. Então, aquilo que um ser humano pode
considerar uma feliz coincidência, nada mais é do que o guardião provocando
o acaso.
Ele sorri e seu hálito morno faz cócegas na minha bochecha fria. É
estranho reparar nisso, mas sentir que ele respira torna-o mais real.
***
Nate contou que desde a criação do Universo existem anjos e uma
hierarquia que determina as categorias de celestiais. Ele me perguntou se eu
conheço a hierarquia definida por Dionísio e São Tomás de Aquino.
Envergonhada, admiti que não. Ele disse que vários pensadores foram
intuitivamente guiados para a definição da hierarquia porque era necessário
que a humanidade estivesse sempre preparada.
Existem três ordens para distinguir as diferentes categorias de anjos e,
em cada ordem, três níveis de responsabilidade. A primeira ordem inclui os
serafins, os querubins e os tronos, seres de caridade, sabedoria e contemplação
divina, respectivamente. A segunda ordem inclui as dominações, as virtudes e
os potestades, seres poderosos, libertos de tiranias e de tudo o que é vulgar,
que guiam aqueles que estão abaixo deles. A terceira ordem, a mais baixa na
hierarquia dos seres celestiais, inclui os principados, os arcanjos e os anjos.
Aqueles designados como guardiões e mensageiros divinos são os seres mais
próximos dos homens e existe uma quantidade infindável deles. Nate se inclui
na terceira ordem, ao nível de anjo. Segundo ele, muitos anjos,
independentemente de sua ordem, têm interesse em serem designados como
guardiões porque é o meio que mais os propicia a desenvolver a intuição e
evoluir.
― Tenho uma dúvida. Não é à respeito da hierarquia. É outra coisa.
Ele sonda meus olhos.
― Sim. Os anjos podem pecar ― responde ele.
― Assim não vale! Você leu meu pensamento! Isso é pecado! ―
repreendo-o cutucando seu braço com o cotovelo.
― Não, não é ― ele escorre a mão pelos cabelos e perfuma o ar à minha
volta. ― Para você não ficar desiludida, já estou colecionando alguns pecados
por você.
― Aquela mentirinha na praia sobre o perfume de jasmim ter sido um
presente... ― murmuro. ― Mas aquilo é uma mentirinha de nada!
― Anjos não têm mãe.
Senti uma ponta de tristeza ― ou seria amargura? ― em sua voz. Ele
olha ternamente em meus olhos e para a minha surpresa, continua.
― Eu trocaria os meus poderes para ter uma família; laços de sangue.
Não é algo que eu pudesse imaginar de um anjo.
― Você entregaria a sua eternidade para ter uma família?
82
Ele confirma com a cabeça e depois dá um longo suspiro ― Clara, tenho
sentimentos errados porque não se coadunam com a minha natureza. Mas
existem outros anjos, mais pecadores, que sentem orgulho e inveja. Estes, são
os anjos do mal, também denominados renegados. Aqueles que, seguindo
Lúcifer, voltaram--se contra Deus.
Não sei bem se estou mais chocada por Nate se confessar um pecador ―
eu talvez preferisse que ele assumisse uma carência afetiva ― ou se por ouvi-
lo pronunciar pela primeira vez o nome do arqui-inimigo do Criador.
― Heilel Ben-Shahar, conhecido pelos humanos como Lúcifer, foi um
querubim chamado Samael. Ele regia o sétimo céu quando se tornou
orgulhoso de seu poder e voltou-se contra Deus. Além disso, Lúcifer tinha
também muita inveja de Deus, queria parecer--se com Ele.
“Muitos anjos decidiram seguir Lúcifer e travou-se uma grande batalha
com os anjos do bem. Os anjos de Deus venceram e expulsaram Lúcifer e a
sua legião do mal do paraíso. Desde então, Lúcifer comanda os renegados
com a intenção de corromper as criaturas de Deus. É uma batalha diária entre
as forças do bem e as forças do mal, em que os anjos, arcanjos e querubins, os
seres celestiais mais próximos do homem, tentam protegê-lo e impedir que
seja manipulado pelo mal. Lúcifer é o primeiro anjo caído. Seus seguidores
também caíram com ele e ainda hoje há anjos celestes que caem. Mas esses
anjos nem sempre são seus seguidores. Alguns caem porque desistem de sua
existência celeste e há outras razões para isso”.
― O que faz um anjo, com tantos poderes maravilhosos e tanta beleza,
desejar cair?
Nate fica em silêncio, mas sei que não ignorou a minha pergunta.
Para variar, as dúvidas salpicam na minha cabeça, embora eu tenha a
convicção de que não devia me meter nisso, nem que fosse para não me
confundir ainda mais. Nate é extremamente paciente com as minhas
curiosidades e nunca pareceu incomodado em ser sabatinado quando estamos
juntos.
Subitamente, ele toma a minha mão direita entre as dele e olha fundo nos
meus olhos. Sinto uma energia forte me unindo a ele.
― Clara, o seu pai foi corrompido.
Encaro-o atordoada.
― O que você quer dizer com isso?
Ele espreme os olhos como que procurando as palavras certas para
responder.
― O ser humano é muito suscetível, por essência e natureza. É
justamente por isso que seres como eu existem, Clara.
― Meu pai está sendo enfeitiçado? ― pergunto exaltada.
― Seu pai provocou a atenção de Heilel com a experiência da criônica
em seres humanos. O desejo de Maurício foi vitorioso apesar das minhas
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interferências ― declara ele inconformado. ― Eu tentei usar você para livrá-
lo de suas fraquezas. Mas Heilel já estava atento.
― Eu deveria ter sido capaz de demover essa maldita ideia da cabeça de
papai!
― Ainda não se convenceu de que é a vítima e não a causadora de todo o
problema? Clara, você hoje estaria a salvo se eu não a tivesse incluído nisso!
― exalta-se ele.
― Os renegados viriam atrás de mim de qualquer jeito. Mesmo que eu
não soubesse do segredo do meu pai.
Ficamos em silêncio. Nate sabe que eu tenho razão.
― Eu preciso salvar o meu pai. Não me faça esperar mais. Se quer
mesmo me ajudar e eu sei que está aqui para isso, me leve até ele.
Diante do meu tom autoritário, Nate se vira e me encara rigidamente.
― Você sabe o que representa a experiência. A criônica é uma ameaça
aos princípios da fé na vida eterna. A vida é um ciclo que não deve ser
interrompido. As implicações no futuro da humanidade seriam catastróficas
caso a fórmula descoberta por seu pai se espalhasse entre os homens. Imagine
um mundo em que todos posterguem a morte sucessivamente! Isso não é um
sonho de imortalidade, é um pesadelo que se contrapõe ao princípio de
eternidade.
― Não quero saber das implicações dessa maldita experiência! Eu amo
meu pai e o quero de volta. É só isso que me importa agora. Se você não
puder me ajudar a resgatá-lo, vou encontrar um jeito, vou negociar com o...
com o... você sabe quem. Vou fazer o que tiver que fazer, Nate. Tudo isto está
acontecendo porque eu não fui capaz de ajudar meu pai quando ele estava
perdido. Você me deu a oportunidade e eu perdi. Não vou falhar desta vez.
Nate agora me encara com a expressão espantada. Não sei o que o
surpreende, já que ele pode enxergar a minha alma.
― Desculpe, Clara, mas preciso ser direto: aos olhos do Criador, esta
fórmula é um ultraje. Seu pai está fazendo o que fez Heilel, ao querer
assemelhar-se a Deus, substituí-Lo e ultrapassá-Lo. Isto não é uma questão de
simples negociação. E não há nada que você possa fazer sozinha.
― Então, o meu pai já está...
― Não, ele não está condenado. Ele ainda pode ser salvo. O Criador não
desiste facilmente de seus filhos. É por isso que estou aqui ― ele me regala
um olhar terno. ― Eu entendo a sua angústia. Mas precisa confiar em mim.
― Estamos aqui perdendo tempo, Nate!
Ele limita-se a observar-me mansamente. Mergulho no verde dos seus
olhos e aos poucos meu coração se pacifica e a minha respiração vai
recuperando o ritmo normal.
― Clara, seu pai está tomado por uma revolta muito grande. Ele não é
orgulhoso, não é vaidoso, nem ambicioso. Mas é um homem revoltado com
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Deus. E isso enfraqueceu seu coração humano. E quanto mais o coração
humano enfraquece, mais se fortalece a cobiça astuciosa de Heilel pelo poder.
Antes de resgatar seu pai de Heilel, é preciso resgatá-lo dele mesmo.
― Eu entendo. Quer dizer... acho que entendo.
― Então, ouça: a legião dos celestiais tentará uma conciliação com os
renegados. Meu melhor amigo, Haziel, é um querubim. É o anjo da guarda de
sua irmã e está nos convocando neste momento.
― Quero assistir a esta conciliação, Nate! Eu preciso estar ao lado do
meu pai!
― E você estará. Seu pai precisa de testemunhas humanas.
― Então... vou com você?! ― pergunto entusiasmada.
Ele sustenta meu olhar por alguns instantes.
― Não há lugar mais seguro do que em Malkuth.
― Obrigada.
Toco em sua mão e mais uma vez a energia percorre todo o meu braço.
Nate fica nitidamente desconcertado e tenta se esquivar. Eu reparei que ele
esquiva-se muitas vezes. Ou serei eu que me aproximo demais?
Seus olhos encontram os meus, não por acaso, e ele diz:
― Clara, não se agradece um mal´hak. Nunca ― soa como uma ordem.
E eu, com ar de riso, pergunto cinicamente:
― É uma lei divina?
― Não... ― e ele ensaia um sorriso tímido. ― Mas os anjos têm a
obrigação de proteger os humanos. Não faz sentido que agradeça por eu estar
cumprindo com a minha. Concorda?
Olho para ele com ar de admiração. Ele, então, me ajuda a ficar de pé.
Com alguma insistência, como um bebê que de repente deixa de engatinhar e
ganha independência, consigo me equilibrar. Os dedos dele se entrelaçam nos
meus. Mesmo com a ventania me empurrando para trás, eu não poderia me
sentir mais segura. Abaixo de nós, como um manto de estrelas sobre a terra, se
estende a cidade.
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14 - Intimação
A luz incomoda. Aos poucos posso focar a imagem à minha frente. É
Olívia. Dou por mim deitada na minha cama, de onde vejo a Lua. O abajur
aceso ainda perturba minha visão.
― Que horas são?!
Olívia olha para mim de um jeito carinhoso.
― Passa das onze. Você dormiu a tarde toda e entrou pela noite. Te
chamei várias vezes.... Maria até... ― ela vira-se para Maria, de pé, ao lado da
porta e diz ― Eu vou ter que contar, tá? ― volta-se para mim ― ... até jogou
água na sua cara!
Sento bruscamente na cama e sinto a cabeça pesar. Os cabelos ainda
pingam na camisola.
― Você suava muito, remexia-se sem parar ― intervém Maria,
atropelando as palavras. ― Às vezes parecia estar tendo um pesadelo. Teve
uma hora que eu pensei em pedir ajuda! Mas depois você sorria...
― Calma, Maria... fala devagar. Estou meio zonza...
Pois é. A viagem foi longa e o retorno, abrupto. Cedo demais.
― Zonza? Será que é alguma virose? Você não tem se alimentado bem
que eu sei! Vou preparar um bom lanche para você!
Maria nem me dá tempo de contestar e já bateu a porta.
― Ainda bem que ela saiu. Preciso te perguntar uma coisa ― introduz
Olívia inclinando-se para mim. ― Depois de um tempo sossegada você disse
algo como “tempo... não temos tempo”. Eu pensei que estivesse se referindo a
papai. Estou certa?
― Sim, é isso sim. Eu estava sonhando com aquele anjo, do qual já te
falei.
Olívia lança-me seu olhar curioso, as sobrancelhas arqueadas. Recosto
na cabeceira da cama.
― O anjo me contou muitas coisas. Coisas incríveis sobre a existência
dos anjos, os poderes que possuem, sobre os... ― diminuo automaticamente o
tom da voz ― renegados...
― E ele te disse mais alguma coisa sobre o papai? ― pergunta ela,
ansiosa.
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― Amanhã estaremos com ele. Numa das esferas celestes, onde moram
os anjos.
― Esfera celeste? ― ela arfa.
― Faremos uma longa viagem. Precisamos descansar.
― Você ainda não descansou tudo? ― pergunta ela franzindo o rosto.
Ignoro-a. Eu posso lhe falar de anjos, mas não posso lhe dizer que desde
que Nate apareceu em minha vida, as noites e os dias nunca mais foram os
mesmos. Por vezes acordo de noite e sonho de dia, às vezes sonho acordada,
noutras acordo sonhando...!
***
Olívia já foi para o seu quarto e eu continuo sentada sem sono nenhum.
Claro que não consigo, nem quero pregar o olho esta noite. Afinal, por que
dormir se eu posso sonhar acordada? Deitada na cama, olho para o relógio na
mesa de cabeceira. Ainda são duas da madrugada. As horas não passam e
minha ansiedade só aumenta. Levanto-me, pego um livro de poesias na
estante, folheio algumas páginas. Em vão. Largo o livro e meu celular vibra
sobre a mesinha. É uma mensagem.
De: Número oculto
Recebida hoje, às 23:23:23
Nath-aniel não poderá protegê-la, nem a seu pai. Deixe que o cientista
conclua a experiência e vocês serão poupados.
Desligo o celular e permaneço imóvel, pensando que quem escreveu
aquela SMS pode estar bem ao meu lado e eu, impotente. Encorajo-me a virar
para trás e constato que estou sozinha. Pelo menos até onde eu consigo
enxergar. Penso em Olívia que também está sozinha em seu quarto e corro
para lá sem nem calçar as sandálias.
Ela dorme serena, abraçada ao ursinho Cookie. Ajeito o lençol sobre ela
e deito-me ao seu lado. Sei que está sonhando porque ela sorri. Quem me dera
sonhar este sonho com ela.
***
Acordo com Olívia me sacudindo. Acabei por adormecer em sua cama.
― O que foi?! Que horas são?
― Sete ― diz ela tirando bruscamente o cobertor de cima de mim. ―
Temos que estar preparadas. Eles estão vindo nos buscar.
― Eles? Eles quem? ― pergunto, bocejando sonolenta.
― Os nossos anjos: Haziel e Nath-Aniel.
87
Aqueles nomes soaram com mais eficácia do que o som do rádio-relógio
para me despertar. Olívia parece apreensiva.
― Haziel me contou tudo.
― Tudo?! Sobre...?
― Sobre a experiência. Ele disse que nós duas estamos na mira dos
renegados e que só haverá uma chance para fazê-los desistir de começar uma
guerra.
Parece que o mal´hak de Olívia não poupa sua protegida das palavras
mais duras. Ao contrário de Nate, que está sempre cheio de eufemismos
comigo.
― Como você conseguiu guardar o segredo de papai durante tanto
tempo? ― pergunta ela, franzindo a testa. ― Eu teria desabafado com você...
não teria conseguido guardar para mim!
― O mais difícil não foi guardar o segredo. Foi lidar com ele. Depois
que papai me contou, nunca mais olhei para ele da mesma forma... ― admito-
lhe.
― É muito assustador saber que mamãe está semimorta.
― Mamãe não está semimorta, Olívia. Isso não existe. Ela está morta.
Levanto da cama e ajudo-a a arrumar. Cada uma segurando uma ponta,
estendemos o lençol por cima da cama.
― Mas de uma hora para a outra pode estar viva de novo... ― contrapõe
ela.
― Ela nunca seria a mesma pessoa. Seria uma mulher muito diferente da
nossa mãe, perdida no tempo, distante de nós. Ela seria uma estranha para nós
e nós para ela.
Olívia vira o rosto para a janela.
― Eu gosto de pensar que mamãe olha por nós de onde está. Não gosto
de pensar que ela está numa cápsula congelada.
Tomo a sua mão e digo-lhe:
― Continue pensando que ela está no céu, olhando por nós.
Descemos as duas para a cozinha, onde está Maria peparando suas
deliciosas panquecas matinais. Cada uma de nós lhe dá um beijo, que ela
retribui, sempre meiga e maternal. Ela torce o nariz quando lhe digo que
apesar do cheirinho tentador da panqueca, não tenho fome ainda. Olívia faz
um pequeno esforço para não magoá-la e consegue dar umas três garfadas.
Estamos nós três sentadas em silêncio e Maria repara que existe um
clima de ansiedade entre mim e Olívia.
― O que está havendo com vocês?
― Nada! ― respondemos impulsivamente, em coro e em uníssono.
Ela nos fita por um instante e rebate, nada convencida:
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― Vocês nunca souberam mentir. Estou vendo que não está tudo bem.
Olívia não para de balançar as pernas na cadeira e Clara, de bater com os
dedos na mesa. Estou ficando ansiosa também e sem saber o porquê!
Paramos imediatamente com nossas manias, nos entreolhamos e
começamos a rir; de nervoso, principalmente. E Maria continua com o timbre
inconstante em tom de cobrança:
― Vocês não têm nada para me contar?
É algo natural, eu diria quase biológico: eu e Olívia sentimos uma
necessidade muito forte de proteger Maria. E para protegê-la precisamos lhe
omitir o que está acontecendo.
Ancoramos nela os nossos olhos. O silêncio impera na cozinha quando é
rompido pelo soar estridente da campainha. Remexemo-nos as três nas
cadeiras. Indago-me se nossos anjos tocariam a campainha. Se usam internet e
celular, por que não usariam a campainha? Olívia se vira para mim e não
preciso ter os poderes de Nate para saber que ela se faz exatamente a mesma
pergunta.
Maria levanta-se para atender. Eu e minha irmã nos aproximamos da
porta da cozinha, esticando-nos para tentar ouvir alguma coisa. É inútil, mas
não tarda e Maria já está conosco com um papel na mão, uma intimação para
comparecer à delegacia.
― Vamos com você, Maria! ― decide Olívia, sem pestanejar. Encaro-a
com aquele olhar fuzilante de quem manda calar.
Volto para Maria e digo com mansidão, diante de seus olhos
perturbados:
― Maria, não se preocupe. É só um depoimento. Tentarei escapar das
aulas para estar lá com você ― e olhando fixamente para Olívia, continuo em
timbre crescente. ― Já a Olívia não pode faltar porque tem exame de
matemática justamente amanhã.
― Mas... ― ela tenta interferir.
Eu a interrompo depressa.
― Se quiser, eu ligo para o advogado amigo de papai, o Dr. Morais
Barreto.
― Não, não será preciso advogado, querida. Vou simplesmente dizer
aquilo que sei ao Dr. delegado, isto é: que nada sei. Eu não estava em casa.
Quando cheguei, pouco antes de você, encontrei o que você viu e chamei
imediatamente a polícia.
― É uma praxe. Você foi a primeira pessoa que viu a casa naquele
estado ― comento, numa tentativa de tranquilizá-la.
A última garfada de Olívia na panqueca estimulou um sorriso prazenteiro
em nossa amada governanta.
***
89
Decidimos ficar cada uma em seu quarto, a espera de nossos respectivos
anjos. Ouço a chuva tamborilando aceleradamente no vidro da janela. Já dei
trinta voltas ao redor do quarto, pulei corda, experimentei ficar deitada de
olhos fechados e joguei paciência no computador, antes de me lembrar da
única coisa que costuma aliviar estes momentos: a música. Então, ligo o
aparelho de som num volume alto o suficiente para que minha voz seja
abafada. Não se diz por aí que quem canta seus males espanta? Mas ninguém
precisa sofrer com isso.
Enquanto sigo a letra, concentro-me nela. É a única forma de não pensar
em mais nada. Mexo a cabeça ao ritmo da melodia, balanço os ombros, sinto a
música fluir, como num exercício de respiração: inspirar e expirar. De olhos
fechados, me deixo levar pelas ondas musicais que percorrem meu corpo, me
transportando para longe.
E aqui parece noite.
― Aqui onde? Onde estou? ― pergunto em alta voz.
Minha voz faz eco. Mas como isso é possível se estou ao ar livre?
Estou sonhando de novo.
90
15 - A legião
“Nas faces viva flama refulgia, nas asas ouro, em tudo mais alvura, que
a candidez da neve escurecia.”
(Paraíso, Canto XXXI in A Divina Comédia, Alighieri Dante)
Estou num bosque fechado. Vejo a Lua entre os galhos e as folhas das
árvores, cujas largas copas estão muito distantes de mim. Caminho a esmo,
sem saber para onde vou, só para não ficar parada. Os únicos sons são os
cantos dos pássaros que não vejo e o estalar dos gravetos sob a minha sola de
borracha.
Continuo sem rumo com a única certeza de que nunca estive neste lugar
antes. Piso folhas secas, até que algo molha os meus pés. Água. A temperatura
é morna. Não distingo se é um rio ou um lago. Mas do outro lado da margem
de onde estou, uma voz infantil e macia chama por mim.
Estamos as duas vivendo o mesmo sonho?
― Olívia! Onde você está? ― pergunto num grito agudo.
― Não sei! Não vejo nada direito! ― exclama ela com a voz distante,
espalhando-se na atmosfera sombria.
― Então, fique onde está! Não se mexa!
Preciso alcançá-la. Tendo em conta que não sou Indiana Jones nem
McGuyver, não há outro jeito senão avançar para dentro da água e descobrir.
Sinto seixos sob os pés, mas avanço, trôpega, sem direção certa. Guio-me pelo
espelho d´água prateada que reflete o brilho de uma Lua imensa. Nunca a vi
assim, tão perto, como se estivesse ao meu alcance.
De repente, sinto uma dor lancinante em meu pé direito. Meu grito agudo
espanta o bando de pássaros escondidos entre as árvores gigantes e numa
revoada repentina, passam sobre mim.
― Mana! ― grita Olívia, assustada. ― Você está bem? O que houve?
― Tá... tudo... bem ― as palavras saem soluçadas. ― Foi só um
tropeção... já vou continuar, espere aí!
Faço um esforço para erguer a perna, mas é inútil. Pelo menos onde
estou não há correnteza e consigo manter o equilíbrio.
― Estou indo ao seu encontro, Clara! ― exclama ela.
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Tento pedir para que ela fique onde está, mas só consigo gemer de dor.
Nem um minuto depois, ouço o barulho da água sendo deslocada e uma
corrente suave vindo ao meu encontro. Olívia me abraça com força.
― Como você está?
― Acho que torci o pé.
― Mergulhe, vamos! Eu vou te puxar até a outra margem.
É a mesma folhagem seca que eu pisava do outro lado. Olívia me ajuda a
sentar e improviso, com alguns gravetos e folhas, uma tala que amarro com o
seu cinto de tecido. Com o pé imobilizado, a lesão não vai se agravar.
― O que vamos fazer, agora? Ficamos aqui e esperamos os anjos
aparecerem? ― pergunta ela, sustentando o meu desequilíbrio.
― Já poderiam ter aparecido... ― imagino até onde Nate seria capaz de
testar minha capacidade de sobreviver a mim mesma.
― Acho que vou me candidatar a uma vaga de substituta do anjo da
guarda. O que você acha?
― Já tem o meu voto!
Sinto fisgadas no pé, mas por pior que seja a dor, não quero acordar; seja
sonho ou pesadelo, deve ser aqui que meu pai está e não quero ir embora sem
ele.
Ouvimos um barulho, como uma revoada de pássaros bem sobre as
nossas cabeças. Mas além de nossos pés, na mata fechada, não vemos mais
nada. Olívia aperta a minha mão e continuamos seguindo. Percebo que a mata
começa a fechar-se mais em volta de nós. Pergunto a Olívia se ela tem a
mesma impressão e paramos. Uma forte luz irradia entre a vegetação e um
aroma sublime se espalha depressa anunciando quem está ali. Levanto o
antebraço para proteger os olhos, mas a luz é rebatida pelas folhas e não
atinge a nossa vista.
Não seria justo perder este momento mágico e acredito que Nate tenha
pensado nisso. Aos poucos as pupilas vão se dilatando e conseguimos ver o
exato momento em que o fóton explode em minúsculas partículas, como um
diamante estilhaçando-se numa chuva de cristais. Desta explosão resplandece
a forma humana do anjo. A túnica cinza reflete a luz que a pele irradia. O
capuz cai sobre os ombros.
Esqueço-me por um instante da dor diante do encanto do momento mas
outras sensações me tomam; apoio-me em Olívia para não desabar. A súbita
fraqueza é prevista para Nate que já está do meu lado quase que
instantaneamente. Ele me envolve e sustenta em seus braços. A corrente
elétrica canalizada por seu corpo me aquece rapidamente. Em seu colo posso
ouvir as batidas de um coração. Será o dele ou será o meu?
Bastou que ele se aproximasse de mim para anestesiar a dor, embora eu
ainda sinta que está lá, mascarada por algum encanto de Nate.
92
― Você vai ficar bem agora ― sussurra ele ao meu ouvido e volta-se
para Olívia. ― Seu anjo está chegando para buscá-la.
Avistamos ao longe uma luz muito intensa, como um Sol, de repente,
rompendo a madrugada. Mas o longe se torna perto num piscar de olhos e
diante de nós, numa explosão de partículas douradas, surge o outro anjo,
igualmente belo e formoso.
Haziel tem olhos azul-turquesa e cabelos negros, compridos e lisos como
os de Nate. Seu rosto é igualmente delicado, porém mais marcado e
expressivo. Seu corpo é coberto por uma túnica dourada, com um cinturão de
bronze adornando sua cintura. Ele tem a mesma altura de Nate e usa o mesmo
anel com as figuras de pirâmides no dedo indicador da mão direita. Suas asas,
mesmo recolhidas, são imensas. Lendo meus pensamentos, ele resolve
satisfazer a minha curiosidade e as abre num segundo, mostrando--as maiores
do que eu já sabia: abertas, elas fazem sombra sobre ele mesmo.
Os anjos se entreolham e sem dizer palavra alguma, alçam voo, nos
levando em direção à Lua. Lá embaixo, o bosque parece uma floresta, densa e
infinita. Será que alguma vez eu poderia imaginar uma paisagem sem fim?
Nate me segura junto a si, enquanto Haziel conduz minha irmã entre os
braços. Não tenho ideia a que altura estamos, mas se do chão as copas das
árvores já pareciam distantes demais, daqui de cima o chão parece o céu ao
contrário.
As asas de Nate se movem devagar, mas voamos incrivelmente depressa,
a cada impulso de abrir e fechar as asas. Ele me sustenta como se eu fosse
mais uma de suas plumas e, habilidosamente, varia os ângulos de seus
movimentos como se fôssemos um grande aerofólio. De asas abertas e o peito
arqueado contra o vento, Nate vence a gravidade. E em seus braços fortes e
seguros, eu venço a pressão atmosférica.
Já alcançamos uma altitude que normalmente o ser humano não poderia
suportar, nem respirar com normalidade e aguentar temperatura tão baixa.
Mas me sinto confortável, respirando suavemente. Meu coração e o meu
corpo não poderiam estar mais aquecidos.
Não consigo desviar meus olhos de Nate, que retribui ternamente. Sinto-
me tão aconchegada que não quero interromper a magia do momento, mas
minha curiosidade me trai. Lendo a pergunta em minha mente, Nate responde:
― Sim, verá o seu pai. Mas antes vamos ao encontro da legião.
A paisagem que vamos deixando abaixo de nós é impressionante. Haziel
plana ao nosso lado com Olívia, que me encara boquiaberta. Os anjos se
entreolham e trocam palavras numa língua que não entendo. Conformada com
minha ignorância, giro a cabeça em várias direções, procurando descobrir o
rumo que estamos seguindo. Já estamos viajando há muito, provavelmente
estamos num plano diferente do lago e da floresta. Onde quer que estejamos,
já devemos ter ultrapassado a estratosfera. São tantas as minhas dúvidas neste
momento que Nate seleciona uma e responde:
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― Você e sua irmã não podem ser conduzidas desacompanhadas. Por
isso foram teletransportadas para aquele lago, num espaço intermediário,
interdimensional entre a Terra e o Reino. O que eu e Haziel não esperávamos
é que você e sua irmã fossem aventurar-se a atravessar o lago sem esperar por
nós! ― ele até tentou empregar um tom de censura à sua voz, mas ela soou
como sempre, uma melodia doce e gentil. Desse jeito nem consigo contestá-lo
de que se nossos guardiões nos tivessem deixado do mesmo lado do lago, não
teríamos precisado atravessá-lo.
Olívia grita meu nome e aponta o dedo para baixo, para onde
imediatamente dirijo os meus olhos. Sob nossos corpos suspensos, estende-se
um imenso vale, cujas montanhas superam muito em altura o Monte Everest.
Minha visão não lhes alcança os cumes. Diminuímos a altitude e, então,
damos razantes sobre os riachos, as cachoeiras e as lagoas que recortam a
paisagem exuberante formada de colinas e campos salpicados de flores de
todos os tons e feitios. Este lugar é a minha ideia de paraíso.
― Estamos perto, muito perto, mas o paraíso ainda não é aqui.
― Que lugar é este?
― Malkuth. Este é o último céu da matéria. Por isso, tudo aqui é
cristalino, quase etéreo. Tudo pode ser atravessado, tudo pode ser visto e
refletido neste plano.
― É aqui que você vive?
― Sim, Clara. Este é o reino dos anjos.
***
Um majestoso palácio de cristal reluz no alto de uma das incontáveis
colinas que parecem reflexos infinitos umas das outras. A construção
semietérea parece cravejada de brilhantes que ofuscam a minha visão. Por
isso, apesar da transparência, essa luz irradiada me impede de ver o que há lá
dentro.
Estar nos braços de Nate não me impede de perceber o quanto a
atmosfera que me envolve é leve, como se eu fosse formada da mesma
matéria que as moléculas que se unem para formar o ar. Como se eu fosse
mais leve que o próprio ar.
― Nate... eu acho que você pode me soltar.
― Soltá-la?! ― instintivamente ele ainda me pressiona mais forte junto
ao peito. ― Clara você não pode flutuar sozinha.
― Estou tão leve que acho que posso voar! ― o conforto do abraço de
Nate é inigualável, mas neste momento eu daria tudo para deixar-me fluir
neste espaço etéreo que parece me sustentar.
Como se lesse meus pensamentos, ele diz:
― Eu queria que pudesse experimentar sozinha, mas o que sente é
apenas uma das mágicas de Malkuth.
94
Nuvens coloridas em tons pastel de rosa e lilás seguem-nos enquanto
descemos e a paisagem que avisto daqui de cima é uma aquarela de brilhantes
pigmentos suspensos. Inspiro diferentes aromas conforme atravessamos as
nuvens, alguns doces, outros cítricos, outros até um pouco ácidos demais para
os meus sentidos desacostumados.
Extasiada com a beleza do palácio, sem que eu me desse conta, já
atravessamos paredes e janelas e estamos pousando. Nate me deita sobre uma
cama com um dossel dourado por onde descai suavemente uma charmosa
cortina de veludo cotelê. Enquanto meu corpo se acomoda sobre os luxuosos
lençóis de cetim perolado, sem desgrudar os olhos dos meus, Nate ajeita meu
pé direito sobre uma almofada e põe suas mãos sobre ele. Já havia me
esquecido completamente de que a dor miudinha ainda estava lá. Ele
pronuncia algumas palavras em sua língua e começo a sentir no contato, um
formigamento que vai anestesiando meu pé. A dor some em alguns segundos.
Movimento meus dedos sem qualquer receio.
― O que você fez? ― indago fitando-o nos olhos.
Ele sorri enquanto afaga meus cabelos.
― Para o caso de abusar novamente da sorte...
Confesso que não entendi direito o seu recado, mas com receio de
parecer ignorante limitei-me a assentir interpretando sua recomendação como
uma ironia gentil.
Já me sinto relaxada o suficiente para analisar o espaço em torno de
mim. Aparentemente estamos em algum aposento do palácio, pois além desta
cama majestosa, há requinte nos acabamentos e nos móveis. Tudo aqui dentro,
excluindo a vista da paisagem exterior, me fascina mas não me surpreende,
pois eu reconheço. Todos esses bens, que mais lembram relíquias de museu,
são riqueza material terrena.
― Lembra-se de quando lhe disse que a aparência física dos anjos é
resultado de uma imagem cifrada que os olhos humanos podem assimilar? ―
pergunta Nate antes que eu pudesse começar a conjecturar. ― Os anjos são
feitos da mesma energia de Malkuth. Do mesmo modo, tudo que existe aqui
são códigos de referências terrenas. Essa dimensão é feita de uma energia
codificada em matéria porque aqui habitam os seres celestiais mais próximos
dos homens. Há palácios com várias finalidades em Malkuth, mas este aqui é
o abrigo dos guardiões. Os demais anjos não têm abrigo e misturam-se à
energia de Malkuth, porque não precisam ter contato algum com a matéria.
Minhas referências de palácios e castelos são os alemães e franceses,
aqueles que li nos livros de contos de fadas na infância ou que vi em filmes e
revistas de turismo. Portanto, se minhas impressões se assemelham de algum
modo ao Palácio de Versailles, não é mera coincidência.
― Mas por que essas referências para homens e guardiões precisam ser
tão ricas? ― pergunto recostando-me nos travesseiros imensos e tentando
manter a coluna ereta para não afundar entre eles.
95
― O subconsciente do ser humano, que o guardião precisa sempre
identificar para trabalhar sua intuição, faz as associações de acordo com pré-
definições culturais e cria os estereótipos que lhes parecem fazer mais sentido.
Você conhece algum palácio onde não haja riqueza?
Olívia senta-se ao meu lado e me dá um beijo, enquanto Nate e Haziel
distanciam-se de nós e conversam em tom inaudível. Ler o movimento dos
seus lábios não vai adiantar porque não sei em que língua estão se
comunicando. A conversa cifrada me faz lembrar da SMS ameaçadora.
Chamo por Nate e ele aparece ao meu lado no mesmo instante.
― Recebi uma ameaça pelo celular. A mensagem dizia para não
impedirmos a experiência.
Ele retruca num tom pacífico, mas eu percebo que uma ruga surgiu em
sua testa.
― Quem quer que tenha enviado a mensagem, só quis assustar você. E
provavelmente está inseguro por algum motivo.
― Inseguro? Fomos chantageados!
Ele se aproxima e quase encosta seu nariz no meu.
― Se descumprirem o pacto, são eles que sairão perdendo. Confie em
mim.
Em palavras humanas: “Se descumprirem o pacto, estão ferrados”. Por
mais que eu traduza Nate e que ele repita milhares de vezes que devo confiar
nele, esse é o seu papel de mal´hak e eu nunca vou saber se está apenas
querendo me proteger da minha própria fragilidade emocional.
Haziel chama por ele e os dois abandonam o quarto. Olívia tem o rosto
encostado à parede transparente, de onde admira o céu estrelado. Nem a luz
do dia, nem o brilho do palácio pode ofuscar as estrelas. Elas estão perto
demais de nós. Algo me diz que Olívia gostou da ideia de paredes
transparentes. Não me admirarei se em breve ela transformar seu quarto num
observatório astronômico.
Enquanto Olívia se admira com Malkuth, eu me admiro comigo mesma.
Sei que o que sinto por Nate é uma grande admiração e que não posso admitir
nada além disso. Se por vezes penso nele como homem e não como anjo é
porque estou confusa em relação aos meus sentimentos. Já cheguei à
conclusão de que é perfeitamente plausível que assim esteja, tendo em conta
tudo o que vem acontecendo. Mesmo consciente de minha confusão, por uma
questão de desencargo de consciência, preciso saber de Olívia como é seu
relacionamento com Haziel; se de algum modo se assemelha ao que eu e Nate
temos. O difícil é encontrar as palavras certas para que ela não perceba o meu
dilema.
― Olívia, como é que você e Haziel conversam? ― pergunto,
casualmente. Seus olhos agora são mais questionadores do que azuis.
Reformulo a pergunta. ― Vocês falam sobre o quê?
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― Não falamos. Só ele fala comigo ― responde ela com naturalidade.
― Você não conversa com ele? Não lhe faz perguntas?
― Nas duas visitas que me fez, apenas ele falou. As visitas foram muito
rápidas.
Olívia tem a testa enrugada e eu percebo que está desconfiando da minha
curiosidade. Desço da cama e me aproximo de uma das janelas panorâmicas.
― Esse lugar é... inacreditável! O paraíso deve ser parecido com isso...
― Não sei. Mas se aqui as estrelas já estão tão perto que parecem ao
nosso alcance, no paraíso devemos conseguir tocá-las! ― refere ela.
A voz grave de Haziel interrompe nossa conversa:
― Protejam os olhos, por favor.
Até que pudesse espontaneamente me libertar de minha curiosidade e
obedecer ao seu comando ainda houve tempo de ver que Nate e Haziel
regressaram ao quarto acompanhados. Olívia cobre o rosto em minha barriga.
Meus olhos são ofuscados pela luz irradiada e num ato de reflexo e
involuntário, para minha frustração, não os consigo abrir. Novamente, é como
se o Sol estivesse a poucos metros de mim, eu sentisse seu calor e seu
explendor, mas não pudesse admirar sua beleza. Neste momento, não me
importaria de ficar cega para o resto da vida se pudesse registrar algo tão
extraordinário.
***
Quando finalmente a luminosidade me permite enxergar, sou
surpreendida pela absoluta magnificência dos seres celestiais. Além de Nate
― para mim, o mais belo entre todos ―, um deles sobressai entre os demais
pelos traços femininos.
Nada neles parece real por serem intrigantes e misteriosos, mas ao
mesmo tempo estão presentes aqui, em carne e osso. Sua tez é alvíssima,
quase cintilante, os cabelos brilhantes e sedosos ainda reluzentes com a
transformação, os olhos são como gemas preciosas e polidas, espelhos deles
mesmos. Ocorre-me associá-los às pedras.
― Clara parece curiosa para saber os nomes dos integrantes de nossa
legião. Pois bem, vamos às apresentações ― introduz Nate. Eu deveria ter
suposto que ele leria meu pensamento. ― Este grupo diante de vocês foi
especialmente selecionado para uma tarefa. A tarefa é a de resgatar Maurício
Chevallier e impedir que as experiências que ele pretende realizar caiam em
mãos erradas e provoquem uma catástrofe de proporções inimagináveis.
― Se a experiência for concretizada pelos renegados a consequência
será, no mínimo, a extinção da raça humana ― complementa Haziel,
posicionado por trás de Nate.
Os anjos se entreolham silenciosos e Nate prossegue com sua explicação:
97
― Há muitas legiões sendo formadas o tempo todo, por muitas razões.
Nesta legião, somos doze anjos, entre arcanjos, príncipes e querubins, sendo
que apenas eu e Haziel acumulamos funções de anjos da guarda.
Lado a lado, estão posicionados os dez anjos escolhidos por Nate e
convocados por Haziel para integrar esta legião: Bath Qol, Cassiel, Haileal,
Nuriel, Qasfiel, Rahmiel, Saniel, Tzadkiel, Uzziel e Zachriel.
Bath Qol é a primeira a se apresentar. Ela veste uma túnica marfim com
mangas tecidas com fios de ouro. Sua cintura é adornada por uma faixa
dourada. Seus cabelos negros, formam longos cachos que chegam à cintura.
Tem o rosto redondo e delicado, quase infantil, um nariz pequenino e
pontiagudo, grandes cílios e lábios finos. Seus olhos são profundos e da cor do
âmbar.
A seguir apresenta-se, Cassiel, que veste uma túnica marfim e um
cinturão de prata. É o único dos doze que tem barba sobre um queixo pouco
pronunciado num rosto alongado. Seus cabelos são castanho-escuros e seus
olhos grandes e muito expressivos são da cor inacreditável de uma opala. Tal
como na pedra, essa opalescência dá a seus olhos reflexos irisados
dependendo da refração da luz incidindo sobre eles. Ora parecem verdes, ora
são azuis, róseos, alaranjados, lilases e esse show de cores variando segundo
meu ângulo de visão é quase hipnotizante.
Haileal mal espera Cassiel terminar e, com o ar austero e uma certa
arrogância na postura, consegue desviar minha atenção dos olhos
multicoloridos. Ele se apresenta como chefe da ordem dos anjos de
fogoHayyoth, chamados “Bestas Sagradas”, que vivem no sétimo céu. É
corpulento, aparentando ser o mais forte. Sua túnica grafite é mais justa ao
corpo, o cinturão de bronze é, de todos, o maior. Tem os cabelos vermelhos
como o fogo. Seu rosto de linhas retas tem traços marcantes num formato
hexagonal com o queixo pronunciado e tem os olhos espaçados, do tom da
hematita grafite.
Nuriel apresenta-se logo em seguida. Ele é o anjo mais alto, veste uma
túnica dourada, com um cinturão de bronze. Tem a testa retangular, as maçãs
do rosto são salientes e as têmporas profundas. Os cabelos são de um branco
que parecem algodão e os olhos são do tom verde brilhoso de malaquitas.
Qasfiel, o seguinte, veste uma túnica semelhante à de Nate, prateada e
com um cinturão dourado. Tem o rosto redondo, com poucos ângulos. Seus
cabelos são negros e curtos. Os olhos arredondados são como duas ágatas
verdes-musgo e expressam severidade.
Rahmiel chamou minha atenção por sua aparência triste. Ele tem lábios
finos, olhos pequenos e expressivos no tom de uma lápis-lazúli, o rosto longo
e o maxilar pouco definido. Os cabelos são curtos num tom castanho-claro.
Veste uma túnica marfim com cinturão de bronze.
Saniel tem os cabelos loiros e encaracolados ― o verdadeiro clichê de
um anjinho barroco ―, mas o rosto retangular é bem marcado, as maçãs do
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rosto pouco pronunciadas. Tem grandes olhos brilhantes da cor da água-
marinha.
O anjo de pele negra é o próximo. Seu nome é Tzadkiel e ele veste uma
túnica verde como a de Saniel, mas com um cinturão bronze. Seu rosto
angular é marcante, com lábios carnudos e feição altiva. Os cabelos são
trançados e compridos. Os olhos, da cor verde-azulada de uma amazonita
polida, sobressaem em sua tez morena.
Ao se apresentar, Uzziel é o mais cerimonioso. Ele inclina levemente a
cabeça em sinal de respeito pelos demais. Sua túnica marfim contrasta com
cinturão de bronze. Seus cabelos lisos, curtos e negros emolduram o rosto
oval, o nariz é reto e os olhos são levemente puxados, cujo tom comparo a
duas safiras azuis extraodrinárias. Sua expressão é dócil e contemplativa.
Por último, apresenta-se o anjo que mais serenidade me transmite,
Zachriel. Seus olhos lembram turmalinas verdes polidas, muito brilhantes. O
loiro escuro dos cabelos longos e trançados resplandece de tão sedoso. Seu
rosto tem traços suaves, sendo a testa estreita e o queixo arredondado. A
túnica é grafite com um cinturão prateado.
Terminando as apresentações, eu e minha irmã permanecemos imóveis;
deslumbradas, diante de uma legião de anjos manifestada, em todo o seu
explendor, especialmente para nós.
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16 - Mente
“Não é o que você é que te restringe, é o que você pensa que você não
é.”
(Denis Waitley)
Estamos num salão decorado em estilo barroco. Sua extensão ultrapassa
o meu campo de visão. Minha atenção não se detém em nenhum detalhe em
especial, tamanha é a riqueza e a imponência da arquitetura. As paredes
laterais são formadas de imensos vãos envidraçados que permitem avistar as
cordilheiras infinitas de Malkuth. Meu subconsciente ― que recentemente
descobri que pode ser verdadeiramente megalomaníaco ― associa quase tudo
neste salão à Galerie des Glaces do Palácio de Versalhes, desde o piso em
madeira nobre à abóboda magistralmente decorada com afrescos, passando
pelo mobiliário com detalhes em prata, pelas paredes interiores formadas por
enormes espelhos, até os inúmeros lustres e abajures de cristal.
É noite, mas parece dia. Ou será que é dia e parece noite? Só sei que a
Lua é tão luminosa como o Sol. Sua resplandescência atravessa as paredes
envidraçadas e é refletida pela parede de espelhos. Ela transpassa os cristais
dos lustres e produz um extraodinário efeito ótico que faz cada um de nós
parecermos corpo e espectro; ora sobrepostos, ora deslocados, a cada ínfimo
movimento.
Uma mesa redonda com vinte e quatro tronos está disposta no centro. A
mesa tem pernas de prata e um tampo transparente que parece irradiar um
efeito frutacor, tal como o encosto dos tronos cujas pernas formam espirais
florais, detalhadamente esculpidos também do nobre metal.
Procuro concentrar minha atenção no que está prestes a acontecer, mas o
requinte artístico desse lugar é totalmente dispersivo. Meus olhos passeiam
vagarosamente pela obra-prima ilustrada na abóboda quando Haziel se
aproxima de mim e de Olívia em silêncio e, colocando a mão no ombro dela,
faz um anúncio aos presentes:
― Está na hora. Eles estão chegando. Por favor, tomem os seus lugares.
Os doze anjos sentam-se lado a lado, ordenadamente, formando um arco
iluminado no centro do salão. Se vista de cima, a mesa redonda poderia ser
perfeitamente confundida com uma Lua crescente.
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Haziel apoia-se num joelho a frente de Olívia.
― Não tenha medo, minha criança, estaremos aqui para protegê-la.
Chamamos os representantes de Heilel para uma tentativa de acordo. Se
pudesse prometer que não interferirá... ― diz ele, desacreditado.
― Eu prometo! ― responde ela depressa. ― Não sou nem boba de
quebrar uma promessa feita a um anjo...
― Sei o quanto gostaria de cumpri-la ― rebate ele.
― Nosso pai está vindo com eles? ― pergunto.
Haziel assente com um movimento leve e imediatamente volta de costas
para mim, tomando seu lugar à mesa, ao lado direito de Nate.
Imagino o porquê de sua insinuação sobre a promessa de minha irmã.
Será que ele previra que Olívia interferirá? Enquanto tento entender também o
porquê de Nate estar de costas e não de frente para mim, uma bola flamejante
atravessa a parede de cristal chocando-se contra o chão de mármore. Em
seguida, várias outras adentram o recinto como cometas e explodem em
línguas de fogo com uma fuligem negra e espessa pairando ao seu redor.
Alguns instantes depois, quando a fumaça se dissipa, diante de nós, os onze
anjos enviados de Lúcifer, anjos que mais parecem sombras decrépitas,
reverenciam a legião sentada à mesa, inclinando suas cabeças cobertas por
capuzes. Procuro por meu pai entre aqueles anjos esguios, vestidos de túnicas
pretas e cinturões de bronze, mas não o encontro.
Os anjos negros têm os olhos encavados, a face estranhamente pálida e
sobre seus ossos mais salientes do rosto parece que a pele se estica, revelando
uma magreza esquelética. Os olhos são vermelhos como rubis, os cabelos
pretos e longos e as unhas negras, afiadas como canivetes.
Os anjos da legião se entreolham constantemente. Tenho a impressão de
que estão se comunicando de alguma forma porque seus rostos assumem
diferentes expressões no silêncio das palavras. Mesmo a rigidez de suas
feições não rouba à elas o aspecto etéreo. Os anjos renegados aguardam
expectantes contendo a ansiedade em suas fisionomias sinistras. Durante
longos minutos, ninguém rompe o silêncio.
― Teremos que deixar a comunicação telepática de lado em respeito aos
humanos presentes entre nós ― diz Nate voltando-se para os renegados. ―
Por favor, sentem-se.
Um deles assente com a cabeça e meio minuto depois reveste sua
expressão de soberba.
― Não se levantarão para nos dar as boas-vindas? ― diante do silêncio
que ecoa absoluto no salão, continua calmamente: ― Os tempos são outros ―
e voltando-se para mim e Olívia, os olhos em brasa, ele prossegue: ― Então
trouxeram humanos! As criaturas terrenas agora têm passe livre em Malkuth!
― O acordo que vamos propor diz respeito a um humano. Se temos aqui
testemunhas, o humano também tem direito às suas ― argumenta Nate.
101
― Muito bem. Em caso de não haver acordo nos poupam o trabalho de
descermos para buscá-las... ― sugere o mesmo anjo negro num tom que roça
o jocoso. Mas ele não me parece estar brincando.
Nate lançou-lhe um olhar agudo, mas sob o olhar atento e repreensivo de
Haziel e dos demais, absteve-se de responder.
― Trouxemos conosco a magnífica criatura que está provocando o
desequilíbrio das forças ― e aumentando o tom de voz, ordena: ― Bathim,
traga-o!
Um raio flamejante atravessa a janela. O anjo do mal traz consigo o meu
pai, acorrentado a ele. Meus olhos percorrem cada milímetro de um corpo
abatido, com ferimentos superficiais. Papai chega com a cabeça baixa, não sei
se sabe que eu e Olívia estamos aqui. Ela ergue a cabeça para mim e vejo
agonia em seu olhar. Faz menção de gritar e correr para os braços de papai,
mas se detém. Haziel a fez prometer que não se intrometeria. Olho para Nate,
mas ele me ignora. Sua voz percorre o salão:
― Balam, deixe que o pai abrace suas filhas.
Neste exato momento, papai eleva o rosto procurando a nossa direção e
seu olhar ansioso chega até nós. Leva apenas alguns instantes nos fitando mas,
enternecido, volta a baixar a cabeça, como que envergonhado pelo que nos faz
passar.
Balam gira sua cabeça em 180º para mirar Bathim. Pisco para verificar
se não passou de uma ilusão de ótica, mas quando volto a abrir os olhos, ele
continua com o pescoço torcido na direção do outro renegado. Bastou um
olhar de Balam e Bathim desfaz a corrente que prende papai a seu corpo.
Papai, a princípio, não se move. Ele parece amedrontado e cansado demais,
num estado de catalepsia.
― Maurício, pode abraçar suas filhas.
Papai reage imediatamente e como se seus pulmões voltassem a
trabalhar, ele ofega. O comando de Nate quebrou algum feitiço ou um estado
hipnótico ao qual papai estava submetido, mas ainda assim não consegue ficar
de pé, exaurido. Devagar, usando os braços, ele rasteja pelo chão. Olívia se
desespera. Ela tenta desvencilhar a sua mão da minha. Seus olhos suplicantes
fixam-se na fisionomia desgastada de papai.
Queria reagir de alguma maneira, mas estou num estado letárgico. Meu
coração bate compassado e silencioso e, embora tudo ao meu redor me
provoque uma ansiedade brutal, estou presa a uma inércia inexplicável. Estão
vinte e três anjos nos observando, meu pai rastejando pelo chão, minha irmã
prestes a libertar-se de minha mão, e tudo o que consigo fazer é mover os
olhos.
Nate finalmente se vira para mim. Tento me comunicar com ele, dizer o
que estou sentindo. Será que ele não percebe que lhe peço socorro em
silêncio? Os olhos de sangue de Bathim agora estão grudados nos meus,
prendendo o meu olhar. Não sei o que pretende, mas talvez esteja
102
investigando algo dentro de mim. Estou sendo dominada psicologicamente e
não consigo exteriorizar nada, nenhuma palavra, gesto ou expressão.
Papai, enfim, nos alcança. Sinto o calor de seu corpo, sua respiração
ofegante e suas lágrimas molharem minha face. Olívia também começa a
chorar. Não consigo derramar lágrima alguma. Será que ninguém percebe o
que está acontecendo comigo?
― Me perdoem, por favor... me perdoem ― murmura papai em nosso
ouvido.
Seus olhos exaustos, espelhados, encontram os meus.
― Me perdoe, Clara...
Permaneço inerte. Ele está emocionado e não percebe a minha
indiferença. Talvez pense que estou dissimulando ou que não o perdoo.
― Papai, não pr... ― balbucia Olívia.
― Chega!
O olhar aterrador de Balam arrasta meu pai pelo chão como se fosse um
brinquedo. Por um instante, vi meu pai despencando no infinito de Malkuth.
Pareceu real demais, mas não passou de uma armadilha do meu subconsciente
dominado pelos renegados.
A legião mantém-se imóvel e impassiva, inclusive Nate e Haziel. Balam
olha para mim e como se quisesse testar sua capacidade de dominar a minha
mente, eleva o corpo de papai e atira-o contra a parede transparente. Se eu
estivesse no meu estado normal teria gritado, corrido, me desesperado. O grito
fica preso na garganta, mas Olívia emite-o por nós duas. Ela desprende-se de
mim e dispara numa corrida até o outro lado do salão onde papai se encontra
estirado no chão, mas para bruscamente no meio do caminho, paralisada no ar.
Todo o seu corpo se enrijece, e agora, como eu, se vê dominada por uma força
invisível. Os renegados conservam no semblante perverso um ar vitorioso de
superioridade.
― Basta desse espetáculo sórdido ― a voz de Nate é grave, com uma
vibração que eu nunca ouvira.
Ele olha para Haziel que assente com a cabeça.
― Libertem-nas! ― ordena o querubim de olhos turquesa. ― Lembrem-
se de que vocês estão em Malkuth.
― Por isso é muito mais divertido ― retruca um dos renegados.
― É tão interessante dominar os ímpetos humanos...! ― comenta outro.
― Não podíamos perder esta oportunidade.
A gargalhada gutural de Balam me desperta do transe e liberta também a
minha irmã. Nós duas desmontamos no chão como se nossos ossos estivessem
aprisionados a uma força maior do que a gravidade. Empurro-o, afastando-o
de mim, mas parece que o chão vem ao meu encontro. Ouço os gemidos de
minha irmã, também sendo encurralada pela força comandada por Balam.
― Eu já aturei demais ― diz Nate, entredentes.
103
Tão rápido quanto um raio, Nate saca uma flecha de suas costas, sopra
nas penas e aponta na direção de Balam. Eu não havia percebido que ele
estava armado. Na verdade, ele não estava mesmo. O arco e a flecha se
materializaram consoante a vontade de Nate.
― Não, Nate ― adverte uma voz firme. Não parece a voz de Haziel. ―
Não ponha tudo a perder, é o que eles querem.
― Haileal, ele vai matar as humanas... ― ele retesava o arco dourado e
mirava o alvo com perícia. Apenas Nate estava dentro do meu campo de
visão. Eu podia ver um brilho incomum em seus olhos. Era um olhar de ódio,
um olhar nada angelical.
― Guarde essa flecha, Nate ― ordena Haileal. ― Ele não pode fazer
isso. Não aqui. Você sabe.
Nate atendeu a censura, mas desobedeceu ao anjo. A flecha tomou outra
direção que não a de Balam e acertou em cheio uma das vidraças imaginárias
do palácio. O embate provocou uma onda de energia tão forte que varreu todo
o salão e arrastou os renegados, espalhando-os por todos os cantos.
Quando finalmente consigo me erguer, percebo por que não fui atingida
pela pressão magnética. Eu e Olívia ficamos sob uma espécie de bolha
protetora. Os anjos da legião do bem se entreolham com os semblantes rígidos
e concentram-se austeramente em Nate. Ele não parece ignorar a bronca, mas
retribui com severidade como se discordasse da posição passiva e defensiva
da legião. Não são precisas palavras, é evidente a discórdia entre eles.
― Desculpem... escapou ― foi tudo o que disse.
Os renegados ficaram atordoados, rastejando e esbarrando uns com os
outros para se reequilibrar. Não consigo evitar de achar a cena cômica. Nate
percebe meu ar de riso e tenta disfarçar o seu. Ele também acha graça, mas
pelo clima pesado, certamente os demais não acham. Sinto os pelos do braço
se arrepiarem e é ele quem está do meu lado, segurando a mão de Olívia. Não
segurou a minha.
― Depois dessa imatura e inútil demonstração de poderes, vamos
começar ― diz Haileal, o anjo de cabelos vermelhos. ― Não temos tempo a
perder.
Recompostos ― ou pelo menos mais calmos com o choque que levaram
― os renegados ocupam as restantes cadeiras em torno da mesa, de frente
para as janelas, fechando o círculo. Sua face visível está totalmente às escuras,
enquanto a face oculta está iluminada pela Lua.
Papai desperta quando é arrastado para perto de Bathim. Nossos olhos se
cruzam por escassos segundos, antes que ele voltasse a inclinar a cabeça.
Nate, então, soltou a mão de Olívia e foi para o seu lugar. Ela já se sentia tão
calma, que começou a fazer carinho nas minhas costas.
Feitas as apresentações do lado sombrio da mesa, reparo na repulsa
estampada nos rostos dos membros da legião, especialmente no rosto de Nate,
104
que observa atentamente cada gesto dos renegados Balam, Bathin, Azza,
Agares, Allocen, Aini, Af, Dantanian, Asmodeus, Phoenix e Caim.
― Chamamos vocês aqui a fim de selar uma trégua ― introduz Haziel.
Nate fita Balam nos olhos encarnados e diz:
― Antes de fazermos a nossa proposta, precisamos ouvir o que
pretendem de Maurício.
― Esta é a oportunidade que esperamos por séculos. Finalmente uma
criatura humana teve coragem ― assume, o outro.
― A balança desequilibrou novamente. Estão cientes das consequências
disso?
― O equilíbrio é bom, Nath-Aniel, enquanto serve aos interesses de
todos ― rebate Balam. ― Desta vez um humano provocou o desequilíbrio e
isso não podemos ignorar ― e colocando as duas mãos com a palma
debruçada sobre a mesa, exige: ― Nós queremos a experiência.
Os membros da legião se entreolham numa conversa cifrada. Os
renegados ficam incomodados, tentando sondá-los. Apercebendo-se disso,
Nate volta a encarar Balam. Agora, mais presunçoso.
― Acham mesmo que com essa experiência podem tudo contra Ele?
― A experiência é o começo do fim das criaturas humanas.
Consequentemente, d`Ele também ― assume Balam.
Em seus olhos há um brilho de euforia. Haileal, o anjo da legião mais
poderoso, interfere:
― Estão enganados. Somos muito mais. Podemos muito mais.
― Ainda não perceberam o quão inglório é salvar a humanidade? ―
retruca Allocen com voz áspera. ― Com esta experiência, vai ser cada vez
mais difícil controlar a ambição humana.
― Talvez. Mas é para isso que existimos. Para enfraquecer os
sentimentos mundanos e fortalecer os bons ― diz o anjo barbudo e de olhos
opalescentes, Cassiel.
Balam revira os olhos e continua seu discurso de terror:
― O mundo tem os dias contados, servos do Criador. Mesmo que nós
não interferíssemos, a criaturinha acabaria por revelar a fórmula ao mundo.
Ou acham que ele manteria o segredo só para a sua família? Acham que ele
não cobiçaria a fama e o poder com a sua descoberta? ― Balam sorri,
revelando os dentes podres e pontiagudos, e continua: ― Seria um espetáculo
prazeroso de assistir: “E a Criatura se volta contra o Criador”!
― O humano acende o pavio e Heilel espalha o fogo ― interfere Bathim
com os olhos esbugalhados, meio insanos.
― Heilel não perderia de saborear o gostinho da vingança. É a vitória
pela qual sempre esperou ― diz Balam encarando meu pai que está ao seu
lado.
105
Papai encolhe-se, acuado, envergonhado, humilhado. Não queria sentir
pena de meu pai, mas neste momento é inútil lutar contra isso. Não posso
abraçá-lo e não adianta abraçar Olívia. Agora sou eu quem precisa do toque
mágico de Nate.
― É tão fácil prever como funciona a cabeça de Heilel. Ele traiu a si
próprio e vai cometer novamente o mesmo erro ― incita Nate.
― Afinal de contas, qual é a proposta? ― pergunta Balam, irritado.
Nate observa os rostos sérios dos membros da legião.
― Nossa proposta é destruirmos a fórmula.
Entre os burburinhos escaldantes, a voz de Balam sobressai:
― Destruir a fórmula?! ― e solta uma risada proposital cujo eco se
propaga longamente. ― É a proposta mais estúpida que já ouvi. Não é a
primeira vez que negocio com você, mas desta vez você se superou, Nath-
Aniel.
― Pense, Balam. Ao destruirmos a fórmula, o equilíbrio é
reestabelecido.
― Não ganhamos nada com isso ― interfere Af.
― Sabemos que muitos de vocês querem voltar para Malkuth ―
continua Nate.
― No dia do juízo saberemos.
― Não esqueça que o julgamento já está acontecendo, Balam. Cada ato
conta, a favor ou contra.
― O que está querendo dizer? ― exalta-se o renegado. ― Está tentando
nos corromper, Nath-Aniel?
Desta vez é a risada vibrante de Nate que ecoa longamente no salão.
― De modo algum. Não me confunda com um de vocês. Estou querendo
ajudá-los a encontrar um caminho para a salvação.
Balam está cada vez mais raivoso, o rosto vermelho das veias inflamadas
em sua testa.
― Ainda não percebo onde quer chegar.
― A criatura prometeu realizar a experiência e até agora nada. Nossa
paciência está se esgotando. E vocês sabem quais são os nossos meios para
obrigá-lo ― ameaça Bathim, olhando sugestivamente para nós. Aperto Olívia
contra mim.
Nate o encara com altivez. Ele deve ter alguma carta na manga de sua
túnica.
― O humano ainda não tem a fórmula. Ele não pode concluir a
experiência.
Balam tem a expressão incrédula.
― Claro que tem! Abaddon viu. Você mesmo acabou de propor que a
destruamos, então é porque existe!
106
― Abaddon não pode ter visto o que ainda não existe ― contrapõe Nate.
― O que Abbadon viu foram as intenções do subconsciente do humano. Ele
precipitou-se.
― Vocês se expuseram inutilmente ― provoca Haziel.
― Nosso propósito não vai mudar. Queremos a fórmula ― participa
Asmodeus.
― Admitam que de nada adianta controlarem a mente dos humanos
quando não sabem sequer lê-la corretamente para entender seus sentimentos!
― exclama Nate, exaltado. Bath Qol põe a mão em seu ombro para acalmá-lo.
― Perguntem a ele ― sugere Haziel olhando para papai.
Os renegados se entreolham contorcendo as feições fúnebres.
― Bastou a confirmação que a criatura deu a Abaddon por meio do filho
de Armaros. Confiamos em Abaddon como nosso mestre confia ― retruca
Aini, olhando para Balam, que concorda com a cabeça.
E todos os olhares voltam-se para meu pai.
― Não. Não tenho a fórmula ainda ― confessa com a cabeça baixa. ―
Minha última experiência fracassou há uma semana.
― Mas disse a Abaddon que estava terminada! ― retruca Balam,
furioso. Eu juro que posso ver faíscas em seus olhos.
Ainda com a cabeça baixa, papai começa a explicar toda a história,
sofregamente.
― Não foi bem isso...
“Um homem alto, bem apessoado e com uma cicatriz no rosto me visitou
se dizendo um cientista. Sua cultura, seus vastos conhecimentos e sua fluência
me convenceram de imediato. Ele propôs comprar os direitos sobre a minha
fórmula assim que a primeira experiência fosse bem sucedida. Estranhei que
ele soubesse das pesquisas, a princípio neguei, mas ele me ameaçou quando
disse que Clara confirmaria tudo. Eu fiquei com medo que ele fizesse mal à
minha filha, confirmei que estava trabalhando para finalizar a fórmula. Ele me
deu um prazo para realizar a experiência. Uns dias depois, o mesmo homem,
agora acompanhado por outro, mais jovem, ainda mais alto e pálido, apareceu
em minha casa e fez novas ofertas, um laboratório bem montado e muitos
bens materiais. Eu lhe disse que não pretendia comercializar a fórmula, que
sequer estava terminada. O mais jovem ficou fora de si, me arrastou contra os
móveis e me atirou contra o chão. Tentei escapar, mas estava muito ferido.
Sabia que não podia lutar contra ele e tinha que proteger minhas filhas. Então
me ofereci para realizar a experiência em sua presença. Eu sabia que as
chances de fracassar eram equivalentes às chances de ser bem sucedido. Era
um tiro no escuro, mas eu precisei arriscar.
― Você brincou conosco, criatura. Como ousou fazer-nos crer que
poderia realizar a experiência se a fórmula ainda não estava terminada? ―
pergunta Balam com a voz arranhada. As unhas cunham a mesa de madeira.
107
― Eu tentei cumprir o prometido quando ele me deu o prazo... mas os
testes foram mal sucedidos ― responde meu pai.
Vendo o medo nos olhos dele, Nate interfere, tentando elucidar melhor
as dúvidas de Balam e tirar meu pai do centro de suas atenções:
― Ele não fez de propósito. Maurício é um humano de mente difícil de
decifrar. Seu inconsciente é uma armadilha, pois é movido a muitos
sentimentos contraditórios. Ele acreditava que com mais um ou dois
experimentos finalizaria a fórmula e isso atraiu a ambição desmedida de
Abbadon. Ele e seu espião nephilim perceberam a confusão mental de
Maurício tarde demais, já estavam erradamente convencidos. Se Maurício
realizar agora esta experiência, vai falhar novamente.
― Então não há fórmula ainda? ― pergunta Af.
― O filhote de Armaros terá que se explicar para Abbadon! ― rosna
Allocen.
A rouquidão de Balam ganha corpo numa interrogação:
― Se a fórmula nem sequer existe, o que quer dizer com “destruir a
fórmula”, Nath-Aniel?
Todos voltam suas atenções para Nate. Ele olha para meu pai, depois
para Balam.
― Apagar as memórias do humano.
Eu e Olívia nos encaramos. Agora sim, ela torna a ficar tão assustada
quanto eu.
― Se eu bem me recordo isso é contra as Leis Sagradas, você deveria
saber disso ― reage Balam.
― Toda a lei tem sua exceção e temos autorização d´Ele para agir assim.
É pelo bem da humanidade.
― Vocês querem apagar as minhas memórias? ― a expressão de meu
pai é de absoluto terror. ― Destruir a minha mente é me destruir também!
― Acalme-se, Maurício ― diz Nate. ― A interferência em sua mente se
restringirá a dados relativos apenas a esta pesquisa.
De repente meu pai pareceu envelhecer uns trinta anos.
― Vocês não percebem... eu vou começar os experimentos novamente.
Não posso controlar os anseios da minha própria mente... não vai adiantar!
― Sem lembrar o motivo, o local das pesquisas, onde estão seus
arquivos e as cápsulas, será difícil prosseguir com seu principal objetivo.
Você terá uma nova chance. Caberá a você decidir ― diz o guardião de papai.
― Você ouvirá sobre a criônica pois é um tema constante no seu meio
científico, mas não lembrará de mais nada em relação aos estudos realizados.
Se estabelecerá uma espécie de vácuo de sentimento entre a data da morte de
Beatriz e o seu momento atual.
108
Papai contorce ainda mais a sua expressão. A ideia de tornar-se
insensível à morte de mamãe é uma afronta injustificada para ele.
― Você não deve saber o que é, mas se fosse humano saberia que
saudade é um sentimento que nunca se esvazia. Pode-se até controlar a mente,
mas o que nos vai na alma não se controla.
Nate reflete sobre o que papai disse por alguns segundos. Ele não ficou
imune à argumentação, mas disfarçou sua breve instabilidade voltando-se para
os onze renegados à sua frente.
― A nossa proposta de trégua é esta: destruímos a fórmula apagando as
memórias de Maurício sobre esse assunto.
― Ele também não se lembrará do sequestro, nem de nós e nem do
acordo ― complementa Haziel.
― Será um processo gradual. Vocês nos dão um tempo até que a
situação com a polícia esteja resolvida. Quando o caso do sequestro for
arquivado, se iniciará um novo prazo em que Maurício terá que demonstrar
que esqueceu a fórmula definitivamente ― prossegue Nate.
― De qualquer modo não estão perdendo nada, porque a pesquisa
continua em curso e qualquer tentativa do cientista agora será fracassada ―
interfere Haziel. ― Como bem sabem, não convém que se exponham mais do
que já o fizeram.
― Tempo, é tudo o que pedimos ― insiste Nate.
Balam olha para cada um dos membros de sua legião.
― O tempo é dos humanos. O tempo é traiçoeiro, Nath-Aniel.
Ignorando o alerta, Nate estende a mão para Balam.
― Trégua? ― pergunta.
O silêncio novamente se instala no salão. Ele se levanta e, repetindo o
gesto de Nate, confirma:
― Trégua.
109
17 - Tempo
“Meu espaço se perdeu na urgência desse tempo. Não sei rezar diante
de um relógio. Meu Deus não possui ponteiros.”
(Clarice Lispector)
A Lua brilha como o Sol em Malkuth.
Da janela do quarto, Olívia observa, maravilhada, as estrelas gigantes.
― Elas estão tão perto de nós, Clara! É incrível!
Aproximo-me de minha irmã e nos colocamos lado a lado, com os
braços nas costas uma da outra. Ficamos assim, contemplando o infinito no
céu de Malkuth, durante um bom tempo, até que sinto uma das mãos me
acariciar o cabelo por trás. Ao virar, é papai que está diante de mim, exausto,
com um par de olheiras profundas. Eu o abraço e ele quase tomba sobre mim.
Finalmente posso chorar. E choro muito. Olívia nos abraça em seguida, com
seus braços curtos, tentando nos unir ainda mais.
― Vocês são a minha vida ― papai inclina-se devagar ameaçando
ajoelhar-se na nossa frente. ― Não podia tê-las exposto...
― Pai, levante-se! Não faça isso...! ― meu protesto é inútil pois não
tenho forças para erguê-lo.
― Não sou digno de vocês. Sou um homem fraco ― ele se levanta com
dificuldade, apoiando-se em mim.
― Você é um pai maravilhoso ― Olívia afaga sua face, que pela
primeira vez em muitos anos expõe a barba por fazer.
― Será que um dia conseguirão me perdoar?
― Pai, ouça uma coisa: você reconheceu seu erro diante de uma legião
de anjos que o absolveu. Terá uma chance para mostrar que está arrependido.
Se Ele lhe perdoou, não seremos nós a condená-lo ― encaro-o com ternura,
mas ele não consegue olhar em meus olhos.
― Os anjos foram sábios. Conseguiram o meu indulto e ainda um tempo
para que eu conserte o meu erro ― ele passa a mão pelo cabelo desalinhado.
― Pai, olhe para mim ― peço, erguendo seu rosto. ― Quando eu tinha
quinze anos, você me deu o maior voto de confiança que poderia dar. Tudo
110
bem que foi incentivado pelo nosso anjo da guarda, mas confiou em mim. Eu
também confio em você, pai.
Ele dissipa as lágrimas com o dorso das mãos. Minhas palavras foram
como uma absolvição para ele, talvez tão importante quanto a absolvição de
Deus.
― Ainda não acredito neste lugar. É como se tivesse entrado numa
cápsula do tempo e estivesse na corte de Luís XIV ― refere papai, tocando
tudo como uma criança que descobre as cores e as texturas do mundo pela
primeira vez. ― Mas estou em Malkuth e nem sequer o tempo passa por aqui.
Que espécie de lugar é este?
Por mais respostas que eu tenha de Nate, nunca saberei como definir este
mundo em relação ao meu. Pois este mundo é como o fruto de um delírio
onírico, de uma ilusão. Os cientistas, como papai, chamam de sobrenatural
esta experiência, este mundo entre o céu e a Terra. Na minha visão limitada,
sei apenas do que posso medir com os meus sentidos humanos. Ou eles estão
mais apurados ou, de fato, aqui tudo tem uma dimensão diferente, muito mais
tons e aromas. Nesta espécie de reino encantado vive Nate; neste mesmo
palácio, sobre todas as nuvens, mais perto do paraíso que um dia eu pensei
estar.
Aqui e hoje, eu realmente percebi o abismo que existe entre mim e ele:
entre o que ele representa e o que eu sou; entre o que eu represento e o que ele
é. Estou tão perto de Nate e, no entanto, tão longe. Ele é deste reino e eu não
sou nada. Quando o conheci na praia, mesmo não sabendo quem era, soube,
na primeira troca de olhares, que algo diferente e muito forte nascia dentro de
mim. É momento de assumir que me apaixonei por ele desde o primeiro
instante e não há nada que eu possa fazer contra isso.
Estou deitada na cama, mergulhada num colchão que parece forrado com
pétalas de rosa. A suavidade dessa textura e o aroma floral que me envolve
não vêm apenas da roupa de cama. Estou impregnada desse ambiente
celestial. Experimento fechar meus olhos, mas Nate não sai do meu
pensamento. Gostaria de saber onde ele estará agora e o que estará fazendo.
Tenho curiosidades a seu respeito: se dorme, se sonha, se ouve música...
Gostaria que ele fosse um rapaz comum. Gostaria de conhecer aquele rapaz da
praia, que naquele sonho se tornou tão real quanto Malkuth não é um delírio
onírico e eu agora não estou sonhando.
***
Da sua cama ao lado da janela, Olívia chama meu nome.
― Não consegue dormir? ― pergunto afastando a muralha de
travesseiros e virando-me para ela.
― Como será que está Maria? ― pergunta, preocupada, com o rosto
apontado para as estrelas gigantes.
111
― Maria deve estar bem. O depoimento é só amanhã. Estaremos com
ela.
― Tem certeza de que já não foi? Quanto tempo se passou no nosso
mundo?
Subitamente sentimos a resposta aproximando-se de nós. Foi Nate que
entrou no quarto de mansinho e sentou-se à beira de minha cama.
― Quando em Malkuth é noite, na Terra é dia. No mundo de vocês está
amanhecendo neste momento.
― Então a esta altura Maria já deve estar desesperada à nossa procura!
Ele faz-me um sinal com as mãos para que me acalme.
― Deixei um bilhete dizendo que foram passar o dia com uma amiga.
― O Sr. Sabe-Tudo só não sabe que tínhamos dito a ela que Olívia teria
um teste na escola, no dia seguinte ― digo, empinando o nariz.
― Isso não será relevante quando vocês voltarem para casa com o pai de
vocês.
― É verdade... ― concorda Olívia, bocejando. ― Maria não vai nem...
― boceja novamente ― lembrar... ― e fechando suavemente os olhos,
adormece de repente.
― Tadinha... ela hoje passou por uma prova de fogo ― digo, ainda
deitada, inclinando-me para Nate.
― Todos vocês ― diz ele se levantando.
― Quanto tempo durará o acordo? ― a pergunta o enlaça e ele volta a
sentar-se.
Ele se acomoda ao meu lado e eu me inclino mais para perto.
― O tempo é relativo. Nas esferas celestes não contamos o tempo. Ele
não existe. Não existem prazos para nós.
― Mas você pediu uma trégua... o renegado disse que era uma questão
de tempo... você acabou de falar em provisório!
― Para nós só existe o infinito, Clara ― responde ele. ― O tempo é
uma ilusão.
― Como assim, Sr. Einstein?! ― exaspero. ― Meu pai será vigiado
pelos renegados por toda a vida?!
― Por toda a vida é um intervalo de tempo ilusório. Ele só existe na sua
mente.
― Nada disso. A morte é o fim de um prazo.
Ele suspira.
― O tempo da vida não é um prazo. Por isso a morte não pode
determinar o seu fim. ― contesta ele, com a ambiguidade habitual.
― Ok. Então me diga um prazo para essa trégua! ― recosto na cama. ―
Uma data qualquer!
112
― Clara, o tempo da trégua é estritamente psicológico. Dependerá do
seu pai, de como ele vai comportar-se durante o encantamento da memória.
Todos saberemos quando o perigo tiver passado ― garante ele.
― É muito vago...
― É intuitivo.
― É vago.
― Confie em seu pai.
― Eu prefiro confiar em você.
Ele sorri e eu desmancho meu ar sério no momento em que meus olhos
fixam em seus lábios carmim moldados num sorriso escultural. Desajeitado,
ele flutua pelo quarto se distanciando de mim.
― Fica mais!
― Preciso ir. Preciso trabalhar.
― Os anjos da guarda não dormem nunca?
― Não.
É o que eu imaginava. Logicamente.
― Coisas de anjo, Clara. Não tente entender. Temos que acompanhar
tudo o que acontece, e muita coisa acontece ao mesmo tempo e o tempo todo.
Aconchego-me abraçando um dos travesseiros.
― Por que é que quando na Terra é dia, aqui é noite e vice-versa?
Nate suspira. Se ele não fosse anjo teria revirado os olhos também. Mas
se rende e senta de novo na beira da minha cama.
― Não existe uma referência geográfico-temporal entre planos celestes e
terrenos, como na lógica que explica os fusos horários na Terra ― Ele percebe
que não fiquei satisfeita com a resposta e continua: ― Pense numa esfera,
Clara. Pense que os planos celestes ocupam o hemisfério norte e os planos
terrenos, o hemisfério sul. Se num lado anoitece, no outro amanhece. Se num
lado é primavera, no outro é outono ― faço ar de que estou entendendo, mas
ainda falta qualquer coisa. ― Agora pense num espelho. O lado direito em
Malkuth é o lado esquerdo na Terra. Onde é mar na Terra, em Malkuth é terra.
Se na Terra vemos a Lua refletir a luz do Sol, aqui vemos o Sol refletir a luz
da Lua.
― Então em relação à Terra, aqui em Malkuth vocês seguem o horário
terreno do hemisfério oriental...
Ele inspira profundamente. Ops...
― Não. Quando o dia nasce em Malkuth não significa que seja um novo
dia, como acontece na Terra. Nosso plano celeste não tem Sol nem Lua, mas
uma única estrela que une noite e dia, chamada “Or” ― ele interrompe um
instante diante de meus olhos esbugalhados. ― Estou apenas fazendo
comparações para poder lhe explicar. Mas acho que acabei de confundi-la
ainda mais.
113
― Com certeza! ― desabafo.
― Estamos numa outra dimensão do Universo, Clara. Você nunca verá o
Sol nascer em Malkuth. E nunca verá a Lua se pôr em Malkuth. Amanhã,
quando acordar, Or estará no mesmo lugar, como uma Lua eternamente
adormecida ou um Sol que nunca dorme.
― Então aqui é sempre dia e sempre noite...
― Aqui, não existe tempo ― encerra ele.
***
Acordo com papai sentado a meu lado. Ele acaricia meus cabelos com
ternura. Olho para o lado e Olívia ainda dorme. Não interrompo meu pai, não
digo uma só palavra, permitindo-me aproveitar este momento mais alguns
instantes antes de regressar ao mundo real. Eu, Olívia e papai juntos,
acolhidos num palácio encantado e cercados de seres celestiais que nos
protegem o tempo todo, de todos os males. Eu ficaria aqui para sempre,
vivendo este sonho. Mas como bem disse Nate, o tempo é ilusório e para os
humanos, o sempre é inatingível. Malkuth é inatingível. Nate é inatingível.
Essa ilusão não poderia jamais ter se tornado real para mim. Não poderia
sequer desejar que Nate voltasse a me procurar. Desejar é um sentimento
perigoso. E desejar um anjo é pecado. E eu não quero mais pecar,
principalmente se este pecado não afeta só a mim.
Antes de saber da existência de Nate, não sabia que precisava de um anjo
da guarda. Ainda criança, quando rezava à beira da cama de mamãe, pedia por
ela mais do que por mim. Depois que ela se foi, das poucas vezes que rezei,
não sabia por que e nem que um anjo estava ouvindo. Agora que não tenho
mais motivos para duvidar que ele sempre me ouviu, quero ― preciso ―
duvidar de tudo o que vi e ouvi. Pois para Nate eu não passo de uma frágil
criatura, cheia de defeitos, mais uma entre milhões. Fantasiei que eu pudesse
representar algo a mais para ele, que eu pudesse ser especial, como se fosse a
única. Deixei-me iludir por mim mesma. Ele nunca me iludiu. Com o fim
deste sonho, acaba também a fantasia.
***
Estou de olhos fechados, sentindo o afago de papai nos meus cabelos.
Olívia desperta e papai vai para a cama dela. É bom ter papai para nos mimar
de novo. Este curto momento em família é interrompido por Haziel, que entra
no quarto de supetão, anunciando:
― Vim avisá-los que partirão em dez minutos.
A postura formal do querubim contrasta com sua expressão cândida. O
formalismo é um aspecto comum nos anjos. Nate é uma exceção. Não só a
postura, mas suas atitudes são meigas e gentis, como se ele se humanizasse ao
relacionar-se com os humanos. Não é só a sua aparência que inspira
humanidade, é tudo o que transmite e como transmite.
114
Nos dez minutos que nos concedeu Haziel, aproveitei para pentear o
cabelo de Olívia e ela o meu enquanto admirávamos a paisagem exuberante da
janela do quarto. A estrela Or continua no mesmo lugar de ontem à noite. Ela
se insere, imóvel, na pintura bucólica da paisagem.
Haziel nos interrompe adentrando o quarto. Chegou o momento de
partirmos. Logo atrás aparece Nate, que não desvia o olhar do meu nem
quando se aproxima de papai. Ele diz algo em seu ouvido, mas minha
curiosidade não alcança sua voz. Enquanto Haziel já segura minha irmã para
expandir as asas e alçar voo, chega um outro anjo e se apresenta como Caliel.
Caliel se aproxima de meu pai e segurando-o fortemente, abre as asas e num
impulso desaparece atravessando a janela de vidro. Impressionada, esboço
uma pergunta no pensamento que Nate imediatamente responde:
― O vidro daqui não tem massa como no seu mundo. Não se preocupe,
seu pai está sem arranhão algum.
Ele me toma nos braços e decolamos ao mesmo tempo que Haziel e
Olívia. Ao atravessar a janela, perdemos alguma altitude e planamos sobre o
palácio. Nate abana as asas e o movimento do ar nos impulsiona para além das
montanhas mais altas. Segundo Nate, o palácio está distante, se tornando um
ponto equidistante entre nós e a esfera terrestre. Quando meus olhos se
estabilizam na paisagem, já atravessamos uma densa camada de nuvens.
Ouço o som de um coração descompassado. Recosto minha cabeça no
peito de Nate para verificar se é de fato o dele que bate tão forte quanto o
meu. Pergunto se está bem e ele faz que sim com a cabeça, mas não me
convence. Sua respiração se torna ofegante como se estivesse cansando e sua
pele aquece depressa. Instintivamente tento me afastar, mas ele me agarra
ainda com mais força para não me deixar cair.
― Desculpa... Preciso concentrar minha energia para não transferir uma
carga que seja letal a você.
O incômodo é aliviado pelo vento fresco de encontro a nós. Descemos
depressa e as imensas asas brancas de Nate não se movem. É como se
planássemos enquanto caímos no vazio. De repente já não avistamos Olívia e
Haziel. Talvez estejamos descendo mais depressa que eles. A sensação de
estar nas alturas, sozinha com Nate, acelera o meu coração.
― Está com medo? ― pergunta ele, inclinando a cabeça para olhar nos
meus olhos.
― Não, de jeito nenhum!
Ainda bem que ele não percebe que o que pensa ser medo é só
nervosismo por acreditar que ele quer estar perto de mim. Ele podia ter
preferido viajar com meu pai e Caliel faria a viagem comigo. Sei que não
devia criar expectativas, iludindo-me de que ele possa sentir o que estou
sentido. Ele não pode sentir nada. E não deve. Ele é um anjo.
Avisto o mar abaixo de nós e, de repente, estamos pousando.
― Onde estamos? ― pergunto, confusa.
115
― Não reconhece? Estamos na praia onde nos conhecemos ― responde,
satisfeito, com um sorriso brando nos lábios.
― Só eu te conheci aqui. Você já me conhecia...
Ele fica calado. ― O que acha de mim? Já que me conhece um pouco ―
agacho para colher algumas conchas na areia. ― Ou muito...
― Não pense que por ser um anjo sei tudo da vida dos humanos. O
guardião deve ser atento a seus protegidos, mas não aos seus sentimentos. Não
devemos invadir a privacidade do humano, a menos que ele nos permita ou
que seja necessário para protegê-lo ― ele também se agacha, ao meu lado, e
me observa enquanto seleciono as conchinhas. Depois diz num murmurinho
quase inaudível. ― Não é admissível que exista intimidade entre o guardião e
o seu protegido.
― Não é admissível...
Ficamos em silêncio durante alguns instantes.
― Faz ideia do que estou sentindo agora? ― pergunto sem virar o rosto,
os olhos fixos numa vieira, uma graciosa concha em forma de leque que
guardo em minha mão. Ele não responde. ― Gostaria de saber? ― insisto,
levantando ainda com a vieira em minha mão.
― Posso ler seus pensamentos, se permitir ― insinua ele, levantando-se
também.
― Não... isso já seria saber demais! ― digo bruscamente e por impulso,
atirando a conchinha de volta ao mar.
― Desculpe...
Viro-me para ele que está por trás de mim, com o ar acanhado.
― Quis dizer que se lesse meus pensamentos neste momento, eles te
revelariam mais do que eu sei e isso me assusta. Entende? ― pergunto,
aproximando-me dele, mas sem olhar em seus olhos. ― Para falar sobre meus
sentimentos, eu preferia que você estivesse na forma humana.
Ele olha para si abaixo.
― Eu intimido você assim?
Faço que sim com a cabeça. Ele recolhe as asas como se isso fizesse
alguma diferença e eu fosse me sentir melhor. Voltando-se para o mar, diz
com o ar contemplativo:
― Eu realmente gostaria de te conhecer melhor. Tenho curiosidade em
saber mais sobre você ― deixo escapar com um sorriso, até que ele
prossegue. ― Mas não posso me aproximar tanto.
Meu sorriso se dilui.
― Será como você quiser ― digo.
― Não é como eu quero, Clara. É como deve ser.
Um silêncio sibila no vento.
116
― Eu também adoraria te conhecer melhor, Nate. E não é pelo que você
representa, como um mistério... ― não consigo completar a frase. Engulo em
seco.
Faz-se quase um minuto inteiro de silêncio. Nate ainda olha para o mar e
eu, de costas para ele, miro na direção dos coqueiros.
― Desci mais depressa para trazê-la aqui. Para lembrarmos. Será isso o
que vocês chamam de saudade? Uma lembrança? ― pergunta ele, intrigado.
Quando tenho tantas dúvidas, preciso esclarecer as dele.
― É difícil definir a saudade. Quando se ama algo ou alguém e se perde,
vem esse sentimento de sentir a falta e é isso que os humanos chamam
saudade ― explico-lhe. ― Um poeta brasileiro chamado Mário Quintana
escreveu que saudade é o que faz as coisas pararem no tempo. Pode ser essa
lembrança de que você fala, que se tornou permanente no tempo.
― Mas se o tempo para os anjos é ilusão, a saudade também o é ― ele
franze a testa ― O seu pai tem razão. Eu não posso conhecer o que não posso
sentir.
Eu sabia que o que meu pai disse ontem o tinha afetado.
― Há sentimentos que você não precisa conhecer para saber o que são.
Alguns dizem que se pode matar a saudade, que ela pode diminuir com o
tempo. Mas eu aprendi que a saudade é atemporal e imortal. Ela atravessa o
tempo e sobrevive a ele. Como você.
A analogia me deixa orgulhosa. Mas Nate não gostou muito.
― Em vez de ter me antecipado ao tempo, eu podia tê-lo feito parar
agora ― Ele tem os lábios apertados como se estivesse segurando as palavras.
― Mas seria uma ilusão. A ilusão que eu devo ser em sua vida. Como seu
guardião, devo pertencer apenas ao mundo dos seus sonhos.
Ele devia mesmo ter segurado estas palavras. Elas são tão duras que
quase me fazem chorar.
― Mas sonho não é ilusão! Você não é ilusão! Nem as lembranças que
guardamos são ilusão! Tudo isso é muito real. Mais real do que a saudade que
você ignora que sente.
― Clara, não posso apagar suas memórias como fiz com seu pai...
― Você faria isso comigo?! ― interrompo-o.
― A sua memória é necessária para nos certificarmos de que o plano de
trégua é cumprido ― sua voz é fria.
Eu sou um artifício. Não havia me dado conta até agora, mas fui
simplesmente usada para que os anjos conseguissem o acordo. E Nate
aproximou-se de mim com esse único objetivo. Seu afeto e dedicação foram
uma forma de apaziguar seu sentimento de culpa por ter me colocado em
perigo. Eu fui usada duplamente por ele e para ele.
― Não acredito no que estou ouvindo...
117
― E mesmo que não fosse importante para o plano, não tenho o direito
de apagá-las porque eu a envolvi nisso. Mas seria melhor para você que
esquecesse tudo o que aconteceu.
Está sendo tão fácil para ele agora dispensar-me e será ainda mais fácil
esquecer tudo. Mas então por que essa conversa de lembranças, de saudade?
― Por que me trouxe aqui?! Você não sabe patavinas do que é
melhor...você... ― engasgo com a vontade de chorar. ― O que afinal quer de
mim, Nate?
― Quero que seja feliz. Que recomece sua vida.
― E você lá sabe o que é felicidade? Não sente saudade quem não foi
feliz, Nate. Eu sei exatamente o que é melhor para mim. E certamente não é
ignorar a realidade.
― Você foi feliz comigo?
Penso em dizer que quando estou com ele desejo que o tempo pare, dizer
que não o quero como uma ilusão que passou em minha vida, do quanto eu
quero que ele fique, que nunca me deixe... mas não consigo. Não quero ser
patética. Em vez disso, pergunto simplesmente:
― Não nos veremos mais?
Nossos olhares se encontram e meu coração se aperta com a expectativa
da resposta.
― Não sei. Vou levá-la para casa agora.
Há poucos minutos disse que queria me conhecer melhor e agora quer
me afastar. Por que ele se aproxima e me envolve com seu carisma e depois se
distancia como se eu fosse a própria serpente lhe oferecendo a maçã do
pecado? Ele não pode me fazer sentir assim e agir somente conforme o que ele
pensa ser o certo sem levar em conta o que eu penso e quero. Ele pode estar
mais próximo de Deus do que eu, pode ser mais sábio e poderoso do que eu,
mas não é ele quem traça o meu destino.
Desvio os olhos por impulso.
― Não precisa. Prefiro ir andando. Além disso, hoje não chove, não faz
frio, não está escuro... ― olho a praia em volta e penso comigo numa tentativa
de acreditar: e não preciso de você.
― Tem certeza? ― pergunta, estranhando ― Não quero desrespeitar a
sua vontade, mas...
― Absoluta ― interrompo-o com firmeza. ― Você cumpriu sua missão,
Nate. Pode ir em paz.
― Clara... ― ele suspira. ― Não estou abandonando você. É a minha
protegida.
― Que pena, não é? Está preso a mim! ― até eu, lá no fundo, estranho
esse tom sonso. ― Mas se isso te tortura, eu te liberto! Você está livre
dessa tarefa!
118
― Não fale assim.
― Eu tenho livre-arbítrio, Nate. E eu não quero mais que você me
proteja.
Não quero?
― Você não sabe o que está dizendo. E não entende o que está
acontecendo.
― Nate, eu não sei lidar com essa sua inconstância, com esse mistério
todo que cerca você. Eu já sou instável e confusa por conta própria. Não me
peça para entender você. Já é difícil entender o que é natural e estou sempre
me perguntando por que isso é assim ou aquilo é daquele jeito nesse mundo
louco... agora, entender o que ultrapassa esse mundo, não dá.
Percebo que meu desabafo o surpreendeu. É a primeira vez que noto essa
expressão frustrada nele.
― Tem razão. É melhor que não saiba mais do que já sabe.
Engulo o orgulho e depois de inspirar longamente, digo:
― Obrigada pelo que fez pelo meu pai. Enfim... obrigada por tudo.
Ele me encara.
― Você pode agradecer, mas reservo-me ao direito de não aceitar.
Torço o nariz. É claro que não quer aceitar. Não se agradece aquilo que
foi feito por obrigação. Eu já havia me esquecido.
Abrindo as asas, lentamente, seus pés deixam a areia e com a mão
erguida num aceno, ele diz:
― Até breve, Clara.
― Adeus, Nate.
E ele voa, deixando no ar um rastro de perfume de jasmim.
Depois que Nate entrou em minha vida, eu só me pergunto pelo que não
tem resposta. Quanto de tempo pode caber numa despedida? E quanto de
saudade?
119
18 - Espelho
“Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E
solitário.”
(Clarice Lispector)
Caminho descalça pela praia, sentindo a areia fina e fria na planta dos
pés, deixando com as pegadas que ficam para trás, a memória de Nate.
Antes de saber que ele existia, eu não precisava dele porque não sabia
que precisava. Se ele quer que eu o esqueça é porque não quer que eu precise
dele. Talvez ele esteja certo e, mesmo que me doa admitir, esquecê-lo é o
melhor para mim. Mas o fato de não precisar dele não o afastará. Ele é o meu
anjo da guarda e eu precisarei mais do que esquecê-lo. Precisarei pensar que
ele não existe.
Mas como? Quando ele falou em amnésia me deixou furiosa, mas seria
menos traumático do que negá-lo. Isso seria negar a realidade e eu não vou
simplesmente me transformar numa esquizofrênica agora. Ele quer que eu seja
feliz. Se ele me mostrou que nunca estarei sozinha, por que me faz sentir mais
sozinha do que nunca?
Como recomeçar e continuar aquela vida organizada e pacata onde tudo
era, ou pelo menos parecia, normal? Se eu pensar que tenho minha família
para cuidar, os amigos dos quais me distanciei, o curso se aproximando do
fim, minha vocação para me lembrar que tenho uma missão nesta vida e que
nessas coisas preciso investir meu tempo, talvez eu consiga. Afinal, eu mudei,
mas tudo a minha volta permanece inalterado. Concentrar-me menos no
interior e mais no exterior pode ser uma boa foma de recomeçar.
Dou as costas ao Sol que desce depressa na direção do mar, às gaivotas
que bailam no ar misturando-se às cores do crepúsculo vespertino e continuo a
caminhada na estrada de cerca de um kilômetro até minha casa. Os
jasmineiros não me deixam esquecer...
Uma flor pousa em meu cabelo. Retiro-a enredada entre uma mecha e
inspiro o seu aroma. Guardo-a em minha mão por um instante mas, querendo
afastar a lembrança de Nate, esmago--a entre os dedos. A alvura e a maciez de
suas pétalas me fazem lembrar dele. O cheiro do jasmim ainda mais intenso é
120
inebriante e doce como ele. Será que meus sentidos estarão para sempre
ligados a Nate?
Avisto a minha casa no fim da rua e, no ímpeto de deixar para trás aquela
praia, aquela história, aposto todas as minhas forças numa corrida. Minha
sombra é mais rápida e mais alta que eu neste momento.
***
Antes de tocar a campainha, ainda me indago se Olívia e papai já
chegaram. Assim que a porta se abre, os olhos lacrimejantes de Maria
anunciam que sim.
― Querida! Você não sabe quem está aqui! ― exclama ela, apertando as
minhas costelas.
Ela está tão contente que não faz perguntas, apenas ri de papai e de
Olívia deliciando-se com suas guloseimas. Houve tempo de
preparar cookies no forno. Os cookies crocantes de baunilha com gotas de
chocolate de Maria são uma especialidade.
― Não vai querer os biscoitinhos, Clara? Fiz pensando em você, meu
anjo! ― diz ela impondo o tabuleiro à minha frente.
― Não fale em anjo, Maria... por favor... ― murmuro.
O cheirinho de chocolate derretido não abriu o meu apetite. Sentamos à
mesa da sala e enquanto ela ia e vinha da cozinha preparando o jantar,
aproveitei para lhe perguntar sobre o seu depoimento. Papai também quis
saber como foram os dias em que esteve ausente, então, informei-o acerca da
investigação e das suspeitas do delegado. Ele ficou bastante irritado,
principalmente quando lhe contei sobre a suspeita de suicídio.
― Que evidências esse delegado poderia ter para considerar um
suicídio? Esse país está perdido nas mãos de profissionais assim... ele devia
voltar para os bancos de estudos de novo! ― reclama ele, inflamando o seu
discurso.
Deixo papai falando sozinho e subo as escadas correndo atrás do celular
que toca insistentemente. Procuro aflita pelo aparelho, revirando as roupas até
dentro do armário, e depois fico uns instantes inerte, apurando minha audição
para localizá-lo. O tipo de toque pressupõe um número desconhecido. Pode
ser qualquer pessoa e isso aumenta a minha angústia. Quando ele silencia,
sento-me na cama, desolada, e é quando o percebo por baixo da colcha.
Estranhamente, não há número registrado no visor.
Todos me aguardavam na sala para a oração antes da refeição. Papai é o
orador da vez. De mãos dadas, nosso círculo familiar está de novo completo.
Maria preparou o prato preferido do chefe da casa, o trivial brasileiro: arroz,
feijão, bife e batata frita. Enquanto todos se servem com apetite, coloco
apenas algumas folhas de alface no prato e um pouco de suco de laranja no
copo. Mastigar é um suplício. Olívia repara, cutuca-me com o pé por debaixo
da mesa e eu retribuo com um sorriso frouxo. O jantar está demorando mais
121
tempo do que o habitual, o que me incomoda. Só penso no vazio e no silêncio
do meu quarto. Culpo-me por este meu jeito inconformado agora que estamos
finalmente todos juntos de novo. Não deveria estar faltando nada. Mas para
mim, está.
― Querida, você não pode ficar só com a salada... coma um bifinho! ―
insiste Maria.
― Estou sem fome. Sei que está tudo delicioso ― digo olhando para
papai que já está no terceiro bife.
***
Faço uma careta para o celular sobre a minha cama e entro no banheiro.
Tiro as roupas com cheiro de maresia e enquanto espero a água quente encher
a banheira, observo-me no espelho. Vejo no meu rosto embaçado com o
vapor; os olhos sem brilho e fundos ― olheiras como estas nem na época do
vestibular ― e os cabelos emaranhados fariam inveja à crina de um pangaré.
A conclusão é imediata: preciso mesmo cuidar dessa aparência. Isso
deve fazer parte do recomeço. Irei ao salão e, pela primeira vez na vida, farei
um check up completo. Até sei quem vou convidar para o programa ficar
menos insuportável: Chris. É o tipo de programa irrecusável para ela.
Limpo o vapor do espelho com as mãos. Minha aparência depois do
banho já não é tão assustadora, ao menos superficialmente. Ao som
de Radiohead, depois de muito rolar na cama, consegui adormecer, olhando
para o vazio do teto.
***
O sol forte me despertou. Viro para o lado e vejo o rádio--relógio
piscando. Mexo-me, ainda deitada, sem conseguir abrir os olhos
completamente, procuro o celular entre lençóis e cobertas.
― Nove e meia! ― exclamo, pulando da cama. ― Assim não vai dar
tempo de ir ao salão antes das aulas!
Liguei para Chris e o entusiasmo que manifestou diante do meu convite
levou o último resquício de sono que eu ainda tinha. Verifico que não há
ninguém em casa. Enquanto a porta da garagem sobe automaticamente,
observo as flores no jardim. Ajoelho-me na grama para sentir-lhes o aroma;
nenhuma tem perfume melhor que o jasmim. Afasto-me depressa, entro no
carro e jogo meus cadernos no banco do acompanhante. Preciso sentir-me
satisfeita por estar recomeçando minha velha rotina.
No engarrafamento observo as pessoas sisudas que passam ao meu lado,
estão tensas, de mãos rígidas ao volante. Sei que não há prazer algum em estar
num engarrafamento, mas bem que podiam amenizar a expressão dramática
com um sorrisinho. Precisava ver alguns sorrisos para lembrar que eu também
sei sorrir. Encaro-me no retrovisor. Eis aqui alguém diferente: não estou
122
sisuda, posso até sorrir! Esboço um sorriso no espelho, desfazendo-o logo a
seguir ao me dar conta de que assim não convenço ninguém.
De repente, a música que toca no rádio é interrompida pela vinheta do
plantão:
“Interrompemos nossa programação para anunciar que após ter estado
desaparecido por quatro dias, o cientista brasileiro, dr. maurício chevallier, já
se encontra em casa, passando bem. Mais detalhes no informativo do meio-
dia”.
Com esta notícia se espalhando agora, o salão de beleza é o último lugar
no planeta para onde eu deveria ir. Disco o número de papai no bluetooth do
carro.
― Alô, Clara? ― atende esbaforido. Seu fôlego entrecortado se
amplifica no viva-voz.
― Pai? Onde você está?
― Cometi o erro de ir à delegacia e agora fiquei encurralado em casa.
Hoje não saio mais daqui, nem arrastado!
― Tem muitos jornalistas aí fora?
― Muitos? Eles são mais do que isso!
― Pai, o que você contou a polícia?
― A verdade.
― Qual verdade? ― Ouço o telefone de casa tocando insistentemente e a
voz de Maria ao fundo.
― Em casa te explico, filha. Mas não se preocupe. Faça as suas coisas
que está tudo bem. Tenho que atender uma ligação ― disse ele, por fim, antes
de desligar.
Procuro recompor minha fisionomia natural antes de sair do carro. Se
tivesse feito marcação no salão, a esta hora dezenas de jornalistas estariam
montando guarda na entrada. Coloco meus óculos escuros na ilusão de que
eles pudessem me tornar irreconhecível. A passos largos, atravesso a avenida.
Respiro aliviada quando a recepcionista me encaminha direto para a manicure,
onde já está Christiane.
― Você demorou, hein! ― ela levanta os olhos da revista Hola em seu
colo. ― Não quis esperar porque a Vanderléia estava livre e eu não podia
perder a chance de fazer minha manicure com a melhor profissional de Ipa!
Vanderléia sorri para dentro, sem se distrair daqueles pequenos
instrumentos de tortura que retiram cutículas.
― Você mora aqui ao lado, não vale ― abaixo-me para os dois
beijinhos. ― Assim vamos adiantando porque hoje o dia está cheio! Temos
aulas à tarde ― digo, tentando me lembrar de algo que pudesse ser mais
empolgante.
123
― Pois é... com aquele professor que é uó ― diz ela fazendo uma careta
peculiar, unindo os olhos e escondendo os dentes com os lábios para dentro.
― Cruz-credo, Chris! ― exclamo.
A manicure não resiste e desta vez solta uma risada que ecoa por todo o
salão.
― Como você está, amiga? ― pergunta Chris transformando seu
semblante no rosto de um bebê mimoso.
― Tudo bem. Aconteceu uma coisa, mas depois te conto, quando
chegarmos na faculdade.
― Eu bem que notei clima de romance rolando no ar, quando você me
ligou marcando salão... isso é inédito! A Clara, num salão de beleza? Pensei
logo: “Hum, ela deve ter conhecido alguém” ― relata, dublando a própria
voz. Depois reclama, tentando folhear a revista com os dedos recém-pintados
de vermelho-rubi. ― Mas agora fiquei curiosa... isso não se faz! Quem é ele?
Eu não podia mesmo esperar outra coisa de Christiane Ruiz. Desde que
me entendo por gente minha melhor amiga tenta me arrumar um namorado.
Se Chris soubesse que é justamente o contrário e que estou neste salão para
esquecer alguém...
Chris é filha única de pais separados e vive com a mãe, Silvia. O pai,
Paulo, é um renomado arqueólogo que há alguns anos vive na Espanha.
Durante as férias de verão ela sempre viaja para visitá--lo, caso contrário, ela
nunca veria o pai. Ela sempre morou em Ipanema e nos conhecemos ainda no
colégio, no Leblon. A partir de então nos tornamos inseparáveis nas festas,
nos barzinhos, na praia, no shopping; No ano que antecedeu o vestibular
surgiram as amizades com Jéssica e Marcus. Todos queríamos fazer medicina
e formamos um bom grupo de estudo.
Minha melhor amiga é uma romântica incurável. Nunca conseguiu
resistir às investidas dos garotos mais espertos. Ela teve alguns romances, que
quando terminavam a deixavam arrasada. Vê-la chorar pelos cantos foi mais
um incentivo para decidir que eu não iria namorar tão cedo.
E a tortura chega ao fim. Depois do estica e puxa da escova no cabelo,
Hélder traz o espelho para que eu veja o resultado de todos os ângulos:
― E então, gata, que tal?
― Tá bom... ― giro a cabeça de um lado para o outro, sob o olhar aflito
do cabelereiro que já morde o cabo da escova. ― Você fez um ótimo trabalho,
Hélder! ― enfatizo, para ver se não o magoo por conta da minha fisionomia
decepcionada.
Desconfiada diante do grande e iluminado espelho à minha frente, tento
encontrar uma nova Clara na antiga Clara. Meu cabelo continua abaixo dos
ombros, só um pouco mais curto e repicado. Chris me observa enquanto seus
cabelos dourados esvoaçam por todos os lados com a potência do secador cuja
boca mais parece uma turbina de avião.
124
― Ficou mega estiloso, amiga! ― ela proteje os olhos dos fios
freneticamente rebelados pela ventania.
― É, mas eu continuo a mesma ― murmuro, levantando a franja da
direita para a esquerda e depois fazendo o mesmo movimento ao inverso e de
novo, para um lado e para o outro, repetidamente.
― E isso é bom ou ruim? ― pergunta ele. ― Ruim, né? ― depreende da
minha indecisão sobre o lado da franja. Ele se aproxima e, já irritado com meu
tique nervoso, com seu pente mais fino, conserta a demarcação do corte da
franja para o lado direito. ― Confie em mim. Esse é o lado que dá equilíbrio
ao seu rostinho.
― Seu trabalho ficou divinal, Hélder ― digo, virando a cadeira giratória
na direção dele. ― Mas eu pensei que fosse ficar diferente. Queria mudar
radicalmente. Eu talvez não tenha sido muito enfática ao te explicar...
― Clarinha, meu bem, para mudar do jeito que você quer, eu teria que te
descaracterizar. Você tem esse ar assim, menina ainda, delicada... Eu não quis
te roubar isso num corte radical! Para isso eu até preferia indicar um amigo
meu, excelente cabelereiro, mas que não se importa muito com a aura das
clientes, sabe?
― Ownnn... que fofo! ― exclama Christiane, com a voz dengosa. ―
Não sabia que você era místico desse jeito, Hélder!
― Então você não quis me descaracterizar para não desequilibrar minha
aura?! ― pergunto, em tom de surpresa e de deboche ao mesmo tempo. ―
Fala sério, Hélder!
Christiane, já com os cabelos perfeitamente ionizados ― e agora,
inamovíveis, graças a nuvem de laquê que a envolve ―, olha assustada para
mim. Acho que exagerei um pouco na reação.
― Docinho, eu percebi que você sentou aqui na minha cadeira muito
indecisa, até se deveria fazer um corte ou não. Você não quis pintar, fazer
luzes, nada. E ainda bem, porque seu cabelo tem uma cor natural de fazer
inveja! Então escolhemos várias opções de cortes e, na dúvida, você acabou
selecionando a mais radical delas. É, ou não é? ― argumenta ele.
― Você tem razão, Hélder ― levanto da cadeira. ― Estou insatisfeita,
mas não é com o cabelo. Vir aqui hoje foi só uma desculpa para me enganar.
― Já entendi. É autoestima, não é? Para isso eu conheço um psicólogo
excelente. Ele já foi namorado meu, mas sabe como é, os gays não ficam
brigados muito tempo. Continuamos amigos. Eu te dou o telefone dele se você
quiser.
― Ai, Hélder... você é ímpar ― digo.
― A-do-rei! Fala de novo!
Sei que não é a minha imagem que me incomoda. E não tem nada a ver
com autoestima, como especulou o Hélder. Ele até chegou perto, mas o
problema é mais profundo. O espelho não mente, mas esconde. Antes de
125
procurar uma mudança exterior, tenho que começar por onde estou tentando
fugir: pelo meu coração.
***
Neste momento, há outra questão a resolver e desta também não posso
fugir: começar a pôr em prática o plano que vai proteger papai.
― Chris, tenho que te contar uma coisa... ― digo, mordendo os lábios.
― Ah, sim! Já tinha esquecido de cobrar. Deve ser culpa do casamento...
já tô surtando com os preparativos! ― ela se ajeita no banco do acompanhante
do meu carro, contorcendo-se para estar mais de frente para mim. ― Conta lá,
quem é o bonitão?
― Não é nada disso, Chris ― com a mão no volante, giro o rosto para
ela e com o ar sério, anuncio: ― Meu pai apareceu ― Christiane empina uma
sobrancelha. Ficou sem reação, como se estivesse em dúvida sobre como
reagir. Então, sou mais explícita: ― Vivo.
É quando ela solta um grito estridente que quase me deixa surda.
― Claraaaa, que notícia boa! Que bom que o pesadelo acabou, amiga!
― exclama ela enquanto afaga meu cabelo.
― Acabou ― desabafo.
Ou está apenas começando.
126
19 - Plano
Estaciono o carro na minha vaga favorita, um cantinho recôndito e
bucólico próximo ao muro de eras, nas profundezas do estacionamento da
faculdade, onde existe uma pequena entrada subterrânea alternativa para o
campus. Essa é uma das minhas novas estratégias para não ter que esbarrar
com pessoas indesejáveis.
― Não abra a porta ainda, Chris!
Ela arregala os olhos verdes.
― O que foi?
― Olha bem primeiro, verifica se aquele imbecil não está por aí.
― Quem?... o Jonas?
― Quem mais é bobão o suficiente para jogar terra na gente?
― Pois é, depois de duas horas de terapia intensiva no salão de beleza
não podemos correr esse risco, né? Deixa eu ver... ― ela põe a cabeça
timidamente para fora da janela, gira a cabeleira loira para os dois lados, e
volta dizendo: ― Aparentemente a área está limpa.
Entramos no campus, uma ao lado da outra: a morena tímida e a loira
fatal. Provavelmente Christiane sente-se muito poderosa com suas madeixas
loiras em espirais, mas eu sinto que estou pagando o maior mico e sou capaz
de me enfiar no primeiro buraco que aparecer. Não passa uma pessoa por nós
que não nos encare de frente ou que não olhe para trás. Chris liga para Marcus
e combinam nosso encontro na Toca do Coelho. No caminho esbarramos com
os pagãos: Wotan, Ahriman e Lugh. O primeiro me lança um olhar gélido, que
era capaz de me imobilizar se durasse mais tempo. Ele parecia furioso.
― Você viu o olhar que Wotan lançou pra mim? ― pergunto,
cutucando-a.
― Apaixonado? ― rebate ela, desvairada, olhando para trás para ver se
ainda o alcançava.
― Não! Você não viu... ele parecia que queria... sei lá! Me matar!
― Que horror, Clara! ― exclama em tom de desprezo pela minha
suspeita e ainda me repreende: ― Você realmente não sabe ser o centro das
atenções. Mire-se em mim, meu bem! ― diz ela no alto de seu salto de dez
centímetros e conclui: ― Não dê atenção a quem não merece.
127
Caminhando ao lado de Chris pelo campus, não há como ignorar os
olhares de quem passa. Isso me faz pensar que nunca vou ser deslumbrante
como ela. Chris atrai os olhares de uma forma diferente; as pessoas quase que
param para reverenciá-la. E eu, sou como sou; tímida, recatada e introvertida,
sinônimos de “apagada”, “sem graça”, “transparente”. Não quero me sentir
uma sombra para o resto da minha vida, mas também não sei ser como Chris e
nem quero tentar, porque não daria certo, não combina comigo. Eu só queria
ter alguém para admirar, em quem me espelhar. Nestes momentos, é quando
lembro a diferença que minha mãe faria em minha vida se estivesse aqui.
***
As aulas começam em meia hora e por isso ainda temos um tempo para
pôr o papo em dia. Puxamos as cadeiras e nos sentamos onde já estão Jéssica,
Marcus e o irmão mais velho de Marcus, Rodrigo, que estuda Direito no bloco
ao lado. Tudo o que sei sobre ele é que lhe falta apenas mais um semestre para
terminar o curso.
― Tudo em cima, meninas? ― pergunta Marcus, levantando para nos
cumprimentar.
― Gostou do visual? ― pergunta Chris, fazendo ar de convencida.
― Em você já estou acostumado a ver estas frescuras... ― ele vira a
cabeça na minha direção: ― Clara é que me surpreende ― ele assobia “fiu-
fiu”, me fazendo corar.
― Não implica com ela, Marquinhos! Já sabe que a Clara fica sem jeito
com essas brincadeiras! ― repreende Jéssica, dando um beliscão no ombro do
namorado.
Ele a ignora e se volta de novo para mim.
― Gostei de ver a mudança, Clara.
Meneio a cabeça, agradecendo.
― Está muito bonita. Aliás, você sempre foi ― complementa Rodrigo
fitando os meus olhos furtivos.
Diante do silêncio geral, Marcus completa a cena embaraçosa:
― Ihhhh... agora é que ela ficou vermelha pra valer!
Provavelmente estou vermelha. As bochechas sempre foram o meu ponto
fraco com os rapazes e os exercícios físicos.
― Vocês já pediram alguma coisa pra beber? ― pergunto, levantando o
braço para chamar o garçom.
A restante conversa girou em torno do regresso de papai. Precisei me
esquivar das perguntas indiscretas, principalmente de Marcus, curioso por
detalhes. Também tentei me esquivar dos olhares de Rodrigo.
Ainda antes de entrar na sala de aula, para enfrentar o Dr. Adriano
Martins ― o chato e arrogante professor de Clínica Pediátrica I ―, Chris me
puxou pelo braço e encostou a boca no meu ouvido:
128
― Amiga, o Rodrigo não desgrudou os olhos de você! ― ela pisca o
olho pra mim.
― Ele é muito velho pra mim.
― Ele é só dois anos mais velho! E você sempre teve a mania de que os
rapazes da nossa idade são imaturos! ― ela arrasta a conversa até sentar-se na
carteira. ― Bonito, inteligente, trabalhador e mais experiente! É o cara
perfeito!
Sim, ela acabou de definir uma lista de requisitos básicos do homem
perfeito para mim. Isto é, para ela.
***
Ocupamos sempre os lugares do centro esquerdo da sala. Em fila, sento-
me à frente, Chris logo atrás e depois os namorados. Do lado direito da sala,
encostados ao fundo direito junto à parede, ficam os pagãos com sua morbidez
gótica. Como em qualquer turma de qualquer curso, é inevitável que se
formem panelinhas. Nem a medicina escapa. Mas aqui somos organizados por
especialidade.
Temos o grupo das solteironas que sonham com a pediatria (não me
perguntem a conexão), temos os coloridos que por alguma razão freudiana
preferem dermatologia, os hipocondríacos se juntam por um mundo melhor
livre dos ácaros na ala dos alergistas, os nerds preferem os desafios
emocionais de Gray´s Anatomy na cirurgia geral, as Alices (uma subespécie
das Pattys) que sonham com as bioplastias no país das maravilhas da cirurgia
plástica, o grupinho da vocação hereditária já tem até consultório montado e
entre tantas outras possibililogias (consultei o dicionário de palavras
inventadas de Guimarães Rosa e nem assim encontrei esta palavra, mas o
professor de deontologia cismava com ela e eu sabia que algum dia sentiria
necessidade de usá-la), restam os indecisos, como eu.
Enquanto me perco em devaneios numa logia sem lógica, a aula parece
durar uma eternidade. Consola saber que é o único tempo de hoje e que a
seguir, estarei livre. Enquanto o professor Dr. Martins fala sobre a
etiopatogenia de sei-lá-do-quê, meu pensamento ganha asas: o que fazer com
o meu tempo livre? Antes de Nate, eu não tinha essa dúvida. O tempo livre
nunca foi um desafio para mim. Christiane me interrompe, cutucando minhas
costas.
― Além de repetitivo, esse prof é totalmente old fashioned. Repara só no
suéter de losângulos! Deve ter pertencido ao tataravô dele. E a tosquice dos
óculos de armação acrílica amarelada, com esparadrapos segurando as
hastes?! ― sussura ela empregando um tom enojado à voz. ― Devem ter
sobrevivido às duas grandes guerras...
― Até aí ele é só um pobre coitado, ferrado e com gosto duvidoso.
129
― Não está reparando na calça? De veludo?! Se ele tivesse o corpo do
Bon Jovi naquelas calças de couro, eu não me importava de estudar todos os
dias a mesma matéria... ― ela suspira. ― Você não? ― ela pisca pra mim.
***
Na saída do campus, numa picape Hilux, Gustavo já esperava por ela. À
tarde, o visual praiano de bermuda e camiseta mamãe-sou-forte fica de lado e
ele se transforma num empresário engravatado. É como se ele tivesse duas
vidas. Até seu linguajar muda. O dialeto surfista é substituído por outro não
menos esquisito, com uns termos eruditos que eu não sei bem onde ele vai
buscar. Talvez do pai, um senhor de sessenta e poucos anos, de personalidade
antiquada. Bom, a Chris gosta dessa vida dupla do Guga, é o que interessa.
A primeira vez que ela o apresentou ao grupo, estávamos na praia. Eles
se conheciam há pouco tempo e ele babava que nem um bulldog por ela. Com
a convivência descobri que, além da primeira impressão de bobo, eu também
estava sendo preconceituosa por Gustavo ser surfista. Pensava que garotos de
praia não gostassem do batente, mas enganei-me redondamente. Ele se formou
em administração de empresas no ano passado, tendo terminado a faculdade
um semestre antes do tempo. Durante o curso, ele ainda esteve um ano em
Portugal, onde fez intercâmbio. Trabalha com o pai na empresa de construção
da família e ainda encontra tempo para surfar e mimar a Chris, que é bastante
exigente. É carinhoso, companheiro e a idolatra. E isso faz dele o homem
ideal para Chris.
***
O pessoal se despede e eu vou sozinha até o estacionamento. Para minha
surpresa, encostado à porta do meu carro, está Jonas. Ele está trajado à James
Dean, para variar, como se tivesse saído de um filme da década de 50: óculos
escuros, camisa branca, jaqueta de couro e calça Levi´s azul-marinho. Ele tem
ar de quem se sente um verdadeiro caubói do asfalto. Deve sentir que tem
algum poder, provavelmente pensa que aquela calça justa e rota ressalta a sua
virilidade.
O encontro é inevitável a menos que eu me faça de distraída e retorne
para o campus. Tenho pouco tempo para decidir sem que ele perceba que dei
pela sua presença. Se ignorá-lo arrisco-me a provocar uma perseguição. Mas
também não é preciso provocá-lo para isso... Enfim, eu já estou aqui e não vou
mudar o meu trajeto por causa dele. Continuo a seguir em frente e quase
mergulho toda a cabeça dentro da bolsa fazendo de conta que estou
procurando as chaves, embora elas estejam à mão, prontinhas para abrir o
carro e, se preciso for, ainda disparar o alarme.
Tento ignorá-lo, mas ao chegar perto o suficiente para usar o controle
remoto, inevitavelmente meus olhos esbarram nos olhos de Jonas. Foi apenas
um relance, pois baixei os olhos em seguida, mas pareceu-me ter visto ele
piscar para mim. Podia também ter sido um cisco que entrou no olho dele.
130
Podia ser daqueles ciscos que fazem o olho inchar. Era o que ele merecia.
Reviro os olhos diante do seu truque barato e ele retribui estendendo um
sorrisinho de canto, meio perverso, meio travesso. O que ele estará preparando
agora? Eu sei que viver encostado é um dos seus esportes prediletos, mas por
que escolheu justamente o meu carro para se encostar hoje?
― Com licença ― peço-lhe, com a chave do carro em punho, prestes a
disparar o alarme.
― Nem um “boa tarde”...? ― pergunta ele, com o tom arrogante de
sempre.
― Boa tarde. Pode me dar licença, por favor?
― Claro ― diz, desencostando do carro. ― Mas antes eu queria um
favorzinho seu.
― E qual seria? ― pergunto, desconfiada.
― Sabe, eu ando faltando muito as aulas. Tenho tido muita coisa pra
fazer... vida agitada. Você sabe que os exames vêm aí e que eu não sou muito
bom em provas, fui reprovado duas vezes e quero acabar logo esse curso
chato... ― começa ele, com uma conversa de cerca-lourenço e hesitante
demais para o meu gosto.
― Diz logo! ― exclamo apressada. ― Escuta, se for pra me pedir cola,
você...
― Calma! ― interrompe levantando as mãos. ― Só quero seus cadernos
emprestados para tirar cópia ― pede ele, em voz baixa.
― Só os cadernos?
― Exatamente ― ele se distancia da porta.
Enquanto reflito aponto o controle e aperto para destrancar as portas.
Nada acontece. Tento de novo. Terceira tentativa. Olho para o infeliz objeto e
bufo com raiva. Jonas arranca o controle da minha mão com tanta agilidade
que eu nem sequer sinto.
― Está ficando sem bateria, mas... ― diz ele, conseguindo abrir logo na
primeira tentativa. ― Nada que com um jeitinho não se resolva.
Porque será que Murphy nunca está do meu lado?
― E então, estou esperando. Empresta os cadernos? ― insiste ele. ― Eu
te tirei de um sufoco. Você agora está me devendo uma.
― Sufoco?! Eu ia conseguir abrir mas você arrancou o controle da
minha mão!
Ele põe a mão nos ouvidos como se eu tivesse realmente exasperado.
Tudo bem, eu exasperei, mas não aumentei tanto assim o tom de voz. Ele é tão
teatral...
― E quem te garante que não foi o meu toque mágico que recarregou a
bateria?
Essa pérola me faz levar a mão à testa e escorregar os dedos pela franja.
131
― Você se acha muito mesmo, né? O controle funcionou na sua mão por
pura sorte!
― Eu não acredito na sorte ― dispara ele, certeiro.
― Então, em que você acredita?
― No acaso.
― E a sorte não pode ser um acaso?
Ele se surpreende com a pergunta. Não tem uma resposta segura para
dar. Acho que ele nunca tinha parado para pensar nisso. Eu também nunca
tinha pensado até Nate me explicar que existem os dois lados da moeda.
― Sou eu que traço a minha vida. É só isso que eu sei ― ele sopra o ar
entediado. ― E, então? Quantas rugas vou ver nascerem na sua testa até você
se decidir?
As boas maneiras mandaram lembranças. Ele não faz ideia do que é
isso. É muito grosso mesmo.
― Tudo bem. Eles já correram a turma toda mesmo ― digo em tom de
desdém. ― Amanhã eu trago pra você ― concluo, abrindo o carro.
― Só espero que tenha melhorado aquele seu garrancho medonho dos
tempos do maternal...
Com um sorrisinho convencido, ele monta em sua Harley Davidson e,
por alguns instantes, realmente me sinto num estúdio de cinema
em Hollywood. Mas desta vez a protagonista sou eu. Puxo ao máximo pelo
motor. Jonas antevê, mas não se move. Não gosto de acelerar com o meu
Cooper, mas foi por uma boa causa. Pelo retrovisor assisto Jonas sacudindo a
cabeleira no ciclone de terra. Se não havia outro jeito para deixá-lo ainda mais
desgrenhado do que de costume, aceito os louros de bom grado. Já valeu a
pena o dinheiro que vou desembolsar no lava-jato!
***
No caminho para casa um sentimento estranho me invade. À parte da má
educação e da implicância com a minha letra, ele simplesmente desceu do
Monte Olimpo e me pediu os cadernos emprestados. Em anos de convivência
acadêmica, isso é inédito. As provocações de Jonas foram durante muitos anos
da minha vida o pão de cada dia. Ele sempre soube como me tirar do sério.
Tirando proveito do meu jeito envergonhado de ser, já me expôs a toda uma
variade de situações ridículas e nunca perdeu uma oportunidade para me
espezinhar.
Um de seus entretenimentos favoritos era esbarrar e me fazer derrubar a
bandeja de almoço na frente do refeitório lotado do colégio. Da última vez que
fez isso eu tinha quinze anos e segurava cuidadosamente a bandeja com
espaguete à bolonhesa. Lembro ainda do vapor, cheiroso e quentinho. Estava
me dirigindo à mesa onde estava Chris a minha espera quando, como um raio,
Jonas atravessou à minha frente e bastou uma pequena palmada por baixo da
132
bandeja para voar macarrão para tudo quanto foi lado. Uma parte grudou e a
outra deslizou lentamente pelo meu colo. Bastante constrangedor.
Jonas é filho do proprietário e diretor dos Laboratórios S. Bauer onde
meu pai trabalha. Seu pai, Dr. Samuel Bauer, é um dos homens mais ricos e
influentes do país. Jonas tinha pouco mais de um ano de idade quando sua
mãe morreu. Não tem irmãos. Não o vejo com amigos. Os que se aproximam,
ele consegue enxotar em pouco tempo. Vive numa mansão com o pai e os
empregados, dos quais nem sabe o nome. Acostumou-se tanto a ser só, que
agora procura o isolamento. Seu pai sempre foi muito ocupado e como
frequentemente ausenta-se em viagens e congressos mundiais, é o meu pai
quem o subtitui resolvendo todos os pepinos. Diga-se de passagem que meu
pai até gosta desta autonomia porque tem mais liberdade para fazer suas
pesquisas. Quem não gosta nem um pouco destas ausências de Dr. Bauer é
Jonas, que acaba por descarregar no mundo a sua rebeldia.
***
O limpador de para-brisas acompanha o ritmo musical de Matthew
Perryman Jones. Chove forte o suficiente para me lembrar de que preciso
trocar a borrachinha irritante que arrasta no vidro fazendo “nhec-nhec”. Eu
queria me ocupar mais destas bobagens, aliás, queria me ocupar somente de
bobagens atualmente. Mas não posso fugir de certas obrigações.
E lá estão eles, cerca de dez, vestidos com capas e munidos de
sombrinhas, tentando se proteger da chuva. Mal o carro dobra a esquina, eles
começam a se mobilizar em torno da minha casa.
― Me deixem passar, por favor! Sejam gentis, não custa nada! ―
praticamente imploro a dois dos jornalistas que interceptam o meu caminho.
― Só uma palavrinha senhorita, é rapidinho! ― insiste um deles
esfregando-se em meu ombro, enquanto tento chegar ao jardim.
― Não tenho nada a dizer! ― exclamo rispidamente, esbarrando nele
também.
Maria, que ouvira o barulho do meu carro chegando, já estava com a
porta da frente encostada, à espera. Estão na sala assistindo televisão quando
entro, a roupa gotejando no chão. Beijo minha irmã, depois o meu pai e
aproveitando que Maria estava ao telefone dispistando jornalistas, disparo
encarando-o fixamente:
― Agora conta, pai. Que verdade?
― Contei que fui sequestrado e que me libertaram porque eu não podia
dar o que queriam.
― Dinheiro? ― palpito.
― Que falta de criatividade, filha! ― ele suspira. ― Inventei que os
sequestradores queriam umas pesquisas importantes do Laboratório S. Bauer.
Ninguém tem como confirmar a veracidade disso, entende? É a minha palavra
que vale. Eu praticamente mando lá dentro ― conclui, presunçoso.
133
― Mas como você explicou a sua libertação ao delegado?
― Disse-lhe simplesmente que os documentos que os criminosos
queriam estão em posse do banco, o que não é mentira ― explica, satisfeito.
― Ainda contei ao delegado que consegui me esquivar dizendo que as senhas
da fechadura eletrônica estão num banco da Suíça, onde Bauer tem uma filial
do laboratório. O delegado até achou graça quando lhe contei que os bandidos
se borraram de medo ao me ouvirem falar em Interpol!
Definitivamente eu não herdei a criatividade de papai.
― Agora a polícia vai cismar de procurar por pistas desses
sequestradores...
― Que nada! O nosso anjo garantiu de que esse processo será arquivado.
É só uma questão de tempo ― argumenta, confiante.
― Tempo... Para ele o tempo é infinito ― murmuro.
― Como disse?
― Nada. Preciso subir, minha roupa está molhada.
Subo os degraus de dois em dois. Ao chegar no quarto, meu celular
começa a tocar e desta vez sei onde ele está. Está na minha bolsa e isso não
significa necessariamente que esteja acessível. Tenho que tirar a carteira, o
espelhinho, alguns papéis avulsos, o chiclete, os óculos escuros...
― Alô? ― silêncio do outro lado. ― Alô?! ― insisto, sem ouvir nada.
― Alô?! Quem é? ― e sem resposta, desligo.
Alguém bate à porta e enquanto pouso o celular na penteadeira e termino
de vestir as calças, corro para abrir.
***
― Mana, queria falar com você ― ela me encara durante alguns
instantes em silêncio e depois senta-se na cama. ― Estou feliz com a reação
de papai ao que está acontecendo. Não quero criar expectativas muito grandes,
mas hoje quando cheguei da escola, ele me disse que tenho os olhos da
mamãe e que ela sentiria muito orgulho de mim se estivesse viva. Ele nunca
tinha me dito isso antes!
― Também já tinha notado que ele está diferente ― passo a mão no seu
rosto macio. ― Fico preocupada quando todo o processo do inquérito acabar e
ele perder a memória. Esquecerá de tudo, inclusive do sequestro. E haverá
sempre alguém a querer lembrá-lo disso.
― Mas a perda da memória não é definitiva? ― pergunta ela,
arregalando os olhos.
― Não. É um encantamento e dependerá dele ― respondo recordando as
palavras de Nate. De repente, começo a maquinar em alta voz, como se
estivesse sozinha no quarto: ― O caso envolve um laboratório conhecido. A
mídia pode insistir nesse assunto por muito tempo. Teremos que preservar o
134
papai. Precisarei dizer a ele que sofreu uma amnésia psicogênica retrógrada
por estresse emocional.
Esqueço que Olívia está à minha frente. Ela tem a expressão assustada.
― O que você está dizendo aí, amnésia psic... não entendi nada!
― Definir uma estratégia é fundamental para nos precavermos de futuros
problemas com a mídia e a polícia. Até com o próprio laboratório e os colegas
de papai. Precisaremos de uma explicação para todos, inclusive para ele, para
depois que perder a memória.
― Acho que quando papai perder a memória, todo este assunto já estará
morto e enterrado. Ninguém mais vai falar no sequestro.
Quando estávamos em Malkuth com a legião, frente a frente com os
renegados, descobri que, embora o plano dos anjos tenha alcançado uma
trégua, está alicerçado no subconsciente de um homem. E o ser humano é
vulnerável. Meu pai já demonstrou que seus sentimentos o podem trair muito
facilmente. Ele assumiu isso diante dos anjos.
Olívia não percebe, em toda a sua inocência e ingenuidade, que o ser
humano, mesmo carregado de boas intenções, pode praticar o mal. Ela não
percebe e eu não quero desiludi-la, que nós não temos a mínima chance contra
o subconsciente de papai. Pois, se nem os anjos têm! O livre-arbítrio é um
poder muito perigoso e somos sempre postos à prova diante do uso que damos
a ele.
Se a polícia, o dono do laboratório, Dr. Bauer, ou a mídia insistirem
muito nesse assunto, teremos que falar em amnésia para não expormos papai
às lembranças. Ele não poderá ter contato com nada que o estimule a lembrar
da fórmula. E como lidar com papai depois da amnésia? Dizer-lhe que está
com amnésia só o instigará a tentar lembrar-se do sequestro. É uma faca de
dois gumes.
O celular treme na penteadeira. Alguém de um número desconhecido
deixou uma mensagem de voz. Quando aciono a caixa postal, não consta
nada. Está vazia.
135
20 - Primavera
“Há uma primavera em cada vida: é preciso cantá-la assim florida, pois
se Deus nos deu voz, foi para cantar! E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
que seja a minha noite uma alvorada, que me saiba perder... para me
encontrar...”
(Florbela Espanca)
Hoje são 23 de Setembro. Neste primeiro dia de primavera, faz nove
anos que mamãe nos deixou. Nossas vidas, a minha e a de Olívia, nunca mais
foram as mesmas. A ausência da referência materna será sempre uma lacuna
em nossas vidas. Olívia era um bebê, portanto, não tem quase nenhuma
lembrança. Já eu, dos doze anos que vivi com mamãe, guardo recordações que
hoje partilho com ela.
Mamãe sempre foi a minha estrela guia. Tenho a certeza de que ela está
bem e por isso não vivo atormentada com a sua ausência. Olívia costuma dizer
que a estrela de mamãe pertence à constelação de Leo, cuja estrelinha mais
próxima da Terra se chama Wolf 359, distante 7,8 anos-luz de nós e invisível
a olho nu. Minha irmã diz que não escolheu Leo para ser a constelação de
mamãe; ela afirma de pés juntos que é obra do acaso.
Na vizinhança, o dia começa como outro qualquer. Com os primeiros
raios de Sol, o casal Freitas, ambos apostentados, passeiam com o seu
cãozinho westie pela calçada. Os filhos da família Aguiar vão para a escola no
velho Chevrolet, com o pai, contabilista, sempre apressado, comendo seu
sanduíche enquanto equilibra as pastas de documentos. Da janela do meu
quarto vejo também D. Filomena, regando seu jardim enquanto conversa com
D. Clotilde, uma viúva carola e fofoqueira, que debruçada na cerca, fala pelos
cotovelos.
Encontro papai lendo o jornal na sala. Parece que a rede da varanda está
interditada por motivo de força maior. Lamento por ele, já que sempre gostou
de ler o jornal da manhã na varanda, acompanhado de uma xícara de café forte
e sem açúcar.
― Já percebi que os jornalistas ainda estão aí fora ― adivinho, sentando
no sofá ao lado dele.
Espicho os olhos para dar uma espiadinha nos cabeçalhos das notícias.
136
― Não sei, mas é melhor não arriscar ― diz ele com o ar compenetrado.
― D. Clotilde é rápida no gatilho, nem que seja por telepatia, ela conseguirá
encher a vizinhança de jornalistas de novo!
Afasto o jornal da frente de seu rosto e digo-lhe com preocupação:
― Pai, eu entendo que você não queira ficar se expondo, nem dando
explicações para estes jornais sensacionalistas. Mas você precisa seguir com
seu ritmo de vida normal, sua rotina...
Ele pousa o jornal sobre as pernas e calmamente segura a aba da xícara
para dar um gole no café.
― Eu já liguei para o Bauer e como ele está no Brasil, não é
imprescindível que eu esteja no laboratório esta semana. Tirei folga! Tenho
que tirar algum bom proveito do meu desaparecimento! ― diz, piscando para
mim sob o óculos de leitura.
Afinal, eu estava errada achando que papai ficaria morimbundo pela casa
no dia de hoje. Ele não está em casa porque está deprimido, mas simplesmente
porque quer estar.
― Que boa notícia, pai! Eu e Olívia vamos abusar muito da sua
companhia esta semana!
Levanto-me do sofá e é quando ele me analisa de cima a baixo.
― Espera aí, Clara... você está diferente hoje, filha ― comenta com uma
expressão aparvalhada, pousando a xícara vazia no pires e abaixando os
óculos para ver melhor.
Sento-me de novo, encolhendo meus ombros.
― Cortei o cabelo ontem.
― Não! Que cortou o cabelo eu quase nem reparei... ― porque será que
isso não me surpreende? ― É o vestido! Você está linda neste vestido, filha!
Fico em dúvida entre correr para a escada e despi-lo ou agradecer o
elogio. Depois de um tempo contemplativo, ele continua:
― Sua mãe adorava vestidos. Ela tinha mais de uma dezena!
― E onde é que eles estão? ― pergunto, curiosa.
― Eu acredito que tenha guardado tudo lá no sótão. Mas já não me
recordo, filha ― reparo que ele ficou com o sorriso estacionado no rosto por
eu ter demonstrado interesse nas coisas de mamãe.
***
De repente, uma manhã inteira se foi. As aulas passaram ― ou eu é que
passei por elas ―, entre as boas risadas dos meus amigos na Toca do Coelho e
um passeio pelo jardim florido do campus: o Jardim dos Namorados.
Ele foi plantado pelos próprios alunos, em 1950. E desde então vem
sendo mantido por voluntários, geração após geração. É um trabalho que
exige dedicação. Talvez seja a razão da falta de interesse de muita gente, mas
para mim, a palavra “dedicação” soa perfeita. Não há melhor forma de
137
comemorar a chegada da primavera e ocupar o tempo livre neste recomeço.
Cabelo novo, visual novo e jardinagem. Por que não?
Uma voz masculina interrompe meus pensamentos.
― “Não te aflijas com a pétala que voa: também é ser, deixar de ser
assim. Rosas verá, só de cinzas franzida, mortas, intactas pelo teu jardim. Eu
deixo aroma até nos meus espinhos ao longe, o vento vai falando de mim. E
por perder-me é que vão me lembrando, por desfolhar-me é que não tenho
fim.”
Viro meu rosto e ao meu lado está Rodrigo, o irmão de Marcus,
segurando um livro aberto. O susto inicial foi rapidamente esquecido.
― Bonito isso que você leu... de quem é?
― Cecília Meireles. O poema chama-se “4º Motivo da Rosa”. Achei que
viria à propósito quando reparei no seu olhar de pesar sobre as rosas ― diz ele
com o ar pretencioso, fechando e pousando o livro no colo.
― Não estou com olhar de pesar coisa nenhuma. Só acho que deveriam
fazer mais por este jardim tão bonito ― e observo em volta, suspirando. ― As
rosas realmente estão meio murchinhas...
Reparo que seus olhos estão apontados para mim.
― Você estava aí há muito tempo?
― Algum ― responde prontamente. ― Você estava bem concentrada na
roseira.
― Nos meus pensamentos ― corrijo-o.
Ele desvia-se para as flores.
― Muitos ou poucos espinhos? ― pergunta ele, intrometido.
― Alguns.
Ele se recosta a mim, os ombros encostam nos meus.
― Se eu puder ajudar...
― Não... obrigada, Rodrigo ― me afasto ligeiramente. Lembro do
quanto ele é “caxias” na faculdade. ― Você não tem mais aulas hoje?
Ele levanta o pulso para ver as horas e morde os lábios.
― Tenho Tributário, daqui a... um minuto ― responde inconformado.
― Melhor se apressar, então! ― tento disfarçar um sorriso no canto da
boca. ― Também preciso ir, acabei ficando mais tempo do que podia. Hoje
meu pai está em casa e... ― quando dei por mim já estava iniciando uma
conversa mais íntima e desconverso de imediato: ― ...e é isso aí, eu tenho que
ir!
― Espera! Clara! ― exclama, enquanto eu já atravesso o jardim em
direção à saída do campus.
Rodrigo desistiu de me seguir quando provavelmente se apercebeu de
que eu estava pulando de dois em dois os paralelepípedos para me afastar dele
mais depressa.
138
***
Ao chegar da faculdade, avisto papai no jardim de casa numa dança
simétrica com o cortador de grama, para trás e para frente, de um lado para o
outro.
― Vai ficar parada aí? ― pergunta Olívia, me despertando.
Os longos cílios de Olívia fazem uma charmosa sombra em seu rosto.
Ela me olha de lado.
― Um... dois... e...
Saímos as duas em disparada enquanto o número “três”, ecoando no
vento, ficou para trás. Sem se importar com o ruído infernal do cortador de
grama, Olívia se joga nos braços de papai. Ele me abraça com força e eu
encontro nele aquele sorriso espontâneo que há muito andava perdido. Maria
nos observa da varanda, sentada na rede verde que papai trouxe da Bahia.
Entreolhamo-nos, eu e ela, com cumplicidade por alguns instantes, enquanto
papai ensina Olívia a guiar o cortador.
Olívia deu a ideia de alugarmos um filme e fazermos uma “sessão
pipoca” antes do jantar. O dilema é que cada um de nós tem preferência por
um gênero diferente. Papai prefere suspense policial com ficção científica
pelo meio. Olívia adora um filme de comédia. Já eu, prefiro os filmes de ação,
daqueles que não deixam o espectador respirar. Maria, sem preferência, foi o
voto de minerva e acabou escolhendo o suspense policial.
― Ah, Maria... fala sério! Você não gosta disso: explosões, tiros,
perseguição, o mocinho fica o tempo todo fugindo da polícia por um crime
que não cometeu...! ― reclama, Olívia, com o DVD na mão, depois de ler a
sinopse do filme.
― Não vem que não tem Olívia, você até gosta da parte da perseguição
que eu sei! ― responde Maria, presunçosa.
Saio em defesa de Olívia:
― Já sei, maninha... ela escolheu esse filme para puxar o saco do papai!
― e viro de frente para papai e torno o meu mise-en--scène mais realista. ―
Cuidado, hein pai, ela deve estar tramando alguma coisa! Vai te pedir algo em
troca depois. A Maria é a maior puxa-saco! ― implico, piscando o olho para
papai sem que Maria percebesse.
As maçãs do rosto de Maria imediatamente ganham cor.
― E desde quando a Maria precisa puxar o meu saco para conseguir
alguma coisa? ― e então ele pergunta, entrando na brincadeira: ― Você quer
alguma coisa em troca, Maria?
Ela leva à serio e reage aflita:
― Eu não... de jeito nenhum Dr. Maurício...! Isso é invenção da Clara
que quer me deixar sem jeito!
Olívia se contorce com vontade de rir.
139
― A Maria tem é muito bom gosto pra filme! ― diz meu pai,
estendendo um sorriso à Maria.
O que salvou nossa tarde foi o balde gigante de pipocas carameladas que
Maria preparou. O filme era uma boa porcaria. Olívia fechou os olhos várias
vezes e eu pensei em pegar um livro no meio do filme, mas não quis
abandonar meu pai, já que até Maria aproveitou para escapulir com a desculpa
de que precisava acompanhar o jantar que estava no fogo.
***
Ao devolver para o armário o vestido que fez meu pai sorrir hoje, eu
sorrio para mim mesma. Mesmo sem ter a certeza de quanto tempo durará a
trégua, já terá valido a pena ter tido meu pai de volta, mesmo que por um dia.
Antes de deitar, separo de novo os cadernos para Jonas, que hoje não
apareceu na faculdade. Como são três cadernos de trezentas folhas cada um,
terei a boa vontade de levá-los amanhã pela última vez. Ao som inspirador de
uma de minhas bandas favoritas, Blue October, contemplo a Lua Cheia,
esplendorosa. Dou por mim apreciando a penumbra da noite pela janela
aberta, quando o celular começa a tocar Girls Just Wanna Have Fun. Nunca
esta música me soou tão despropositada.
― Alô, Chris.
― Mulher, você não vai acreditar! ― desafia ela, animada.
Afasto o telefone do ouvido para evitar uma perfuração do tímpano
direito. Eu já conheço seus chiliques, por isso tento adivinhar:
― O Gustavo te ofereceu algum presente? Contou para onde vai te levar
para a lua de mel?
Meus palpites até que são bons, mas:
― Não... quem me dera. É boa notícia, mas nem tanto ― refere ela,
agora num tom de desalento. Diria até que a deixei deprimida por alguns
segundos.
― Então? ― pergunto com impaciência, ao reparar que nuvens
encobrem a minha Lua Cheia.
― O Rodrigo está de quatro por você ― anuncia ela, como se fosse
novidade para mim. ― Pediu seu telefone pro Marcus!
― É só isso? ― pergunto, entediada.
― Clara, eu acabo de te contar que o cara mais gato e mais genial da
Universidade está a fim de te conhecer melhor e você pergunta se “é só isso?”
― protesta, imitando o meu jeito de falar. Pessimamente, diga-se de
passagem.
― Escuta uma coisa, de uma vez por todas, Chris: não quero conhecer
ninguém. Estou bem assim. Quero ficar sozinha ― digo com alguma rispidez.
― Mas o Rodrigo é um ótimo partido. Depois do Guga, ele é o melhor!
Eu já esperava que ela insistisse.
140
― Amiga, eu sei que suas intenções são as melhores, mas não vou
repetir. Você interrompeu a Lua mais bela do século! Por favor, não insista
nessa história de Rodrigo!
― Ok, não vou insistir. A vida é sua. Se você prefere namorar a Lua o
problema é seu! Beijo! ― despede-se, desligando em seguida.
Enfim, sozinha. Não passam mais do que cinco minutos e o celular toca
novamente. Estou tão irritada que atendo pensando ser Christiane quando não
era o toque dela. Só me dou conta depois de pronunciar seu nome três vezes
sem obter resposta do outro lado.
― Quem é? Alô?! Não tem mais o que fazer, não? Fala alguma coisa,
seu maníaco! Fica ligando pr...
― Filha?
É uma voz que eu reconheço de uma memória muito antiga.
― M... m-ãe?
A chamada se interrompe abruptamente e eu permaneço com o celular
no ouvido, mesmo que já não ouça nada do outro lado. Também não ouso
falar nada. Não ouso pensar em nada. E não ouso sequer me mexer. Meu
coração já faz isso por mim, batendo tão acelerado que todo meu corpo treme
involuntariamente.
Por alguma razão meus olhos percorrem todo o quarto e estacionam no
delicado anjinho de barro que Nate derrubou na primeira vez que apareceu
para mim. Foi um sinal que ele me enviou para que eu adivinhasse a sua
presença. O mesmo anjinho que não estava deitado há um minuto atrás.
Procuro por mais sinais, vasculhando cada centímerto de cada objeto aqui
dentro. Mas talvez a resposta esteja lá fora.
Levanto e vou até a janela. A mesma Lua cheia que eu admirava há
alguns minutos desapareceu dando lugar à sombra. Inspiro o ar noturno que
traz com ele apenas o aroma da vegetação que balança ao sabor da brisa. Ela
passa por mim levantando a cortina e eu me afasto da janela.
― Nate? Foi você que entrou?
O silêncio da noite é a minha única resposta. Ele não apareceria para
mim sem ser chamado. Precisamos estar em sintonia e isso definitivamente
não tivemos mais desde que eu o expulsei da minha vida. Ou pelo menos,
decidi assim, ainda que unilateralmente. Se não estamos em sintonia, por que
ele estaria me enviando estes sinais? Será que precisa falar comigo? Será que
é sobre a minha mãe? Estou assustada demais para sequer pensar que algo
possa ter dado errado na trégua.
Teoricamente, não se pode excluir um anjo da guarda da nossa vida. É
impossível excluir Nate, pois no meu destino ele será sempre o meu mal´hak.
Não posso ignorar sua existência agora que eu sei que faz parte da minha vida.
Não é justo que eu não possa vê-lo e ouvi-lo como ele pode me ver e ouvir. E
sejam o que forem estes sinais, eu não vou ignorá-los. Se eu pronunciar o
141
nome do anjo da guarda três vezes, ele pode aparecer. Esta possibilidade
existe, pois já aconteceu. Se já consegui uma vez, posso conseguir de novo.
A primavera chega nesta madrugada. E se ela vem em ciclos, como
sabiamente poetizou Florbela Espanca, eu não me importo se desta vez me
perder para poder me encontrar.
142
21 - 23:09
A sombra desaparece e a Lua Cheia volta a reinar em meio às súditas
estrelas que cintilam em seu redor. Estou sentada na posição de Lótus. De
olhos fechados, permaneço apenas um minuto até me dar conta do papel
ridículo que estou fazendo. O que Buda tem a ver com essa história? Só falta
agora achar que devo entoar mantras! Procuro uma posição confortável que
me permita relaxar. Ajeito o travesseiro de modo a deixá-lo mais alto e deito a
cabeça. Tento esvaziar meus pensamentos.
Então, repito alto e em bom som:
― Nath-Aniel! Nath-Aniel! Nath-Aniel!
Abro os olhos depressa. Ele não está aqui. Posso estar pronunciando o
nome de modo errado. Será que minha fé não é forte o suficiente? Concentro-
me mais uma vez.
― Nath-Aniel! Nath-Aniel! Nath-Aniel!
Depois de mais algumas tentativas já penso que talvez eu devesse
mesmo entoar um mantra. Só que eu não conheço nenhum. De pé, debruçada
na janela, repito o nome dele numa última tentativa, desta vez com toda a
minha vontade. E estou tão concentrada, que não me preocupo em acordar
toda a vizinhança com o meu chamado. Viro-me novamente para o quarto e,
de costas para a Lua Cheia, vejo uma sombra na cama.
― É ele! ― exclamo.
Meu coração começa a pulsar acelerado, meu corpo estremece. Fico
encarando a sombra, estática. Passo a mão pelo cabelo para ajeitá-lo. É
quando me dou conta de que é a minha própria sombra. Anjos não têm
sombra, ora.
O relógio marca 23:08 e meus olhos começam a arder de cansaço. Viro
de lado para a mesinha de cabeceira onde o terço está pousado. Estico o braço
para pegá-lo e, com ele nas mãos, adormeço instantaneamente.
***
Está escuro.
― Depressa! Falta um minuto! ― uma voz melodiosa exclama com
ansiedade.
143
Não vejo minhas pernas, nem meus braços, nem nada a minha volta. Só
sei que estou correndo e que não estou sozinha.
― Um minuto para o quê? ― arfo, assustada.
― O espetáculo do equinócio vernal.
A brisa fresca traz cheiro de maresia. Está úmido. Abro meus olhos.
Estou no alto de um penhasco. Giro meu corpo devagar. Eu conheço este
lugar: é o Arpoador! Há poucas luzes acesas nos bairros que se estendem à
beira-mar. Aquela voz eu reconheço. Mas onde ele está?
Uma chuva luminosa cruza o céu. Feixes brilhantes cortam a escuridão
como lâminas de prata. São centenas de meteoros que penetram na atmosfera
terrestre.
― Faz um pedido. Eu já fiz o meu ― diz ele.
Como que envolvidos numa espécie de campo magnético, uma força
incontrolável nos atrai para os braços um do outro. Quando a chuva de estrelas
termina, continuamos abraçados. Ele me afasta um pouco para ver minhas
lágrimas. Reparo em seus olhos esmeralda, um brilho incandescente muito
superior ao brilho da chuva que acabou de acontecer. É impossível desviar-me
deste fenômeno. Ele vai saber de tudo o que estou sentindo; vai saber que não
estou emocionada por causa das estrelas cadentes, mas por causa dele.
Enquanto me preocupo em disfarçar meus sentimentos, ele pega em minha
mão.
― Não queria que você perdesse um dos acontecimentos mais lindos do
Universo. Tinha que partilhar este momento com você ― diz ele tocando
suavemente o meu rosto e apagando minhas lágrimas com os dedos. ― A
probabilidade de estarmos no lugar certo e na hora certa para ver este
espetáculo é ínfima. E como coincidências não existem...
Minha feição se espreme.
― Então, você sabia?
― Costumo calcular os ângulos horários siderais e seguir os rastros dos
cometas... é um dos meus entretenimentos.
Minha reação é mais de alívio do que de surpresa. Aquela chamada com
a voz de mamãe soando irreal como se estivesse envolta em névoa, como fruto
de uma lembrança longínqua, me fez pensar que Nate houvesse me chamado
para este encontro para fazer uma revelação temível sobre a experiência de
papai. Me fez pensar que a trégua poderia ter sido quebrada. Mas, não. Ele
queria apenas dividir seu passatempo comigo.
E com um leve rubor na face, ele rompe meus pensamentos,
prosseguindo entusiasmado:
― Por alguma razão, hoje, no horário exato do equinócio, o cálculo entre
o Ângulo Horário de Greenwich e o ângulo de declinação do astro resultou
numa coordenada coincidente com a posição do Ponto Vernal e a sua
144
localização meridional exata apontou para o Rio de Janeiro! ― o fulgor em
seus olhos é inédito.
― Isso é... bizarro, Nate ― para não dizer que é totalmente grego para
mim ― deixa ver se eu entendi: você calculou os ângulos longitudinais e
meridionais das estrelas e... depois o ponto vernal... coincidiu com...
equinócio... ai... eu não entendo nada disso!
Ele prende um sorriso quase infantil no canto do lábio.
― Clara, não importa. Aconteceu!
Talvez sejam só os meus sentidos embaralhados pela atmosfera sideral,
mas ele continua falando e eu procurando admirá-lo e ouvi-lo ao mesmo
tempo.
― Em toda a minha existência só houve uma vez em que isso aconteceu.
Eu estava no lugar certo, mas era o momento errado ― sua expressão
enublece por um breve instante, mas os olhos ainda brilham. Ele continua: ―
Acabamos de presenciar o exato instante em que o Sol cruzou a linha do
Equador celeste e a Terra atravessava uma nuvem de fragmentos cósmicos.
Tudo no Universo está em sintonia, em equilíbrio.
― Inclusive eu e você ― acrescento baixinho. Como se ele precisasse
ouvir.
― Hoje a luz e a escuridão tem a mesma duração aqui na Terra ― sua
atenção se retém no horizonte.
― Não haveria luz, se não fosse a escuridão... ― reflito lembrando a
melodia musical. ― Uma coisa define e completa a outra.
― Tudo é um ciclo, Clara ― conclui ele.
Silêncio entre nós e espuma nas rochas. Só se ouve o som do mar e as
batidas do meu coração, pulsando acelerado.
― Disse que esta foi a segunda vez que acontece a conjugação desses
fenômenos. Quando foi a primeira? ― pergunto, curiosa.
Ele demorou a responder, deu um suspiro praticamente imperceptível.
― Foi em 1492.
― Nossa... haja memória...
― Desta vez foi mais importante.
Seu rosto está a poucos centímetros do meu. A névoa parece dispersar-se
em seu olhar. Esta é a minha oportunidade: ele me abriu uma janela no escuro.
É um caminho desconhecido, mas estou decidida: quero seguir em frente. Ele
está diante de mim e é como se fosse real. Posso tocar a textura de algodão do
seu blazer. Posso sentir o hálito de sua respiração forte e o calor que emana de
seu corpo. Não é uma visão; ele não é intocável e não está aqui porque o
chamei. Nate provocou o meu sonho para encontrar-se aqui comigo.
― Por que foi mais importante desta vez? ― pergunto ansiosa, quase
atropelando as palavras.
145
Ele aconchega minhas mãos entre as dele.
― Porque tenho você comigo, avivah sheli.
Eu queria entender o que ele disse, mas meu coração bate
descompassado no peito, fico ofegante e não consigo dizer nada. Ele me
abraça pela cintura e de repente já não tenho os pés no chão. Avisto do alto a
pedra do Arpoador, enquanto flutuo em seus braços, como uma pena bailando
ao sabor do vento. Nossos corações se pacificam. Quando nossos pés tocam
de novo o solo, sobre nós faz-se escuridão. Não a escuridão da noite lá fora.
Uma noite aqui dentro, debaixo das asas dele.
Foi às 23:09. Quando o Sol cruzou a linha do Equador celeste.
146
22 - Sem retorno
Acordo em meu quarto. Nate está de pé diante de mim na forma de anjo,
ainda brilhando muito como se tivesse acabado de chegar.
― O que houve?! ― pergunto, confusa, protegendo a vista com o braço.
― Interrompi o sonho ― responde Nate, com frieza. Seu rosto está
rígido como uma estátua de pedra e cal.
As lembranças vem depressa, uma depois da outra.
― Estávamos no Arpoador... tínhamos pousado...
Esta é a primeira vez que vejo nele um sinal de reprovação.
― Estávamos prestes a cometer um erro irreparável, Clara.
― Como assim?
― E você ainda pergunta?! ― ele confunde minha indagação com
cinismo, quando eu simplesmente estou confusa com a situação.
― Nate, não fizemos nada de errado! Apenas passeamos, vimos estrelas
cadentes e passamos o equinócio juntos... só isso! ― e eu me indago: só isso?
― Ouça: não podemos nos envolver assim. O que estou fazendo é
intolerável, perante o meu mestre e a minha ordem ― ele me volta o
semblante sisudo. ― E perante você. E o pior é que você não se importa que
eu a exponha.
A dureza de suas palavras me apanha não somente desprevinida, mas
inocente. Ao arrepender-se dos momentos que passou comigo, ele me impõe
uma responsabilidade pela qual eu não quero me acusar, nem ele deveria me
acusar! Saber tudo o que eu penso e sinto não lhe dá o direito de dispor das
minhas vontades. Simplesmente não consigo controlar o desejo de querer estar
perto dele, de querer mais do que sua companhia; de querer o inatingível. E
para alcançar esse inatingível eu tenho que correr riscos. É uma decisão minha
e não dele.
Sou humana, feita de uma essência mais frágil, mas sujeita às mesmas
provações do corpo e do espírito e por isso com direito ao livre-arbítrio que
ele também tem. Eu lutei e luto todos os dias para combater minhas fraquezas.
Mas não tenho obrigação nenhuma de lutar contra esses ímpetos. Não é por ter
mais e melhores armas do que eu, que Nate pode combatê-los por mim.
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― Por favor, não venha com super-proteção para cima de mim ― digo
irritada.
― Sou o seu anjo-da-guarda! ― exaspera.
― Você me alertou dos perigos. Já cumpriu sua função de meu anjo da
guarda. Não pode decidir por mim o que eu posso e o que eu devo ou não
sentir e querer.
― Não percebe o erro que estou cometendo? ― o olhar de Nate é
transtornado.
― Erro? Que erro? Você me proporcionou momentos inesquecíveis.
Ele fita meus olhos intensamente e franze a testa: ele sabe o que estou
sentindo. Antes que eu reagisse, pousa sua mão na altura do meu coração.
― Você sente isso? ― pergunta.
Sua energia toca o meu corpo e sinto uma leve ardência dentro do peito.
― Sua energia? ― pergunto.
― É o que me consome e já me ultrapassa. Como é que eu posso
controlar isso, Clara?
A angústia que transparece em seu olhar deve ser resultado do reflexo
dos meus próprios olhos. A culpa é minha. Eu não tenho obrigação de lutar
contra os meus ímpetos, mas não posso fazê-lo sofrer assim.
De repente, sinto um entorpecimento na região do meu queixo. É ele que
tenta afagar meu rosto.
― Você não tem culpa de nada, mas não entende. Eu sou um anjo, Clara.
Olhe para mim agora! ― exclama alto.
Suas plumas expandem-se ligeiramente para trás de si, mas ele retêm-
nas. Este quarto é pequeno demais para elas.
― Nos meus sonhos você é humano. Podemos sonhar juntos. Por que
não viver isso, Nate?
Ele recolhe completamente as asas.
― Não confunda a imagem que você vê nos sonhos com o que eu de fato
sou ― diz ele num cálido sussurro. ― Você está iludida. Pensa que sou um
homem perfeito quando eu não passo de um anjo imperfeito.
A sensação de culpa me consome contínua e gradualmente. É melhor
ficar calada. Qual é a explicação plausível para uma garota se apaixonar por
um anjo?
― Quando tenho o homem, preciso do anjo. Quando preciso do homem,
tenho o anjo.
Agora ele não procura meus olhos, mas se esconde deles.
― Clara, você está muito confusa... ― ele balança a cabeça. ― Nós
estamos.
148
Fico de pé na cama para alcançar seus olhos e fito-os durante um longo
tempo explorando os meus sentidos para descobrir o que eles provocam em
mim.
― Mas eu sei o que sinto por você. Eu...
Ele ergue sua mão até os meus lábios e ainda que não possa tocá-los com
seus dedos, impede que eu prossiga com o que ia lhe confessar. Minha
respiração fica suspensa. Mesmo sem fitá-lo, sei que ele não desvia o olhar.
Mantenho-me cabisbaixa e Nate parece incerto sobre se deve ou não explorar
o que me vai na alma, pois sabe que vai além do que ele já sabe.
― Não posso ignorar o que está acontecendo conosco ― ele se volta
para a janela e se põe de lado para mim. ― Mas tenho obrigações com quem
me criou para ser o que sou.
― Ele lhe deu um coração, não deu?
― Clara, eu não tenho matéria. O que você está vendo agora é uma
imagem humana cifrada, que existe somente para que os humanos me
percebam ― diz ele, mecanicamente.
― Ele lhe deu um coração! Não deu?! ― insisto inflexionando a voz.
Ele se aproxima da janela e se vira para mim.
― Você é minha protegida.
― Sou diferente dos outros. Você se sente diferente em relação a mim.
Como você acabou de dizer, é impossível desprezar isso daqui para frente ―
caio ajoelhada na cama. Eu podia desmontar agora.
― Não posso abandonar você, deixar de ser seu anjo da guarda ―
balbucia num tom de lamento.
― Você já cogitou isso?!
Uma brisa suave entra pela janela trazendo seu perfume até mim.
― As nossas naturezas são incompatíveis. Existo para protegê-la e estar
com você sentindo o que sinto, acabo expondo-a a perigos que eu deveria ser
o primeiro a evitar.
― O que você sente por mim? ― pergunto, incisiva. Meu coração
acelera e nossos olhares de cruzam por um breve instante. ― O que você
sente por mim, Nate?
Nenhuma palavra. Um suspiro. Nenhuma palavra. Outro suspiro.
― Eu te amo ― ele disse isso breve e leve como um terceiro suspiro.
Nossos olhares se sustentam por um instante e, em silêncio, eu lhe digo:
“também te amo.” Desta vez ele não vai me impedir de dizer, de desabafar o
que a culpa vem mascarando dentro de mim.
― Eu tentei evitar... tentei não pensar... procurei ser absolvida disso.
Droga! ― os músculos do meu corpo estão rígidos, mas meu coração parece
estar se desmanchando. ― Mas eu te amo! Por que, Nate... por que eu não
consigo ser racional quando penso em você?
149
Ele me permite ver o espelho da Lua em seus olhos. Eles estão
minguantes.
― Não quero que sofra por isso. Mas não posso perder você ― abaixo a
cabeça, deixando uma mecha de cabelo encobrir parte do meu rosto. ― Se
isso acontecesse, acho que morreria.
Numa fração de segundos, ele já está ao meu lado.
― Nunca mais repita isso! Nunca mais! ― ordena.
Sua expressão agora se harmoniza candidamente. Uma lágrima brota de
seus olhos verdes e se cristaliza na sua pele etérea. Ele me abraça num
impulso e seu corpo se confunde ao meu. É como se eu abraçasse o vazio;
como se Nate não estivesse aqui e fosse apenas uma projeção de si mesmo.
Estamos enternecidos e absolutamente desolados.
Unimos as palmas das nossas mãos, cuidadosamente, num exercício que
começamos a apurar. Seus dedos entre os meus provocam a sensação de
dormência a que já me habituei.
― Que espécie de guardião eu sou?
Não sei responder, mas vejo-o como o único de sua espécie. É preferível
pensar que não são todos os anjos da guarda que caem de amores. O céu (no
sentido metafórico) estaria despovoado se assim fosse, e as humanas, em
sérios apuros. Como eu estou.
― Tem que existir uma saída! Não provocamos nada disso, mas se está
acontecendo é porque existe uma razão e deve haver uma solução!
Lembrei-me agora do que costumava dizer Maria sempre que eu tirava
nota baixa em matemática (ênfase em sempre). E ela dizia, com toda a sua
sabedoria maternal: “Ninguém faz cadeados sem chaves, assim como não
existem problemas sem solução”. Nate ouve meu pensamento e ri para si
mesmo. Já consigo identificar seu adorável jeito de concordar discordando.
― Existe uma solução. É a única que eu conheço ― ele firma a voz e
diz: ― Cair.
Permaneço estática, assimilando aquela palavra tão pequena e tão
pesada.
― Se eu for banido, poderemos nos unir aqui na Terra e depois
seguirmos juntos, para sempre ― justifica.
Claro. Como não pensei nisso antes? Anjos Caídos. Vem daí essa
nomenclatura. Mas Nate, um anjo caído... como seria isso? Seria abdicar de si
mesmo. Nunca pensei que Nate pudesse renunciar à sua própria natureza para
ficar comigo. Não posso ser egoísta e concordar com isso.
― Não! ― exaspero num grito rouco e desligo minha mão da dele. ―
De jeito nenhum! Não quero que você seja banido. Esqueça isso, Nate.
Ele inspira fundo.
― É o único jeito. Eu já me informei sobre isso.
150
― Já?!
― Há 518 anos.
As palavras rapidamente se encaixam, a pergunta se forma depressa em
minha mente e a resposta não é difícil de adivinhar. Mesmo assim, externo a
constatação que ele já esperava.
― Então, você desejou cair há 518 anos...
Um turbilhão de imagens se constroem e aglutinam projetando-se à
minha frente. Minha retina é como uma tela de cinema, em que as imagens
confusas se sucedem, misturando o presente e o passado. Dois rostos da
mesma mulher sobrepostos, mas de momentos diferentes. Uma igreja
medieval num lugar onde nunca estive. Penas brancas caindo. São vermelhas,
agora. Sangue. Muito sangue. Fecho os olhos.
― Pelo mesmo motivo.
― Você já amou outra humana? ― eu tentei afirmar, mas saiu uma
pergunta.
― O tempo não passa para mim, mas eu passo por ele. Faço parte de um
passado que não me pertence ― Os olhos continuam abertos, mas seu olhar se
fecha, agora fitando o vazio ― Não quero falar sobre isso. Ainda não é hora.
Não posso evitar este sentimento. Ciúme. Ciúme de alguém que ele
amou verdadeiramente a ponto de reunciar à sua condição por esse amor.
Reparo que seus olhos se tornam foscos, como se mirassem o passado; um
passado que não existe para os anjos, mas que existiu para Nate. O que terá
acontecido, que fim levou esta história? Por que ele não me conta tudo agora?
Nate eleva os pés do chão. Suas asas abertas estendem-se de um lado ao
outro do quarto, tocando as paredes. E ele permanece assim, imóvel, como se
fosse um afresco no teto do meu quarto. Toda a beleza, todos os movimentos
artísticos, sem paralelo para os meus sentidos: tudo está aqui.
― Estou reincidindo no mesmo erro ― diz ele, de repente.
― Por amor. Quem ama não erra.
― Como anjo, o meu amor não deve ser restrito ou diferenciado, Clara.
― Como anjo, Nate. Você deve ser tão humano quanto anjo.
Com meu corpo agora estendido na cama, gostaria de flutuar também e
me juntar a ele.
― Ah, Clara... ― ele suspira. ― você não quer mesmo entender. Como
pode sequer supor que eu seja as duas coisas?
― É como eu vejo você. Como o equinócio, a tenuíssima linha
imaginária que separa o dia e a noite em partes iguais. O dia e a noite
convivem, mas nunca se encontram. Para que um se revele, o outro precisa se
esconder. O instante em que isso acontece e os astros se cruzam, é aquele em
que você decide ser quem é.
― Como pode divagar numa hora dessas?
151
― Você não deve se esconder de mim e de si mesmo por mim. Somos
todos parte do equilíbrio, Nate. Todos temos um equinócio dentro de nós. Há
uma proporção entre o que somos e o que pensamos ser. Eu sei o que você é
para mim e sei que é o mesmo que você pensa que não é.
Ele continua planando sobre mim. Estamos perto o suficiente para eu
estender meu braço e fazer de conta que o posso tocar e sentir como o homem
que eu preciso que ele seja.
― Preciso que você assuma.
E preciso mais do que um protetor com as asas sempre prontas a se
estenderem sobre mim. Nunca estive tão segura e ao mesmo tempo nunca me
senti tão insegura. Para que eu alcance o inatingível e possa provar aos meus
sentidos que amar o sobrenatural é natural, Nate precisa amanhecer um lado
para que o outro anoiteça. Eu preciso ver o homem que se eclipsa na sombra
do anjo.
***
― Não posso assumir algo que não possuo. Não posso assumir que
tenho uma humanidade se não possuo uma alma, Clara. Se eu cair passo a ter
uma alma. Se eu cair posso assumir o que você quer.
Eu não ignoro sua cartada estratégica e rebato com uma pergunta que
talvez me dê diferentes perspectivas para refletir sobre a ideia drástica.
― Então... existem anjos caídos entre os humanos?
Ele fica circunspecto olhando para mim, mas não demora a responder:
― Existem entre os humanos, além dos anjos caídos, os seres híbridos,
que são os filhos de anjos com seres humanos, chamados nephilim ou
“gigantes”.
― Lembro de ter ouvido esse nome quando estivemos em Malkuth.
― A origem dos nephilim é descrita nos primeiros capítulos do Livro do
Khanokh ― refere ele.
― Que livro é esse?
Nate pousa e senta ao pé de minha cama. Eu me aconchego abraçando o
travesseiro.
― Os Livros do Enoque são todos apócrifos, são considerados hereges e
não aceitos por algumas religiões. O primeiro desses livros explica a queda de
anjos e a origem dos primeiros nephilim, os vigilantes. É considerado apenas
um livro profético. Suas revelações não tem comprovação ― explica ele.
― Vigilantes? Filhos de anjos caídos do mal... ― reflito.
Ele tem os olhos vidrados nas fotografias do mural de cortiça pendurado
na parede. Reparo que estranha alguma imagem. Ainda atento ao mural, ele
vira-se para mim.
― Quem são aqueles rapazes de preto? ― pergunta, apontando para uma
fotografia com um grupo da minha turma de faculdade.
152
A foto foi tirada na ocasião da passagem para o sexto período,
comemoramos o sucesso de ter concluído a metade do curso. Uma bobagem,
ideia de Christiane, mas que toda a turma aderiu, inclusive os...
― Os pagãos. São assim apelidados por causa dos nomes esquisitos,
com origem mitológica. São estranhos e não se aproximam dos outros
colegas.
― Como se chamam?
― O mais alto é o Wotan, que parece ser o líder deles. Os outros dois
chamam-se Ahriman e Lugh ― atenta a curiosidade de Nate, pergunto. ―
Mas, por quê?
― Conversaremos sobre isso outra hora, Clara. Hoje não tenho mais
tempo.
― Já passou mais de uma hora que está aqui? ― pergunto,
inconformada.
― Temos mais um minuto, apenas ― responde, se aproximando de
mim.
Seu perfume me entorpece, confundindo os meus sentidos mas percebo
que seu coração bate inquieto neste momento.
― Quando você volta?
― Logo ― responde, confiante.
Elevamos as mãos e unimos as palmas, entrelaçando nossos dedos. Em
sintonia, os meus passam por entre os dele e os dele por entre os meus e
embora o tato não esteja presente, temos o contato. E por enquanto, isso me
basta. Quando a dormência em minhas mãos desvanece, percebo: Nate já não
está aqui.
***
Viro na cama sem conseguir adormecer com as últimas revelações. Seria
bom não ter racionalidade neste momento. Assim, não me sentiria culpada por
querer ouvir apenas meu coração. Mas todo o ser humano precisa encontrar o
seu próprio equilíbrio para poder decidir com lógica e sentimento. Não há
como dissociar o sentimento da razão. Amar um anjo é tão insólito que me
impede de discernir.
Chegamos a um ponto em que será preciso tomar uma decisão. E a
decisão está em minhas mãos. Ou nos contentamos com esta situação, de nos
encontrar por 1 hora e 32 minutos sem uma troca de carinho sequer, ou, com
os sonhos, que nem sempre acontecem no momento ou do modo que
queremos. Nas duas hipóteses, Nate não faria parte do meu mundo, nem eu do
seu e dividiríamos o peso de desafiar as Leis Divinas e do tempo; pois eu não
sou eterna, ao contrário dele. O tempo passará para mim e não passará para
ele.
153
Mas se Nate caísse, não haveria esse peso sobre nossos ombros. Por
outro lado, ele pagaria sozinho o preço, entregando aquilo que a maioria dos
homens invejam: a sua imortalidade.
Na minha visão humana, apaixonar-se é a coisa mais natural do mundo.
Quando um amor tem obstáculos, eles são vencidos sem que ninguém seja
banido da humanidade. Não deixamos de ser quem somos. Pelo contrário:
muitas vezes, é quando nos encontramos. É por isso que para entender uma
condenação de banimento celeste, eu precisaria enxergar pelo referencial de
Nate. Se eu conseguisse entender seu conflito interior! E se ele pudesse
entender o meu: como é difícil permitir que ele se entregue por mim! Eu não
seria uma pessoa extremamente egoísta se aceitasse isso?
O sono não vem, mas os minutos se atropelam no contador das horas.
154
23 - Pescaria
Acordo com um beijo de papai e uma entusiasmada exclamação:
― Bom dia!
― Bom dia... ― retribuo, sonolenta.
― Você dorme como um anjinho, minha filha ― diz papai, com olhar de
admiração.
― Se eles dormissem... ― penso comigo e, sem querer, penso alto.
A sorte é que estou tão grogue que ele não deu importância. Sento na
cama e ele abre as cortinas com vigor:
― O dia está lindo, filhota! Que tal pescar no canal esta tarde?
― Pescar?! ― esfrego os olhos ainda semiabertos.
― De repente me deu vontade de pescar.
Papai não pesca desde que mamãe morreu. A experiência ainda não foi
esquecida, mas ele age como se a tivesse esquecido. Como se criobiologia,
criogenia e criônica fossem vocábulos apagados de seu dicionário. Quando ele
vivia para aquilo e o tempo servia para lembrá-lo de sua impotência diante da
morte ― em vez de servir para aceitar a morte de mamãe ―, ele não tinha
vontade de nada. A fórmula esquecida será como se nunca tivesse existido e
assim estes últimos nove anos serão convertidos em tempo durante o qual ele
simplesmente acostumou-se a ausência dela.
O ônibus escolar para em frente de casa. Olívia corre para mais um dia
de aulas. Maria conversa com D. Filomena no portão e papai lê
tranquilamente seu jornal deitado na rede da varanda, relaxando antes da
coletiva que dará logo mais às onze horas.
***
Todos ocupam seus lugares na roda do dia a dia e meu lugar hoje é ao
lado de Marcus no trabalho de dupla de Medicina Interna. Para variar, o
professor não cedeu às súplicas de Jess e Marcus para fazerem o trabalho
juntos, por considerar que eles se distraem mais do que estudam. Jess
praticamente me obrigou a fazer o trabalho com seu namorado. Certa vez ela
me confidenciou que é muito ciumenta e que desconfia que Marcus já teve
uma “quedinha” por Chris no passado, antes dela conhecer Gustavo; o que é
totalmente improvável pois ele sempre teve olhos só para ela. Quando nosso
155
grupo de formou, Marcus se aproximou de nós porque queria conhecer Jess e
isso ficou evidente durante os grupos de estudo em minha casa. Ele nunca
admitiu, mas nós sabíamos que Marcus não precisava estudar conosco para
passar no vestibular.
― Não é esta a resposta, Clara! ― anuncia irritado.
― Como não? ― pergunto franzindo a testa.
Ele faz cara de Dr. House. Pronto, eu errei.
― Os anticorpos anticitoplasma de neutrófilos são autoanticorpos
dirigidos contra as enzimas contidas nos grânulos dos neutrófilos e lisossomos
de monócitos ― afirma, seguro.
Posso tranquilamente afirmar que Marcus nasceu para ser médico. Fico
imaginando o “Marcus bebê”, correndo atrás das amiguinhas do jardim de
infância com o estetoscópio em punho. Preciso segurar o riso.
― Ah, claro, tem toda a razão... desculpa Marcus, eu caí na pegadinha!
Estava pensando nos anticorpos antinucleares. Foi mal! ― digo, sem graça,
mas ainda achando graça da minha imaginação cômica.
― O mais incrível é que você sai escrevendo sem me consultar! ―
revolta-se.
― Ai, Marcus, eu ando muito distraída ― passo a mão pelo cabelo.
Ele olha para mim com ar pretensioso:
― Eu sei o motivo dessa sua distração.
― Sabe? ― já adivinho bobagem pela frente.
― O nome é Rodrigo.
― Fala sério, Marcus. Acho bom você dizer para o seu irmão tirar o
cavalinho da chuva porque eu não estou a fim de conhecer ninguém ― digo,
ríspida.
Ele se surpreende e pergunta intrometido:
― Já existe outro no pedaço?
À frente do quadro negro vejo a imagem do professor travestido de
Ciclope, com um terceiro olho gigante bem no meio da testa.
― Marcus, é melhor a gente voltar para o trabalho ― digo, cutucando-o.
― É... é melhor mesmo ― remexe-se na cadeira, debruçando--se sobre o
caderno.
Ando com a minha imaginação em alta. Crio fantasias com todos e por
tudo. A sorte é ainda não ter encontrado aquele grupo de rapazes de preto que
certamente daria à minha imaginação motivos de sobra para aposentar-se
compulsoriamente.
Certamente terei uma boa nota às custas de Marcus, mas se eu assumir
isso para ele, nunca mais me livro de sua falta de modéstia. Limito-me a
agradecer por ter me salvo de uma nota desastrosa nesta matéria.
156
Olho para o velho e sujo relógio de parede da Toca do Coelho. A esta
hora meu pai deve estar enfrentando a imprensa. Talvez ainda dê tempo para
que eu lhe deseje boa sorte.
― Pai?
― Oi filha! ― exclama ele surpreso ao atender.
― Só liguei para dar boa sorte.
― Obrigado, meu anjo. Vai começar daqui a pouco. Já não sei se foi boa
ideia fazer esse alarido ― diz, com voz de preocupação.
― Mas se você convocou a conferência exatamente para diminuir o
alarido em torno do assunto do seu desaparecimento... ― condiciono, sem
perceber.
― Pois é, mas parece que ainda provoquei maior curiosidade na mídia.
Parece que esperam por alguma declaração importante...
Um arrepio me percorre o corpo. A conclusão é óbvia. Se a mídia
resolver insistir no assunto do sequestro, isso atrairá a polícia, que vai querer
entender o que provocou a amnésia em papai. Pelo menos ainda temos até a
data oficial do arquivamento do inquérito para dispersar os jornalistas. Diante
do meu emudecimento, ele continua.
― Eles vão ficar desapontados mesmo, pois o que vou dizer não é nada
além do que já especularam.
― Nos vemos em casa para a pescaria, então? ― pergunto, numa
tentativa de acalmá-lo.
― Combinado. É o que vai salvar o meu dia.
― Te amo, pai.
― Também te amo, filha.
A Toca do Coelho está cheia. Ocupei a última mesa da lanchonete.
Espero por Chris e Jess que estão na biblioteca procurando um livro. Marcus
foi ao banheiro. Estou concentrada apagando as mensagens do meu celular,
quando ouço a voz insolente e desagradável de Jonas.
― Oi!
Ele puxa uma cadeira e eu automaticamente faço intenção de me
levantar. Ele é ágil e segura meu pulso.
― Você deu sorte, fica com a mesa. Já estou de saída. Tenho que
encontrar as meninas ― tento desvencilhar-me, mas ele me segura com força.
― As meninas podem esperar. E os cadernos? ― pergunta ainda me
retendo.
― Os cadernos estão em casa. Trouxe-os dois dias seguidos e você não
apareceu ― sento novamente e ele solta meu pulso, que eu imediatamento
começo a massagear.
Bruto.
― Então vou buscá-los em sua casa? Às oito?
157
Que folga!
― Não sei se estarei em casa ― digo depressa.
― Às nove, então?
― Não sei se estarei em casa ― repito irritada.
― Às dez? ― insiste ele.
― O que você pretende? Acampar em frente à minha casa?
Ele confirma com a cabeça. Sei que ele é mesmo capaz disso. Então, eu
me rendo.
― Às oito.
Marcus se aproxima. Reconheço-o pela silhueta comprida que à distância
não passa de uma miragem e pelo andar suave como de um felino. Não me
importa de que chão ele brotou, mas apareceu na hora certa. Ele marca um
passo acelerado até se colocar entre mim e Jonas, os braços cruzados para
realçar os músculos dos bíceps. Não é um gesto receptivo, mas o objetivo é
exatamente este.
― E aí, Clara, o que que tá rolando? ― pergunta ele lançando olhares
repulsivos para Jonas.
Jonas não se intimida. A pinta que tem no canto superior esquerdo dos
lábios eleva-se num sorriso disceto, mas insolente. Continua sentado
confortavelmente, aliás, quase deitado, as pernas abertas, à vontade até
demais.
― Tudo bem. Vamos, Marcus? As meninas estão esperando ― convido-
o meneando a cabeça para que ele perceba que estou apenas tentando me
livrar de Jonas.
― Mas... ― mal começa a argumentar que o combinado era esperarmos
as meninas na Toca do Coelho, já o estou puxando pelo braço para longe dali.
***
Há um carro diferente estacionado à porta de casa. É um carro à paisana,
mas suspeito de que seja do delegado Alvarez por causa da marca circular que
o giroflex deixou na superfície suja do teto do carro. Entro pela porta dos
fundos para não ser obrigada a passar pelo hall. Encontro Maria terminando
de arrumar a bandeja do cafezinho, arrumando alguns biscoitinhos
amanteigados num pratinho.
― É o Dr. delegado ― antecipa ela. ― Ele disse que gosta destes
biscoitos.
― Folgado. O que ele quer?
Definitivamente qualquer que seja o assunto, é do meu interesse.
― Não sei, querida. Mas não está com boa cara ― diz Maria, apontando
para o adoçante sobre a mesa.
158
― Isso não é novidade. Vou dar uma espiadinha! ― coloco o adoçante
na bandeja pousada nas mãos de Maria e corro para o hall, onde me posiciono
estrategicamente.
Os dois conversam como dois japoneses e torna-se difícil ouvi-los. Após
servir o café, Maria passa por mim e me lança um olhar de censura.
― Pois é, Dr. Alvarez. Hoje encerrei de uma vez por todas esse assunto
com a mídia.
― Fez bem, fez bem. Um laboratório brasileiro de renome internacional
não deve ficar implicado com escândalos. O que os jornalistas procuram é
mesmo sensasionalismo em cima das notícias. O importante já foi dito e
escrito, não é mesmo? O resto é por conta da polícia.
Vejo a baforada do cigarro do delegado.
― Como está correndo o inquérito? ― pergunta papai com a voz rouca.
Ele sempre foi alérgico a tabaco. Ouço a tilintar da xícara pousando no pires.
― Não correrá mais. Foi por isso mesmo que eu vim aqui. A decisão de
arquivamento deve sair na próxima semana ― O delegado balança a cabeça
negativamente. ― Como não conseguimos reunir provas para a denúncia do
Ministério Público, nem da materialidade do crime e nem de indícios de
autoria, o relatório seguiu hoje mesmo para o Juiz ― não sei dizer se o seu ar
de fustração é sincero. Esse delegado é sempre muito teatral.
Noto que papai tentou conter um sorriso e controlou seu entusiasmo
antes que soltasse uma interjeição animada e bem sonora.
― E o senhor precisa de mais alguma coisa de mim? ― pergunta
pigarreando no fim.
― Tem um cinzeiro? ― seu cigarro está quase no fim, prestes a causar
um estrago no tapete.
― Claro ― papai lhe passa o cinzeiro. ― Me responda só uma questão,
por favor, Dr. Alvarez: é possível desarquivar um inquérito?
― Se surgirem novas provas. Mas acho difícil pegar o rastro desses
sujeitos. O doutor disse que eles usavam máscaras... se tivéssemos ao menos
um retrato falado... ― ele suspira, sorvendo em seguida o restinho do café em
sua xícara. ― Sem retrato, sem suspeitos, sem impressões digitais, sem nada
que vincule a autoria do crime, sem pista nenhuma do paradeiro deles, é
complicado ― conclui ele. ― É... bastante complicado ― concorda papai,
automaticamente.
O delegado puxa outro cigarro da cigarreira.
― O mais importante é que o Dr. Chevallier reapareceu e os documentos
do laboratório estão a salvo ― diz refastelando-se no sofá.
― Qualquer novidade, o senhor sabe onde me encontrar ― refere papai,
intencionando despachar Dr. Alvarez.
― Com certeza. O mesmo digo ao senhor, Dr. Chevallier ― diz,
acendendo o novo cigarro enquanto se levanta.
159
― Muito obrigado por vir pessoalmente trazer a notícia ― agradece
papai.
Enquanto eles estendem as mãos para os cumprimentos, corro para a
cozinha de onde ainda consigo ouvir as despedidas:
― Eu disse que viria. Dê, por favor, cumprimentos meus às suas
meninas.
― Com certeza. Passar bem, Dr. Alvarez. E bom trabalho! ― exclama
papai, ansioso para ver-se livre do senhor.
― Obrigado. Igualmente.
***
Papai bate a porta e corre para a cozinha, onde dá um salto para o meu
abraço. Comemoramos por antecipação o arquivamento do inquérito na
próxima semana, pois sabemos que só a partir de então papai estará livre
daquilo que mais o atormenta. Tenho vontade de perguntar se a lembrança da
fórmula ainda o perturba ou se ele está somente disfarçando para nós devido
ao susto que passamos em Malkuth. Mas não tenho coragem de tocar nesse
assunto.
Estamos equipados com o material de pesca à porta de casa e como dois
aspirantes a profissionais, seguimos rumo ao canal do bosque. Tenho certeza
de que se Olívia chegar antes de nós ficará chateada de não a termos
convidado para o programa. Mas este momento eu queria passar sozinha com
papai. Foi comigo que ele pescou antes da morte de mamãe e quero ser a sua
primeira parceira de pesca no seu regresso à vida, mesmo sabendo que em
breve, deverá esquecer esta tarde comigo.
Pousamos nosso material no pier, inclusive o balde onde esperamos
colocar o nosso jantar. Papai abre as cadeiras e o ajudo a preparar os anzóis.
Gosto da companhia dele, mas pescaria não é o meu passatempo predileto.
Quando eu era criança, a monotonia era tanta esperando a cana vergar que eu
pegava no sono. Desta vez trago revistas para os momentos em que possa
faltar conversa.
Conversa vai, conversa vem ― não falta conversa ―, papai me pergunta
sobre a faculdade, o casamento de Chris, namorados, os meus projetos. Ele
quer saber de tudo. Eu lhe conto que estou feliz na faculdade, que gosto do
curso que escolhi. Não é que tenha nascido para ser médica como o Marcus,
mas sinto que tenho vocação. A especialidade ainda não decidi, estou entre
neurocirurgia e cardiologia. Ele não se surpreende que eu tenha escolhido
ficar em dúvida entre as especialidade mais difícieis. Conto-lhe também que
Chris encontrou o verdadeiro amor. Ele percebe que eu não fico confotável
com a palavra “amor” e pergunta se eu encontrei alguém. Eu não lhe conto
sobre Nate, logicamente, mesmo sabendo que em breve ele vai esquecer desta
conversa. Não tenho coragem ainda de assumir para mim mesma o que estou
sentindo por ele, quanto mais revelar ao meu pai.
160
Chego a desejar que o tempo pare. Aprendi a desejar isso quando estou
com Nate e agora seria mais do que perfeito se isso pudesse acontecer: que
este momento ficasse congelado no tempo e que papai não precisasse esquecer
de nada; que pudéssemos estar aqui, felizes com o mais simples que a vida
tem a oferecer. Um barulho irritante interrompe o momento perfeito. É o meu
celular.
― Tenho que escolher outro toque para os números não gravados ―
digo, fitando estática o telefone.
― Atende, filha! ― exclama papai, ansioso.
― Não! Não quero estragar este momento, pai. Estamos tão bem só nós
dois! ― retruco, baixando os ombros.
― Melhor atender, meu anjo, pode ser importante ― insiste papai,
preocupado.
Papai falou em anjo e imediatamente Nate veio ao meu pensamento, pois
se ele já me telefonou uma vez, não seria de todo impossível.
― Alô? ― a pressa foi tanta que o celular trepidou em minha mão e
quase caiu no lago.
― Oi Clara! Sou eu, Rodrigo, irmão do Marcus... ― saúda, com a voz
envergonhada.
Dou um suspiro.
― Ah, oi Rodrigo. Tudo bem?
― Tudo! ― rebate, ensaiando um pouco de animação. ― Desculpa te
ligar, obtive seu número sem a sua permissão... ― diz ele, sem jeito.
― Não se desculpe. Você é irmão de um amigo e por isso é amigo
também ― retruco forçando a situação.
― Obrigado, Clara! Fico feliz em saber disso ― ele fica em silêncio por
alguns instantes e continua. ― Eu liguei porque sei que você curte o Blue
October e eu encontrei um DVD raríssimo de um show deles, lembrei de você
e comprei... estava pensando se você queria assistir...
― Nossa! Legal... eu realmente curto muito essa banda e vou querer ver
sim! Deixe o DVD com o Marcus e como a gente amanhã tem aula juntos, ele
me entrega.
Pelo breve suspiro do outro lado da linha, acho que disse algo errado.
― Eu queria assistir com você... se não se importar ― diz hesitante.
Ouço sua respiração forte do outro lado. ― Hoje à noite, pode ser?
― Ah... hoje...?
Durante um longo minuto, reflito na enrascada que me meti. Justamente
hoje o Jonas vai passar lá em casa para pegar os cadernos. Sei e todo mundo
na universidade sabe, que eles não se dão bem ― e quem é que não se
desentende com aquele paspalho do Jonas? ― Mas como Jonas só vai passar
161
rapidamente, talvez eles nem se esbarrem. Se eu marcar logo isso, fico livre
dos dois de uma só vez.
― Pode ser ― confirmo.
― Combinado, então! Passo em sua casa às nove ― a voz está mais
animada. Animada até demais para o meu gosto.
Pelo menos a escolha do horário diminiu muito as chances de se
esbarrarem.
― Ok. Não esquece o DVD, hein?
Vácuo do outro lado. Bato com a mão na cabeça, arrependida da piada.
Ele se despediu com um “então, tchau” mais seco que o ar de Brasília.
Eu sei que o DVD é um pretexto para ele me encontrar, caso contrário não iria
se convidar para assisti-lo comigo. O Marcus... ah, ele me paga! Passou a
minha ficha completa para o irmão. Que tenha dado meu número de celular,
tudo bem, afinal, foi para o irmão dele. Mas contar sobre minha banda
preferida? Eu nunca disse ao Rodrigo o nome da banda. Só pode ter sido o
Marcus!
Papai me encara com uma estranha expectativa.
― Um pretendente, filhota? ― pergunta ele, puxando a linha do anzol
que parece esticada.
Acionei a luz amarela.
― Ah, pai... me poupe! O Rodrigo é irmão do Marcus. Nem o conheço
direito.
Ele se levanta para fisgar o peixe.
― É difícil agradar as garotas. Vocês são exigentes ― diz ele com ar de
mestre. Eu aciono a luz vermelha. ― Mas, com a idade de vocês, eu tinha as
minhas artimanhas. Não foi fácil conquistar sua mãe, mas com um pretexto
aqui e outro ali, fui avançando no território. A sedução é uma arma que
precisamos saber manejar ― ensina, com uma peculiar e vintage expressão
à Clark Gable no rosto. Se esta era a sua arma, hoje não serviria nem
para paintball. Ele está nitidamente desatualizado à respeito do macho
moderno. Os galãs de hoje em dia têm bem menos testosterona no olhar
matador.
Ele começa a puxar e enrolar o nylon no carretel.
― Pai, só aceitei para não ser mal-educada. Só por isso ― observo sua
habilidade ao tirar da água, sem quase nenhum esforço, uma tilápia de uns
dois quilos.
Enquanto ele admirava o balde repleto de outros peixes, a maioria
pescados por ele, contava as histórias sobre como conquistou mamãe. Ele já
me contara algumas, mas estava tão entusiasmado, que eu não me importei de
ouvir de novo.
***
162
Mal estacionamos o carro na garagem, Olívia já estava à porta nos
esperando. O beicinho e a expressão sisuda denunciam que ela passou toda a
manhã travando um embate com seu eu interior. O melhor de Olívia é ser
transparente e não guardar mágoas: quando está aborrecida, sinaliza logo o
porquê e, de um momento para o outro, está de novo feliz da vida e o mundo
volta a girar, brilhante e musical, como um carrossel.
― É só ignorar sua irmã. Você vai ver só como ela vai desemburrar ―
cochicha papai, enquanto entrega, orgulhoso, a tilápia nas mãos de Maria.
― Mas que peixão, Dr. Maurício! Preparem-se para um banquete
daqueles! ― exclama ela animada.
Interpreto minha irmã amoada. Aos poucos, como gato curioso, ela se
aproxima da bancada.
― Posso te ajudar a temperar o peixe, Maria? ― pergunta ela, na ponta
dos pés para alcançar uma bacia num armário da cozinha.
Às oito em ponto, Maria termina de colocar os pratos na mesa e todos
nos sentamos para a oração. Meus olhos não desgrudam dos ponteiros do
relógio de parede, que correm depressa, enquanto nos deliciamos com o peixe
magnífico que pescamos e Maria preparou tão bem.
― Da próxima vez eu vou junto, nem que tenha que me esconder no
balde ― diz Olívia. Fiquei na dúvida se ela falou sério.
Estou dispersa e não deveria estar. Jonas está atrasado. Papai percebe
minha aflição, mas deve pensar que é por causa da visita de Rodrigo. Ele não
sabe que Jonas ficou de passar aqui em casa hoje. Não quis alardear, porque
papai implicaria se soubesse. Sempre lhe contei cobras e lagartos sobre as
brincadeiras de mau gosto de Jonas e acabei por induzi-lo a querer distância
do filho do patrão.
Ofereço-me para ajudar Maria com a louça, mas antes tivesse ficado
quieta no meu canto. Consigo quebrar de uma só vez um copo e um prato de
sobremesa e ainda me cortar recolhendo os cacos. Olívia me oferece um band-
aid da Minnie. Não era bem o que eu tinha em mente, mas estancou um pouco
a minha inquietude no cômodo mais perigoso da casa. Vou para a sala e
procuro algo em que descontar a minha ansiedade. Sento-me e levanto-me do
sofá inúmeras vezes. Tento assistir televisão. Mudo os canais como quem
digita uma mensagem no celular até que Olívia, enervada, tira o controle
remoto da minha mão.
No outro sofá papai tenta se concentrar na conversa com Dr. Bauer.
Cogito pedir que papai lhe pergunte pelo paradeiro do seu filho insuportável,
mas lembro que Dr. Bauer não saberia responder. Nunca demonstrou se
importar com as maluquices do filho nem com o seu paradeiro.
163
24 - Pretextos
O relógio antigo da sala soa nove vezes e a campainha anuncia a chegada
de Rodrigo, pontualmente.
Convido-o a entrar sem olhar em seus olhos. Reparei primeiro em sua
roupa e espero que ele não tenha notado minha expressão embaraçosa. Só
faltaram os óculos para completar o visual Clark Kent: cabelo meio batido de
lado, calça social e camisa de manga comprida, em plena noite de 28ºC. Meu
pai nunca perdeu uma chance de observar o comportamento da juventude.
Rodrigo é um prato cheio para suas análises esta noite.
Respiro aliviada ao me certificar de que ele não trouxe flores. É um sinal
dos tempos modernos, em que os rapazes já não cortejam as garotas com
flores, mas com falsos pretextos de assistir ao DVD preferido dela. Parece que
estou com a mesma mania do meu pai. Tenho que parar de analisá-lo e
convidá-lo logo para sentar.
― Fique à vontade. Eu vou pedir a Maria para preparar suco e pipocas.
Pode ser? ― pergunto para quebrar a tensão e sinto uma leve coçeira no nariz,
provavelmente causada pelo excesso de perfume que invadiu a casa toda.
― Claro. O DVD está aqui ― diz ele mostrando o objeto. ― E você
estava certa: não é que eu quase ia me esquecendo dele em cima do sofá? Foi
o Marcus que me lembrou!
― É para isso que servem os irmãos! ― penso comigo: e os amigos! E
eu que pensava que a vaga de cupido já tinha sido preenchida pela Chris...
Fujo para a cozinha, seguida por Olívia que pula espevitada me
cutucando irritantemente pelas costas. Papai está no escritório em conversa
reservada com o Dr. Bauer. Fico enrolando enquanto Olívia e Maria não
param de rir do pobre Rodrigo, todo engomadinho.
― Não sejam maldosas! Ele ainda vai escutar! Shhhh! ― peço silêncio
às duas escandalosas. ― Mui amigas! ― reclamo.
― Ele está querendo impressionar a Clara! Vai lá ver, Maria! O garoto tá
muito engraçado, parece que vai a um casamento! ― exclama Olívia num tom
alto demais.
― Se duvidar ele veio direto do escritório onde faz estágio... ―
cochicho com as duas. ― Se ele soubesse que essas frescuras não tem nada a
ver comigo...!
164
― Então, diga a ele, Clara! ― provoca Maria.
― Rá-rá-rá ― ironizo.
Papai entra sorrateiramente na cozinha, depois de ter passado pela sala e
cumprimentado a nobre visita.
― Pois é, filhota, o rapaz acertou no DVD mas errou feio no estilo ―
caçoa papai. ― E provavelmente o coitado ainda teve dúvidas sobre qual
perfume usar e acabou despejando todos.
Os três riem sem a mínima compostura.
― Vocês querem que ele vá embora, é? Não seria má ideia, mas... puxa,
já estou ficando com pena dele! ― sussurro.
― Filha, caso você tenha algum interesse em namorar este rapaz, deixe
só eu te alertar para uma coisa ― papai agora tem o ar sério.
― Já sei...
― É. É isso mesmo ― confirma ele. ― “Ele tem dificuldades de
autoafirmação” ― dizemos em coro. E ele continua: ― É por isso que somos
pai e filha!
Ele beija a mim e à minha irmã na testa.
― Bom, vou me deitar porque amanhã volto ao batente ― ele rouba um
gole da coca-cola de Olívia. ― O Bauer viaja cedo e precisarei substituí-lo
numa reunião ― ele torce o nariz.
― Ohhhh.... ― dizemos em coro num tom de lamento.
― Essa família hoje podia participar num recital! ― exclama Maria,
puxando uma risada de papai, antes dele subir.
Adentro a sala equilibrando na bandeja, os sucos e o balde de pipoca.
Não sei de onde Rodrigo tirou os óculos que acaba de colocar. Agora não falta
mais nada para me sentir a própria Lois Lane. Talvez se eu escorregasse e
derrubasse a bandeja em seu colo. Mas é melhor não dar ideias a mim mesma.
Ao sentar-me ao lado dele, dou pelo menos quatro espirros, um após o outro.
Ele não parece se importar; não se move nem um milímetro para o lado
e, ao contrário, aproxima-se mais, até praticamente grudar-se em mim.
― Desculpa, Clara, talvez eu tenha exagerado no perfume ― talvez?
Enquanto tira umas pipocas do balde, liga o vídeo. ― Seu pai é muito
simpático. E sua irmã é uma graça.
― Pois é, minha irmã é uma graça, mas também adora fazer graça ―
pisco para ele, pois sei que percebeu as risadinhas dela. ― Pode ligar o vídeo!
― pressiono, para ver se ele esquece de me encarar fixamente.
Estamos ainda na primeira música quando sinto o braço de Rodrigo
esticar-se e acomodar-se por trás de mim, sobre os meus ombros. Afasto-me
um pouco e ele se retrai.
― Linda essa música! ― empolga-se, desta vez acomodando o braço
sobre a minha coxa. ― Não acha?
165
― Acho... ― e acho também que você está tomando liberdades demais!
Ensaio cruzar as pernas, mas o braço de Rodrigo afunda entre os meus
joelhos. Suas mãos não têm nada de bobas neste momento e pelo leve
movimento dos seus dedos percebo que ele prepara o bote. E eu abraço com
firmeza o balde de pipocas que pretendo derramar inteiro em sua cabeça.
Quando a segunda música Amazing já está no fim, meu celular vibra
sobre a mesa. Inclino-me para pegar o aparelho e Rodrigo finalmente se
afasta. É uma SMS enviada através do Twitter. A única pessoa que tem o
hábito de mandar tweets pelo celular é Christiane, que a esta hora ainda está
na academia, na aula de Ioga. Isso me fez lembrar da última vez, nesta mesma
hora, em que ela retweetou que seu professor sexy tomou Ricky Martin por
inspiração e assumiu a homossexualidade. Na ocasião não fez nenhuma
diferença na minha vida (nem o tweet, nem o Ricky Martin ou seu
professor sexy de Ioga), mas agora, qualquer pretexto para me livrar dos
tentáculos de Rodrigo vem a calhar. Vale tudo.
De: 40404
1/1 Direct from Nath-Aniel(@MalachNate): Hoje às 22:00.
Reply with „Nath-Aniel (@MalachNate)‟
Ou quase tudo. Era só o que eu precisava; que Nate fosse aparecer dentro
de meia hora! Estou perdida. Tento disfarçar minha súbita crise existencial,
mas Rodrigo percebe e se volta para mim desconfiado:
― Aconteceu alguma coisa?
― Não! Tudo tranquilo.
Mal termino de completar a frase, a campainha grita, sonora e malcriada:
“Clara está f%r&a#a!”. Preciso correr para atender a porta antes que Maria
chegue na frente e provoque um encontro entre rivais: Rodrigo e Jonas não
podem se cruzar. Nem talheres. Não podem? Mas deveriam... Uma ideia
pipocou entre meus neurônios elétricos: até que não seria ruim eles se
encontrarem. Talvez seja a salvação para me livrar dos dois! Antes de dar o
impulso para me erguer do sofá, já estou me recostando novamente,
dissimuladamente, confortavelmente.
Permaneço assim, ignorando a campainha. Maria aparece na sala e
anuncia:
― Clara, desculpa interromper, mas o Jonas está aí a sua espera.
Até os perversos sentem frio na barriga. Foi o que acabei de descobrir.
Mesmo sabendo que não é a opção mais hippie, prossigo com meu plano de
afastar os dois rapazes da minha casa. Afinal, como não tenho os poderes
celestiais de Nate para fazê-los desaparecer, preciso dispensá-los com truques
humanos mesmo.
166
― Você conhece o Jonas que estuda lá na faculdade, Rodrigo? ― diante
de sua pseudoindiferença, continuo ― Ele pode assistir ao DVD com a gente!
― simulo minha melhor expressão de contentamento. Modéstia à parte,
poderia ser indicada ao Oscar por isso. Volto-me para Maria: ― Diga para ele
entrar, Maria!
Maria deixa a sala e Rodrigo olha para mim com um brilho mordaz nos
olhos escuros. Ele parece outra pessoa.
― Clara, eu não fico à vontade no mesmo ambiente que esse cara.
― É mesmo?! Vocês não se dão? ― até meus dentes refletem minha
“sonsatez”.
Marcus já havia comentando comigo que seu irmão e Jonas têm uma
rixa. Não sei do que se trata, só sei que eles se evitam. Nos olhos de Rodrigo
posso ver que Marcus não exagerou quando disse que um campo de futebol é
pequeno para eles se encontrarem.
― Não posso explicar agora, mas se nos esbarrarmos aqui, vai ter briga
na certa ― admite Rodrigo esfregando as mãos de nervosismo.
Começo a me preocupar de verdade. Esse encontro meio ao acaso e meio
provocado não é nada adequado. Nem a palavra adequada é adequada neste
caso. Por que eu não deixei o acaso para os anjos?
― E agora? Ele vem aí! ― mordo os lábios. ― Desculpa, Rodrigo... eu
não sabia que era assim tão grave ― desta vez fui sincera.
Ele me encara como se eu fosse o Mestre dos Magos para ajudá-lo a sair
dessa. Mas me sinto o próprio Vingador, afinal, fui eu quem o colocou nessa.
É óbvio que se esforça para não transparecer o nervosismo, mas eu vejo que
até os músculos de sua face estão irrequietos.
― Lamento não ficar para ver o resto do DVD ― antes de subir no
parapeito da janela da sala, ele para e olha para mim: ― Só me diz uma coisa:
você é amiga desse cara?
― Não! ― reajo espontaneamente e depois, faço uma pausa, para não
estragar toda a encenação ― ...amiga, não. A gente frequenta o mesmo curso
e ele é filho do chefe do meu pai. Por isso nos conhecemos há anos. Mas não
somos amigos.
― Há anos? Mais um motivo para eu odiá-lo ainda mais ― ele toma
impulso para pular da janela, uma altura não muito grande, mas que eu não
arriscaria.
― É melhor você ir, então, Rodrigo ― peço-lhe, seguramente
arrependida do meu plano.
― Fica com o DVD. É um presente. A gente se vê, Clara.
Quando me debruço-me para vê-lo, ele já está correndo em direção ao
carro estacionado na esquina. Consigo balbuciar uma recomendação que ele
talvez não tenha ouvido.
― Dirija com calma!
167
***
Como Jonas está demorando para entrar, vou à porta. Encontro-o, de
pernas para o ar, se esparramando na rede. A sua cara de pau não tem limites.
E eu podia ter alguma dúvida?
― Eu vi o carro do babacão ― diz ele sentindo os meus passos.
― Que babacão?
― O Rodrigo.
― É, ele estava aqui sim. Veio me trazer um DVD ― replico, sentando
na cadeira de balanço em frente à rede.
― Ele tá te cercando ou você tá dando mole pra ele? ― pergunta se
reposicionando na rede.
Dando mole?
― Você não tem nada a ver com isso.
Ele sorri para a minha rispidez por um breve instante e depois se
aproxima inclinando-se na minha direção:
― Tem razão ― o sorriso se desfaz e se transforma numa linha rígida.
― Esse cara não é boa gente, Clara. Fique atenta.
― Por quê?
― Não vou me meter. Só te aviso porque...
― Por quê? ― insisto.
Ele desvia o rosto e fita o jardim.
― Por que simpatizo contigo. E com o teu pai também.
― Você? ― o cara mais casca-grossa que eu conheço. ― Simpatiza
comigo e com meu pai?
Ele dá de ombros.
― Teu pai uma vez me salvou de um afogamento. Você lembra? ― a
pergunta quebra um pouco o gelo.
― Foi na piscina da sua casa, num daqueles churrascos gigantescos que
o seu pai fazia para mais de duzentas pessoas ― um sorriso torto de repente
desperta no meu rosto sisudo.
― Pois é... ― diz, pensativo.
― Lembra quando você botou fogo no meu cabelo?
― Peguei pesado... ― ele morde os lábios inferiores, do mesmo jeito
que eu faço quando estou nervosa ou sem graça.
― Foi divertido! ― dou uma gargalhanda ao lembrar da cena hilária.
Quando aconteceu mais parecia um filme de terror. Na época eu queria
trucidá-lo. ― A gente nunca se deu bem porque você fazia essas brincadeiras
nada legais comigo. Eu pensei que você me detestasse.
Ele dá uma risada.
― Detestar quem me diverte?!
168
― Puxa, estou muito mais aliviada agora! De objeto de ódio passei a
objeto de diversão ― levanto a perna para chutar a rede mas ele tem o reflexo
de desviá-la. Foi tão instantâneo, parece que adivinhou o que eu ia fazer.
― Ainda hoje adoro lembrar da sua cara quando a sua bandeja
desequilibrava e voava gororoba melequenta pela cantina toda! Nunca entendi
como conseguia comer aquela ração... você devia me agradecer por todas as
vezes que evitei que sofresse graves distúrbios estomacais.
― Para o seu governo, eu sempre achei a comida da cantina muito boa!
― com exceção da „quinta-feira vegan‟ em que serviam suflê de espinafre e
bife de soja. ― E... antes ter complicações estomacais do que virar motivo de
chacota na frente da escola inteira! ― bem, eu não estou exatamente segura
disso.
Ele ri de novo.
― Essa rede é muito boa! ― exclama animado, balançando-se de um
lado para o outro com um jeito desengonçado.
― Pode ficar aí mais tempo se quiser. Vou pegar os cadernos.
Estranhei Jonas ter evitado esbarrar com Rodrigo. Ele nunca foge de uma
briga, muito menos da oportunidade de provocar uma. Estranho ainda mais
que Jonas esteja tão afável comigo. Ele nunca me deu bola, praticamente
nunca demonstrou gostar da minha presença e sempre se esmerou em me
irritar, como se isso fosse o seu esporte preferido nos tempos livres. E agora
diz que tem simpatia por mim? Que deve sua vida ao meu pai? E, o mais
incrível, quer me aconselhar sobre amizades. Meu queixo caiu.
Igualmente misteriosa é a relação entre Rodrigo e Jonas. Qual será o
motivo de tanta inimizade? Os dois têm praticamente a mesma idade, sendo
que Jonas é um ano mais velho. Ele foi reprovado em muitas cadeiras do
curso, senão já estaria se formando este ano, enquanto que Rodrigo é muito
estudioso e em breve concluirá o curso. Jonas é rebelde e desleixado com sua
aparência, enquanto Rodrigo é todo certinho e vaidoso. Fisicamente são
parecidos: têm praticamente a mesma altura, a mesma tonalidade castanha de
cabelo e olhos também castanhos, sendo os de Rodrigo no tom de avelãs e os
de Jonas mais claros, num tom de mel.
Entrego os cadernos nas mãos de Jonas, que já está de pé no jardim.
― Valeu, Clara. Amanhã mesmo te devolvo ― diz ele se virando
depressa para a rua.
― Espera! Eu fiquei curiosa... qual é o problema entre você e o Rodrigo?
― pergunto.
― Problema? Problema nenhum. A gente não se bica, só isso ― ele, que
já estava no portão, volta a subir os três degraus da varanda e mira fundo nos
meus olhos. ― Meu conselho pra você é esse: não deixe que ele se aproxime
demais.
Faço pouco caso da sua preocupação.
169
― Eu sei me cuidar.
― Quem avisa, amigo é ― ele ergue as sobrancelhas grossas.
― Partindo de você, tem muita credibilidade...
Ele não gosta muito da ironia e torce o nariz.
― À parte das brincadeiras que faço contigo desde que nos entendemos
por gente, não sou o sacana que você pensa.
― Ok... então você assume que sempre foi sacana comigo? ― pergunto,
cruzando os braços.
― Eu fui um sacana contigo, mas isso não significa que não me importe
― diz com a cabeça baixa, abrindo o portão. ― Te cuida! Fui!
Jonas anda depressa até seu Pajero Dakar preto e sai cantando pneu, bem
ao seu estilo. Só me resta descobrir se sua rebeldia tem ou não causa. Algo me
diz que Jonas tem um motivo forte para ser do jeito que é, arredio e
arruaceiro. Pode ser que debaixo dessa máscara, exista alguém meigo e gentil.
Hoje ele me mostrou um lado que eu desconhecia.
Nos conhecemos, como ele bem disse, desde que nos entendemos por
gente. A primeira vez que nos vimos foi em sua casa, eu devia ter uns sete
anos e ele uns dez. Frequentei bastante a sua casa com minha família,
inclusive quando mamãe era viva. Durante estes anos todos, ele nunca tinha
revelado capacidade de demonstrar preocupação com alguém.
***
Ainda tenho sete minutos antes do horário marcado por Nate. Aproveito
para ir ao sótão procurar os vestidos de mamãe. Depois de olhar em volta,
meus olhos estacionam no armário de mogno. Abro-o e só vejo casacos e
roupas de inverno. Ouço um barulho, como o ranger de dobradiças e estalar de
madeira velha. É breve, mas consigo determinar de onde o som veio. Vou até
o baú e, com algum esforço, levanto a tampa de madeira maciça. Há
fotografias e livros antigos. Um dos livros me chama a atenção por estar por
cima e entreaberto. É como se alguém tivesse mexido nele há pouco tempo.
Tendo em conta a sua fragilidade, seguro-o cuidadosamente. Algumas
páginas, amareladas pelo tempo, estão coladas umas às outras. Ele parece
escrito em espanhol arcaico, talvez até num dialeto. Pelas ilustrações percebo
que se trata de um livro sobre mitologia grega. Abro na página que o estava
impedindo de fechar. Um colar com um grande e delicado camafeu serve de
marcador. Fico observando-o e passo o dedo sobre as figuras em alto relevo
nele esculpidas.
A moldura circunscreve uma fina placa de concha oval com um singelo
trançado em ouro. Sobre a superfície acastanhada, o artesão talhou uma figura
que faz lembrar dois seres mitológicos. No entalhe, espiados por três
querubins, uma mulher adormece encostada ao peito de um homem alado, que
respousa sobre uma nuvem coberta de flores.
170
O relógio de pêndulo bate o quarto de hora e eu, encantada com a beleza
do camafeu, já estava esquecendo do que me trouxe ao sótão. Como a
arqueóloga que um dia quis ser na infância, depois de inutilmente soprar a
poeira, guardo-o na mesma página que demarcava no livro, exatamente como
o encontrei, para que mais tarde possa estudá-lo com calma. Esse sótão
precisa e merece um inventário urgente.
Vou até o gaveteiro em estilo inglês, provavelmente há algumas gerações
em nossa família. Na primeira gaveta são apenas documentos antigos. Na
segunda, pertences de papai, coisas que ele já nem dá pela falta. A terceira
gaveta tem desenhos meus. Assusto-me folheando alguns; desde pequena
sempre demonstrei ser uma nulidade em artes plásticas. A última gaveta, abro-
a devagar com uma forte expectativa. Muito bem dobradinhos e perfumados,
estão os vestidos. Claro que Maria não os deixaria ganhar mofo! Eu deveria
ter perguntado ao nosso “oráculo do lar” onde estavam os vestidos.
Experimento um deles e não me sinto muito bem, fica comprido demais.
Encontro um florido, com um decote em “V” e manguinhas delicadas com
rendinhas. É quase um vestido de boneca de tão mimoso. Estes vestidos de
certo modo me aproximam de minha mãe, que se estivesse aqui, mostraria
satisfação em me ver vestindo roupas suas para ficar bonita para um rapaz. E
este não é um rapaz qualquer.
171
25 - Espiões
“(...) Eles comandaram os duzentos anjos que juntos os seguiram.
Tomaram esposas, cada um escolhendo a sua. Aproximaram-se delas e com
elas coabitaram, ensinando-lhes feitiçaria, encantamento e as propriedades
das raízes e árvores. As mulheres deram à luz os gigantes, cuja estatura
atingia trezentos côvados. Eles comeram tudo que havia sido produzido pelo
trabalho dos homens até que se tornou impossível alimentá-los. Quando se
voltaram contra os homens, para devorá-los. E começaram a ferir os
pássaros, bestas, répteis e peixes para comer sua carne e beber seu sangue.
Então a terra reprovou os maldosos.”
(Capítulos 7-15, Primeiro Livro do Enoque)
Do corredor sinto o perfume de Nate. Encontro-o sentado na cama do
meu quarto, a cabeça baixa, os cabelos encobrindo o rosto. Ele se levanta ao
me ver entrar e fica pasmado olhando para mim.
― Clara? ― ele franze os olhos.
― Claro! Quem mais poderia ser?
Ele fita o vazio por um instante e retorna os olhos para mim. Será que o
fiz lembrar alguém? Ele estica o braço para afagar meu rosto, mas hesita
lembrando que não pode me tocar.
― Desculpe pela demora... me arrumei hoje ― admito, envergonhada.
― Você é perfeita, Clara.
Tudo o que eu não queria aconteceu. Fiquei vermelha como um tomate.
― Gostaria de ter os cabelos loiros da minha mãe... esse vestido era dela.
Certamente fica melhor em mulheres loiras ― comento meio desconcertada,
fingindo ajustar o vestido nos ombros.
Me observo no espelho da penteadeira e reparo que a imagem de Nate,
que deveria estar logo atrás de mim, não existe. É como se ele não estivesse
aqui. Isso não deveria me surpreender, afinal, sei que a imagem, apesar de
parecer real, é apenas energia.
― Não me refiro apenas à sua aparência ― contesta ele. ― Você é
perfeita e genuína em seu jeito humano de ser.
172
Nate acaba de me fazer sentir extremamente fútil e nem percebe. Ele tem
mais este poder para juntar a todos os outros, o de ver valores em mim que
nem de lupa consigo enxergar. Vou até a janela e depois de inspirar o ar fresco
da noite, pergunto:
― Queria dar um passeio com você. É possível?
― Sim, mas não sei como ― responde, frustrado.
― Não consigo sonhar com você por minha iniciativa, nem sequer
invocá-lo e eu sei que das vezes que tentei, estávamos em sintonia. Não existe
uma outra maneira de estarmos juntos?
Seus pés descolam do tapete e ele começa a subir.
― Existe, mas não posso ainda usá-la, Clara ― ele sobe até encostar no
teto. ― Através da materialização eu poderia me humanizar a ponto de estar
na Terra de corpo e alma. O anjo precisa se espelhar na alma de um humano.
Mas é uma forma de manifestação que se aprende evoluindo e a minha
intuição, apesar do longo tempo da minha existência, ainda não evoluiu
suficientemente.
― E quanto tempo é necessário passar para você conseguir isso?
― Não é uma questão de tempo, mas de aperfeiçoamento dos dons ―
explica ele, passando para fora da janela.
― Eu queria que você estivesse aqui de carne e osso, sem que fosse
apenas nos meus sonhos e nessas visões... ― desabafo, debruçando no
parapeito.
Ele sorri enquanto se dirige a mim, flutuando no ar com a leveza de um
pássaro, mas que para planar assim precisaria bater as asas com sofreguidão.
― Tenho uma proposta para lhe fazer ― ele passa por mim e tudo o que
eu sinto é uma brisa, entrando pela janela. ― Acho que não cheguei a ser
claro com você da última vez ― noto que ele observa atentamente as
fotografias no mural de cortiça. ― Clara, quero lhe propor uma vida em
comum, aqui.
― Eu sei o que isso implica, Nate ― encaro-o fixamente. ― O preço é
muito alto.
Observo seu ar de reflexão sobre as fotos.
― Preço? ― retruca ele. ― A vida não tem preço, Clara ― Fico em
silêncio e ele prossegue ainda mirando as fotos: ― Quero estar naquele mural
também; quero fazer parte da sua vida.
― Você não precisa estar ali para fazer parte da minha vida. Você já faz
― aproximo-me dele o suficiente para ver o quanto de angústia há em cada
curva do seu rosto. Dava tudo para abraçá-lo agora!
― Clara, para ficarmos juntos eu preciso cair.
Neste momento, se eu estivesse abraçada a ele, teria me afastado.
― Não! Isso eu não quero, Nate.
173
Ele franze a testa.
― Você mesma desabafou que não se contenta com nossos encontros
furtivos...
― E você disse que os anjos evoluem, então um dia nossos encontros
serão mais fáceis!
Ele se aproxima de mim e acho que me abraçaria agora se pudesse.
― Clara, no processo de evolução de um mal´hak posso levar dois dias
ou dois mil anos até conseguir evoluir suficientemente para isto! Além disso e
o mais grave de tudo: estamos indo contra o Criador.
Ir contra o Criador. Isso me soa tão clichê como um conto dos Irmãos
Grimm. Com o perdão da comparação, eu não sou a Branca de Neve, Nate
não é a maçã e o Criador não é nenhuma bruxa má. Por que ele insiste em
fazer parecer que nosso amor é um veneno?
Os olhos dele estão carregados como se neles retivesse todas as nuvens
negras do céu, mas quem começa a chorar sou eu. Então, um anjo pode
tweetar, mas não pode tocar num humano? Dei a bendita sorte de nascer numa
geração que tem acesso à tecnologia para aproximar pessoas e ao mesmo
tempo a maldita sorte de me apaixonar pela única criatura intocável do
universo.
― Não chore... não... não posso te tocar, Clara! ― angustia-se.
Sua mão está bem próxima do meu rosto e, como se pudesse secar
minhas lágrimas, seu dedo desliza sobre o rastro que elas deixam. Vendo
agora mais do que angústia em seu rosto, esfrego-as rapidamente, mas não
consigo encará-lo.
― Estou, outra vez, quebrando o protocolo. Eu não podia estar aqui com
você. Sequer posso provocar seus sonhos como fiz na noite passada.
Viro-me de costas para ele, irritada. Sinto ardência na minha mão
esquerda, e percebo que ele tem a mão na minha.
― Você faz tudo parecer realmente impossível ― desabafo, afastando
minha mão.
― Não há relação humana possível entre anjos e humanos. Mas o amor
que sinto por você é um sentimento humano. E para um anjo viver esse
sentimento sem trair as leis, deve cair e tornar-se humano.
― Se você fosse um anjo pleno, não sentiria amor por mim ― contra-
argumento sustentando seus olhos. ― Você é um anjo com um coração
humano ― insisto.
Conforme ele balança negativamente a cabeça, seus cabelos dourado-
escuros se movem revelando as formas agudas de suas orelhas.
― E sem alma ― complementa ele com amargura na voz. ― Quer me
convencer que sou meio humano para nos sentirmos menos culpados, mas não
pode me convencer de algo que é falso. Cuidado com o seu pensamento, Clara
― alerta ele.
174
Ele não me deixa alternativa, senão ser o mais franca possível.
― Não tem nada a ver com culpa. Tem a ver com...
Ele captura o meu olhar desprevenido e em seguida vira o rosto. Tarde
demais; ele já decifrou meus pensamentos.
― Não... não dificulte as coisas.
Eu me aproximo dele e ele se esquiva.
― É isso mesmo! Se você sente desejo neste momento, então você é
homem, além de anjo. Você não precisa cair para sentir-se humano.
Ele balança a cabeça.
― Escute, Clara: estou traindo Quem me criou. Não posso burlar
preceitos determinados. Eu não posso fazer isso, por mim nem tampouco por
você! Não vou arruinar a sua vida. Nós corremos riscos quando nos
encontramos assim.
― Danem-se os riscos! Para mim não há maior segurança do que ter
você ao meu lado!
― O que sentimos merece ser vivido na plenitude e não à margem de
nós mesmos.
Desabo na cama. Se a culpa que eu sinto por não conseguir ajudá-lo a
entender sua natureza conflituosa já é tão pesada, me pergunto como eu
poderia ajudá-lo a ajustar-se quando abdicasse de sua eternidade por uma vida
mortal ao meu lado. Será que ele continuaria com o mesmo conflito? Será que
cair resolveria?
― Nate, juro que estou me esforçando para entender seus argumentos...
mas é tão absurdo abdicar do que você tem, do que você é...
Ele sustenta meus olhos.
― Por favor, entenda que preciso cair. Por nós dois.
― Eu não quero que você seja banido de Malkuth, que abandone suas
origens. Seria muito egoísmo da minha parte.
Ele respira fundo.
― E não é ainda mais egoísta da sua parte que você me abandone um
dia?
― Como assim? Eu nunca vou te abandonar! Nunca! ― reajo exaltada,
dando um salto na cama.
― Clara, eu sou imortal. E você?
Essa constatação me fere, dói como se arrancasse de mim qualquer
esperança. Não é propriamente uma novidade o que acabo de ouvir, mas me
surpreendeu. Não há argumento diante de um fato irrefutável: eu vou morrer
um dia. E se Nate já não sabe, ainda saberá quando e será um sofrimento lento
ver o tempo esvair-se para mim. Mesmo que eu alcançasse os cem anos ― já
no limite da longevidade humana ― em sua existência perene a minha
existência não seria nada. Nate tem toda a eternidade pela frente e toda ela
175
para amargurar a minha morte. Preciso pensar na morte não como o fim, mas
como o começo. E talvez assim, eu consiga realmente enxergar pelo seu
referencial. Talvez assim eu dê menos importância à imortalidade e mais valor
à eternidade.
A verdade é que nunca tive medo de morrer, mas agora que descobri
Nate, me apavora a perspectiva de perdê-lo para sempre. Quando a minha vida
se extinguir ele deixará de ser meu guardião e para onde quer que vá minha
alma, estaremos sempre em esferas celestes diferentes. Pelo tempo que sua
imortalidade se perpetuar, Nate estará preso à Malkuth.
***
Sento na cama de novo. Não tenho nenhuma resposta para lhe dar agora.
Qualquer coisa que me vem à cabeça me parece mesquinho demais. Nate
senta-se ao meu lado e uma sombra lhe rouba o brilho dos olhos.
― Prometa que pensará no que propus.
― Você sabe que vou pensar. Talvez até já saiba minha decisão, antes de
mim...
― Não sei não, Clara. Ainda não.
De certo modo fiquei aliviada ao ouvir isso. Meu livre-arbítrio me
pertence. Ele vai respeitar e esperar minha resposta.
― Preciso falar de um assunto delicado ― ele carrega um peso no olhar
baixo. ― Seu pai perderá a memória em três dias.
― E o que vai acontecer?
― Como você sabe, além das referências sobre a experiência, ele vai
esquecer de tudo que aconteceu a partir de Malkuth. Você deverá ajudá-lo
nesse processo de transição porque terá lapsos de memória constantes e ficará
confuso ― comenta, como se fosse uma coisa natural alguém sofrer uma
amnésia programada. ― Será como se sua vida regressasse até o dia do
sequestro. Vocês precisarão confirmar um estado clínico ― diz Nate, de
encontro aos meus pensamentos.
― Vou dizer a papai que ele sofreu uma amnésia por estresse emocional
― explico, decidida e logo me ocorre que estou falando de um encantamento,
não de um quadro clínico. ― Mas se meu pai quiser consultar especialistas,
eles confirmarão esse diagnóstico? E os exames?
A pergunta que não me encorajo a fazer, ele responde:
― Sim. Será preciso forjar um resultado ― antes que eu protestasse ele
continua: ― Será pelo bem de todos.
Se não tivesse acabado de ouvir essa frase da boca de um anjo, eu diria
que é a afirmação mais cínica que ouvi em toda a minha vida.
Depois de algum tempo em silêncio, Nate diz:
― Tenho notícias sobre seus colegas de preto, ali na fotografia.
Faço ar de interrogação.
176
― Eles são...
― São.
Suspendo a respiração. A reação de Nate é instantânea; ele tenta tocar
meu rosto com o dorso da mão.
― Existem muitos vigilantes infiltrados.
Desencosto da cama e olho fundo em seus olhos.
― Eles são perigosos?
― Esses vigilantes são filhos de anjos caídos do mal conhecidos como
grigoris, que vivem no quinto céu, aprisionados. Os filhos têm a missão de
tirar os pais de lá. Podem escolher o caminho da força ou o da redenção.
Eu não pedi os seus ensinamentos bíblicos. Fiz uma simples pergunta.
Mas com Nate não adianta ser objetiva.
― Ok. Eles são perigosos. Mas onde eu entro nessa história?
― Por causa das pesquisas do seu pai eles se tornaram espiões de sua
família ― responde Nate, mais uma vez, como se fosse a situação mais
natural do mundo uma pessoa ter espiões sobrenaturais em sua vida. ― Estes
vigilantes são comandados por Abbadon. Eles acreditam que a descoberta de
seu pai seja um caminho para a libertação dos grigori.
A notícia de que há nephilim vigilantes entre meus colegas de turma e de
que se infiltraram na vida de minha família por meio de mim, me apavora. Só
de pensar que há anos estamos sendo vigiados sem nos darmos conta, me faz
pensar que existe muita coisa que eu ainda ignoro.
― Quem mandou a mensagem de ameaça pelo celular foi Wotan, filho
de Armaros. ― enquanto meus olhos fitam o vazio, ele continua me
explicando o incompreensível: ― Os três nephilim vão estar rondando vocês
até terem certeza de que seu pai esqueceu a fórmula. Eles são os olhos de
Abaddon.
― Eu ouvi falar dele em Malkuth. Quem é Abbadon?
― Abaddon é o olho de Hailel, que você sabe quem é.
Um calafrio percorre meu corpo. Eu sei que há diversas designações para
o senhor das trevas, mas nenhuma delas me amedronta menos.
― Então se os pagãos são os olhos de Abbadon e Abbadon é o olho de...
então foi Wotan que sequestrou o meu pai...?!
― Wotan, sob influência de Abbadon ― responde depressa. ― O
vigilante foi penalizado por Abbadon pela interpretação errada que tirou do
subconsciente de seu pai ― informa ele por cautela. Ele já antecipou a minha
reação irada.
Sinto repugnância e num só segundo lembro-me de todos os olhares
lançados por Wotan em direção a mim nos últimos anos, especialmente nas
últimas semanas; sua estranha apoximação e sua repulsa dias depois. Agora eu
entendo.
177
― Não me interessa se ele foi penalizado ou não! É um miserável!
Infeliz! Maldito! ― bato com os punhos no colchão.
Nate me observa com espanto. Sei que o estou chocando com minha
atitude enraivecida enquanto ele tenta me serenar.
― Clara, eles são miseráveis mesmo. Os vigilantes são dignos de pena
― o semblante de Nate se enche de misericórdia.
― Pena? Só mesmo um anjo para se penalizar... ― interrompo--me
depressa.
Nate ainda está espantado comigo.
― Os vigilantes são cruéis porque não tiveram opção.
― Sempre temos opção, Nate ― retruco friamente, cruzando os braços.
Nate se ajeita junto a mim e seu ombro, em parte, se sobrepõe ao meu.
Ainda me impressiona saber que ele é apenas um espectro sentado em minha
cama.
― Não os nephilim vigilantes ― contesta com o ar piedoso. ― Eles são
fruto da coabitação entre anjos caídos e mulheres humanas e nada podem
fazer para mudar isso. Se o anjo caído é do mal, consequentemente o nephilim
não terá outro destino senão tentar tudo para libertar o pai. É uma sina, pois
logo que o vigilante nasce, seu pai é enviado para o quinto céu. O Criador não
permite que a ameaça continue entre os humanos.
Tudo em Nate estimula compaixão, bondade, clemência e é
extremamente desconcertante saber que os meus sentimentos agora são
exatamente o contrário do que ele prega. Não quero que ele pense mal de
mim, mas ele tem que me dar um desconto, afinal: sou humana!
― Então não há grigoris entre nós. Que alívio... ― murmuro. ― Mas e
as mães deles?
― A maioria suicida-se.
Engulo em seco.
― Outras simplesmente desaparecem ― complementa ele.
― Como assim? Elas fogem, se escondem?
― Há vigilantes que enclausuram suas mães como penitência. Elas
consentem porque sentem-se tão culpadas pelo pecado que cometeram, que
acabam por se tornar reféns de si mesmas, do medo, da condição dos filhos
vigilantes, do arrependimento, da dor...
― Que situação abominável...
Levanto da cama e vou até a janela. Não conseguiria viver condenada a
uma reclusão; não teria essa coragem. Eu preferiria morrer. Um profundo
sentimento de pena me invade ao pensar nessas mulheres que se apaixonaram
por anjos, tal como eu. Eu tive sorte pelo anjo que cruzou o meu destino ser
um anjo bom. E me amar de verdade.
178
Nate aparece por trás de mim. Sinto sua presença nos pelos dos meus
braços, mas não me viro para ele.
― Todos os anjos têm livre-arbítrio e plenos poderes para agir em nome
do Criador. Existem reservas e limitações, mas Ele confia em nós,
plenamente. Antes do anjo cair, já formou sua índole. Por estarmos sempre
muito próximos dos humanos em nossas tarefas, desenvolvemos sentimentos,
bons e maus. O grigori é aquele anjo que caiu porque decidiu seguir o
Renegado deixando-se corromper pelos sentimentos maus. O grigori cai à
revelia do Criador, ou seja, sem a sua autorização. Portanto, ao coabitar com
uma mulher, já traçou seu destino.
Ele faz uma pausa, passa para a minha frente e olha ternamente para mim
antes de continuar.
― Mas existem casos em que um anjo cai por amor. Quando esse anjo se
apaixona por uma humana, ele só tem uma alternativa para evitar um
banimento para o quinto céu; deve antes pedir uma autorização a seus
superiores diretos. O processo chama-se nephal e é lento; podendo levar anos
até que haja uma decisão. Com a decisão de deferimento, existe um ritual.
Ele silencia novamente. Seus olhos enublecem. Não posso deixar de
perguntar:
― O que acontece durante esse ritual?
― É um ritual violento, Clara. Não me peça para descrevê-lo ―
responde ele evitando a minha direção.
― Você já assistiu algum?
― Sim, apenas uma vez.
― O que aconteceu ao anjo? ― insisto.
Ele se vira para mim.
― Ele perdeu as suas asas. Como a todos os outros, elas lhes são
brutalmente arrancadas.
― Que horror! ― exclamo.
― E então o anjo cai, banido, com a autorização do Criador.
Diante do meu silêncio e das feições horrorizadas, Nate esboça um
sorriso estranho no canto do lábio.
― Não é tão ruim como parece, Clara... é violento, mas é libertador.
― Libertador?! Como um anjo pode sentir-se livre sem suas asas? Na
minha visão humana as asas representam liberdade. Se um anjo as perde, ele
perde a liberdade!
― Quando falo em ritual libertador não é neste sentido. O anjo perde as
asas mas ganha uma alma ― justifica ele.
Diante da minha estupefação, ele continua, desfazendo aos poucos o
sorriso discreto que estava em seu rosto.
179
― Os grigoris têm motivações torpes para cair. O anjo que cai por amor
não optou por seguir o Renegado, mas ao apaixonar-se, pecou gravemente.
Como não pode manter nenhuma relação com uma mulher nestas condições,
ele escolhe ter uma vida humana.
― Então os anjos caídos que permanecem entre os humanos são todos
do bem... ― reflito. Depois de saber que os grigoris largaram suas crias entre
nós... enfim, uma boa notícia.
― Em regra, os vigilantes são muito cruéis, Clara. Eles podem ser
bastante perversos, dependendo da sua ascendência, da sua linhagem ―
informa ele.
― Mas e os filhos dos anjos caídos por amor? Eles não são vigilantes...
― Não, não são. Mas são igualmente seres híbridos, conflituosos,
torturados ― responde Nate novamente com o ar piedoso.
― Por que são assim?
― Porque são seres apaixonados por natureza, impulsivamente
motivados pela paixão. Eles têm um lado irracional que os leva a agir ao
extremo, ao limite, à força.
― Nossa... eles são o quê, então? Selvagens? ― indago.
― Quase isso. É como uma maldição, uma punição. Eles nascem
divididos, um lado constantemente lutando para dominar o outro. Só começam
a pacificar-se quando encontram o amor de alguém que os proteja de si
mesmos.
É estranho imaginar que haja criaturas híbridas convivendo com seres
humanos e passando totalmente despercebidas. Se tudo o que Nate me contou
algum dia ganhar domínio público poderá haver uma segregação. E num
mundo onde há homens que excluem homens, os semianjos teriam todas as
chances de levar a melhor. Agora percebo claramente o objetivo de Heilel de
divulgar a fórmula do meu pai entre os humanos. A ambição pelo poder sobre
a vida e a morte nas mãos das criaturas mais frágeis e indefesas de Deus,
atiçados pelos semianjos nephilim, filhos dos grigoris, é como uma cisão
nuclear capaz de destruir toda a humanidade. Algumas peças começam a se
encaixar, mas nem tudo foi ainda esclarecido.
― Além destes espiões nephilim, existe algum outro na minha vida neste
momento?
― Suspeita de alguém? ― pergunta ele, elevando uma sobrancelha.
― Não... mas depois dessa conversa, vou suspeitar até da minha sombra!
― o tom foi meio jocoso, mas ainda espero a resposta. E ela não vem. Então,
insisto: ― Eu conheço mais algum nephilim, Nate?
― Há coisas mais importantes neste momento.
180
26 - Alerta
Olívia está segurando a minha mão quando desperto. Não é o mesmo
anjo que estava ontem aqui, mas me deixa igualmente feliz quando seus
reluzentes olhos azuis, piscam “bom dia” para mim.
― Papai já saiu para trabalhar. Ele estava animado.
― Olívia, tenho que lhe dar uma notícia ― sento na cama e lhe digo
com a voz amena: ― Nosso pai vai perder a memória dentro de três dias a
partir de hoje.
Ela abre a mão e começa a contar os dedos. Com um sorriso, volta-se
para mim e revela:
― Ainda bem! Vai dar tempo! ― exclama entusiasmada e depois baixa
o tom: ― Não quero que ele esqueça do meu aniversário.
Como é que eu estava esquecendo de uma data tão importante?! O
aniversário de Olívia é no domingo.
― Temos que planejar uma festa!
Ela torce o semblante. Nestes momentos é que Olívia revela seu lado
infantil. É tão raro, que preciso aproveitar!
― Não adianta embirrar, todos os anos é a mesma coisa... você não quer,
fazemos festa e você acaba adorando! ― atiro o travesseiro na cara dela.
― Se vai deixar você feliz... eu gosto de te ver feliz. Pode fazer ― diz
ela, dando de ombros.
― Nossa família tem que estar unida a partir de agora, mais do que
nunca.
E com este apelo sentimental, comprei a sua anuência.
― Mas sem os balões e os cartazes escandalosos!
Não adiantou me esquivar. Ela acertou o travesseiro em cheio na minha
cabeça.
O ônibus escolar buzina duas vezes, encerrando nossa conversa. Olívia
põe a mão na cabeça, sai correndo e volta logo depois para me dar um beijo.
Ainda antes de deixar o quarto, ela vira-se e diz:
― A propósito, você está muito bonita hoje, mana!
Enquanto espero a água do chuveiro aquecer, coloco-me diante do
espelho e constato que Olívia tem razão. Há algo de diferente em mim. Volto
181
para o quarto e me observo no espelho grande da penteadeira. Não sou eu, é o
vestido de mamãe que me deixa diferente. Adormeci com ele e amarrotei-o
todo.
***
No caminho para a faculdade ligo para Chris e peço que me espere no
portão. Não quero andar desacompanhada pelo campus depois do que Nate
contou sobre Wotan. No estacionamento, a primeira pessoa que encontro é
Jonas. Ainda sinto algum incômodo quando acuso sua presença, mas
imediatamente a sensação desaparece quando lembro de nossa última
conversa.
― Por via das dúvidas preferi esperar você parar o carro primeiro, antes
de descer do meu ― provoco-o.
― Garota esperta! ― diz ele dando um tapinha pesado no meu ombro, o
que me faz grunhir um sonoro: “Ai”. ― Trouxe os seus cadernos para tirar
cópia do que interessa. Como é muita coisa, vou deixar agora no quiosque e
depois do almoço já deverá estar pronto. Você pode passar lá pra pegar.
Jonas é como uma ilha. Seu olhar triste me faz lembrar do quanto é
sozinho. Sinto vontade de me aproximar.
― Vou agora lá com você ― convido-me ao me aperceber de que a
partir de agora deixo de ter um motivo para conversar com ele.
Será que começo a sentir falta de uma amizade que ainda nem existe?
Caminhamos lado a lado pelo estacionamento até que ele para bruscamente.
― Os seus amigos estão logo ali. Vou nessa! ― diz ele já acelerando o
passo e entrando pelo beco subterrâneo, a entradinha alternativa para a
universidade.
Conforme me aproximo, reparo que Chris, Marcus e Jess estão
teatralmente boquiabertos. Eu me faço de desentendida, como se Jonas e eu
sempre tivéssemos sido bons amigos. Diante do silêncio dos três, tomo a
iniciativa de falar:
― O que é que vocês têm? Não posso caminhar ao lado do Jonas? ―
pergunto com uma naturalidade premeditada.
― Ah, Clara... qual é?! Não vem com essa! Até ontem você odiava o
playboyzinho! ― exclama Marcus exasperado.
Surpreendo-me com a sua reação, mas fiquei tão atônita que não lhe
respondo. Talvez ele só esteja um pouco alterado por tomar as dores do irmão,
que provavelmente já lhe contou sobre ontem à noite. Talvez seja da camisa
de hoje da Marvel Comics, vermelha, com o Magneto em primeiro plano na
estampa. Jessica reage por mim:
― Marcus, calma... ― diz Jess colocando as mãos nos ombros do
namorado. ― A Clara tem o direito de andar com quem quiser ― ela me
encara transtornada.
182
― Se ela tem, eu também tenho o mesmo direito. E se vai continuar
andando com aquele Jonas, não posso continuar a andar com ela ― ameaça
ele, fingindo ignorar a minha presença.
― Fala e olha para mim, Marcus, porque eu estou aqui mesmo ― digo,
indignada, colocando-me forçosamente à frente dele. ― Entendo que ache
estranho que eu não esteja mais evitando o Jonas. Mas ontem ele foi legal.
Decidi dar um crédito de confiança.
Ele me lança um olhar de desprezo e desdém que dói como uma picada
de abelha que vai ficar incomodando, latejando, moendo em mim, por um
bom tempo.
― Esse cara não merece a confiança de ninguém, Clara. Meu irmão me
contou que você o tratou como se fossem velhos e bons amigos ― refere, num
tom mais agressivo.
― Tratei sim, e daí? Eu o conheço há muitos anos, muito antes de
conhecer você e o seu irmão!
Jess e Chris observam preocupadas, na expectativa de intervir se a
conversa piorar.
― Daí que nem eu, nem meu irmão vamos com a cara dele. E temos
motivos para isso. Não posso continuar seu amigo se você estiver de amizade
com ele. Pode acabar aqui e agora a nossa amizade. Só depende de você.
Balanço a cabeça, decepcionada e incrédula com sua atitude radical.
― Tudo bem, Marcus. Você é que sabe. Não posso e nem tenho por que
ser antipática com o Jonas quando ele está sendo simpático comigo ― ele me
ignora voltando o rosto para o alto. ― Ele me pediu os cadernos emprestados
e eu o estava acompanhando até o quiosque... ― e de repente dou por mim
dando demasiada satisfação da minha vida. ― E quer saber? Você não tem
nada a ver com isso, muito menos o seu irmão.
― Não vou me meter na sua vida, Clara. Se você quer ser amiga dele, o
problema é seu. Mas eu caio fora ― diz com os músculos da face rígidos.
Jess intervém de imediato.
― Espere aí, Marquinhos! A Clara é minha amiga!
― Gente... gente, calma! ― interfere Chris, com os olhos esbugalhados.
― Não misturem as coisas. Eu não quero criar uma briga entre vocês...
― abaixo a cabeça sentindo meus olhos se encherem de lágrimas ―
desculpem...
Com uma vontade incontrolável de chorar, disparo acelerada pelo
estacionamento. Chris corre atrás de mim, deixando Jess e Marcus no meio do
estacionamento, discutindo. Ela tenta inutilmente segurar meu braço, mas
ando mais depressa e vou me afastando dela. Chego até o Jardim dos
Namorados e sento num banquinho. Chris chega logo atrás, senta-se ao meu
lado e delicadamente levanta uma mecha do meu cabelo que cobre o rosto.
183
― Calma, amiga... não fique assim. Fico com o coração partido de ver
você chorando.
― Chris, eu quero ficar sozinha ― peço, enxugando as lágrimas.
― Não te deixo sozinha de jeito nenhum! O que aquele imbecil do
Marcus fez não tem nem nome! Ele foi um...um... covarde! ― exalta-se ela,
remexendo-se no banco.
― Ele só disse o que sente, à maneira tosca dele, mas foi sincero. Pior
seria se tivesse sido hipócrita ― esta foi minha ineficaz tentativa de me
conformar.
― Se você pensa assim... O Marcus gosta de você, Clara. Acho que foi
um momento de raiva, vai passar... ― ela muda radicalmente seu discurso
para contemporizar.
― Não sei, não ― digo, ainda soluçando. ― Ele falou muito sério. E eu
não pretendo pedir a ele autorização antes de escolher as minhas amizades.
Chris torce o nariz:
― Uma amizade com Jonas não é qualquer amizade, Clara. Ele é o
maior desafeto do irmão do Marcus.
― Eu não tenho nada a ver com as desavenças entre eles.
Chris percebe minha alteração e mais uma vez, tenta amenizar o clima,
escolhendo as palavras:
― Você está certíssima, amiga. Eu condeno a atitude do Marcus e a
partir de hoje ele caiu muito no meu conceito. Não quero inflamar a situação,
mas ele foi realmente um imbecil colocando você contra a parede daquele
jeito. Ao mesmo tempo, sei que ele gosta de você, como gosta de mim e da
Jess. Ele não vai estragar o nosso relacionamento por causa do Rodrigo... ―
afirma ela deixando uma interrogação no ar.
― Chris, eu não quero mais contato com o Marcus ou com o irmão dele
― decido.
― Meu Deus, Clara... você está exagerando, amiga...
― Eu sei o que estou dizendo.
― E se ele pedir desculpas?
― Ele não vai pedir... e se pedir, bom... aí vou ter que pensar. Só espero
não ter causado o fim do namoro dele com a Jess.
― Pois é, Clara, pense na Jess... como ela vai ficar nessa história? Perde
o namorado ou perde a amiga!
A Chris é esperta, mas não vai me persuadir.
― Isso já não é comigo, Chris. Não posso ter que escolher entre o
Marcus e o Jonas... ou qualquer outro que possa aparecer e que ele ou o irmão
não gostem.
Christiane me encara desconfiada. Posso ver que seus olhos verdes
ganham um brilho novo.
184
― Mas afinal, quem esse Jonas é para você? É só um amigo ou você está
interessada nele? ― inquire.
― Ai, Chris... o Jonas é um rapaz rebelde, problemático. Mas não tem
mau coração. Ontem eu descobri que ele é legal e que por trás da pele de lobo,
não passa de um cordeiro ― assumo, numa tentativa de melhorar a imagem
que eu mesma já destruí diante dela inúmeras vezes.
Sei que não será fácil para ela ver o Jonas como eu agora vejo.
― Ah, Clara... me poupe! Você sempre odiou esse garoto! Preciso te
lembrar de todas as sacanagens que ele já fez com você? Eu conheço um
monte! ― ela faz uma curta pausa organizando as ideias. ― Lembra do nosso
diário? Eu ainda guardo lá em casa. Se você esqueceu, trago o diário para
você reler tudo! Tá tudo registrado lá! Você desabafou e não foi pouca coisa...
― Chris, eu sei que é complicado entender, mas eu conheço o Jonas há
mais de uma década. Ele sempre foi do piorio comigo, é verdade. Mas existe
uma explicação ― insisto.
― E ele convenceu você com essa explicação? ― pergunta ela,
desconfiada.
A verdade é que nem eu estou totalmente segura sobre Jonas ainda.
― Ele não precisou explicar muito, mas o seu jeito e o seu olhar eram
sinceros... sou sensível a estas impressões. Ele se abriu para mim, disse coisas
que não precisava dizer. Não sei por que, mas ele disse até que simpatiza
comigo!
Chris faz a expressão de alguém que acabou de descobrir a pólvora:
― Clara, você está gostando dele! ― afirma.
― Não! ― exaspero. ― Nossa... que habilidade você tem para distorcer
as coisas, Chris, é impressionante!
Tive que torcer e distorcer o assunto várias vezes até incutir na cabeça
imaginativa de Chris a única versão verdadeira deste episódio: a de que quero
apenas dar uma chance para que Jonas prove que não é má pessoa. É como
fazer uma boa ação, pois todos desistiram dele, desde os professores até o
próprio pai. Se ninguém lhe estender a mão ― e ele praticamente me pediu
que a estendesse com o pretexto dos cadernos ― como poderá subir à margem
sozinho? A verdade é que esse discurso todo também serviu para convencer a
mim mesma de que é a coisa certa a fazer.
― Ele deve ter chegado mesmo ao fundo do poço... ― suspira Chris, já
com pena de Jonas, o olhar emanando solidariedade.
― Ele precisa de amigos. Se você quiser ajudar, aos poucos pode se
aproximar também ― estimulo.
― Clara, eu sou sua amiga. Por você, faço tudo. O Jonas nunca me fez
mal. Pode contar comigo ― oferece ela, abrindo um sorriso.
― Obrigada, Chris. Eu sei disso.
185
Ela não quer perder a aula de Patologia Forense, enquanto eu prefiro
ficar um pouco mais no jardim, refletindo sobre como encarar Marcus daqui
para frente.
***
Estou agachada, observando distraída as petúnias quando,
estranhamente, sinto a presença de alguém me observando. Uma brisa fria
passa por mim. Não vejo ninguém em volta. Mas ao me levantar encontro
Wotan, sozinho, sentado num banco, do outro lado do jardim. Ele está voltado
para a minha direção e faz um sinal com o dedo indicador, me chamando.
Meu coração acelera e, de tão geladas, minhas mãos estão petrificadas. Ignoro
seu sinal e agacho-me novamente para pensar no que fazer. Nada me ocorre.
As pedrinhas do chão estremecem e ergo a cabeça num impulso, sustendo a
respiração.
― Não mexa com espinhos, Clara. Ou você pode se ferir ― alerta com a
voz grave.
Fito seus olhos negros e fundos, enquanto me levanto devagar. De pé,
fico abaixo da altura do seu peito, o que, nestas circunstâncias, é um fator
ainda mais inibidor.
― Do que você está falando? ― pergunto suavizando o timbre para
omitir meu nervosismo.
Ele se inclina para falar ao meu ouvido:
― De tudo. Eu sei de tudo.
Percebo na voz inóspita um tom de ameaça, mas não deixo transparecer
e reajo com firmeza:
― Eu também sei ― desafio-o.
― Então, guarde o segredo bem guardado ― replica mantendo o mesmo
semblante intimidador.
― Não tenho medo de você ― digo, prendendo a respiração a seguir.
― Devia ter ― retruca com aspereza.
Com esta frase curta, Wotan consegue me atingir. Eu podia cair aqui
mesmo e me fingir de morta, talvez me deixasse em paz. Tudo o que desejo
neste momento é sumir daqui. Sei que não conseguirei disfarçar meu
nervosismo por muito tempo se ele prosseguir com o seu terrorismo.
― Esquece a minha família ― peço com os olhos suplicantes, numa
tentativa patética.
― Lamento Clara, mas isso não posso fazer. A sua vida e a de seu pai
são muito interessantes. E só para constar, aviso-a que a partir de sábado, farei
exatamente o contrário: vou estar cada vez mais perto.
Seu semblante é sombrio e fúnebre, o que desperta em mim vontade de
lhe atingir com o primeiro objeto que me aparecesse a frente. Em resposta a
seu atrevimento, me limito a apertar os dedos contra o punho fechado e digo:
186
― Folgo em saber que preencho a sua vida monótona.
― Não seja irônica, garota ― ele aumenta o tom de voz e depois
ameaça: ― O seu anjo devia ter mais cuidado. Vocês estão brincando com
fogo.
Meu estômago revira e engulo em seco.
― Nos deixe em paz, nephilim!
Wotan assume uma expressão feroz, como se fosse rosnar a qualquer
momento. Se eu não estivesse num local público cercada de estudantes e
professores, tenho certeza de que ele me daria um murro que me faria
atravessar o jardim. Em vez disso, seu peito largo enche-se de ar e então ele
faz um alerta, soltando a respiração:
― Cuidado ― diz se afastando depressa.
Estou tão desnorteada que não percebo para onde ele foi.
187
27 - Lago das Harpias
Não fui às aulas nos dois dias que se seguiram. Sei que não devia ter
dado atenção às ameaças de Wotan, pois Nate já me fez entender que o mais
importante é que eu cuide do meu pai. Sei que o vigilante pretende apenas me
desestabilizar, pois papai é o seu alvo. Sei também que apesar da ameaça que
fez a mim e a Nate, faz parte do seu jogo também desviar o foco da minha
atenção de papai. Mas, em todo o caso, pode-se dizer que preferi evitar
encontros desagradáveis e me dediquei exclusivamente em preparar uma festa
de aniversário bem especial para a Olívia.
Está quase na hora do almoço e papai ainda está no quarto. Já estive para
bater em sua porta, mas faltou coragem. Olívia está na piscina com Maria
enquanto eu engano as horas ― e a mim mesma ― tentando estudar as aulas
que faltei através do caderno da Chris. Não consigo me concentrar, então,
fecho o caderno e vou até o quarto de papai. Novamente me encontro parada
em frente à sua porta. Minha hesitante iniciativa é interrompida quando papai
abre a porta.
― Bom dia, filha! O que faz aí parada? ― pergunta ele estranhando.
― Bom dia, pai. Eu estava preocupada e vim ver se estava tudo bem.
Você nunca acorda depois das onze ― digo com alguma ansiedade.
Ele passa a mão pelo cabelo desarrumado e desliza os dedos até as
têmporas, dizendo:
― Pois é, filhota... mas esta noite eu tive uma dor de cabeça daquelas, o
remédio não fez efeito e quase não preguei o olho a noite toda.
― E agora como está se sentindo? ― pergunto curiosa por não encontrar
nele sinais de uma noite mal dormida. Apesar da reclamação, ele parace
descontraído.
Ele sorri de leve e responde:
― Agora estou novo em folha, como se não tivesse tido nada, como se
tivesse dormido como um anjo!
― Estranho isso... ― balbucio cinicamente, ao que ele replica:
― Muito estranho. Mas não se preocupe. Estou bem!
Resolvo fazer um teste com ele para saber se já está com amnésia. Se
tiver esquecido a nossa tilápia gigante, então é porque já esqueceu também de
sua pesquisa.
188
― Papai, e a nossa pesca?
Ele franziu a testa para mim e com a mão na cabeça pergunta confuso:
― Combinamos de ir à pesca hoje?
― Não... mas temos que planejar! ― e exclamo com todo o meu
descaramento: ― Pescar uma tilápia gigante...!
― Uma tilápia gigante?! ― ele solta uma longa risada. ― Quanta
pretensão, filha!
De fato. O que ele definitivamente não pescou foi a minha armadilha.
Mas comeu a isca.
***
O dia de sol é um convite a almoçarmos no deck da piscina. Enquanto
papai grelhava alguns tiragostos na churrasqueira, aproveitei para contar a
notícia à Olívia. Ela reagiu como se ganhasse um presente antecipado pelo seu
aniversário. Cautelosas, conduzimos toda a conversa durante o almoço sem
comentar fatos passados. Depois da refeição, dei um mergulho na piscina e
quando estou começando a me acostumar à temperatura da água, meu
divertimento é interrompido.
― Clara! Telefone pra você! ― grita Maria lá de dentro.
― Quem é? ― pergunto interrompendo uma braçada.
― Jonas ― ela franze a testa. ― Ele não é o filho do patrão do seu pai?
― indaga entregando-me o telefone sem fio. ― Não é o mesmo que esteve
aqui em casa o outro dia?
― Shhh, Maria... é ele sim. É o mesmo ― sussurro.
Tarde demais para disfarçar. Papai correu da varanda onde lia
tranquilamente o seu jornal diário na rede e, pensando que não o estou vendo
esgueirando-se por trás do coqueiro, coloca-se a espreita para ouvir o
telefonema.
― Oi, Jonas! Tudo bem?
― Tudo ― responde depois de um instante de hesitação.
― Não parece.
― Posso ver você? ― pergunta afoito.
― Que avanço, hã! Você pedindo para se encontrar comigo? ― Agora
que ele se tornou mais afável comigo, é irresistível provocá-lo.
― Sim ou não?
― Claro que sim.
― Passo na sua casa daqui a vinte minutos ― sua voz está carregada e
eu nem tenho tempo de dizer nada. Ele desliga abruptamente.
Papai sai de trás do coqueiro e começa o seu interrogatório de braços
cruzados ao pé da piscina:
― O Jonas esteve aqui? Quando?
189
Entrego-lhe o telefone e repondo com tranquilidade:
― No dia em que o Rodrigo também esteve, pai.
Ele imenda outra pergunta:
― E o que ele queria?
Dou um mergulho rápido para molhar o cabelo e num único impulso
sento-me na borda da piscina.
― Nada de mais. Apenas uns cadernos emprestados ― respondo
depressa.
― Vocês estão se falando agora?
― Qual a surpresa, papai? Ele não é tão mau como sempre pareceu.
Ultimamente tenho sido um pouco cínica, eu reconheço. Papai muda sua
expressão de desconfiado para preocupado.
― Cuidado, filha... ele gosta muito de aprontar. Não quero que você se
machuque.
Termino de me enxugar com a toalha, passo por papai e ensaio
despachá-lo:
― Eu sei me cuidar ― e caminho já de costas para ele. ― Jonas está
vindo aí, tenho que vestir alguma coisa.
― O pai dele me contou várias histórias e foi ele mesmo quem sugeriu
que eu não deixasse você se aproximar do rapaz ― refere papai deixando
evidentes suas reticências.
Viro-me para trás na porta de vidro que separa o páteo da sala.
― O pai dele te disse isso? ― pergunto intrigada. Agora os papéis se
inverteram e eu assumo o lugar da inquisidora. Diante do silêncio de papai,
emendo mais uma pergunta: ― Mas que histórias o Dr. Bauer contou?
― Noutro momento, Clara ― ele fixa seus olhos nos meus e diz
incisivo: ― Eu vou estar atento.
Papai talvez não agisse com essa preocupação se fosse outro rapaz. Sei
que Jonas não tem boa fama e seu pai é o primeiro a divulgar isso, mas um
sentimento desconhecido está me dizendo para confiar nele. Sinto como se eu
fosse atraída pelo perigo, mas consciente de que é a coisa certa a fazer. Talvez
eu devesse convidar Jonas para a festinha de Olívia. Seria uma boa
oportunidade para que ele se integrasse. E se estiver mesmo mudado, é a
chance para que papai ― especialista autodidata em análise comportamental
de jovens ― tire suas próprias conclusões.
***
Espero por Jonas sentada na rede. Ele estaciona seu carro passados os
exatos vinte minutos e faz um sinal para que eu vá ao seu encontro. Enquanto
caminho até ele, reparo em seu semblante carregado, não diferente de como
estava sua voz ao telefone.
190
― Pontualidade britânica! Deve ser influência do carro ― exclamo, não
conseguindo resistir ao trocadilho.
― Podemos ir? ― pergunta, lacônico, para variar.
Minhas sobrancelhas se aproximam.
― Para onde?
Ele me ignora e entra no carro batendo a porta com uma força
desmesurada. Depois gira a chave da ignição e antes que eu pudesse ouvir o
super motor acordando, uma balada country faz vibrarem os alto-falantes. Não
é o volume altíssimo da música que me surpreende, mas o estilo “caubói
romântico” ― no meu dicionário isso significa “sertanejo americano brega”.
Não é algo que eu esperasse que Jonas gostasse de ouvir, apesar dele apreciar
botas de couro de cano alto, calças Levi´s e cintos de fivela grande. É
totalmente meloso e isso não combina com ele. Ou será que combina? Será
que eu tenho que me dar por satisfeita que não seja um “Roger & Rogério” da
vida?
― Que banda é essa? ― tenho que gritar para competir com o vocalista
anasalado.
― Blue Rodeo ― ele balbucia e diminui depressa o volume, nitidamente
constrangido. ― É country rock, caso não conheça o gênero ― aqui já senti
que ele ficou na defensiva.
― É o seu preferido? ― um sorrisinho treme no meu rosto. Não queria
que ele notasse, mas simplesmente não dá para evitar.
Se estende um longo instrumental de guitarra e harmônica arrastando
uma linha melódica que beira o piegas. Ainda não acredito que ele realmente
ouvia essa música no último volume.
― Não. É o do momento. Também ouço muito Bob Dylan, Lou Reed e
Eric Clapton ― ele fez questão de complementar. Citando alguns dinossauros
da música, pensa que escapa ao rótulo piegas. Mas não. Vai ser difícil apagar
o Blue Rodeo do meu arquivo “gostos pessoais (excêntricos) de Jonas”.
***
Não sei o que me motivou a entrar no jipe blindado de Jonas, mas o fato
é que depois de uns vinte minutos e muitas curvas, já estamos a 110km/h
numa estrada onde o limite é de 40 km/h. Começo a ficar assustada, quando
ele desacelera e para bruscamente.
― Onde estamos? ― indago verificando a paisagem da janela. Tudo o
que vejo é que estamos cercados de uma densa vegetação.
― Desce ― ordena ele.
Jonas despe o casaco de couro e deixa no banco de trás. Pela primeira
vez vejo seus braços torneados. Mas mais do que os músculos que a roupa
escondia, vejo diversas cicatrizes, provavelmente das brigas que arruma na
rua. Algumas são pequenas e superficiais, outras, mais extensas e profundas,
191
parecem resultado de luta com armas brancas. Jonas deve até saber manejar
lâminas mas certamente não tem muito jeito para se desviar delas. Reparar nas
cicatrizes aparentes me faz imaginar quantas não aparentes ele poderá ter,
ocultadas pela máscara de bad boy. Sei que ele não é esse bad boy, mas me
parece que ainda vai levar um tempo para curar as feridas.
Caminhamos numa trilha estreita. Jonas segue na frente e eu, já
arrependida de ter vindo, começo a me certificar de que deixei meu juízo em
casa, provavelmente mergulhado e afogado na piscina.
De repente, ao final da trilha, bem à nossa frente, abre-se uma paisagem
magnífica. Uma cadeia de montanhas empinheiradas circundam uma imensa
lagoa coberta por uma névoa que paira sobre o espelho d´água. O silêncio é
quebrado apenas pelo estridente grasnar dos gaviões reais. O verde exuberante
se estende por toda a parte como uma colcha de veludo. Na montanha mais
imponente, alveja a brancura de uma queda d´água imensa que se derrama
majestosamente sobre o lago. O céu azul encarrega-se de dar cor às águas que
enchem de luz os meus olhos encantados.
Este lugar é tão espetacular que faz lembrar os bucólicos vales de
Glastonbury, descritos pela escritora Marion Zimmer Bradley sobre a mítica
Ilha de Avalon. Anos depois de ler “As Brumas de Avalon”, uma de minhas
obras favoritas, somente agora percebo porque uma imagem pode valer mais
que mil palavras. Depois de algum tempo em silêncio aperfeiçoando os meus
sentidos, pergunto:
― Que lugar é esse?
Jonas inspira o ar profundamente.
― Esse é o meu lugar preferido no mundo ― responde com um largo
sorriso nos lábios.
Suas oscilações de humor já começam a me dar nos nervos.
― Mas onde estamos? ― insisto, já um pouco irritada.
― Lago das Harpias ― diz com os olhos ancorados do outro lado da
margem.
― Nunca ouvi falar desse lugar... é incrível!
Há borboletas azuis pairando sobre nossas cabeças. Qualquer movimento
brusco pode espantá-las. Fico em silêncio, quase sem respirar, admirando-as.
Enquanto observa, Jonas eleva o canto dos lábios, achando graça da minha
situação.
― Esse lago é selvagem assim porque quase ninguém conhece. Muitas
vezes fico aqui o dia inteiro e não aparece ninguém. Quase posso dizer que é
exclusivamente meu.
Agora sei para onde ele vem quando mata as aulas. Não posso culpá-lo.
― E por que me trouxe aqui?
― Quis lhe fazer uma surpresa.
Aproveito para lhe dar a minha primeira lição do dia:
192
― Mas você me assustou, Jonas...
― Valeu a pena o susto? ― retruca. Jonas é incorrigível mesmo. Não me
deixa alternativa de objeção. Ele continua com o ar pretensioso: ― Clara,
você não aproveita a vida. O contato com a natureza é fundamental para o
espírito ― afirma satisfeito, mirando o alto da monumental vegetação
composta de uma variedade enorme de árvores como jabuticabeiros, jequitibás
e ipês amarelos.
― Você deve entender muito disso... ― suponho, irônica quando noto a
presença de um quati a poucos metros de nós. ― Shhhh... ― peço a ele,
indicando a nossa companhia com o olhar.
Ele prende meus olhos nos seus e sussurra com seriedade:
― Se eu não alimentasse o meu espírito aqui você não imagina o que eu
seria.
Fico um tanto apreensiva ao ouvir isso. Jonas ensaia uma aproximação
do quati, que foge instintivamente por entre os arbustos.
Ele suspira frustrado e continua:
― Podemos ir embora agora. Já respirei.
― Era só isso? Você veio aqui para respirar?
Ele se incomoda.
― Como “só isso”?
― Pensei que você quisesse conversar...
― Não tenho nada pra conversar com você, garota ― retruca com
rispidez.
Talvez não devesse ter revelado a ele minhas expectativas. É preciso ter
uma paciência oceânica com Jonas. Inspiro e quase posso sentir maresia nos
pulmões. Já foi bom demais ele ter dividido a exclusividade do seu lago
comigo.
― Tudo bem. Foi breve, mas adorei o passeio ― adorei mais a intenção.
Mas isso não lhe confesso. Não ainda.
― Presta atenção no caminho para poder voltar. Mas vê se não espalha!
Esse lugar fica sendo um segredo nosso ― diz, transformando o semblante
severo num convite à cumplicidade.
Jonas fechou-se em copas. Passei toda a viagem procurando algum
assunto, sem sucesso. Entramos no carro e ele novamente pisou fundo no
acelerador. Não consegui entender os atalhos e não fixei o caminho. Só sei
que, para minha frustração passamos mais tempo no carro do que no lago.
Essa tarefa de ajudar Jonas vai ser mais difícil do que eu pensava.
Ele estaciona o carro em frente à minha casa e antes de me despedir
ainda tento extrair alguma coisa dele.
― Então, você vai sempre ao lago quando quer respirar?
― Sempre.
193
Parece que ele não quer dar o braço a torcer e se estender na conversa,
por mais que até estivesse gostando da minha companhia. E eu acho que está.
― E quando “não quer respirar” para onde vai?
― Pra casa ― ele praticamente emenda a resposta à minha pergunta. ―
É asfixiante.
Faz-se um vácuo de silêncio entre nós. A expressão dele é indecifrável
― já captei pelo menos uma dezena destas expressões e ele consegue a proeza
de torná-las cada vez mais enigmáticas. Esta expressão é mais séria do que
serena.
Já começo a me arrepender da pergunta irrefletida quando Jonas solta
uma risada tão espontânea que logo dou por mim contagiada e rindo junto,
sem saber por quê. Provavelmente rio da própria risada esganiçada dele. Por
experiência própria, quando não há motivo algum mas desato a rir é porque
algo não está bem com minhas defesas emocionais. Acho que Jonas ri de
nervoso. E eu, idem, por tabela.
― Aquela casa é asfixiante... há muito tempo eu procurava um termo
que definisse o que sinto lá dentro! ― ele parece um moleque de seis anos que
acaba de ganhar um PSP.
Eu deveria lhe dizer que isso não tem graça nenhuma e que ele não
deveria se sentir mal em sua própria casa. Por mais que rir das próprias
desgraças ajude a aliviar o estresse emocional, é um paradoxo de todo
tamanho. Mas já sei que vai me dar um fora por me meter, então aproveito o
curto instante dessa aparente descontração e enquanto ele mantém os olhos
fixos no volante, encho meus pulmões de coragem para lhe fazer o convite.
― Ok ― pigarreio. ― Escuta... eu queria te convidar... ― o nervosismo
me provoca um acesso de tosse e penso que não vou conseguir completar o
convite ― ...minha irmãzinha faz anos amanhã... se você quiser aparecer
depois das sete... ― digo com a mão na garganta rouca.
― Vou ver ― responde, com a gentileza que lhe é peculiar.
Abro a porta e desço do carro, me inclinando sobre a janela:
― Obrigada pelo passeio.
Ele não diz mais nada, me lança um olhar indiferente e acelera,
desaparecendo na reta da rua.
Para o alívio de papai que aguardava na janela, cheguei sã e salva. E com
a certeza de que tenho ainda muita estrada pela frente nessa minha nova
tarefa.
194
28 - Constelações
“Os astros, tais como as flores, nos fascinam não apenas por sua beleza
estética, mas, principalmente, pelo seu mágico poder de revelar a sua
verdadeira essência, através de um profundo e eloquente silêncio.”
(Autor Desconhecido)
O sábado passou sem surpresas, sem estrelas e sem Lua. O domingo
chegou com um vendaval que não me deixou pregar o olho a noite toda.
Passaram-se apenas dois dias desde o último encontro com Nate, mas
desde então as horas se tornaram mais vazias e longas.
É bem de manhãzinha quando vou ao quarto de Olívia verificar se ela
acordou. Encontro-a apreciando a chuva da janela e fico um instante à porta
antes de entrar. Olívia sempre gostou de dias nublados e chuvosos. Por isso, o
tempo hoje não podia estar mais apropriado para ela.
― Feliz Aniversário! ― digo ao entrar.
― Estou ficando velha... ― queixa-se com o semblante sério, como
tivesse se tornado adulta de ontem para hoje.
Ajeito-me no banquinho encostado à parede da janela e inspiro o aroma
da chuva ao lado dela.
― Pois é... acho que errei no seu presente. Devia começar a pensar em te
oferecer meias ― caçoo, cutucando o seu ombro com o meu.
― Rá-rá-rá, muito engraçada... ― ironiza com um propositado sorriso
frouxo.
― Então, já que falamos nisso, vamos ao seu presente! ― exclamo,
puxando-a pelo braço para fora do quarto.
Apesar da maturidade que aparenta, Olívia é como qualquer menina de
sua idade no que se refere à presentes: simplesmente adora surpresas e quanto
maior o embrulho, maior o sorriso.
Além de não ser tarefa fácil esconder qualquer coisa de Olívia, foi
preciso deixar para buscar o presente na última hora por causa do seu tamanho
e também das circunstâncias em que papai se encontra. Eu já o havia
encomendado há alguns meses com a anuência dele, que participou e
incentivou esta surpresa. Ontem à noite, logo que Olívia deitou-se,
195
posicionamos o embrulho estrategicamente no terraço coberto da piscina, atrás
da casa. E é para lá que arrasto minha irmã, escadas abaixo.
Papai nos espera no sofá da sala com Maria, por onde passamos correndo
em direção à porta.
― Vamos! Não seja mole! ― exclamo, empurrando-a pelas costas. ―
Não está curiosa?
Olívia não gosta de dar o braço a torcer e pode estar se roendo de
curiosidade que não admite e ainda desdenha. Isso, ela provavelmente herdou
de papai.
― Ai, Clara... eu não ligo pra presentes, você sabe muito bem! ―
exclama, pensando que me engana. Mal sabe ela que as estrelas nos seus olhos
não lhe permitem disfarçar.
Sem dizer mais palavra alguma, levo-a até o deck da piscina. Os olhos de
Olívia estacionam sob a marquise, onde um pano preto cobre o objeto
comprido. Ela olha pra mim e depois para papai, que se levanta do sofá e
caminha em nossa direção.
― Vamos, filha, puxe o pano! ― exclama ele.
― Vai, mana! ― estimulo-a.
Maria sabe o que é e se precaveu para o momento kleenex, com os
lençinhos na mão. Confesso que tenho elevadas expectativas, pois este
presente é algo que foi pensado durante dois anos. Eu e papai estudamos
muito até encontrar o modelo ideal, o mais adequado aos objetivos de Olívia.
Minha irmã para diante do objeto, mais robusto e alto do que ela, e
permanece algum tempo imóvel tentando, talvez, decifrá--lo através da forma
encoberta. De uma só vez, sua mão puxa o pano, que desliza até o chão. Faço
menção de correr e meu pai me impede. Ele quer que acompanhemos tudo de
longe, como espectadores.
― Um Schmidt-Cassegrain? ― pergunta incrédula, girando em torno do
telescópio como se tivesse medo de tocá-lo.
Ela olha para nós com um sorriso querendo desabrochar, mas ao mesmo
tempo espantada e com o rosto congelado numa única fisionomia: os olhinhos
arregalados e a boca entreaberta. Eu e papai continuamos inertes, apenas
assistindo a sua reação.
― Pai! Clara! Eu não acredito! Nunca imaginei... ― ela começa a chorar
e eu corro para abraçá-la.
― Não é hora de choro. Vamos colocar isso aí para trabalhar! A partir de
agora você não vai ter mais desculpa para não me explicar alguns segredos do
Universo! ― exclamo animada.
― Eu... ― ela soluça ― ... hoje é o dia mais feliz da minha vida! ― diz,
chorosa.
Papai junta-se a nós e ficamos os três abraçados ao lado do mais novo
integrante da família.
196
― Agora é que ela não sai mais do mundo da lua mesmo... ― comenta
Maria, suspirando ao nosso lado.
Não resistimos ao trocadilho de Maria e caímos todos na gargalhada.
Entre risos e lágrimas, Olívia tateia levemente o seu novo observatório de
constelações e, sorrindo, diz:
― Este instrumento vai me aproximar mais de mamãe.
Sempre soubemos que ela acredita que mamãe é um estrela do céu; essa
sua forma de ver a morte não é simplesmente uma crença, é uma certeza para
ela. Não sei quando começou exatamente a adoração de minha irmã pelo
espaço; se tem a ver ou não com a morte de mamãe. Mas independentemente
do motivo que a faça querer saber cada vez sobre astronomia, o telescópio é
sem dúvida um estímulo a mais para que ela comece a desenvolver sua
vocação.
Papai carregou as peças até o quarto de Olívia, onde o montou próximo a
janela. Enquanto ela estuda, entusiasmada, cada milímetro do instrumento,
papai lê o manual. De repente, ele joga o livreto sobre a mesinha e se agacha.
Ele fita minha irmã com seriedade.
― Olívia, preste atenção ao seu pai: esse telescópio é profissional.
Depois das lunetas e daqueles telescópios de brinquedo que lhe demos, sua
irmã ficou no meu ouvido insistindo que você precisava de algo com melhor
alance e precisão que permitisse avançar nos seus estudos ― Olívia desvia os
olhos contentes para mim. ― Filha, eu confesso que nunca levei muito a sério
essa sua obsessão pela astronomia até sua irmã me convencer da sua vocação.
Por isso, é graças a ela que você agora terá o trabalho de entender como essa
geringonça funciona! Porque o seu pai... ― ele coça a cabeça ― ... não está
entendendo nada!
Maria disfarça o riso, enquanto Olívia toca o rosto de papai.
― Pode deixar, paizinho! Eu vou ler todo o manual e pesquisar também
na internet ― diz ela confiante.
― Pois é, já tinha me esquecido que a geração de agora encontra tudo na
internet!
― Pai, fique tranquilo. Darei uma ajuda à Olívia. A gente vai se entender
aqui com o nosso amigo ― digo, dando tapinhas na grande objetiva do
telescópio. ― A Olívia só terá que ter um pouquinho de paciência...
Enquanto minha irmã se entretém com seu presente e eu me arrumo para
receber Chris e Jess, Maria prepara um banquete para o café da manhã, com
direito à panquecas, geleia, torradas, bolo, café com leite e frutas variadas,
muito apreciado pelas minhas amigas na época em que saíamos para as
discotecas e pernoitávamos nas casas umas das outras.
Lembrando disso, preciso combinar com Jess sobre a despedida de
solteira da Chris. Às vezes não acredito que minha melhor amiga vai se casar.
Aconteceu tudo tão depressa! Num dia éramos inseparáveis, trocando
confidências nos banquinhos do colégio; e agora, ela terá a sua casa, o seu
197
marido e uma vida completamente diferente da minha. Um dia ela fez um
pacto comigo de que vivenciaríamos todas as experiências juntas e ao mesmo
tempo. Eu não a quis desiludir, mas sempre soube que por mais cumplicidade
que houvesse entre nós, nossos sonhos sempre foram diferentes.
O soar da campainha estridente me conduz até o quarto de Olívia. Como
nos anos anteriores, peço-lhe que não desça até a sala para bisbilhotar a
arrumação.
― Eu já sei, já sei... ― interrompe ela sem desatentar do manual e não
me deixando terminar as indicações.
― Então fique aí, quietinha. Eu te trago um pedaço de bolo! ― encosto a
porta.
― Prefiro uma panqueca! ― exclama.
***
Ouço os burburinhos e sinto o excesso de perfume adocicado ainda do
alto da escada. As meninas estão sentadas no sofá, as duas de pernas cruzadas.
Chris está de vestido jeans azul-claro (combinando perfeitamente com o tom
de seus olhos) com um decote rendado e Jess de saia florida e coletinho de
crochê. Será que elas erraram o caminho do bosque?
― Chris, Jess, precisamos ir à praia! ― exclamo apontando para a minha
palidez mórbida.
― Você precisa, né querida? ― responde a minha melhor amiga, e
levantando do sofá, continua: ― Porque eu me sinto ótima e não pretendo
ganhar nenhuma nova sarda até o dia do meu casamento!
― Sinto muito, Chris, mas você vai ter que se apegar ao protetor solar,
porque vai comigo à praia nem que seja arrastada! A Jess eu sei que topa
tudo! ― digo, piscando para ela, que observa nós duas ainda sentada no sofá.
― É... tô gostando de ver a animação! ― exclama Jess, fingindo
entusiasmo.
Percebo que ela não está bem não só pelo tom de voz, mas também pelas
olheiras. Encontro um espaço entre elas, onde me sento. Chris sussurra ao
meu ouvido “Se eu não tivesse aberto o guarda-roupa e atirado as peças em
cima dela, neste momento ela ainda estaria com a toalha de banho amarrada
no corpo”. Noutra ocasião eu até acharia graça no comentário. Mas para Jess
não ter ânimo para se arrumar, é por que não está nada bem.
― Como você está? ― me senti cínica, mas precisava introduzir o
assunto.
― Bem... ― diz cabisbaixa e continua voltando o rosto para mim: ―
você sabe que eu terminei com o Marcus, não sabe?
― Sei, a Chris me disse. Eu preferi não convidá-lo para a festa.
Jess fita a janela da sala aberta, por onde entra uma brisa fresca e o
cheirinho de chuva.
198
― Fez bem. A gente não se falou mais. Ele nem sabe que eu vim aqui
hoje ― sua voz é mansa.
― É isso mesmo o que você quer, Jess? ― pergunto, nada convencida.
― Ai, Clara... não vou te dizer que deixei de gostar dele, mas fiquei
muito decepcionada. É melhor não... ― ela se interrompeu, demonstrando
incômodo com o assunto.
A hesitação de Jess não me deixa dúvidas de que o fim do namoro não é
definitivo. E por mim, não faz diferença se ela e Marcus reatarem ou não,
porque ela nunca deixará de ser minha amiga. Não quero carregar a culpa de
ter sido a causadora da infelicidade dos dois, até porque, continuo acreditando
que vão se casar, ter filhos e viver num apartamento com um monte de porta-
retratos espalhados pela casa.
― Tudo bem. Não vamos falar disso agora. Quando você quiser falar, já
sabe ― digo, passando a mão pelo seu cabelo castanho claro.
Somos interrompidas pela voz aguda de Maria, que nos chama para a
cozinha. Sentamos à mesa onde preparo a panqueca para a minha irmã,
caprichando no recheio de geleia de damasco, a sua preferida.
― Urgh, sua irmã gosta disso? ― pergunta Chris com cara de enjoada.
― Pois é... a Olívia tem gostos refinados! ― responde Maria piscando-
lhe o olho.
Maria leva a bandeja com a panqueca para Olívia e começamos nossa
reunião sobre a decoração. Não há nada de extravagante, mas nada de simples
também.
Papai aparece como um cometa enquanto estamos as três esticadas sobre
as cadeiras da sala, pendurando a faixa com os dizeres “Feliz Aniversário,
Olívia!” no arco da entrada da sala. O comentário de papai foi: “Está ficando
bom! Muito bem, meninas!” ― e desaparece.
De vez em quando aparece Maria para dar uma espiadinha. E já por duas
vezes flagrei o vulto no alto da escada, de alguém que faz aniversário hoje e
que não consegue controlar sua curiosidade.
Quando colamos a imagem do cruzeiro do sul no imenso quadro de
constelações que decora toda a parede por trás da mesa de jantar, partilhamos
um único e sonoro suspiro e caímos as três no sofá, diante da tela
interplanetária. Cheguei a pensar que os leds não iam acender depois de tantos
fios que tivemos que ligar, mas Gustavo fez um quadro elétrico pra ninguém
botar defeito. Não couberam as oitenta e oito constelações, mas conseguimos
colocar as preferidas de Olívia. Enquanto elas piscavam, pequeninas e
intermitentes, Christiane as admirava, orgulhosa da ideia que ela mesma
concebeu.
***
199
Vou ao quarto de Olívia chamá-la para o almoço e encontro--a muito
bem acompanhada do super telescópio. Rio para mim mesma. Ao lado do
pôster da Miley Cyrus na parede ao lado do armário, ela havia colado um
mapa de constelações que veio com o manual. Fico satisfeita por ela não ter
subtituído o pôster, por preservar sua pré-adolescência. Ela não nota a minha
presença e eu aproveito para passear nas lembranças das nossas fotografias no
mural imantado.
― Lembra deste passeio no pedalinho em São Lourenço? ― pergunta
ela, me despertando da viagem. Naquela época já não tínhamos mamãe, mas
estávamos muito felizes porque papai tinha tirado folga no feriado para estar
conosco.
― Boas lembranças.
― O presente é tão bom quanto o passado. São as estrelas que me
contam isso todos os dias.
― Já vi que a senhora agora vai ficar no quarto dia e noite, grudada nisso
aí, olhando para o passado! Só não pode esquecer o presente! ― aponto-lhe o
dedo. ― Vamos almoçar, anda! ― estendendo-lhe a mão.
― Hoje o tempo está tão feio... ― lamenta-se, enquanto descemos as
escadas lentamente.
Pela primeira vez a vi reclamar da chuva. Parece-me que de agora em
diante estes dias nublados já não terão o mesmo encanto.
Quando os pés de Olívia tocam o chão da sala e ela se dá conta do
ambiente cósmico que criamos para a sua festa de aniversário, expande os
olhos, rodopia, pula para tocar as estrelinhas penduradas no teto, numa alegria
esfuziante.
Ela se aproxima do painel das constelações.
― Leo, não podia faltar! ― e aponta para a constelação, onde acredita
estar a estrela de mamãe.
Tento despertar minha irmã do seu estado de alvoroço porque ela ainda
não reparou na presença de Christiane e de Jessica na sala. As duas se
entretêm com a reação de Olívia e certamente não se importam por terem sido
solenemente ignoradas.
Novamente a voz aguda de Maria ecoa pela casa nos chamando para o
almoço no terraço coberto da piscina. Todos se dirigem para a porta de vidro,
mas Olívia permanece imóvel diante do painel. Ela observa atentamente cada
constelação ali representada nas modernas lâmpadas de led que a criatividade
de Chris e a tecnologia de Gustavo uniram. Talvez ela até identifique as
figuras que as civilizações antigas enxergavam naquelas formas. Mas quem
conhece Olívia sabe que fora deste painel, ela enxerga mais do que as figuras:
ela enxerga o céu.
200
29 - Embate
Gustavo chegou com a picape sobrecarregada. Como trabalha como DJ
nas horas vagas, foi o encarregado de trazer a aparelhagem de som, os
holofotes, o projetor de laser e a bola espelhada. Ele escolheu várias, de
diferentes tamanhos para representar os planetas do sistema solar.
Empurramos os sofás e a mesa foi encostada ao painel das constelações,
mas deixamos para ele toda a instalação do equipamento de som, já que
é expert no assunto. Em pouco tempo, a sala de estar se transformou numa
pista de dança. Os globos giram no teto e refletem as luzes coloridas dos
holofotes nas cintilantes estrelinhas de fibra de vidro.
Com todas as cortinas das janelas abertas, os faróis dos carros iluminam
a sala onde brilham as estrelinhas de led. Em pouco tempo chegam os
primeiros convidados. Ao som da eclética playlist de Gustavo, eu e Maria
servimos os salgadinhos, enquanto Olívia recebe à porta os seus coleguinhas
de turma e alguns vizinhos que, de uma hora para a outra, não param de
chegar. Pouca atenção consigo dar às minhas amigas, preocupada em não
entornar os refrigerantes. Meu histórico como equilibrista de bandeja me me
faz lembrar imediatamente de Jonas e do convite que lhe fiz para que viesse.
A música ganha novos ritmos nas mãos de Gustavo comandando a mesa
de mixagem. Alguns grupos de crianças se juntam na pista, enquanto Chris e
Jess esgotam todas as suas fofocas e eu me esforço por manter um olho na
bandeja e o outro na janela. Quando dou por mim, já estou toda atrapalhada
com o menino de meio metro que levou um banho de coca-cola. Corro para
buscar uma toalha e bato de frente com Marcus na entrada da cozinha.
― Você veio? ― pergunto, atônita.
Ele coça a nuca e fita o chão com embaraço.
― Eu sei que não fui convidado, mas eu sabia que Jes...
Uma voz grave interrompe a justificativa de penetra de Marcus:
― Quanta indelicadeza não nos ter convidado.
Por detrás de mim aparece Rodrigo e reparo imediatamente no ar de
surpresa de Marcus ao ver o irmão.
― Por onde vocês entraram?! ― questiono espantada.
Eles se entreolham brevemente enquanto espero a resposta.
201
― Eu entrei pelos fundos, a Maria abriu a porta ― responde Marcus
nitidamente desconfortável.
― Eu entrei pela janela da sala. Foi por onde tive que sair da primeira
vez ― responde o outro com arrogância.
― Parece que afinal você gostou da alternativa ― ironizo. ― O que
vieram fazer aqui? ― Ao que me parece, cada um tem o seu próprio motivo.
― Ora, Clara! Viemos parabenizar a sua irmãzinha! ― diz Rodrigo
cinicamente. Ele me assusta com seu descaramento.
Marcus imediatamente o interrompe, exaltado:
― Não, espera aí, Rodrigo, eu não vim com você! Nem sabia que você
vinha! Estou aqui por causa da Jess ― ele se vira para mim bastante tenso.
― Você se transformou num cachorrinho... é lamentável, Marcus! Às
vezes tenho vergonha de ser seu irmão.
Observo preocupada o clima agressivo entre eles.
― Vocês vieram à festa da minha irmã para discutir?
A resposta petulante de Rodrigo já estava engatilhada.
― Claro que não, Clara. Eu vim conferir se aquele babaca não anda por
aqui.
Seu ar insolente me irrita e começo a sentir meu sangue esquentando.
― Com que direito...?
― Sabe, Clara, eu estive pensando: se você anda mesmo com um
babaca, então você também não é boa coisa. É como diz o ditado: “diz-me
com quem andas e te direi quem és”.
Num impulso ergo a mão para lhe atingir o rosto, mas hesito. Os dedos
de Rodrigo pressionam meu pulso com força.
― Quem você pensa que é? ― explodo, quase gritando.
― Calma, Rodrigo. Solta ela. Vamos embora, cara... ― suplica Marcus,
constrangido.
― Meu irmão contou que viu vocês juntos de novo. Puxa, Clara, e eu te
disse para se afastar do playboy. Mas você não deu ouvidos ― range ele com
irritação.
Mesmo em pânico, encaro-o de frente.
― Era só o que me faltava! ― faço força para me libertar e ele faz a sua
mão acariciar o meu pulso antes de soltá-lo.
Marcus se coloca à minha frente, ao lado do irmão. Como estamos
obstruindo a entrada da cozinha, tento disfarçar sorrindo envergonhada para
alguns convidados que passam. A seguir, volto para os irmãos:
― Vão embora, por favor...
― De jeito nenhum! A festa só está começando! ― exclama Rodrigo
com um sorriso malicioso.
202
Neste instante surge Jessica que se surpreende ao ver Marcus. Ela olha
para mim enquanto balanço a cabeça indignada.
― Marcus, o que você veio fazer aqui? Você não foi convidado ― ela
interfere com sua voz doce, mas preocupada.
― Eu sei. Mas não estou conseguindo ficar longe de você, Jess... ―
responde ele em tom de lamúria.
― Ah, não... pare com isso! ― protesta Rodrigo e voltando-se para mim,
diz: ― Clara, pode ser muito diferente se você aceitar a minha amizade e se
afastar do... ― ele retrai-se no que pretendia dizer e depois continua: ―
...Jonas.
Percebo que Marcus pressiona Jessica e a está incomodando, mas
Rodrigo bloqueia a minha passagem.
― Não vou me afastar dele, Rodrigo. Jonas é uma boa pessoa ― digo,
incisiva.
― Por quê? Por que você o prefere a mim? ― pergunta com a voz
amarga, segurando de novo o meu braço.
― Não se trata de preferir ele a você. Apenas quero a amizade dele ―
digo, tentanto me libertar.
― Então você quer?! ― pergunta incrédulo.
― Sim! A decisão é minha!
Onde está aquele rapaz que me recitou Cecília Meireles?
―Você não é quem eu pensava, Rodrigo.
Seus olhos, de repente, parecem diferentes, assumem um castanho
avermelhado e as veias de sua testa inflamam. Meu estresse já está me
fazendo alucinar.
― Não sou mesmo.
Ele está muito diferente do Rodrigo que estou acostumada a ver pelo
campus, daquele que se apresentou como um Clark Kent nem um pouco
tímido e desajeitado aqui em casa. A diferença não está somente no
comportamento afrontoso, ousado e atrevido. Está também nas roupas. Como
alguém muda de estilo tão rapidamente? Ou terá sido de propósito e ele
abandonou o terno de estagiário pela roupa preta só para esta ocasião?
Qualquer uma das hipóteses, me assusta do mesmo jeito. Ele não é quem
parecia ser. Ele não é o mocinho. É o bandido.
Rodrigo me arrasta pelo braço até o deck da piscina. Cruzamos o salão
cheio de adultos e crianças dançando. Não avisto papai e lembro quando disse
que ficaria no escritório até a hora de cortar o bolo. Com isso concordei
prontamente, pensando que os temas de conversa inevitavelmente acabariam
por recair no seu desaparecimento. Olívia continua à porta e Maria está
distraída servindo bebidas. Christiane está cheia de chamegos para cima de
Gustavo, que continua na mesa de som. E Nate? Onde estará ele que não
aparece quando preciso de ajuda?
203
Rodrigo prende o meu braço com mais força e quase posso sentir nos
ossos a sua pele áspera e gelada. Ele me encara e diz em tom de ameaça:
― Você não faz ideia do que sou capaz, Clara.
― Do que você está falando? ― questiono, ainda surpresa com sua nova
personalidade.
Rodrigo sussurra em meu ouvido:
― Se continuar saindo com o Jonas, não poderei poupar você de nada.
***
De onde estou, consigo ver a movimentação da festa e, através da janela,
avisto o Pajero. Infelizmente Rodrigo também percebeu e, agarrando o meu
braço com mais força ainda, me arrasta até a porta da entrada, desviando das
pessoas entretidas com a música. Tento detê-lo, mas não consigo. Ele é forte
para a sua estrutura franzina. Quando minha irmã repara em minha presença,
exclama contente:
― Clara, está vindo todo mundo!
Disfarço um sorriso tão forçado, que ela franze a testa. Olha para o meu
braço e vê a mão de Rodrigo segurando-o. Eu balanço a cabeça negativamente
e num chiado baixinho peço-lhe silêncio, mas ela fica ansiosa, tomando fôlego
para gritar quando Jonas aparece à nossa frente.
― Boa noite ― saúda, fitando Rodrigo.
― Boa noite, Jonas ― responde-lhe pressionando meu braço até eu
gemer de dor.
Jonas percebe e vê que Rodrigo me prende. Nesta repentina troca de
olhares, Rodrigo troca também de refém e agarra minha irmã, conduzindo-a
porta afora. Meu coração acelera no peito e corro atrás deles, gritando:
― Larga ela! Larga! Larga minha irmã!
Meus apelos vão acendendo as janela das casas vizinhas. D. Clotilde é a
primeira a pôr a cabeça entoucada para fora. Mesmo com o som alto dentro de
casa, os convidados começam a sair para o jardim, e Marcus, destacando-se
dos demais pelo desespero estampado no rosto, permanece estático,
acovardado, atrás da cerca da minha casa.
Estamos do outro lado da rua. Agora é Jonas que segura o meu braço, me
impedindo de avançar sobre o covarde que segura Olívia. Faço força contra o
seu braço, sentindo seus músculos incharem na minha mão. Jonas é famoso
por sua intempestividade e posso perceber em seu tórax cada vez mais rígido
encostado às minhas costas, que ele está a ponto de explodir. Olívia disfarça o
medo, mas eu a conheço bem e sei que está em pânico.
― Deixa comigo. Eu posso conversar com ele ― sussurro para Jonas.
― Estamos no meio da rua. Acha que ele veio até aqui para conversar?
― questiona ele.
204
Jonas faz sua voz ecoar pela vizinhança e, no silêncio da noite, ainda soa
mais alta:
― Larga a menina, Rodrigo! Isso é entre nós. Ninguém tem nada a ver
com isso.
Pergunto-me do que Jonas está falando, mas minha curiosidade dá lugar
ao medo. Com a respiração forte e descompassada, Rodrigo bufa como um
touro enfurecido que está prestes a atacar.
― Clara precisa saber o que pode acontecer se andar com maus
elementos ― ameaça, imobilizando Olívia com uma chave de pescoço.
Ela se torna ainda menor perto dele ou ele se torna maior.
― Covarde! ― esbravejo.
Num impulso de defesa, Jonas me empurra. Foi tão rápido que não vi a
ação acontecer, mas de uma hora para outra Rodrigo ocupava o meu lugar na
rua, rolando no asfalto com Jonas. A força foi tamanha que eu havia caído a
uns dois metros dali. Acho que saí do chão porque o impacto do cimento
contra meu braço, deslocou-o. Doía muito, mas eu sabia como colocá-lo no
lugar e o fiz. Do que não conseguia me livrar era do cheiro do alcatrão
impregnado em meu nariz. Corro para abraçar Olívia, que está em estado de
choque, chorando e fungando para dentro.
Rodrigo é fisicamente mais frágil que Jonas, mas tem mais habilidade e
agilidade e mantém Jonas completamente neutralizado, sob a mira de seu
punho direito.
Quando penso que Jonas vai fraquejar, ele começa a reagir desferindo
uma série de golpes frontais que revertem as posições. Devagar, Jonas se
levanta e, como se estivesse numa luta profissional, adorando cada segundo
do confronto, espera Rodrigo se recuperar. Os dois dançam em círculo,
movimentando depressa as pernas enquanto mantêm suas guardas. No silêncio
da noite, só se ouve o piar de uma coruja distante e o som dos sapatos dos dois
arrastando no asfalto da rua.
Eles dão início ao ultimate fighting, em que Rodrigo parece indolente,
deixando-se atingir sucessivamente pelo punho firme de Jonas. Cubro os
olhos de Olívia e eu mesma não consigo assistir sem virar o rosto a cada
gancho certeiro.
Em determinado momento, os dois se apoiam mutuamente sem desferir
mais nenhum soco. Embora pareçam esgotados, o intervalo não passou de
uma manobra defensiva. Rodrigo parte de novo para cima de Jonas com
golpes rápidos e diretos aos quais Jonas reage com cruzados de esquerda.
Rodrigo parece exausto, mas ainda assim consegue atingir o queixo de
Jonas e o derruba no chão a uma velocidade incrível. Jonas não demora a
reerguer-se, mas Rodrigo não dá trégua e avança para cima dele com um chute
infalível no abdômen. As vaias e os protestos pelo golpe baixo parecem
incentivar sua fúria.
205
― Desiste, caubói! ― diz Rodrigo com a voz arranhada. ― Vai lamber
as botas do papai! Você não é páreo para mim. Nunca foi e nunca será.
Jonas estala o pescoço e depois cospe sangue no chão.
― Você não faz a mínima ideia.
Marcus assiste a tudo, impassivo. Ao seu lado, Jessica, Christiane e
Gustavo, atônitos, sem perceber o motivo da confusão. Como eles, toda a
vizinhança e agora papai, que deixa a casa correndo e se posiciona ao lado de
Maria, que segura o próprio queixo. Ela não sabe como explicar e ele vem em
direção a mim.
― O que está acontecendo? ― papai tem os olhos fixos na briga distante
de nós cinco metros e, quando repara, emenda outra pergunta: ― Aquele é o
Jonas?!
― Pai, por favor, faça alguma coisa ou o Rodrigo vai machucá-lo
gravemente... ― suplico.
Papai corre, mas Marcus os alcança primeiro para apartar a briga. E neste
exato momento, Jonas rodopia no ar e com a perna direita desfere um golpe
final em Rodrigo. A planta do pé de Jonas acerta em cheio o peito de Rodigo
que dobra ao meio como se fosse uma folha de papel sendo carregada por uma
ventania. A alguns metros de nós, ele tomba com um estrondo. Não parecia
um corpo atingindo o solo, parecia um meteoro.
Ao perceber o que fez, Jonas me dirige um olhar confuso e apavorado e
eu não sei o tipo de olhar que lhe retribuo, mas não é menos confuso e
apavorado. Ele respira intensa e descontroladamente e seus olhos giram para
cima. Penso que ele vai desfalecer e ameaço correr para junto dele. Mas
quando ele volta a olhar para mim tenho a impressão de que não são os
mesmos olhos, são como olhos de gato, como duas bolas de gude espelhadas
que quase ofuscam a minha visão. Quando dou por mim ele já corre em
disparada e logo o perco de vista nas sombras da rua.
Marcus está socorrendo o irmão estendido no chão. Rodrigo contorce-se
de dor, mas principalmente de raiva. Há algo dentro dele muito mais cruciante
do que este nocaute.
***
Meus amigos se aproximam e nos ajudam a chegar em casa. Além da
deslocação do braço, sofri apenas arranhões nos cotovelos e joelhos. Olívia
está certamente muito mais abalada; seus olhos ainda estão assustados. Maria
telefona para a emergência e pede uma ambulância para Rodrigo, enquanto
Papai se encarrega de pedir desculpas aos convidados e de dispersar os
curiosos. Aos poucos as janelas se apagam e a aparente normalidade se
estabelece.
Chris me traz um chá de camomila enquanto Olívia e eu nos abraçamos
longamente. Viro-me para Jéssica que está com o olhar perdido e lhe digo
com serenidade:
206
― Jess, a culpa não é de Marcus.
― Marcus contou sobre a festa ao irmão. Isso provocou o Rodrigo! ―
diz ela, revoltada.
― Não pense assim, Jess... Marcus veio por sua causa.
― Mas só piorou as coisas. Eu pedi um tempo. Agora não o quero ver
nunca mais!
No mesmo instante em que exclama irritada, Jessica corre chorando para
a janela e avista o Peugeot de seu ex-namorado dobrando a esquina em alta
velocidade.
― Eu não vou me meter com essa família perturbada! ― troveja ela,
entre soluços.
Christiane está estática no meio da sala com o bule na mão.
― Chris, vê outro chá para a Jess...! ― peço-lhe.
Como se despertasse de repente, Chris se aproxima do sofá onde senta-se
Jéssica e lhe serve uma xícara com chá.
― Ah... toma aqui amiga... fica calma ― murmura-lhe, carinhosa.
Papai aparece na sala totalmente transtornado.
― Não tinha o que dizer aos convidados, então me limitei a pedir
desculpas. Eu vou querer saber detalhadamente o que aconteceu aqui! ―
exclama ele olhando para mim.
Tentei diversas vezes falar com Jonas pelo celular, mas o aparelho está
desligado. Preferi não deixar recados. Pensei, depois, em telefonar ao Dr.
Bauer para contar o incidente, mas papai achou melhor não importuná-lo, já
que as encrencas de Jonas são frequentes.
Meus amigos se despediram, assim como todos os convidados, sem
provar o bolo. Mas para a família Chevallier a festa ainda não chegou ao fim.
Nos esforçando para dissipar o clima de tensão, reunimo-nos em volta da
mesa e cantamos os parabéns para Olívia. Ela soprou as doze velinhas e, como
manda a tradição, fez o seu pedido de aniversário.
― Que todos os seus sonhos se realizem, maninha ― digo procurando o
azul de seus olhos por entre a fumaça das velas.
Ao apertar mais forte a minha mão, diz com um sorriso:
― Se você sonhar esta noite, os meus sonhos serão os seus sonhos.
207
30 - Pazes
Todos dormem na vizinhança, inclusive minha irmã que só conseguiu
adormecer depois que papai lhe disse que chamará um amigo astrônomo para
ajudá-la a utilizar melhor o telescópio.
Estou tonta e exausta, tenho o corpo todo dolorido e não encontro
posição na cama para o braço que ainda lateja. Sinto como se tivesse sido
atropelada por um trem descarrilhado. Ou melhor, por duas composições
inteiras totalmente desgovernadas.
Saio de casa num rompante e corro descalça olhando para o céu.
Gostaria de sonhar esta noite, mas tenho medo de Nate não aparecer. Os
pingos de chuva lavam o meu rosto. Sinto a terra molhada na planta dos pés
enquanto os cabelos começam a pesar e grudar no pescoço.
Estou confusa. Queria que essa chuva levasse os meus receios, as minhas
dúvidas e o meu amor por Nate. Por que tenho tanta saudade? Por que não
consigo imaginar a minha vida sem ele? Por que ele me dá esperança e se
sacrificaria por mim?
Onde estará Nate agora? Será que ele sabe o que aconteceu? Será que
desistiu de mim? Acho melhor voltar e tentar dormir também. Talvez esqueça
um pouco esta insegurança e as dúvidas que me atormentam.
Meus espirros me convencem a voltar. Retorno a passos largos,
escolhendo o caminho dos jasmineiros. O incômodo do frio e do cansaço não
têm qualquer importância agora que me sentei embaixo de um deles, pois este
aroma alimenta o meu espírito. É como se Nate estivesse à minha frente
tocando meu rosto e o enxugando da chuva. Penso em tudo que se
transformou na minha vida e, resignada, espero o dia amanhecer.
Os primeiros raios de sol incomodam e me levanto assustada. Estranho
estar confortável em meu pijama seco. É como se tivesse dormido a noite toda
agasalhada sob as cobertas da minha cama.
Ainda é muito cedo quando me aproximo do jardim. Entro em casa a
passos leves, subindo para o meu quarto. A cama está desfeita como se eu
tivesse dormido nela e sobre o meu travesseiro, repousa um singelo buquê de
jasmins. Meu rosto se ilumina ao perceber que Nate voltou e que não me
abandonou. Talvez tenha me trazido para casa e até velado o meu sono.
208
Arrumo os cadernos da faculdade na pasta como se cumprisse uma
obrigação pesarosa. Enquanto coloco o arranjo numa jarrinha com água sobre
a mesinha de cabeceira, penso em Jonas, Rodrigo, Marcus, e Jéssica e no
desejo de hoje estar em casa, fechada no quarto. Eu sou a responsável pelo
desentendimento entre eles, e carregar esta culpa é insuportável.
Papai e Olívia conversam animados na cozinha. Ouço o burburinho por
trás da porta e, antes de entrar, ensaio um sorriso para que não percebam o
meu desânimo.
― Papai vai trazer o amigo astrônomo hoje à tarde! ― diz Olívia.
― Que ótimo! ― reajo com um sorriso mais sincero ao perceber seu
entusiasmo.
Papai vira-se para mim.
― O Calixto tem alguns softwares interessantes ― diz ele dando um
gole no café. ― É hoje que sua irmã verá as estrelas e os planetas pela
primeira vez! ― o orgulho ilumina o seu rosto.
― Ah, pai! Eu já cansei de ver estrelas e planetas! ― replica ela,
convencida.
― Não senhora... agora é que você vai ver o céu de verdade! ― insiste
papai, só para provocá-la.
Minha irmã larga a colher na tigela e vira-se para mim:
― Você sonhou esta noite, Clara?
Olívia me deixou sem fala. Então ela falou sério depois de soprar as
velinhas do seu bolo de aniversário. Apesar dos meus frequentes lapsos de
memória, lembro perfeitamente do momento em que elevei minha cabeça ao
céu e permiti que a chuva molhasse meu rosto.
― Sonhei...
Ela leva uma colherada de cereais à boca e depois diz:
― Porque o meu pedido de aniversário foi por você.
Papai nos interrompe com um tom autoritário.
― Clara, sente-se aqui por favor.
Pensei que fosse escapar do sermão. Sento ao seu lado na mesa e ele
aproxima sua cadeira da minha.
― Preciso ir mais descansado para o trabalho. Então, agora me conte: o
que aconteceu ontem?
Diante do seu argumento e da sua situação de amnésia, não é justo lhe
esconder mais nada. Antes saber por mim do que pelo Dr. Bauer.
― Pai, eu e o Marcus nos desentendemos por causa da minha amizade
com Jonas. E por causa desse desentendimento, Marcus e Jess terminaram o
namoro e eu não o convidei para a festinha da Olívia. Ele veio mesmo assim e
o irmão apareceu também. Mas o Rodrigo e o Jonas não se dão e quando
Jonas chegou para a festa, houve aquela briga que você viu. E foi isso.
209
― Você convidou o filho do Bauer?
― Convidei, pai.
― Ah, Clara... minha filha... ― ele sacode a cabeça em sinal de
desacordo. ― Eu já lhe disse para não se aproximar daquele garoto!
Lanço-lhe meu olhar mais apelativo.
― Pai, a culpa da briga não foi dele!
― É, a culpa foi do Rodrigo ― manifesta-se minha irmã.
Papai se surpreende. Olívia olha para mim e depois volta-se para ele.
― Sim. Eu o vi segurando o braço de Clara e ele depois fez o mesmo
comigo e me arrastou à força até a rua. O Jonas apenas tentou nos proteger.
― Essa história está muito mal contada...
Ele se remexe na cadeira, incomodado, esperando uma explicação que
não tenho para lhe dar. Coloco minha mão sobre a dele para acalmá-lo.
― Pai, o Rodrigo não quer minha amizade com Jonas e para me
ameaçar, quis mostrar que é capaz de qualquer coisa.
Papai fica em silêncio, fitando seriamente a tigela de cereais de Olívia.
― Filha, você precisa sair desta universidade ― decide ele.
Bruscamente, tiro minha mão de baixo da dele.
― De jeito nenhum! ― exaspero dando um salto da cadeira.
Ele também se levanta e continua com aspereza:
― Imediatamente. Não quero você envolvida com estes rapazes.
― Mas eu só estou tentando ajudar o Jonas... ― digo, lamuriante ― ...
ele precisa de ajuda.
― Sinto muito, Clara. Essa história já foi longe demais. Vamos pedir a
sua transferência amanhã mesmo ― proclama, como um juíz proferindo
impiedosamente a sua sentença.
― Eu não quero sair da minha faculdade, pai! Adoro o curso e tenho as
minhas amigas! A Chris vai casar no fim do ano, não posso me afastar dela...
― e olhando para o seu semblante rijo, praticamente suplicando, esbravejo:
― Não! Não vou sair!
― Vai sair, sim! É uma ordem!
Neste momento pensei em tudo o que ele ainda não sabe. Se ele soubesse
dos espiões infiltrados na faculdade para controlar a nossa família, certamente
ficaria muito mais perturbado do que já está. Eu deveria me dar por satisfeita
por ele não me trancar em casa pelo resto da vida. Mas não. Não consigo
concordar com essa intransigência.
Papai abandona a cozinha com o jornal e vai para a varanda. Maria chega
da feira trazendo frutas fresquinhas e estranha o ar de consternação entre mim
e Olívia.
― Que caras... o que houve? ― pergunta ela.
210
― Papai vai tirar a Clara da faculdade ― responde Olívia, aflita.
― Por causa da briga de ontem? ― retruca Maria, pousando os sacos
ecológicos de TNT sobre a bancada de mámore.
Deixo a interrogação de Maria suspensa e corro até a varanda onde papai
lê, tranquilamente. Fico tão ensandecida por vê-lo indiferente ao drama que
vivo, que atropelo as palavras:
― Pai, isso é covardia! Já sou maior de idade e eu não vou aceitar que
você decida por mim. Eu quero me formar com os meus amigos e eu quero ter
o direito de escolher isso!
Ele me volta o rosto, agora sereno.
― Minha filha, eu sei que estou sendo duro mas estou pensando no seu
bem. A sua amizade com o Jonas é descabida. Ele não é uma boa companhia
para você. Agora descubro que o Marcus e o irmão dele também são de má
índole. Como você acha que um pai deve agir?! ― ele lançou a pergunta e se
levantou da rede. ― Quer que eu ache tudo normal e que não tome nenhuma
providência? ― ele caminha até a mim, que estou encostada à porta e finaliza:
― Esta é a forma que encontrei para proteger você, quer goste, quer não.
Meus olhos sustentam os dele.
― Pai, eu sei que você quer o meu bem, mas eu garanto que o Rodrigo
nunca mais vai nos incomodar.
― Você garante? Como?
Estou vacilante sobre esta ou qualquer outra certeza, mas não deixo
transparecer.
― Eu só peço um voto de confiança ― digo-lhe. ― Deixe que eu
resolva isso.
Ele eleva a mão e toca meu rosto. Olha para baixo, depois esboça um
sorriso brando.
― Está bem, filha. Vou lhe dar este voto de confiança. Não gosto de ser
rude com você. Pode ter a certeza de que é muito mais difícil para mim tomar
atitudes rigorosas do que para você aceitá-las e entendê-las. Eu vou esperar
que você resolva essa situação do seu jeito ― ele me aponta o dedo e
continua. ― Mas se esse tal Rodrigo se aproximar de você de novo, não só
vou tirá-la dessa universidade, como vou alertar a polícia. Estamos
entendidos?
Meneei com a cabeça. Eu tremi quando ele falou em polícia. O melhor é
não pensar nisso, pois seria terrível envolver a polícia novamente com a
minha família e ver papai frente a frente com o Dr. Alvarez e todas as
perguntas que podem advir desse encontro.
***
Na faculdade, encontro Christiane descendo do carro de Gustavo. Não
consigo ver o chamego dos dois e não pensar em quão mais fácil seria se eu
211
tivesse me apaixonado por um rapaz normal. Mas a verdade é que se não
existisse Nate, eu talvez nunca me apaixonasse.
Caminho em direção a eles com os olhos grudados no chão quando
Wotan se atravessa à minha frente. Não sei de onde ele surgiu, mas esbarrou
em mim propositalmente e me lançou um olhar enviesado. Ignoro-o
prosseguindo em frente, sem virar para trás. Meu coração bate arrítmico. Só
me sinto mais segura quando ouço a voz suave de Chris e tenho a expressão
gentil de Gustavo ocupando todo o meu campo de visão. Enquanto o casal de
pombinhos se despede, olho em volta com uma sensação de angústia me
corroendo por dentro. Procuro não aparentar, mas começo a ter muito medo de
andar por este campus.
Marcus não apareceu, mas não consigo prestar atenção à aula mesmo
assim. Minha dispersão chama a atenção de Jéssica que está o tempo todo
olhando para mim sem ter coragem de tocar no assunto da noite passada.
― Jess, está tudo bem? ― pergunto, curvando-me para a sua carteira.
Ela me lança um sorriso meio forçado e depois começa a escrever no
papel, demorando alguns longos minutos. Depois arranca a folha do caderno e
passa discretamente para mim:
O Marcus já me telefonou de manhã e pediu desculpas. Disse que o irmão dele agiu mal e que está arrependido; que não vai se
separar de nós e não quer me perder. O que você acha?
Aproveito a mesma folha e escrevo por baixo, com a exclusiva intenção
de confortá-la:
Jess, se você gosta do Marcus, vá em frente. Só toma
cuidado com o irmão dele. Arrependido?! Duvido muito.
Ela leu e inclinou a cabeça em sinal de concordância.
Na Toca do Coelho encontramos Marcus cabisbaixo. Ele tem os olhos
fixos numa latinha de Ice Tea. Se notou a nossa presença, não está muito
confortável para nos dirigir a palavra. Jéssica toma a iniciativa e puxa uma
cadeira. O ruído do pé de metal arrastando no chão de cimento deperta-o do
transe. Ele vira o rosto devagar enquanto ela pega em sua mão.
― Estamos aqui para retomar nossa amizade.
Ele levanta a cabeça e seus olhos estão avermelhados, talvez de chorar,
de ter dormido pouco, ou até, das duas coisas. Ele é direto:
― De você eu quero mais que isso.
Ela o abraça e lhe diz baixinho:
212
― Você tem a minha amizade... ― depois de um breve suspiro ela
declara: ― ...e o meu amor, Marquinhos.
Eles se beijam cinematograficamente enquanto eu e Chris fazemos de
conta que não notamos o entusiasmo dos dois. O beijo já ia longo quando
Chris pigarreou duas vezes. Marcus vira-se para mim. Ele sustenta meus olhos
por alguns instantes em silêncio, parecendo procurar as palavras certas.
― Clara, eu estou muito envergonhado pelo que meu irmão e eu
fizemos. Ele passou todos os limites, mas está arrependido ― seu tom de voz
é malancólico. ― Quanto a mim, queria que você aceitasse a minha amizade e
o meu pedido de perdão. Eu estou disposto a correr riscos para continuar a
fazer parte do nosso grupo.
― Que risco? ― indaga Jéssica com uma ruguinha na testa.
― Perder o meu irmão ― responde num tom grave.
― Não, Marcus... não queremos isso! ― exclamo agitando a cadeira.
Jess e Chris se entreolham perturbadas.
― Vocês não sabem como é a minha relação com o Rodrigo. Eu não
quero falar sobre isso, mas acreditem: é desgastante ― confessa Marcus com
um suspiro. ― De qualquer modo, ele se confessou chateado com tudo isso e
disse que vai se retratar.
― Puxa, Marcus... eu sinto muito por você ― lamenta Christiane,
passando o braço em volta dele.
Ele dirige-se a mim, perguntando afetuoso:
― Como está a sua irmã?
― Ela está bem. Ganhou um telescópio profissional e anda toda animada
― respondo-lhe sorrindo.
Ele se surpreende com a notícia e reparo que seus olhos reacendem.
― Isso é muito irado! Será que ela me deixa ver? ― a pergunta soa tão
inocente quanto a de uma criança apertada que pergunta à professora se pode
ir ao banheiro.
― Hum... ― ponho um dedo no queixo olhando para cima e,
irreprimivelmente, volto-me para ele com meu ar mais sério. ― Ela só me
deixou tocar no instrumento depois que fiz trinta flexões e cinquenta
polichinelos. Com você talvez ela seja mais boazinha ― Jess vira o rosto
atemorizado para Marcus que continua a me encarar com os olhos meio
vidrados e a boca entrebaerta, ainda não totalmente convencido ou, então,
julgando se eu realmente lhe dei essa resposta idiota. ― É claro que estou
brincando, né gente?!
Marcus torce a boca e Jess deixa soltar um suspiro que me soou como
aliviado ― como a Jess tem vocação para cair de patinha, não me deixa
alternativa senão subestimá-la.
213
Mas, enfim, a pergunta foi tão boba que mereceu a oportunidade de
quebrar o gelo entre nós. E mais boba sou eu, que só agora percebo que quase
permiti que um dos meus melhores amigos se afastasse de mim.
***
No caminho para casa, penso em telefonar para Jonas. Ontem saiu
correndo depois da briga com Rodrigo ― fugiu como se fosse um bandido
quando foi o herói ― e hoje não apareceu na faculdade. Pego no telefone
enquanto aguardo o sinal de trânsito no vermelho, mas não tenho coragem de
completar a ligação. Numa de minhas tentativas de ganhar coragem, acabo por
deixar tocar uma vez. Agora já não posso negar que tentei ligar.
Estou aliviada por Marcus e Jéssica terem reatado o namoro, mas
precisarei ter jogo de cintura para manter minha amizade com ele e prosseguir
com minha intenção de socializar Jonas, já que Marcus é um fator de atração
de Rodrigo.
Ao dobrar a esquina da minha rua, avisto o carro de Jonas estacionado
em frente ao parquinho infantil. Logo mais à frente, sentado num balanço, está
ele. O olhar está longínquo. Estaciono meu carro atrás do dele e caminho entre
os brinquedos pelo gramado recém-aparado. Jonas percebeu minha presença
de pé ao seu lado pois faço sombra sobre ele, mas mantém a cabeça baixa.
Ensaio pousar a mão em seu ombro, mas hesito. Sento no outro balanço e fico
à espera que seja ele a romper o silêncio.
― Você me ligou ― sua voz é fria e intensa.
― E você não atendeu ― respondo o óbvio, só para retribuir.
― Como está sua irmã? ― pergunta, seus olhos fixos na gangorra
amarela do nosso lado.
― Está bem e agradecida a você.
― Agradecida?!
― Você a libertou daquele troglodita ― dou impulso com meus pés no
chão e o balanço começa a mover-se lentamente.
Vejo apreensão em seu rosto. Respiro fundo antes de perguntar:
― Por que saiu correndo daquele jeito? Fiquei preocupada...
Neste instante noto que Jonas não ficou com nenhuma sequela da briga.
Seu rosto, não só está pela primeira vez liso depois de meses de barba por
fazer, como também está tão são como estava antes do episódio.
― Não é da sua conta ― responde rispidamente.
Não que eu não imaginasse uma resposta nesse tom, mas é sempre
desagradável e começa ser cansativo levar um fora após o outro. Respiro
fundo para manter a paciência. Digo-lhe, então, pacificando:
― Tudo bem... não temos que conversar se não quiser.
214
― Não dê uma de psicóloga. Pensa que eu não saquei que você está se
aproximando de mim para tentar me corrigir? ― insinua ele, melindrado. ―
Está perdendo o seu tempo.
― Não, Jonas...! Não é nada disso! ― contesto elevando a voz.
Baixo o queixo para o meu cinismo.
― Eu sei que você é uma boa pessoa e que não preciso fugir de você.
Ele ergue a cabeça e se volta para mim, antes de afirmar com uma
convicção perturbadora:
― Esse é o problema, Clara. Você tem que fugir! Eu sou perigoso.
― Perigoso? Você me salvou, Jonas!
O balanço dele continua inerte, enquanto eu tomo impulso no ar com
imprudência, balançando cada vez mais alto. Ele engole em seco.
― Há alguma coisa em mim...
Jonas deixa uma reflexão no ar e eu pouso os pés no chão tentando parar
o balanço.
― Se eu não tivesse ido à festa, o Rodrigo não teria agarrado a sua irmã.
E além disso...
Fico muda na expectativa e ele mais uma vez suspende o que ia dizer,
emendando:
― Não importa. Meu pai nunca tem razão em nada, mas nisso... ― ele
faz uma pausa e depois continua bastante reticente: ― ... o seu pai conversou
com meu pai e...
― Não acredito... ― resmungo.
― E ele não quer que você se aproxime de mim. Ele tem razão, eu sou
encrenca, garota. Nós não podemos ser amigos, nunca. Por isso vê se me
esquece, valeu? ― ele disse com firmeza, no entanto, não me soou
convincente. Ele continua sentado, imóvel, as duas mãos firmemente fechadas
em torno da corrente que sustenta o balanço, os bíceps rígidos e os olhos
inquietos.
Aproveito-me das suas reticências e penso em apelar ao seu lado sensível
predominante: seu sentido protetor.
― Mas, justamente agora que eu preciso de você...
― Precisa de mim?!
Esta é a minha oportunidade de pôr meus dois planos em prática: me
aproximar de Jonas e justificar a amnésia de papai.
― Meu pai está com amnésia ― digo depressa.
― Como? ― pergunta, incrédulo.
― Meu pai perdeu a memória, ele não se lembra do sequestro que sofreu
e de nada do que aconteceu depois ― explico, evitando seus olhos que
procuram aflitos pelos meus.
215
― Tipo amnésia psicogênica? ― ele salta no balanço e se coloca
agachado à minha frente.
― Exatamente ― confirmo, rendendo os meus olhos.
Ele continua me encarando e morde os lábios.
― Puxa... que barra, hein... Mas não sei em que posso te ajudar.
Encho os pulmões de ar e prossigo séria com a minha maquinação:
― Com certeza o seu pai vai comentar com você que meu pai anda meio
esquecido das coisas. O que ele viveu durante e depois do sequestro, ele
esqueceu de tudo. Preciso que você explique ao seu pai como funciona a
amnésia psicogênica retrógrada e convença-o a dizer ao meu pai de que o
trauma que sofreu implica numa recuperação lenta.
― Tudo bem. Eu explico a ele ― pactua, balançando a cabeça, mas
ainda com uma ruga na testa.
― E tem outra coisa... ― passo a mão pelo cabelo, desejando que fosse
mais comprido para esconder melhor a minha cara de pau ― ... eu vou
precisar de um acesso ao laboratório do seu pai.
Ele franze mais o cenho.
― Um acesso?
― É que preciso de uma senha para entrar no laboratório... ― sigo
arrastando as palavras conforme vou desenvolvendo meu raciocínio
maquiavélico ― ...meu pai vai querer fazer exames para diagnosticar o
problema, mas já sabemos que é um caso de amnésia retrógrada. Estudamos
isso no ano passado, lembra? ― olho para ele estimulando-o a embarcar na
minha ilusão e diminuo a excitação para não soar exagerado demais. ― Não
quero que ele sofra, entende? É melhor que não se lembre do que aconteceu
porque ele andava muito triste, foi um trauma muito grande. Agora ele está
ótimo e se voltar a lembrar, vai ficar remexendo nessa história e não será bom
para ele.
Ele parece admirado, suas feições denotam censura.
― Você está dizendo que ele está melhor doente?
― Sim, por incrível que pareça, essa amnésia é uma bênção para nós ―
digo ocultando meu olhar cínico e dirigindo-o para o alto.
― E por que você precisa entrar no laboratório?
― Preciso ver o resultado do exame antes dele. Eu sei que é confidencial
e que só o paciente tem acesso ao exame. Se eu ficar sabendo do resultado
previamente, posso conduzir melhor a situação ― digo, acanhada, mas quase
convencida de que isso é natural.
Ele percebe que não estou à vontade com a situação ― só não sabe o
verdadeiro porquê.
― Você nem é médica ainda e já está tratando seu pai como um paciente
seu... ― sugere de um modo jocoso.
216
― Você pode me ajudar a entrar no laboratório ou não?
Ele fica mudo durante alguns segundos e, com um ar ligeiramente
convencido, responde:
― Eu tenho uma senha de acesso. Você entra comigo.
Um expirar de contentamento me escapa e ele sorri com o canto dos
lábios.
― Jura?
― Palavra ― responde estendendo a mão que eu aperto em sinal de
acordo.
Eu sabia que ele ia aceitar e que não ia fazer muitas perguntas, muito
menos me dar alguma lição de moral e ética.
― Muito obrigada, Jonas.
Sua mão quase esmaga meus dedos como se amarrotasse uma folha de
papel. Antes que eu demonstrasse dor, ele solta depressa.
― Eu tenho que ir. Quando precisar dos meus serviços, liga.
― Mas continuamos amigos ou...? ― a pergunta sai afobada enquanto
massageio minha mão.
― Vou te ajudar nessa empreitada, Clara. Depois... a gente vê.
***
Papai chega em casa acompanhado de um senhor simpático, estatura
mediana, olhos azuis-claros por baixo de óculos de armação vermelha e
cabelos grisalhos. Ele conheceu o professor Calixto durante um colóquio
sobre a História da Astronomia no Brasil em que meu pai se inscreveu por
mera curiosidade. Papai ainda hoje adora passar tempo livre em colóquios.
Coisa de cientista nerd. Na época em que os dois se conheceram, Olívia ainda
não era nascida e meu pai nem imaginava que teria um dia uma filha
apaixonada por astronomia.
Depois de entusiasmados cumprimentos, Maria dedurou Olívia.
― Ela não parou de falar no senhor deste que chegou da escola...
― É mesmo? ― nosso convidado astrônomo solta uma risada estridente
e olha para minha irmã: ― Ansiosa, Olívia? ― pergunta-lhe.
― Muito! ― confessa ela, mal conseguindo conter a ansiedade que já
vitimou suas unhas.
O professor Calixto vira-se para mim antes de deixar a cozinha, sussurra
no meu ouvido:
― Acho que você deve conversar com seu pai, Clara. Não acho que ele
esteja muito bem hoje.
― Mas aconteceu alguma coisa? ― pergunto com uma leve tensão no
tom de voz.
217
― Não sei. Combinamos de nos encontrar no saguão do laboratório e ele
já estava assim, calado, estranho ― responde o professor aproximando as
sobrancelhas grossas e desalinhadas.
Agradeço com um sorriso de Monalisa, leve e enigmático, muitas vezes
ensaiado para este tipo de ocasião em que há muito e, ao mesmo tempo, nada
a dizer.
Eu sei bem o que aflige meu pai.
― Vamos, Olívia? Mostre-me o caminho para as estrelas! ― brinca
Calixto, segurando com ternura a mão da minha irmã.
***
Encontro papai taciturno, sentado no sofá da sala, a testa apoiada na mão
e o olhar distante, meio perdido. Chamo por ele uma vez, baixinho, e ele não
se move.
― Pai? ― insisto.
― Oi filha... ― ele levanta a cabeça para me ver e depois torna a baixá-
la e permanece imóvel e reflexivo, fitando o porta--retratos sobre a mesinha.
― Está tudo bem? ― indago, sentando-me ao seu lado.
― Acho que não. Não estou me lembrando de muita coisa que aconteceu
nos últimos anos. Acho que estou com algum problema ― ele sopra o ar e
continua: ― Na verdade, minha memória parece que foi recortada, há fatos de
que lembro, outros não.
O fato de não poder lhe contar a verdade vendo-o tenso desse jeito ainda
contrai mais meu coração, por isso insisto em lembrar de que é para o seu
próprio bem. Fico em silêncio, esperando que ele revele mais sobre seu
primeiro dia de trabalho depois da amnésia.
― Tive uma reunião com o Bauer e outros colegas nossos. Filha,
acredite: eu nem sabia que estava agendada essa reunião! Por sorte, encontrei
no refeitório um dos colegas que me alertou. Eu tentei disfarçar meu
constrangimento, mas quando a reunião começou eu desconhecia a pauta.
Estranhei os temas de conversa como se eu não tivesse estado presente na
semana anterior, mas estive porque eles falavam de minhas opiniões que eu
sequer conhecia...
O olhar desesperado de meu pai faz meu coração encolher. Sei que esta
amnésia é a nossa única alternativa para ultrapassar o risco das pesquisas
caírem em mãos erradas, mas não há maior tristeza na minha vida neste
momento do que ver papai desmemoriado e não poder lhe explicar que o que
está acontecendo é para o seu próprio bem.
― Você conversou sobre isso com o Dr. Bauer? ― pergunto, aflita.
― Sim, ele foi o primeiro a notar minha dispersão. Me chamou a um
canto da sala e perguntou o que estava acontecendo. Disse-lhe a verdade, que
não estava lembrando de nada. Depois da reunião conversamos, ele tentou me
218
fazer lembrar das últimas semanas e contou que fui sequestrado ― suas
sobrancelhas se estreitam e ele aumenta o tom de voz: ― Como isso
aconteceu?
Meus membros gelam dos pés à cabeça. Sinto uma fisgada no peito me
alertando que meu corpo também não concorda com o que estou fazendo.
Agora percebo como é importante daqui para frente o meu mis-en-scène. Pelo
bem de todos, minha cabeça precisa funcionar bem e eu preciso ter coragem
para seguir adiante com o plano da Legião.
― Pai, fique calmo. Deixe-me explicar o que está acontecendo com você
― digo serenamente.
Os olhos dele estão opacos e rígidos, direcionados para mim.
― Eu já previa que podia acontecer uma amnésia depois do choque que
teve. É um quadro previsto neste tipo de situação que você sofreu, um trauma.
De uma hora para a outra você pode voltar a lembrar, mas não se esforce, será
natural ― explico, me contorcendo de remorço por dentro.
Sei que estou fazendo o certo simplesmente porque Nate me disse que
deve ser assim.
Ficamos conversando durante duas horas. Pedi a Maria que fizesse um
chá de erva cidreira para acalmar papai. Ele ficou muito nervoso quando lhe
contei da motivação do sequestro. Enquanto ele tomava o chá, contei a mesma
história que ele próprio inventou para a polícia e, não supreendentemente, ele
ficou convencido. Mesmo assim, está decidido a fazer os exames necessários
para a diagnose e até comentou sobre a hipnose como tratamento para voltar a
lembrar, apesar da minha insistência em dizer que o que aconteceu é melhor
continuar esquecido.
― Pai, você não se lembra da nossa pescaria... ― insinuo, como parte da
minha encenação.
― Não lembro, filha. E vocês não notaram nada estranho em mim, não
notaram meu esquecimento? ― pergunta, suspeitoso.
Para desviar do assunto, externo a minha preocupação:
― Pai, nós queremos que fique bem. Lembrar do sequestro é uma
péssima ideia. Mas você é quem sabe. Faça os exames que quiser.
― Vou fazer. Claro que vou fazer! Amanhã mesmo.
Engulo em seco.
― E o resultado sairá em quanto tempo?
― É muito rápido, filha, fica pronto em algumas horas. Ao fim do dia já
deverei tê-lo em mãos.
Garanto que tentei simular algo que lembrasse um sorriso, mas eu só
tornei minha expressão mais patética. Pensei que teria mais tempo para trocar
os exames. Como conseguirei um exame positivo para amnésia retrógrada?
***
219
Meus pensamentos são interrompidos pelos gritos alegres de Olívia. Em
seu quarto, ela observa pela objetiva do telescópio, enquanto o professor
Calixto instala um software no seu computador, que inclui mapas históricos
do céu, imagens de mais de cinquenta constelações, galáxias e até imagens
dos observatórios da NASA. Olívia está literalmente no céu com estas
novidades.
― Clara, vem cá! Acho que encontrei Leo.
Ainda estou trazendo meus pensamentos comigo, quando o professor se
aproxima da objetiva e confirma, oferecendo o telescópio para mim.
Aproximo os meus olhos da lente, já focada na constelação preferida de minha
irmã. Permito que uma lágrima deslize pelo meu rosto, enquanto admiro o
encantamento da estrela Wolf 359.
― Gira um pouco para ver a Ursa Maior! ― anima-se.
― Calma, maninha... eu não sei mexer nisso aqui, não! ― viro-me para
o professor esfregando meus olhos molhados e pergunto. ― Qual a estrela
mais próxima do sistema solar?
― São as três estrelas Alfa Centauri, que estão... ― ele gira ligeiramente
o telescópio, depois desce o aparelho um pouquinho. ― Deixe-me posicionar
aqui...
Sua facilidade em manusear o equipamento é de invejar. Assisto
boquiaberta até que ele finalmente vibra, vitorioso, ajeitando o óculos que
escorregava pela ponte do nariz.
― Aqui está... a constelação de Centaurus. Observe, Clara, a quantidade
de estrelas desta constelação! É onde está o maior aglomerado de estrelas de
nossa galáxia! Venha ver!
Posiciono-me na lente e é como se a minha vista se iluminasse. É quase
como se eu pudesse tocar o céu.
― É esta? A mais brilhante? ― pergunto, emocionada.
― Exatamente. Podemos vê-la também a olho nu. Veja, Olívia!
Consegue ver? ― pergunta ele apontando o céu, esperançoso.
― Ah, mas eu quero ver a maior constelação de todas! A Hydrae! Por
favor, professor, me ensine a posicioná-lo! ― suplica a aprendiz de
astrônoma, atormentando o pobre professor Calixto. O mais engraçado é que
ele parece tão entusiasmado quanto ela.
E ficamos ali durante um bom tempo admirando as estrelas no
firmamento, momentaneamente esquecendo os problemas. Aprendi alguma
teoria com Olívia e com o astrônomo, mas mesmo assim continuo me
sentindo totalmente fora do meu eixo.
E a razão maior se chama Nate. Por que ele nunca mais apareceu? Meu
coração está tão apertado que não sei se ainda bate. Só sei que estou viva
porque ouço as risadas de Olívia e do professor no quarto ao lado. Papai
esteve conosco durante pouco mais de dez minutos e foi para o seu quarto;
220
praticamente não prestou atenção às aventuras astronômicas dos dois “astro-
fanáticos”. Foi sorte Olívia estar tão concentrada em seu aprendizado, que não
deu pelo desânimo de papai, nem pela sua ausência.
Antes de adormecer, contemplo o arranjo de jasmim na cabeceira,
primoroso e exuberante, como se estivesse plantado em solo fértil. O jasmim é
uma flor que perece depressa; como pode ainda viver tendo sido arrancada de
sua raíz?
221
31 - Retrato
Eu conheço este lugar. Já estive aqui.
É o mesmo palácio com corredores de cristal, os mesmos prados verdes a
perder de vista, as mesmas montanhas majestosas e as mesmas janelas...
Malkuth.
Como eu vim parar aqui se não conheço o caminho?
Eu preciso vê-lo. Onde ele está? É tão silencioso aqui, que não tenho
coragem de gritar seu nome, mas só de pensar nesse atrevimento sinto o rosto
quente e vermelho. Como é possível ruborizar no próprio sonho?
A porta do quarto está aberta, então, atravesso-a. À minha frente se
estende um imenso corredor de vidro, que não consigo avistar o fim. O dia
está tão lindo que posso ver o horizonte além dos campos entrecortados por
riachos de água cristalina. Caminho pelo corredor e reparo num lago, que me
lembra em magia e encanto o Lago das Harpias, mas bem maior. A imagem
de Jonas toma meus pensamentos e de repente me sinto ofuscada por uma
outra imagem, distorcida, como um raio de luz repartido em milhares de
direções; como a Alfa Centauri que avistei nesta noite.
Por impulso, cubro a vista. A luz é intensa mas, ainda assim, consigo
sentir a energia me envolvendo.
Suavemente, minhas mãos são afastadas do meu rosto. Aos poucos, os
contornos de Nate vão ficando mais nítidos e posso ver os seus olhos a poucos
centímetros dos meus. Enquanto eu pisco sucessivas vezes, os seus
permanecem abertos, quietos, penetrantes. Aproximo meus lábios dos seus e
sinto seu hálito adocicado. A atração é muito forte e por mais que eu me
esforce para resistir, a vontade de beijá-lo é incontrolável. Mas ele se afasta de
modo tão natural que eu nem dou por isso.
A distância entre mim e Nate é a distância do nosso olhar, é a distância
entre as estrelas do firmamento e a minha casa. Como sempre, estamos tão
perto e tão longe.
― Você desapareceu.
― Estive sempre com você.
― Sim, eu recebi seu presente. Obrigada ― digo com um sorriso.
― Presente? ― ele franze a testa.
222
― Ora, Nate... os jasmins...
Sua fisionomia se contorce.
― O que foi? O que aconteceu? ― ele não responde, parece que se
desligou daqui e está noutro lugar. ― Nate?
― Olhe em meus olhos ― ele pede num tom autoritário.
― O que vai fazer? Vai vasculhar minha memória? ― afasto--me dele.
Ele me alcança, me puxa e segura meu braço. Ficamos frente a frente,
tão próximos que consigo contar todas as manchas da pigmentação de suas
íris.
― É para o seu bem.
― Quem decide isso sou eu. Vai me obrigar?
Desvio os olhos, me concentrando em um dos meus cadarços
desamarrados.
― Nunca vou obrigá-la a nada ― diz enquanto solta meus braços. ―
Pensei que confiasse em mim.
― Você sabe que não se trata de confiança. Não gosto que invada a
minha mente. Que leia meus pensamentos já é constrangedor, ler minhas
memórias... é... é íntimo demais.
Ele assente com a cabeça. Posso notar que seu semblante começa a
desanuviar.
― Tem razão, Clara.
― Não há nada na minha mente que possa esclarecer quem deixou os
jasmins sobre a minha cama, porque eu não estava consciente. Eu estava
dormindo, sonhando! ― justifico numa tentativa de parecer menos rigorosa
com ele.
A única verdade que eu sei, é que quem quer que tenha sido, me
carregou no colo e foi carinhoso comigo. Lembro do frio e da mesma
sensação de proteção de quando estou com Nate.
Ele me observa de um jeito terno e eu volto a me aproximar dele. Não
consigo desconcentrar dos seus lábios cor de cereja; tenho vontade de senti-
los nos meus, de conhecer o seu sabor. Fecho os olhos e procuro respirar a sua
respiração. Eu sei que ele está fazendo o mesmo. Sua face direita irradia
energia na minha face esquerda. Nunca estivemos tão perto de um beijo e
basta que um de nós vire ligeiramente o rosto.
Ele não se mexe um milímetro. Eu quero tomar a iniciativa, mas esbarro
na última rejeição que levei e hesito. Inclino o rosto devagar e é então que ele
inclina também, encostando seus lábios nos meus. Morno e fresco. Doce e
salgado. Suave e contundente. Será assim o beijo de um anjo? Certamente é o
beijo de um homem. Ele arfa, suas mãos apertam minha cintura e eu me
entrego mais ao nosso beijo, até que ele me afasta repentinamente e, um tanto
desajeitado. Ele esconde o rosto de mim, abaixando a cabeça e deixando que
os cabelos cubram seu perfil.
223
― Eu não pretendia...
― Eu também não! Estamos em Malkuth... é muito perigoso ― levo as
mãos aos lábios onde sinto um formigamento.
Coloco-me à frente dele, mas ele se esquiva virando-se de novo. Ergo a
mão e afasto os cabelos do seu rosto. É quando vejo um rastro brilhante
partindo de seus olhos. Ele chorou. É tão lindo ver as lágrimas de um anjo,
porém tão triste.
― Clara, eu sei sobre a festa da sua irmã. Sei tudo o que aconteceu ―
diz ele, fitando o chão transparente por baixo de nossos pés, onde vemos
correr um riacho.
Neste momento, eu que ainda estava flutuando pela estratosfera, caí em
terra firme. E dura.
― E mesmo sabendo me deixou sozinha?
― Não posso interferir assim, não do jeito que você gostaria.
Então por que me beijou agora? Não acha que interferiu nos meus
sentimentos? Não é só ele quem chora. Eu sinto que tenho muitas lágrimas
não derramadas dentro de mim. Ainda bem que ele não pode ler estes
pensamentos. Mas eu não posso evitá-los.
― Por favor, entenda, Clara: não posso aparecer. Mas acredite que eu fiz
o que pude. Enviei Jonas para estar ao seu lado.
Ele manipulou a vontade de Jonas para ir à festa de Olívia. Agora faz
sentido. Uma ponta de decepção me faz declinar a cabeça.
― Ele não pretendia ir. Na verdade, ele estava em dúvida e eu brinquei
um pouco com o destino dele. Foi o que eu pude fazer, Clara.
Ainda estou para conhecer alguém mais contraditório do que Nate. Ele
mesmo diz que os anjos não podem interferir no destino das pessoas, mas é o
que faz o tempo todo. Se eu não o tivesse impedido, teria decifrado todas as
minhas memórias.
― Podemos ajudar para que os destinos não saiam dos trilhos. Não era
para você e Olívia estarem em perigo àquela noite.
― Entendi. Eu fiz besteira e você me livrou... ― digo um pouco irritada.
― Você não devia ter se aproximado do Jonas agora.
― Se não devia, por que me aproximei, então? Eu não o procurei! Não
foi de propósito, foi o destino, ora! ― exaspero.
― Shhh... fale baixo ― ele reduz seu tom de voz. ― Não, não foi o
destino ― ele olha para o fim do túnel diante de nós e que eu não consigo ver.
― Muitas vezes os humanos acabam por usar seu livre-arbítrio da maneira
errada. Os anjos da guarda podem ajudá-los a corrigir isso ou não.
― Como é que eu ia saber que estava fazendo mau uso do meu livre-
arbítrio?
Esta é uma dúvida que me persegue há vinte e um anos.
224
― Nunca saberá. Mas não se preocupe, não vou abandoná-la,
independentemente de você errar ou não ― ele pega minha mão e a aperta
com força, complementando: ― Não vou deixar que nenhum mal aconteça a
você, Clara.
As palmas de nossas mãos se encostam e em vez da dormência das
outras vezes, sinto eletricidade percorrer os meus dedos. O calor de sua mão
faz a minha suar. Dobrando os dedos sobre os meus ele me diz que a
sensibilidade em relação à presença de um anjo tende a aumentar quanto mais
ele se aproxima de um humano. É uma tendência natural, independentemente
da forma como o anjo se manifesta. Ele me explica que a dormência que eu
sinto quando nos tocamos vai aumentar aos poucos, vai se tornar cada vez
mais perceptível, estando ele na forma que estiver. Isso pode ser perigoso,
mas ao mesmo tempo, nos aproxima muito.
Ele beija a minha mão e seus lábios macios na minha pele fria fazem os
pelos de meu braço arrepiarem.
― Clara, nós estamos muito ligados. Não só pelo fato de ser eu o seu
guardião, mas porque...
Eu beijo minha mão onde ele beijou e completo sua frase:
― Estamos numa sintonia mais íntima do que deveríamos estar.
― ...o que nos une é um sentimento muito forte.
― E este sentimento pode nos aproximar cada vez mais.
Eu entendi que quanto mais necessidade temos de estar juntos, mais Nate
consegue se aproximar de mim e eu dele. É por isso que estou aqui agora.
Desta vez, ele me chamou. Ele encosta--se a mim e eu consigo sentir sua
energia como nunca antes havia sentido, como se em volta de nós houvesse
um campo magnético.
― Você me chamou através do meu sonho? ― pergunto junto à sua
orelha de elfo.
Ele contorce o rosto, como se sentisse um mau pressentimento.
― Hoje há pouco movimento aqui no palácio e meu turno só começa
mais tarde. Claro que você não deveria estar aqui, e é por isso que precisamos
ir para outro lugar.
― Turno? ― solto uma risada. ― Desculpe...
― Eu prefiro dizer nestes termos... é mais fácil para você entender. Mas
se preferir posso falar na minha língua... ― ele pisca para mim e começa a
andar acelerado, enquanto eu o sigo distraída.
― Que língua falam os anjos?
Este corredor é tão silencioso que parece que estamos em Malkuth
sozinhos.
― Nós falamos hebraico entre nós ― responde, quase murmurando, sem
virar o rosto para mim.
225
Eu estava pensando em algo mais exótico que isso.
― Ah, tá. Mas quantos idiomas você conhece?
― Clara... você quer mesmo falar sobre isso? Agora? ― ele intercepta
minha passagem. Meu silêncio o desarma. ― Eu conheço todas as línguas.
― Bom... é melhor não falarmos mesmo sobre isso.
Nate ignora minha crise de autoestima e puxa meu braço para
continuarmos nosso passeio pelo corredor que parece infinito. Meu fôlego
começa a me trair e quando ele se apercebe, me agarra pela cintura e
começamos a voar. Não há espaço para abrir as asas, por isso apenas
flutuamos sobre o chão transparente. A paisagem no exterior enturvece com a
velocidade.
― Vamos falar de assuntos sérios, então ― digo tentando recuperar o
fôlego com a face encostada em seu peito.
― O exame ― antecipa ele, misterioso. ― Estou monitorando seu
destino.
― Está usando Jonas de novo?
― Ele é o meu instrumento para protegê-la. É o que não posso ser na
Terra.
Paramos à frente de um portão de ouro maciço. Sinto-me uma anã diante
dele.
Nate tira de seu bolso uma chave dourada e eu observo intrigada. O que
fazem anjos necessitarem de portas se eles podem atravessar todo e qualquer
material? O que fazem anjos precisarem de chaves se eles não devem ter
segredos uns para os outros?
Ok. Estou partindo de algumas premissas que suspeito serem corretas.
― Você vai se surpreender muito com Jonas.
― Por que eu sinto essa compuls... necessidade de ajudá-lo?
Enquanto gira a chave na fechadura, vira seu belo rosto para mim:
― O Jonas não tem um anjo da guarda. Se você puder fazer esse papel, o
ajudará muito.
Não tem? Antes que eu pudesse refletir sobre o que ele acabou de dizer,
o grande portão se abre. O salão que se estende diante de mim está totalmente
às escuras. Nate me oferece passagem, mas algo em mim me faz hesitar em
dar o primeiro passo.
― Onde estamos?
― Este é o meu quarto. Um mundo à parte do meu mundo.
Agora entendo o porquê da porta e da chave.
***
Duas paredes estão cobertas por uma cortina vermelha de um tecido de
textura acetinada. As outras duas estão repletas de quadros de pessoas de
226
diferentes épocas, idades e culturas. No centro, há um cavalete e uma mesa
redonda onde se misturam tubos de tinta, aquarelas, pincéis, entre outros
instrumentos de pintura. Dois instrumentos musicais, um cravo e uma harpa
são iluminados pela única fonte de luz, vinda de uma claraboia. Abaixo dela,
há um jardim com várias espécies de flores e é claro, um jasmineiro.
Como eu poderia imaginar que um dia conheceria o quarto de um anjo?
Sequer poderia imaginar que anjo tem quarto. Para quem não acreditava na
existência deles, conhecer essa intimidade é um privilégio e tanto. Estar aqui
me deixa, de certo modo, constrangida. Pois aqui não há como ignorar: Nate é
mais anjo do que em qualquer outro lugar. É aqui que ele trabalha. E daqui eu
o afasto com os meus sonhos e pensamentos vãos.
Em pensar que é neste salão que ele passa a maior parte da sua
eternidade: entre telas de pintura, o jardim, os livros e sua música. Não tem
necessidade de bem material algum, apenas o que possa servir de alimento à
sua alma.
A seu comando mental, as cortinas começam a se movimentar,
lentamente, como as cortinas num palco de teatro. Elas revelam a paisagem
deslumbrante que cerca o palácio. Olhando na direção da janela, parece que o
chão sob meus pés está suspenso.
Do jasmineiro mais exuberante que alguma vez vi, exala o meu aroma
preferido. Só mesmo aqui para florescer uma árvore como esta. Estendo o
braço para tocar uma flor. Nate intercepta minha mão no ar. Seus dedos
apoiam os meus. As pétalas não são mais suaves.
― Havia anjos se aproximando e eles já estavam bem perto. Quase
fomos surpreendidos.
― E o que aconteceria se fôssemos apanhados?
Ele olha em direção à Or. Seu perfil parece a própria face de Or. Ele
mantém-se inalterado durante alguns instantes.
― Você nunca mais me veria.
Lembro quando me disse que um mal´hak nunca pode renunciar a um
protegido, mas será que o anjo pode ser castigado e perder o seu protegido?
― Você pode deixar de ser meu anjo da guarda?
― Em duas circunstâncias e uma delas você já sabe qual é. Apenas
enquanto eu estiver aqui em cima, do dia do seu nascimento ao da sua morte,
bem como o de todos aqueles que estão sob a minha guarda, estão ligados a
mim ― ressalva ele.
Os raios de sol atravessam seus cabelos, que sob o meu ângulo, são
como fios de ouro.
― A outra circunstância é no caso de uma punição. Isso só acontece
quando há traição. Em ambos os casos é indicado ou nomeado,
respectivamente, um novo anjo. E esse novo encarregado terá que acumular
227
mais serviço! Ainda não fui nomeado para acumular funções de ninguém, mas
se acontecesse, seria bem complicado agora que você apareceu.
Faço uma expressão de ter ficado um pouco sem jeito. Ele pisca para
mim e me desarma. Desta vez não vou pedir desculpas.
― Mas isso dos protegidos me faz indagar quantas pessoas você já viu
nascer e morrer, ao longo dos séculos... milhões? ― palpito.
Ele sopra.
― Eu diria, incontáveis.
As cordas da harpa vibram ao toque dos dedos longos de Nate. Uma
melodia doce e angelical preenche o espaço. É como se nunca tivesse ouvido
tal música na vida, mas ao mesmo tempo é como se eu pressentisse as notas
que ele ainda vai tocar, como se eu já a tivesse ouvido muitas vezes.
― É linda esta música...
― Penso em você quando a toco.
― E a toca muitas vezes? ― pergunto.
Ele sorri.
― Todos os dias.
Ao fundo da sala está um cravo alemão de manuais triplos. A raridade do
instrumento me fascina e não resisto em deslizar os dedos pelo teclado. Sem
querer, acabo por imprimir a tecla de uma ré menor. Um arrepio me percorre o
corpo. A harpa silenciou e Nate está bem ao meu lado.
― Não toco o cravo há muitos anos. Está desafinado.
― Por quê?
O silêncio entre nós é embaraçoso. Percebo que me intrometi onde não
devia, para variar.
Nate atenta para os retratos que preenchem a parede por trás de mim. Por
impulso, viro-me para eles. São tantos os quadros que não sou capaz de contá-
los. As molduras são indistintas, em madeira entalhada e folheada a ouro. Mas
as detalhadas representações pictóricas dos rostos, das roupas, das paisagens
de fundo, evidenciam vidas, histórias e épocas diferentes. Meus olhos
fascinados percorrem os rostos aleatoriamente ― ou do seu eterno plano
bidimensional eles é que me seguem ― até que estacionam abruptamente
numa moldura de ouro maciço e reluzente, cravejada de minúsculas safiras
azuis. Forço a vista durante algum tempo até que os traços do rosto da mulher
se tornam mais nítidos. A imagem na pintura é simétrica a mim, mas não me
sobrepõe. Será um espelho?
Não, essa mulher não é o meu reflexo. Suas vestes são de uma
camponesa medieval.
Permaneço de costas para Nate, a mão na boca, os olhos fixos na
fisionomia daquela mulher tão parecida comigo.
― Esta é LēIIāh Abravanel. Ou, em português, Lea Abravanel.
228
― Abravanel? ― indago, assustada, voltando-me para ele.
― É uma antepassada sua.
Ouço meu próprio coração pulsando desritmado.
― Ela é... ― balbucio aturdida ― ... muito, mas muito parecida comigo.
Nate sustenta meus olhos céticos.
― Todas as pessoas nesta sala têm um significado especial para mim. Eu
as pintei para recordar suas histórias ― ele respira fundo. ― Nenhum outro
anjo costuma fazer isso, Clara. Eu sempre estive demasiadamente envolvido
com os humanos.
― Isso é... incrível ― não consigo desviar-me do retrato de Lea e
pergunto com a voz trêmula: ― Então você a conheceu?
Nate esboça um sorriso indeciso com a minha pergunta.
― O cravo medieval era dela. Século XV.
As mesmas imagens que me assombraram quando Nate me revelou sobre
a primeira vez em que quis cair, novamente vêm à tona. Os rostos sobrepostos
de duas mulheres.
― Ela não encarnou em mim não, né ?
Ele balança a cabeça e oculta um sorriso no canto dos lábios.
― Ela é sua antepassada, apenas isso.
Reparo na data sob a assinatura no canto inferior direito.
― Ela viveu em 1492?
Nate fica em silêncio. Ele parece enxergar além do retrato.
― Ela morreu em 1492. Espanha, 15 de novembro de 1492.
Penso nas pistas que Nate me deu. Neste mesmo instante, recordo toda a
conversa que tivemos e que ficou suspensa. Tudo indica que esta mulher, Lea
Abravanel, é a mulher pela qual se apaixonou há 518 anos. Claro que é! Só
pode ser! Tenho medo de lhe perguntar, mas esta poderá ser a minha única
chance.
― Nate...
Antes que eu formulasse a pergunta, ele se antecipa. Olha fundo nos
meus olhos e diz:
― Sim. É ela.
Apesar da luz de Or incidir diretamente sobre eles, seus olhos
escurecem. Aperto meus lábios procurando uma resposta que ele já disse não
ter.
― Isso é bizarro demais... Não pode ser simplesmente destino.
Coincidências não existem. Não existem...
Ele percebe em minha expressão desorientada que não vai me convencer
a ignorar esta coincidência do destino.
229
― Foi por causa do sonho de seu pai que soube da sua ascendência. Até
aquele momento, você era apenas mais uma protegida. Quando descobri quem
você é, quis me afastar de você ― ele faz uma pausa curta como se a mera
lembrança o torturasse. ― Só que não tive esta opção. Mais do que nunca,
precisei me aproximar para protegê-la. E a cada encontro fui ficando mais
convencido de que nossa ligação ultrapassa qualquer entendimento, espiritual
ou humano.
― Desculpa, Nate, mas eu tenho que entender... eu sei que Lea e eu
somos pessoas diferentes, de épocas e culturas diferentes, mas somos da
mesma linhagem familiar. Tem que ter uma explicação para você ter sido
guardião de nós duas e para esta ligação existir entre nós! ― minha expressão
renitente encontra sua expressão resistente. Um desejo quase incontido grita
dentro de mim para que ele assuma que antes de eu existir já estávamos
destinados um ao outro.
― Eu sou o guardião de muitas pessoas, Clara. E durante toda a minha
existência através dos séculos, quantas e quantas vezes fui guardião de
gerações inteiras de uma mesma linhagem ― diz ele como se resumisse tudo.
Torna-se indisfarçável a minha frustração.
― Mas nem eu sou, nem Lea foi qualquer protegida sua. Que espécie de
acaso é esse que seis séculos depois coloca justamente uma descendente de
Lea Abravanel no seu caminho?
― Primeiro, você não é uma descendente qualquer. Segundo, isso não é
obra do acaso.
― Então, você acredita que nosso encontro já estava determinado
quando você conheceu Lea? ― fico de frente para ele. ― Será que mesmo
antes de existir, eu sempre estive no seu destino, Nate?
― Não sei, Clara.
― Se você não tem resposta para isso, pelo menos a história da Lea você
vai me contar, não vai?
Ele inclina a cabeça afirmativamente.
― Você saberá de tudo. Mas não agora.
― Nate, estou ficando cansada de colecionar dúvidas ― resmungo.
Ele me abraça. Seu coração bate agitado e nestes momentos tenho a
certeza de que ele é mais humano do que anjo.
E se esta verdade me bastasse? Se com ela todas as minhas dúvidas
parecessem insignificantes, porque eu teria a resposta para a maior dúvida de
todas: poder ou não amar um anjo? Se eu não posso, por que o amo? E se está
no meu destino, por que seria errado?
― Todo anjo tem coração? ― pergunto, com um fio de esperança.
Ele me brinda com um sorriso meigo e responde depressa:
― Sim, Clara. Eu sei o que está pensando e não, não é isso que me
distingue dos demais.
230
― Desculpa pela pergunta idiota. Estou tentando entender por que você
é tão humano. ― confesso-lhe, recostando a cabeça em seu peito.
Ele põe o dedo em meu queixo trincado e levanta minha cabeça, dizendo
devagar:
― Você é que me transforma, avivah sheli.
Ficamos abraçados durante um bom tempo, amparados pela copa do
jasmineiro.
Ele só me convenceu a despedir-me quando lembrou que o exame de
papai será dentro de uma hora e que eu ainda tenho muito o que fazer para pôr
o nosso plano em prática.
231
32 - Troca
Nunca foi tão difícil acordar. Se não fosse o Sol forte incomodando, era
capaz de não sair da cama hoje. Mas o sonho acabou e estou de volta a
realidade com um desafio: trocar o exame no laboratório.
Estico o braço para virar o rádio-relógio e quando vejo as horas, dou um
salto da cama.
― Meio-dia!
Tenho menos de uma hora. Ligo para Jonas e combino com ele na porta
do laboratório, em vinte minutos. Visto qualquer roupa básica depressa e
desço para a cozinha, onde Maria prepara o almoço.
― Papai já saiu? ― pergunto afobada.
― Querida, ele saiu muito cedo hoje, às sete e meia já estava com o pé
na rua. Mas daqui a pouco deve estar chegando para almoçar ― responde ela
mexendo a panela de arroz enquanto eu seleciono uma maçã na fruteira sobre
a mesa.
Ela larga a colher na panela e coloca a mão na cintura.
― Ei, mocinha, não vai almoçar em casa?!
― Não posso, tenho que correr! ― digo, dando uma mordida na maçã e
já saindo disparada em direção à garagem.
***
Chegando ao Laboratório S. Bauer, um conjunto de três edifícios de 25
andares localizados na Ilha do Governador, consegui passar pela guarita
explicando ao segurança que eu trazia um documento importante que meu pai
havia esquecido em casa. Pedi-lhe para não ser anunciada e como o segurança
já me conhece, não precisei nem apresentar a carteira de identidade.
Encontro Jonas encostado no gradil da entrada. Ele tem a cabeça baixa e
por isso os cabelos escuros e compridos caindo-lhe sobre a testa, ocultam seu
perfil. Ele nunca deve ter ouvido falar no instrumento “pente”, mas não foi só
nisso que eu reparei. Ao sentir a minha presença, ele levanta a cabeça, mas
não vira o rosto para mim. Ele tem um perfil bonito e neste momento, nesta
posição, me faz lembrar seu pai, o Dr. Bauer. O nariz é idêntico e as
sobrancelhas também. Nem me passa pela cabeça dizer-lhe isso. Qualquer
232
semelhança com Dr. Bauer só pode ser mera coincidência, costuma dizer
Jonas desde pequenininho.
― Você está atrasada ― diz ele, já com o cartão magnético na mão.
― Engarrafamento. Vamos?
Jonas se apresenta ao outro segurança e ele nos abre o portão. Depois,
chegamos a porta do laboratório e, em vez do escaneamento biométrico, como
Jonas não é funcionário, utiliza um cartão magnético e depois digita uma
senha.
― Muito obrigada. A partir daqui, você já não pode me ajudar ― estico
a mão para me despedir.
Pela expressão pasmada, Jonas não gostou muito do gesto.
― Você está me dispensando, garota?
― Eu suponho que você tenha mais o que fazer... ― digo-lhe
cinicamente.
Ele me encara, ainda sem piscar.
― Vou levá-la até a sala do processamento dos exames. Você não
conseguirá entrar nem sair de lá sem mim ― avisa ele, me dando as costas e
entrando no laboratório a minha frente.
― Por quê?!
Minha tentativa de agarrá-lo foi mal sucedida e quase tropecei no vento.
― Porque é preciso ter o cartão de visitante para entrar e sair da sala ―
informa com o ar presunçoso, erguendo o seu cartão magnético por cima dos
ombros.
De fato, o sistema de segurança do laboratório é bastante rigoroso. Isso
me preocupa, pois se Jonas terá que passar o seu cartão para entrar e sair da
sala de exames, então sua entrada e o tempo de sua permanência ficarão
registrados no sistema. Por qualquer erro nosso, será ele o responsabilizado.
Nada pode dar errado.
Como conhece muito bem os caminhos, Jonas ignora as placas, o que me
dá alguma segurança. Apesar de estar bem acompanhada, sinto um frio na
barriga só de pensar que vim exclusivamente para trocar exames e que não
tenho nenhum exame substituto. Nate me disse que tudo está determinado
para dar certo, então, estou simplesmente seguindo meu instinto. Só espero
que seu senso premonitório esteja certo e que nada e nem ninguém interfira no
destino.
Fomos de elevador até o terceiro andar e Jonas me conduziu até a sala de
processamento dos exames onde introduz seu cartão e digita a senha mais uma
vez. A porta da sala se abre e ele me dá passagem. Neste momento, num
movimento impulsivo, agarra a minha mão e nossos olhares se encontram por
um breve instante.
― Boa sorte ― ele diz.
233
― Obrigada ― esboço um sorriso arrastado.
― Espero por você aqui fora para o caso de alguém se aproximar ― se
põe de plantão, cauteloso.
Fico alguns segundos em silêncio, admirando a atitude de Jonas.
― Vá lá, não perca mais tempo, procure o exame! ― interrompe-me ele,
aflito.
Mesmo que de algum modo influenciado por Nate, agindo com
companheirismo e solidariedade, Jonas me faz sentir a mais dissimulada das
criaturas.
Na sala há muitos corredores repletos de estantes e arquivos. São uma
infinidade de pastas para procurar. Nem sei por onde começar, muito menos
se o exame de papai já está aqui. De repente me ocorre que se eu tivesse a
senha do computador, conseguiria localizar o exame através do nome. Apesar
de desconfiar da resposta, chamo por Jonas, do lado de fora.
― Sabe a senha do computador? ― pergunto-lhe.
― Você já está querendo um pouquinho demais, Clara... ― cochicha ele,
encostado à parede do corredor.
Encosto a porta com cuidado para não bater. Aproximo-me de um dos
arquivos e reparo que os documentos estão separados por datas. Não podia ser
mais simples. Procuro a gaveta com a data de hoje e abro. Folheio os poucos
exames procurando o nome de papai com rapidez. É quando alguém bate à
porta e eu os largo na gaveta, com a mão trêmula. Respiro fundo e abro a
porta. É Jonas. Quem mais bateria à porta?
― Clara, experimente este código ― ele me entrega um papel com uma
inscrição: XWC2BU67IO943188953RRTD5V ― encaro-o surpresa. Penso,
mas não externo um palavrão e deixo as perguntas para depois.
Ao digitar o código, uma janela se abre na tela e aparecem várias pastas
organizadas por data. Clico sobre a pasta de hoje e surgem os exames, entre os
quais o de papai. Vou à gaveta, retiro novamente os papéis e verifico que o
dele não está lá. Provavelmente ainda não foi impresso. Seria perfeito demais
para ser verdade. Com um anjo da guarda como Nate, por que não seria?
O software carrega e o resultado do exame de papai aparece na tela
exatamente como eu já esperava: negativo. Consigo alterar e modificá-lo para
positivo, mas as imagens da cintilografia tomográfica perfusional cerebral não
mentem. Não há nada nelas que indique um quadro de amnésia. Então,
procuro por exames positivos nas diversas pastas. Abro tantas janelas que o
computador congela durante alguns segundos.
Começo a desesperar quando finalmente consigo encontrar um resultado
positivo. Confiro se corresponde ao quadro de amnésia retrógrada, mas não
reconheço as evidências na imagem. Na dúvida e sem tempo, copio as
imagens computadorizadas do exame de um tal Matheus Rosenberg para o
exame de papai.
234
Quando envio o documento para a impressora, alguém bate à porta. Pego
no exame adulterado de papai e junto-o aos demais na gaveta do arquivo.
Desligo o computador e só então volto a respirar normalmente.
Jonas está com o nariz grudado na porta quando a abro.
― E então, conseguiu? O que diz o exame? ― pergunta nervoso.
― Positivo, como eu imaginava ― digo sonsamente.
― E agora?
― Agora vou ter que usar de toda a minha psicologia para ajudá-lo a
superar isso ― fito-o nos olhos. ― Obrigada, Jonas... sem você, não teria
conseguido.
― Te salvei de um flagra, Clara ― desconversa com o ar pretensioso
enquanto introduz o cartão magnético para trancar a porta por trás de mim. E
continua: ― Passou por aqui uma funcionária de jaleco branco. Ela estranhou
a minha presença e a porta da sala encostada e perguntou se eu precisava de
ajuda. Fui tão convincente no disfarce que ela até me deu o número do celular.
Vou fazer de conta que acredito que ele foi mais convincente do que
charmoso nesse disfarce.
― Parece que você também me deve um agradecimento! ― exclamo na
brincadeira.
― E eu agradeceria... se ela fosse morena ― responde ele com ar
sedutor.
― Alguma coisa contra as loiras?
― As morenas são mais difíceis. E eu prefiro os desafios ― responde
ele, me encarando.
― Vamos? ― pergunto fitando o papelzinho com o código na sua mão.
Ele percebe a minha expressão intrigada e antes que eu efetivasse a
pergunta, se antecipa:
― Foi um palpite. Eu sei que é estranho, mas juro que foi pura intuição!
― disse, satisfeito. Ele nem precisava jurar e pronunciar a palavra mágica na
mesma sentença.
No estacionamento, paramos em frente à sua moto.
― Vai para a Universidade também?
Ele me ignora e coloca o capacete.
― Estudar agora? ― sua entonação me faz sentir a pessoa mais nerd à
face da terra ― Como você bem disse quando chegou, tenho outras coisas
para fazer.
― Posso saber quais?
― Não.
Ele monta na Harley e desaparece, tão depressa, que o “não” ainda
ecoava na minha cabeça. Eu pedi por aquela resposta malcriada. Jonas é como
uma das borboletas azuis do lago. Tenho que esperar que venha até mim.
235
***
Sigo todo o caminho até a universidade pensando no delito que acabei de
cometer. Delito? Eu acabo de falsificar um documento! E isso dá até cadeia.
Mais uma vez recorro a Maquiavel para me sentir menos culpada: os fins
justificam os meios. Repito essa máxima várias vezes até finalmente
estacionar o carro.
Estou atrasada para a aula, mas no caminho para o prédio, o aroma
convidativo das azaleias me faz alterar o percurso e passar pelo jardim. Há
duas voluntárias plantando algumas flores e me ofereço para ajudar. Desde
que me voluntariei, ainda não tinha colocado a mão na massa. Melhor
dizendo, na terra. Certamente me fará melhor este contato com a natureza do
que duas horas de clínica pediátrica.
Perdi a noção das horas. As voluntárias já se despediram e eu continuo
adubando a terra. Imagino se pudesse plantar aqui um jasmineiro. Ele tornaria
este jardim muito mais acolhedor. Para isso eu precisaria da autorização da
reitoria e não me parece que concordariam com uma árvore, ainda que de
pequeno porte, pois o paisagismo do jardim continua o mesmo desde 1950.
― É fácil encontrar você, Clara.
Viro-me para trás num rompante. Rodrigo já está agachado ao meu lado.
― Posso ajudar? ― pergunta ele, pegando em minha mão que segura
uma pequena pá.
Sinto meu estômago revirar.
― Não preciso de ajuda. Já terminei, só falta amassar um pouco essa
terra ― respondo com aspereza.
― Eu faço isso para você ― ele retira a pá da minha mão e alisa a terra,
delicadamente, como se tivesse feito este trabalho durante toda a sua vida.
Observo-o enquanto tiro a luva da mão ainda trêmula.
― Você leva jeito ― comento para encobrir meu nervosismo.
Ele olha para mim, sorri, e como se realmente houvesse bons
sentimentos em seu coração, revela:
― Eu cuido do jardim lá de casa. O Marcus não liga à mínima. Se não
fosse por mim, o jardim hoje seria uma selva.
Enquanto guardo o material da jardinagem na caixa, imagino se uma
pessoa capaz de fazer o que fez em minha casa, pode ter este tipo de
sensibilidade. Pode?
― A sua mãe e o seu pai não ajudam? ― pergunto instintivamente.
Ele franze a testa e larga a pá.
― Está pronto. Acompanho você até o seu carro ― ele se levanta
depressa e bate as mãos para limpá-las da terra.
― Não é preciso, Rodrigo. Ainda vou ao encontro do pessoal. Tchau!
Minha estratégia de esquiva não foi muito longe.
236
― Ei, Clara! ― chama ele, correndo para me alcançar. ― Sobre o que
aconteceu na festa da sua irmã... eu queria pedir desculpas a você.
Paro, cruzo os braços e volto-me para trás. Minha indignação não o
demove de prosseguir.
― Eu não estava bem, devo ter bebido além da conta e passei dos
limites. Não há justificativa para o que eu fiz, mas preciso do seu perdão para
conviver melhor com a minha consciência ― seu rosto lembra o de um
menino que fez uma traquinice e está sem jeito de admitir.
― Tudo bem ― foi uma resposta automática e seca. Meus lábios se
apertam para depois dizer-lhe com sinceridade: ― Não prometo esquecer o
que aconteceu, mas posso ultrapassar.
― Obrigado ― balbucia com uma réstia de insatisfação na voz, como se
esperasse que eu lhe dissesse com todas as letras que o perdoo. Só que isso
não sou capaz de dizer. Nisso, não haveria sinceridade nenhuma.
Tal como Jonas, Rodrigo também não apresenta sequelas dos golpes
violentos que levou. Não é preciso ser estudante de medicina para saber que
os hematomas não curariam naturalmente em tão pouco tempo. O que será
que os dois tomaram? Acho graça de mim mesma por me preocupar com este
tipo de detalhes quando tenho um abacaxi para descascar.
***
Encontro papai na rede da varanda com um papel nas mãos. Nem o ruído
do movimento do carro foi capaz de despertá-lo do transe. Ele está vidrado no
papel e nem dá pela minha presença. Coloco a mão no seu ombro e ele não
mexe. Um tempo depois, com os ombros encolhidos e estendendo o exame
para mim, diz:
― Você tinha razão, filha.
Pego no documento forjado que eu mesma imprimi. Para concluir o
plano com eficácia, só me falta fazer uma pergunta:
― Você conversou com alguém sobre este resultado, pai?
― Não, só mostrei ao Bauer. Ele ficou bem preocupado com a minha
situação ― responde papai com o olhar perdido.
Envergonho-me de meus pensamentos mas preciso admitir que sua
resposta é o que eu esperava; a prova do crime só foi vista por papai e pelo
diretor do laboratório, que não percebem muito de exames encefalográficos.
― Isso não vai prejudicá-lo no trabalho, vai?
Apesar de papai ser o braço direito de Dr. Bauer e um cientista muito
respeitado no meio científico brasileiro, não deixa de ser um funcionário do
Laboratório S. Bauer.
― Não, de maneira alguma. Bauer foi muito compreensivo e até me
disse para tirar uns dias de folga ― comenta ele com os olhos tristes e vazios.
237
Seria bom se aceitasse a sugestão do patrão. Quanto mais distante do
laboratório, melhor. Num impulso, ele se levanta da rede.
― Nem pensar em tirar folga agora. Preciso descobrir o que esqueci para
minha vida voltar ao normal.
― Pretende fazer mais exames? ― pergunto preocupada.
― Não, não vale a pena. Eu podia fazer uma ressonância e um
eletroencefalograma, mas, para quê? O que preciso é recuperar a memória e
para isso já ouvi histórias bem sucedidas de pessoas que fizeram hipnose.
Balanço a cabeça em desacordo. A última coisa que eu poderia imaginar
num cientista cético como meu pai é que ele pudesse recorrer à hipnose.
― Você pode não concordar e sei que acha melhor que eu não me
lembre do sequestro, mas um homem sem memória é um homem sem história,
minha filha.
― Pai, eu estarei sempre do seu lado ― digo, resignada, e lhe dou um
beijo.
Deixo papai com seus pensamentos e entro em casa com um aperto no
peito. Para me desligar um pouco da vergonha que sinto de mim mesma, vou
até a piscina, onde Olívia faz um lanche enquanto Maria prende os botões que
volta e meia caem das camisas de papai. Aproximo-me repentinamente de
minha irmã e belisco o seu lanche. Torrada com geleia de damasco. Olívia não
podia preferir morango? Seria tão mais... bem, não seria Olívia se não
gostasse de sabores mais exóticos.
― Por que será que só a Olívia tem direito a esses privilégios? ―
provoco Maria.
― Não reclama, não! Você hoje até fugiu da cozinha! Eu preparei um
feijão carioca delicioso que acabei comendo sozinha porque nem seu pai
apareceu para almoçar hoje!
Encostada à porta de vidro, observo Maria costurando e Olívia lambendo
os dedos lambusados de geleia e me sinto feliz.
238
33 - Helianthus
“Esperança é como o girassol, que à toa se vira em direção ao Sol. Mas
não é à toa: virar-se para o Sol é um ato de realização de fé.”
(Clarice Lispector)
Apenas algumas mudas e sementes. Escolho com cuid ado aquelas
que irão florescer com mais brevidade no Jardim dos Namorados. Meu
pensamento vagueia no colorido exuberante das amostras e nos seus aromas
refrescantes.
Tentei convencer a reitoria a me deixar plantar uma árvore da espécie
plumeria rubra e recebi um sonoro “não”. Diante do meu desalento, me
permitiram escolher outra que não crescesse muito. Existem inúmeras
espécies de flores de jasmim, mas tenho minhas razões para considerar a
plumeria, o nosso jasmim-manga, inigualável.
Faz mais de um mês que não vejo Nate. Lembro todos os dias das
palavras de alento de Olívia e procuro aceitar e me conformar. Ele disse que
quanto mais pensássemos um no outro, mais frequentes seriam os nossos
encontros, mas pensar mais do que já penso me parece impossível.
Será que sua ausência se deve ao nosso beijo? Ou será que foi por que eu
vi o retrato de Lea Abravanel? Ou as duas coisas... Só vi aquela pintura
porque ele permitiu, pois se quisesse evitar, não a teria exposto em lugar de
destaque, com uma moldura diferente. E só nos beijamos porque ele também
quis. Na verdade, a iniciativa foi dele. E também foi dele a iniciativa de me
afastar.
Minha insegurança começa a ser uma tortura difícil de suportar sozinha.
Se minha melhor amiga soubesse que meu pai tinha uma pesquisa científica
macabra e que por causa dela perdeu sua memória; que por causa disso
conheci um outro mundo, num Universo quadridimensional; que entre nós
habitam seres especiais e que me apaixonei pelo meu anjo da guarda... Se ela
soubesse, deixaria de ser a minha melhor amiga e se tornaria minha cúmplice.
E eu não quero isso. Não quero envolvê-la nisso, por mais que precise dela
agora, mais do que nunca.
239
Meu voluntariado no jardim da faculdade preenche a maior parte do meu
tempo livre. No restante dele, estou com Chris visitando quintas e casas de
festa. Fomos a umas dez locações e ela ainda não se decidiu por nenhuma.
Hoje ficam prontos os convites e vamos, juntamente com sua mãe,
buscá-los. Depois farei a última prova do meu vestido, cuja nada discreta cor
fúcsia foi incontestavelmente escolhida pela noiva, sob fortes e irrefutáveis
argumentos de que “é a cor da moda” e “faz ressaltar o seu tom de pele”. Não
tenho dúvidas de que vou me destacar nesta festa, justamente agora que
preferia passar despercebida.
Ontem finalmente fomos à loja buscar o vestido de noiva e a melhor
lembrança que terei de todos estes preparativos é a de Christiane fazendo a
última prova, aos prantos, ao ver refletida no espelho do atelier de costura a
imagem de sua mãe também chorando, comovida.
Reservei a melhor discoteca da cidade para sua despedida de solteira. Ela
comentou comigo que a lista de espera estava em mais de um ano e eu a fiz
crer que não conseguira a reserva só pelo prazer de lhe dar esta surpresa.
Gustavo fez questão da presença de Marcus na sua despedida, mas excluiu
Rodrigo. Christiane também me confirmou que não o convidará para a
cerimônia e que por isso sobrará um convite. Por breves instantes lembrei que
eu tenho um certo alguém para convidar e pedi a ela para ficar com o convite
extra. Como se esse certo alguém precisasse de convite. E como se eu
realmente tivesse alguma esperança.
No último mês papai tem ficado um pouco isolado por conta do seu
estado, mas sua preocupação com a memória não atrapalhou nossa pescaria
em família na semana passada. Maria cozinhou um peixe delicioso e Olívia
desta vez não teve razão de queixa, pois por incrível que pareça, nossa
pequena pescadora foi a responsável pelo feito!
Minha irmã continua muito entusiasmada com o seu telescópio e tem
feito filmagens incríveis dos planetas e das galáxias. Está ansiosa para entrar
de férias no início de dezembro, só porque terá mais tempo para se dedicar a
seus estudos astronômicos.
Ontem vi Jonas quando deixava a loja onde experimentei o meu vestido.
Não o via desde o episódio do laboratório. Chamei-o, acenando
freneticamente do outro lado da rua, mas ele não me viu ― ou me ignorou.
Tentei atravessar entre os carros e nem com a orquestra de buzinas ele virou
para trás. Se ele pretende mesmo cumprir com aquela sua decisão de que não
podemos ser amigos, acho que ainda vou ter que fazer muito barulho.
Tenho cruzado com Rodrigo pelo campus e, de vez em quando, ele me
visita no jardim. Tem respeitado meu espaço e já consigo ser mais simpática,
embora continue com os dois pés atrás com ele. Rodrigo mostrou ter duas
faces e uma é a dissimulação da outra. Enquanto não conseguir desvendar o
motivo de sua implicância com Jonas, não ficarei à vontade na sua presença. E
240
tenho a leve sensação de que quando descobrir, não conseguirei conviver com
ele em hipótese alguma.
***
O funcionário da floricultura apresenta algumas opções de flores para o
jardim. Para fazer um paisagismo mais colorido, comprei muitas revistas e
descobri que é preciso ser cautelosa na escolha. Já estou há umas duas horas
na loja e só escolhi três espécies. O pobre funcionário já me olha impaciente,
sem saber o que mais me oferecer de opção.
― E os girassóis? ― pergunta o jovem jardineiro, segurando um vasinho
com uma muda nas mãos.
Analiso o vasinho onde alguns brotos já germinaram e começo a
imaginar aquelas flores amarelas e enormes, em contraste com as roseiras, as
tulipas e os crisântemos, que já escolhi. Acho que os girassóis ofuscariam as
outras flores.
― Não, girassóis são muito chamativos. Quero gérberas, margaridinhas,
petúnias, gerânios e flores de alfazema! ― elenco todos os nomes de flores
que me vêm à cabeça, entusiasmada.
Sei que terei muitos desafios com as flores que escolhi devido ao clima
tropical, mas com um pouco de técnica e paciência conseguirei criar um
jardim bonito ainda nesta primavera. Um desafio assim é tudo o que eu
preciso.
O rapaz volta da estufa, sorridente, com os vasinhos. Enquanto ele
arruma as caixas no meu carro, aguardo dentro da loja, observando os vários
cartões colados com fita adesiva na parede por trás do balcão. Um destes
cartões me chama atenção, pois traz a fotografia de um girassol e uma
narrativa: a lenda de Clítia.
Clítia é uma ninfa das águas que se apaixonou pelo deus-Sol. Ela vivia
com o único objetivo de vê-lo passar no céu com sua luz resplandescente.
Quando o calor dos raios tocava sua pele, Clítia pensava que era o deus a lhe
enviar uma carícia e, com isso, sentia-se feliz. No entanto, seu amor não foi
correspondido porque o deus tinha outro amor e ao fim de nove dias de
espera sob o céu nebuloso, ela foi ficando cada vez mais triste. Os deuses,
piedosos da ninfa, decidiram transformá-la numa flor que vivesse girando em
torno de si mesma, buscando os raios de Sol, seguindo os passos de Helios
por toda a eternidade.
Por alguma razão a história me comoveu, como se algum sentimento em
mim tivesse se identificado com Clítia. Ela é o sinônimo do amor não
correspondido, impossível, como o que sinto por Nate, que mesmo
correspondido é igualmente proibido. Esse amor a consumiu, fazendo-a
esperar dias e noites por seu amado. Ela nunca perdeu a esperança e
241
permanecerá por toda a eternidade observando o Sol, vivendo por ele e para
ele.
Saio disparada da loja de flores, exclamando para o rapaz:
― Por favor, vou levar também algumas mudas de girassol!
***
Chego à casa de Christiane e ao abrir a porta do carro reparo em
transeuntes intrigados, talvez perguntando como couberam tantas plantas num
carro tão pequeno. Toco a campainha do seu apartamento na cobertura e sua
mãe atende à porta com uma alegre saudação.
É um apartamento duplex, com uma varanda imensa com vista para a
praia de Ipanema e piscina com tobogã. Neste apartamento nós brincamos
muitas vezes de Barbie, numa casinha de bonecas espanhola que Chris ganhou
de seu pai num Natal. É uma das minhas lembranças mais marcantes.
― Estamos animadíssimas porque a Chris finalmente se decidiu hoje de
manhã por aquela casa de festas lá do Alto da Boavista ― responde a mãe de
Chris com um sorriso aberto, pouco típico dela.
― Mesmo?! Isso é maravilhoso! ― sento no confortável sofá de couro
castanho claro.
― Filha, sua amiga chegou! ― grita como uma garça, fazendo ecoar a
notícia até o Pantanal. Agora constato de quem Chris herdou seu grito
estridente.
Christiane aparece na sala com uma montanha de revistas nos braços,
que junta à hemeroteca que conseguiu organizar numa estante da sala só sobre
casamento. Observo estática, espantada comigo mesma por ainda me
surpreender com suas loucuras.
A gráfica onde Chris encomendou os convites fica numa galeria, a duas
quadras do edifício onde mora, por isso vamos caminhando e, claro,
aproveitando para dar uma espiada na moda vanguardista de Ipanema.
Silvia e Christiane não parecem mãe e filha, mas irmãs. Silvia é alta,
magra, loira e de olhos verdes, como Chris, mas tem um porte mais altivo. Ela
veste-se de modo jovial, mas sofisticado, o que atrai olhares de muitos
admiradores. Se com Chris ao meu lado, eu já sinto com se estivesse
desfilando numa passarela, ao lado das duas juntas, só me falta o crachá
da Fashion Week.
O funcionário que atende Chris já a conhece e traz a caixinha onde estão
os convites tão esperados. Depois de analisar cada milímetro, Chris pede uma
caneta ao funcionário e escreve no verso de um convite. Depois o entrega a
mim, com seu olhar meigo:
Para a minha melhor amiga: Clara Abravanel Chevallier.
242
O casamento está marcado para às 18h30 de 21 de dezembro, na igreja
de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Ver a data e o local impressos no
papel couché torna mais real o acontecimento.
Despeço-me das duas em frente ao meu carro, no qual as flores já
suplicam ar fresco. Para a minha sorte, são a desculpa perfeita para não
acompanhá-las à sorveteria. Chris sabe que sou viciada em sorvete de
chocolate e sempre que pode, me arrasta com ela para dividir a taça... e a
culpa.
***
Chegando à Universidade, peço o auxílio de um dos seguranças para me
ajudarem a carregar as caixas com os vasinhos até a estufa. Rodrigo passa por
mim e se oferece, mas dispenso-o educadamente. Talvez, demasiadamente
educada, pois, não convencido, vai até o meu carro e começa a descarregar.
Enquanto ando para frente e para trás com os vasos, avisto Wotan,
Ahriman e Lugh, com seus olhos rasgados, concentrados uns nos outros.
Rodrigo serve de escudo e passo por eles sem que me vejam. Ou pelo menos,
acreditando nisso. Quanto menos souberem de mim, melhor, embora eles
saibam muito bem onde me encontrar nas horas livres.
― Girassóis?! ― pergunta Rodrigo entredentes.
― Sim. Por que o espanto? ― rebato quase sem fôlego, carregando as
últimas caixas.
― É uma flor... atípica aqui no Rio ― diz ele relutante com as palavras.
― Já viu as tulipas? Também são atípicas ― sigo cambaleando pelo
campus enquanto Rodrigo me observa com ar rabugento. ― Esse jardim será
bem diferente de tudo o que você já viu, Rodrigo. Bastante exótico! ― deixo
propositalmente transparecer a minha motivação convidando-o a ver um
sorriso sincero em meus lábios.
― Tenho certeza que sim ― resmunga, olhando torto para os vasinhos
com as mudas de girassol.
Não faço a menor ideia do que Rodrigo tem contra eles, mas também
pouco me importa. Se não posso ter um jasmineiro como lembrança de Nate
no Jardim dos Namorados, posso ver nos girassóis uma esperança. Eles me
trazem à memória um antigo provérbio oriental: “Volta teu rosto sempre na
direção do sol, e então, todas as sombras ficarão para trás”.
243
34 - Véspera
Os dias passam lentamente e o desânimo começa a tomar conta de mim.
Por várias vezes papai precisou entrar no meu quarto para confirmar a minha
presença na casa. E só consigo me levantar da cama porque penso no jardim e
na mudança que estou fazendo nele e nas pessoas. Aos poucos, o trabalho de
cultivo vai ganhando novos contornos, cores e voluntários. Ao verem o meu
trabalho, outros alunos se interessaram e começaram a se inscrever para me
ajudar. Agora sou responsável por um grupo de mais de vinte alunos que se
revezam na jardinagem, mesmo nas férias.
Ando tão distante que pouco vejo a minha irmã ou converso com ela.
Não mais vi as estrelas através do seu telescópio e não tenho vontade disso.
As noites são guardadas para Nate, que nunca vem. Não raras vezes me vejo
enviando e-mails e tweets para um destinatário onipresente, mas nunca online
para me responder. Não serve de consolo, mas criar alguma forma de
expectativa ajuda a passar o tempo. Cada dia que passa é uma folha a menos
no calendário que se transforma em canalizador do meu estresse emocional,
terminando sempre bem amassada e picotada na lixeira.
Amanhece um dia triste. A chuva fina deixa respingos no vidro da janela.
Olho para o relógio da cabeceira e ainda são sete horas. No calendário, sob o
dia 20/12, uma anotação minha de meses atrás: Despedida de solteira da
Chris.
Remexo-me na cama até encontrar uma posição mais confortável. No
travesseiro ao lado do meu descansa um buquê de jasmim. Esfrego os olhos e
viro-me para a jarra sobre a mesinha. É um novo buquê. Nate esteve aqui esta
noite.
Quando seguro o buquê para respirar o aroma, sinto uma picada no dedo
e imediatamente largo as flores que se espalham no chão. Levo o dedo à boca
para sugar o sangue. O sabor é doce; parece mel, não parece sangue. É quando
me apercebo de que jasmins não têm espinhos. Tiro o dedo da boca e procuro
por alguma marca superficial, mas não há nada. Desço os olhos para o chão
onde caíram as flores. Não há nada.
Pouso os pés onde as flores teriam caído e sinto a maciez das pétalas,
mesmo sem vê-las. Não sei se é algum tipo de alucinação, mas fecho os olhos
para apurar melhor a sensação. Sinto o corpo amolecer e aos poucos uma
súbita vontade de me deitar.
244
Uma luz forte quer me obrigar a abrir os olhos e uma mão gentilmente
toca meus cabelos.
― Acorde, Clara. Não tenho muito tempo.
Aquela voz...
Os olhos abrem com dificuldade. Ela está sentada na beira da minha
cama. Parece uma bailarina, num vestido de tule azul--celeste, sorrindo para
mim. Seu cabelo dourado está preso num coque, enfeitado com pequenas
margaridas e em sua mão esquerda brilha a aliança de casamento. Ela se
inclina para me beijar a cabeça.
― Eu sinto tanta saudade.
― Mãe? Co...como? Você está...? ― ergo-me depressa, sentando na
cama.
Eu me sinto com doze anos de novo, tentando agarrar-me ao tempo para
armazenar cada segundo como se fossem grãos de areia numa ampulheta.
Quanto mais eu me agarrava, menos tempo eu tinha com ela. Eu fiquei tão
carente, tão sozinha, precisando tanto dela.
― Tenho tentado me comunicar, mas você confundiu os meus sinais.
― Você está linda... está igualzinha ― levanto a mão para tocar seu
rosto. Ela se aproxima mais e me deixa passear os dedos sobre sua pele.
Tangível e quente.
― Você mudou ― ela sorri. ― É uma mulher.
― Tudo mudou, mãe ― sorrio de volta. ― Mas... você voltou? Papai
trouxe você?
― Não, querida. Isso é um sonho.
Meu sorriso se desfaz.
― Então, eu não quero acordar.
Ela pega minhas mãos e as segura entre as suas.
― Você precisa acordar. E precisa ajudar seu pai ― ela faz uma pausa
sustentando meu suspense. ― Me ajude a voltar.
Sinto algo como uma fisgada no dedo, onde o corte foi feito. Talvez seja
meu coração descompassado.
― Você quer? Você pode? ― eu procuro seus olhos azuis. São os
mesmos de Olívia. Tal como eu me lembrava.
― Seu pai vai concluir a pesquisa, Clara, para que eu tenha a minha vida
novamente. Não quero ir embora e não posso ficar presa a um corpo sem vida.
Eu balanço a cabeça. Minha mãe não pode estar aqui e presa num caixão
de gelo ao mesmo tempo. Este é o seu espectro. Mas como eu posso tocar e
senti-la?
― Os anjos... eles fizeram um acordo... há tanto que você não sabe!
245
― Eu sei, sim. Nunca abandonei você e Olívia ― ela me estende o terço.
O terço que estava guardado na gaveta. ― Vocês também nunca me
esqueceram.
― Então Olívia tem razão! Você é uma estrela...
Ela me regala um olhar cabisbaixo que não combina com sua postura de
bailarina.
― Filha, eu preciso ir. E não poderei aparecer de novo. Pense no meu
pedido, querida. Vão procurá-la em breve.
― Mas... isso é errado, mãe. Nate me disse que a trégua deve ser
respeirada. Existe um tempo. Não posso interferir.
― Há mais coisas entre o céu e a terra, minha filha... coisas que não
posso te explicar agora. Seu anjo quer protegê-la, mas está comprando uma
briga muito pesada ― ela franze a testa. ― Ele não te revelou tudo. E só
existe um caminho para o equilíbrio.
Ela fala como os anjos em Malkuth. O que ela sabe sobre a trégua ou
sobre o equilíbrio entre as forças?
― Você tem livre-arbítrio para agir conforme a sua consciência. A
minha vida está em suas mãos. Eu te amo, minha filha.
Sinto uma força me puxando, me afastando dela, mas ela permanece
imóvel. Nossos dedos entrelaçados se separam e eu vou perdendo as forças até
tombar. Pouso a cabeça no travesseiro e ela me cobre com o lençol. Aos
poucos minha visão se embaça e pouco consigo ver nessa névoa que me
obriga a adormecer dentro do meu próprio sonho.
Aquela voz...
“Brilha, brilha estrelinha. Lá no céu, pequenininha. Lá no alto, brilhas
tu. Dando luz ao céu azul. Olha só, repare bem. Já dormiu o meu neném.”
Abro os olhos. Os jasmins agora estão sob meus pés e são como
quaisquer outros, perfumados, perecíveis e aparentemente inofensivos.
***
Lavo o rosto com água gelada e fico um tempo me observando no
espelho. Toco meu reflexo e vejo-o retorcido, fragmentado, como um quadro
cubista de Picasso. Esta sou eu por dentro. Sou pedaços de mim, perdidos de
mim. Eu não sei o que fazer com este sonho que tive. É uma decisão minha e
não de Nate. Já não cabe ao meu pai. Não cabe a ninguém, a não ser a mim.
Deixo o meu quarto, passo pelo quarto de papai, depois desço as escadas
de pijamas. Procuro-o pimeiro na varanda e depois no escritório. Ouço um
ruído na cozinha e penso que é ele entrando pela porta dos fundos, mas é
Maria, que esteve regando o jardim.
― Bom dia, querida! ― sua voz é fresca como o ar puro da manhã.
― Bom dia, Maria. Você viu o meu pai? ― pergunto impaciente.
246
― Ele deve estar por aí, não o vi... ― ela não dá importância à minha
aflição.
Olho pela janela à espera de encontrá-lo no terraço e reparo na porta da
garagem aberta. Corro como se fosse tirar o pai da forca (com o perdão da
imagem).
― O que está fazendo, pai? ― estendendo-me na ponta dos pés, por trás
dele. ― Que cheiro de tinta! ― não consigo perceber o porquê de meu pai
estar debruçado em sua mesa de artífice tão compenetrado.
No perfil das asas do nariz, destaca-se o pequeno óculos de grau, que
quando criança eu costumava chamar de “óculos do Gepeto”. Ele não o usa
faz tempo. Desde que mamãe morreu, nunca mais dedicou-se a trabalhos
manuais e a bancada do fundo da garagem, que ele fazia de oficina, ficou
esquecida.
― Clara! Não esperava vê-la de pé tão cedo! ― ele gira o banco na
minha direção. ― Ah, hoje você está com uma carinha muito melhor! ―
repara ele, voltando logo para seus afazeres.
Aproveitei o breve instante em que virou-se para mim e vi que está
minuciosamente reparando o nosso velho presépio, já desbotado pelo tempo.
É um presépio português que mamãe comprou numa viagem que fizeram à
Fátima. Na época eu tinha três aninhos, portanto, este presépio tem pelo
menos dezoito anos.
― Quando abri a caixa levei um susto, filha! Como deixei isto chegar a
esse ponto? Acho que estive dormindo por muitos anos... ― lamenta-se,
segurando firmemente o pincel que colore de vida um dos pastores.
A amnésia deixou papai mais atento. Esquecer das pesquisas e
conformar-se com a ausência de mamãe, fê-lo voltar a enxergar melhor as
cores da vida. E estas cores, papai quer empregar a este presépio que esteve
presente em todos os nossos Natais.
― Já estamos no Natal e nem percebi. Os preparativos do casamento da
Chris me deixaram atrapalhada!
― Não é bem isso que está baralhando você, filhota... ― insinua e faz
uma pausa provocando suspense. ― Algum rapaz... ― arrisca ele, sem tirar os
olhos do pastorzinho.
― De novo esta conversa! Ultimamente você tem insistido muito nisso.
Que saco! ― minha irritação provoca-lhe um acesso de riso. Pelo menos
consigo diverti-lo.
― Tudo bem, já não está aqui quem falou! ― conforma-se ele, pousando
a escultura de resina sobre a bancada de madeira. ― Ficou bom? ― pergunta,
tirando os óculos.
― Sim... ― analiso os minúsculos traços do boneco. ― Está como na
primeira vez que o vi!
247
― E você lembra da primeira vez que viu este presépio, Clara? ―
pergunta ele, cético ― Você tinha apenas três aninhos!
Sim. Algumas coisas permanecem para sempre em nossa memória.
Depois que mamãe se foi, o meu entusiasmo com o Natal esmoreceu,
mas não se extinguiu. A família é o que tenho de mais importante e eu sempre
tive muita consciência disso. O presépio simboliza a família. Os outros
personagens encarregam-se de recriar o contexto bíblico e histórico, mas a
família é o âmago de tudo, da existência do ser humano.
Nestes últimos meses deixei-me invadir por sentimentos obscuros de
medo, dúvida e insegurança, que estavam me impedindo de ver que neste ano
surgiu um novo ânimo, além daquele que me estimulou em todos os anos
anteriores. A família na manjedoura é observada por um personagem que
sempre me passou despercebido e o qual, a partir de agora, admirarei de modo
mais apurado: o anjo do presépio. Ele não é apenas uma figura simbólica.
Hoje, mais do que nunca, acredito em anjos e isso mudou a minha vida.
Enquanto papai continua restaurando o nosso presépio, trago do sótão a
caixa vermelha onde guardamos a árvore de Natal, puxando-a escadas abaixo.
Olívia ouve o barulho e corre para conferir o motivo do estardalhaço.
― Vai montar a árvore? ― pergunta ela esfregando os olhos diminuídos
de sono.
― Quer me ajudar? Temos enfeites lindos do ano passado! ― lembro-
lhe, tentando entusiasmá-la.
― Você sabe que eu tenho uma preguiça... ― ela se atira no sofá como
uma marionete desengonçada.
― Não faz mal, eu sempre enfeito sozinha mesmo... ― resmungo,
incitando-a.
― Tá bom... eu vou te ajudar...
À cada bolinha espelhada que penduramos num galho da árvore, mais
entusiasmadas ficamos. Olívia e Maria ponderam o lugar de cada enfeite.
Estrategicamente, escolho um CD natalício para chamar papai.
― Então vocês se animaram? ― pergunta ele pegando numa bolinha
dourada.
― Não, pai, aqui já tem muitas douradas, põe do outro lado... ―
comanda Olívia, empurrando o braço dele.
O pisca-pisca reluz em nossos olhos. Ficamos os três, ao som de White
Christmas, contemplando o nosso feito. Eu ainda era uma criança da última
vez que enfeitamos a árvore em família.
O telefone toca e atendo ao primeiro toque.
― Alô, noiva! ― saúdo-a com animação.
― Amiga! É amanhã...! Eu tô tão nervosa... ― deixo-a desabafar
enquanto me isolo no escritório. ― Ainda por cima hoje tem a despedida e
isso me deixa ainda mais ansiosa. Parece que estou encerrando um capítulo
248
muito bom da minha vida e partindo para um mundo desconhecido, que eu
não sei se será melhor ― confessa ela.
― Chris, você está com “crise de véspera de casamento”? ― pergunto
admirada, tendo em conta que Chris sempre foi a pessoa mais determinada
que conheço.
― Não é crise... é medo, sei lá ― admite.
Preciso ser cautelosa com as palavras. Noivas em geral são criaturas
bastante sensíveis e Chris... bom, Chris é Chris. Ela é a noiva. Espero dois
segundos em silêncio na linha. Depois inspiro profundamente e digo-lhe:
― Amiga, daqui a três dias você e o Gustavo vão começar a construir
uma vida juntos. É um novo capítulo, desconhecido, mas que você há muito
ansiava. Acho que... ― olho para cima procurando lembrar durante quanto
tempo aturei os devaneios românticos de minha amiga ― ...desde os quinze
anos? Chris, você procurou tanto que encontrou o seu príncipe encantado.
Vocês nasceram um para o outro.
― Você acredita mesmo nisso, Clara? Em almas gêmeas? ― indaga, só
para averiguação. Já conheço sua curiosidade cínica.
― Acredito.
― Desde quando?! ― espanta-se ela, me obrigando a afastar o telefone
do ouvido. ― Você nunca foi romântica!
Observo o retrato de mamãe pintado por encomenda no ano do meu
nascimento. O quadro ficava na sala até a sua morte, depois papai transferiu-o
para o escritório e nunca mais o tirou da parede.
― Não faz muito tempo, andei repensando algumas teorias na minha
vida.
― Mmmm... vou querer saber mais sobre essa mudança radical de
perspectiva ― ela ameaça e pergunta, por fim: ― A que horas você passa
aqui em casa? Hoje vamos abalar esta cidade, amiga!
Ser madrinha de Christiane Cardoso Ruiz é uma tarefa cansativa. Mas
ser a sua melhor amiga é mais do que isso. É uma vocação.
249
35 - A harpa e o cravo
“A alma sensível é como harpa que ressoa a um simples sopro.”
(Ludwig van Beethoven)
Christiane ajeita sobre os cabelos cacheados, a grinalda que foi de sua
avó.
O vestido branco de zibelina e renda assenta-lhe na silhueta magra e
longilínea com toda a precisão e requinte do corte e costura. O modelo de alça
com busto em “V” favorece seu colo e a cintura alta bem marcada valoriza
suas formas. A saia volumosa, recheada de tule, e a cauda longa efeitada com
aplicações e bordados ajudam a recriar um autêntico vestido de princesa.
Ao deparar-se com a filha diante do espelho do closet, Silvia esconde-se
no banheiro para chorar. Eu já vi cena semelhante na última prova do vestido,
mas desta vez Chris mantém-se firme. Não acho que seja efeito do vestido
imponente, mas ela tem um brilho diferente, mais confiante no olhar.
Toca a campainha e, em fila, entram as primas e damas de honra da
noiva que moram nos Estados Unidos, Camila e Joana, seguidas por Jéssica e
Marcus. Antes do desentendimento entre mim e ele, Christiane já o havia
escolhido para padrinho e eu não aceitei que lhe retirasse o convite, mesmo
isto implicando na impossibilidade absoluta de convidar Jonas.
Enquanto as duas primas terminam a maquiagem e o cabelo com Hélder,
Marcus conversa com Chris. Na varanda, encontro Silvia contemplando o
mar. Nos entreolhamos em silêncio e eu percebo a sua melancolia.
― Espero que minha filha esteja fazendo a coisa certa, que ame de
verdade este rapaz e ele a ela.
― Eles se amam de verdade, tia.
― Infelizmente não basta ― retruca, declinando as pálpebras em sinal
de resignação.
― Eles têm muito em comum. Projetos, sonhos...
Ela volta os olhos opacos para mim.
― Eu e o pai da Chris também tínhamos. O Paulo foi o namorado
perfeito, mas depois que nos casamos foi uma decepção atrás da outra. Nem
pela filha ele mudou.
250
Percebo que a preocupação de Silvia é também um desabafo.
― Com ela pode ser diferente.
Abro-lhe os braços carinhosamente e ela retribui. Chris se aproxima de
nós, franzindo a testa. Depois de sondar em volta, pergunta, aflita:
― Alguém sabe do fotógrafo? Já está quase na hora, gente!
Todos na sala nos entreolhamos em silêncio. Ninguém quer admitir, mas
pelo avançar das horas tudo indica que o fotógrafo deu bolo na noiva.
― Por que tem sempre que dar alguma coisa de errado para que a noiva
se atrase? ― indaga Marcus, espirituoso.
― Nem brinca, Marquinhos... o fotógrafo vai chegar ― contesta Jéssica,
forçando otimismo.
Mesmo correndo o risco de ficar surda com os chiliques de Christiane,
ofereço-me para substituir o fotógrafo, retirando da bolsa a minha máquina
fotográfica. Assim que a noiva repara no objeto em minhas mãos, solta um
grito, que faz todos levarmos as mãos aos ouvidos.
― Não! Nem pensar. Não admito sair deste apartamento sem as minhas
fotos de noiva! São elas o que os meus filhos, netos e todas as gerações
seguintes vão ter como lembrança... não, não e não! Não saio daqui! ― Chris
bate o pé no chão. Literalmente.
― Chris, eu sei que não sou profissional, mas você terá a sua lembrança
para a posteridade. Deixe que eu tire as suas fotos, amiga, por favor... ―
insisto, com jeitinho.
― Não! Não tenho nada contra suas habilidades, amiga... ― desculpa-se
ela. Logo a seguir ela tem um ataque histérico. ― Alguém liga para aquele...
aquele... fotógrafo!
― Chris, deixe que a Clara faça o trabalho! Ela até tem jeito pra
fotografia... ― ensaia Marcus. Ela continua a andar em cículos pelo centro da
sala e ele insiste mais um pouco. ― Lembra no colégio, daquele trabalho de
biologia sobre morcegos? A gente entrou numa caverna e a Clara conseguiu
fotografá-los sem quase iluminação nenhuma. Ninguém na turma capturou tão
bem aqueles focinhos! ― empolga-se Marcus, numa patética tentativa de
persuadi-la por meio de suas memórias de infância. Com esta agora, ele podia
ter posto tudo a perder.
Todos permanecemos estáticos encarando Christiane, até que Silvia
quebra o silêncio e a tensão que paira no ar.
― Filha, sua amiga Clara generosamente se ofereceu para fotografar
você. Enquanto discutimos e Jéssica tenta contactar o fotógrafo, estamos
perdendo tempo ― seu tom se agrava. ― Suba com a sua amiga para o
terraço e tire logo estas fotos! ― ordena ela.
Diante do imperativo maternal, uma Christiane contrariada sobe as
escadas pisando com força os degraus de madeira. Ela entra no quarto,
251
seguida por mim e minha câmera digital ultra slim de doze megapixels. Foi o
que coube na minha bolsinha de seda.
― Dá para pelo menos forçar um sorrisinho? ― pergunto diante do seu
ar emburrado. ― Com essa tromba, seus filhos, netos e toda a sua árvore
genelógica futura vão achar que você foi o elefante da bruxa má do Oeste!
― Elefante? Nenhuma das bruxas de Oz tinha elefante ― contesta ela.
― Peraí... você acha que estou gorda?! Clara, esse vestido me engorda? ―
exaspera, virando-se de perfil diante do reflexo no vidro da porta da varanda.
― Estou com uma bunda enorme! Eu sabia que esse vestido tinha tule
demais!
Reviro os olhos enquanto ela procura imperfeições na sua silhueta de
barbie.
― Whatever... ― resmunga para si mesma. ― Seja solidária, Clara...
entende o meu drama. ― diz ela, fazendo beicinho. ― Um dia você também
vai passar por isso!
Torço o nariz, mas nem de longe este é um momento para contestá-la.
Por pouco não causei um terremoto utilizando uma palavra de peso como
elefante. Nestes momentos minha vocação de amiga é posta à prova: não se
pode dizer tudo o que vem à cabeça.
― Eu entendo você, mas precisamos tirar logo essas fotos. Daqui a meia
hora o carro tem que sair para a igreja!
― Então, vamos logo com essa porcaria! ― ela se rende, mas com a
postura descaída como se tivesse acabado de participar de uma maratona.
― Não deixe que isso estrague o seu dia, Chris. E não seja infantil.
Conserta essa postura e levanta esse queixo! ― ordeno, levantando seu rosto.
― Pense em seu futuro marido, no altar, ansioso para te ver.
Enquanto procuro um ângulo favorável sobre o terraço do duplex
constato, mais uma vez, que qualquer ângulo é favorável com a praia de
Ipanema como pano de fundo. Desdobro-me em todas as posições possíveis,
escorregando desajeitada sob o maldito salto agulha de vinte centímetros no
piso de cerâmica da varanda. Christiane alterna entre sorrisos e beicinhos,
enquanto conversa sobre a despedida de solteira, que foi, segundo ela, a
melhor surpresa que teve nos últimos tempos. Tive a ideia de fazer uma festa
temática e escolhi personagens de livros infantis. Chris foi de Rapunzel e eu,
de Bela Adormecida.
― Foi a melhor festa da minha vida! ― exclama ela, com uma lágrima
no canto do olho. ― O tema foi perfeito. Ainda lembro quando assistimos a
“Branca de Neve” aqui em casa... Papai trazia sempre um vídeo das suas
viagens de trabalho e eu chamava logo você para assistir comigo ― a lágrima
começa a deslizar deixando o rastro em seu rosto maquiado.
― Nem pense em chorar por isso agora! ― apago-lhe a lágrima com o
dedo. ― A melhor festa da sua vida vai acontecer daqui a pouco mais de uma
hora.
252
***
O motorista abre a porta do Chrysler Cruiser preto e Silvia ajuda a
arrumar a imensa cauda de Chris dentro do carro. Seguimos num comboio de
três carros pelo aterro do Flamengo em direção à igreja. Telefono para o
celular de papai avisando que estamos chegando para que Gustavo possa
respirar aliviado e os músicos se prepararem para a entrada da noiva, já quinze
minutos atrasada. Com Christiane, nem que por motivo alheio à sua vontade, a
tradição é sempre cumprida à risca.
As damas de honra se posicionam com os cestinhos recheados de pétalas
de rosa branca. Chris respira fundo com os olhos cerrados. Quando os abre, vê
seu pai com os braços estendidos.
― Pai, você conseguiu vir?! ― ela lhe regala um sorriso extasiado e
estrelas parecem cintilar em seus olhos verdes.
― Você está linda, minha filha. Linda! ― emociona-se ele.
Silvia sorri discretamente e cumprimenta Paulo com um frio aperto de
mão. Ele retribui com um beijo na face com o qual ela fica nitidamente
incomodada.
Marcus estende o braço para mim e nos olhamos com ternura. Neste
momento não pensarei no desentendimento que tivemos, muito menos no
confronto que aconteceu no aniversário de Olívia. Pelo curto tempo em que
estiver caminhando com ele pelo tapete vermelho, voltaremos a ser parceiros e
amigos como nos bons e velhos tempos. Jéssica olha satisfeita para nós dois e
ajuda Silvia a abrir a cauda do vestido de Christiane.
As portas se abrem com os primeiros acordes de Pachelbel´s Canon e
conforme avançamos pelo tapete vermelho, com o som da harpa cada vez
mais próximo, meu coração bate cada vez mais forte. Além dela, ao lado
direito do altar, dividindo espaço com dois violinos, uma flauta, um
violoncelo e...
― Aquilo ali é um cravo? ― pergunto a Marcus, incrédula.
― Acho que sim... mas pode ser um órgão... ― responde, coçando a
cabeça. O som do instrumento se insere na música e Marcus olha para mim
espantado: ― Definitivamente é um cravo. E de dois teclados! Puxa! Onde a
Chris foi buscar essa relíquia?
Papai me pisca um olho e Olívia acena da primeira fila. Maria cuida de
segurar as lágrimas, enquanto Silvia já não consegue contê-las e recebe o
socorro de seu ex-marido que lhe empresta o lenço. Ele cochicha qualquer
coisa ao seu ouvido, fazendo-a esboçar um sorriso encabulado.
Fiquei tão entretida ao ouvir a harpa e o cravo em harmonia no altar, que
não reparei na reação de Gustavo ao ver Christiane entrando na igreja. Para
minha sorte, Jéssica registrou esse momento com a câmera. O tempo todo da
cerimônia estive absorta em meus pensamentos. Os dois instrumentos
253
agravaram muito minha distração, a ponto de ter sido preciso Marcus me
cutucar quando chegou a minha hora de conduzir o salmo.
Enquanto os noivos pronunciam seus votos, por breves instantes, me
vejo no lugar de Christiane. A imaginação coloca Nate à minha frente. Mas
não o Nate que eu gostaria de ver, pois este Nate, com asas e vestes de anjo,
nunca poderia se casar comigo. Tento imaginá-lo humano como na primeira
vez em que o vi na praia, mas meus pensamentos se embaralham e vejo tudo
rodando em volta de mim. De repente estou segurando o braço de Marcus para
não cair.
― O que você está sentindo? ― cochicha ele ao pé do meu ouvido.
― Queda de pressão. Mas já vai passar ― esforço-me para focalizar as
pessoas.
― Você parece uma folha de papel, Clara. Já está acabando, aguenta
firme ― pede ele, pelo canto da boca, mantendo o nosso equilíbrio.
Daí em diante, foi um suplício manter-me de pé, mas segui firme e forte
ao lado de Marcus, que o tempo todo virava-se para ver se eu ainda
continuava viva ao seu lado.
À porta da igreja, a tradicional chuva de arroz saudou os recém-casados
sorridentes, que depressa entraram no carro em direção à casa de festas no
Alto da Boavista. As insistências de Paulo encontram o consentimento de
Silvia, que aceitou seguir no carro dele. Seguimos eu, papai, Olívia e Maria no
Lancia Phedra prata de papai.
Os jardins exteriores da casa de festas são inspiradores. O requinte e a
sofisticação sempre foram marcas registradas de Chris e, com estes
ingredientes, ela criou seu ambiente de conto de fadas. No entorno do átrio,
sob a marquise dos pórticos, as mesas redondas acomodam os convidados. No
centro, um espaço coberto por um imenso toldo branco sobre o pátio interno e
aberto da casa. No chão, as lajotas de cerâmica antiga formam um mosaico em
estilo romano, cuja pintura tem tons de arenito avermelhado e lápis-lazúli. O
lugar é muito acolhedor mas com um quê de brega ― e o que não é nos conto
de fadas? ― com uma fonte no meio do átrio, que deverá estar reservado para
funcionar a pista de dança. A fonte tem a escultura de um anjo com o arco
apontado para a direita. O anjo é uma réplica em bronze do conhecido Eros
da Picadilly Circus, em Londres. É claro, a estátua daqui tem um tamanho
bastante reduzido e em termos de beleza não se comparara à qualidade
artística da original.
Cada mesa recebeu o nome de uma flor. Depois da escultura do anjo não
me surpreendo ao descobrir que ficarei na mesa de nome Girassol, com os
amigos mais próximos de Chris. De repente me pego sentindo falta de Jonas.
Ele seria uma boa companhia para contrapor o clima de romance entre Marcus
e Jéssica e as pretensiosas conversas cruzadas entre dois amigos do curso de
inglês da Chris e suas primas, Camila e Joana. Ela só não me alertou que esses
amigos e as “gringas” estão solteiros.
254
O garçom se aproxima para acender as velinhas que flutuam no vaso
decorativo. Peço-lhe, em tom de brincadeira, que não o faça pois já sinto-me
uma vela, o que já é suficiente na mesa. Infelizmente, Camila ― ou será a
Joana? Elas são tão parecidas... ― insiste em vê-las piscando na água e, na
votação, fui massacrada por 6x1.
― Camila, how is it to live in the States? ― pergunta um dos rapazes,
para se exibir.
Com esta pérola eu levanto-me da mesa Girassol e corro para a mesa
Camélia que fica do lado oposto do salão, sentando na cadeira vaga de Maria
que foi ao banheiro.
― Eu sabia ― sibila papai mirando Olívia. ― Apostei com sua irmã que
você não aguentaria ficar naquela mesa muito tempo.
Olívia sorri para mim e diz:
― Mana, sabe que hoje acontecerá um eclipse lunar?
Limito-me a olhar para ela com um sorriso abobalhado. Com os últimos
acontecimentos, os eclipses se transformaram em mais do que meros
fenômenos astronômicos para mim.
― Mas não vamos perder! Deixei o telescópio filmando em casa! Há um
alinhamento bonito do Sol em Sagitarius ― completa ela, satisfeita.
O apresentador cafona ― para isso, basta-lhe o terno branco com uma
rosa azul na lapela ― anuncia a entrada dos noivos. Os convidados se
levantam ao som de Haven´t Met you Yet de Michael Bublé, e Christiane e
Gustavo, extasiados, adentram no átrio e são recebidos com uma salva de
palmas. Dá-se início à valsa no centro da pista. Aos noivos e à fonte de Eros,
juntam-se seus pais e padrinhos.
Marcus está parado de pé, plantado ao meu lado e com a mão estendida.
― Temos mesmo que fazer isso? ― pergunto, levantando-me devagar.
― Faz parte do protocolo ― refere ele, também torcendo o nariz.
Somos uma catástrofe, não conseguimos acertar um passo sequer.
Quando dou por mim, meu par já está com Jéssica e eu nos braços de papai,
rodopiando no salão.
― Você é um pé de valsa, pai...
― Eu e sua mãe saíamos de vez em quando para jantares dançantes.
Precisei aprender!
― Até parece que estou dançando bem, só de acompanhá--lo! ― nem
assim, para ser sincera.
― Você está perfeita. Aquele seu par, o Marcus, é que é pé de chumbo,
coitado ― diz malicioso. ― Aliás, o que eu lhe disse mesmo sobre ficar longe
dele?
Erro o passo e escorrego o salto, inclinando o sapato no meu pé. Disfarço
a dor, mas não a irritação.
255
― Pai, por favor...hoje não!
Ele assente meio contrariado até que consigo entretê-lo com meus
tropeços nada providenciais, mas extremamente desconcertantes. Olívia e
Maria juntam-se à nós, divertindo-se com a diferença de altura entre elas,
enquanto o casal da noite divide a pista conosco, fazendo o seu show à parte.
Nunca vi Gustavo tão feliz, nem quando ganhou a medalha de ouro
numa importante competição de Surfe há dois anos. E eu, que pensava que
talvez não houvesse sentimento maior do que vencer os próprios limites! Já a
alegria de Christiane, essa eu reconheço. É a mesma de quando Gustavo
pediu-a em casamento. Naquele dia estávamos num quiosque de Ipanema e
todos achamos Gustavo muito esquisito. Ele estava nervoso, principalmente
quando Christiane dispensou a carne do coco. Ela não queria sujar as mãos.
Mas, depois da imposição aflitiva do rapaz, um facão maior do que uma
espada de samurai acabou por dividir o coco ao meio. Havia mais do que fruto
naquele coco sujo onde aquela pedrinha reluzia, mergulhada no que restava de
água. Ela não teve nojo de colocar o solitário no dedo e, depois, abriu este
sorriso. Este mesmo sorriso, que ela tem agora no rosto.
Minhas lembranças me distraíram a ponto de não perceber que a valsa já
havia terminado e que fora emendada uma nova música, lenta e romântica,
como um recurso para dispersar os casais da pista. Foi aquela voz grave de
locutor de show de calouros que me despertou.
― Solicitamos aos convidados que regressem aos seus lugares. Serão
servidos os canapés e as entradas enquanto os noivos fazem os cumprimentos.
No exato instante em que papai se volta para regressar à mesa, um vulto
rouba a minha atenção. Estreito os olhos e papai, ignorando a minha
impavidez, continua a me conduzir pelo braço. E como uma miragem, distante
mas ao meu alcace, numa brecha entre as pessoas que regressam aos seus
lugares, consigo encontrá--los. Aqueles olhos verdes.
― Não pode ser...
― O quê, filha? Por que está fazendo força para ficar na pista?
Solto minha mão da de papai e paro onde estou, no meio do salão, ao
lado da estátua do cupido.
― Clara?! ― a entonação confusa de papai é a última coisa que ouço.
Não há som. Estou concentrada nas duas esmeraldas que me fitam
intensamente do outro lado. Sou arrastada pelo braço para fora da pista,
enquanto meus olhos o seguem, os dele me chamam e nessa perseguição
ansiosa, de repente, o perco de vista. Ele desapareceu por trás da estrutura do
palco.
― O que há com você? Parece hipnotizada! Temos que nos sentar! ―
irrita-se papai.
Ele se coloca à minha frente interceptando meu campo de visão.
― Desculpa, pai. Achei que... eu estava distraída.
256
Enquanto os convidados começam a saborear os petiscos de entrada,
continuo dispersa e isso intriga meu pai, que se remexe na cadeira olhando em
volta.
― Está procurando alguém? ― indaga ele. ― É o Jonas? ― arqueia as
sobrancelhas.
― Não, pai! ― respondo incomodada. ― Vou ficar um pouco na outra
mesa, tudo bem?
A mesa Girassol, apesar de todos os seus inconvenientes, fica do lado
direito e tem uma visão geral do ambiente. Ainda durante alguns minutos
papai persistiu em me vigiar, mas desistiu quando Paulo se aproximou
iniciando uma conversa.
Preciso confirmar se tive uma alucinação ou se o que vi era real. Já há
algum tempo não sei distinguir o sonho da realidade. Mas, como sentada não
tenho a mínima chance de descobrir, sob os olhares admirados de Jéssica e
Marcus, deixo o salão em direção ao jardim.
Passa das sete horas e em alguns minutos o último sol desta primavera
estará se pondo. Seguindo o aroma perfumado do entardecer, atravesso o
gramado até a pequena cascata nos fundos da casa de festas. A música já se
ouve longínqua e o coaxar das rãs, cada vez mais alto. Agacho-me à beira do
pequeno lago para procurá-las quando me apercebo de um reflexo turvo na
superfície da água. A imagem se move ao ritmo da corrente, confundindo-se
com a minha. Quando me viro ele tem a mão estendida.
― O que está fazendo aqui? Você não foi convidado.
Recuso sua mão e levanto-me sozinha, meio desajeitada por causa do
vestido.
― Eu não preciso de convite.
― Claro que não. Não posso me esquecer que a sua missão é bisbilhotar
a vida alheia.
― Por que está tão arredia, Clara? Nem agradeceu as flores que deixei
em sua cama.
Olho em torno de mim, mas aqui está escuro e não consigo ver nenhuma
movimentação, além dos vultos no salão iluminado.
― É melhor você ir embora.
― Eu vim buscar você. Vou levá-la a um lugar.
― Eu não vou a lugar nenhum com você.
― Não estou te reconhecendo ― ele encolhe os olhos. ― Você é assim
tão insensível, Clara?
― Não adianta insistir ― digo pausadamente, maquiando meu
nervosismo.
― Se Olívia vier, você vem? Eu sei que vocês são quase inseparáveis.
― Não... não meta a minha irmã nisso!
257
― Acho que ela é mais esperta que você.
― Vai embora! ― exaspero. ― Ou melhor, vai pro inferno!
Ele tem um sorriso cínico no canto dos lábios e uma expressão insana no
olhar.
― Estarei lá fora a sua espera. Você tem toda a festa para refletir se quer
que Olívia venha conosco ― ele faz intenção de ir embora e volta atrás. ―
Ah, sim! Acho bom que guarde o nosso segredo. Se alguém da legião souber,
Clara... ― ele limpa a garganta. ― Será triste. Tenho certeza que nossa colega
Christiane prefere a coluna social ao... obituário do jornal.
Antes que eu pudesse responder, Wotan me dá as costas e desaparece por
trás da fonte. Deixo que meus joelhos se dobrem e ajoelho diante do pequeno
lago. No reflexo turvo, vejo a imagem de minha mãe sobreposta à minha. Ela
nunca procuraria os renegados para chegar até mim. Procuraria Nate ou
qualquer outro anjo do bem. Ela nunca arriscaria a minha vida, de minha irmã,
de meu pai, de ninguém. Ela insinuou que Nate me esconde fatos. O que pode
existir que Nate ainda não tenha me contado? Tudo o que ele me disse até
hoje faz todo sentido. O equilíbrio das forças, ameaçado pela experiência de
meu pai. A ganância dos renegados que não têm limites. Eu mesma presenciei
a trégua. Minha mãe disse que alguém viria me buscar e que eu devia aceitar a
sua ajuda. Mas, um nephilim vigilante? Eu nunca me dobraria a Wotan. Ele
representa o mal. E conseguiu me ameaçar de todas as formas. Por que não
deixei Nate invadir a minha memória? Agora não posso lhe contar nada. E eu
sei que ele está aqui em algum lugar. Talvez fosse melhor partir agora, antes
que me encontre.
Preparo-me para levantar quando sinto uma energia forte se
aproximando por trás de mim. Está muito intensa. É tarde demais. Precisarei
mentir e omitir-lhe tanto, que não sei se serei capaz.
Ao me levantar, ficamos próximos e minha mão toca a dele. Ele se afasta
num impulso, parecendo desconcertado. Neste momento, então, reparo
no smoking. Aliado ao porte altivo e ao olhar distante, lembra um personagem
do século passado, perdido no tempo e no espaço.
― Como conseguiu?
Ele tem um sorriso maroto. Eu falseio um sorriso em troca.
― Achei um convite no seu quarto.
― Não perguntei como conseguiu entrar aqui. Como conseguiu estar
entre nós como humano? Você evoluiu?
― Não importa. Estou aqui.
Não insisto no assunto, mas fujo de seus olhos tentando evitar que ele
invada meus pensamentos.
― Então, você furtou um convite... que coisa feia!
Provoco-lhe um riso baixinho, mas ele fica inexpressivo de repente.
258
― O que foi? ― mal consigo disfarçar o tremor na voz. Olho em volta
procurando por Wotan. Nos últimos dois minutos devo ter feito isso mais
vezes do que me lembro de contar e ele notou.
― Você está bem?
Encaro-o com ar de estranhamento.
― Claro! Mas eu não esperava que pudesse aparecer e... agora que está
aqui...
― Clara, aconteceu alguma coisa? Alguém entrou em seu quarto de
novo? Estão ameaçando você?
Seus olhos lampejam. Verifico se meus olhos estavam devidamente
desligados dos olhos dele. Ele não pode ter lido meus pensamentos. Com
muita habilidade mostro-me distraída e não fixo meu olhar no dele.
― Não... nunca mais soube dos pagões.
― Eu não falei em pagões... foram eles que entraram em seu quarto?
― Ah, sei lá, Nate! Eles são meus únicos espiões, não é? Eu suponho
que tenham sido eles ― passo a mão na testa e ela está molhada de suor. ―
Mas isso não importa. Com você sei que estou segura ― ele não parece
convencido. ― Tudo bem. Estou nervosa, sim. Mas é porque está aqui
comigo, em carne e osso e... e minha irmã conhece você!
― Ela não vai me reconhecer com estas roupas ― assegura.
― Eu acho que vai... ― analiso a sua aparência de nobre do século XIX.
Despercebido é que ele não vai passar. ― Ao menos podia ter escolhido algo
mais moderno e discreto pra vestir... ― ele ignora e eu pergunto: ― Como
vou explicar você?
― Use a sua criatividade. Você tem a imaginação fértil.
A Lua está parcialmente encoberta. Não é a primeira e não será a última
vez em que me distraio com as sombras e as luzes do seu rosto.
― Muito bem, então. Vou dizer que é meu amigo da natação!
― Mas você não pratica natação desde os dezesseis anos!
― Direi que nos encontramos por acaso um dia desses ― pisco-lhe,
lembrando que um encontro ao acaso é algo bastante relativo ―, e que eu
tinha um convite sobrando. Essa parte não é mentira!
É complicado inventar quando a sua vida sempre foi um livro aberto e
ultimamente tem sido uma sucessão de acontecimentos que não se encaixam.
Ele me encara com ar resignado. Provavelmente sabe que não vale a pena
protestar, então sorri, revelando duas covinhas em seu rosto. A cada novo
traço que descubro nele, mais intensas ficam as minhas sensações. Neste
momento meu coração, que já está um verdadeiro bate-estacas, é ainda mais
estimulado por essas covinhas.
259
― Definitivamente, toda a minha existência secular não foi tempo
suficiente para entender o ser humano ― refere ele, inconformado. ― Vocês
são muito criativos!
Nate me desperta de uma expressão vidrada quando segura novamente
em minha mão. Ele a envolve delicadamente com seus dedos macios e posso
sentir a energia fluindo de seu corpo para o meu. À medida que nos
aproximamos do burburinho da festa, a sensação de frio na barriga aumenta. A
poucos metros do átrio, Nate praticamente me leva arrastada pelo gramado.
― Não é perigoso o que estamos fazendo? E se algum dos guardiões dos
convidados te vir? E se... houver nephilins entre nós?
Ele para onde estamos, ainda a alguns metros do salão, e aproveito para
soltar sua mão. Ele estranha minha preocupação. Estou dando muita bandeira.
― Eles não podem me ver na Terra. Aos olhos dos anjos e nephilins,
quando estamos materializados, somos invisíveis ― refere ele com uma ruga
entre os olhos.
― Complexo isso... ― e aliviante também. É bom saber que não existe a
menor possibilidade de Nate ser visto por Wotan. Se Wotan me visse com
Nate, nem quero pensar no estrago que ele faria.
― Não, na realidade é bem simples. Só há um anjo que sabe que estou
aqui: Haziel. Porque ele me ajudou no processo de materialização ― explica.
― Mesmo assim, acho que isso é muito arriscado...
― Haziel é meu melhor amigo. Vamos aproveitar a noite ― Nate deixa
um vestígio de sorriso no ar e completa: ― Esta é a primeira vez em que
posso agir e me sentir como um humano entre humanos ― Ele faz uma pausa
para me observar. O verde dos seus olhos se intensifica e eu lamento não
poder desfrutar deles tanto quanto gostaria. ― Clara Abravanel Chevallier, me
concede a honra de ser o seu par esta noite? ― ele me estende a mão...
E derruba todas as minhas defesas. Justamente hoje, quando nunca me
senti tão indefesa.
Esta pode ser a última vez em que estou com ele. Esta pode ser a minha
última noite. Não sei para onde Wotan vai me levar ou o que quer exatamente
que eu faça. Mas mesmo que eu não morra, o que quer que me obrigue a
fazer, certamente afastará Nate de mim para sempre.
Respiro fundo e imagino que esta noite posso ser qualquer donzela de
um romance clássico; Julieta, Eurídice, Isolda, Iracema, Odette, cujas vidas
valeram pelo amor que sentiram. Esta noite eu vou em busca do lugar comum
de qualquer conto trágico de amor. Vou viver a noite mais feliz da minha vida
sem pensar no amanhã.
Seguro a sua mão estendida como se me resgatasse do início da história e
deixo que ele me conduza até um final feliz.
260
Epílogo - Eclipse
“Nunca estive tão segura e ao mesmo tempo nunca me senti tão
insegura. Para que eu alcance o inatingível e possa provar aos meus sentidos
que amar o sobrenatural é natural, Nate precisa amanhecer um lado para que
o outro anoiteça. Eu preciso ver o homem que se eclipsa na sombra do anjo.”
(Clara Abravanel Chevallier)
Cada pessoa naquele salão tem um anjo da guarda, só que nenhuma tem
a seu lado um que veste smoking. Mesmo que ninguém ali conheça Nate, o
fato é que um anjo está prestes a cruzar o átrio de mãos dadas comigo. Como
é possível agir com naturalidade numa situação assim? Embora eu seja a única
que saiba a sua extraordinária identidade ― o que supostamente deveria me
colocar numa posição privilegiada ― o fato de estar segurando a sua mão ―
de carne e osso ― me faz querer acreditar que o que está acontecendo agora
não é realidade, mas um sonho. Quem está a meu lado, afinal: o homem ou o
anjo?
Nunca estive tão perto da realidade e do sonho como agora. Assumir
Nate em minha vida, diante da minha família e dos meus amigos, é assumir
também o anjo. Posso até inventar que o conheci nas aulas de natação, mas
com essa indisfarçável expressão de apaixonada não conseguirei convencer
ninguém de que Nate é apenas um amigo. Minha sorte é que eu não quero
convencer ninguém.
***
O salão se estende diante de mim, agora ainda mais ruidoso e iluminado.
Enquanto os recém-casados cumprimentam os convidados, tentamos passar
despercebidos pela pista em direção à mesa onde papai e Olívia conversam
com um casal amigo da família de Chris. Passamos pela mesa de Jéssica e
Marcus. Por cima do ombro, vejo que ela ergue uma risonha expressão de
curiososidade sobre nós e que Marcus tem uma expressão assombrada no
rosto, parecendo mais assustado do que propriamente surpreso.
Ao nos avistar, papai tem no rosto a expressão de quem viu
fantasma. Talvez, a expressão de quem viu um anjo? Fato é que não lhe dou
chance para processar qualquer informação e digo rapidamente:
― Pai, este é Nate.
Ele abaixa a vista para nossas mãos unidas.
― Muito prazer, Dr. Chevallier ― cumprimenta Nate com a mão
estendida.
Papai devolve o gesto em slow motion. Detesto quando ele faz isso.
Significa: “Desconfio de você.”.
― Eu e Nate nos conhecemos há cinco anos nas aulas de natação.
261
― Era um suplício fazer você sair de casa para ir àquelas aulas... você
detestava natação! ― comenta papai sentindo-se vitorioso depois de me
constranger.
A investigação do Dr. Chevallier prossegue agora com um olhar mais
analítico sobre Nate. Avalia o seu físico, retendo-se na musculatura peitoral e
nos ombros largos que o smoking evidencia.
― Ao contrário de Clara, você deve ser um bom nadador. Participa de
competições?
― Pai!
Papai desiste do interrogatório, mas continua compenetradíssimo em
nossas mãos, mesmo depois que nos sentamos. De modo bem menos
asfixiante mas não menos atento, Olívia observa Nate com curiosidade e
fascínio. Noto que ela estremece de repente. Apesar dos sinais que possa ter
identificado nele, não parece tê-lo reconhecido ― do contrário, não
conseguiria esconder.
― Onde está Maria? ― pergunto voltando-me para trás.
― Maria está na mesa de Chris conversando com a D. Adelaide ―
responde papai.
À mesa de Silvia e Paulo está a governanta D. Adelaide monopolizando
Maria. Ela nos acena frustrada por não conseguir se livrar da comadre. Logo a
seguir, avisto Christiane e Gustavo que vêm em nossa direção e acabam por
esbarrar num casal. Com esse episódio, Chris acaba por não reparar na
presença de Nate e espicha-se na direção de papai, que se levanta e a
cumprimenta efusivamente. Gustavo é obrigado a soltar a mão da esposa,
contrariadamente rebocado por pernas e braços pelos colegas de trabalho, que
o levantam no ar cantando refrões que não vale a pena traduzir.
― Muito obrigada por terem vindo... é tão bom ter vocês aqui! ―
exclama Chris com a voz emocionada.
― Parabéns! ― diz papai entusiasmado.
― Você parece uma princesa! ― exclama Olívia.
― Ain, adorei esse elogio, fofinha! ― diz ela abraçando minha irmã.
Quando Chris finalmente se vira para mim e Nate, seus olhos congelam.
Antes que ela pudesse se recompor, inclino-me e digo ao seu ouvido:
― Usei aquele convite extra, lembra?
Ela acena levemente com a cabeça e com um meio sorriso se aproxima
de Nate. É a primeira vez que vejo Christiane sem reação, pois ela sempre
sabe o que dizer em situações inesperadas. Nate lhe sorri e é quando ela fica
paralisada. Um abraço caloroso a desperta.
― Muitas felicidades.
Os cabelos não saíram do lugar, mas a expressão deve ser semelhante a
de alguém que leva um choque de 220V.
262
― Obrigada...? Desculpa, não sei o seu nome...
― Nate.
― Obrigada por ter vindo, Nate. Divirta-se! ― ela se inclina para ele e
diz alto o suficiente para que eu consiga ouvir: ― E divirta-a...
Ela dá um sorriso prazenteiro para o restante e me puxa pela saia. Então
se inclina para mim e susurra:
― Eu sei que uma mulher casada não deve fazer esse tipo de comentário,
mas estou arrepiada.
― Nate é muito carismático, Chris ― digo-lhe convicta.
Ela aperta os lábios pensativa e, aparentemente convencida. É quando
Gustavo nos interrompe para me dar um abraço. Ele tem a gravata tapando o
olho direito e um cone de trânsito de espuma na cabeça.
― Esse é o dia mais feliz da minha vida, Clara.
― Vocês formam o par perfeito.
― Farei de Chris a mulher mais feliz do mundo ― ele promete.
Ele me sorri antes de colocar o cone desengonçado na minha cabeça, e os
dois continuam a peregrinação cumprimentando os convidados. Enquanto
arrumo o estrago que o discreto chapéu fez no meu cabelo, papai continua
fixado em Nate. Para não ter que inventar mais explicações, passo o cone para
a cabeça de Olívia, peço licença a todos e, sob protestos, arrasto Nate para a
outra mesa. Jess nos observa, curiosa, procurando alguma associação entre
nós. Já Marcus parece que procura algo além da relação. Ele parece procurar o
próprio Nate.
― Nate, esses são meus amigos, Marcus e Jess.
Nate franze a testa ao trocar olhares com Marcus. Foi muito breve, mas o
suficiente para que ele retraísse a mão que estava preparando para estender-
lhe.
― Muito prazer, Marcus ― ele pousa a mão sobre o ombro de Marcus,
que contrai ainda mais a expressão tensa e improvisa um cumprimento com a
cabeça.
Estou tão intrigada com a reação dos dois quanto Marcus está confuso,
tentando olhar para Nate.
― Não tenha medo ― diz Nate ao aproximar-se de Jess.
Ela fica desconcertada.
“Não tenha medo?” Ele não poderia simplesmente lhe ter dito “Oi, tudo
bem?”
― Pois, bem. Você é boa nisso. Vou lhe revelar a minha verdadeira
identidade.
Girei o pescoço tão depressa que o gesto poderia ter me rendido um
torcicolo.
― Nate... ― balbucio.
263
Ele me ignora, se inclina para Jess, e sussurra pausadamente:
― Sou um infiltrado do governo. Pertenço à ABIN.
Jéssica olha para mim e depois para Nate com a expressão desvairada.
― Ninguém precisa saber que você entrou aqui de penetra ― sussurra
ela.
Dou um tapinha na testa. Não sei se fico aliviada com o despiste ― ou
melhor, com a tolice ― ou se fico ainda mais preocupada. Experiências
anteriores indicam que eu devo confiar em Nate.
― Obrigado pela colaboração, senhorita ― diz-lhe ele.
― Ele não está aqui de penetra, Jess! Eu consegui um convite para ele
― justifico depressa.
Marcus afrouxa a gravata. Ele transpira muito e esfrega a testa
pontilhada de suor com o guardanapo, enquanto Jéssica aceita o cumprimento
de Nate. Ele beija-lhe o dorso da mão que ela recolhe depressa, abrindo-a e
fechando-a sucessivas vezes. Ao passar a mão pelo cabelo, alguns fios grudam
em seus dedos. A estranha sensação a faz sorrir, mas deixa Marcus ainda mais
intrigado. Quando Nate se prepara para sentar à mesa, puxo seu braço.
― Temos que colocar o papo em dia, não é Nate? ― pergunto
entredentes, induzindo sua resposta afirmativa.
― Mas vão servir o jantar! ― manifesta-se Jess numa exclamação
esgazeada. ― Puxa, é tão interessante isso de espionagem... eu quero saber
tudo! Quer dizer, tudo o que eu puder saber... ― complementa ela se sentindo
a Oprah.
― Cá pra mim, Jess, a única espiã aqui é você. ― ironizo para cortar seu
entusiasmo. Consigo extrair uma risada discreta de Nate enquanto Jess
encolhe os lábios em desapontamento.
― Ah, fala sério! Ele me enganou direitinho! ― ela acha graça de si
mesma e vira-se para Marcus, que conserva a fisionomia petrificada, nem
sequer pisca. Acompanho o movimento de seus olhos, irrequietos e indecisos
entre mim e Nate. Então, ela dá um tapinha no ombro dele: ― Fala alguma
coisa, Marquinhos! Tá com cara de abobalhado. Eu, hein, parece que viu
fantasma! ― reclama ela.
― É que eu estou meio... eu acho que bebi alguma coisa que não me caiu
bem ― ele se desprende da mão da namorada e usa mais uma vez o
guardanapo para enxugar a testa.
Nate sonda Marcus com o ar pensativo, como que o analisando com uma
visão de Raio-X. Ele não disfarça a ansiedade quando não consegue ler os
pensamentos. E esta é claramente uma tarefa inglória, pois Marcus não é
capaz de fixar os olhos em Nate nem por um segundo que seja.
― Não adianta fazer cena. Já conheço as suas manhas! Você não gosta
de festa de casamento, mas é muito cedo ainda e eu não vou pra casa antes da
Chris jogar o buquê!
264
Ponho a mão na testa de Marcus e percebo que ele está gelado.
― Não é manha dele, Jess. Ele realmente não está bem.
Ele se esquiva.
― Não se preocupem comigo. Misturei umas bebidas e deve ter sido
isso... Se me dão licença...
Marcus foi tão rápido em escapulir das nossas vistas, que de repente Jess
está toda atrapalhada à nossa frente, sem saber como agir.
― Ai, tenho que ir atrás dele, gente. Desculpem! ― ela dispara pela
pista e quase escorrega com o salto agulha no chão encerado.
Arrasto Nate pela manga do paletó até um recanto mais reservado do
salão. Ele cede facilmente pois sabe que não pode escapar de me dar algumas
explicações.
― Você enlouqueceu? Inventar que é da ABIN justamente para a Jess?!
Pessoas que nem conheço se aproximam e sorriem para nós. Parece que
todos no salão querem orbitar em torno de Nate. E como se ele ainda não
tivesse me surpreendido o bastante, decide tirar um copo de guaraná da
bandeja de um garçom que passa por nós.
― Por favor, Clara... nunca pensei que ela fosse acreditar! ― ele dá o
primeiro gole no refrigerante. Não demora a fazer uma careta.
― Como não pensou?! Você não prevê tudo?
― Nem sempre. Há pessoas quase imprevisíveis... ― seu ar de riso por
pouco não me contagia. ― E além disso, eu tinha que inventar alguma coisa
que a distraísse porque ela estava realmente com medo de mim ― ele dá mais
um gole no guaraná. ― Hum... isso é bastante doce, mas até que é bom...
― Talvez você devesse experimentar o diet da próxima vez ― ainda
refletindo sobre o que acabou de dizer, pergunto: ― Como Jess pôde sentir
medo de você?!
― Você já está acostumada à minha presença. Para um ser humano que
nunca viu ou sentiu um anjo, ver um homem e sentir a presença de um anjo
gera uma manifestação inconsciente confusa, um choque entre o que a alma
sente e o que o corpo vê.
― Mas você não é um anjo! Eu não vejo anjo nenhum aqui ao meu
lado...! ― exclamo, inclinando-me sugestivamente para suas costas.
Ele ensaia um sorriso torto.
― E o Marcus? Ele não pareceu nem um pouco aliviado na sua
presença! Pelo contrário, foi ficando cada vez mais nervoso. Porque ele reagiu
daquele jeito?
― Ele é... diferente, Clara ― ele procura palavras como se precisasse se
corrigir. Raramente vi Nate hesitante com as palavras. ― As pessoas... são
diferentes.
***
265
Sigo Nate até as mesas encostadas ao lado esquerdo do salão. Os
elegantes arranjos de flores dividem espaço com os quitutes que enfeitam as
bandejas e um cardápio variado de massas, carnes e peixes servidos nos
rechauds de prata. Ele lança olhares indecisos pelos rechauds e estaciona os
olhos no bobó de camarão, aproximando o nariz para sentir o aroma no vapor.
Eu ainda estou muito intrigada com as reações dos meus amigos ao primeiro
contato com Nate para me divertir com ele, que parece deslumbrado,
descobrindo um mundo novo na gastronomia.
― Chris disse que sentiu um arrepio ao te ver...
― Isso é normal. Carrego ainda mais energia para poder me manifestar
desse modo. As pessoas mais sensíveis percebem e nem precisam tocar para
sentir ― explica.
Sua energia percorre o meu corpo e passo as mãos pelos braços, aflita.
― Toda vez que sentir um arrepio assim, é um anjo materializado que
passou por você ― diz ele com um sorriso oculto na esquina dos lábios.
Não sou o patinho da Jéssica, mas Nate pode ser bastante convincente.
Ou melhor, ele sempre é. Eu sei que não pode neutralizar a energia porque é
graças a ela que consegue se materializar.
― Os arrepios são só uma questão de hábito. É até agradável! ―
convenço-me.
― Só não queira estar de mãos dadas comigo durante a materialização.
Não sei bem o que quis dizer com isso, mas me vem à cabeça algo como
um efeito pavio. Pisco os olhos para dissipar a ideia. De fato, em pequenas
quantidades, a energia de Nate é relaxante. É como se ele absorvesse todo o
cansaço, transmitindo uma estranha sensação de bem-estar.
De repente percebo que estamos bem no centro da pista, a pelo menos
quatro metros de deixá-la. O apresentador dá pela nossa presença e, do alto do
tablado, com o microfone em punho, aponta para nós. Antes que eu pudesse
esboçar qualquer reação, ele anuncia impondo sua voz potente de locutor das
Casas Bahia:
― Aproveitando o jovem casal aqui na pista, vamos dar início à nossa
apresentação musical, com o grupo: Back to the Future!
A cor fúcsia do vestido reflete-se nas maçãs do meu rosto que,
juntamente com os holofotes coloridos, fazem de mim um caleidoscópio
ambulante. Ao violão, o vocalista introduz Don´t be Scared de Andrew Bird.
Se o tema musical tivesse sido proposital, não seria tão adequado.
Tento arrastar Nate pela mão mas é ele que me puxa para junto de si,
enlaçando minha cintura com os braços. Estremeço no mesmo instante.
― O que está fazendo?
Sua respiração alimenta a minha e sinto meus pés se elevarem do chão,
quando ele pronuncia, devagar, acariciando o meu ouvido:
― Dance comigo, avivah sheli ― ele sussurra: ― Minha primavera.
266
As palavras fogem e eu simplesmente me rendo com um olhar. Ele me
conduz com delicadeza pela pista, onde estamos só os dois. Com os braços
deitados em seus ombros, torno-me leve e sinto como se levitasse. O simples
toque de sua pele na minha me faz corar. Desta vez, eu não me importo.
Alguns assobios rompem o som abafado do ambiente a nossa volta.
Entre as luzes e as sombras, as figuras coadjuvantes desaparecem. Por mais
incomodada que esteja com os olhares de papai e de meus amigos, não
consigo desviar meus olhos dos dele. Eu sei que todos percebem o que está
acontecendo comigo, mas quero que Nate saiba que eu não me importo com
isso.
Meus olhos estacionam nos seus lábios.
― O que está fazendo? ― agora é ele quem pergunta.
― Me beija.
Minha impressão é de que sua hesitação se torna perene no espaço do
nosso olhar e que o beijo dura o tempo de um suspiro. Quase não toca, mas
estremece. Os lábios de Nate nos meus são suaves e beijam-me com
delicadeza o suficiente para me lembrar de que estou beijando um anjo, e
também com desejo, para que eu possa acreditar que nada é impossível.
― Eu vou cair por você, Clara. Aliás... ― ele afaga meu rosto ― ...eu
caí no momento em que o Sol cruzou a linha do Equador celeste.
É como se o mundo parasse de girar com minha cabeça pousada em seu
peito. Só nós giramos. Ele nunca esteve tão perto e eu quero aproveitar cada
segundo. Então, ajusto a palma da minha mão nas suas costas, e me deixo
levar pelo sentimento extraordinário que me invade.
Fim do livro um...
267
Prólogo Em breve Polaris - o Norte.
O segundo volume da série Equinócio
Olhamos na direção do horizonte para onde a estrela polar nos guia. Suas
asas batem mais velozes do que alguma vez vi. Cruzamos o céu estrelado
tendo polaris como referência.
Não gosto deste cobertor de lã que me separa do coração de Nate. É tão
bom apoiar minha cabeça em seu peito e ouvi-lo bater! Quisera que sua
energia fosse suficiente para nos aquecer, mas ele hoje parece tão frio quanto
eu. Ele me aperta contra si afagando meus cabelos suavemente e eu fecho os
olhos, aconchegada. Mais perto do céu e das estrelas neste momento, seria
impossível.
A noite de inverno no hemisfério norte congela meus ossos e já não sinto
os dedos dos pés. Nate não se conformou em ver meus dentes trincados e
manteve suas mãos flamejantes enquanto sobrevoamos os cumes nevados dos
Pirineus para cerca de 47 quilômetros a norte de Girona.
Estamos numa das menores cidades da Catalunha chamada Castellfollit
de la Roca, com apenas 1000 habitantes em um quilômetro quadrado de
extensão. Do alto das colunas do despenhadeiro de basalto onde se situa a
vila, avistamos a confluência de dois rios e os vales ao redor. É um lugar
mágico. Neste pequeno pedaço da Espanha, onde as casas foram erguidas com
rochas vulcânicas e as ruas são escuras e estreitas, caminhamos sozinhos em
direção à torre do relógio de Sant Roc. Lá começa nossa busca pelos
pergaminhos secretos.
268
1 - Terço
Ela se despediu dizendo que ia ao banheiro retocar a maquiagem. Ele
ficou à sua espera, ao lado do chafariz de Eros. Depois que deixaram a pista
de dança, vários casais jovens se animaram e a festa oficialmente começou.
Nate estava distraído observando Olívia e o pai dançando, quando sentiu um
toque em seu ombro. Ao virar-se, Jéssica tinha um sorriso frouxo nos lábios,
tentando disfarçar a notícia que trazia.
“Clara desapareceu”, ele leu em sua mente. Ao lado dela, ainda mais
nervoso e impaciente estava Marcus. O rapaz não podia vê-lo, mas olhava nos
olhos de Nate. Ele falou por Jéssica:
― Só você pode ajudar Clara. Ela saiu daqui com o Wotan. Vi quando
entrou no carro dele.
Jéssica tinha a expressão confusa mas, para a sua própria sorte, seus
pensamentos não traduziam a realidade. Ela só pensava em como sua amiga
poderia ter trocado a companhia de um “gato” pela de um “cara de pastel”.
― Nate, não fique chateado... ― dizia, desconcertada, refletindo
longamente sobre cada palavra. ― Minha amiga... ela não é esse tipo de
garota... eu sei que ela gosta de você!
Ele precisava se desmaterializar ali mesmo, o mais depressa possível.
Tocou o ombro de Marcus, que sorriu de nervoso.
― Obrigado. Não esquecerei o que fez.
Nate precisava de um lugar fechado que abafasse a sua luz. Então correu
dali e entrou na primeira porta que apareceu. O banheiro masculino estava
vazio e ele trancou a porta. Era a sua primeira desmaterialização e ele não
sabia ao certo se conseguiria concentrar sua energia naquele espaço tão
pequeno, mas não tinha tempo para procurar um lugar mais afastado da festa.
Lembrou-se das palavras que proferiu durante a sua materialização e fechou
os olhos.
Quando bateram à porta, ele já não estava lá para abrir.
***
A trégua foi rompida. Isso nunca aconteceu, desde que a balança foi
criada. Os renegados romperam o pacto sagrado e o pior é que havia
testemunhas humanas. Isso não seria tolerado em Malkuth.
Nate sempre soube de que lado ficaria se a guerra fosse declarada antes
da hora. O passado, um luxo ― ou um karma ― a que nenhum outro anjo
tinha direito, o perseguia. Ele já perdeu uma vez a humana que amou. Não iria
perdê-la de novo. Mesmo que salvá-la significasse abrir mão de si mesmo.
***
269
Estava escuro naquele galpão e, enquanto era arrastada pelo braço,
tentava alcançar sua bolsa pendurada no ombro. Wotan andava depressa e
Clara tropeçava. Ela não sabia onde estava, mas o cheiro era fétido e
começava a lhe dar náuseas. Ela tateva alguns objetos em sua bolsa até
encontrar o terço. Segurou-o com força e entrelaçou-o nos dedos.
Ele não dizia nenhuma palavra, apesar das inúmeras tentativas de Clara
de puxar conversa.
― Você não percebe que está pondo tudo a perder? Vocês aceitaram a
trégua. Não vai ganhar nada com isso, Wotan! Eu não vou te ajudar seja lá em
que plano macabro você estiver metido dessa vez!
Ele cansou de ouvi-la e sem que ela pudesse se defender diante da sua
força, já tinha uma fita adesiva colada na boca. Na tentativa de se
desvencilhar, acabou deixando cair o terço no chão. Quando pararam, ele a
forçou a sentar-se numa cadeira e amarrou-a com algumas cordas velhas que
estavam jogadas sobre o assento. Tudo estava preparado, alguém já os estava
esperando ali.
Havia apenas uma lamparina iluminando a sala. Era um espaço grande,
sem utilidade fazia tempo. Havia baldes de tinta, sacos de cimento, placas de
madeira empilhada e, ao fundo, três grandes janelões cujos vidros estavam
partidos. Clara observava tudo com os olhos arregalados, ainda mais nervosa
agora que não podia falar e que mal conseguia respirar com as cordas
pressionando seu tórax. Demorou pouco mais de dez minutos até que ela
percebesse alguma movimentação. Passos pesados caminhavam para lá.
Wotan, que estava escorado numa pilastra desde que a tinha amarrado,
desencostou-se.
Da penumbra surgiu um homem alto, vestindo um terno preto, cabelos
negros, aparentando cerca de trinta anos, algumas cicatrizes profundas, uma
das quais cruzava o rosto de lado a lado na diagonal. Se não fosse pela cicatriz
tão pronunciada e os olhos escarlate, Clara o acharia bonito. Ela não demorou
mais do que alguns segundos para reconhecê-lo. Conhecia-o por descrição.
Uma cicatriz como aquela era como uma marca registrada. Sentiu pavor,
repulsa e ódio ao mesmo tempo. Tentou emitir alguns sons, mas não
conseguia formar palavra alguma com a fita apertando sua boca.
Naquele mesmo instante, Wotan começou a massagear o rosto com as
duas mãos. Ele abaixou a cabeça e continuou a esfregar, cada vez com mais
força. Parecia que queria arrancar o rosto, que aos poucos foi se desfazendo e
perdendo a forma. Como uma pasta de modelar, se tornou um nada, vazio,
sem olhos, sem nariz, sem boca. Clara quis gritar e ela até tentou, mas não
saiu nada senão grunhidos assustados. Quando pensou que o rosto daquele
homem ia ficar desfigurado daquele jeito, ele novamente começou a esfregá-
lo até criar uma nova aparência.
Enquanto aquele que Clara pensava ser Wotan ainda reconstruía o
próprio rosto, o outro homem circulava em volta dela. Os sapatos lustrados de
270
uma marca italiana arrasatavam no chão de cimento e aquele suspense a
estava deixando mais irritada do que amedrontada. Ela sabia, ou pelo menos
pensava, que aquele homem não lhe faria mal. Se ela estava ali era porque ele
precisava dela. E se ele precisava dela, ela tinha um trunfo nas mãos.
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