Epistemologia Das Ciencias Sociais

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  • A letra grega , adotada universalmente

    para simbolizar o prefixo micro (pequeno),

    usada nesta obra para representar o con-

    junto das disciplinas relacionadas rea de

    cincias sociais, em que se estudam aspectos

    scio-histricos dos grupos humanos.

  • epistemologia das cincias sociais

  • Ficha tcnica Editora Ibpex

    Diretor-presidente

    Wilson Picler

    Editor-chefe

    Lindsay Azambuja

    Editores-assistentes

    Adriane Ianzen Jerusa Piccolo

    Anlise de informao

    Ariadne Nunes Wenger

    Reviso de texto

    Dorian Cristiane Gerke

    Capa

    Bruno Palma e Silva

    Projeto grfico

    Raphael Bernadelli

    Diagramao

    Regiane de Oliveira Rosa

    Iconografia

    Danielle Scholtz

    Conselho editorial

    Editora Ibpex

    Ivo Jos Both, Dr. (presidente)Elena Godoy, Dr.a

    Jos Raimundo Facion, Dr.Srgio Roberto Lopes, Dr.

    Ulf Gregor Baranow, Dr.

    Obra coletiva organi-zada pela Universidade

    Luterana do Brasil (Ulbra).

    Informamos que de inteira respon sabilidade

    do autor a emisso de conceitos.

    Nenhuma parte desta publicao poder ser

    reproduzida por qualquer meio ou forma sem a pr-via autorizao da Ulbra.

    A violao dos direitos autorais crime estabe-lecido na Lei n 9.610/98

    e punido pelo art. 184 do Cdigo Penal.

    e64

    Epistemologia das cincias sociais / [Obra] organizada pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Curitiba: Ibpex, 2008.174p.

    isbn 978-85-99583-83-8

    1. Epistemologia Cincias sociais. 2. Cincias sociais filosofia e teoria. 3. Hermenutica. 4. Correntes de pensamento. 5. Universidade Luterana do Brasil. I. Ttulo.

    cdd 30020. ed.

  • apresentao

    Este texto foi elaborado com o objetivo especfico de servir de

    material didtico para o curso de Cincias Sociais a distncia da Universidade Luterana do Brasil. Mas acreditamos que os contedos aqui apresentados podem tambm subsidiar refle-xes tericas para alunos de outros cursos afins que, porven-tura, sintam necessidade de uma fundamentao filosfica e

    epistemolgica em sua vida acadmica.No temos nenhuma pretenso de defender teses ou

    teorias inditas na rea das cincias epistemolgicas. Pelo

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    contrrio, apresentamos as idias e conceitos de alguns pensadores renomados e consagrados nessa rea do conhe-cimento humano. Logo, no se trata de nenhuma produ-o cientfica propriamente dita, que siga as exigncias dos

    padres e mtodos cientficos. Compilamos referenciais

    que acreditamos possibilitar uma melhor compreenso do fenmeno das cincias sociais e humanas.

    Com essa finalidade, dividimos o contedo em captulos

    que retratam uma linha do tempo da construo do pensa-mento epistemolgico. Iniciamos o texto abordando a ques-to do conhecimento, desde o tempo em que era analisada sob uma perspectiva mstica at o momento em que surgiu a filosofia, quando o homem passou a exercitar a razo.

    Depois, trabalhamos a epistemologia como uma cincia independente da filosofia e fizemos uma anlise do conhe-cimento desde a Antiguidade at o perodo atual. No cap-tulo sobre o inatismo, retomamos a questo sobre a origem do conhecimento.

    Abordamos ainda as possibilidades do conhecimento, salientando suas principais correntes. Demos uma nfase maior ao racionalismo, ao empirismo, ao positivismo, dial-tica e fenomenologia, por acreditarmos que so importantes para a fundamentao do conhecimento e para uma compre-enso do desenvolvimento episte molgico do homem e da humanidade. Apresentamos ainda a cincia hermenutica, que estuda o universo da cultura, esclarecendo seus princ-pios, leis e mtodos de investigao.

    Chegamos, assim, complexidade contempornea para definir o que cincia, principalmente cincias sociais e

    humanas, comentando sobre os mtodos e formas de fazer cincia. Frisamos ainda o quanto difcil fazer cincia na era da globalizao, que no s fragmenta a razo, como tambm o indivduo e a cultura, que perdem sua subjetividade e sua individualidade na grande aldeia global.

  • sumrio

    ( 1 ) O caminho do mito ao logos, 9

    ( 2 ) O conceito de epistemologia, 25

    ( 3 ) O inatismo, 39

    ( 4 ) As possibilidades do conhecimento, 51

    ( 5 ) O que racionalismo?, 63

    ( 6 ) O que empirismo?, 77

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    ( 7 ) O que positivismo?, 89

    ( 8 ) O que dialtica?, 105

    ( 9 ) O que fenomenologia?, 121

    ( 10 ) Hermenutica, 133

    ( 11 ) O que cincia?, 143

    ( 12 ) As cincias humanas e sociais, 157

    Referncias por captulo, 169

    Referncias, 171

    Gabarito, 173

  • ( 1 )

    o caminho do mito ao logos

  • Susana Salete Raymundo Chinazzo gradua da

    em Filosofia pela Fafimc, de Viamo, RS, e em

    Psicologia pela Ulbra de Canoas, RS, sendo mestre

    em Antropologia Filosfica pela PUC-RS, com a tese

    O eterno momento presente. Lecionou Filosofia,

    Antropologia Cultural e Epistemologia para diver-

    sos cursos universitrios e Filosofia para o Ensino

    Mdio. Atualmente, est fazendo o curso de for-

    mao em Psicoterapia Psicanaltica para Mdicos

    e Psiclogos, no Instituto Wilfred Bion, de Porto

    Alegre, e atuando como psicloga na rea clnica.

  • ( )

    as reflexes desenvolvidas neste captulo tm o objetivo de esclarecer e desmistificar o conceito de

    mito, alm de descrever como se deu a passagem do mito razo (logos) e como nasceu o conhecimento racional.

    Susana Salete Raymundo Chinazzo

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    (1.1)

    o mito

    A cultura e a civilizao ocidentais esto aliceradas nos princpios da filosofia grega e por eles so determinadas

    at os dias atuais. Mas no incio, antes do surgimento do conhecimento filosfico, predominava o mito. Mas, afinal,

    o que o mito? Segundo Marilena Chaui1, em sua obra Convite filosofia, um mito uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da gua, dos ventos, do bem e do mal, da sade e da doena, da morte, dos instru-mentos de trabalho, das raas, das guerras, do poder, etc.).

    A palavra mito vem do grego mythos e deriva de dois verbos: mytheyo (cantar, narrar, falar alguma coisa para outros) e mytheo (contar, anunciar, nomear, designar).2 O Dicionrio de filosofia, de Nicola Abbagnano3, concebe o conceito de mito como narrativa, citando como exemplo a Potica, de Aristteles, e enfatiza trs vises diferentes sobre o mito na Antiguidade Clssica: 1) [...] era considerado como um produto inferior ou deformado da atividade inte-lectual. 2) [...] como uma forma autnoma de pensamento ou de vida. 3) [...] como um instrumento de controle social.

    Para os leigos no tema, essa palavra passa, num pri-meiro momento, a idia de narraes fantasiosas sobre per-sonagens e atos hericos do passado. Ou seja, imagina-se que o mito se restringe s lendas e tem pouco a ver com a vida nos dias atuais.

    Para o filsofo francs Georges Gusdorf4, a conscincia mtica, bem como a conscincia filosfica, a maneira que

    o homem encontrou para organizar o conhecimento sobre a realidade. Representa uma forma de explicar os fenmenos

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    da natureza, a origem da vida e do cosmo, de entender a morte. Portanto, o mito tem a funo de aquietar a angs-tia perante o desconhecido, diante daquilo que o conheci-mento racional do homem no alcana.

    Conforme as autoras Aranha e Martins5, o mito uma intuio compreensiva da realidade, uma forma espont-nea de o homem situar-se no mundo. As razes do mito no se acham nas explicaes exclusivamente racionais, mas na realidade vivida, portanto pr-reflexiva, das emoes

    e da afetividade. O antroplogo Bronislaw Kasper Malinowski v essa

    questo por um enfoque mais cultural e social. Ele diz que:

    o mito cumpre uma funo sui generis intimamente ligada natureza da tradio e continuidade e com a atitude humana

    em relao ao passado. A funo do mito , em resumo, a de

    reforar a tradio e dar-lhe maior valor e prestgio unindo-a

    a mais alta, melhor e mais sobrenatural realidade dos acon-

    tecimentos iniciais.6

    Nessa perspectiva funcional, o mito conhecimento que fundamenta e consolida a convivncia humana. Nele e por ele acontece a vida associada, convencendo os homens a compartilhar a origem e o destino de suas vidas. E por isso que a narrao mtica tem como cenrio a vida comu-nitria. Ao narrarem o mito, as pessoas da comunidade narram acontecimentos do seu cotidiano, como o nasci-mento, a morte, a famlia, as crenas, as prticas religiosas, as festas, as danas, as atividades de sustento etc. Ler o mito d acesso vida das comunidades mticas. H uma identi-dade entre o mito e a comunidade. Nessa mesma linha de raciocnio, o filsofo alemo Cassirer v o mito como um

    suposto cultural, que alimenta uma coeso social por meio de relatos e fbulas de gerao a gerao.7

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    Vrios outros filsofos refletiram sobre essa questo.

    Para os pensadores do empirismo cientfico, o mito era um

    conhecimento irracional e infundado, produto de uma ati-vidade intelectual pr-lgica. Para Plato, era conhecimento da realidade. Sua filosofia se constituiu base de mitos e

    seu mtodo era ocultar as grandes doutrinas dentro deles. J Aristteles afirmava que o filsofo , em certo sentido,

    amigo dos mitos porque o mito diz coisas que maravilham8. Freud descreveu a psique do ser humano recorrendo aos mitos, como, por exemplo, ao de Eros, Tanatos, Ananke e dipo, personagens da dramaturgia psicanaltica.

    Enquanto o mito tiver fora de identificar os indiv-duos e a comunidade, ele se manter vivo. A sua funo parece ser ainda hoje realimentar a cultura, formando uma tradio capaz de controlar a conduta dos homens.

    (1.2)

    o logos

    A passagem do mito ao logos (razo) teve incio com os filsofos pr-socrticos, ou seja, anteriores ao filsofo

    Scrates (sc. V a.C.). A funo do logos consistia em reve-lar a verdade oculta nos mitos dos deuses e a filosofia sur-gia com uma atitude de inquietao e admirao perante o mundo. Buzzi faz uma analogia entre o filosofar e o vo

    da coruja da Grcia.

    Ao cair da tarde ela se inquieta e inicia o vo de explorao do

    dia grego, do fazer j feito dos aqueus. Com ele comea a filo-

    sofia. Comea quando o vigor e o entusiasmo do dia chegam

    ao acaso. O que leva o vo da coruja? A vontade de conhecer

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    a aurora do dia que se agasalhou junto de si na penumbra da

    noite. Ao descobrir as coisas e os efeitos do dia no silncio da

    noite, ele admira e se angustia. E isso o torna filsofo. A curio-

    sidade, a admirao e a angstia impulsionam o vo da coruja.

    So as coisas que inquietam o homem e o levam a filosofar.9

    Scrates inquietava os atenienses de dia e de noite. E essa inquietao tornou-se o smbolo da filosofia. Assim

    tambm pensava Nietzsche: Torna-se inquietante tudo aquilo que muito se pensa10. Segundo Aristteles, a admi-rao a paixo fundamental do filsofo, porque permite

    que o ser o interpele e o prepare para compreend-lo. Esse ato prprio do homem, a admirao, os gregos chamaram de thauma, que significa espanto, admirao, perplexidade. Como dizia o estagirita, a admirao que leva os homens a filosofar com que esbarram; depois avanam pouco a pouco

    e comeam por questionar as fases da lua, o momento do sol e dos astros e por fim a origem do universo inteiro11.

    Plato, na obra Teeteto, afirma categoricamente que a admirao o princpio da filosofia: Esta emoo, a admi-rao, prprio da filosofia, no tem a filosofia outro prin-cpio alm deste12. Aristteles, em Metafsica, concebe a filosofia como a sabedora (sophia), como objeto de Eros, do amor. E a define como a cincia do ser enquanto ser, a

    cincia dos primeiros princpios e das primeiras causas e a cincia da causa absolutamente primeira, do primeiro motor. Assim diz o estagirita13:

    pois evidente que a sabedoria (sophia) uma cincia sobre certos princpios e causas. E, j que procuramos essa cincia,

    o que deveramos indagar de que causas e princpios cin-

    cia a sabedoria. Se levarmos em conta as opinies que temos a

    respeito do sbio, talvez isso se torne mais claro. Pensamos, em

    primeiro lugar, que o sbio sabe tudo, na medida do possvel,

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    sem ter a cincia de cada coisa particular. Em seguida, con-

    sideramos sbio aquele que pode conhecer as coisas difceis, e

    no de fcil acesso para a inteligncia humana (pois o sentir

    comum a todos e por isso fcil, e nada tem de sbio). Ademais,

    quele que conhece com mais exatido e mais capaz de ensi-

    nar as causas, consideramo-lo mais sbio em qualquer cincia.

    E, entre as cincias, pensamos que mais sabedoria a que

    desejvel por si mesmo e por amor ao saber, do que aquela que

    se procura por causa dos resultados, e [pensamos] que aquela

    destina a mandar mais sabedoria que a subordinada. Pois

    no deve o sbio receber ordens, porm d-las, e no ele que

    h de obedecer o outro, porm deve obedecer a ele o menos

    sbio. Tais so, por sua qualidade e seu nmero, as idias que

    temos acerca da sabedoria e dos sbios.

    O filsofo Sren Aabye Kierkegaard define a admira-o como sentimento apaixonado do devir. Devir o ser que aconteceu, a realidade em presena, a histria. Se o filsofo no admira nada, ele por isso estranho his-tria [...] A incerteza do devir no pode exprimir-se seno mediante essa emoo necessria ao filsofo e prpria

    dele.14 Essa definio leva a pensar que viver o mundo sem admirao equivale a viver sem filosofia, de maneira

    no crtica. O filsofo crtico e a filosofia sempre crtica.

    O filsofo convive junto realidade no admirvel de sua

    manifestao e na ignorncia absoluta de seu saber.Em outras palavras, inconcebvel a idia de o homem

    viver em contato com a realidade e no se questionar, no perguntar e no ficar perplexo com os fenmenos que

    ocorrem na natureza. como se vivesse uma vida sem ter conscincia de nada, at mesmo da sua existncia. Isso remete ao filsofo Scrates, que dizia: Uma vida sem refle-xo no merece ser vivida15.

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    (1.3)

    os primrdios da filosofiaa

    A passagem do conhecimento mtico para o conhecimento racional no ocorreu num passe de mgica, rompendo radi-calmente com todos os conhecimentos do passado. O surgi-mento da filosofia foi produto de um processo muito lento

    e preparado pelo mito, cujas caractersticas no desapare-ceram como por encanto na nova abordagem do mundo.

    Aristteles afirmava que o primeiro filsofo havia sido

    Tales de Mileto (sc. VII-VI a.C.). O pai da filosofia, reconhe-cido matemtico e astrnomo, foi citado entre os sete sbios da Grcia por sua atuao poltica para unir as cidades-Es-tados da sia Menor numa confederao.

    importante ressaltar que, no perodo de Tales de Mileto, surgiram vrios pensadores em diferentes cidades da Grcia, entre eles, Anaximandro de Mileto, Anaxmenes de Mileto, Xenfanes de Clofon, Pitgoras de Samos, Demcrito de Abdera, Herclito de feso e Parmnides de Elia. Chamados de pr-socrticos, foram considerados os primeiros filsofos, por seu grande saber terico e prtico.

    Esses pensadores tinham conhecimento para prever eclipses, determinar a posio de navios no mar (Tales de Mileto), traar mapas da Terra, construir relgios de sol (Anaximandro de Mileto). Ocupavam-se de questes como essas hoje no mais associadas filosofia, mas a cin-cias empricas como a fsica , porque tinham o propsito de explicar a origem e a existncia do mundo a partir de

    a. A seo 1.3 baseada em CHAUI, M. Convite filosofia. So Paulo: tica, 1994; 2003.

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    elementos concretos, de estruturar uma fsica com mtodos filosficos. Seu objetivo era constituir uma cosmologia (expli-cao racional e sistemtica das caractersticas do universo) que substitusse o antigo conhecimento baseado em mitos.

    Os filsofos da fsica buscavam o princpio substancial

    existente em todos os seres materiais (a arch, que em grego significa tanto comeo quanto fundamento de todas as

    coisas). Queriam encontrar a matria-prima ou a substn-cia-me que possibilitou a constituio de todas as coisas, que explicasse a origem do mundo.

    Tales de Mileto

    Tales de Mileto foi o primeiro pensador que perguntou: qual a causa ltima, o princpio supremo de todas as coisas? Ele queria saber se era possvel derivar a reali-dade de um nico princpio, de uma nica substncia-me. Encontrou como resposta o elemento gua, dizendo que ela tinha prioridade sobre todas as outras substncias. Ento, para ele, a gua era o princpio de tudo. Tudo o que existia no mundo tinha sua origem nela. Suas observaes basea-vam-se no cotidiano, em que tudo o que quente neces-sita de umidade para viver e o que est morto seca, em que todos os germes so midos e todo alimento cheio de suco. Ora, parecia natural que cada coisa se nutria daquilo de que provinha.

    Pitgoras

    Pitgorasb (cerca de 570 a.C. cerca de 490 a.C.), outro filsofo pr-socrtico, foi considerado um personagem decisivo no

    b. Pitgoras nasceu na cidade de Samos, foi filsofo e matemtico e fundou na colnia grega de Crtona a escola pitagrica.

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    desenvolvimento do pensamento racional e cientfico, por

    seus estudos matemticos. Com Pitgoras, a matemtica libertou-se da condio de mera tcnica para constituir-se em cincia pura. Para ele, a arch das coisas era o nmero, do qual derivam problemas como finito e infinito, par e mpar,

    unidade e multiplicidade, reta e curva, crculo e quadrado etc. Dizia que a diferena entre os seres era essencialmente uma questo de nmeros (limite e ordem das coisas) e, sem dvida, seus pensamentos influenciaram Plato.

    Conhecida at hoje por suas contribuies aos cam-pos da matemtica (Teorema de Pitgoras), da msica e da astronomia, a escola pitagrica, paradoxalmente, era tam-bm uma crena mstica cujos seguidores apregoavam, entre outras coisas, a imortalidade da alma, a reencarna-o dos pecadores e o respeito a rgidas condutas morais.

    Herclito de feso

    Herclito de fesoc (cerca de 540 a.C. cerca de 470 a.C.) viveu uma gerao antes de Parmnides, seu principal opositor. Considerava a Natureza (o mundo, a realidade) um fluxo perptuo, o escoamento contnuo dos seres em

    mudanas perptuas. A realidade, para ele, era a harmo-nia dos contrrios, que no cessavam de se transformar uns nos outros. Tudo flui (panta rei), tudo est em devir, tudo est em movimento e nada dura para sempre e, por essa razo, no podemos entrar duas vezes no mesmo rio, pois, quando se entra pela segunda vez no rio, tanto a pessoa quanto o rio j no so mais os mesmos.

    Segundo Herclito, no h um ser esttico nas coisas.

    c. Pouco se sabe a respeito da vida de Herclito. Acre-dita-se que sua famlia pertencia aristocracia de feso e que foi a fundadora da cidade.

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    O que existe um ser dinmico, no qual possvel fazer um corte, uma ruptura, que no ser arbitrrio. Portanto, as coisas no so e nenhuma coisa pode ter a pretenso de ser o ser em si. Nada existe, porque tudo o que existe naquele instante e, no instante seguinte, j no mais o mesmo. O existir um perptuo mudar, um estar constan-temente sendo e no sendo, um devir perfeito, um cons-tante fluir. Em sntese, dir-se-ia que o absoluto a unidade

    do ser e do no-ser.Pergunta-se: se tudo est em transformao permanente,

    como explicar as coisas estveis, duradouras e permanen-tes que a nossa percepo nos mostra? Herclito dividiu o conhecimento em dois tipos: o primeiro o que os sentidos oferecem e o segundo o que se alcana pelo pensamento. O primeiro oferece uma imagem de estabilidade e o ltimo revela uma verdade em contnua mudana.

    Parmnides de Elia

    Parmnides de Eliad (cerca de 500 a.C. cerca de 475 a.C.) visto como um pensador pr-ontolgico. dele o pensa-mento que criou o campo de fora necessrio ao apareci-mento das questes ontolgicas. Sem dvida, suas idias foram revolucionrias e continuam ainda hoje presentes na histria do pensamento filosfico.

    Segundo esse filsofo, s podemos pensar sobre aquilo

    que permanece sempre idntico a si mesmo, isto , no podemos pensar sobre coisas que so e no so, ora so de um modo e ora so de outro, contrrias a si mesmas, con-traditrias. Conhecer alcanar o idntico, o imutvel. Os

    d. Natural de Elia, no sul da Itlia, Parmnides parece ter pertencido a uma famlia rica e de alta posio social.

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    sentidos nos oferecem a imagem de um mundo em cons-tante mudana. Pensar dizer o que um ser em sua iden-tidade profunda e permanente.

    Parmnides acreditava que somente o que pode ser pensado ou numerado verdadeiramente e somente o que pode ser pensado pode ser. Logo, o real deve ser o mesmo que o concebvel e deve ser tambm logicamente coerente com o que pensvel pela razo (logos), opondo-se, assim, aos sentidos. O real a nica coisa que se pode nume-rar ou formular. O pensamento (noein) se diferencia das crenas e dos sentidos.

    A doutrina desse filsofo afirmava que o ser nico,

    uno e eterno. Se assim no fosse, teria um comeo e um fim. E se tivesse um comeo ou um princpio, antes de o ser

    comear, haveria o no-ser. Dizer, porm, que h o no-ser dizer que o no-ser . Segundo o pensamento do autor, isso contraditrio, absurdo. Admitir que houvesse o no-ser dizer que o no-ser . Afirmar-se-ia, ento, o ser do

    no-ser, o que inadmissvel. Por conseguinte, o ser, alm de nico e eterno, imperecvel, como o prprio autor fala:

    Resta-nos, assim, um nico caminho: o ser . Nesse cami-nho, h grande nmero de indcios: no sendo gerado, tambm imperecvel; possui, com efeito, uma estrutura

    inteira, inabalvel e sem trmino; jamais foi, nem ser, pois

    , no instante presente, todo inteiro, uno, contnuo.16

    Tanto Parmnides de Elia como Herclito de feso, chamados de pensadores eleticos, questionavam sobre a divergncia e as opinies contrrias. Foi a partir dessa dis-cusso sobre os contrrios, o ser e o no-ser, que se ini-ciaram o estudo sobre o conhecer e o estudo sobre o ser (ontologia) e suas relaes recprocas.

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    Demcrito de Abdera

    Demcrito de Abderae (460 a.C. 370 a.C.) desenvolveu uma teoria sobre o ser ou sobre a natureza que recebeu o nome de atomismo, por pregar que a realidade constitu da por tomos. A palavra tomo tem origem grega e significa o que no pode ser cortado ou dividido, ou seja, seria a menor partcula indivisvel de todas as coisas. Os seres surgem por composio dos tomos, transformam-se por novos arranjos deles e morrem por sua separao. Para o autor, o tomo seria o equivalente ao conceito de ser para Parmnides. Alm dos tomos, existiria o vcuo, que repre-sentaria a ausncia de ser (o no-ser). No vcuo, no poss-vel o movimento do ser.

    Demcrito concordava com Herclito e Parmnides de que havia uma diferena entre o que se conhece por meio da percepo e o que se conhece apenas pelo pen-samento. No considerava a percepo algo ilusrio, mas apenas um efeito da realidade sobre as pessoas. A grande contribuio deixada pelo atomismo de Demcrito hist-ria do pensamento a concepo mecanicista, segundo a qual tudo o que existe no universo nasce do acaso ou das necessidades. Isto , nada nasce do nada, nada retorna ao nada. Tudo tem uma causa ltima no mundo.

    Os sofistas

    O perodo pr-socrtico se caracterizou pela busca de expli-caes racionais para o universo e pela procura de um prin-cpio primordial (arch) para todas as coisas existentes.

    e. Demcrito de Abdera foi o mais viajado dos filso-fos pr-socrticos, tendo visitado a Babilnia, o Egito e, segundo alguns autores, a ndia e a Etipia. Depois, esteve tambm em Atenas.

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    Seguiu-se a esse perodo uma nova fase na filosofia, mar-cada pelo pensamento dos sofistas.

    Etimologicamente, a palavra sofista significa sbio. Eram professores viajantes que vendiam seus ensinamen-tos prticos de filosofia. Levando em conta os interesses

    dos alunos, davam aulas de eloqncia e de sagacidade mental. Ensinavam conhecimentos teis para o sucesso nos negcios pblicos e privados. Plato fez crticas seve-ras forma como davam aula e comercializavam o saber sem levar arete (verdade).

    Perante a pluralidade e o antagonismo das filosofias

    anteriores, os sofistas concluram que no se pode conhecer

    o ser, mas s ter opinies subjetivas sobre a realidade. A ver-dade uma questo de opinio e de persuaso, e a lingua-gem mais importante do que a percepo e o pensamento.

    Protgoras (480 a.C. 410 a.C.), o primeiro sofista, dizia

    que o homem a medida de todas as coisas. Se essa mxima fosse considerada verdadeira, o conhecimento humano estaria limitado pelos sentidos, sempre variveis. Se houvesse algum acordo, este seria fruto da comunicao e no do conhecimento de uma suposta verdade absoluta. Da mesma maneira, as formas de organizao social e pol-tica seriam reflexos das circunstncias e das convivncias.

    Em outras palavras, os sofistas afirmavam que o conhe-cimento cientfico no existe, que cada homem a medida

    de sua verdade, que aprender impossvel, que a falsidade no existe nem a contradio. Mas, sobretudo, defendiam a tese de que h uma ciso irremedivel entre o physis (natu-reza) e o nomos (homem) e que o homem no tem outro fundamento alm do arbtrio e da conveno humana. Esse pensamento abre perspectivas perigosas no campo da tica, da liberdade e da poltica e fecha a possibilidade da cincia.

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    Aristteles refutava a doutrina da relatividade e ver da -de dos contrrios e da negao do princpio da contradio:

    O primeiro [...] expresso por Protgoras, que afirmava ser

    o homem a medida de todas as coisas [...] outra coisa no

    seno aquilo que parece a cada um tambm o certamente.

    Mas, se isto verdade, conclui-se que a mesma coisa e no

    ao mesmo tempo, e que boa e m ao mesmo tempo e, assim,

    desta maneira, rene em si todos os opostos, porque amide,

    uma coisa parece bela a uns e feia a outros, e deve valer como

    medida o que parece a cada um.17

    indicaes culturais

    BUZZI, A. R. Introduo ao pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem. 12. ed. Petrpolis: Vozes, 1983.CHAUI, M. Convite filosofia. So Paulo: tica, 1994._______. _______. 13. ed. So Paulo: tica, 2003. GAARDER, J. O mundo de Sofia: romance da histria da filosofia. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.

    GRIMAL, P. A mitologia grega. So Paulo: Brasiliense, 1987.

    atividades

    Faa uma enquete para saber o que as pessoas pensam sobre 1. mito. Procure identificar mitos modernos e explique sua funo.2.

    Elabore um quadro comparativo entre o conhecimento filo-3. sfico e o mito.

  • ( 2 )

    o conceito de epistemologia

  • ( )

    neste captulo, abordamos o conceito de episte-mologia, desde o incio da histria da filosofia at a atuali-dade. Analisamos tambm duas correntes do pensamento epistemolgico contemporneo: a tendncia histrica e a tendncia analtica.

    A epistemologiaa ou teoria do conhecimento um ramo da filosofia que indaga pela possibilidade, origem,

    a. O termo epistemologia usado pelos anglo-saxes. Entre os povos de lngua neolatina, a teoria do conhe-cimento tambm chamada de gnosiologia.

    Susana Salete Raymundo Chinazzo

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    essncia, limites, pelos elementos e pelas condies do conhecimento1. Composta de dois termos gregos episteme (cincia) e logia (conhecimento) a palavra epistemologia significa conhecimento filosfico sobre a cincia.

    Como seu prprio nome indica, a teoria do conheci-mento tem como objetivo explicar ou interpretar filosofi-camente o conhecimento humano. Busca um critrio de certeza sobre ele, ou seja, a adequao entre o objeto do conhecimento e seu contedo, a coerncia entre o pensa-mento e a realidade por ele intencionada.

    (2.1)

    histria da epistemologia

    O que essencial a todo conhecimento e em que consiste a sua estrutura? A indagao sobre a essncia do conhe-cimento se iniciou com os questionamentos filosficos do

    homem. Os gregos abordavam os problemas do conheci-mento como questes metafsicas ou ontolgicas. H mui-tas reflexes epistemolgicas, sobretudo em Scrates, Plato

    e Aristteles. Na Idade Mdia, concebia-se essa questo como vinculada aos dados da realidade.

    Na Idade Moderna, a epistemologia surgiu como uma disciplina autnoma, o que se deveu principalmente a John Locke, que tratou as questes da origem, da essn-cia e da certeza do conhecimento de maneira sistemtica em sua obra Ensaio sobre o entendimento humano (1690). O autor, na introduo da obra, diz: Tendo, portanto, meu propsito de investigar a origem, certeza e extenso do conhecimento humano, justamente com as bases e graus de crena, opinio e assentimento, no me ocuparei agora

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    com o exame fsico da mente2. importante ressaltar que alguns autores afirmam

    que o verdadeiro fundador da teoria do conhecimento Immanuel Kant. Na sua obra Crtica da razo pura (1781), ele apresenta uma fundamentao crtica do conhecimento cientfico dos fenmenos por meio do mtodo transcen-dental e investiga a realidade do conhecimento. A partir de Kant, o problema do conhecimento no s comeou a ser objeto da teoria do conhecimento como tornou-se um tema central para muitos pensadores.

    As questes clssicas da teoria do conhecimento foram apresentadas de forma sucinta por Johanes Hessen, em sua obra Teoria do conhecimento. So as seguintes3:

    1. Pode o sujeito apreender ou conhecer realmente o objeto?

    Questo da possibilidade.

    2. De onde se originam os contedos da conscincia cognis-

    cente: da razo ou da experincia? Questo da origem do

    conhecimento humano.

    3. Em que consiste o conhecimento? Questo da essncia do

    conhecimento.

    4. H outro conhecimento alm do racional? Questo das for-

    mas de conhecimento humano.

    5. Que critrio nos diz se um conhecimento ou no ver da-

    deiro?

    A teoria do conhecimento permite que a metodologia possa analisar as condies e os limites de realidade dos meios de investigao e dos instrumentos lingsticos do saber cientfico.

    Atualmente, a epistemologia vem perdendo muito de seu significado tradicional. Para muitos analistas contem-porneos, o tema central no mais o conhecimento, mas a linguagem e seus processos.

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    A contribuio do Crculo de Viena

    A teoria do conhecimento passou, sem dvida, por uma mudana radical com a fundao do Wiener Kreis (Crculo de Viena), em 1927. Pela primeira vez na histria, reunia-se um grupo de epistemlogos com o objetivo de trocar idias e mesmo de elaborar coletivamente uma nova epistemolo-gia: o empirismo lgico, abandonando, assim, a reflexo filo-sfica individual e isolada. A construo do conhecimento

    passou a ser complementada com trabalho em equipe, imagem e semelhana do que j se fizera nas cincias.

    Pertenceram ao Crculo de Viena matemticos, filso-fos, historiadores, cientistas naturais e sociais. Participaram desse grupo ou com ele estiveram relacionados de um modo ou de outro os primeiros epistemlogos profissionais, entre

    eles Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, Viktor Kraft, Herbert Feigl e, tangencialmente, Karl Popper

    e Ferdinand Gonseth. O Crculo de Viena durou menos de uma dcada, mas seu trabalho foi intenso e muito influente

    na cincia. Seus membros reuniam-se semanalmente e ins-piravam grupos afins na Alemanha, na Frana, na antiga

    Tchecoslovquia e na Sua. Organizaram em Paris o pri-meiro Congresso Internacional de Epistemologia, em 1935, e fundaram a revista Erkenntnis.

    Sem dvida, o Crculo de Viena alterou a tcnica da filosofia ao pr em prtica e desenvolver o programa de

    Bertrand Russell e de fazer filosofia de maneira geomtrica

    (more geometrico), particularmente com a ajuda da lgica matemtica. A epistemologia transformou-se, em suma, numa rea do saber importante da filosofia tanto concei-tual como profissionalmente e, por conseguinte, revelou a

    importncia e a utilidade do seu papel na cincia.As principais preocupaes dos membros do Crculo de

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    Viena incluam, dentre um amplo programa de investigao, a aplicao de conceitos lgicos para a construo racional dos conceitos cientficos, a exigncia de verificabilidade dos

    enunciados, a procura de critrios de significados empri-cos e a recusa da metafsica, a separao da distino entre cincias naturais e cincias sociais humanas, recorrendo tradio geral para a linguagem da cincia unificada.

    (2.2)

    novas tendncias da epistemologia

    O epistemlogo sabe que no pode ficar afastado da pro-blemtica do seu tempo ou ficar meramente estudando

    idias cientficas do passado. Ele est atento cincia do

    seu tempo, procurando ser til, uma vez que pode partici-par do desenvolvimento cientfico, contribuir para mudar

    positivamente os alicerces filosficos da pesquisa e da

    poltica cientfica. Em particular, est ligado cincia e s

    ferra mentas formais da filosofia contempornea, podendo

    dar grandes contribuies para o conhecimento cientfico.

    O autor Bunge4 enumera uma srie de utilidades da nova epistemologia:

    Trazer tona os pressupostos filosficos, em particu- lar semnticos, gnosiolgicos e ontolgicos, de planos, mtodos ou resultados de investigaes cientficas da

    atualidade.Elucidar e sistematizar conceitos filosficos emprega- dos em diversas cincias, tais como os de objeto fsico, sistema qumico, sistema social, tempo, causalidade,

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    acaso, prova, confirmao e explicao.

    Ajudar a resolver problemas cientfico-filosficos, tais como o de saber se a vida se distingue pela teleonomia e a psique pela inespacialidade.Reconstruir teorias cientficas de maneira axiomtica, aproveitando a ocasio para pr a descoberto seus pressupostos filosficos.

    Participar das discusses sobre a natureza e o valor da cincia pura e aplicada, ajudando a esclarecer as idias a respeito, inclusive com a elaborao de polticas culturais.Servir de modelo a outros ramos da filosofia, em par- ticular a ontologia e a tica, que podem beneficiar-se

    de um contato mais estreito com as tcnicas formais e com as cincias.

    Conforme afirmado anteriormente, a epistemologia

    busca um conhecimento que tenha objetividade e validade universal, o que permite incluir tanto o conhecimento cien-tfico quanto o filosfico. Na Antiguidade, o conhecimento

    era visto na sua totalidade, ou seja, no havia reas especfi-cas. Mas, na Idade Moderna, por influncia do filsofo Ren

    Descartes, iniciou-se a ruptura da filosofia com a cincia.

    No contexto atual, ao se estudar o conceito de episte-mologia, faz-se necessrio descrever como se processou a relao entre racionalidade e historicidade no mbito epis-temolgico. O autor Bombassaro5 apresenta duas tendn-cias epistemolgicas: a analtica, tambm denominada teoria analtica da cincia, e a histrica.

    A tendncia analtica foi predominante na primeira metade do sculo XX e sustentou-se sobre a orientao te-rica adotada pelo empirismo lgico, cuja influncia mais

    significativa foi o Crculo de Viena e, posteriormente, o

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    pensador Karl Popper. A tendncia histrica, tambm chamada de nova filosofia da cincia, nasceu no cenrio

    epistemolgico contemporneo, mais especificamente nos

    ltimos anos da dcada de 50, tendo como objetivo a crtica s concepes defendidas pela tendncia analtica.

    Essas tendncias sero vistas com mais detalhes a seguir, mas importante salientar que no se tem aqui o propsito de aprofundar as peculiaridades de cada teoria que compe tanto a tendncia histrica quanto a analtica, nem o pensamento de seus respectivos autores, mas sim de caracterizar cada uma delas.

    A tendncia analtica

    Segundo Georg Henrik von Wright, o positivismo lgico e o empirismo lgico ou neopositivismo dos anos 1920 e 1930 foram as principais influncias do pensamento filos-fico hoje conhecido como filosofia analtica, que se subdi-vide em duas correntes distintas a filosofia da linguagem

    ordinria e a filosofia analtica da cincia e se baseia no

    atomismo lgico de Russell, nas teorias de Wittgenstein e

    no neopositivismo do Crculo de Viena. Em suma, a ten-dncia analtica tem como caracterstica epistemolgica a racionalidade e a historicidade vinculada ao positivismo.

    Entre suas mltiplas contribuies, destacam-se a con-cepo de significado e verdade defendida por David Hume,

    o monismo metodolgico do positivismo de Auguste Comte e John Stuart, o fenomenalismo de Ernest Mach e Richard Avenarius, as concluses de Gottlob Frege nos campos da

    lgica e da semntica, o desenvolvimento da lgica e da filosofia da matemtica operada por Alfred Whitehead e

    Bertrand Russell, o formalismo de David Hilbert e, funda-mentalmente, a teoria do significado, desenvolvida na obra

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    Tratado lgico-filosfico, de Ludwig Wittgenstein. Alm disso,

    importante mencionar os estudos em filosofia da cincia

    realizados por Pierre Duhem e Henri Poincar, que alme-javam novos fundamentos para o conhecimento.

    Cabe ainda destacar a teoria da relatividade, de Albert Einstein, responsvel por uma das maiores revolues do pensamento cientfico, e a obra A construo lgica do mundo, de Rudolph Carnap, publicada em 1928. Carnap defende nessa obra a tese da possibilidade da construo lgica do mundo a partir de experincias elementares e a teoria constitucional dos objetos, afirmando que constituir um

    objeto significa reduzi-lo a outros. Portanto, Carnap queria

    formular uma teoria geral que permitisse indicar a possibi-lidade de substituir um enunciado que contm o primeiro objeto por outro objeto enunciado que no o contm. Com o domnio das experincias elementares, buscava consti-tuir unidades fechadas e indivisveis.

    As propostas de Hans Reichenbach tambm ajudam a compreender a tendncia analtica. Esse autor menciona o

    contexto de descoberta e o contexto de justificao, afir-mando que a epistemologia deveria ocupar-se exclusiva-mente do contexto de justificao. Estabeleceu, assim, os

    limites especficos dos elementos metodolgicos da inves-tigao cientfica, separando-os dos elementos psicolgi-cos, sociolgicos e histricos.

    No se pode deixar de destacar ainda as idias de Karl Popper, conhecidas epistemologicamente como raciona-lismo crtico. Popper considerado o principal respons-vel pelo movimento de renovao da filosofia da cincia e

    um dos nomes mais influentes da tendncia analtica.

    Para ele, uma teoria, para ser considerada cientfica,

    tem de ser considerada falsa pela experincia, ou seja, o critrio que define o status cientfico de uma teoria a sua

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    capacidade de ser refutada ou testada6. Defendia, assim, a falsabilidade como o nico critrio possvel de demarca-o entre cincia e no-cincia. Na sua concepo, a lgica dedutiva possibilita uma avaliao segura quanto vali-dade das proposies cientficas. Sendo assim, Popper

    criou critrios de limites com os quais a epistemologia deveria se ocupar para, dessa forma, poder distinguir as teorias cientficas das pseudocientficas.

    A tendncia histrica

    Bombassaro7 afirma que a tendncia histrica, tambm co-nhecida como nova filosofia da cincia, cujas manifesta-es tericas ocorreram no final da dcada de 1950, mais

    difcil de definir, por ser abrangente e ter uma produo

    bibliogrfica vasta e com temtica complexa.

    Tem trs grandes vertentes tericas. A primeira est vinculada aos trabalhos de Norwood Russell Hanson, Stephen Toulmin, Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend. A segunda tem influncia das teorias de

    Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e Michel Foucault. Embora esses autores partam de enfoques e tenham reper-cusses diferentes, h algo em comum neles: a negao do mtodo da tendncia analtica. A terceira vertente so as reflexes da Escola de Frankfurt, especialmente as dis-

    cusses polmicas de Theodor Adorno, levadas adiante por Jrgen Habermas.

    A crtica bsica da tendncia histrica em relao ten-dncia analtica a questo da metodologia cientfica. Os

    integrantes da nova filosofia da cincia consideravam a

    metodologia da tendncia analtica excessivamente sim-plista, pelo fato de que pressupunha uma anlise do conhe-cimento cientfico pelo ngulo dos enunciados lgicos,

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    deixando de considerar a ao efetiva dos pesquisadores que fazem cincia, o modo pelo qual essa ao realizada. Portanto, consideravam a epistemologia da tendncia ana-ltica uma cincia imaginria, uma fico cientfica, e no

    uma cincia real.A nova filosofia da cincia questionou os princpios filo-

    sficos do positivismo e do empirismo, tanto que Habermas

    referia-se constantemente tendncia histrica como pro-dutora de uma epistemologia ps-empirista. Alm disso, questionou a afirmao de que os nossos conhecimentos

    prvios e nossas crenas so constituintes da observao e do significado que atribumos quilo que observamos8. Dessa forma, reviu os limites da tendncia analtica, pro-vocando uma reviso geral da teoria dos sentidos e uma avaliao do contexto descoberto, que antes era despre-zado epistemologicamente.

    A nova filosofia da cincia tambm criticou o monismo

    metodolgico e o ideal de cincia unificada. Em contraponto,

    adotou o princpio da proliferao, segundo o qual se deve inventar e elaborar teorias alternativas aos pontos de vista comumente aceitos. O autor desse princpio foi Feyerabend, que na sua obra Against method props que o mtodo cien-tfico da cincia passasse a ser plural, em vez de se reduzir

    a uma nica metodologia. A proposta de uma cincia com um mtodo pluralstico abriu novas possi bilidades para estudos de biologia, antropologia, etnologia, sociologia etc.

    Outro nome de destaque na tendncia histrica foi Lakatos9, que desenvolveu uma teoria sobre a metodologia dos programas de investigao cientfica e confrontou o

    princpio do falseacionismo de Popper. A tese fundamen-tal de Lakatos para desmoronar esse princpio que a pr-pria histria da cincia falseia o falseacionismo. Segundo ele, as decises metodolgicas adotadas pelos cientistas

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    para desenvolver seus programas de investigao esto freqentemente ligadas a um ncleo metafsico de fundo10. Portanto, compreensivo quando Lakatos afirma, por

    exemplo, que a metafsica cartesiana teve um papel pre-ponderante na cincia mecanicista, servindo como um poderoso princpio heurstico.

    Pontos de contato entre as tendncias histrica e analtica

    Para Kuhn11, um conjunto de compromisso de nvel ele-vado [, que tem] [...] tanto dimenses metafsicas como meto-dolgicas, possibilita aos cientistas uma viso de mundo e um conjunto de regras que facilita a investigao.

    O que e como se produz o conhecimento so questes essenciais e constantes na histria do pensamento filos-fico. Tanto a tendncia histrica como a tendncia analtica

    deixaram entrever o princpio bsico do processo episte-molgico: a tentativa de superar a metafsica pela anlise da lgica da linguagem.

    indicaes culturais

    ALVES, R. Filosofia da cincia. So Paulo: Brasiliense, 1982.CHAUI, M. Convite filosofia. So Paulo: tica, 2003.COTRIM, G. Fundamentos da filosofia: ser, saber e fazer. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 1993.GARCIA, A. M. A experincia do conhecimento. In: HHNE, L. M. (Org.). Metodologia cientfica. 5. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 34-35.

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    Com base no texto, como se pode definir epistemologia?1.

    De acordo com o texto, como o problema do conhecimento 2. foi abordado nos diferentes perodos histricos?Por que alguns autores consideram o filsofo Immanuel 3.

    Kant como o fundador da teoria do conhecimento?

  • ( 3 )

    o inatismo

  • ( )

    neste captulo, analisa-se a concepo do inatismo, que teve como primeiro defensor o filsofo Plato e perdu-rou, de modo discreto, at os tempos modernos, quando foi retomada por Ren Descartes.

    Para Plato, a lembrana (anamnesis) a raiz do conhe-cimento, uma forma de recordar o que est no interior da alma. Vale ressaltar que a reminiscncia ou lembrana seria o despertar do conhecimento intelectivo das idias, sendo diferente da memria, cujo papel seria conservar as sensaes, registrar as impresses deixadas por elas, que

    Susana Salete Raymundo Chinazzo

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    ora so mais, ora so menos confusas.A doutrina da reminiscncia pressupe um apriorismo

    e uma espcie de inatismo da verdade. Segundo Plato, a alma preexistia no mundo das idias, onde as contemplava. Por castigo, foi unida ao corpo do mundo sublunar. Uma das conseqncias dessa unio foi o esquecimento das idias que a alma havia contemplado no outro mundo. No entanto, ao entrar em contato com as coisas deste mundo, que so sombras das idias, ela relembra o que havia con-templado. Portanto, aprender recordar ou reconhecer.

    No sistema de Plato, a reminiscncia exerce trs fun-es1:

    Provar a preexistncia, a espiritualidade e a imortali-1. dade da alma.Estabelecer uma conexo entre a vida antecedente e a 2. vida presente.Revelar a importncia do conhecimento sensitivo como 3. instrumento para despertar a recordao das idias.

    No dilogo Mnon, Plato diz: J que toda a natureza semelhante e a alma aprendeu tudo, nada impede que recorde uma s coisa (que alm disso, o que se chama aprender), encontre em si todo o demais se tem valor e no se canse na busca, j que buscar e aprender no so mais que reminiscncia2. importante salientar que, para esse filsofo, o elemento que faz a alma acordar para o mundo

    inteligvel o sentimento chamado amor, que inicialmente carnal e deseja um corpo belo e, aos poucos, passa a dese-jar a prpria beleza e o conhecimento de sua idia.

    Em todas as obras de Plato, h a defesa do inatismo da razo ou das idias verdadeiras. No dilogo acima citado, descreve Scrates dialogando com um jovem escravo anal-fabeto e conseguindo, por meio de perguntas, fazer com

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    que demonstrasse sozinho um difcil teorema de geome-tria, o Teorema de Pitgoras. Plato afirma que as verda-des matemticas surgiram no esprito do jovem justamente porque so inatas.

    Em A repblica, ele faz um esboo da teoria da remi-niscncia. Para isso, descreve Scrates dialogando com Glauco sobre o mito da caverna.

    Suponhamos uns homens numa habitao subterrnea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Esto l dentro desde a infncia, algemados de pernas e pescoos, de tal maneira que s lhes dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; so incapazes de voltar a cabea,

    por causa dos grilhes; serve-lhes de iluminao um fogo

    que se queima ao longe, numa eminncia, por detrs deles; entre a fogueira e os prisioneiros h um caminho

    ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no gnero dos tapumes que os homens dos rober-tos colocam diante do pblico, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.

    Estou a ver disse ele. Visiona tambm ao longo deste muro, homens que

    transportam toda a espcie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espcie de lavor; como natural, dos que os trans-portam, uns falam, outros seguem calados.

    Estranho quadro e estranhos prisioneiros so esses de que tu falas observou ele.

    Semelhantes a ns continuei . Em primeiro lugar, pensas que, nestas condies, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas

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    pelo fogo na parede oposta da caverna? Como no respondeu ele , se so forados a man-

    ter a cabea imvel toda a vida? E os objectos transportados? No se passa o mesmo

    com eles? Sem dvida. Ento, se eles fossem capazes de conversar uns com

    os outros, no te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?

    foroso. E se a priso tivesse tambm um eco na parede do

    fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, no te parece que eles no julgariam outra coisa, seno que era a voz da sombra que passava?

    Por Zeus, que sim! De qualquer modo afirmei pessoas nessas con-

    dies no pensavam que a realidade fosse seno a sombra dos objectos.

    absolutamente foroso disse ele. Considera pois continuei o que aconteceria se

    eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorn-cia, a ver se, regressados sua natureza, as coisas se pas-savam deste modo. Logo que algum soltasse um deles, e o forasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoo, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas

    sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se algum lhe afirmasse que at ento ele s vira coisas vs, ao passo

    que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forassem com perguntas a dizer o que era? No te parece que ele se veria

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    em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora

    eram mais reais do que os que agora lhe mostravam? Muito mais afirmou.

    Portanto, se algum o forasse a olhar para a prpria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar ref-gio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais ntidos do que os que lhe mostravam?

    Seria assim disse ele. E se o arrancassem dali fora e o fizessem subir

    o caminho rude e ngreme, e no o deixassem fugir antes de o arrastarem at luz do Sol, no seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os ver-dadeiros objectos?

    No poderia, de facto, pelo menos de repente. Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver

    o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facil-mente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na gua, e, por

    ltimo, para os prprios objectos. A partir de ento, seria capaz de contemplar o que h no cu, e o prprio cu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.

    Pois no! Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e

    de o contemplar, no j a sua imagem na gua ou em qual-quer stio, mas a ele mesmo, no seu lugar.

    Necessariamente. Depois j compreenderia, acerca do Sol, que ele que

    causa as estaes e os anos e que tudo dirige no mundo

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    visvel, e que o responsvel por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.

    evidente que depois chegaria a essas concluses. E ento? Quando ele se lembrasse da sua primitiva

    habitao, e do saber que l possua, dos seus companhei-ros de priso desse tempo, no crs que ele se regozijaria

    com a mudana e deploraria os outros? Com certeza. E as honras e elogios, se alguns tinham ento entre si,

    ou prmios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em ltimo, ou os que seguiam juntos, e quele que dentre eles fosse mais hbil em predizer o que ia acontecer parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo servir junto de um homem pobre, como servo da gleba, e antes sofrer tudo do que regressar quelas iluses e viver daquele modo?

    Suponho que seria assim respondeu que ele sofreria tudo, de preferncia a viver daquela maneira.

    Imagina ainda o seguinte prossegui eu . Se um homem nessas condies descesse de novo para o seu antigo posto, no teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?

    Com certeza. E se lhe fosse necessrio julgar daquelas sombras em

    competio com os que tinham estado sempre prisioneiros, no perodo em que ainda estava ofuscado, antes de adap-tar a vista e o tempo de se habituar no seria pouco acaso no causaria o riso, e no diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que no

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    valia a pena tentar a ascenso? E a quem tentasse solt-los e conduzi-los at cima, se pudessem agarr-lo e mat-lo, no o matariam?

    Matariam, sem dvida confirmou ele. (Repblica

    VII)

    Fonte: Plato. A RepblicA. 7. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993. P. 317-321.

    O mito ou alegoria da caverna representa o mundo sen-svel, onde os homens se encontram algemados e s podem olhar para as paredes escuras nas quais se projetam as som-bras. Se algum conseguisse escapar da caverna, a luz do sol primeiro ofuscaria sua viso. Aos poucos, os olhos se acos-tumariam e poderiam ver o mundo inteligvel. Para Plato, esse o momento em que o filsofo se depara com a verdade

    e com o seu papel de investigar e de estimular a busca pelo conhecimento da verdade. Por isso, o retorno caverna.

    Epistemologicamente, Plato explica com a alegoria da caverna a elevao do mundo sensvel ao inteligvel. Faz uma analogia do homem no mundo com a de um escravo algemado numa caverna subterrnea que somente pode visualizar as sombras projetadas das coisas e dos seres que esto fora dela. A filosofiaa seria o caminho para o homem sair da caverna e libertar-se para, ento, retornar caverna e libertar os companheiros.

    importante reforar que o conhecimento platnico est dividido em dois momentos. O primeiro o da opi-nio (dxa), em que as sombras simbolizam a imagina-o (eikasa) e a viso das esttuas representa a crena. O segundo o da cincia (epistme). A passagem da viso das

    a. Filosofia etimologicamente significa amor sabe-doria.

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    esttuas para a viso dos verdadeiros objetos representa a cincia intermediria (diania) e a inteleco (nosis).

    O mito da caverna possibilita tambm comentar sobre os graus ontolgicos em que a realidade se divide: os gne-ros sensvel e supra-sensvel. As sombras simbolizam as aparncias sensveis das coisas; as esttuas, as prprias

    coisas; o muro representa a linha divisria entre as coisas

    sensveis e supra-sensveis. As coisas verdadeiras do outro lado do muro so representaes do ser e das idias. O sol simboliza a idia do Bem.

    Segundo Plato, o processo do conhecimento a passa-gem do mundo das sombras e imagens ao luminoso uni-verso das idias, com etapas intermedirias. Para ele, o que no visto claramente no plano sensvel, s podendo ser objeto de conjectura, torna-se objeto de crena quando se tem a condio de percepo ntida. Contudo, a evidn-cia sensvel permaneceria sob o domnio da opinio. Seria uma crena. A certeza s surgiria com uma demonstra-o racional, sendo, ento, impulsionada para a esfera do conhecimento inteligvel.

    Para Plato, alcana-se o grau superior de conhecimen to quando o intelecto (a alma) reconhece as idias ou formas (eidos) em toda a sua perfeio. Esse estgio do conheci-mento se desvincularia totalmente dos sentidos e das pala-vras, estas incapazes de expressar a essncia, a no ser de modo aproximado. As idias s poderiam ser conhe-cidas pela nosis (intuio intelectual). A construo do conhecimento seria uma conjuno de intelecto e emo-o, de razo e vontade. A cincia (epistme) seria fruto da intelign cia e do amor.

    Outro filsofo que tambm aborda a teoria das idias

    inatas Ren Descartes, considerado o fundador da filoso-fia moderna. Ele se ocupou da questo do conhecimento,

    principalmente nos livros Discurso do mtodo e Meditaes

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    metafsicas. Descartes descreve que o nosso esprito tem trs tipos de idias, que se diferenciam por sua origem e quali-dade. A primeira idia a adventcia, que se originaria das nossas sensaes, percepes, lembranas. Seriam idias de experincias sensoriais ou sensveis das coisas a que se refe-rem. A segunda idia a fictcia, que se originaria das nossas

    fantasias e imaginaes. A terceira idia a inata, que no poderia vir de nossa fantasia, pois no houve experincia sensorial que possibilitasse comp-la em nossa memria.

    Segundo Descartes, as idias inatas so inteiramente racionais e s existem porque o homem j nasce com elas. Para ele, a idia de infinito e as idias matemticas, por

    exemplo, so claras e distintas, e no so inventadas pelo homem, esto presentes em algum lugar profundo da mente humana e vo surgindo medida que se pensa na essn-cia verdadeira, imutvel e eterna das coisas, razo pela qual servem de fundamento para o saber cientfico.

    Esse filsofo tinha uma grande confiana na razo. Para

    ele, a razo a luz natural inata que permite ao homem conhecer a verdade. Em outras palavras, a fonte do conhe-cimento verdadeiro e universalmente partilhado. A razo ou bom senso definiria o homem como homem, distinguin-do-o de outros animais. Na primeira parte do Discurso do mtodo, Descartes3 refere-se razo da seguinte forma:

    O bom senso a coisa mais bem distribuda do mundo, pois

    cada um pensa estar to bem provido dele, que mesmo aque-

    les mais difceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa

    no costumam desejar mais bom senso do que tm. Assim,

    no verossmil que todos se enganem; mas, pelo contrrio,

    isso demonstra que o poder de bem julgar e de distinguir o

    verdadeiro do falso, que propriamente o que se denomina

    bom senso ou razo, por natureza igual em todos os homens

    e, portanto, que a diversidade de nossas opinies no decorre

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    de uns serem mais razoveis que os outros, mas somente de

    que conduzimos nossos pensamentos por diversas vias, e no

    consideramos as mesmas coisas. Pois no basta ter o esprito

    bom, mas o principal aplic-lo bem. As maiores almas so

    capazes dos maiores vcios, assim como das maiores virtudes;

    e aqueles que s caminham muito lentamente podem avan-

    ar muito mais, se sempre seguirem o caminho certo, do que

    aqueles que correm e dele se afastam.

    Para Descartes, as idias inatas so as mais simples que o homem possui. Simples no no sentido de fceis, mas no de no existir outras. A mais famosa das idias ina-tas cartesianas Penso, logo existo. Essas idias seriam o ponto de partida da deduo racional e da induo, que se deparam com idias complexas ou compostas.

    importante salientar que, para Descartes, a deduo o encadeamento das intuies, que so idias simples. Das relaes existentes entre elas, seria possvel concluir novas idias e relaes. A deduo permitiria construir relaes necessrias entre as proposies, de forma tal que a verdade das proposies intuitivas passaria a ser uma concluso, partindo de uma verdade evidente para depois, dedutivamente, conhecer outros conhecimentos verdadei-ros. Logo, s seria possvel conceber a idia de falso e ver-dadeiro porque no esprito existem, de forma inata, a razo e a verdade, que permitiriam entender se uma idia corres-ponde ou no realidade.

    atividades

    Por que, para Plato, conhecimento reconhecimento?1. Por que, segundo Descartes, as idias inatas so inteira-2. mente racionais?

  • ( 4 )

    as possibilidades do conhecimento

  • ( )

    falar sobre as possibilidades do conhecimento nos remete aos temas clssicos que inquietam os epistemlo-gos, ou seja, a capacidade humana de conhecer a verdade, a origem e as formas do conhecimento, o critrio que nos leva a afirmar que um conhecimento verdadeiro ou no.

    Esses temas fizeram surgir vrias correntes de pensamento,

    que comentaremos neste captulo.

    Susana Salete Raymundo Chinazzo

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    (4.1)

    dogmatismo

    A palavra dogmatismo vem de dogma, que, no Dicionrio de filosofia, significa opinio ou crena. Foi usada por

    Plato (Rep. 538c; Leis, 644d) e contraposta pelos cticos

    epoch, ou suspenso do assentimento, que consiste em no definir a prpria opinio em um sentido ou em outro

    (Diog. 4, IX, 74).1

    importante esclarecer que, para os antigos, princi-palmente para os cticos, o conceito de epoch consiste em no aceitar nem refutar, em no afirmar nem negar. Para

    eles, essa atitude seria a nica possvel para no se sofrer perturbaes. J para a filosofia contempornea, princi-palmente a fenomenologia, consiste em uma atitude de contemplao desinteressada, desvinculada de qualquer interesse natural ou psicolgico pela existncia das coisas do mundo ou pelo prprio mundo. Consiste em colocar em suspenso crenas prvias, uma reduo de qualquer teo-ria e explicao apriorsticas. , portanto, uma forma de observar o enigma sem a pretenso de clarific-lo, mas,

    sim, de proteg-lo. Kant entendia dogma como uma proposio direta-

    mente sinttica derivada de conceitos e, portanto, distinta de uma proposio do mesmo gnero derivada da cons-truo dos conceitos, que um matema. Em outras pala-vras, os dogmas seriam proposies sintticas a priori de natureza filosfica e, portanto, no se poderiam chamar de

    dogma as proposies do clculo e da geometria.2

    No dicionrio3, a palavra dogma definida como deci-so, juzo, portanto decreto ou ordenao. Na Anti guidade (CICERO; Acad., IV9; SNECA; Ep., 94), indicava as crenas

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    fundamentais das escolas filosficas e, mais tarde, as deci-ses dos conclios e das autoridades ecle sisticas sobre as matrias fundamentais da f.4

    Chaui define dogmatismo como uma atitude muito

    natural e espontnea que o ser humano tem desde criana. sua crena de que o mundo existe e exatamente tal como o percebe, tendo essa crena porque um ser prtico, isto , relaciona-se com a realidade como um conjunto de coisas, fatos e pessoas que so teis ou inteis para a sua sobrevivncia.5

    Epistemologicamente, o dogmatismo (ou doutrina) no v problema no conhecimento. Parte da premissa de que o sujeito, a conscincia, apreende o objeto. Confia na razo

    humana. O conhecimento no visto como uma relao entre o sujeito e o objeto. O dogmatismo acredita que o objeto do conhecimento construdo pela razo, e no por obra da funo intermediria do conhecimento. Assim tambm concebe os valores. Eles simplesmente existem para o dogmtico.

    A atitude dogmtica v o mundo como j dado, pronto, pensado e transformado, em que a realidade natural, social, cultural e poltica forma uma espcie de moldura de um quadro no qual nos instalamos e existimos. Em outras pala-vras, no vemos nenhum problema na realidade exterior, mesmo sendo externa e diferente de ns.

    O dogmatismo concebe a existncia de um espao no qual o homem e os objetos esto submetidos sucesso dos instantes. Santo Agostinho, na obra Confisses, encara o tempo e o espao sem maior profundidade sobre o assunto. Como o autor diz: Se ningum me pergunta, sei;

    se algum pergunta e quero explicar, no sei mais6.Dentro do dogmatismo gnosiolgico, existem duas

    variantes bsicas7: 1) o dogmatismo ingnuo, que est

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    presente no senso comum, confia plenamente nas possi-bilidades do conhecimento e no v problemas na rela-o sujeito conhecedor e obj eto conhecido, acreditando que, sem maiores dificuldades, o homem percebe o mundo

    tal qual ele ; 2) o dogmatismo crtico cr que a razo do

    homem tem a capacidade de conhecer a verdade mediante os sentidos e a inteligncia, atravs de um trabalho met-dico, racional e cientfico.

    (4.2)

    ceticismo

    O termo ceticismo deriva de skpsis, que significa procura ou investigao, revelando que a sabedoria no consiste no conhecimento da verdade, mas na sua procura. uma demonstrao de insatisfao e desconfiana contra todas

    as solues filosficas referentes verdade.

    Os cticos entendem que o sujeito no tem possibili-dade de apreender o objeto, duvidam de qualquer conheci-mento apresentado e o questionam, pois, na sua concepo, o ser humano no pode formular juzos. Desse modo, atri-buem exclusiva importncia ao sujeito, no ato de conhecer, ignorando completamente as funes do objeto.

    O ceticismo absoluto nega radicalmente a possibilidade de conhecer a verdade. Como diz Grgias: O ser no existe;

    se existisse no poderamos conhec-lo; e se pudssemos

    conhec-lo, no poderamos comunic-lo aos outros.8 importante salientar que esse posicionamento radical leva negao da premissa mxima do ceticismo: O conhe-cimento impossvel. Tem-se, pois, uma contradio, j que, quando se afirma a impossibilidade do conhecimento,

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    concomitantemente nega-se a prpria afirmao.

    Os crticos do ceticismo absoluto ou radical afirmam

    que essa uma doutrina extremista que nega totalmente a possibilidade de conhecer, tornando-se, assim, uma teoria estril e contraditria que no leva a lugar algum. Anula a si prpria, pois, ao dizer que nada verdadeiro, acaba afirmando que existe pelo menos uma coisa verdadeira: o

    conhecimento de que nada verdadeiro.Alguns pensadores vem o filsofo grego Pirro como

    o fundador do ceticismo absoluto. Para ele, impossvel o homem conhecer a verdade, por dois motivos. Um deles diz respeito ao fato de que os sentimentos, onde nasce o conhecimento, no so dignos de confiana, pois induzem

    ao erro. O outro se relaciona razo, que tem diferentes opinies sobre os mesmos temas e revela, assim, os limites da inteligncia humana. Logo, no haveria confronto de idias e o conhecimento no seria possvel. Assim, jamais se atingiria a certeza de alguma coisa.

    As grandes linhas do ceticismo pirrnico podem ser divididas em duas noes fundamentais: suspenso do juzo (epoch) e indiferena (adiaforia). A primeira afirma que a dialtica de opinies no revela um juzo absoluto. A conscincia cognoscente no apreenderia o objeto. Logo, no haveria conhecimento. De dois juzos contraditrios, um seria to verdadeiro como o outro. Isso significa uma

    negao das leis lgicas do pensamento, especialmente do princpio da contradio. Segundo Pirro, as teorias so rela-tivas ao prprio sujeito e a postura de suspenso do juzo corresponde a uma total indiferena em relao s coisas.

    A segunda afirma que a indiferena especulativa leva a

    uma indiferena prtica, pois uma renncia ao saber, envol-vendo suspenso do juzo sobre o bem e o mal. Logo, a felici-dade resultaria da total indiferena ao bem e ao mal, levando

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    conseqentemente ao autodomnio e independncia.No campo da tica, em que se considera um valor a aspi-

    rao verdade, o ceticismo no aceito, porque no leva em conta a conscincia humana sobre os valores morais. O perigo estaria em se reduzir a tica a uma viso subjetiva.

    No perodo moderno, o ceticismo se fez presente em uma nova epistemologia, que passou pela dvida metdica do filsofo Ren Descartes, em que no h um ceticismo de

    princpio, mas um ceticismo metdico, e culminou na obra Crtica da razo pura, do filsofo alemo Immanuel Kant, que

    afirma a incognoscibilidade da coisa-em-si. A diferena

    moral, aliada evidncia de uma verdade objetiva, deu lugar defesa da tolerncia como valor supremo. Outros dois personagens importantes do ceticismo so o filsofo

    francs Montaigne (1592), que afirmava ser um ctico em

    relao tica, e David Hume, um ctico metafsico. Existe um ceticismo mais brando, conhecido como inter-

    medirio ou acadmico, que defende a tese de que no h verdade nem certeza, apenas probabilidades. Segundo essa teoria, os juzos humanos no so verdadeiros, mas apenas provveis. Mas essa forma de ceticismo contradiz o princ-pio inerente do ceticismo, pois o conceito de probabilidade pressupe o de verdade, ou aquilo que se aproxima da ver-dade. Quem no admite a idia de verdade tem de abdicar tambm da idia de probabilidade.

    H ainda o ceticismo metafsico, denominado de positi-vismo. Defendido por Auguste Comte (1798-1857), limita-se a aceitar o conhecimento que advm da experincia, da pesquisa das cincias empricas, recusando qualquer espe-culao metafsica.

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    (4.3)

    pragmatismo

    O pragmatismo foi criado em 1898 pelo filsofo americano

    William James (1842-1910), com base nas teorias de Peirce apresentadas no artigo Como tornar claras as nossas idias, de 1878. Peirce diz ter preferido o termo pragmatismo, que significa ao, aos termos praticismo ou praticabilismo por conhecer a filosofia kantiana. Kant atribui a idia de

    prtico filosofia moral, em que no h experimentao.

    J a doutrina criada por Pierce tem a experimentao como base. Outro que preferia esse termo era o filsofo Friedrich

    Schiller, por estar ligado teoria do significado. A sua tese

    fundamental consiste em reduzir a verdade utilidade e a realidade ao esprito.

    Para o pragmatismo, a verdade til, valiosa e fun-cionalista. Apresenta, assim, um novo conceito de verdade e uma nova concepo de ser humano, em que ele no visto como um ser pensante, questionador perante os mis-trios da natureza, mas sim como um ser prtico, um ser que tem vontade e capacidade de agir. Logo, o intelecto humano estaria a servio da praticidade e funcionalidade que o cotidiano do ser humano exige.

    Entre os adeptos do pragmatismo, pode-se citar o fil-sofo alemo Friedrich Nietzsche (1844-1900). Com base no seu conceito naturalista e voluntarista de ser humano, ele afirma que:

    a verdade no um valor terico, mas apenas uma expresso

    para designar a utilidade, para designar aquela funo do juzo

    que conserva a vida e serve a vontade do poder. [De modo mais

    paradoxo, o autor revela essa mesma idia quando diz:] A falsi-

    dade de um juzo no uma objeo contra esse juzo.9

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    Apropriando-se da concepo de Nietzsche, Hans Vaihinger diz que o homem , antes de tudo, um ser ativo, e que o intelecto, o qual trabalha de preferncia com pressu-postos conscientemente falsos, com fraes, no foi dado a ele para que conhecesse a verdade, mas sim para que atuasse. Para Jorge Simmel, que defende o pragmatismo na sua filosofia do dinheiro, a verdade o erro mais ade-quado. Segundo ele, so verdadeiras aquelas representa-es que resultam em motivos de ao adequada e vital.

    Todos esses autores fazem distino entre verdadeiro e til. Conservam o sentido de verdade no sentido de concordncia. Partem da premissa de que no h qualquer juzo verdadeiro, que a nossa conscincia cognoscente tra-balha com representaes conscientemente falsas.

    A crtica que se faz ao pragmatismo deve-se princi-palmente sua desconsiderao do valor do pensamento humano e da autonomia ontolgica, por vincular o conhe-cimento especificamente superficialidade, s aparncias

    e praticidade dos afazeres cotidianos do homem e por no se focar na busca pela essncia do conhecimento, her-dada da tradio filosfica grega.

    (4.4)

    criticismo

    O criticismo uma teoria intermediria entre o dog-matismo e o ceticismo, compartilhando com aquele a confiana na razo humana. Segundo essa doutrina, o

    conhecimento possvel, h uma verdade. Deve-se, porm, examinar todas as afirmaes da razo e no aceitar nada

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    despreocupadamente, ou seja, deve-se perguntar pelos motivos e pedir contas razo. O comportamento no deve ser dogmtico nem ctico, mas sua soma, que crtico.

    O criticismo est presente em qualquer reflexo episte-molgica. J existia na Antiguidade, nas obras de Plato e Aristteles e nas teorias dos esticos, assim como na Idade Moderna, no trabalho de Descartes, Leibnitz Locke e David Hume. Mas quem concebeu o criticismo como teoria foi Immanuel Kant, que buscou estabelecer limites ao intelecto humano por meio de leis, conciliando duas correntes de pen-samento: o racionalismo dogmtico e o empirismo ctico.

    O racionalismo dogmtico visava conhecer seus obje-tos absolutamente a priori e defendia com rigor a razo como fonte do conhecimento, fundamentado no princ-pio das idias inatas e no mtodo dedutivo-matemtico. Os dogmticos acreditavam no poder exclusivo da razo e apoiavam-se nos domnios dos juzos analticos de explica-o. Ao contrrio do racionalismo dogmtico, o empirismo ctico fazia severas crticas concepo de idias inatas e buscava compreender a cincia sempre por meio dos ju-zos sintticos a posteriori, juzos baseados na experincia.

    Kant reconhece que sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria

    pensado. Os pensamentos sem contedos so vazios, intui-es sem conceitos so cegas10. Seu mtodo de filosofar consiste em investigar as fontes das afirmaes e objees e

    as razes que fundamentam a esperana de chegar certeza. Kant, realizando uma sntese entre o racionalismo dogm-tico e o empirismo ctico, demonstra que tanto a razo como as experincias possuem limites. Como diz o autor: Nossa poca a poca da crtica, a que tudo deve submeter-se11.

    Kant no pretendia tornar o seu tempo o apogeu da razo humana, mas apontou critrios pertinentes para uma

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    avaliao no desenvolvimento de idias. O seu criticismo reconhece limites na razo, desmistificando, assim, o auto-ritarismo e a onipotncia da razo defendida pelo dogma-tismo. A originalidade do pensamento kantiano est na idia de vincular liberdade com razo humana.

    Para ele, transcendental no tinha nada a ver com transcendente, mas com as condies da razo para a constituio do conhecimento. Na esttica transcendental, o filsofo trata da sensibilidade enquanto faculdade que pos-sibilita as intuies dos objetos. As formas a priori da sensi-bilidade so o espao e o tempo existentes no sujeito.

    importante distinguir o criticismo como mtodo e o cri-ticismo como sistema. Em Kant, o criticismo significa ambas

    as coisas: no s o mtodo de que o filsofo se serve e que se

    ope ao dogmatismo e ao ceticismo, mas tambm o resul-tado determinado a que se chega com a ajuda desse mtodo.

    indicaes culturais

    CHAUI, M. Convite filosofia. So Paulo: tica, 1994.COTRIM, G. Fundamentos da filosofia: ser, saber e fazer. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 1993. HESSEN, J. Teoria do conhecimento. 8. ed. Coimbra: Armnio Amado, 1987.

    atividades

    Podemos identificar na sociedade atual a presena do ceti-1. cismo, do pragmatismo, do dogmatismo e do criticismo? Exemplifique e comente.

    Destaque o nome de um pensador para cada corrente filo-2. sfica do conhecimento.

  • ( 5 )

    o que racionalismo?

  • ( )

    este captulo um convite para conhecer o raciona-lismo, que enfatiza categoricamente o conhecimento racio-nal e que a razo to antiga quanto a filosofia.

    O racionalismo concebe a razo (do latim ratio) como um instrumento capaz de conhecer a verdade. Mas o que razo para essa teoria? uma estrutura vazia, uma forma pura sem conte do. Essa estrutura universal, igual para todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares, e inata, isto , no adquirida por meio da experincia, como ocorre com os contedos. Segundo os racionalistas, justamente

    Susana Salete Raymundo Chinazzo

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    por ser inata que no depende de experincia para existir; a

    razo anterior experincia, epistemologicamente falando. Ou, como diz Kant, a estrutura da razo a priori (vem antes) da experincia e no depende dela. Enquanto a estrutura da razo seria inata e universal, os contedos seriam empricos e poderiam variar no tempo e no espao, transformando-se com novas experincias.1

    (5.1)

    o racionalismo transcendental de plato

    Os pensadores pr-socrticos (os filsofos jnios, os ele-ticos, Herclito e os pitagricos) confiavam plenamente na

    capacidade de conhecer a verdade pela razo humana, vol-tando-se para a natureza, para a physis (o ser). Mas nesse perodo o conhecimento no era visto como relao ou inter-relao entre sujeito e objeto.

    A forma mais antiga de racionalismo encontrada em Plato. Para ele, o verdadeiro saber se distingue pela necessi dade lgica e pela validade universal. Plato pro-ps construir uma cincia absoluta, isto , a determinao da estrutura lgica de uma cincia dos inteligveis puros, em que a intuio e o discurso se aliariam um ao outro em uma unidade coerente. Segundo Plato, a filosofia o

    mtodo para descobrir aquilo que , o que o ser, e que no pode ser outro, por meio da intuio intelectual, da razo, do pensamento, do nous, como dizem os gregos. Na sua concepo, o mundo da experincia est em contnua alterao e mudana e, por conseguinte, os sentidos no

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    podem conduzir a um verdadeiro saber. As idias platnicas esto baseadas na essncia das

    coisas, ou seja, naquilo que cada coisa realmente . Plato usava o termo paradigma para indicar que as idias represen-tam o modelo permanente de cada coisa. As idias seriam o modelo das coisas empricas, que tm a sua maneira de ser, a sua essncia peculiar, a sua forma (eidos).

    Esse filsofo acreditava na existncia de uma reali-dade supra-sensvel, ou seja, uma dimenso suprafsica do ser. Essa dimenso seria o mundo das idias, que no tem uma ordem lgica, mas sim uma ordem metafsica, e con-tm um reino de idias essenciais. Nesse mundo, reinaria o ser de Parmnides, que o mundo das idias eternas (da alma preexistente imortal), tambm chamado hiperurnio (lugar acima do cu). Existiria tambm o mundo material e sensvel, em que predominam a multiplicidade e o movi-mento de Herclito. O mundo das idias seria o mundo do ser, o objeto de conhecimento verdadeiro e necessrio, isto , a sede da verdade.

    Plato apresentou sua teoria da anamnese como a raiz do conhecimento. Segundo essa teoria, todo conhecimento uma reminiscncia, uma recordao daquilo que j existe desde sempre no interior da alma, que contemplou as idias no mundo das idias e recorda-se delas na ocasio da percepo sensvel. A raiz desse racionalismo a teo-ria da contemplao das idias, que pode ser chamada de racionalismo transcendentala.

    a. Na viso platnica, transcendncia significa o estado ou a condio do princpio divino ou do ser que est alm de tudo, de toda experincia humana (enquanto experincia de coisa) ou do prprio ser (ABBAGNANO, 1982, p. 930).

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    (5.2)

    o racionalismo teolgico de santo agostinho

    Para Santo Agostinhob, Plato foi o pensador que marcou profundamente a especulao crist. O Bispo de Hipona considerava o platonismo a mais pura e luminosa filosofia da

    Antiguidade e acreditava que o papel da razo humana era aproximar o homem da grandeza e do mistrio de Deus.

    Para ele, a natureza humana est ordenada a receber a natureza soberana de Deus. Todos os valores terrestres aos quais o homem est ligado seriam o reflexo do nico

    valor divino. O homem no estaria na Terra para si mesmo, mas para encontrar a Deus, que o criou para Ele. Esse pen-samento to claro e lgico para o autor como um dia bem ensolarado ou, matematicamente falando, como se dois mais dois fosse igual a quatro.

    Santo Agostinho afirma que o ato de conhecer a

    expresso suprema da existncia humana. Em outras pala-vras, significa viver segundo a razo. Todavia, o que ,

    para ele, viver segundo a razo? Resumidamente falando, a pesquisa da verdade das coisas humanas e divinas. A razo seria uma atividade voltada para um movimento interior que, pela anlise e pela sntese, revelava a unidade do objeto em sua pureza e em sua integridade.

    A essncia do pensamento de Santo Agostinho a busca por resolver o impasse entre a f e a razo, comum

    b. Santo Agostinho (354-430), tambm conhecido como Agostinho de Hipona, foi um bispo catlico, telogo e filsofo que nasceu em Tagaste, importante cidade da Numdia (hoje Souk-Ahras).

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    no perodo medieval. O Bispo de Hipona se defrontou com a questo da dvida ctica e, ao tentar super-la, reconhe-ceu o papel fundamental do conhecimento racional, ante-cipando, assim, o cogito cartesiano e admitindo que o ser humano um ser que pensa e duvida. Em suas palavras:

    Contudo, quem duvida que vive, recorda, entende, quer,

    pensa, conhece e julga? Porque, se duvida, vive; se duvida,

    lembra-se da dvida; se duvida, entende que duvida; se

    duvida, porque busca a certeza; se duvida, pensa; se duvida,

    sabe que no sabe; se duvida, porque julga que no deve

    concordar temerariamente. E ainda que duvide de todas as

    outras coisas, no pode duvidar destas, pois, se no existis-

    sem, seria impossvel qualquer dvida.2

    Como visto, as idias, para Santo Agostinho, conver-tem-se nas idias criadoras de Deus. O conhecimento teria seu lugar se Deus iluminasse o ser humano. Somente assim o homem conseguiria ter um comportamento moral. J nas ltimas obras, reconheceu, alm desse saber fundamen-tado na iluminao divina, outro campo do saber: a expe-rincia. importante salientar que, para Santo Agostinho, o saber, no sentido prprio e rigoroso, procede da razo humana ou da iluminao divina.

    Esse tipo de racionalismo, que se baseia na teoria da ilu-minao divina, conhecido como racionalismo teolgico. O problema central dessa filosofia era conciliar as exign-cias da razo humana com a revelao divina. A escols-tica medieval se caracterizava por sua forma de abordar e solucionar esse problema.

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    (5.3)

    a contribuio da renascena

    O Renascimento comeou na Itlia, no sculo XIV, como reflexo do crescimento das cidades e das intensas atividades

    mercantis. No ambiente urbano, surgiu um novo modo de vida, novos gostos, novas idias, tudo isso promovido por uma nova classe em ascenso: a burguesia, que se dedicava s finanas e ao comrcio. Foi nessa poca que comeou o

    chamado ciclo das navegaes e dos descobrimentos.Nicola Abbagnano3, em seu Dicionrio de filosofia, men-

    ciona as seguintes caractersticas do Renascimento:

    1. O humanismo, isto , o reconhecimento do valor humano

    e a crena de que a humanidade se realizou em sua forma

    mais perfeita na Antigidade clssica;

    2. A renovao religiosa efetivada da tentativa de ligar-se

    novamente a uma revelao originria, na qual se teriam

    inspirado os prprios filsofos clssicos, como o caso do

    platonismo, ou atravs da tentativa de reatar o contato

    com as fontes originrias do cristianismo passando por

    cima da tradio medieval, como o caso da reforma;

    3. A renovao das concepes polticas efetivada com o reco-

    nhecimento da origem humana ou natural das sociedades

    e dos estados (Maquiavel) ou com a tentativa de voltar s

    formas histricas originrias (pr-naturalismo);

    4. O naturalismo, isto , o renovado interesse pela pesquisa

    direta da natureza, que se manifesta quer no aristotelismo ou

    nas orientaes mgicas, quer na metafsica da natureza.

    Os renascentistas inspiravam-se avidamente em velhos escritos e redescobriram o ideal artstico do mundo greco-romano, voltando ao passado para construir um mundo

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    novo. O Renascimento ainda no era a marcha triunfal da razo e do cientfico, pois ainda guardava marcas do pen-samento medieval. Porm, criou condies para a arran-cada cientfica do sculo XVII.

    O incio desse sculo foi uma poca de instabilidade e de perturbaes polticas e sociais. A Frana vivia sob o reinado agitado de Lus XIV. A fsica de Galileu colocava radicalmente em questo as concepes aristotlicas do Cosmo e desafiava a autoridade da Igreja. A Reforma pro-vocou uma profunda diviso entre catlicos e protestantes. Muitos se tornaram partidrios do ceticismo de Montaigne. Poucos eram os defensores da religio e seus representan-tes limitavam-se a criticar os partidrios da nova cincia. A condenao de Galileu pelo Santo Ofcio, em 1633, assus-tou cientistas e filsofos.

    No final do sculo XVI, comeou-se a buscar novos

    caminhos, mais certos e seguros, para a investigao filo-sfica. Surgiram, assim, duas grandes correntes de pen-samento: o empirismo e o racionalismo. Os racionalistas acreditavam que a experincia sensorial gerava pensa-mentos errneos e confusos sobre a realidade. J a razo humana possibilitaria o conhecimento verdadeiro e uni-versalmente aceito. Segundo a teoria do racionalismo, os princpios lgicos seriam inatos na mente humana. Por isso, a razo era vista como a fonte bsica do conhecimento.

    A grandiosidade do racionalismo consiste em ter enfa-tizado com veemncia o significado do racional no conheci-mento humano. Mas exclusivista ao fazer do pensamento a nica fonte do conhecimento e por defender a tese de que esse conhecimento precisa