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1 A construção do ethos e da manipulação em ‘Hitler’ Gabriel Antonio Mesquita de Araujo Jaqueline de Fátima Masotti Luiza Helena Spolador Silva Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Resumo: O presente trabalho possui como objetivo analisar os modos como são operacionalizados os estudos em Teoria do Texto na peça publicitária “Hitler”, veiculada pelo periódico Folha de S. Paulo no ano de 1987 1 (tendo sido produzida pela agência publicitária W Brasil) e em 2010 2 (quando foi relançada pela agência África). Para tanto, houve uma preocupação em compreender as bases teóricas da enunciação e do enunciado, descrevendo e analisando a propaganda dentro das teorias formuladas por Bakhtin, além de ter como base do trabalho estudiosos como Maingueneau e Marcuschi. O trabalho aponta tanto para a importância da construção do ethos, pathos e logos do jornal como para os processos manipulativos do/no discurso publicitário. Palavras-chave: análise do discurso, ethos, manipulação, publicidade, Hitler. 1. Introdução Para a realização desse trabalho, se mostrou imprescindível a escolha de uma peça publicitária que fosse profícua quando à análise, em um âmbito de estudo das 1 OLIVETTO, W. Hitler [Peça publicitária-vídeo]. Produção de Washington Olivetto. Disponível em < https://www.youtube.com/watch? v=bZaYeiptmd4 > Acesso em: 08 jun 2015. 2 ÁFRICA. Hitler [Peça publicitária-vídeo]. Produção da agência de publicidade África. Disponível em < https://www.youtube.com/watch? v=pxtIpCyiBgc > Acesso em: 08 jun 2015.

Enunciação e Discurso - Hitler

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Análise dos dispositivos enunciativos da propaganda Hitler da Folha de São Paulo

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Page 1: Enunciação e Discurso - Hitler

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A construção do ethos e da manipulação em ‘Hitler’

Gabriel Antonio Mesquita de Araujo

Jaqueline de Fátima Masotti

Luiza Helena Spolador Silva

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Resumo: O presente trabalho possui como objetivo analisar os modos como são operacionalizados os

estudos em Teoria do Texto na peça publicitária “Hitler”, veiculada pelo periódico Folha de S. Paulo no

ano de 19871 (tendo sido produzida pela agência publicitária W Brasil) e em 20102 (quando foi

relançada pela agência África). Para tanto, houve uma preocupação em compreender as bases teóricas

da enunciação e do enunciado, descrevendo e analisando a propaganda dentro das teorias formuladas

por Bakhtin, além de ter como base do trabalho estudiosos como Maingueneau e Marcuschi. O trabalho

aponta tanto para a importância da construção do ethos, pathos e logos do jornal como para os

processos manipulativos do/no discurso publicitário.

Palavras-chave: análise do discurso, ethos, manipulação, publicidade, Hitler.

1. Introdução

Para a realização desse trabalho, se mostrou imprescindível a escolha de uma

peça publicitária que fosse profícua quando à análise, em um âmbito de estudo das

teorias discursivas. A propaganda “Hitler”, da famosa agência W Brasil, apresenta

interessantes pontos a serem explorados e dissecados, por fugir aos padrões muitas

vezes previsíveis que este gênero de texto impõe – e, exatamente por esta razão, foi

amplamente premiada tanto dentro do país quanto no exterior. Para a realização desta

investigação, dirigiu-se uma atenção especial ao cânone da linguística textual,

especialmente aos estudos de Bakhtin e Maingueneau sobre a área, procurando construir

uma base completa e efetiva para fundamentar teoricamente a análise. Procurou-se

apoio também nas obras de Marcuschi e Benveniste, além da contribuição de Chomsky.

Os conceitos firmados no discorrer do ponto 2 – ‘Abordagem Teórica’ foram retomados

1 OLIVETTO, W. Hitler [Peça publicitária-vídeo]. Produção de Washington Olivetto. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=bZaYeiptmd4 > Acesso em: 08 jun 2015.

2 ÁFRICA. Hitler [Peça publicitária-vídeo]. Produção da agência de publicidade África. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=pxtIpCyiBgc > Acesso em: 08 jun 2015.

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nos desdobramentos subsequentes (ponto 3 – ‘Análise do corpus’), buscando, através de

rigor metodológico, estabelecer paralelos.

Tendo como objetivo um maior entendimento de como as teorias de texto e

discurso atuam em uma peça publicitária, estabeleceu-se como meta uma análise

comparativa entre o tripé ethos, pathos e logos em Aristóteles e sua ressonância nas

teorias contemporâneas de Análise do Discurso. Além disto, tanto os mecanismos de

manipulação, construídos a partir de uma complexa trama de sentidos, quanto as

ideologias, fortemente ligadas ao ethos discursivo, terão seus fundamentos alicerçados

de forma generalizante, sendo posteriormente aplicados especificamente ao comercial

em questão.

2. Abordagem teórica

A área da Linguística apresenta dois conceitos caros à Análise do Discurso, cuja

aplicação e compreensão são muitas vezes complexas, merecendo uma atenção especial

no desenvolvimento deste trabalho, a saber: a Enunciação e o Enunciado. A primeira, de

acordo com Émile Benveniste, é “colocar em funcionamento a língua por um ato

individual de utilização. [...] é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do

enunciado” (1995: 82), sendo, portanto o Enunciado seu produto.

Intrinsecamente ao Enunciado, dois outros elementos podem ser apreendidos

como parte integrante e propiciadora da comunicação humana, sendo estes o Discurso e

o Texto. A instância discursiva pode ser relacionada à noção sausseariana de

Significado, sendo aquela a responsável pela veiculação dos conceitos e conteúdos

expressos formalmente no texto – o Significante de Sausseare. Neste plano dialógico,

pode-se apreender a ideologia (fruto do Discurso) através de marcas linguísticas

textuais.

De maneira exemplificadora, pode-se construir um paralelo metafórico entre

estes elementos e os conceitos musicais mais básicos: a Enunciação seria como uma

pentagrama, dando suporte aos demais componentes da música; o Texto poderia ser

representado pela imagem das figuras musicais, sua corporeidade; o Discurso,

finalmente, seria o valor que as figuras musicais possuem, seus conteúdos.

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O campo da Análise do Discurso sofrera influências de diferentes áreas do

conhecimento, sobretudo da Retórica. Dentro desta perspectiva, se tem o enunciado

submetido a um tripé elementar, inerente às instâncias do Eu (ego), Aqui (hic) e Agora

(nunc), elementos que norteavam o estudo dos textos orais e escritos. Distanciando-se

deste contexto teórico, com o advento da Pragmática, a Análise do Discurso ganha

novos contornos, abandonando a noção de enunciado como estrutura fechada,

impermeável a influxos contextuais. De maneira correlata, Marcuschi pondera:

“o que não se pode continuar fazendo é um trabalho isolado num só nível como se este fosse

(auto)suficiente. Assim, eu diria que dois aspectos devem ser evitados no trato da língua:

i. Recortes com características de autossuficiência

ii. Prescrições de produção com características estáticas.

Portanto, dizer que a análise da língua se limita à sintaxe é reduzir a língua a algo muito

delimitado, pois os aspectos textuais e discursivos, bem como as questões pragmáticas, sociais e

cognitivas são muito relevantes e daí não se poder evitar de considerar o funcionamento da

língua em textos realizados em gêneros.” (MARCUSCHI, 2008: 57-58)

Para Bahktin, teórico que serviu-se da Pragmática em seus estudos, não há, sob

qualquer circunstância, enunciado que esteja desvencilhado de uma relação entre

interlocutores, um Eu (locutor discursivo3), que se dirige a um Tu (destinatário

discursivo4), e que não esteja reduzido a uma conformidade espaço-temporal (topografia

e cronografia5). Diferentemente dos retóricos, a perspectiva bakhtiniana atem-se não ao

enunciado, mas sim ao que é intrínseco à enunciação e aos elementos que permitem a

sua realização e efetivação. Assim, torna-se importante as relações interacionais entre os

discursos e a esfera humana e social (cena enunciativa). Ainda sob as conjecturas

marcuschianas:

“A tendência é ver o texto no plano das formas linguísticas e de sua organização, ao passo que o

discurso seria o plano do funcionamento enunciativo, o plano da enunciação e efeitos de sentido

na sua circulação sociointerativa e discursiva envolvendo outros aspectos. Texto e discurso não

distinguem fala e escrita como querem alguns nem distinguem de maneira dicotômica duas

abordagens. São muito mais duas maneiras complementares de enfocar a produção linguística

em funcionamento.” (MARCUSCHI, 2008: 58)

3 Termo usado por Maingueneau, na obra Novas tendências em análise do discurso, a qual está referenciada na bibliografia.4 idem5 idem

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Esta ótica de aspecto interacionista corrobora uma das noções centrais para este

campo de estudo: a construção dupla de sentido. Isto significa que o sentido não é

produzido unilateralmente pelo enunciador; pelo contrário, a recepção dada ao texto

pelo enunciatário também reveste o texto de outros sentidos, fazendo com que ambos

participem dialogicamente da construção do discurso. Segundo Maingueneau:

“o contexto não se encontra simplesmente ao redor de um enunciado que conteria um sentido

parcialmente indeterminado que o destinatário precisaria apenas especificar. Com efeito, todo ato

de enunciação é fundamentalmente assimétrico: a pessoa que interpreta o enunciado reconstrói

seu sentido a partir de indicações presentes no enunciado produzido, mas nada garante que o que

ela reconstrói coincida com as representações do enunciador. […] A própria ideia de um

enunciado que possua um sentido fixo fora de contexto torna-se insustentável.”

(MAINGUENEAU, 2001: 20)

Assim, vê-se que a construção do sentido se dá durante o processo enunciativo,

ou seja, dentro de um contexto dialógico. Todavia, a intenção comunicacional do

locutor discursivo não está garantida na recepção do destinatário discursivo. Portanto, o

produtor de textos se dirige a um público empírico6, formado por leitores-modelo que

possuem o conhecimento esperado (saber enciclopédico7) para a apreensão do sentido

total de seu discurso. De forma muito sucinta, Marcuschi afirma que:

“um dos aspectos centrais no processo interlocutivo é a relação dos indivíduos entre si e com a

situação discursiva. Estes aspectos vão exigir dos falantes e escritores que se preocupem em

articular conjuntamente seus textos ou então tenham em mente seus interlocutores quando

escrevem” (MARCUSCHI, 2008: 77)

Ainda sob esta premissa de que o discurso só existe dentro das relações

humanas, se verificará que cada esfera social exigirá que seus textos estejam submetidos

a determinados padrões comunicacionais. Isto quer dizer que cada situação de

comunicação requer rituais de linguagem específicos, havendo um contrato

preestabelecido entre os interlocutores pela doxa social. Este conjunto de padrões é mais

especificamente denominado Coerções Textuais, que terminam por promover um

agrupamento de textos com características semelhantes, os famosos Gêneros do

Discurso.

Ao adentrar o âmbito destes diversos gêneros, abre-se uma nova abordagem para

o estudo de seus elementos constitutivos, em especial para o papel do produtor destes 6 Termo usado por Maingueneau, na obra Análise de textos de comunicação, também referenciada na bibliografia.7 Idem.

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discursos. Novamente os estudos da Retórica se mostram basilares e elucidativos quanto

a este papel, uma vez que a figura do orador é seu ponto central. Aristóteles, o maior

expoente dos estudos retóricos, analisa o orador e sistematiza três tipos de provas

(pisteis) artísticas criadas por este, a fim de que seu discurso seja capaz de persuadir e

gerar confiabilidade perante a audiência. A primeira diz respeito ao ethos do orador,

tendo em vista que se pode alcançar a persuasão pelo seu caráter, quando o discurso é

dito de tal forma que torne o orador digno de crédito. Assim este, por meio de uma

manipulação verbal, constrói uma persona condizente com seus intentos. Um segundo

tipo concerne às paixões (pathos) dos ouvintes, os sentimentos suscitados no público.

Se há, por exemplo, o risco de uma guerra iminente deve-se gerar na plateia os

sentimentos de força e patriotismo, com a meta de que a batalha seja vencida. O terceiro

tipo de prova refere-se ao valor demonstrativo do discurso (logos). Aristóteles pontua

que o discurso promove a persuasão quando a verdade e o verossímil são mostrados.

Para isso, utilizam-se os exemplos, seja um fato histórico ou fictício e os entimemas,

que são silogismos retóricos, uma forma de raciocínio em que, sendo fornecidas certas

proposições e premissas, delas deve resultar necessariamente uma nova proposição. Não

é por acaso que, muitas vezes, chamamos o texto (seja ele oral ou escrito) de discurso;

suas bases são muito similares, assumindo o produtor de textos um quê de orador. A

persuasão daquele, entretanto, não é tão visível quanto a deste (por esta utilizar

elementos extralinguísticos, enquanto aquela se limita ao conteúdo linguístico) e pode,

muitas vezes, ser tão implícita a ponto de tornar sua apreensão um objeto de estudo para

especialistas - os Analistas do Discurso.

Para estes estudiosos, o tripé ethos-pathos-logos reveste-se de significação um

tanto quanto divergente da aristotélica, pois o que era designado como caráter do orador

alcança um estatuto de Voz Textual, algo que permeia a instância enunciativa, que deve

ser observado não apenas pontualmente, mas considerando a diacronia de uma esfera

social ou de um gênero discursivo; além disso, pathos e logos passam a considerar a

relação interlocutória dos sujeitos do discurso, ratificando a concepção de construção

dual do sentido. Fica ressaltado que é por meio da enunciação que o sujeito constrói seu

discurso através do texto, revelando seu ethos, buscando produzir um pathos e

utilizando-se do logos como forma de alcança-los.

3. Análise do corpus

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3.1 Descrição do vídeo

A peça publicitária ‘Hitler’, veiculada pela Folha de São Paulo, no ano de 1987,

apresenta uma mensagem de cunho demarcadamente político. Produzida pela agência

W Brasil, do renomado publicitário Washington Olivetto, a propaganda televisiva inicia

seu percurso gerativo de sentido valendo-se de sua natureza audiovisual. No âmbito

imagético, há primeiramente uma espécie de microscopia de uma figura em preto e

branco, provocando um aspecto granulado, que impede a assimilação de sua totalidade.

No decorrer do vídeo, esta focalização gradativamente vai cedendo espaço a uma visão

macro, que desemboca num quadro compreensível, revelando a figura de um homem -

Adolf Hitler. No âmbito sonoro, que acompanha a progressão deste desvelamento, há a

enunciação de um discurso de tom grave e austero – tanto na voz que o profere quanto

em seu conteúdo – que declara: “Este homem pegou uma nação destruída. Recuperou

sua economia. E devolveu o orgulho a seu povo. Em seus quatro primeiros anos de

governo, o número de desempregados caiu de seis milhões para novecentas mil pessoas.

Este homem fez o produto interno bruto crescer 102% e a renda per capita dobrar.

Aumentou os lucros das empresas de cento e setenta e cinco milhões para cinco bilhões

de marcos. E reduziu uma hiperinflação a, no máximo, 25% ao ano. Este homem

adorava música e pintura. E quando jovem, imaginava seguir a carreira artística. É

possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso, é preciso tomar

muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe.” Nos segundos finais, há o

aparecimento da logomarca do jornal em um fundo preto, acompanhada da seguinte

frase de efeito: “Folha de São Paulo: O jornal que mais se compra. E o que nunca se

vende”.

3.2 Análise da peça publicitária ‘Hitler’

Na propaganda, é possível visualizar as instâncias enunciativa, discursiva e

textual, como esperado em qualquer gênero da comunicação humana. A peça

publicitária, enquanto ato comunicativo, representa a própria Enunciação; isto quer

dizer que a cada nova visualização, reitera-se e renova-se o processo enunciativo. O

conteúdo que se almeja veicular através do vídeo simboliza o Discurso, transmitido por

meio da substância sonora e imagética – o Texto. Deste último emergem marcas

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linguísticas que possibilitam a apreensão das ideologias consubstanciadas no ethos

discursivo.

Em ‘Hitler’, procura-se transmitir um ethos de idoneidade, imparcialidade e

segurança por meio tanto da escolha de um narrador conceituado, de voz profunda e

envolvente quanto pela mensagem, de caráter confiável e isento. Como tentativa de

assegurar esta postura, faz-se uso de uma das Funções da Linguagem mais usuais à

esfera publicitária – a apelativa - por meio de uma estratégia de gradação sonora

ascendente, em que tanto a voz que narra quanto a música de fundo alteiam-se,

chegando juntas a um clímax, o momento da anagnorisis. Deste, logo se segue um

anticlímax, acompanhado de um retumbar e posterior silenciamento da música

ambiente, somado à impostação vocal do locutor, com o proferimento das seguintes

orações: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso, é

preciso tomar muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe.”. Este

artifício é chamado pathos e busca transmitir emoções no plano textual, almejando

atingir o leitor-ouvinte de forma pouco profunda, recorrendo unicamente à comoção.

Opostamente ao pathos, situa-se a mensagem que procura ser veiculada, o conteúdo que

se busca construir através do raciocínio – o logos. É ele que irá possibilitar o

entendimento das proposições, mais especificamente do exemplo que a propaganda

sugere e das relações entre imagem e corporeidade textual. Assim, quando o jornal

demonstra uma manipulação explícita da informação, construindo uma imagem positiva

sobre um político autocrático, dá a entender que não o faria implicitamente (reiterando

seu ethos idôneo), sugerindo assim, que os demais meios de informação – não sendo a

Folha – poderiam fazê-lo. “Folha de São Paulo: O jornal que mais se compra. E o que

nunca se vende”.

““São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua

sinceridade) para causar boa impressão: são os ares que assume ao se apresentar [...] O orador

enuncia uma informação, e ao mesmo tempo diz: eu sou isto, eu não sou aquilo”.8 Desse modo, a

eficácia do ethos se deve ao fato de que ele envolve de alguma forma a enunciação, sem estar

explícito no enunciado.” (MAINGUENEAU, 2001: 98)

A fim de aprofundar a discussão sobre o ethos do periódico, é preciso observar

historicamente como se deu a evolução deste. O contexto político-social que circundava

a propaganda em seu lançamento era de transformação: as manifestações a favor de

eleições diretas no Brasil haviam ocorrido há pouco e a Folha de S. Paulo, por sua vez, 8 BARTHES apud MAINGUENEAU, 2001, p. 98.

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havia se posicionado favoravelmente a tal mudança. Isto representou um caráter liberal

e democrático para a Folha, sendo aquele o momento de instauração do ethos que até

hoje se reitera.

A propaganda é icônica, pois, para construir uma contraposição a este ethos,

recorre-se a uma ideologia diametralmente oposta aos ideais de democracia,

figurativizada no nazismo e, ainda mais especificamente, em seu encabeçador, Hitler. A

euforização dada a “este homem” é conotada por uma Voz Discursiva emprestada dos

valores nazistas, não representando a Voz da Folha como instituição, sendo, portanto,

seu anti-ethos9. Esta aparecerá apenas após a revelação de quem “este homem” seria,

disforizando tanto ele quanto o movimento a que pertence. Funcionando como fiador, o

logo da organização aparece, ao final, como uma espécie de assinatura, dando

credibilidade sobre a autoria da propaganda e confirmando que esta coaduna com seus

ideais.

É indispensável mencionar que, no ano de 2010, a propaganda foi relançada pela

agência África, de forma atualizada, sofrendo pequenas alterações – a frase de efeito

que a encerra se tornou “Isso valeu pra ontem isso vai valer pra amanhã. Folha, o jornal

do futuro com a credibilidade de sempre.” e o logo passou a ser digitado em um tablet,

versando “Folha_ o jornal do futuro”. Não somente o relançamento como também a

nova frase final reforçam este ethos de compromisso com a verdade e a democracia, tão

centrais para a publicação, sendo contempladas, até os dias atuais, as mais diversas

opiniões, o que é simbolizado no mote “Concordando ou não, siga a Folha, porque ela

tem suas posições, mas sempre publica opiniões divergentes.” Assim como ocorrera no

período de redemocratização brasileira, a Folha, aqui, demonstra novamente a tentativa

de acompanhar os fluxos históricos, o que fica explicitado pelo logo inserido em uma

plataforma de leitura digital, mostrando que o jornal impresso cede gradativamente

lugar ao online e que está atenta às necessidades deste novo leitor.

Todo discurso persuasivo utiliza de estratégias do campo da Manipulação para

alcançar seus objetivos. Analisando detidamente a propaganda ‘Hitler’, é possível

observar como se configura o Percurso da Manipulação, tão estudado pela Semiótica.

Primeiramente é preciso esclarecer os elementos constitutivos deste Percurso. Diana

Luz Pessoa de Barros esclarece:

9 Termo utilizado por Maingueneau, op. cit.

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9

“O destinador propõe ao destinatário um contrato, um acordo, com o objetivo de

transformar a competência do destinatário e levá-lo, com isso, a tornar-se sujeito operador da

transformação “final” de estados, daquela que realmente interessa ao destinador. Em outras

palavras, o destinador quer levar o destinatário a fazer alguma coisa. Para tanto, tem que

persuadi-lo disso, tem que leva-lo a querer ou a dever fazer, a poder e a saber fazer.”. (BARROS,

2011: 197)

Assim, o processo manipulativo gera um percurso de ação, de performance, em

que o destinador fará com que os estados do destinatário entrem em conjunção com o

objeto de valor modalizado. Estes objetos são inerentes justamente ao nível discursivo,

havendo neste, por sua vez, a instalação das figuras e dos temas, das ideologias, o

discurso político e social. Erige-se aqui uma relação basilar entre enunciador e

enunciatário, a fim de que se estabeleça um percurso persuasivo que confira

credibilidade ao discurso, de forma que convença o enunciatário da verdade ou

verossimilhança textual (sanção/ moralização).

Aplicando tal Percurso ao objeto de análise em questão, pode-se depreender que

a motivação principal da Folha ao veicular este conteúdo é a de manutenção do seu

caráter perante a sociedade, seu ethos de idoneidade. A partir disto, subentende-se que

há uma prerrogativa de negação aos polos do querer-fazer e dever-fazer, isto significa

que o jornal considera a manipulação incoerente com sua índole e julga tal prática

condenável para um veículo de informação de massas. Ao mesmo tempo, há

inerentemente ao próprio comercial uma manipulação expressa no jogo dialógico

(des)velar, o que evidencia a competência para um saber-fazer, uma vez que a Folha

conhece tanto o objeto que fora utilizado nesta estratégia persuasiva (o Nazismo e

Hitler), quanto seu leitor-ouvinte empírico. Ademais, domina o polo do poder-fazer,

haja vista que gerencia a informação e já conseguira alcançar um estatuto social de

credibilidade, este por sua vez, edificado no curso evolutivo de seu ethos histórico.

Assim, se faz uma manipulação explicitamente, a fim de negar a possibilidade de

manipular no plano implícito.

Retomando o conceito de pathos, pode-se lançar luz sobre uma teoria muito

difundida, creditada ao linguista estadunidense Noam Chomsky, relativa a estratégias

usuais de manipulação de massas, em especial nos meios de comunicação. Algumas

podem ser verificadas quando se há um enfoque detalhado sobre elas, a saber: tratar o

público como crianças, perceptível na frase de teor didatizante “Por isso, é preciso

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tomar muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe.”; apelar para as

emoções muito mais que para a reflexão, como já explicitado anteriormente; não dar

ferramentas adequadas contra a ignorância, ou seja, apenas mostrar que a informação é

facilmente manipulável, mas sem apresentar mecanismos de percepção da manipulação;

e por fim, conhecer o público melhor do que ele próprio se conhece, algo também já

discorrido precedentemente.

Voltando ao cerne do Percurso da Manipulação, atinge-se o final do processo - a

moralização. Esta, uma vez que está diretamente vinculada à figura do leitor-ouvinte,

será, por conseguinte, diversa a cada nova recepção, variando de acordo com o

repertório geral de cada indivíduo. Como já abordado, não necessariamente o que fora

proposto em ‘Hitler’ será captado da forma que o enunciador idealiza, tendo em vista

que a própria propaganda exige uma competência (e, por consequência) um saber

enciclopédico a ser despendido no momento da enunciação, além, é claro, da

competência linguística – dominar a Língua Portuguesa. Assim, se um leitor-ouvinte

não conhece a figura de Hitler ou nunca teve acesso aos fatos relativos à Segunda

Guerra Mundial e aos regimes totalitários desta época, possivelmente não irá conseguir

realizar a conexão lógica entre imagem e enunciado, não podendo emitir um juízo de

valor sobre este discurso. Aí repousa a já mencionada construção dupla do sentido,

retomando o conceito de logos, a instância responsável pela assimilação do conteúdo

discursivo.

Este conteúdo, carregado de ideologias – logo, uma massa amorfa -, só é

possível de ser alcançado através de uma substância concreta, de marcas linguísticas

que emergem do texto. Diferentemente do ethos de um discurso, que só pode ser

analisado tendo em vista a diacronia textual, a ideologia pode ser observada em um

único texto. Em ‘Hitler’, verificam-se as seguintes ideologias: idoneidade/

desonestidade, manipulação/ imparcialidade.

Indo mais à fundo na análise de aspectos intratextuais, alguns índices

linguísticos se tornam visíveis em um nível mais aparente. As construções verbais em

forma infinitiva – como na oração “É possível contar um monte de mentiras dizendo só

a verdade.” – conotam uma isenção e impessoalização em relação ao enunciado, pois ao

não utilizarem a primeira pessoa do plural, excluem-se da ação tida como imprópria; as

de forma pretérita – “pegou”, “recuperou”, “devolveu”, “caiu” - demonstram que,

mesmo sem conhecer-se seu agente, sabe-se que ele as realizou em um momento

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passado, assim como o uso do termo “marcos” para designar a moeda alemã da época –

não mais utilizada e, portanto, marcada temporalmente. Além disso, há o uso de dêiticos

pronominais (como “este”, “seu” e “seus”), que por serem genéricos e imprecisos,

geram uma certa obscuridade em relação à identidade do referente; porém, que

designam “um objeto supostamente acessível no ambiente físico de sua enunciação”

(MAINGUENEAU, 2001: 25) algo que será concretizado com a exposição da imagem

deste homem. Como evidenciado no trecho sobre a Estratégia de Manipulação “tratar o

público como crianças”, com a oração “Por isso, é preciso tomar muito cuidado com a

informação e o jornal que você recebe.” há um tom infantilizante e disciplinador, como

o de uma mãe que instrui seu filho sobre perigos cotidianos.

Finalmente, a frase de efeito que conclui a propaganda de 1987 (“Folha de São

Paulo: O jornal que mais se compra. E o que nunca se vende.”) constitui-se como um

trocadilho condensador da ideologia desta peça, revelando a bisotopia que há na

unidade lexical ‘vender-se’, podendo significar tanto o ato da comercialização de um

produto ou serviço quanto de ser corruptível, subornável. E ainda, os semas

convergentes entre os vocábulos ‘comprar’ e ‘vender’ desencadeiam a intenção mais

primária do gênero publicitário – a de promover a aquisição de uma mercadoria ou

atividade. O relançamento, de 2010, como dito, promoveu uma mudança nesta frase

final, passando a exprimir “Isso valeu pra ontem isso vai valer pra amanhã. Folha, o

jornal do futuro com a credibilidade de sempre.”. Os elementos temporais destacados

indicam uma linha cronológica fundamental de referência a um ‘ontem’ (a propaganda

de 1987 e seu contexto) construído sobre pilares ideológicos de integridade e retidão;

um ‘amanhã’ que se reforça com um ‘futuro’ indicativo da modernização e transição de

hábitos de leitura calcados no jornalismo impresso para as mídias digitais; e um

‘sempre’ que novamente faz emergir o ethos construído no decurso dos anos de vida

jornalística da instituição.

4. Considerações finais

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A partir da construção da base teórica e da descrição da propaganda, foi possível

analisá-la tendo as teorias discursivas como alicerce. Dessa forma, compreende-se que a

peça publicitária em questão procurou produzir um ethos de idoneidade, imparcialidade

e segurança, fazendo uso da função de linguagem apelativa. Também teve preocupação

de atingir o leitor usando estratégias de motivação do pathos, ao mesmo tempo em que

seu conteúdo buscava construir-se por meio do logos, expresso nas relações de

referenciação, quebra de expectativa e posterior elucidação. O jornal ao qual é associado

a propaganda demonstrou a manipulação explícita e patente da informação, a fim de

evidenciar que não o faria implicitamente. A análise também se atentou ao fato de ser

preciso conhecer a evolução do ethos do jornal, desde como ele era em 1987 (ano da

propaganda), quando apoiou as eleições diretas e possuía uma visão mais liberal e

democrática, até sua remasterização, em 2010, quando foi possível ver a preocupação da

Folha de se manter atualizada, seguindo os fluxos da História e ainda assim reafirmando

sua posição de compromisso com a verdade. A peça publicitária também é um bom

exemplar de estudo sobre o uso das estratégias de manipulação, por ter sido construída

com base em um explícito e exemplificador encobrimento de informações. Por meio de

uma prerrogativa da negação, o jornal considera tal manipulação incoerente e julga que

esta seja constantemente realizada pelos jornais com os quais se deve “tomar muito

cuidado”, mesmo que de forma encoberta ao leitor. A análise contribui para um maior

entendimento da forma como se aplicam as teorias discursivas em uma propaganda,

permitindo revelar os mecanismos e estratégias de manipulação midiática. Engendrada

de forma criativa e cativante, a peça em questão revelou-se inovadora, sendo passível de

abordagens nas mais diferentes áreas – tanto dentro quanto fora do âmbito da

Linguística. Na área da Publicidade, pode-se pensar sobre o ethos da agência W Brasil,

personificada em Washington Olivetto, que caminha na mesma esteira daquele que

ajudaram a instaurar na Folha de S. Paulo – de competência, seriedade e inovação –,

tendo sido responsável por construir parte da memória coletiva brasileira. Já em termos

linguísticos, parecem ser inesgotáveis as releituras de um discurso, sendo este trabalho

um princípio de onde muitas novas visões podem surgir.

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Page 13: Enunciação e Discurso - Hitler

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