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ENTREVISTAS COM TRABALHADORES/AS QUE RESIDEM NO ASSENTAMENTO TIMBORÉ – 22 de março de 2006 – Andradina/SP
Entrevista com Graciele da Silva Evangelista, 19 anos
Entrevistador Onde você mora e se vc tem alguma função na organização do
assentamento ou no MST?
Graciele Moro na Timboré e não tenho nenhuma função na coordenação.
Entrevistador Há quanto tempo você está no assentamento Timboré e o que vc faz?
Graciele É, a gente está lá desde que iniciou o acampamento, passamos por
toda aquela batalha, né? Porque foi, assim, uma grande luta, pra gente
conseguir lá... Houve muitas coisas, até tiroteio e tudo... Desde
pequena. Praticamente, quase dezenove anos.
Entrevistador Quantos anos vc tinha quando foi para o acampamento?
Graciele Ah, eu era muito pequena. Acho que, o que, uns... três anos quatro
anos? Por aí, mais ou menos...
Entrevistador Praticamente você cresceu lá na fazenda Timboré.
Graciele Isso. Cresci lá.
Entrevistador Como era a tua vida no início, antes do assentamento?
Graciele Ah, a gente vivia em barraca de lona. Assim, é... muita.... como fala
assim... Tinha assim algum desentendimento. Assim, que acho que em
todo lugar há. Mas a gente, por sorte, conseguimos.
Entrevistador E hoje você tem uma casa? Como é que é a tua vida hoje? Você é
solteira ou é casada?
Graciele Solteira. Hoje a gente tem uma casa, que a gente conseguiu construir,
uma casa de material... E a gente planta, vive do leite, e de plantação.
Entrevistador Você sabe dizer como vocês conseguiram construir a casa?
Graciele Foi um projeto, que teve do governo pra gente construir, porque
ninguém tinha condições de construir uma casa, porque não tinha
dinheiro, não tinha condições. As vacas, do mesmo jeito. A energia
também, foi da mesma forma.
Entrevistador E hoje vocês vivem da produção de leite?
Graciele Da produção de leite. A gente plantou milho, mas assim, vive mais da
produção de leite. Que todo mês você tem aquele dinheiro.
Entrevistador Quantos irmãos você tem? Como é que é a tua família? Pai, mãe e
quantos irmãos?
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Graciele Tenho mais dois irmãos...
Entrevistador E os três estão com os pais e trabalham no assentamento, ou já teve
alguém que saiu?
Graciele Não. A minha irmã mora aqui em Andradina e trabalha aqui. Eu e meu
irmão trabalhamos no assentamento.
Entrevistador E como é que você analisa o trabalho do INCRA? Vocês não estão
assentados definitivamente?
Graciele Assentados a gente estamos na área. Mas... assim, é duro você tá lá,
você construir uma vida e de repente, assim, você ser despejado de um
lugar. Uma que, todas essas famílias que moram aqui, eu acho que pra
sair daqui vai precisar ter muita coisa, porque você deixar toda sua vida,
uma vida que você construiu, e você, assim, ver que você perdeu tudo,
e ficar sem nada, é bem complicado.
Entrevistador E qual é a tua avaliação do INCRA, nesse processo todo?
Graciele Acho que o papel dele não foi cumprido. Porque ou é ou não é. Se ele
falar assim, “não, vocês vão ficar aí”, deveria ter dito isso desde o
começo. Porque agora as pessoas construíram a vida, construíram a
casa, ter tudo lá, e de repente, assim, você ter que deixar tudo pra
trás... Então, assim é complicado. A justiça tá sendo lenta...
Entrevistador Como é que você vê a atuação do Poder Judiciário, dos juízes, neste
caso? Já teve alguém lá do assentamento que foi preso por conta da
luta pelo assentamento?
Graciele Já tivemos sim, alguns companheiros presos. Assim, mas a justiça, eu
acho que ela é um pouco lenta. E não sei, a gente espera que seja feito
o melhor, que a gente fique aqui. Porque até então, pra todo mundo
deixar, acho que vai ser difícil, porque vai resistir muito.
Entrevistador Vamos supor que a justiça decida que vocês devem sair da área. Você
tem, nesse momento, alguma perspectiva de qual seria a reação das
famílias?
Graciele Pacificamente, eu acho que não sairia. Porque você vê, ali, que tudo
que você tem tá ficando ali. Porque, se não fosse pra ficar aqui, talvez,
então teriam construído antes, teriam decidido antes. E não agora.
Então acho que não seria pacífica, porque a gente ia resistir muito,
porque aqui é nossa vida.
Entrevistador Você confia no Poder Judiciário?
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Graciele (longa pausa) Ah, a gente espera que a justiça seja feita, mas... é
complicado você poder dizer. Acho que a gente não pode ter muita
confiança. Às vezes a justiça vem, mas muitas vezes ela é demorada.
Entrevistador Foi feita alguma reunião aqui no assentamento pra explicar esse
problema que tem sobre esta área, esse conflito de interesses, onde o
proprietário entrou com uma ação para retirar as famílias desta área?
Graciele Já teve alguma reunião sim. Até a muito tempo atrás, onde tava,
novamente assim, alguns anos atrás, novamente isso veio à tona, a
gente fez até uma manifestação, saímos aí às ruas. Mas é isso.
Entrevistador Se você pudesse falar com o juiz pessoalmente ou através de uma
carta, que argumento você utilizaria pra convencer o juiz pra ele decidir
a favor de vocês?
Graciele Hum... Que... aqui é nossa vida. Se não fosse pra nós estarmos aqui,
que então, talvez, isso tivesse sido decidido antes. E não agora que a
gente tem a casa, temos a plantação. Porque, pra sair agora, vai pra
onde? Porque ninguém tem pra onde ir, vai sobreviver do quê? Vai ficar
na casa de parente?
Entrevistador Você acha que existe alguma força política que pode ajudar vocês?
Para convencer o juiz que vocês devem ficar nessa área?
Graciele Assim... Eu não sei te responder essa pergunta. Mas eu acho que... a
gente espera muito em Deus. Assim... a gente confia muito em Deus, e
tenho certeza que nós vamos ficar aqui.
Entrevistador Muito obrigado.
Entrevista com Estevão da Silva Rocha, 19 anos. Entrevistador Desde de quando você está no assentamento da fazenda Timboré e se
vc tem alguma função na coordenação?
Estevão São dezesseis anos, quando chegamos na Fazenda Timboré, cheguei
pequeno, é... Vim depois do meu pai, que meu pai veio primeiro.
Morava no Monte Castelo, depois que ele pegou trouxe nós. Quando já
tinha organizado mais o assentamento. E hoje eu participo da
coordenação do assentamento.
Entrevistador Quais são as tuas primeiras lembranças do assentamento? De quando
você era pequeno, o quê que você lembra?
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Estevão Assim, o que eu mais lembro, assim, era a dificuldade pra estudar. Pra
pegar e sair de casa. Porque quando eu fui, eu tinha uns quatro anos, aí
já pegou, aí já com uns cinco já comecei a ir pra escola, e era muito
longe da pista que tinha que pegar o ônibus, os ônibus não entrava lá. E
todo dia eu tinha que pegar e vir pra pista pegar o ônibus, e o mais ruim
era pegar e vim pra escola. E ter que voltar, chegava de noite. O ônibus
demorava, era pouco ônibus pra fazer a linha lá em volta tudo, né, pra
deixar os alunos. Essa é a mais lembrança que a gente tem.
Entrevistador E como é que foi a vida no assentamento logo no início?
Estevão No início, primeiro, a gente chegou a morar num barraco. Aí depois fez
uma casinha de tábua, aí pegou e plantamos um pedaço de roça lá e a
coisa foi melhorando. Mas no começo foi tudo difícil.
Entrevistador Você trabalha na terra?
Estevão Sim. Junto com um pai, na roça de algodão, às vezes plantava feijão...
Chegava da escola cedo, de manhã ia pra escola, chegava e ajudava
na área rural.
Entrevistador E hoje, o que seu pai e vocês plantam?
Estevão Criamos gado. Tiramos leite, plantamos quiabo, um pouco de pimenta,
essa coisas assim pra vender. Levamos na feira. Meu pai às vezes
trabalhava fora, também, de pedreiro. Eu ficava cuidando do sítio. Mais
na área de gado mesmo, que o povo mexe.
Entrevistador Como é que você vê a atuação do INCRA no assentamento? Tem
alguma pendência ainda do assentamento, ou vocês já estão tranqüilos
em cima da terra?
Estevão Assim, o povo hoje está mais tranqüilizado. Acho que assim, a
possibilidade, assim, de sair daqui... Muitos não querem sair daqui.
Então o povo é mais tranqüilo.
Entrevistador O INCRA faz reuniões com vocês? Você conhece o representante do
INCRA na região?
Estevão Não conheço. Mas sempre que acontece alguma coisa, assim, em
relação ao assentamento é divulgado através de reuniões.
Entrevistador Você sabe como é que tá a atual situação do assentamento, neste
momento? Se existe alguma ação de reintegração de posse contra as
famílias... Quais são as informações que você tem sobre a situação
atual do imóvel?
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Estevão Às vezes eles falam assim, que nem, que o fazendeiro, ele tinha
ganhado uma instância, às vezes fala. Aí outra vez fala que não
ganhou. Aí uma vez fala que vai ser despejado. Aí assim, aí fica
nesse... nem tá indo pra lá e nem pra cá. Então ninguém sabe ao certo
o quê vai acontecer. Isso é o real, é o que acontece.
Entrevistador Qual é a tua visão do Poder Judiciário? Como é que você vê o trabalho
dos juizes? Você confia no pode judiciário?
Estevão Ah, acho que a gente tem que confiar. Porque... se não é o juiz, que ele
tem o poder de decidir tudo, então... Acho que a gente tem que confiar.
Que nem a gente ali na terra, o que a gente confia ali é que ele não dê a
reintegração. Então, é isso que a gente confia.
Entrevistador Você acha que o juiz tem todos os elementos pra decidir essa causa?
Estevão Eu acho que não. Pelo meu ponto de vista, eu acho que não. Assim,
pegar e tirar, tirar o pessoal daqui, eu acho que não tem não.
Entrevistador Se você pudesse falar com o juiz ou mandar uma carta pra ele, o que
você diria para convencê-lo que vocês devem ficar na área?
Estevão Ah, eu diria que ali, eu acho que pra muitos ali... igual, se for ter que sair
daqui e ir pra cidade, ele não tem condições de sobreviver na cidade.
Em termos de idade, de arrumar emprego, que é difícil... muita gente
idosa, a procurar emprego, aí é mais difícil. Em termos de
sobrevivência, sair daqui e ir pra cidade.
Entrevistador Se o juiz mandar as famílias saírem da área, você acha que as famílias
iriam sair pacificamente?
Estevão Que nem, eu acho que eles aceitariam a decisão, se houvesse uma
indenização. Porque, que nem, a pessoa sair daqui assim sem nada, aí
é complicado. Mas se houver assim uma indenização eu acho que vão
sair sem problema nenhum.
Entrevistador Você acha que teria algumas outras forças políticas que vocês
poderiam recorrer, para ajudar a convencer o juiz que vocês tem direito
de ficar sobre a área?
Estevão Eu acho que sempre tem um jeito de recorrer, assim, alguma coisa.
Sempre surge uma nova instância. Então acho que sempre tem um jeito
sim, político de resolver.
Entrevistador Por que você acha que os trabalhadores deveriam ficar nesta área?
Estevão Em termos assim de produção, assim... que nem, na cidade, o que o
povo ganha lá, gasta tudo em Andradina, você tá entendendo? Então
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assim, em termos de movimento, o capital dentro de uma cidade, eu
acho que... ajuda muito.
Entrevistador Porque a demora para o INCRA resolver definitivamente este
assentamento?
Estevão Eu sei lá. Eu vejo, assim, o seguinte, que nem, o INCRA quer pagar pro
fazendeiro, né, que já morreu. Só que é um preço muito alto, o que ele
queria. Então, aí fica o jogo: o INCRA não quer pagar, e o fazendeiro
quer a terra. Então aí nenhum dos dois lados quer ceder, em termos
assim de decidir o que acontece com a terra.
Entrevistador Muito Obrigado.
Entrevista com Wagner de Souza Silva, 22 anos.
Entrevistador Wagner, me diga, desde quando você está na fazenda Timboré?
Wagner Eu tô lá desde o começo, desde 89.
Entrevistador Qual a tua primeira lembrança, quando ainda criança?
Wagner Eu lembro do acampamento, da gente, onde se localizava na beira do
rio. Lembro também quando a gente se localizava ali no “buracão”...
Chamava “buracão” porque ficava na margem da rodovia.
Entrevistador No início, como é que era o trabalho teu e da tua família?
Wagner No início a gente trabalhou com lavoura. Sempre com lavoura. Milho,
feijão. A gente se sustentava da lavoura.
Entrevistador E hoje, como é que a família vive na área? Ainda tá no barraco de lona,
ou não?
Wagner Não, hoje a situação, já... Vamo dizer que já tá bem melhor. Não vamos
dizer que tá 100%, mas uns 80%, já tá bem melhor. A gente mora numa
casa de material, a gente sobrevive de uma renda mensal, que é o leite.
A gente usa a roça pra se manter mesmo, só pra uso da gente, e não
pra vender. Porque roça hoje em dia não tá compensando. O gado
ainda compensa porque tem o leite, tem as "cria" dele que a gente
ainda pode utilizar. E a gente ainda tem uma casa de material, tem
energia, melhorou bastante, bastante.
Entrevistador Essa melhoria, ela se deu em razão do trabalho de vocês, da própria
família, ou teve projetos do Governo Federal ou Estadual para
construção de casas, compra de vacas, enfim... Como é que foi?
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Wagner Essa melhoria é devido a um conjunto. Juntamente com o Estado, com
o Governo. A gente teve essa melhoria junto com o conjunto, a família
junto com todos.
Entrevistador Você tem informações sobre a atual situação da área?
Wagner Então, o que eu sei é a gente tá assentado, mas não é definitivamente.
Tem ainda uma ação aí, diz-se que a fazenda ainda não é do INCRA,
não é nossa, ainda é do fazendeiro. E aí o que eu sei é isso, que ainda
não é totalmente nossa.
Entrevistador Já teve alguma reunião com vocês no assentamento, pra discutir essa
situação? Como é que chegam essas informações até vocês?
Wagner Sim, sim, foi feito reuniões sim, através do MST, que sempre trás
informações, e tem as assembléias. E sempre chega algumas
informações pelo MST.
Entrevistador Como é que você avalia o trabalho o INCRA no assentamento?
Wagner Eu acho que como muitos órgãos, ele tem suas boas razões e suas
más razões. Ele age às vezes... eu acho que ele age, às vezes, não
corretamente. Age às vezes muito devagar... Vamo dizer, que é meio
devagar... E às vezes é meio injusto algumas, algumas... vamo dizer...
algumas ações que eles movem lá dentro, eu acho que é errado.
Entrevistador A que você atribui essa demora no assentamento?
Wagner Ah, eu acho que isso daí não depende só dele, é uma escala, vamo
dizer que é uma escala. Então vem lá de cima, e vai vindo, vai vindo,
até chegar no INCRA. Não depende só do INCRA.
Entrevistador O quê você acha do Poder Judiciário e dos juizes em geral?
Wagner Bom, o que eu acho, eu nunca tive com nenhum juiz. Eu acho que a
justiça hoje no Brasil demora demais. E as vezes é injusta. Ela age,
sempre tende pro lado mais fraco mesmo. E... eu acho que demora
demais a justiça.
Entrevistador Você confia no Poder Judiciário?
Wagner Não.
Entrevistador Por quê?
Wagner É, eu não confio porque o Poder Judiciário ele sempre... É como eu
disse pra você, ele age mais pro lado... o lado mais... vamo dizer, dos
fazendeiro. O lado mais rico. O lado mais pobre ele sempre deixa
pendente.
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Entrevistador Se você pudesse falar com o juiz que tá pra decidir essa questão da
reintegração de posse, se você pudesse falar pra ele o que você diria?
Wagner Ah, eu diria pra ele que, se a gente sair, vai aumentar o índice de
desemprego, a criminalidade. A periferia da cidade vai aumentar mais.
A economia do país vai abaixar. Eu diria pra ele que a reforma agrária,
hoje em dia, é um dos meios de desenvolvimento do país. É um meio
do desenvolvimento. De acabar com a criminalidade, com a drogas,
com a periferia, com a pobreza, isso é, eu diria isso.
Entrevistador Você acha que se o juiz decidisse que vocês devem sair da área as
famílias iriam aceitar pacificamente?
Wagner Ah, eu acho que se haver, se haver essa situação, eu acho que
ninguém vai aceitar sair pacificamente daqui. Porque a gente já criou
um amor aqui dentro. Todos que, a maioria nasceu, nasceu crianças ali,
já cresceram alguns, alguns é pai de família tudo ali dentro, então já tem
um amor aqui, então acho que ninguém aceitaria sair dali pacificamente,
não.
Entrevistador Você acha que o juiz tem todas as condições pra decidir bem essa
causa?
Wagner Então, eu acho que ele não sabe ainda a realidade nossa. Eu acho que
não. Acho que ele não conhece ainda a nossa realidade, ali como é que
a gente tá, agora, como que a gente entrou, e agora como que a gente
tá, agora, como que melhorou bastante, né? Como a gente veio do
passado da gente e como a gente tá no presente.
Entrevistador Se vocês não estivessem nesse assentamento, onde você acha que a
tua família estaria hoje?
Wagner É, eu acho que a gente estaria numa cidade grande, aumentando lá o
índice de desemprego, a concorrência por emprego. Talvez
desempregado. Não teria o que a gente tem agora, que é um carro,
uma casa... a gente tem o nosso, vamo dizer, o saldo todo mês, ali, um
saldo bom, que dá pra gente se manter no mês tranqüilo... Eu acho que
a gente taria aí, mais uma aí, disputando por emprego, no país.
Entrevistador Quantas família moram hoje no assentamento Timboré?
Wagner São 176 famílias.
Entrevistador E todas elas vivem do trabalho na roça?
Wagner Então, alguns... a maioria, vamo dizer assim, a maioria vive da renda do
leite. Alguns vive... alguns mexe com roça, milho, vassoura, outros já
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tem projeto como piscicultura, tem um que tem apicultura. Tem vários
projetos, mas o forte mesmo, que o pessoal vende, vive mesmo, é a
renda do leite.
Entrevistador Uma última pergunta: quais os interesses que estão em discussão nesta
fazenda?
Wagner Bom, o interesse, o interesse que eu vejo do lado dos fazendeiros, ... o
interesse deles, eu não sei qual o interesse dele, porque ele não tem só
essa fazenda, ele tem mais fazenda, ele sabe que ele tá irregular. A
fazenda não tá adequada às porcentagens de produção, ela não era
produtiva... Então, o interesse dele, eu não sei qual é o interesse dele
em tirar nós daqui, sendo que ele não só tem essa fazenda, ele tem
mais fazenda.
Entrevistador Muito obrigado pela entrevista.
Entrevista com Maria José, 49 anos. Entrevistador Dona Maria José, como era a vida aqui na fazendo no início do
acampamento?
Maria José Em barraco de lona, muitos anos em barraco de lona. E muitos anos já
ficou mudando de um lugar para outro. Inclusive, aqui, quando a gente
entrou aqui, a gente mudou umas quatro vez de um barraco pra outro.
Entrevistador Sei.
Maria José O vento vinha, inclusive uma vez o vento tirou meu barraco, eu fiquei no
tempo, custou e eu consegui outro barraco. Não foi fácil, e a gente não
passou precisando das coisa, sabe por quê? Porque tinha um filho que
ficava na cidade ajudando, tinha os menino tudo pequeno, ajudando.
Vinha e trazia as coisas no barraco pra nós. E foi difícil. Até pra
assentar nós aqui foi com muitos anos.
Entrevistador Como era o trabalho no início: O Incra ajudou?
Maria José As primeiras assim, não teve ajuda do INCRA não, de jeito nenhum. A
gente ia plantando os pedacinhos, assim, por a gente. Arrumava um
pouquinho de semente, plantava um pedacinho... arrumava um outro
pouquinho, plantava outro. E foi assim. Foi difícil pro INCRA poder
ajudar pra gente plantar, foi muito tempo. Não foi fácil.
Entrevistador E hoje, como está a situação de vocês aqui hoje?
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Maria José Ah, hoje... tendo em vista do que nós passou... hoje, até que a gente tá
bom. Eu já comecei a fazer a casa aqui. A gente não planta muito,
também, porque não tem ajuda, a ajuda do banco tá tão difícil pra
gente, que a gente deve bastante. Então... em vista do que nós ficamo
na entrada, hoje até que dá pra ir, que tá... Eu comecei a fazer aqui, eu
tenho gado, tenho um pouco de leite que a gente tira, né, mas... a ajuda
é essa. No banco, se você quiser pegar um dinheiro é a coisa mais
difícil, com os nome tiver lá, você não pode pegar dinheiro. Igual, nós
tamo devendo o banco, bastante. Como tá aparecendo conta aí pra
pagar! E é muito, e é uma atrás da outra, pra pagar.
Entrevistador E a senhora tem filhos?
Maria José Eu tenho quatro filhos, graças a Deus! Tenho quatro filhos.
Entrevistador Eles moram com a senhora?
Maria José Não, meus filho... Só tenho um que mora aqui, mas inclusive fim de
semana, todos eles tão aqui comigo, e no começo também eles tava
aqui. Mas como não tinha dinheiro, não tinha nada pra gente manter
todo mundo. Uns queria ganhar... ficava sem dinheiro no bolso, falou:
"mãe, nós vamo trabalhar em Andradina, já que foi criado aí, e a
senhora fica aí mais o pai”. Então ficou assim. Aí, foram casando, e já
são tudo casado e eu só tenho solteiro o Valdir, que mora aqui comigo.
Mas tem o Juvenil, tem a Ana, tem a Carminha, que todos, a hora que a
gente precisa de alguma coisa, eles tão aqui pra ajudar nós. Só isso.
Mas por enquanto eu tenho a cunhada que mora aqui comigo... o Valdir,
meu esposo, e eu, que fica aqui com... Juntando, com o pão de cada
dia, tirando um pouquinho de leite hoje, outro amanhã... A roça não dá
pra plantar muito, porque você não tem condição de plantar uma roça,
porque... olha as tombação... Você vê, agora aqui tá sessenta,
cinqüenta real pra tombar, plantar... Quando você acaba de fazer um
pedacinho, você não tem condição de comprar semente! E no banco
não ajuda porque no banco você já tá devendo, e não sabe quando que
vai pagar. Então assim, a condição tá difícil pra gente aqui! Tá melhor
porque de... a gente ficou assentado nos barracos muitos anos, mas
agora que a gente já tem a casa, já tem um gadinho, né?
Entrevistador O quê vocês produzem hoje?
Maria José Mais com leite, a roça já é bem pouca porque tá difícil de você fazer um
pedaço de terra pra plantar. É mais com leite, já tem o tiramento de
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leite, a gente tira o leite, vai lá leva e volta, quando chega o fim do mês,
você vem, pega quatrocentos, trezentos... conforme o leite que você
manda, inté quinhentos. E assim a gente vai mantendo. Pega o
carrinho, vai levar o leite e volta, aí cuida do gado, a tardezinha aparta...
Aí no outro dia cedo começa a tirar leite de novo, e manda o leite. É
assim que você vai mantendo aqui. É difícil, se você não tiver o leite...
não tem condição pra poder sobreviver. Porque roça já não planta mais.
O que planta é um pedaço de milho... é, assim, um quiabo... é, uma
pimenta que eu plantei muito aí pra vender, mas você vai vender não
tem preço, não tem saída, porque leva no lugar, tem muitos que muitos
já tá aí.
Entrevistador O INCRA tem vindo aqui dar assistência, como é a que a senhora
analisa o trabalho do INCRA?
Maria José Como é que eu associo o trabalho do INCRA? Eu acho o INCRA assim,
agora, no começo o INCRA sempre fazia muita visita pra nós. Agora o
INCRA às vezes aos poucos tá chegando... Mas é difícil assim, o
INCRA tá nos visitando muito. Mas agora sempre tem uma turma do
INCRA que sempre tá vindo aqui, inclusive tá vindo aqui com material
pra fazer a casa. E... que é pelo “fundo perdido”, a gente tá em conjunto
assim, então nós estamos, assim, em conjunto pra poder adquirir esse
material, esse material vem todo pra nós, tá aí pra gente acabar as
reforma. Quem tem reforma igual eu, acaba, eu acabo a minha. Às
vezes muitos não tem casa, quer acabar de fazer a casa, né, que mora
em casa de tábua... Eu também morava na casa de tábua, aí.
Devagar... devagar, com o dinheiro do leite, eu fui guardando um pouco
hoje, um pouco amanhã, eu levantei esse cômodo. Tinha os dois
cômodo aqui levantado, mas assim com o dinheiro do leite, com um
pouco de dinheiro, naquele tempo que eu plantava o milho, a gente
mandava debulhar o milho e vendia, e ia guardando um pouco pra fazer
a casa... Mas eu tive muitos anos a minha casinha de tábua também.
Então o INCRA agora tá sempre com nós aqui, porque tem esse tal de
“fundo perdido” aí que a gente tá no conjunto pra poder tirar, ele agora
tá sempre aqui dentro com nós. Mas... eu acho que assim que teve
muitos anos atrás que a gente ficou muito sem o INCRA aqui. Não tinha
apoio, não tinha apoio de INCRA, não tinha apoio de ninguém, o apoio
nosso era a nós mesmo e o apoio de Deus, que Deus dava, sempre dá
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saúde, dá aquela força de vontade pra poder você poder ir trabalhando,
aí. E assim a gente vai vivendo, com um quiabo que planta, às vezes de
uma pimenta que você planta, de uma mandioca, mandiocal, e eu tenho
um mandiocal grande, aí, às vezes tá sem dinheiro, aí eu vendo
mandioca, aí eu levo pra vender... E assim você vai lutando com a vida.
A vida tá difícil pra viver! Porque com a tombação que você vê que tá, tá
50, 55 a hora assim... Então tá difícil pra nós, igual, mandar tombar dois
alqueires ou três alqueires de terra, pra poder plantar... Você acaba de
fazer a terra, que preço tá? Você vai vender o milho, você compra o
milho na base de quê, de uns... uns 60, 70 real o saco, você pega o
saco, igual eu comprei aqui. No fim, a hora que você vai colher, você vai
tirar a conta da terra que você mandou pagar pra tombar, pra gradear...
Você vai colher o milho, na hora que você colhe o milho pra vender, não
tem preço! Então tá difícil pra viver aqui.
Entrevistador Não sei se a senhora sabe que tem uma ação de reintegração de posse
contra as famílias aqui do assentamento? Quais informações que a
senhora tem?
Maria José As informação que às vezes a gente... a gente ia no ITESP, o ITESP às
vezes falava que o fazendeiro aqui não queria que a gente ficasse aqui,
que ele tava ganhando que nós ia perder... Então a gente tinha essas
informação deles lá, né? A gente assim ficava sabendo que eu sempre
vou no ITESP também, e sempre eles tá assim passando aquelas conta
que a gente tá devendo no banco, eles vem dar aquela informação pra
nós. Então você fica assim atento, sabendo dessas informação deles,
do ITESP, né? Que a gente não vai ganhar, que o fazendeiro tava
ganhando, e a gente quer é ganhar, né, com tanto tempo que nós já tá
aqui... Perder, que a gente acabou tudo o que tinha, aqui! Você vê,
inclusive eu trabalhei quatro anos no frigorífico, o que eu tinha eu acabei
tudo aqui. Até terreno que nós tinha, vendemo pra ficar aqui. Senão
passava fome, passava muita precisão. Então, é assim, essa
informação já vem de lá dos menino, né? Você sabe de umas
informações, eles vêm, passa pra gente... e gente fica atento,
esperando o que é que Deus vai preparar pra nós.
Entrevistador Se a senhora pudesse falar pro juiz pra convencê-lo a tomar uma
decisão, o que a senhora diria pra ele?
Maria José Pro juiz?
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Entrevistador Pro juiz, que vai decidir essa causa aqui. O que a senhora gostaria de
falar pra ele?
Maria José Eu diria pra ele que nós, a quantos anos que nós tá aqui? Nós queria
ganhar essa causa. Nós todos aqui quer ganhar. Eu acho que sim, né,
porque todo mundo... Quantos anos que nós tá aqui? Perder essa
causa, 16 anos? Tem a outra parte, do Liberdade, eu acho que já tá
com 18 anos já? 18, 17... Porque nós é mais novo aqui. Nessa parte
Chico Mendes, nós é mais novo. Agora a parte do Liberdade, já são
mais velhos assentados. Então, eu diria pro juiz que nós não queria
perder, que nós queria ganhar essa causa. Nós, tudo que nós tinha
perdeu aqui, esses anos todo aqui, ainda perder? É meio difícil pra
gente.
Entrevistador Se a senhora tivesse que sair daqui, pra onde a senhora iria?
Maria José Meu filho, eu nem... nem sei te responder isso aí. Porque a gente se
acostumou tanto aqui no sítio, pra ir pra cidade tá tão difícil... Aqui pra
nós tá difícil, e na cidade como é que tá? Porque todos que tá na
cidade, quer um pedaço de terra. Todos não quer ficar lá, porque na
cidade, o que você vê? É fome, é briga, é desavença. Aí é um matando
o outro, é pai matando filho, é filho matando a vó... Por quê? É por
causa do dinheiro! Então eu acho assim que ia ser difícil de eu voltar
pra cidade. Eu queria sempre tá lutando por um pedaço de terra, eu
acho que nós todos que tamo aqui. Porque se eu tenho aqui e eu vou
vender, ou eles me tira daqui... eu acho que é meio difícil eu voltar pra
cidade! Porque a cidade, meu filho sempre tá pra lá, tá falando: "olha
mãe cada dia tá difícil, se nós puder, nós vamo é acampar também,
pegar um pedaço de terra pra tá aqui com a senhora, tá pequeno, tá
difícil"... Mas eu digo assim, meu filho, pra voltar pra cidade, pra mim, no
meu jeito, no que eu penso de ser, eu meu esposo e meu filho, é um
pedaço de terra. Porque tem tantos que tá lá, que quer vir pra cá! Nós
acha que é difícil pra nós, mas não é! Aqui é muito melhor! Você tá aqui,
você tá acordado, porque tem uma galinha, você tem um ovo, você tem
um porquinho... você tem abóbora, você tem uma mandioca... Sempre
você tá tendo o pão de cada dia, pra passar fome também é muito
difícil!
Entrevistador Qual a visão da senhora sobre o Poder Judiciário? A senhora confia no
Poder Judiciário?
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Maria José Às vezes eu penso que eu confio, às vezes eu penso que eu não
confio... a minha palavra é essa. Eu acho assim que, a gente confia
deles ajudar a gente, né? Por quê? Como que vai... o que vai acontecer
com nós, se o fazendeiro ganha essa terra aqui? Como que a gente vai
fazer? Então a gente confia neles ajudar nós. Nós confia na força deles,
e na de Deus também, né? Primeiramente na de Deus e depois na
deles. Porque Deus é tudo pra nós todos, né? Porque você tá com uma
causa difícil, né... às vezes você pega uma bíblia ou um santinho, você
vai pegar com Deus: “Deus, me ajuda, que eu tô precisando da tua
ajuda”, né? Então, eu acho assim, que primeiramente, a gente confia
em Deus e depois no juiz, como você tá falando aí... A gente confia sim.
Entrevistador A senhora gostaria que o juiz viesse aqui, ou a senhora acha que não
iria mudar nada?
Maria José Assim, eu me penso assim, que às vezes ele poderia até ajudar aí nós,
né? Quem sabe? Se ele viesse dentro da área, visse a condição de
todo mundo, a precisão... Assim, que ninguém quer sair... Eu mesma,
pela pena, eu não quero sair, eu quero ficar, ele podia ajudar lá, né!
Porque você acha que se ele fosse vir aqui, fazer uma visita pra nós...
se ele vem de bom coração, a gente espera coisas boas, né? Porque a
gente não sabe se ele vem mesmo de bom coração, nos ajudar, dar
uma força pra nós... Então eu acho que se ele viesse aqui... seria uma
boa.
Entrevistador Dona Maria, muito obrigado pela entrevista.
Entrevista com Vanderlei Arvelino Gomes, 33 anos. Entrevistador Vanderlei, me diga como é que foi a tua chegada aqui na área?
Vanderlei Foi 19 de agosto de 1989. Quando a gente tentamos fazer a primeira
ocupação aqui na fazenda Timboré, no município de Andradina. A gente
foi recebido pelos jagunços, pelas polícias, na época, e a gente não
tivemos nem condições de entrar pra dentro da fazenda, a gente ficamo
acampado num barranco, onde a gente apelidou o lugar de “Vale das
Lágrimas”, porque lá a gente sofreu muito. Então são lembranças
bastante dolorosas, onde a gente passamo fome, passamo frio,
perdemos muitas das vezes barraco... E foi nesse ano, ainda, que a
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gente fizemo a ocupação da fazenda, no dia 19 de agosto de 1989,
onde que, onde fomo recebido a bala, onde teve companheiro que
perdeu a vista, o companheiro Santilo, que hoje já não se encontra
assentado, foi embora. E dali pra cá, a gente... fomos passando muita
dificuldade, mudamos muitas das vezes de lugares. E, a gente teve até
o processo no fórum, onde tivemos acompanhando, e acabamos
perdemos a causa, porque a gente sabe muito bem que os latifundiários
são bastante organizados. Perdemos a causa, e o companheiro... foi
injustamente, né, foi injustamente interpretado, perdeu a causa e hoje
ele é cego de um olho, por questão da luta, por questão da luta e pela
incompreensão da justiça, o companheiro hoje deixou de ser assentado,
mora na cidade. E nós passamos muita dificuldade, muita fome. E foi
isso que aconteceu.
Entrevistador E quantos anos foi nessa primeira etapa?
Vanderlei A gente teve esse período de intranqüilidade, de desespero, de passar
fome, frio, necessidade das coisas, durante uns dois anos. A gente
ficamos durante dois anos, depois que a gente entrou pra dentro da
área, e quando o INCRA teve o conflito né, entre os acampados e os
jagunços, o INCRA entrou com o seqüestro da área, onde o pessoal
conseguiu ficar permanente na área. Ali a gente começou já a ir
tombando alguns pedacinhos de terra, mas mesmo assim a gente tinha
as necessidade das coisas. Aí o INCRA começou a dar cestas básicas
pra nós, enviava cesta básica, aonde dava o fôlego. Então foi durante
um ano ainda, que a gente continuou naquela peleja, naquele
sofrimento, até a gente começar a ir pros lotes emergenciais que a
gente mesmo cortou, e até hoje a gente fica aguardando o processo de
desapropriação definitivo dessa área.
Entrevistador Por que vocês entraram nessa área? O que que levou vocês a entrar
nessa área, a ocupar essa área?
Vanderlei Desde a época da organização das famílias pra vir pra luta, a gente
tinha pesquisado, se informado de uma área que é do mesmo
fazendeiro, da Timboré, que é a Pendengo. Foi em 1989 ainda, a gente
ocupamos ela. E é um fazendeiro que todo mundo temia ele, por ser um
grande latifundiário na região. A gente ocupamos essa fazenda
Pendengo lá, é do município de Nova Independência... De lá, a gente foi
despejado também, depois de 30 dias, fizemos uma caminhada até a
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cidade de Nova Independência, de lá a gente fizemos uma assembléia
e tiramos como prioridade a fazenda Timboré, que é no município de
Andradina, por questões de justiça. Porque é um fazendeiro temido,
hoje já falecido. E as famílias concordaram com a idéia, porque era uma
questão de justiça. Porque ele era um fazendeiro muito ruim na região,
e por outro lado ele devia pra União, até hoje deve pra União, todas as
suas fazendas são "empenhoradas", então a gente não viu o porquê
desistir dessa fazenda. Então foi questão de justiça e questão de luta
mesmo dos próprios acampados.
Entrevistador Você lembra quantas famílias entraram nesta área? Quantos entraram e
quantos estão assentados hoje?
Vanderlei Na época foi o primeiro grupo que entrou. Foi o pessoal que veio de
Campinas, veio de Campinas, região de Campinas, Sumaré... Se
agrupou com algumas famílias da região que ocuparam, foram em torno
de 130, mais ou menos, famílias, que ocuparam a parte de baixo da
fazenda Timboré, que tem o nome de Liberdade. Liberdade, que a
gente demos Liberdade, porque o dia que o companheiro Santilli levou o
tiro ele falou “liberdade”, então ficou esse nome como Liberdade,
porque o pessoal se comoveu com a luta, e tem esse nome. E depois,
outro grupo se organizou através do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, em torno de 80 famílias, mais ou menos, ... um pouco mais, não
tenho o número correto. Ocuparam a parte de cima da fazenda.
Inclusive o grupo de baixo apoiou, foi lá ajudar os companheiros na
ocupação, e que se chamou Chico Mendes. O grupo Chico Mendes.
Então, a história do assentamento se divide em duas partes, como disse
a companheira Marta, a entrevista passada. São grupos bastante
distintos, mas porém no mesmo objetivo, da terra.
Entrevistador Nos primeiros anos o que vocês produziam aqui na área?
Vanderlei Então, tinha uma produção diferenciada. O pessoal, como tinha,
passava muita necessidade, da cesta básica, nessas questões, o povo
produzia e tinha criação, como porco, né, criação de porcos, tinha
criação de galinha. O pessoal então, a questão dos cereais, o pessoal
plantava muito arroz, na época. Na época plantava muito arroz, muito
feijão, muito milho, pra sustentação da própria família, nada se vendia,
era tudo pra o consumo da família. Abóbora. Devido as necessidades
de recurso financeiro, as pessoas plantavam poucas coisas, pequenos
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pedaços de terra devido às dificuldades. Então, um pouquinho de
semente que ela ganhava, ela plantava. E era tombado, era carpido na
enxada, tombado no animal. Então, o que se plantava, o que se tinha na
época era essas coisas, que era a coisa mais básica da família. Então,
às vezes surgia um trabalho extra, que era fora, o pessoal ia trabalhava
e comprava as outras coisas que era mais necessárias – como café,
açúcar - essas coisas de necessidade, sabão, essas coisas assim.
Entrevistador E hoje como é que tá a vida das famílias?
Vanderlei A atual situação hoje, das famílias, que são 176 famílias, que resistiram
a todo esse sofrimento, toda essa peleja... Eu digo que a atual situação
hoje das famílias são boas, não vou dizer que é ruim. Mas também não
é... boa, também. Vamos se dizer que não temos uma vida digna, mas
pelo menos a gente tem o que comer. A gente temos casa, todas as
famílias tem casa de alvenaria, são poucas famílias que ainda residem
em casa de madeira, não existe mais barraco de lona. Todo mundo tem
as vacas de leite, tem uma renda extra. O pessoal... a renda, que mas
tem, que se tira, hoje, de cada propriedade, é o leite, devido o dinheiro
que entra mensal. Então o pessoal construiu um salário mínimo em
volta da questão da área leiteira. Então, as famílias, hoje, têm uma vida
digna, pelo menos. Saiu daquele, daquela fase de problemas na
questão alimentar, e hoje tem uma vida melhor. Consegue ir pra cidade,
fazer suas compras, ter um dinheiro pra sair com a família às vezes,
muitas das famílias tem carro, tem um carrinho de carroça, de tração
animal. Então assim, a vida das famílias hoje, vamos se dizer que é
uma vida mais digna.
Entrevistador Qual a avaliação que você faz do trabalho do INCRA
Vanderlei Ó, a avaliação do INCRA, ela teve ausente por muitos anos. Inclusive, o
processo da fazenda até hoje não saiu por causa do déficit de
acompanhamento do INCRA. Por isso que o processo se encontra
dessa forma hoje. E ela ficou ausente, ela não participou da vida dos
assentados – se participou, ela participou à distância. E hoje, ela está
pretendendo assentamento por causa da liberação do recurso das
casas, que foi uma luta do Movimento Sem-Terra, uma luta dos
companheiros, na marcha que a gente fizemos, essa negociação em
Brasília. Então, hoje eles vêm por pra questão de fiscalização. Mas na
questão de orientação, na questão da produção, na melhoria da
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produção, na melhoria de vida dos assentados, ela sempre teve
ausente, na vida dos moradores. Então, eles estão aqui hoje somente
mesmo pra fiscalizar a questão das obras, a questão das casas. E tem
um outro aspecto, que hoje ela também está assumindo mais, na
gestão agora, essa gestão do INCRA, que foi o convênio que o
Movimento Sem-Terra fez, juntamente com o INCRA, que hoje temos
filhos de assentados juntamente com os técnicos, no convênio. Eles tão
acompanhando os assentamentos. Mas é muito pouco. Então a
avaliação que eu faço é que esteve muito ausente na presença das
famílias.
Entrevistador Você teve conhecimento das ações que tramitam sobre essa área?
Vanderlei Todos os processos de reintegração de posse a gente teve acesso
porque a gente tem uma equipe, uma coordenação, que é bastante
presente dentro do assentamento, que procura tá a par de todos os
processos que tão acontecendo, e tudo. A gente faz assembléia com as
famílias, passa o que tá se passando dentro do assentamento. Então a
gente fica sabendo através da coordenação e do Movimento Sem Terra,
que sempre tá aqui junto com a gente, orientando a gente.
Entrevistador Se você pudesse escrever uma carta pro juiz, ou falar com o juiz
pessoalmente... o que você diria pro juiz?
Vanderlei Eu diria pro juiz que... que ele levasse em conta todos os anos de
sofrimento que a gente sofreu, as famílias nossas, as crianças, idosos.
E pelos anos de sofrimento que a gente sofreu, pelos anos de fome que
a gente passou, pelas nossas necessidades... E também, tudo aquilo
que nós já construímos dentro do assentamento. De um simples
barraco de lona, hoje a gente moramos em casa de alvenaria. E pelo
que o INCRA já colocou dentro do assentamento, investiu dentro do
assentamento. São dezesseis anos de luta e de muito trabalho e de
muito sofrimento. E que hoje, na região de Andradina, o assentamento
Timboré, ele é fundamental, foi fundamental e é fundamental, até hoje,
no crescimento de Andradina. Porque todos recursos que entram dentro
do assentamento, toda produção que é do assentamento é investido na
cidade de Andradina. Então o juiz, eu peço pro juiz que ele leve em
consideração tudo isso que a gente temos aqui, e que a gente faz pelo
município de Andradina.
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Entrevistador Se você e a tua família fossem obrigados a sair daqui pra onde vocês
iriam?
Vanderlei Bom, eu não poderia responder pela maioria das famílias, mas eu
acredito que boa parte dos assentados hoje, principalmente daquelas
que vieram de longe, elas não teriam condições de voltar pra cidade. Se
fosse despejado, principalmente, eu iria pra baixo da ponte. Por quê?
Porque eu não tenho parentes que moram na cidade de Andradina, eles
moram tudo longe, São Paulo, Campinas. Acredito eu que boa parte
das famílias também não tenha condições, por isso as famílias iriam
morar na rua. E isso ficaria ruim para o próprio governo, para o próprio
juiz que tomaria essa decisão. Então, eu, nós, famílias, não teríamos
condições de voltar para cidade. Se a gente fosse despejado, com
certeza a gente iria pra rua. Não teria condições de tá morando na
cidade, ter um trabalho, pra sustentar uma família.
Entrevistador Você acha que o juiz tem todas as informações pra tomar uma decisão
sobre essa área?
Vanderlei Eu acho, não, eu tenho certeza que o juiz tem todas informações do
processo. Do processo e das famílias que aqui residem neste
assentamento. Eu acredito que ele deveria... o INCRA, juntamente com
o Movimento Sem-Terra, junto com o Poder Judiciário, analisar melhor a
política... a política do processo, em termos. Porque eu acredito que
seria um absurdo despejar as famílias que há 16 anos aqui moram.
Entrevistador Por que você acha que as famílias têm direito de ficar nessa área,
assim?
Vanderlei Eu acredito por questões... Questões, por exemplo assim: é questão de
justiça e é questão também de... que a gente tem que... o juiz, ele tem
que... como é uma pessoa, um ser humano que estudou e tem todo
esse gabarito dele hoje, ele sabe muito bem que existe uma lei que nos
dá esse direito, que é o Estatuto da Terra, tá escrito no Estatuto da
Terra. Então eu acredito que ele sabe muito bem dessa lei, e que essa
lei nos dá esse direito, né. Então, nós temos direito a essa terra, devido
a essa lei, né, e porque o INCRA também já investiu recursos aqui
dentro e as famílias também investiram aqui neste assentamento. Então
eu não vejo porque nós ser despejado de uma área que tá trazendo
benefícios pra sociedade.
Entrevistador Muito obrigado.
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Entrevista com Claudinei de Campos Gomes, 21 anos. Entrevistador Há quanto tempo você tá aqui na área da Timboré e se vc tem participa
da coordenação política do assentamento?
Claudinei Tem uns 18 anos, por aí. Não participo da coordenação. Sou apenas
um trabalhador.
Entrevistador Como você veio aqui pra área?
Claudinei Vim com a família inteira...
Entrevistador E quantos irmãos você tem?
Claudinei Seis.
Entrevistador E todos eles vieram pra área?
Claudinei Não, esse aqui nasceu aqui, o Cosme. Nasceu aqui.
Entrevistador Quais são as tuas lembranças dos primeiros momentos aqui na área?
Claudinei No “Buracão”, lá na beira da pista.
Entrevistador E como é que era a vida no começo?
Claudinei Ah, rapaz, não era bom não, uai! Sofrimento né? Só que a esperança
nunca acaba, a gente tem uma esperancinha a mais, aí, de conseguir
uma terra. Pra gente plantar, colher... Ter uma vida mais melhor.
Entrevistador E hoje, como é que tá o assentamento?
Claudinei Ah, produz tudo, né, um pouquinho de cada coisa. Mexemos mais com
leite, com gado... mas sempre tem uma coisinha que a gente planta,
uma mandioca, um milho, alguma coisinha pra poder... pro gasto.
Entrevistador Se você não estivesse aqui no assentamento, onde você estaria?
Claudinei Rapaz, eu não tenho a mínima idéia, hein? Que nós não tinha nada
quando nós começamo, nós... Meu pai era empregado, nós não tinha
casa, não tinha nada em Campinas. Então aí surgiu a oportunidade de
nós vir, nós viemo. Com a cara e a coragem. (risos) Meu pai, minha
mãe e mais um monte de moleque no pé... Cinco criança, eu com
quatro anos de idade... E viemo aí, Batalhamo, batalhamo e
conseguimo... Agora tomara que continue assim.
Entrevistador Qual a tua avaliação do trabalho do INCRA?
Claudinei Rapaz, é meio que... é médio. Porque algumas coisa a gente precisa,
algumas coisa eles ajuda, algumas coisa eles também não ajuda.
Então, a avaliação, assim, que eu acho, é média... Eu não entendo
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muito do INCRA também. Não participo muito das reuniões, quem vai
mais é meu pai. Já fui em algumas. Pra mim é normal...
Entrevistador Você tava sabendo de uma ação de reintegração de posse contra as
famílias?
Claudinei As anteriores eu tinha conhecimento. Dessa eu não tenho, eu tô
sabendo por você agora. Mas é uma coisa que... já passou muito
tempo. Eu acho que... Mesmo que ele entre com reintegração de posse,
acho que não tem como eles tirar nós daqui, porque é muita família, tem
energia, casa montada. E acho que nem que ele queira, entrar, nem
que o juiz fala que vai ganhar, que ganhou, não tem como tirar nó daqui,
não. Com certeza não tira...
Entrevistador Se vocês tivessem que sair daqui, qual seria o destino de vocês?
Claudinei (risos) Rapaz... Bom... Aí eu não tenho a mínima idéia. Eu acho que nós
sair daqui, com certeza, nós vamo entrar tudo dentro daquela Brasília
lá, e ficar tudo dentro do palácio deles lá. Porque não tem pra onde ir,
uai! Se tirar nós daqui, nós não tem como comer, não tem onde morar...
Enfia lá! Tudo as família que mora aqui dentro dos Sem-Terra aqui, nós
vai lá entra dentro da tropa lá e fica comendo às custas deles lá. Pra
onde nós vai? Eles não vai deixar nós na beira da rua.
Entrevistador Vocês vivem do trabalho na roça?
Claudinei É. Só do trabalho da roça.
Entrevistador Se você pudesse falar com o juiz, ou mandar uma carta pro juiz que vai
decidir essa ação de reintegração de posse, o que você diria pro juiz?
Claudinei O que que ele faria com esse monte de família aqui. (risos) É a única
coisa que eu diria, eu diria assim, pra ele, pessoalmente, ou então por
uma carta, o quê que ele ia fazer com esse monte gente aqui, porque...
Nós já tá aqui já há 18 anos aí... nós lutemo por isso aqui... e se nós
lutemo por isso aqui, nós temo direito. Então eu acho que... é isso que
eu ia perguntar pra ele, o que ele ia fazer com esse monte de gente
aqui.
Entrevistador Você acha que o juiz tem todas as informações pra decidir uma causa
como essa?
Claudinei Eu acho que não.
Entrevistador Você acha que a vinda dele aqui pra conhecer a a realidade seria bom
ou não?
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Claudinei Seria bom, pra ele ver como é que mudou a situação das famílias,
pessoalmente, quando entramo aqui ninguém tinha nada, entramo com
uma mão na frente outra atrás... Como que mudou, o desenvolvimento
das famílias... Sei lá. Eu acharia que seria bom pra ele ver como a
gente batalhemo, lutemo por isso aqui e conseguimo.
Entrevistador Qual a tua visão do Poder Judiciário?
Claudinei Eu acho que ele, sei lá... É meio complicado pra mim dizer isso, porque
eu não entendo muito dessa parte... Mas eu não confio não, né?
Porque, né, confiar numa pessoa que a gente não conhece, que... o
dinheiro hoje em dia compra tudo. Sei lá. Eu não confio não.
Entrevistador Você pretende ficar morando nesta área?
Claudinei Pretendo morar na área. Com certeza. Minha mulher já tá aqui, já o meu
filho tá vindo aí... Meu irmão tem sítio, meu outro irmão também tem
sítio, entendeu? Eu sou o único filho que pode ajudar meu pai, meu pai
tá ruim de saúde, hoje em dia. O único filho que pode ajudar sou eu.
Luteie por isso aqui desde os quatro anos de idade, vou continuar
lutando, e continuar sempre com o pensamento em crescer aqui dentro.
Entrevistador Por que você acha que vocês tem direito de ficar aqui nas terras?
Claudinei Bom, a razão principal é que quando nós entramo aqui, se o INCRA pôs
nós aqui dentro é porque com certeza a fazenda era improdutiva. Não
tinha... E tudo que nós lutemo aqui dentro, pelo desenvolvimento que
teve aqui dentro, acho que é isso aí... Se a gente conseguiu entrar aqui
dentro, acho que algum motivo teve. Agora, depois que ele perdeu, aí a
gente não... tem culpa nenhuma. Só sei que a gente tá produzindo, e a
gente tem direito nisso aqui, tanto quanto ele. Pelo tanto de tempo que
teve aqui dentro, pelo desenvolvimento que teve. A gente já tem casa,
gado, energia, tem plantação, gastou dinheiro aqui dentro, já, também,
muito... Então eu acho que a gente tem muito dinheiro envolvido aqui
dentro, que a gente gastou, tirou do bolso da gente pra investir... Então
é isso daí...
Entrevistador Claudinei muito obrigado.
Entrevista com José Aguiar Gonçalves, 47 anos.
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Entrevistador Gostaria queria que o senhor falasse um pouco como é que foi a sua
chegada aqui e se vc tem alguma função na coordenação do
acampamento.
José Faço parte da coordenação do acampamento. Vim pra cá em 1989.
Entrevistador Como é que foi esse primeiro período?
José Primeiramente a gente, a primeira entrada da gente foi na fazenda
Pendengo, em 27 de janeiro, por onde ficamos lá, cerca de 15 dias.
Depois daí aventuramos a entrada aqui, o que não deu certo, na época.
Ficamos seis meses acampados na beira da estrada, até que no dia 19
de agosto de 89 a gente entrou na área, na qual surgiu o conflito.
Inclusive até com a perca de um olho de um dos companheiros.
Entrevistador Como é que foi a vida no início aqui no acampamento?
José É, falando assim, é muita dificuldade, e assim... primeiro, assim, pelo
preconceito da sociedade aqui na região, e isso daí contribuía muito pra
que, assim, as autoridades policial e outros fazendeiros pressionassem
muito a gente. Mas, por outro lado, a gente tinha outra vantagem que,
assim, a natureza contribuía bem com chuvas e sendo assim, produzia
bastante. Embora a gente tinha umas áreas pequenas pra plantios, que
nós inventamos por nossa conta mesmo, meio que "na marra",
arrumamos áreas pra plantar, mas produzia bem, na época, que eu me
lembro.
Entrevistador E hoje, como é que tá a vida de vocês aqui hoje?
José No geral assim, do assentamento, praticamente todos tem uma casa,
pode-se considerar assim, embora seja inacabada. São casas que,
assim, algumas melhor, outras mais inferior... Mas, assim, praticamente
todos tem uma casa.
Entrevistador E o que vocês produzem hoje? Do quê vocês vivem?
José O básico no nosso assentamento aqui, hoje, é a pecuária leiteira, né,
em decorrência assim das mudanças de clima, assim, que as chuvas,
de uns anos pra cá, passou a ficar assim mal distribuídas aqui na
região, daí tornou-se necessário a gente mudar também a atividade de
produção. E passando pra pecuária leiteira, que ficou fácil essa forma.
Entrevistador Qual atua avaliação do trabalho do INCRA?
José Infelizmente, o INCRA, ele falhou várias vezes, né, porque assim...
Como são várias situação, é complicada essa área aqui, então teve
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várias falha do INCRA no passado. E... o que resultou assim, de dar
brechas pra juntar muito processo também. Então, isso é no passado.
Agora, atualmente, ou de uns anos, uns dois, três anos pra cá, o INCRA
vem trabalhando de uma forma até razoável, prometendo solucionar o
problema.
Entrevistador Você tem conhecimento de uma ação de reintegração de posse que o
proprietário está movendo contra as famílias que estão no
assentamento?
José Sim, isso se iniciou em 15 de março de 2004, foi quando o fazendeiro
entrou com essa reintegração, e eu tenho conhecimento disso sim. E a
gente tá... até hoje tá lutando por isso daí.
Entrevistador O que você acha do fato do proprietário tá querendo retomar a posse
dessas terras aqui?
José É, numa disputa de “cada um puxa pro seu lado”, eu acho que ele tá
certo, ele na condição de fazendeiro, tá certo. E nós na condição de
precisar de um pedaço de terra, tamo certo de lutar por ela.
Entrevistador Você acha que o juiz que vai decidir essa causa tem todas as
informações necessárias pra decidir corretamente essa situação?
José Ó, o que eu diria pro juiz é pra ele observar o seguinte: o impacto, ou a
causa social. Que passa a ser um prejuízo muito grande a desocupação
do pessoal aqui, nesta área, levando em consideração que antes aqui
vivia uma família só, e hoje são 176 famílias que vivem na área. Então,
pra onde vai esse povo? Novamente, conflitos novamente. Então o que
eu diria para o juiz é pra ele pensar nessa causa social aí.
Entrevistador Se você tivesse que sair daqui hoje, pra onde você acha que você iria?
José O meu destino seria juntar pessoas com o mesmo ponto de vista meu e
partir pra... partir pra luta, é... no sentido de pegar aqui de volta. Pegar
de volta.
Entrevistador Você acha que as famílias iriam aceitar sair daqui pacificamente?
José Com certeza que não. Seria um grande conflito. Porque, assim, eu
entendo que o pessoal não aceita mais sair daqui assim... numa boa,
não. Com certeza é conflito.
Entrevistador Você acha que o juiz deveria vir conhecer a área e as famílias?
José É, em parte sim. Em partes, eu entendo que isso contribui. Porque até
hoje juiz nenhum aqui... Eu nunca vi a presença de um juiz, in loco,
nunca vi.
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Entrevistador Uma última pergunta: você confia no Poder Judiciário?
José Ah, baseado na conjuntura atual do país eu não confio não... (risos)
Entrevistador Por que você não confia?
José É porque as leis têm muita brecha. Por isso.
Entrevistador Muito obrigado José.
Entrevista com Julinda Oliveira Lopes, 50 anos. Entrevistador Dona Julinda eu queria que a senhora me dissesse se vc faz parte da
coordenação do assentamento e como é que foram os primeiros anos
aqui?
Julinda Eu não faço parte da coordenação. Ah, quando eu vim pra cá, foi em
89. A gente veio porque, você vê, a gente morava na região, na cidade.
E a região, tinha muita terra. E a gente era bóia-fria, sabe? Então, eu
achei que se... tinha o direito de ter um pedaço de terra pra mim poder
trabalhar. E a gente morando numa cidade muito tempo, sem estudo,
você não ia conseguir nada. Então um pedaço de chão, acho que seria
melhor pra gente acabar o resto de vida da gente. Então foi onde a
gente conseguiu, porque aqui eu trabalhava a muito tempo de bóia-fria,
então a gente falou assim “essa região muito explorada, muito serviço,
dá muito serviço pra gente que mora aqui na região”. Aí nós resolvemo
vir pra terra, sabe? Da terra, eu só saio quando morrer. Porque acho
que é uma coisa que Deus deixou pra todo mundo, e não pra um só,
né? Então nós resolvemo vir.
Entrevistador A senhora sempre trabalhou na roça?
Julinda Sempre trabalhei, de bóia-fria. Morava na cidade, mas trabalhava na
região de bóia-fria. Achei que o meu lugar seria na roça, né, então falei
“eu vou ficar pra um pedaço de terra”.
Entrevistador Como é que foi os primeiros anos aqui no acampamento?
Julinda Foi difícil. Nos primeiros anos, foi difícil, porque esse acampamento foi
quase um dos primeiro. O pessoal tinha muita assim... Rejeitava a
gente, não aceitava, achava que sem-terra era tudo baderneiro,
bagunceiro, só... porque veio de São Paulo, esse pessoal veio de
Campinas, São Paulo, achou “o pessoal da periferia veio tudo fazer...”.
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Porque quando nós ocupamo aqui foi difícil, nós ocupamo na marra,
com tiro. Então foi bem na marra, então eles achou que nós ia fazer
bagunça a vida toda. Mas não, a gente queria mesmo cada um
pedacinho de terra. Pode ver que cada um que pegou seu pedacinho de
terra tá tocando conforme pode, tá aí pra todo mundo ver que aqui era
tudo.
Entrevistador Qual é a principal produção aqui?
Julinda Hoje, mais é o leite. Que roça nós começamo mais... esse negócio do
governo aí, quando a gente vai comprar coisa tá lá em cima, quando
você vai vender tá lá embaixo... Nós desistimos de mexer com roça,
porque o leite é uma coisa que, pra nós, assim, se dá mais. Porque...
devido à seca também, você planta, faz financiamento, depois você não
consegue pagar, vai só devendo, o banco vai só... Então nós falamo
“vamo no leite, porque o leite é melhor, uma alternativa melhor”, né.
Entrevistador Qual é a avaliação da senhora sobre o INCRA?
Julinda Bom, meio na marra eles vêm ajudando. Meio na marra, com a pressão
nossa, ele tá na força. Mas com pressão. Porque por eles mesmo,
disponível, nós... nem aqui tava mais. Porque a gente pra conseguir
uma coisa tem que fazer luta, movimento, ajuda a gente pra ir lá em
cima cutucar eles, porque senão não saía nada.
Entrevistador Qual a principal reivindicação para o INCRA?
Julinda Ah, eu acho que eles devia tá mais aqui junto com a gente, pra poder
ver o que a gente tá precisando. Porque eles fica de lá, a gente fica
aqui, aí eles não sabe o quê a gente tá precisando. Contando aqui junto
com a gente, alguém do INCRA junto com a gente, pra modo de ver o
quê a gente tá precisando, pra poder tá ajudando a gente, porque... só
no papel não resolve, tem que tá aqui vendo o quê a gente tá
precisando, vendo como é que tá o problema da gente plantar, não
colher. Mudar alguma coisa pra ver se a gente produz mais e melhor.
Entrevistador A senhora sabe que tem uma ação de reintegração de posse contra as
famílias aqui da área?
Julinda Vai ser difícil do pessoal sair, hein? Porque muita gente que veio pra cá,
que nem no meu caso e outros aí, não tem onde ficar. Não tem aonde
sobreviver. Que nem mesma, eu fui bóia-fria, eu vim pra terra, eu quero
morrer na terra, daqui eu só saio morto! Isso daí nós falamo até pro
ministro, dá pra falar pra qualquer um, quem quiser ouvir, a gente tem a
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coragem de falar... Porque dessa terra, tem que sobreviver da terra
porque... já era bóia-fria, não tem estudo, não tem serviço, você vai
viver aonde?
Entrevistador Se a senhora pudesse falar com o juiz pessoalmente, ou mandar uma
carta pra ele, o quê que a senhora diria pro juiz?
Julinda Eu falava pra ele, porque o seguinte: a terra, a gente sustenta a gente
da terra. Daqui a gente come, a gente bebe. Tanto eles como nós. Se
nós sair da terra, quem é que vai produzir isso daqui? Daqui não vai sair
mais o sustento que sai daqui. Aí vai ficar o pessoal tudo na cidade só
fazendo baderna, só roubando, matando... indo pras favelas, que nem a
gente vê aí na televisão, dia-a-dia, as favela ocupada por bandido, por
quê? Porque não tem serviço, vai tudo pra lá, fica lá um guerreando
com o outro. Agora tendo terra não, cada um vai cuidar do que é seu!
Se todo mundo na favela tivesse um pedacinho de terra, não acontecia
aquelas morte que nem acontece lá. Cada um ia cuidar da sua terra, ia
sobreviver daquilo que ele tá plantando, sobrevivendo em cima dela.
Entrevistador A senhora tem filhos?
Julinda Tenho. Um só.
Entrevistador Mora com a senhora?
Julinda Mora, tem 14 anos, mora comigo.
Entrevistador A senhora acha que é bom o juiz vir aqui conversar com as famílias?
Julinda Eu acharia bom, porque vai ver a vida de cada um. Porque é que eu tô
aqui, qual é o que já passei, explicar o que já passei... Porque você vê,
passar seis anos debaixo de uma barraca de lona, e chegar onde eu
cheguei... Pra mim, sair daqui é muito difícil, tá entendendo? Porque eu
fiquei seis anos debaixo da barraca de lona, cheguei onde eu cheguei,
tenho tudo aqui. Agora eu vou ter que sair daqui pra ir pra onde? Pra ir
pra onde que eu vou ter que ir, debaixo da ponte? Então é difícil...
Entrevistador A senhora confia no Poder Judiciário?
Julinda Ah, eu acho que eles devia analisar muito mais a situação das pessoa
que tá no campo. Porque é do campo que vai sustento pra eles
também, porque se não fosse o pessoal da roça, quem é que ia plantar
milho, arroz, feijão pra eles poderem comer? O pessoal, juiz não ia fazer
isso. Os fazendeiro não ia plantar pra eles, o fazendeiro só ia criar boi.
E da onde tá saindo o sustento deles? É daqui da roça também.
Entrevistador A senhora confia no Poder Judiciário?
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Julinda Ah, não confio muito não...
Entrevistador Por quê?
Julinda Porque eu acho que a gente que mora no campo, sei lá, a gente...
(risos) não tem muita confiança no juiz porque uma hora ele tá do lado
nosso, outra hora ele tá do lado dos fazendeiro! Então a gente fica meio
indeciso, porque né? Que pode ter essa "diversão". Sabendo que ele
sabe a situação nossa, a situação do fazendeiro... E a gente tem que
produzir, a gente tem que trabalhar. Só criando boi não vai resolver o
problema do país... Se todo mundo que cria boi, você vê essa revolta do
boi aí, por exemplo, todo mundo cria boi, se ninguém plantasse roça ia
todo mundo morrer de fome, porque o boi, a carne do boi tá lá embaixo,
esse negócio, essa doença que deu aí, ó... Se fosse só boi tava todo
mundo morrendo de fome. Até eles, porque não ia ter nada. Então por
causa dos sem-terra, do pessoal que tá plantando tem alguma coisa
mais barata que a gente pode amenizar a fome no Brasil.
Entrevistador Se as famílias fossem obrigadas a sair daqui, para onde iriam?
Julinda Pra beira da estrada. Fazer um barraco e morar lá. Porque eu não tenho
condições de pagar aluguel, não tenho casa na cidade. Ia fazer mais
barraco nessas pista todinha e ficar acampada, porque, fazer o quê?
Quem mora numa terra, sair da terra, não tem como sair pra cidade.
Porque pra cidade você não tem condições de morar, porque não tem
emprego. Você não tem, como fala... estudo. A idade não permite mais.
Com a idade uma aposentadoria, e assim mesmo meio na marra,
porque nem conseguir aposentar, hoje, você não consegue, se tiver
algum problema de saúde. Tem que ter, né, tem que tá ali morrendo
mesmo, pra poder aposentar, senão não consegue.
Entrevistador Dona Julinda, muito obrigado pela entrevista.
Entrevista Adelvita Braga da Silva, 38 anos. Entrevistador Dona Adelvita, a senhora é da coordenação do acampamento, ou
exerce alguma função nos trabalhos coletivos, e como e quando a
senhora veio pra cá?
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Adelvita Sou agente comunitária da saúde. Vim pra cá em abril de 1991. E foi
uma luta difícil, pra gente vir, mesmo porque já tinha um pessoal que já
tava há dois anos e pouco. Dois anos e pouco a outra turma tava aqui.
Foi uma luta difícil e tudo, mas compensativa. Porque a dificuldade, pelo
menos eu vim da cidade, e não tinha espaço pra gente lá na cidade.
Porque o trabalho da gente sempre foi trabalho rural mesmo. Então, o
trabalhador rural, na cidade, ele não tem espaço. Então esse foi o
motivo da gente ter vindo pra cá. E de lá até aqui, eu não tinha
conhecimento dessa ação que o fazendeiro está movendo. Mesmo
porque ele, agora são herdeiros, já não é mais o fazendeiro. Mas eu
acho assim, um retrocesso total de todo esse trabalho que foi feito, se
vier a acontecer alguma coisa com a gente. É um retrocesso total.
Porque de 91 até agora, os avanços que teve aqui dentro, em questão
social, financeira, tudo, tudo, geral. Foi um avanço grande.
Entrevistador Como é que é a vida hoje aqui?
Adelvita Hoje eu trabalho como agente comunitária de saúde.
Entrevistador A senhora faz o atendimento na questão da saúde pras pessoas aqui do
assentamento?
Adelvita Isso. A gente procura dar o atendimento na prevenção. Que é o
fundamental, primeiro trabalhar com a prevenção, e também na parte já
curativa. De pessoas que já tem um problema, então a gente trabalha
nesse sentido.
Entrevistador Tem algum convênio que mantém o posto de saúde aqui?
Adelvita É pelo município, e agora pelo Programa Saúde da Família, que é o
Programa "Qualis Rural".
Entrevistador A senhora sabe me dizer como é que as outras pessoas vivem aqui no
assentamento?
Adelvita Todos têm casa. No meu setor e que eu tenho conhecimento, acho que
só tem uma família que mora assim... num barraco de material,
aproveitado, que é agregado, não é assentado. Mas os assentados,
todos eles têm casa.
Entrevistador Qual é a avaliação que a senhora faz do trabalho do INCRA?
Adelvita Pra mim, no meu ponto de vista, o trabalho do Incra foi satisfatório sim.
Tem algumas coisas, ainda, pra ser melhorado. Mas o quê tem sido
feito até agora, tem sido satisfatório.
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Entrevistador O que as senhora acha do fato do fazendeiro estar pedindo a retirada
das famílias aqui?
Adelvita Eu não tenho muito conhecimento da causa, mas eu acho que não. No
meu ponto de vista, eu acho que não, que ele não pode conseguir
retirar as famílias.
Entrevistador Se a senhora pudesse falar com o juiz, o que a senhora diria pra ele?
Adelvita Acho meio complicado de responder esta pergunta, hein...
Entrevistador Mas pode ficar à vontade...
Adelvita No caso aí, ele, o juiz, ele teria que analisar bem a questão de quando
foi, desde lá do início – não quando o pessoal ocupou a fazenda, lá do
início quando a fazenda foi considerada como improdutiva – e fazer
essa avaliação de lá até, até agora. Pra ver a evolução que teve, como
que foi o andamento. Porque, pra ele tomar uma decisão nesse caso,
ele tem que avaliar lá no começo. Porque se ela fosse realmente
produtiva, eu acho que ninguém teria ocupado.
Entrevistador Pra onde a senhora acha que as famílias que moram aqui hoje iriam, se
o juiz mandasse retirar essas pessoas aqui?
Adelvita Eu acho que aí, ele, o próprio juiz, ele teria que ter um local pra levar
esse pessoal. O próprio juiz. Teria que ter, a justiça teria que ter um
local pra tá levando esse pessoal, porque o pessoal que sair daqui, eles
não têm... pelo menos eu não tenho pra onde, assim, voltar. E acho que
todas as famílias aqui é a mesma coisa.
Entrevistador Adelvita, muito obrigado pela entrevista.
Entrevista com Adevino Pires de Oliveira, 49 anos. Entrevistador Adevino vc exerce alguma função pública dentro do assentamento?
como é que foi os primeiros anos aqui?
Adevino Não tenho nenhuma função pública não. Sou apenas um trabalhador.
Vim pra cá em 1989. Foi muito difícil. Antes da gente vir pra cá, a gente
morava na periferia lá de Sumaré. Aí, viemos pra cá no dia 27 de janeiro
de 89. Chegamos aqui no dia 28 de janeiro de 89, quatro e meia da
manhã. Aí, nos entramos em uma área, antes dessa aqui – hoje nós
estamos aqui no Timboré, mas a primeira área, que é a do mesmo dono
daqui, é a fazenda Pendengo. Lá ficamos, 20 dias na área, ocupamos
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lá, no dia... já no dia 28, amanhecemos lá. 28 de janeiro de 89. Aí,
ficamos 20 dias, na área. Aí depois, aí o fazendeiro entrou com o pedido
de reintegração de posse. Aí houve o despejo. Fomos despejados,
viemos pra praça Nova Independência, ficamos durante 30 dias. Na
praça Nova Independência, nós dormíamos na igreja, no salão da igreja
católica. E a mulheres dormiam num salão comunitário, ficava retirado,
mais ou menos, a quase... uns 300 metros. Aí ficamos ali, nós sendo
vigiados por polícia, passava sempre, assim, por longe... ver se não via
alguma movimentação estranha. Achando que a gente ia ocupar
imediatamente outra área, e sentar em cima - pra sentar em cima, no
campo. Pra evitar, então nós tava sendo vigiado. Aí, quando, depois dos
30 dias, que nós tivemos lá na Independência, aí, já entramos com
posse da fazenda, no dia 20, no dia 15 de março de 89. Tentamos. Mas
não houve possibilidade, porque foi de manhã. Nós pousamos dia 14
pro dia 15 em Andradina, aí no dia 15 tentamos ocupar a fazenda,
entendeu? Quando chegamos ali na... aonde era pra ser, que tem
aquela placa do INCRA, aí vinha uns jagunços, não deixava... tentando
impedir, pra não deixar o pessoal descer dentro da pista! Aonde que
uma pessoa tem autonomia de impedir, assim, a pessoa de circular na
pista, né? Eles não autorizavam, né? Aí nós furamos o bloqueio, lá, e
viemos descendo, né. Imediatamente já veio polícia de Andradina,
impedindo que nós entrasse aqui. No espaço – não, foi oito da manhã,
quando nós viemos ali, né – no espaço de, mais ou menos, 40 minutos,
tinha eu acho que uma média de umas 60 polícia. De todo canto, de
Castilho, veio um pouco de cada cidade. Aí, acompanharam nós de a
pé – dali da entrada dava 8 quilômetros, até onde nós ficamos
acampado no final da fazenda, na beira da estrada, a retirar, mais ou
menos, uns 400 metros da margem do rio Tietê, e ficamos ali. Sofremos
ali as pior humilhação. Os jagunço do fazendeiro, ficava ali durante o dia
e durante a noite. Durante a noite, eles pegavam uma camionete, uma
D10, cabine dupla, com alto-falante, falava palavrão de baixo calão, ali
com o pessoal... Atirava foguetes, provocando. A polícia vendo. E ficava
ali, durante o dia de plantão, a policia, dois polícia, né? E via tudo
aquilo. E conformava, a situação, já que... pra não levar ninguém preso,
os jagunços, que eles provocava o pessoal. Quando era de
manhãzinha, bate seis e meia, sete da manhã, eles pegava aquelas
32
D10, cabine dupla, colocava os armamento pesado, enrolava numa lona
preta. Ponhava as arma dentro, enrolava tipo um cesto. Ponhava na
caminhonete, levava e deixava onde era a sede, na casa do capataz.
Que ia tá no lugar. Administrador e capataz. Ficava lá. No outro dia de
manhã, eles retiravam do acampamento que fizeram, que era de frente
– o acampamento de um lado da pista, e eles de frente, lá, no barraco
deles. Durante a tarde lá, quando ia chegando a tarde, passava o dia,
na base de seis e meia, sete horas... da tarde, eles vinha de novo, com
aqueles armamentos. Vinham e ficavam ali, só pra provocar. Foi cinco
meses e quatro dias. Chegamos lá naquele local, no dia 15 de março, e
saímos no dia... e tentamos ocupar aqui, aí... nós não tentamos, aí
ocupamos de verdade. Aqui, a fazenda. No dia 19 de agosto. Isso, cinco
meses e quatro dias, depois.
Entrevistador Porque vocês ocuparam essa propriedade?
Adevino É o seguinte, é pra nós poder retirar o sustendo dela. E ela tinha... tinha
entrado, assim, em decreto... Tinha sido decretado pelo Presidente da
República, José Sarney, de 86. Como... foi desapropriada por ele, em
86, para fins de interesse sociais. O fim de Interesse Social, significa
que nós vamos ser beneficiados, no caso, vamos ter uma lei, na
Constituição, dizendo que toda área improdutiva, do latifúndio, por
exploração, ela tem que ser desapropriada, e repassada pro povo. Aí,
isso foi o motivo que nós ocupamos. Pra tirar o sustento e por ter sido,
assim decretado, assim, pra Reforma Agrária pelo Sarney.
Entrevistador Como é que foi os primeiros anos, aqui na área?
Adevino Era barraco. Barraco de lona, revestido de capim, por cima, pra
amenizar o calor. Até, inclusive, o filho caçula que nós tem, aqui,
nasceu dentro de um barraco de lona, há mais ou menos 150 metros da
margem do rio. Nós já tava aqui dentro da fazenda. No dia 16 de abril
de 1990, que ele nasceu. Então, aí, ocupamos, aqui... no dia 19 de
agosto de 89, então o pessoal morava assim, aglomerado. Aqueles
aglomerado de barraco, um próximo do outro, no máximo dois, ou três
metros. Aí, pra um garantir a segurança do outro. Ficava mais fácil,
você ia ver se matar, por parte do fazendeiro. Então, é mais fácil de a
gente se defender, também, e se comunicar com os companheiros. Aí,
nós trabalhemos, depois, com um sistema coletivo. Era 101 família, aí
foi subdividido esse grupo. Aí ficou 11, foi subdividido em 11 grupinho.
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Tinha o grupo 1 até o 11. E tinha grupo com 13 famílias, tinha com 14,
tinha com 10. Então, aí deu 11. 11 grupinhos. Durante dois anos, nós
plantamos coletivo, então, todo mundo trabalhava junto, plantava.
Quando colhia, então dividia o que produziu: o arroz, o feijão, o milho. E
dividia a importância cabível a cada um. No primeiro ano. Aí, no
segundo ano foi procedido da mesma forma. Dois anos. E tinha um
advogado, na época, o nome dele era Dino. O Dino. Até foi, acho, pelo
pedido dele, foi que o juiz, aí, seqüestrou a área, uma época. Houve
conflito quando nós entramos aqui - um companheiro perdeu a vista, e
como houve esse conflito, o juiz seqüestrou a área. Só que esse
seqüestro, ele podia durar 24 horas, uma semana, um mês, ou um
ano... ou até dez anos. Ficamos 6 anos. Quando foi no dia 22 – 22 ou
23 de março – acho que hoje tá fazendo um ano... hoje, ontem, 23. Aí,
foi dada a emissão de posse. Nós ficamos 6 anos, na condição, assim,
de acampado. Só que no terceiro ano – ficamos trabalhando 2 anos,
né... Era, a média, um alqueire e meio pra cada família, que não dá três
hectares... dá, não dava, é... um alqueire e meio são 30 mil metros... um
alqueire, 24... mais de três hectares por família, né? E aí, o INCRA, na
época, disse assim: “ó, vocês têm que ficar limitado, entendeu?”. Essa
área que nós tava ocupando dava mais ou menos 140, 150 alqueires.
Aí, o INCRA pegou, e chegou a apresentar a proposta de cercar.
Cercar, e nós ficar limitado nessa área aqui dentro. Aí, tinha orientação
das pessoas – pessoa assim, intelectual, que nós não é – nós não tinha
a experiência que nós tem hoje. Eles falou “bom, quando o juiz
seqüestra a área, ele seqüestra a área total, e não parcial. Não um
parte dela, né?”. Aí no terceiro ano, aí seguimos por nossa conta, na
área. Medimos igual oito alqueires, cada um, assim, botou na corda.
Entrevistador E hoje, como é que é a produção~?
Adevino É o seguinte, com a família... hoje, aqui, pode dizer, 90% do pessoal
sobrevive do leite. Antes do leite o pessoal plantou, tentou de tudo
quanto foi forma: algodão, milho, feijão... só arroz que não, que não é
muito próprio para arroz, em lugar baixo, é proibido plantar, que o
IBAMA não deixa. Então, mais essas 3 culturas. Aí, o Presidente que
entrou, na época, e lascou com a agricultura. Aí foi a agricultura é uma
agricultura falida. Uma agricultura que você planta, no caso, o que você
produz você não consegue pagar. Na verdade, você não consegue,
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mesmo você trabalhando, envolvendo o seu tempo, ali, chega no final
do ano, é a mesma coisa que trocar seis por meia dúzia. Você paga,
consegue pagar, mas fica sem nada, fica areado, limpo. Aí foi a razão,
ou o motivo, que levou o pessoal de trocar de atividade, de algodão e
milho, aí passou pro leite. Hoje 90% sobrevive do leite.
Entrevistador Qual a avaliação que o senhor faz do trabalho do INCRA?
Adevino Na época, ou hoje?
Entrevistador Em todo o período, na época e hoje?
Adevino Em todo período. Tudo bem. Então, antes o INCRA deixou a desejar.
Era antes. Hoje, o acompanhamento do INCRA tá sendo melhor. A
gente consegue conhecer quase todos eles que trabalham no INCRA –
isso é o que a gente tá vendo. Porque a gente pode assim, o que a
gente cobra, vê que precisa, a gente cobra deles, eles vai e faz o que
for. Onde que não pode, também, eles vai e fala que não tem jeito. Mas
era a coisa mais difícil, no início a gente ver um funcionário do INCRA.
Nas a primeira vez que eles andaram aqui, eles andaram aqui na
época, olhando a área aqui, mas no sentido de proteger o lado do
fazendeiro.
Entrevistador O senhor sabe que tem uma ação de reintegração contra as famílias?
Adevino É o seguinte: o fazendeiro... a burguesia, ele ou outro rico, que seja, ele
não quer perder o que tem. Se ele acha que ele tem direito, ele bate em
cima. Mas... é... nós não sai daqui. Eu mesmo não saio não. Ele bate
em cima, pra querer aquilo. Porque ele deve, diz que deve muito pro
Banco Central. Se for fazer um balanço, o que ele deve pro Banco
Central, e o valor da área, então o valor não dá nem a metade do que
ele deve. Então, ele quer bater em cima de uma coisa ali que ele acha
que tem direito de levar. Então, se haver a reintegração de posse, ou se
a terra voltar na mão dele ou da União, eu não saio daqui.
Entrevistador Haveria alguma resistência?
Adevino O pessoal, sem dúvida, vai resistir ao máximo. Vai resistir porque, se
sair daqui, não tem pra onde ir. Se sair daqui, tem incidir de outra área,
vai importunar, incomodar lá... lá, quem tiver o rebanho em volta dessa
área, onde for. Se fosse acontecer isso, né? Então, nós não temos,
assim, lugar... É aqui mesmo, né, por isso que nós não abre mão. De
uma coisa... que a gente já tá aqui já há 17 anos. Um tempo, de 17
anos.
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Entrevistador Se o senhor pudesse falar pro juiz, ou escrever uma carta, que o senhor
diria pro juiz?
Adevino Olha, fica difícil. No caso, se for escrever, assim, pro juiz, o juiz, eu – ou
outra pessoa qualquer, se for fazer isso – ele vai achar que a pessoa, a
gente vai escrever pra ele, e pedindo pra ele pra ele ter clemência da
gente. Não, do povo, nós todo. Pra ele ter clemência, e falar: “não, eles
tão querendo ganhar o juiz no caso, ficar fazendo de vitima. E pedindo
clemência no sentido de me sensibilizar, no caso”. Aí, acho que é pior.
É pior, escrever uma carta pro juiz. Eu acho que é pior. Porque esse
povo da justiça, o juiz, ele não tem dó, assim, de ninguém. Ele não te dó
de ninguém. É um povo, assim, que é a mesma coisa de uma cobra. A
mesma coisa. Porque a cobra ela morde, o individuo, ela sabe arranjar
a mata. E outros animais, em comparação, mudando de uma coisa pra
outra, morde pra se defender. Então o Poder Judiciário, é difícil a
pessoa pedir assim, pra ele, uma compreensão, porque tem muitas
coisas que é feita através de reivindicação pra ele. No Brasil, e em
outros estados, aqui mesmo no estado de São Paulo, manifestação de
duas mil, duas mil e quinhentas pessoas, ele não atende o pedido do
povo! Ele não atende o pedido, não fica do jeito que o povo queria que
fosse. No sentido de não ser prejudicado, mas ele prejudica mesmo.
Entrevistador O senhor confia no Poder Judiciário?
Adevino Eu não confio, não.
Entrevistador Por quê?
Adevino Eu não confio, porque a justiça brasileira, ela privilegia mais a
burguesia. Ele não privilegia a classe trabalhadora. Os trabalhadores
não são valorizado por eles. Não são valorizados. Eles beneficia mais a
classe empresarial. Ou Rural ou Urbano.
Entrevistador Se o senhor e sua família fossem obrigados a saírem daqui, para onde
iriam?
Adevino Não temos idéia. Nós só pensamos aqui mesmo. Já tamo aqui já faz 17
anos. E quando a pessoa reside num lugar há 17 anos, então já
acostumou ali, gosta do lugar. Que se fosse num lugar, assim, que a
gente não gostasse, a gente iria embora. Mas a gente tá aqui, porque a
gente gosta daqui, e não pretende sair daqui.
Entrevistador Muito obrigado pela entrevista.
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Entrevista com Jandira Vieira Pereira, 63 anos. Entrevistador A senhora poderia me dizer se exerce alguma função na coordenação
do assentamento? E como foi o início da ocupação?
Jandira Eu participo da coordenação do assentamento. Quando eu vim, o povo
já tava acampado na beira da estrada. Aí falaram pra gente assim: "Oh,
lá tá fácil"... E eu nem sabia direito como que era um acampamento, aí
me chamaram, eu falei: "então vamo". Aí eu peguei e vim, aí quando
tava com quinze dias que a gente tava na estrada, ali, acampado na
beira da estrada, aí nós entramo. Então nós tava de um lado e os
jagunços do outro. Aí então, pra enganar os jagunços inventamos um
forró. Aí nós começamos na quarta-feira esse forró, dançamo a quarta-
feira a noite todinha, a quinta-feira e a sexta-feira também foi forró.
Quando foi pra amanhecer no sábado, ali pra umas cinco horas, aí foi
que o capanga do jagunço lá chegou e percebeu que o povo tinha
entrado... Aí eles tava lá no começo, nós entramo aqui por baixo, pelo
porto aqui embaixo. Cortamo e entramo por aqui. Foi aonde foi que
aconteceu aquele "trupetudo", que o cara chegou, atirou no Santilho,
não sei se o senhor conhece ele pessoalmente...
Entrevistador Não, pessoalmente não conheço.
Jandira Aí foi aquele alvoroço tudo, foi aquele quebra-pau, aí ficou todo mundo
sem saber o quê que fazia, cataram o Santilho, levaram pra lá, e depois
o povo acalmou um pouco. Até “inclusivamente”, tinha um ônibus de
gente que veio lá da fazenda Promissão, que veio aqui pra ajudar a
gente, tava tudo desnorteado, fizemo almoço tudo, debaixo das árvore,
porque não tinha nem lugar pra fazer almoço pro povo, nem nada...
Fizemo almoço debaixo das árvore, e por ali ficou. Aí, daí três dias, foi
que chegou, o povo tava tudo desesperado, sem saber o que ia
acontecer, aí chegou uma conversa que tinha saído, que tinham
seqüestrado a fazenda, que nós não ia ser despejado. Ali foi onde o
povo acalmou, e depois ficamo tudo amontoado num canto só. Aí
depois com o tempo nós fomo esparramando, né, cada um pegou uma
quantia de um pedacinho de terra, e fomo plantando até que saiu a
emissão de posse, que saiu em 95.
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Entrevistador Como é que foi esse primeiro período?
Jandira Plantava um pedacinho de terra, ali, uma base de um meio alqueire
cada um só, e ia sobrevivendo daquilo dali.
Entrevistador E hoje, como é que as pessoas vivem?
Jandira Olha, em vista do que nós viveu antigamente, tá todo mundo
sossegado. Graças a Deus. Principalmente, eu falo da minha parte, eu,
graças a Deus, eu hoje em dia, eu tô tranqüila.
Entrevistador A senhora é casada? Tem filhos?
Jandira Viúva. Sou mãe de oito filhos.
Entrevistador Seus filhos trabalham aqui com a senhora?
Jandira Tem dois que moram aqui comigo. Tem os casado que mora fora. E tem
quatro solteiro. Mas um trabalha mais lá pro Mato Grosso... Tem o
caçula, que não está comigo porque ele tá estudando pra padre,
inclusive ele tá em Taubaté, ele foi pra Taubaté, ele tava em Taubaté. E
fica esses dois que tá trabalhando aqui, que são os dois filhos meus, ele
ficam aqui diretamente, trabalhando aqui.
Entrevistador Hoje em dia como as pessoas vivem ?
Jandira É, do leite.
Entrevistador Do leite? Vende o leite direto pra cooperativa?
Jandira É, nós temos a nossa Associação, “Associação 19 de Agosto”, nós
entrega pra nossa Associação e a Associação entrega pra Nestlé.
Entrevistador Certo. Qual é a avaliação que a senhora faz do trabalho do INCRA?
Jandira Ah, sobre a avaliação do INCRA eu já não sei explicar não. O que é
verdade eu falo logo, e isso aí eu não sei explicar.
Entrevistador A senhora sabe da ação de reintegração de posse que os proprietários
estão movendo contra as famílias?
Jandira Sim, eu tô sabendo porque o Joaquim falou ontem pra nós. Nós tava
numa reunião lá da Associação, pra ver esse negócio do dinheiro que tá
vindo agora, então ele tava explicando pra nós o que tava acontecendo.
Entrevistador O quê que a senhora acha dessa ação?
Jandira Isso aí eu não sei não, hein? Isso aí agora não sei responder não. Sei
que se for pra tirar as famílias daqui, acho que vai dar um reboliço muito
grande. Porque tem família aqui que fala que daqui não sai, só sai
morto, agora eu não sei... Inclusive lá na sede tem uma senhora que já
quase morreu por umas três vezes por causa de um negócio, quando
chega aquele boato: "Ah, tem uma ação de despejo, agora vai ser
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despejo". Aí, o povo tá na reunião lá, a mulher já desmaia, já precisa
catar ela correndo, larga ela pra Andradina, lá fica dois, três dias
internada e depois é que volta... E assim vai indo. E eu sei que se for
pra ter despejo aqui, acho que vai acontecer muita coisa, muito triste
aqui, vai acontecer.
Entrevistador Se a senhora pudesse falar pro juiz ou escrever uma carta pro juiz que
vai decidir essa ação de reintegração de posse, o quê que a senhora
diria pro juiz?
Jandira Ah, eu diria pra ele pensar bem primeiro o quê que ele vai fazer, porque
ao invés dele dar uma reintegração de posse pros fazendeiro, acho que
ele daria pra nós, porque aqui você vê, você vê... Quantas famílias
"vevi" aqui dentro, que tira o sustento disso aqui? Quantas pessoa
inocente têm aqui dentro, inclusive crianças pequenas? Se for pra retirar
esse povo daqui de dentro vai por aonde? E o sofrimento dessas
crianças, não conta? Porque a pessoa que é adulto, se ele vai sofrer,
mas ele tá sabendo porque ele tá sofrendo. Agora uma criança, ele vai
sofrer, ele não sabe por que ele tá sofrendo! Porque, já pensou uma
hora um filho chegar pra mãe, pedir um prato de comida e a mãe não
ter pra dar, o desespero dessa mãe?
Entrevistador Durante todo esse tempo que a senhora tá aqui, a senhora ouviu falar
se algum juiz veio visitar aqui as pessoas, conversar com as pessoas
aqui, algum juiz esteve aqui na região, na área, conversando com as
pessoas?
Jandira Eu não ouvi falar não. Nunca vi um juiz aqui.
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ENTREVISTA COM PROCURADOR DA REPÚBLICA
PAULO DE TARSO GARCIA ASTOLPHI ARAÇATUBA -SP
Entrevistador Qual é a tua visão sobre a execução de políticas públicas no Brasil pelo
Estado. As políticas públicas estão realizando o seu objetivo enquanto política
pública, ou estão deixando a desejar?
PTG Olha, eu acho que a constituição tem uma... uma... uma contradição. Na
minha opinião - em termos. Aliás, essa visão é baseada em um professor que
deu aulas na GV. É... ao mesmo tempo em que ela fala de uma sociedade
livre, justa, o fortalecimento nacional, o pleno emprego, etc e tal, como
princípios sociais e econômicos, ela abona, como nenhuma outra constituição
fez, o esforço exportador do país. Que aliás, nos termos de Reforma Agrária, o
fato dela isentar a propriedade produtiva de desapropriação, para a Reforma
Agrária, já é um indicio disso. Essa produtividade que se tem que obter,
vamos dizer assim, quase que a qualquer custo, aparentemente - a
construção é um pouco confusa, nós vamos levar esse termo mais a fundo, –
faz com que, enfim, se é pra obter produtividade... enfim, produzir de qualquer
jeito, vai produzir pra quem se você não tem renda no mercado interno?
Então... a gente deve presumir que é pra exportação, mesmo. E como...
realmente, ela coloca em toda, no sistema tributário dela, ela isenta tudo que
vai pro exterior, praticamente, pra exportação. Então, se é pra exportação, é o
que basta. Mas e a questão interna? E a sociedade que nós vamos criar aqui
dentro, dessa forma? Que fica só destinada para fora? Então, a constituição,
ela estabelece políticas públicas, objetivos a serem alcançados por meio de
políticas públicas, que na verdade, ela acaba impedindo ela própria de fazer.
Ou ela cria uma dificuldade pra isso.
Entrevistador Você falou da desapropriação e produtividade. A propriedade produtiva não
pode ser desapropriada? Qual a tua opinião sobre o artigo 5º, inciso 22 e o
artigo 184 e o 186?
PTG A gente nem precisa ir pro artigo 5º. Nós podemos ficar no 184, 185 e 186. Na
verdade, a gente não precisa sair do 185. Pra chegar a uma conclusão
seguinte: a propriedade improdutiva, para que não seja desapropriada, ela
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tem que cumprir a função social oportunamente. Quando, e nesse ponto, na
minha opinião, e com todas as venias devidas ao Supremo Tribunal Federal,
que está, tem decidido que a propriedade produtiva, por si só, não é
desapropriável, ele, ao interpretar assim o artigo 185, inciso 2 da Constituição,
ele está esquecendo o parágrafo único, do mesmo artigo, que diz que a
propriedade produtiva que não cumpra, basicamente, que não cumpra a sua
função social, teria que ter estabelecidas em leis os requisitos pra que
cumprisse. Em algum tempo depois. Em outras palavras, a propriedade que
não é expropriável para a Reforma Agrária é aquela que cumpre a função
social. Não é? A produtiva é um desses requisitos. Mas não é o único, e nem
poderia ser. Do contrário, você vai chegar à conclusão de que ele pode ser
produtivo, e portanto, escapar do problema da expropriação, com trabalho
escravo. Que ele pode ser produtivo com a depressão dos recursos
ambientais. Com a afetação do meio ambiente. Ou seja, que a propriedade,
que a produtividade pode ser alcançada a qualquer custo. Em outras palavras,
por fim, que os fins justifiquem os meios. E já começa por aí, que há um
problema nessa... nessa admissão. E há também um problema na
interpretação em si mesma, que é o fato de você ignorar um parágrafo de uma
norma. E normas paragrafadas não podem ser ignoradas.
Entrevistador Na tua opinião o que é necessário para que o INCRA passe a adotar o critério
da função social, e não apenas da produtividade nas ações desapropriatórias?
PTG O INCRA, pelo que eu tenho visto, aqui, nessa ação, pelo menos, e onde mais
eu atuei, o INCRA tem insistido nesse ponto, tem batido nesse ponto nos
pareceres, os procuradores têm insistido - embora seja difícil, porque eles têm
contra essa opinião as decisões do Supremo, nesse sentido – mas eles têm
batido, eles têm insistido. Aliás, particularmente, os assistentes técnicos,
embora isso não seja da área deles, mas eles têm tentado enfatizar esse
ponto. É claro que um dos problemas de política pública, aliás, nesse sentido,
pra execução particularmente da Reforma Agrária, é o fato de você não ter,
eles não terem gente o suficiente, terem que dar com um parecer, assim, de
assuntos complexos, como esse, em três, quatro páginas, correndo, com a
premência dos prazos, com outros casos pendentes... E, nessa situação, fica
difícil, realmente, convencer o juiz, que é a quem, em ultima análise, se dirige
o parecer dele, dessa questão. Ou seja, realçá-la.
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Entrevistador Você vê alguma possibilidade de alteração da interpretação do poder
judiciário, nessa questão da função social versus produtividade, na área das
desapropriações, para a sociedade?
PRG Esse assunto, como, vai, ocorre com todos os outros, em Reforma Agrária tá
bem confuso. Além do que a doutrina, de forma geral, mesmo os juristas que
mais se afinavam, vamos dizer assim, com a linha “mais social”, digamos
assim... pelo que eu li, pelo que eu estudei, até o momento... todos
concordaram, de forma geral, com essa interpretação da discussão. Então,
nesse quadro, fica difícil. Eu, particularmente, gostaria, pretendo, talvez um
dia, publicar algum artigo a respeito dessa opinião. Pelo menos pra colocar
em debate. Já que a gente aqui, atuando sozinho, acumulando tudo, fica
impossível você (risos), parar pra estudar, fazer uma tese a respeito, não há
mais condições disso, pelo menos aqui em Araçatuba. E eu tenho, eu
acredito, aliás, de forma geral, nas procuradorias. No meu caso,
particularmente, eu não vou deixar, inclusive, de enquanto não for convencido
do contrário, em termos de argumentação, eu não vou parar de expor esse
entendimento, colocá-lo nos autos.
Entrevistador Tem observado alguma mudança, nesses últimos anos dessa interpretação no
Poder Judiciário?
PTG A esperança é a última que morre! (risos). Mas “engessado”, está. Engessado
está. Bom, até agora, pelo menos, eu ainda não vi, tô esperando, pelo menos,
que os juizes de Araçatuba apreciem, se for o caso, esse argumento. Mas eu
tenho a impressão que... como, de forma geral, nenhuma propriedade, que
tenha sido objeto de ação de desapropriação, nenhum... nenhuma delas
conseguiu comprovar, satisfatoriamente a produtividade, que os juizes vão
acabar por não apreciar esse argumento na sentença. Talvez no tribunal, se
eles entenderem que o laudo, o argumento do proprietário, melhor dizendo,
prevalece contra a produtividade, talvez eles decidam a respeito. Mas é uma
questão que se perde no meio de tanta alegação e tanta coisa pra analisar,
tanta questão de fato, questão de direito, que envolve, de forma geral, as
alegações dos proprietários nas ações que questionam a desapropriação e,
via de regra, tentam provar apenas a produtividade. Mas tenho insistido nisso.
Agora...
Entrevistador Como é que você vê a responsabilidade do Judiciário na execução das
políticas públicas?
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PTG Bom. Pelo que se vê da mídia, você pode perceber que a atuação judiciária,
por exemplo, na questão da saúde – isso é a Justiça Estadual, de uma forma
geral. Aliás, a Federal, eu não tenho conhecimento que atue nessa área, né -
mas quando ela determina, por exemplo, que se forneça o SUS forneça
medicamento a um determinado doente, isso é tido, é noticiado e visto como
uma coisa natural. Uma coisa assim, sem grandes traumas. Então, o
Judiciário, ele nesse ponto, ele intervém, portanto, em políticas públicas.
Embora, claro, naturalmente, sempre aplicando a lei. Mas... está intervindo,
ele está participando disso de alguma forma, está antecipando alguma coisa,
está determinando alguma coisa. Já no caso da Reforma Agrária, tendo em
visto a passionalidade, que envolve a questão. E que praticamente você não
tem ninguém que não tenha uma opinião, e alguma opinião sempre radical, ou
contra ou a favor, isso inegavelmente, como era de se esperar, se reflete nas
decisões judiciais. Então você tem decisões que, refletindo essa divisão,
social, pelo menos da intelectualidade, acabam optando mesmo entre o direito
de propriedade, o respeito à ele, independentemente da questão da função
social, que fica relegada a um ponto futuro, na causa, e aqueles que
entendem que desde logo, a função social, o direito do Estado de desapropriar
primeiro, vamos dizer assim, ou pelo menos tirar a posse do proprietário,
primeiro, e depois discutir a questão da produtividade, ou pelo menos do
cumprimento dos demais requisitos da função social da propriedade, e isso...
prevaleça, em relação à preservação da sua, do direito de propriedade. Então
você tem, tem, e isso tá bem claro, que a interpretação... Aliás, não só os
juizes de primeiro grau, mas nos tribunais também. Você percebe claramente
essa, quase, eu diria quase que uma radicalização. Como, vamos dizer assim
– e como eu já disse, inclusive numa palestra, feita há algum tempo, na
Câmara de Andradina – não existe decisão técnica que não seja também
ideológica. Não existe decisão puramente técnica. Aliás, quem falava isso era
um professor da GV, Chico, eu não sei se ele se encontra lá, inclusive, até
hoje. E dizia isso em relação à economia. Aliás, a propósito, bem se vê que
não há decisões econômicas que não sejam ideológicas, que não partidárias,
que não impliquem tomada de decisão com relação a um ponto de vista,
econômico ou outro. Das linhas tradicionais de pensamento econômico. Em
direito, isso também ficou claro nesse ponto, a opinião do juiz quanto à
inutilidade... ele acaba transparecendo isso nas decisões. Quanto à inutilidade
da Reforma Agrária, ou a necessidade de rever, embora isso... Mas você fica
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nitidamente percebendo que ele não tá... ele tá indisposto, em relação a isso.
De certa forma, os próprios movimentos sociais contribuem pra isso.
Particularmente o MST, que... pelo menos pela transmissão das suas ações
pela mídia, acaba sendo endemoniado. Não sei se isso é verdade ou não, eu
não vou questionar, Mas isso afeta a mentalidade, e você já não consegue
discutir na causa... na causa judiciária, de um ponto de vista minimamente
isento. Quer dizer, eu não estou aqui, nós não estamos aqui, o Judiciário não
está, o Ministério Público não está aqui pra dar o parecer pensando se a
Reforma Agrária vai ser boa pra região ou não, se é justa ou injusta, se a
constituição precisava ser melhorada, ou não. Mas, a partir do momento em
que você pega, em quase todos os laudos, periciais, por exemplo, opiniões
políticas, que não são pertinentes ao peritos, por exemplo, na Justiça em
Araçatuba, você fica inviabilizado de também não tomar uma posição, né, em
relação a isso. Quer dizer, em vez de discutir a questão técnica, se é produtivo
ou não, e a questão jurídica, de hermenêutica, se a produtividade basta pra,
ou não, para impedir sua aplicação, você fica atrelado também a essas
questões políticas, à questão do que deve ou do que não deve, da justiça ou
injustiça. No caso, é claro que eu procuro sempre apartar as situações, tenho
procurado, pelo menos.
Entrevistador O que poderia ser feito, quer seja pelas universidades, pela academia, na
formação dos profissionais que atuam nessa área, para que a atuação do
Poder Judiciário fosse no sentido de realizar a obrigação do Estado na
discussão da política pública, e que não se perdesse na discussão ideológica
da questão?
PTG Olha, como eu disse, de forma geral, a questão está bem... passionalizada,
não é, bem partidarizada, na sociedade, de forma geral. O que a universidade
devia fazer nesse, aliás, como em qualquer outro caso, é estudar mesmo, a
partir de todos os princípios, não tentar refletir ou repercutir essa opinião
midiática da questão, e esclarecer, pelo menos, aos operadores de direito, né,
que está formando, essa... essa diferença entre a questão técnica, a questão
jurídica e a opinião política que influi nas duas. Partidarizar, deixar bem claro
pra eles. Naturalmente que o juiz e os demais operadores, o Ministério
Público, os advogados, vão atuar conforme queiram, mas pelo menos a
universidade cumpre a sua função esclarecendo isso.
Entrevistador No caso da Fazenda Timboré, é possível identificar claramente quais os
interesses que estão em discussão no processo, nos vários processos que
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envolveram a Fazenda Timboré, será que dá pra identificar os interesses em
discussão? E a partir da Constituição, dizer qual deles deve prevalecer?
PTG Bom. Mas... Na questão da Timboré, o Supremo já disse, no próprio acórdão
dele, que anulou o decreto declaratório de interesse social, ele já disse que as
regras, que a desapropriação será feita sim, mas não em títulos de dívida
agrária. Ou seja, não a desapropriação para a Reforma Agrária. Embora
também não vá mudar o destino que já foi dado, que, no caso, foi de
assentamento. Mas ele apenas quis dizer “pra esse proprietário, ele vai ser
indenizado em dinheiro, mediante justa e previa indenização”, vai jogar no
caso do artigo 5º. da Constituição e não dos casos dos artigos 184 a 186. Ou
seja, na pratica, não vai ser pago em títulos a dívida agrária. Foi só isso que
ele disse. A partir daí, né, desse trechinho que foi deixado, o proprietário, de
certa forma, fez o que era de se esperar. Ele está esperneando de todos os
lados. Inclusive, mesmo em relação à possessória, ela parece ser mais uma
tentativa de... porque se ele, como eu disse vai, não nega que vai receber
indenização total pelo imóvel. Tudo, tudo, Como é que ele pode querer, né,
por que que ele pode, enquanto ele não recebe a indenização, ele pode
querer ficar com a posse desse imóvel? Onde já há assentamento? Pra que,
se a indenização já inclui tudo isso, inclusive esse período em que ele fica
sem? Que ele só não recebeu porque não aceitou o acordo. Então, ele faz a
parte dele, eu não vou mencionar, os advogados dele, ele não quer aceitar, é
um problema dele. Agora, talvez ele tenha, particularmente... aliás, o
proprietário mesmo, principal, se eu não me engano, faleceu. Não é? Mas os
sucessores, como até o momento não tem noticia que desistiram da ação ou
coisa que o valha, eles, eventualmente podem ter algum tipo de prevenção, e
provavelmente devem ter, contra os Sem-Terra, de forma geral, ou contra a
Reforma Agrária, e por isso não querem aceitar. Mas isso é uma opinião, no
caso, localizada. De uma forma geral, eu não vejo, a partir daí, como
extrapolar, de forma geral, a não ser como reflexo dessa partidarização geral
da sociedade nesse tempo.
Entrevistador Num outro caso semelhante, o proprietário conseguiu cassar o decreto
desapropriatório no STF, logo após publicado o acórdão, ele entrou com uma
ação de reintegração na Justiça Estadual, e o juiz deferiu a liminar de
reintegração de posse, contra famílias que estavam há 17 anos na área, num
processo já iniciado, e assim que obteve a liminar, contratou os tratores de
esteira, passou em toda a plantação, as casas foram destruídas, enfim, e
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depois restou aos trabalhadores uma ação indenizatória contra o Estado do
Paraná por ter determinado o cumprimento daquela liminar de reintegração de
posse.
PTG De qualquer maneira, se o acórdão do Supremo, se ele cassou no Supremo o
decreto, e o acorde do Supremo autorizava isso, essa reintegração, então
esse acórdão está em franca contradição com o acórdão do caso do Timboré.
Em que ele, pelo acórdão, pelo menos, não há como você tirar conclusão de
que ele, o proprietário, possa reintegrar a posse do imóvel. Se ele, como disse
no acórdão, deve receber indenização por ele - não em TDA, mas apenas em
dinheiro.
Entrevistador Então, na sua opinião, a ação desapropriatória, a ação indenizatória que está
em curso e que os autos fazem parte desse projeto, é uma desapropriação
indireta, aonde o proprietário reclamou uma indenização, inclusive pra terra
nua, ou a União, ao pagar essa indenização, está fazendo uma
desapropriação direta, que não pelos TDA´s. Mas é uma desapropriação de
posse que o Poder Judiciário autoriza e determina à União o pagamento do
valor da terra nua?
PTG Foi colocado nos autos. Esta lá, quem leu os autos percebe claramente que
ele está sendo pago pela Fazenda, pela terra nua e benfeitorias como se
fosse uma desapropriação comum, exceto pelo fato de que não vai ser em
TDAs. No mais, é a mesma coisa! Tá nos autos, isso.
Entrevistador As ocupações de terra, quer seja aqui na região de Araçatuba, no estado de
São Paulo, ou mesmo em nível nacional, qual a tua interpretação desse
conflito? São conflitos localizados, é uma ação especifica de um movimento,
ou é um problema da sociedade brasileira que deve ser enfrentado com uma
política pública, ou com força policial?
PTG Tem... tem de tudo. Tem ocupações e invasões tipicamente políticas, apenas
pra manter, e, particularmente, pelo que eu tenho visto, é a posição do MST.
Mas aqui em Araçatuba, pelo menos, essas ocupações são, inclusive, quando
ocorrem aqui - pelo que eu tenho percebendo, posso estar enganado,
interpretando mal os fatos, mas... pelo que eu estou percebendo - eles
decorrem de uma determinação, uma política, e nesse tipo, de âmbito
nacional. Aqui na região, pelo menos, e aí nós entramos no ponto focal, que é
a alimentação dos movimentos, a exasperação, a exasperação dos conflitos,
dessa conflituosidade, da qual, eventualmente, um movimento ou outro se
aproveita, mas ela se alimenta, basicamente, da falta de informações, a
46
respeito dos casos, da inacessibilidade dos juizes, particularmente, com
relação a esses movimentos. Então, muitas vezes, invasões são feitas com
base em boatos, e sem objetivo útil nenhum. Muito pelo contrário! São
invasões que, inclusive por lei, agora, ou pelo menos em Medida Provisória
que vigora com força de lei, já há alguns anos, acabam subtraindo o imóvel à
vistoria, avaliação e desapropriação, por dois, e, na reincidência, por quatro
anos. E isso, como assim, é um protesto que não tem sentido, que muitas
vezes eles pegam, por má informação a respeito do que é decidido nos autos,
do que não é decidido pela demora do Judiciário, e do Ministério Público
também, porque não? Acabam fazendo esses atos que eu diria que são quase
que de desespero, né... sem objetivo útil nenhum. E acabam por isso tendo
essa fama de baderneiros. Em alguns casos, eventualmente, isso pode ser
ruim. Em outros casos, não sei, mas os casos que a gente tem visto aqui, o
simples fato de você explicar, na causa, o que está acontecendo, né, sem...
tirando opiniões, ou previsões de fulano ou de ciclano, que disse que o juiz
não vai decidir, que ele já decidiu, enquanto isso não tem base real
nenhuma... Só o fato de você esclarecer, você já faz um apaziguamento da
região. Pelo menos do local. E tira, eventualmente. Nesse ponto, o juiz, e
particularmente o Ministério Público, são agentes políticos, pela Constituição.
Né? Ou seja, não são... aliás, como eu já disse, não existe um agente técnico
totalmente técnico, não existe decisão técnica totalmente técnica, toda tem
algum viés ideológico ou político, também não existe agente propriamente
técnico. Mas o Ministério Público, e o juiz em particular, são agentes políticos,
tanto quanto... tanto que a constituição determina, que eles, os juizes, sempre
que for possível, se façam presentes nos locais onde há conflito fundiário.
Além de o código determinar, o código do processo determinar a intervenção
do Ministério Público sempre que houver conflitos coletivos pela terra rural.
Então... Agora, o que exaspera, e deixa numa situação – e isso é
generalizado, nesse ponto não são só os candidatos a acampamento, como
os juizes, e eu mesmo, particularmente, acredito que todos os demais
exasperam – é a impossibilidade material que você tem de dar minimamente
uma satisfação a esses casos num tempo razoável. Cumprindo, aliás, a nova
norma da Constituição, né, entre as garantias fundamentais, que é a duração
de tempo razoável do processo. Se você não tem condições materiais disso, a
não ser que você literalmente não olhe direito a causa, isso é inadmissível,
mesmo porque, nesse monte de alegações, né, você pode muito bem, e é
47
bem fácil você acabar decidindo com base em coisas que não constam nos
autos! Com base em parecenças que não dizem respeito! E não é incomum,
muito pelo contrário, é muito comum, particularmente aqui em Araçatuba!
Decide com base em aquilo que parece ser, aquilo que o proprietário alegou,
e quando olhado mais analiticamente, nem ele alegou isso, propriamente, e
nem é a situação, de fato, dos autos. Que, o que inclusive implica o seguinte,
que nem dá pra condenar o autor por políticas de má-fé. Então, é uma coisa
impressionante o que ocorre aqui, nesse ponto. Então, a morosidade,
infelizmente, da minha parte, particularmente, acaba sendo... Olha, eu
concordo que deveria ser mais. Agora, precisamos, a gente precisaria de mais
procuradores, mais juizes, mais funcionários, portanto, e isso gera um custo. E
vai daí uma questão de... outra questão: é caro, não é, mas... a sociedade
pagaria por isso? Quer dizer, justifica-se isso? Então, nós temos um problema,
realmente. O motivo básico da morosidade do Judiciário e do Ministério
Público, incluir bem pra não dizer que eu tô acusando alguém aqui, na minha
opinião, não tem nada a ver com excesso de recursos, tem a ver com falta de
meios humanos. Né? E que parece que sempre passa pela conveniência de
alguns, né? Porque, quanto mais se ataca, “porque eles ganham bem”,
“porque não sei o que”, você consegue fazer todo um tipo, “e olha, ainda
demora, tá vendo?”, “vai demorar muito tempo pra decidir sua causa”. Pô, mas
você consegue decidir bem decidido, com responsabilidade, tendo aqui pilhas
e pilhas de processos pra decidir? De casos, né? Se os outros são... Ninguém
vai dizer que um caso de Reforma Agrária, que discuta produtividade, seja um
caso que você leve pra casa num dia, e no dia seguinte você traga
pensadinho e tudo mais. Nesse ponto, se existe alguém que tem essa
capacidade, eu reconheço a minha limitação, então, intelectual.
Entrevistador Qual a tua opinião sobre a atual legislação instituidora do programa de
Reforma Agrária?
PTG Bom, primeiro lugar, como consta nos meus pareceres, o artigo 7º. da lei
8.629, que tira da desapropriação, temporariamente, pelo menos, o imóvel,
que seja improdutivo, pelo grau de utilização da terra, esse artigo é
inconstitucional! No entanto, ele decorre da interpretação que se deu ao
artigo... ao artigo 185, em seu parágrafo único. Ele é a única explicação, como
eu coloco nos pareceres, inclusive. Não tem outra explicação pra um artigo
desses! Ao invés de o artigo 7º. regrar a inexpropriabilidade provisória do
imóvel que seja improdutivo, enquanto ele não cumpre a função social, que é
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o que deveria ser, ocorrer pela constituição, ele diz simplesmente que o imóvel
que é improdutivo, terá um prazo, pelo grau de utilização da terra, terá um
prazo para cumprir. Estou citando de memória, pode haver algum engano
aqui, Quando ele deveria dizer, não, o imóvel que é produtivo, que alcance o
grau mínimo, o CUT mínimo e o GEE mínimo, ele, pra não ser desapropriado,
caso ele não cumpra com o... respeito ao meio ambiente, etc e tal, ele deveria
ter um prazo pra cumprir. Tem um projeto certo pra isso, ter um projeto pra ele
tirar, por exemplo, pastagem, ou ocupações de áreas de preservação
permanente. Um tempo pra ele instituir efetivamente a reserva florestal, é isso
que ele deveria fazer! A lei não faz! A lei, por incrível que pareça, regulou um
outro caso! Que não tem nada a ver com a discussão! Tudo bem, é minha
opinião, tá na lei, respeito, data venia, mas não posso concordar com isso! De
qualquer maneira, tenho que aplicar a lei. Então eu aplico analogicamente
esse artigo 7º., aos casos de desapropriação, dizendo basicamente o
seguinte, que tem aqui: o imóvel é produtivo, por hipótese, digamos que seja,
até hoje nenhum caso, eu vi um caso que tenha conseguido, o proprietário
tenha conseguido provar produtividade. Mas digamos que esse caso apareça.
Então, vai aparecer que tem um sentido, tudo bem. Mas ele é produtivo às
custas da utilização dos TDAs? À custa da inexistência de reserva florestal,
efetiva, não formal? Então ele deveria ter um prazo pra que ele recomponha
isso, se ele cumprir essa recomposição, essa preservação do meio ambiente
no prazo, ele ficará, então, efetivamente, inexpropriável. Mas se ele não
cumprir isso no prazo, então ele seria submetido a desapropriação ainda, e a
despeito de ser, produtivo. Isso é um caso. Outro caso: a questão da emissão
na posse. Né? Regular ou regrar em lei, urgentemente, a questão da emissão
na posse, quando há uma ação prévia, questionando a produtividade, ou por
outra forma, tendente a tirar o imóvel da desapropriação. Por quê? Porque a
lei complementar 76, bem lida, bem atenciosamente lida, veda apenas a prova
de produtividade nela. Ou seja, nela não se faz perícia, ou outra prova, se for
o caso, se for possível, por exemplo, testemunhar por produtividade. Se fosse
o caso, né, mas isso é muito difícil. No entanto, isso não quer dizer que eu não
possa discutir ela lá. Discutir a produtividade na ação desapropriatória. E o
argumento maior dos proprietários é realmente esse. Mas se você discutir a
produtividade e reconhecer que ela é produtiva, que, portanto, em principio,
abstrair a minha opinião a respeito da função social, ela não poderia ser
desapropriada, como é que faz se já houve emissão na posse? Então, a lei - e
49
isso é função do legislador! A gente, as decisões dos tribunais, dos mais
variados tipos, desde aqui diz que, entrou com desapropriatória, tem que
emitir na posse. Não importa que a ação... tenha perícia dizendo que é
produtiva, tenha até sido julgada por sentença, desde que não julgada, que é
produtiva, como há decisões que dizem o seguinte: que só vai continuar a
desapropriatória quando transitar em julgado a decisão na ação que questiona
a produtividade. Ou seja, que afirma que o imóvel é produtivo, ajuizado pelo
proprietário. E há uma decisão intermediaria do Superior Tribunal de Justiça,
que é muito utilizada, pelo menos aqui em Araçatuba, que diz que o processo
tem que ser suspenso. Só que, pelo menos pela ementa, ela não ressalva que
essa suspensão, pelo código do processo civil não pode ultrapassar um ano!
Então, daí, você tem os... percebeu? Os três... as três linhas de interpretação,
e o juiz, a partir daí, ele vai, obviamente, conforme o seu entendimento, optar
por uma ou por outra. Mas isso gera uma insegurança enorme. Aliás, gera um
problema grave, que é o seguinte: (como o INCRA ressalta, inclusive) você
tem depositados, pelo menos... emitidos, os títulos da divida agrária; este
valor, em principio – correspondente aos títulos – não pode ser... tem que ser
destinado, né, não pode ser utilizado pra outros fins, acredito eu, pelo
orçamento; tem os valores das benfeitorias depositadas em dinheiro e em
juízo; tudo isso parado, né, esperando uma decisão, ao mesmo tempo em que
você não tem uma contrapartida... a contrapartida esperada, desse depósito,
dessa imobilização desse valor, que é a emissão na posse, e portanto o
apaziguamento local, na questão da terra. Então, você fica imobilizado dos
dois lados, por um lado. Por outro lado, você associa isso à morosidade da
justiça. Que, como eu disse, é uma questão de possibilidade material. Ao
mesmo tempo em que, via de regra, ou pelo menos nos últimos anos, aqui na
região de Araçatuba, pelo menos, as terras têm se valorizado, por uma
questão circunstancial, a questão, parece que da cana, né, a questão do
álcool, dos carros... vai se valorizar as terras. E, com isso, valorizando as
terras, ainda que o proprietário dê perca a discussão da produtividade, ou do
cumprimento da função social, ele vai ter uma indenização, que ele vai ter que
ser indenizado, fixado, a indenização da propriedade, fixado na data da
perícia. Fixada por lei. E não haveria mesmo de ser diferente, porque o perito
dificilmente ia poder descobrir o valor do imóvel retroativo, né, relativo à época
da avaliação do INCRA, pra poder comparar as duas. Então ele fixa o valor
nessa data, na data da perícia, que, muitas vezes, passa anos depois da
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avaliação do INCRA, a avaliação do INCRA, portanto, não é que esteja
errada, mas ela fica defasada pela valorização normal dos imóveis –
valorização inclusive acima da inflação, né. Ou seja, ainda que esses TDAs
sujeitem-se à correção, eventualmente juros, assim como o depósito das
benfeitorias, né, no banco, essa correção não cobre. Com isso, você tem,
portanto, uma diferença, pela qual a União vai se condenada, e sobre a qual
vão incidir simultaneamente juros compensatórios e moratórios. Isso eleva a
dívida a um patamar absurdo, ainda que seja mínima, só pelo fato de
condenar. Vai daí outra questão, que é, vamos dizer assim, desesperadora,
que é aonde vai parar isso. E aí, a minha solitária opinião, já externada em
autos, vencida, inclusive agora por lei – já havia sido vencida por suma, do
Superior Tribunal de Justiça – mas são devidos apenas, juros moratórios e
compensatórios não se acumulam. É uma questão... uma questão bem
técnica, vamos dizer, no bom sentido do termo, mas, de qualquer maneira,
como está na lei. Embora eu pugne pela sua compreensão correta, aplicação
correta da lei, nesse sentido, mas eu tenho que admitir que não vai ser uma
posição vencida, como tantas outras, e que a gente tenta corrigir. Mas, se não
houver essa correção, você vai ter uma infração milionária, isso estimula a
litigiosidade, a falta de acordo, porque o proprietário que não precisa do
dinheiro, pra que ele vai fazer acordo, se daqui a dez, vinte anos, ele deixa
uma “herança”, vamos dizer assim, muito boa para os seus sucessores, que
seria essa indenização. É um investimento de longo prazo. Não é possível que
essa situação continue assim. Tudo bem que em matéria de juros, o Brasil, a
política econômica, agora voltando, a política pública, econômica e fiscal seja
bem generosa... mas... não vamos entrar na área econômica, técnica,
especifica da questão. De bancos, ou política de... é... política... é...Monetária!
Mas há uma espécie de reflexo dela nessa questão, que é a admissão desses
juros. Então, fica também o meu pedido, aqui, que nesse ponto – aliás, se me
permite, se a GV, e voltando àquela sua pergunta, se a GV, ou, de forma
geral, as escolas, a universidade, particularmente, podem contribuir é em
casos como esse! Que ele comece a questionar isso! O Supremo decidiu
assim, vamos questionar porquê. Tá na lei que se cumulam juros, vamos
questionar porquê. Por quê que está cumulando juros? Que sentido tem isso?
Vamos ver direito. Eu não sou o dono da verdade. Não é? Mas estou
questionando, fazendo aquilo que eu aprendi. Que é o correto, que é jamais
51
aceitar as coisas impostas, fazer por obrigação apenas, e questionar as outras
nesse ponto.
Entrevistador A Constituição Federal fala da função social da propriedade, e fala que a
propriedade produtiva não será desapropriada. Não haveria que ter uma
alteração na legislação ordinária estabelecendo a participação do Ministério
Público do Trabalho, e Ministério do Meio Ambiente nas ações
desapropriatórias?
PTG Olha, eu acho que quanto mais pessoas intervêm no processo, pior. Diria o
professor (risos)... o professor da Faculdade de Direito, Antônio Carlos
Marcatto, pro Ministério Público, quando ele não tem o que fazer no processo,
mas quer falar alguma coisa – isso na época dele, eu acho, né? – ele sempre
atrapalhava. E hoje é o inverso, hoje o Ministério Público, de uma forma geral,
não quer intervir, mas porque não tem mais condições materiais. Não é que
ele não queria porque não quer mais trabalhar, é porque os casos não são
dele. Em geral, a gente, e isso ocorre às vezes, a gente até oferece um
parecer, ou alguma coisa, a gente adentra no mérito, por exemplo, em casos
que a gente, preliminarmente, diz “ó, não é caso da gente intervir”. “Não é
caso de intervenção do Ministério Público”. Mas, né... tipo assim: você
conhece o juiz, você tem uma opinião, você pode auxiliar em alguma coisa,
“eu vou contribuir”. Você tá mandando intervir. Você entende que é, tanto é
que mandou uma intervenção; eu entendo que não. Mas eu não vou recusar.
Se eu tenho, já assinei o caso, já vi, vou externá-lo aqui. Pela eventualidade,
vai que eu estou enganado, ou vai que eu mude de idéia amanhã. Hoje isso
não tá sendo mais possível. O Ministério Público simplesmente recusa, e, de
fato, não há motivo pra intervir em vários casos, que ele tem que intervir. Por
lei! Né? Uma mudança na lei - mas isso é uma questão genérica, não tem
nada a ver com a questão de política pública – mas a especificação dessas
hipóteses seria melhor, né, pra... Aliás, eu gostaria de sugerir aqui, uma
espécie de “lei de responsabilidade jurídica”, à semelhança da lei de
responsabilidade fiscal, né, que diz o seguinte: toda vez que você estabelecer
a participação, por exemplo, do Ministério Público em um caso, ou criar um
novo caso de intervenção judicial, com ou sem o Ministério Público, você deve
também estabelecer os meios pra tanto, ou seja, prever cargo de juiz, né, ver
aonde que isso vai acontecer, de uma forma geral, aumentar esses cargos,
aumentar os cargos de funcionários, de servidores da justiça. Porque não é
possível, por exemplo, como ocorre hoje, em que... você... cria-se hipóteses
52
de intervenção – no caso, estou falando do meu caso, né, os que eu conheço
– de intervenção do Ministério Público, em que ele teria que pegar o caso,
estudar, pra ver se ali tem algum motivo pra ele intervir, sendo que não há
meios, já não se fornece os meios, pra intervir nos casos obrigatórios! Pelo
menos, não a tempo, como determina a Constituição. Claro que se ninguém
estiver preocupado, né, com a morosidade da prestação, aí não haveria
problema. E nem com a qualidade, né? Porque quando a prestação judicional
ou ministerial, né, os pareceres ministeriais, não são demorados, seriam,
teriam eles a mesma qualidade? Ou você vai ter sempre que contar que o
procurador seja um cara excepcional, que dê o parecer, né, brilhante, e em
curtíssimo prazo. Ele vê tudo rapidamente, quer dizer... E pode existir pessoas
assim. E desculpe, não é o meu caso, eu não tenho essa capacidade! (risos)
Entendeu? Me esforço, muitas vezes vim, até o ano passado, enquanto tinha
condições físicas, assim, né, quer dizer... tava me esforçando, pra vir de
manhã, de tarde e de noite. Abdicando da convivência familiar, e tudo mais...
mas não é mais possível, isso! Eu vou perder o meu filho! Literalmente! Mas é
isso que eles querem da gente? Não, eu acho que não, né? Bom, de qualquer
maneira, eu tenho minhas responsabilidades, eu vou fazer, vou cumprir, na
medida do possível. É... estou, eventualmente, com alguma... Há, há,
evidentemente, aqui em Araçatuba, prejuízo sim, da parte criminal, por
exemplo, há vários inquéritos relatados, nos quais a gente não tem condições
de trabalhar! Minimamente! Não vou ser irresponsável, não vou fazer uma
denuncia leviana, nem um arquivamento superficial ou leviano. Né? Isso...
isso eu não vou fazer. Não, como também não faço na questão... nas
questões envolvendo questões agrárias. Mas, voltando à sua pergunta, e
respondendo conclusivamente... questões trabalhistas, questões ambientais
que sejam levantadas no processo, o Ministério Público Federal já intervindo,
ele já comunica os órgãos, né, competentes. Inclusive os colegas dos outros
ramos do Ministério Público. Não é necessário que eles intervenham, só vai
assoberbar esse serviço, eles procurarem motivo que, que um já vendo, já
comunica a eles. Isso, de uma forma geral, já está na lei, não há problema,
não há necessidade, portanto, de intervir, o que há, sim, é prever uma outra
mudança legislativa, a mesma lei que regra a questão da suspensão ou não, e
a questão possessória, nas ações que tendam a impedir a desapropriação, ela
deveria regrar, e melhor dizendo, especificamente prever, obrigatoriamente a
intervenção do Ministério Público. Mesmo porque, se o Ministério Público
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Federal tem algum motivo pra intervir numa ação desapropriatória... diversa,
numa questão agrária... ele tem mais motivo pra intervir naquela que prejudica
a desapropriação, do que naquela que discute, em principio, apenas o valor.
Né? Ou já discute a produtividade, como eu havia dito, no início, mas já, a
questão já provada. Porque, não me lembro se concluí essa resposta antes,
ou não, mas... embora eu não possa provar na ação desapropriatória a
produtividade, eu posso discutir ela, sim. Né? Só que se o Ministério Público
intervém lá, e intervém obrigatoriamente, ele não pode chegar lá e, por
exemplo, falar numa ação em que a prova já foi feita numa ação, por exemplo,
prévia cautelar, de produção de estado e prova. Que é o que se esperaria que
ocorresse.
Entrevistador Uma das saídas seria a criação de uma justiça especializada?
PTG Essa é uma questão que a sua “Escola” deveria questionar e debater,
começando bem detrás. Pra que existe justiça especializada? Pra resolver
conflitos negativo ou positivo de competência? Rogério Laureia Tucci, diz,
com todas as letras no livro “Constituição de 1988”, processo dizia nas aulas
de direito que eu tive com ele na São Francisco, que o Poder Judiciário é
nacional, é um só. Existem apenas “justiças”, né, mas o poder é único. Ora, a
justiça especializada, ela tem a sua razão de ser, eventualmente, quando a
matéria é muito específica. Né? Ou por uma outra questão bastante... Mas o
problema de criar... de se criar uma justiça especializada, são os conflitos de
competência. Quantas vezes, quantas... procure... eu gostaria de fazer essa
pesquisa, é uma outra sugestão, que eu gostaria de... fica, pro pessoal, né, os
estudantes da GV - pesquisem no STJ, qual que é o percentual de decisões,
por exemplo, somente entre... de decisões que... somente entre conflitos de
competências entre federal e estadual. Justiça Federal e Justiça Estadual.
Porque até com relação à Justiça do Trabalho e a Justiça Militar, são matérias
especificas. Mas... e Justiça Federal e Justiça Estadual, sendo que o Poder
Judiciário é nacional. O Poder Judiciário é um só, data vênia a opinião, ou
melhor, inclusive, os títulos que existem em sentenças, dizendo assim “Poder
Judiciário do estado tal”. “Poder Judiciário do...”. Não, não é Poder Judiciário
do estado. É justiças dos estados. Isso está claro na constituição, até o
momento, se eu não me engano, a Constituição do estado de São Paulo já foi
emendada pra colocar o Poder Judiciário. Como se existisse... Existe Poder
Executivo estadual, federal e municipal. Existe Poder Legislativo federal,
estadual e municipal. Mas Poder Judiciário é um só, ele não tem a tripartição
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entre as entidades ou unidades federadas, e isso não ficou claro na
Constituição. Outra confusão que gera. Na prática, além da questão conceitual
em si, na prática, você fica criando mais uma série de conflitos. Como são
justiças especializadas, a questão acaba tendo de ser entendida como
incompetência material, que não... que não se... que não se... não se saneia.
Ou seja, teria que anular tudo, em principio, tanto que alguns tribunais, à vista
dessa situação lamentável, acabam aceitando, pelo menos a produção de
provas, não as decisões... A produção de provas na justiça incompetente, em
razão da matéria, e, com isso, de qualquer maneira, já não bastasse o
excesso de causas naturais, e que decorrem, aliás, em grande parte, da
incapacidade do Estado de executar as políticas públicas, mesmo por causa
da sua contradição intrínseca, que se reflete na constituição, que é, enfim,
privilegiar o país como nação, privilegiar o país como plataforma exportadora...
você agora coloca também pra eles a decisão: se um roubo de uma agência
de correios franqueada é estadual ou federal. Isso vai, e vai e são vários
casos decidindo, e quanto tempo se perde nisso? Pra que isso? Vamos
começar a questionar por aí. Eu acho assim: se a... A questão agrária,
realmente, ela é especializada demais. Muito especializada e merecia várias...
de Reforma Agrária... e varas Agrária. Especificas. O juiz não dá, to vendo
aqui, não dá pra você trabalhar bem, já não bastasse o excesso de serviço, a
insuficiência de material humano e físico, não é, você ainda tem que pegar,
hoje, uma questão criminal, e amanhã um estudo de um grau de eficiência de
exploração, num caso de Reforma Agrária. É evidente que não... que a
produtividade não é a mesma. A produtividade da prestação judicional e
ministerial, vamos dizer assim, Então... agora, isso é uma coisa. Outra coisa é
você falar “não, você vai entrar numa justiça especifica”, e a partir daí você
nunca... porque se cria uma Justiça Agrária, existirão tribunais agrários,
eventualmente um Tribunal Regional Agrário, um Tribunal Superior Agrário, e
eles só vão tratar de questões agrárias. Com isso, você especializa demais,
você direciona demais o conhecimento. É muito importante pros juizes, que
ele fique sim, algum tempo somente ali nas matérias, como as cíveis, as
criminais, né? Tanto é que existem várias cíveis e criminais, mas, veja-se
bem, que o juiz estadual, né particularmente, e mesmo o federal, quando ele
começa, ele começa pegando tudo. As varas não são especializadas. Não é?
E ele pode também ficar um tempo na criminal, e outro tempo na civil. Ele
pode variar, conforme o seu gosto. Mas, de forma geral, ele tem que ter um
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conhecimento generalizado. Um dos grandes problemas que se poderia
colocar, é a excessiva... no campo cientifico, hoje, de uma forma geral, não só
no direito, mas, por exemplo, particularmente na medicina, por exemplo, pelo
que eu vejo, é a excessiva concentração de conhecimento em certas áreas.
Um, conversando outro dia com um médico, ele me disse que um colega que
especializou-se apenas em parto de mulher com pressão alta, não consegue
acompanhar todas as... a matéria que se publica a respeito do assunto. Mas
ele só conhece isso, ele não pega uma parturiente que tenha pressão normal.
Ele pega só a parturiente que tenha pressão alta. Ora, eu acho assim, que ele
só trabalhe com isso, mas que ele, eventualmente, vá pras outras áreas, ou
possa ter essa possibilidade, eu acho isso necessário, porque senão ele,
daqui a pouco ele não vai nem saber onde fica o coração. Eu to... eu estou
aqui brincando, evidentemente, mas... nós não podemos segmentar a tal
ponto o conhecimento das coisas. Em direito, particularmente, não há como
segmentar, você tem... são ramos do direito. Não é? Não tem sentido, quando
ele vai decidir a questão agrária, ele vai envolver direito civil, ele pode
envolver direito criminal, ele vai envolver direito ambiental... Né? Quer dizer,
ele teria que ser um conhecedor, um conhecedor, um expert. No mínimo,
então, se for o caso, o “juiz agrário”. Se houver uma justiça agrária, ele deveria
antes passar por todas as instâncias normais, vamos dizer assim, comuns.
Pra que ele tenha não só a experiência, o conhecimento jurídico, que todo juiz
tem... todo juiz, todo promotor, todo operador de direito que passou em algum
concurso, se exigiu, de forma geral, os conhecimentos amplos e genéricos de
direito. Mas depois que ele só atua nisso – uma coisa é esse conhecimento,
outra coisa é a experiência prática. Que é outra questão, que a reforma do
judiciário podia ter feito, né... e que fica como sugestão de pensamento, mas
isso aí foge muito ao tema, aqui, da...
Entrevistador Na sua opinião, o poder judiciário pode atrapalhar a execução de uma política
pública do Estado?
PTG Em vista da passionalidade, nessa questão agrária, ou seja, ninguém tem uma
opinião radical, em um sentido e em outro... Seria melhor, na minha opinião, a
alteração legal. A definição em lei de todos esses casos. Apesar que isso não
vai... não vai ser um... uma solução, porque a lei... não é um... não é uma
coisa que se aplique, assim, que defina ou acabe com os conflitos, mesmo
porque toda lei é aplicada de forma... mesmo quem diz que não interpreta a
lei, na verdade, está interpretando, quando a aplica. Ou não a aplica. Então,
56
é... uma reforma legal é desejável, mas é desejável, de forma geral, enfim,
que o Estado tente realizar a sua política pública, e, particularmente, política
pública educacional, que dê, as mais variadas visões às pessoas, que ensine
a questionar, de forma geral. Essa é a função da universidade, da escola de
uma forma geral. Que ela, na minha opinião, acaba não cumprindo, tão a
contento, mesmo porque, hoje em dia, pra fugir de novo do tema, você acaba
sendo questionado por informações, Você... muito pouco – a GV parece que
está tentando mudar isso, de forma geral, inclusive no vestibular, né. Mas,
basicamente, você tem que ter o seu repositório de informações. Você tem
que saber os caras. Você não tem que saber propriamente aplicá-los. É claro
que isso implica uma outra... um outro tipo de abordagem, vamos dizer assim.
Mas o que a escola, de uma forma geral, e a universidade, em particular, pode
exigir, é um... é... um questionamento sério, científico. Ou seja, não aceitar
apenas as informações. Questioná-las. E esse método a escola pode ensinar.
De questionamento. Método de questionamento.
Entrevistador Como que você avalia a atuação do INCRA na política pública de Reforma
Agrária? Você tem alguma opinião formada sobre a atuação do INCRA na
execução, na implementação da política de Reforma Agrária?
PTG Que eu tenho visto, e do que eu tenho conhecimento, o INCRA faz o que é
possível. Ante as suas limitações naturais. Primeiro pela falta de um
procurador aqui, ou nos locais, desde quando... decidiu-se, aqui na Terceira
Região, São Paulo e Mato Grosso do Sul, que as ações agrárias tramitariam
pela... pelo foro da situação, né, o foro, a sanção judiciária da situação de um
imóvel, o INCRA tem feito o possível e até o impossível fazer, né, pelo que eu
tenho visto. A atuação, ela é satisfatória - em vista das suas limitações – mas
deixa muito a desejar, ainda. E nisso, e eu não estou falando, não estou
fazendo nenhuma critica, mesmo porque a minha atuação, na minha própria
opinião, minha auto-avaliação, eu faço o que é possível, mas ainda deixo
muito a desejar. É claro que eu espero melhorar, com o tempo. Mas é
evidente que, enfim, você não tem como trabalhar, se a capacidade é sobre-
humana, você não vai ter como trabalhar em todas as causas a tempo.
Alguma coisa sempre acaba sendo prejudicada, ou não resolvida, ou não
solucionada a contento. A gente tenta evitar. Deveria fazer um estudo, um
planejamento de manifestações e processos. Que eu não tenho mais
condições, eu tenho que planejar as coisas aqui. Talvez por isso o curso de
administração seja bom pros... juristas... (risos) ou pelo menos pra aqueles
57
que pretendem trabalhar como juiz e promotor... (risos) Fazer planejamento,
você não tem... você não pode mais deixar ao léu, você tem que ver, “isso
aqui não pode, aquilo não pode”... uma questão de utilidade... fator de
utilidade, mesmo! Chegou a esse ponto! Mas, voltando à questão do INCRA.
No caso deles, também, como em todos os casos, precisa de mais
procuradores, mais gente pra assessorar, mais...
Entrevistador O interesse primário dos lavradores Sem-Terra como um interesse coletivo,
partindo dos conceitos dos direitos difusos e coletivos, o Poder Judiciário está
preparado para trabalhar com processos coletivos? Já houve algum caso de
utilização da Ação Civil Pública para reclamar esses direitos?
PTG Não, eu não tive conhecimento, não houve um caso, mesmo porque, na parte
federal, a ação civil pública seria manejada por mim, entre outros.
Particularmente por mim. E eu não... não... não vi um caso, até agora, que
precisasse atuar dessa forma. De forma geral, esse interesse coletivo, ou até
eventualmente difuso, tem sido defendido caso a caso, nas ações que
aparecem. Inclusive possessórias, quando são emitidas pra justiça federal.
Mas... com a ação civil pública, ainda não me surgiu um caso em que ele se
colocasse... que demonstrasse a utilidade da utilização da ação civil publica,
pra defender esse interesse. Agora, em tese, em princípio, salvo o melhor
juízo, é possível, caracterizar assim. Resta saber se vai ter utilidade prática.
Entrevistador Teria algum comentário a fazer sobre o caso especifico da Timboré?
PTG O caso Timboré, ele acaba... é um caso emblemático da possibilidade de
repercussão negativa ou positiva da questão agrária. Você tem um caso bem
definido que é colocado, inclusive na justiça, como um esbulho, uma invasão.
Tanto é que a ação possessória foi ajuizada com base nesse fundamento, e
só isso já é... já gera uma, uma situação assim. Então, o INCRA esbulhou a
propriedade do cidadão, do autor da ação possessória, dos autores da ação
possessória. Os assentados estão lá irregularmente. Isso cria uma
intranqüilidade, criou, no caso, uma intranqüilidade, uma aflição, em todos
aqueles que estão assentados lá, contribuiu, mais uma vez, pra radicalização
do clima, de forma geral. Ou seja, apenas... com um objetivo... nenhum, nada
construtivo, não é? E o fundamento da ação, conforme meu parecer isolado
nos autos, não se sustenta. Não há fundamento, não há... O único, principal
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fundamento dela, que é o acórdão no Supremo, manda desapropriar. Apenas
mudando a forma de pagamento. Então, é um caso assim que você percebe
como que essa situação... acaba gerando, ou contribuindo pra gerar mais
litigiosidade, mais conflito, mais insegurança, mais radicalismo, nessa
questão, por um lado. E por outro lado, como que a atuação dos... agentes da
justiça, ou seja, os membros do poder judiciário, e do Ministério Público, pode
contribuir pra, pelo menos, dissipar um pouco essa situação, né, colocando as
coisas nos seus devidos lugares, e tudo mais. Claro, estou aqui, não estou
aqui criticando a atuação propriamente dos proprietários, eles estão no direito
deles, o advogado também está exercendo o seu direito, está argumentando,
procedente ou improcedente, é a justiça que vai decidir. Mas a forma como ele
coloca a situação, é por si só uma forma que gera conflito. Gera animosidade,
gera... aflição social. Em toda aquela comunidade. Gerou, talvez até hoje
gere, inclusive, a insegurança, com relação ao tempo que eles vão ficar lá,
ou... porque, enfim...
Entrevistador Na sua atuação, você tem observado outros casos onde o STF tem
determinado a suspensão, ou a anulação do decreto de desapropriação, e o
processo de assentamento já tenha sido iniciado?
PTG Esse caso Timboré é o único que eu tenho conhecimento, mesmo esse do
Paraná, que eu havia citado antes, eu não... nem imaginava, talvez até não
consiga entender que o Supremo possa ter determinado o... Porque é
principio do direito, isso... os professores de Direito Agrário – que é uma
matéria que aliás eu não fiz, né, tive que fazer na prática, aqui, a
Especialização em Direito Agrário – dizem que, enfim, a desapropriação, ela
não é, ela não é reversível. Isso é principio de direito administrativo, de forma
geral. Nenhuma desapropriação é reversível. Você não vai, porque não era o
caso, por exemplo, de interesse público, mandar desfazer um viaduto
construído num imóvel particular, pra devolver ele pro proprietário. E não é
porque os Sem-Terra estejam lá com... com bens mais facilmente, bens ou
coisas, mais facilmente removíveis, como uma casa, ou uma plantação, que
vá mudar esse princípio. Enfim, você não desmancha esse viaduto, você não
desmancha uma escola construída num terreno particular, ainda que depois
haja ou comprove-se alguma nulidade ou erro no... no procedimento
desapropriatório, mesmo porque é o interesse público que deve prevalecer
sobre o particular. Né? E isso já é, de novo, voltamos à questão ideológica ou
política envolvida na questão. E, no caso da Reforma Agrária isso fica... se
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exponencializa. Fica uma coisa radicalíssima. Mesmo porque entra a
facilidade de, enfim, tirar todo mundo de lá, passar uma máquina e voltar
àquilo, às pessoas, o que não seria possível, ou tão fácil, no caso de uma
escola, ou um viaduto, ou coisa que o valha.
Entrevistador Você tem mais alguma consideração a fazer?
PTG Eu gostaria só de fazer uma... uma consideração, aqui... que tem sido, tem se
batido muito, é uma questão também técnica, desapropriatória. Tem se batido
muito na questão do uso das Áreas de Preservação Permanentes, e daquela
que seria da Reserva Florestal do Imóvel, e se esse uso o INCRA pode fazer,
ou considerar as áreas ocupadas, ou não, pra calcular o... os índices que
informam a produtividade do imóvel. Essa discussão, inclusive, eu vi, há
alguns dias, num... pela transmissão de TV por assinatura, no plenário do
Supremo. E... não se questionou, em nenhum momento – porque a
argumentação, de forma geral, e isso não é mais dos advogados, ou de um ou
outro, é uma argumentação geral, generalizada, de que você não pode
considerar o uso, com pastagens, com atividades agrícolas, feito em áreas de
preservação, ou na que seria da reserva florestal. E, portanto, se não pode
considerar, essas áreas têm que ser excluídas. Mesmo que, portanto, não
esteja efetivamente preservada, ou tenha efetivamente uma floresta, uma
vegetação que se assemelhe, ou cumpra suas funções. Ora, mas essa
discussão, pelo menos no grau de eficiência da exploração, não influi em
nada, porque se... não tem sentido você tirar essa área, sem tirar o produto da
exploração da área! E isso não tem sido visto, de forma geral. Os técnicos, e
todos os que defendem essa tese, nada falam sobre o produto da exploração.
Então, você tira a área de pastagem que está em APP, mas não tira o gado
que esta sobre ela. Proporcionalmente falando, já que o gado não é
localizado. Mas algum gado está lá! Não está? E pra onde vai esse gado? Vai
pra área restante. Com isso, o que que ele faz? Adensa a ocupação da área
restante? Com isso, se obtém a produtividade! Pelo GEE, Grau de Eficiência
da Exploração. Esse tem sido, de forma geral, quando o índice... o índice do
GEE é muito próximo de 100% - próximo assim, não está muito abaixo dele,
melhor dizendo, uns 70, 80%, né – esse tem sido o expediente utilizado, aqui
em Araçatuba, e de forma geral, pelo que eu tenho informação, no país todo,
pelos peritos. Que são engenheiros agrônomos. E que repercutem essa tese,
só que esquecem de retirar, quer dizer, não fazem uma coisa minimamente
coerente, na minha modesta opinião. Ou, pelo menos, não deixam isso claro.
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Jamais deixam isso claro. Em todas as impugnações que eu fiz – estava
analisando uma delas agora – o perito não fala disso, não toca no assunto!
Aonde foi parar o gado que estava nas APPs? Que você excluiu! Foi parar no
resto da propriedade? Você tirou, então! Você tirou a APP, tira o gado
também! Você tirou o gado que estava na reserva florestal, ou deveria... na
área que seria da reserva florestal, e portanto na reserva... Você tirou essa
área, você tirou essa área, então tire o gado que está nela! Tire a produção
agrícola, a produção de algodão, a produção de milho... Tirou? Tirou a área de
milho, então tire a produção! Você não vai jogar a produção pra lá, senão você
vai colocar uma produção fictícia, vira um laudo fictício! A verdade, é que nós
temos também uma outra mudança, que eu não sei se tem que ser legislativa,
ou... o que seja, mas seria conveniente constar na lei, esse ponto, para
esclarecer em definitivo essa questão. Né? Porque esse é o grande... Os
peritos, pelo menos aqui em Araçatuba, eles já não fazem mais perícia de
fato, eles fazem perícia e interpretação de lei! Eles estão interpretando a lei,
falam “olha, eu vou excluir”, “eu vou colocar”, “o INCRA errou nesse seu
método”, “errou naquele método”, e, com isso, “ufa!”, a discussão de fato se
perde, né? Você já não tá mais discutindo mais fato nenhum, você tá fazendo
uma nova... uma nova adequação do fato, conforme a norma, e essa é uma
questão pro juiz fazer... Quer dizer, se o perito entende isso, ele deveria deixar
isso claro... fazendo no caso, dois cálculos de produtividade, como eu tenho
me batido, e jamais obtive resposta. Né? Mas eles não fazem dois cálculos de
produtividade, uma conforme o índice correto, o outro... e deixando isso claro,
porque daí, onde foi parar a produção, o produto de exploração de áreas
ambientalmente protegidas, ou que deveriam ser ambientalmente protegidas...
E, com isso, também, chegam tranqüilamente, quando, como eu disse,
quando o GEE já é um pouco alto, embora não atinja o mínimo, falta alguma
pouca coisa, eles conseguem. Porque as Áreas de Preservação Permanente
em geral são bem grandes. É 50 metros de um... ou 30 metros, melhor
dizendo, de um rio, né, 50 metros de nascente... isso, nascente tem por todo
lado, vários imóveis, então você consegue muita coisa, e com isso fica fácil.
De novo, é uma posição quase que... quase que pol... Aliás, muitas vezes
política, mesmo. O INCRA denunciou a atuação política de peritos, aqui em
Araçatuba... da qual não teve praticamente resposta. E nem teria como,
porque a atuação é claramente política. Ele mesmo, homem, pessoa de
confiança do juiz, né, externando opiniões políticas em laudos onde deveria
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ser tão imparcial quanto o juiz. É evidente que esses laudos não têm
condições de aproveitamento. Agora, se, de novo, - e a questão de política
pública – de alguma forma, teria que regrar a produção da prova pericial.
Porque da forma como está hoje, pelo menos essa é a informação que me
passaram, pelo menos no INCRA, o que ocorre aqui não é exclusivo daqui. É
comum no país todo! De forma geral! Se isso é verdade, nós temos então uma
outra questão, que é... a parte da... partir da realização sub-reptícia... da
questão agrária nos laudos técnicos que são apresentados ao juiz, para a
apreciação do juiz. E aí, de novo, se ele tem muita coisa pra decidir, se ele já
não gosta da questão, já não simpatiza... né, e o MST, também... (risos) nesse
ponto, acaba muitas vezes não colaborando - estou falando daquilo que se
divulga pela mídia do que ele faz, e eu não sei efetivamente o que ele faz de
concreto. Né? Uma coisa é a noticia do fato, outra coisa é o fato. Isso tá isso
bem claro pra mim, mesmo porque é a minha própria experiência pessoal,
aqui. Mas o juiz acaba refletindo isso, e muitas vezes acaba... colhendo esses
laudos, né, e, involuntariamente, colocando neles, como se fossem...
colocando em sentença questões que parecem ser técnicas, e na verdade são
políticas. Né? Além de incongruentes, tecnicamente falando, como eu tentei
agora, em poucas palavras, demonstrar.
Entrevistador A Reforma Agrária uma política pública capaz de alterar a estrutura agrária
brasileira?
PTG Ameniza. Mas realizar ele não vai realizar não. Ou ele muda a sua política
econômica, que está na Constituição, e é, de forma geral tida... mas pra isso,
é preciso estender o questionamento que a gente faz em direito, migrar para
as áreas econômicas. É preciso, enfim, que as faculdades de economia se
questionem. Quando... se... se... por exemplo, pegando um caso resistente,
que foi a questão da criminalidade em favelas no Rido de Janeiro. Filmada,
crianças, no tráfico, e tudo mais. Essa questão deveria ser posta, não ao
Ministro da Justiça, na minha opinião, proposta não apenas a ele, pra ele
responder, mas também pra área econômica. Como é que você vai apartar –
de novo a segmentação do conhecimento – como é que você vai apartar a
política econômica, monetária, fiscal, de... disso? Da violência? Ou não há
uma relação entre elas? Não é? Se não há, eu fico quieto. Mas, se essa
definição de que a questão da violência ou da segurança pública é uma área
especifica, e não diz nada à respeito, com os demais ministérios, e tudo mais,
já é uma posição ideológica. Por si mesma. Agora, o questionamento que se
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faz, e, de forma geral, não é aceito na universidade... é... Que se faz, não, que
não se faz, né, melhor dizendo. E por isso mesmo não se aceita. É a questão
da discussão econômica de forma geral, aliás, não só no Brasil. Nesse ponto,
o Brasil não reflete senão o que ocorre no mundo todo, de forma geral. Já
estrapolamos pro mundo todo. Mas a universidade deveria tomar... ficar
apenas na posição “eu sou de direita ou de esquerda”. Porque eu acho que as
duas, já estão vencidas, essas posições. Tanto a esquerda não realizou a sua
função, como a direita também não realiza. E aonde vai parar essa situação?
Em guerra civil? Em guerra social? Nós temos um Estado bem longe daquilo
que ele precisa ser, não só no Brasil como no mundo todo, e a universidade
deveria ter essa... essa... essa... grandeza de aceitar todos os pontos.
Particularmente, eu estou aqui falando de um caso concreto que envolve a
própria Fundação Getúlio Vargas, que em determinado, alguns anos atrás...
pelo menos, pelo que eu fiquei, tive a informação, ela tirou os professores
mais bem avaliados do curso, por uma questão formalmente dita de excesso.
Que é o professor Celso Buarque Bueno. Que, obviamente, não aparece e
nunca vai aparecer na mídia. Esse professor tem um livro, tinha todas as suas
aulas, tem uma experiência enorme, foi consultor da ONU, e tudo mais, tinha
uma visão diferente, pelo menos, de economia, do país e do mundo, de forma
geral, e foi, vamos dizer assim, defenestrado da fundação, por causa, ao que
parece, das suas opiniões radicais contra o governo de então. E que, pelo
jeito, continua. Eram antes, continuam, como sempre foram. Mas esse tipo de
obliteração da discussão não serve aos fins científicos a que a universidade
deve ser propor. E a Fundação Getulio Vargas tem esse compromisso,
inclusive está classificada até como fundação.
Entrevistador Quando o INCRA manifesta interesses na ação possessória, e mesmo quando
ele não manifesta, alguns advogados dos movimentos sociais, acabam
requerendo ao juiz estadual que seja oficiado o INCRA, pra que ele manifeste
interesse, naquela possessória. E, manifestando interesse, a competência
seria da Justiça Federal. Qual a sua opinião sobre esse assunto?
PTG Eu acho que o Ministério Público deve se manifestar nessas ações, sim. Aliás,
é muito importante – aliás, eu acho, não, isso está em lei! Eu não entendo
porque que o... se foi o caso, se não estiver havendo uma representação de
Ministério Público efetiva, nesses casos, na Justiça Estadual, precisaria
analisar os fundamentos. Mas, em princípio, está no código de processo civil.
Com a alteração de uma lei que acho que já tem aí acho que 10, 12 anos. Ou
63
menos. Portanto, é obrigatória. Agora, eu entendo o seguinte: que a definição
de justiça competente não deve ficar ao alvedrio do interesse do INCRA. Ou
seja, se ele interessa num caso ou em outro... - na verdade, o INCRA tem que
dizer que tem interesse... tem que ter um critério objetivo de manifestar o
interesse. E, nesse caso, adotando-se esse princípio, a competência
conhecida possessória, passa a independer da manifestação formal do
INCRA, de ter interesse nessa ou naquela. Isso não pode ser uma coisa ação
ad hoc, para o caso “X” e não para o caso “Y”. Se as duas são possessórias, e
envolvem sem-terras, entre aspas, que estão ali por causa da futura
desapropriação do imóvel para fins de Reforma Agrária. Com ou sem ação
desapropriatória ajuizada na Justiça Federal. Então, a nossa... a minha
proposta, aqui em Araçatuba, que ainda não foi julgada, está pendente de
julgamento, e até foi proposta como... se for o caso de chegar ao Superior
Tribunal de Justiça, é que toda a ação possessória em que o conflito derive,
ou tenha a ver, com a expectativa de o INCRA ser emitido na posse do imóvel,
por causa da desapropriação - ou seja, que a possibilidade da sua emissão na
posse, com a ação desapropriatória com o ajuizamento da ação
desapropriatória, motive a concentração de acampamentos de sem-terras nas
proximidades do imóvel, ou até a invasão do imóvel, pra esse fim, que eles
acreditem que sancione isso, (ou não, eventualmente), que essa ação venha
para Justiça Federal. Porque o artigo 18 da lei complementar de 76 fala que
toda a ação que veste, né, envolva o imóvel desapropriando, deve ser
encaminhada ou deve ser distribuída à vara que for, a que vier a ser
distribuída, ou estiver a ação desapropriatória, e essa lei não está distinguida
entre as ações possessórias e as reivindicatórias, ou que envolvam só
questionamento de direito de propriedade. Mas, ou por isso mesmo, é que
eles deveriam, então, conhecer de todas essas causas. Até porque, enfim, se
o juiz federal não emite o INCRA na posse, e, por isso, gera um conflito, tanto
é que gerou a emissão na posse, é ele que deveria solucionar. Se ele – aliás,
ele emite ou não, né. Às vezes ele emite, e o tribunal reforma, ou ele não
emite, ou, até, não há ação desapropriatória ainda, e, portanto, não há que se
falar em decisão, emitindo ou não. Mas, a concentração existe em vista da
expectativa de ser ajuizada a ação desapropriatória. Então, nesse caso, deve
ir pra Federal. Além do que, e, complementando a resposta anterior, sobre a
questão das Varas Agrárias, e da Justiça Agrária, eu acho que a Justiça
Agrária, como eu disse, em princípio, ela mereceria ser melhor discutida - eu,
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na minha opinião, por enquanto, tenho a opinião de que a justiça, de forma
geral, deveriam ser relativizadas bastante a questão da competência,
transformadas todas em competência relativa... né, ou seja, que não se anula;
diminuir ao máximo, se for possível, até, eventualmente, fazer uma fusão
maior entre Justiça Federal e a Estadual, pra que não haja tanta discussão de
competência, e perda de tempo com isso; e, no mais, que... seja previsto, que,
na lei, em lei, que as varas agrárias, ou, eventualmente, o juiz agrário, ou a
justiça agrária, que... a... que a compet... que venha a discutir uma causa, que
essa vara não se situe no foro da situação do imóvel. Em exceção absoluta e
completa ao código de processo civil, que prevê que de maneira geral o foro
da situação do imóvel é o competente para discutir as questões a ele relativas.
Mas, na questão agrária, isso não convém. Convém, ao contrário, que o juiz
fique longe do foro da situação do imóvel, haja vista, aí, a passionalidade, a
magnitude dos interesses em jogo. E isso, eu acho que resolveria um dos
grandes argumentos, inclusive, que eu ouvi de alguns... representantes, até,
de movimentos de sem-terra, que dizem que o juiz se envolve, e
particularmente os juizes estaduais, se envolvem muito com... com a... com as
partes, né, no caso, com os produtores, ou, enfim, teriam essa... eu não sei
até que ponto eles confundem, talvez, um conhecimento, né, uma... uma
amizade, que pode decorrer de freqüentar os mesmos lugares, com
favorecimento. Vai daí uma relação. Cada um tem a sua conclusão, né, a
respeito dos fatos. Eu, particularmente, até conheço um ou outro produtor,
proprietário rural da região, que, aliás, antecipo, não está envolvido em
nenhum caso de Reforma Agrária, mas, mesmo que estiver, ou venha a estar,
o meu parecer vai ser totalmente isento. Mesmo porque, se não for isento, e
eu perceber que não vai ser, por causa da minha amizade com ele, eu vou
declinar minha suspensão. Que é o que o juiz deveria fazer, e parece que o
movimento entende que não. De qualquer maneira, não custa prevenir, né. E
eu acho, tenho a impressão, que a vara de Reforma Agrária que faça essa...
essa alteração, essa inversão de competências, né, “eu julgo as suas, os seus
casos, você julga os meus, na minha área”, na questão agrária, já seria um...
É claro que isso, eu, inclusive, me reservo o direito de melhor pensar sobre o
assunto, né, mas é uma proposta em discussão. Inclusive a universidade, e a
Fundação Getulio Vargas em particular, o curso de direito dela, pra ver isso
não resolveria, pelo menos os pontos que tem sido opostos pelos movimentos
65
dos Sem-terra, à questão da suspensão, da isenção dos juizes de julgar esses
casos.
Entrevistador Muito obrigado.
ENTREVISTA COM A PROCURADORA DO INCRA
MARIA CECÍLIA PRADEIRO DE ALMEIDA 29 de março de 2006 – São Paulo/SP
E Gostaria que a senhora descresse o papel do INCRA dentro do Estado.
MC O INCRA é fruto da união de dois institutos, que é o IBRA – Instituto Brasileiro de
Reforma Agrária – e o INDA – Instituto de Desenvolvimento Agrário, que foram
criados no governo do Marechal Castelo Branco, junto com a aprovação do
Estatuto da Terra. Então, já na mensagem 33, o Legislador... aliás, o Poder
Executivo, ao falar sobre a necessidade de uma legislação agrária, que viesse
abarcar toda a vida da Zona Rural, e não apenas uma lei de Reforma Agrária -
até mesmo porque nós éramos signatários da Carta de Punta Del Este, daquele
programa “Aliados Para o Progresso” - essa legislação é criada, essa legislação,
uma vez promulgada, ela deve ter os órgãos que venham a fazer, exatamente,
essa execução de uma política agrária, vocacional para o Brasil. Portanto, foram
66
criados, tanto o IBRA, como o INDA, em 1970, pela lei 1.110, eles se
transformaram em INCRA, unificando esses dois institutos, e outros institutos,
que cuidavam, também, paralelamente de... Institutos Federais que cuidavam de
Política Fundiária, de forma paralela. O papel do INCRA, hoje - que já tentaram
extinguir, e ele foi revigorado várias vezes - é o papel, efetivo, de fazer uma
política fundiária para o Brasil. Essa política fundiária envolve diversos
segmentos. Então eu tenho, que a gente pode chamar, lato sensu, de
Regularização Fundiária, onde envolve colonização, legitimação de posse,
discriminatórias de toda ordem, e tenho, entre outras opções, a opção da
Reforma Agrária, onde houver disfunção fundiária. Então, onde há indefinição
fundiária, eu falo Regularização Fundiária lato sensu, que envolve esses projetos
que eu já disse, legitimação de posse, regularização de propriedade,
discriminatória... havia “usocapião” em terras devolutas, que lamentavelmente a
Constituição bloqueou, isso ainda é discutível. E, há outro... O outro segmento
era a utilização das propriedades que descumpram a função social, para fins de
Reforma Agrária, e daí, então, essa outra política, que é a política de Reforma
Agrária. Então compete ao INCRA fazer toda essa política de desenvolvimento
da Zona Rural. Tanto a desapropriação, como a colonização, elas não morrem
em si. Não é o ato, apenas, de repartir terra, de dividir, ou colocar as pessoas,
assentá-las, ali, que é... o papel do INCRA não morre aí. Muito pelo contrário, eu
só posso falar de Reforma Agrária lato sensu, só posso falar Regularização
Fundiária, na medida em que eu trago este assentado ao processo produtivo
nacional. Então, nós temos um papel complementar, de dar condições pro
assentamento viver de maneira mais... com maior dignidade, desenvolver e
integrar esse assentado, torná-lo independente ao processo produtivo. Esse é o
papel dele. Nas últimas... nos últimos governos, esse papel foi sendo, ao meu
ver, reduzido drasticamente. Então, já no final da década de 80, se não me
engano, o INCRA perdeu a parte de Extensionismo Rural, Segmento de
Cooperativismo, praticamente, deixou de existir dentro do INCRA, o próprio
Estado deixou de ter a fiscalização e controle das cooperativas, que não vou me
dedicar a esse assunto, mas o INCRA trazia, trazia junto com o assentamento,
ele podia trazer viabilização dessas propriedades familiares numa empresa
maior, que seria através de uma cooperativa, e aí as outras formas societárias.
Então, ele tem sido reduzido, lamentavelmente, como se nós não tivéssemos um
problema agrícola no país, ou um problema agrário no país. Então é esta... e
neste governo, o último, quer me parecer que o INCRA voltou a ter uma maior
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atuação, houve o remanejamento da própria máquina, máquina que foi sendo
destruída, nesses últimos anos. Nos últimos governos, o INCRA foi sendo
desmontado, literalmente. No Estado de São Paulo, que eu posso falar com
tranqüilidade, nós tínhamos mais de 200 funcionários, com uma equipe formada,
por exemplo, uma Procuradoria com mestres, doutores e livre-docentes,
catedráticos, da USP e outras universidades, e isso foi sendo reduzido...
economistas, enfim: todo o INCRA, que tinha, em São Paulo, mais de 200
funcionários, hoje não tem 50. Então, foi um desmanche da máquina em todos os
sentidos: nível de pessoal, nível de treinamento de pessoal, nível de alocação de
recursos, enfim, houve um desmanche da máquina. Acrescido ao desmanche do
próprio ensino de Direito Agrário, dentro... pelo menos no Estado de São Paulo, e
de uma política que vem minando os cursos de Direito Agrário dentro das
Faculdades. Como se isso não fosse importante pra Zona Urbana. Você não
pode falar de desenvolvimento rural, e, ou urbano de uma maneira desassociada.
Só existe uma coisa quando existe outra.
E Como definir o problema agrário? Como conceituar o problema agrário brasileiro?
Que problema é esse?
MC A questão agrária brasileira, é questão de, primeiro lugar, de indefinição
fundiária, por conta da formação territorial do Brasil. Isso, pra mim, é passível. Se
a gente voltar na história do Brasil, sob o ponto de vista legal, nós vamos ver que
desde a sua formação, ela tem graves problemas. Que vêm historicamente.
Então, nós temos a primeira fase de formação das sesmarias, aquelas
capitanias, aquelas sesmarias que eram dadas, sem que houvesse a efetiva, até
mesmo pela falta de recursos técnicos, a efetiva mensuração - onde é que ficava
a sua sesmaria, onde é que ficava a minha. Então aí você começa a falar em
Superposição de Títulos – usando a terminologia moderna. Aí entra numa
segunda fase, que começa em 1822, um pouco antes da Independência – 17 de
julho de 1822 – onde você tem o que a gente chama de fase Extra-Legal ou
Regime das Posses. Justamente, ainda, o Príncipe Pedro de Alcântara, ele
suspende as concessões de sesmarias, ele determina que seja criada uma
Assembléia para a constituição de uma Lei de Terras para o Brasil, e faz com
que um cidadão, no interior de Minas Gerais, que alegava não ser sesmeiro,
alegava que... – a Coroa também não sabia se aquilo era de alguém, ou se era
Sesmaria de alguém, ou era da Coroa – ele mantenha, se mantém esse cidadão,
Manoel Joaquim dos Reis, ou um nome assemelhado, que permaneça nesse
imóvel para uma futura legitimação de posse - usando terminologia moderna, é
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claro. Isso faz com que esse período, que vai de 1822 a 1850, haja profundo
descaso aos títulos, então concedidos... Primeiro da violência no campo, que se
alguém, que tem posse, ainda que não seja sesmeiro, vai ter legitimidade, vai ter
domínio, “eu também quero”. Então começou uma briga, uma violência no campo
enorme. E a criação das mais fantásticas provas, que na verdade não eram
provas, mas para a concepção da prova de que “eu sou posseiro, e que eu serei
legitimidado”. Então eu tenho: violência no campo, descaso aos títulos e
ausência de lei. Nesse período que vai de 1822 até 18 de setembro de 1850,
quando da Lei Imperial de Terras. Aí eu tenho o terceiro problema. O terceiro
problema é o Registro do Vigário. Que todo aquele, pela lei e pelo seu
regulamento, todo aquele que tinha pretensões, que viesse trazer suas
pretensões para uma grande auditoria - a que nós chamamos de Ação
Discriminatória. Então, cada um vinha, e fazia a alegação para o vigário, que era
a única criatura que tava em todo território nacional, que fazia o papel do Estado,
nesse ponto, ele chegava ao vigário e declarava suas pretensões: “eu tenho a
posse de não sei quantos hectares, há não sei quantos anos”. Verdade ou
mentira, isso era irrelevante, porque o vigário não podia contestar. Ele podia
dizer: “Olha, não é bem assim. Eu sei que o senhor não está aqui há tanto
tempo...”. Mas ele dizia: “Não, eu to sim, o senhor aponte aí a minha pretensão”.
E o vigário fazia essa anotação. De noite o cidadão, eu digo assim, o cidadão
confessava o pecado, dizia que tinha mentido, o padre absolvia, mas o registro
tava feito. Então, a indefinição das nossas titulações, na formação territorial do
Brasil, são fantásticas, são pavorosas. Hoje eu trabalho com títulos, que se você
fizer uma cadeia nominal de 50 anos... 20 anos, ou 50 anos, eles não têm base.
Então eu tenho essa indefinição fundiária, eu não sei quem é dono. Partindo de
um pressuposto único, que o Brasil é do Reino Português - tava na posse, ele
tomou posse de terras conquistadas, é espolio dele - e isso se transforma, na
República, nas Terras Devolutas, que passam a ser dos Estados e dos
Municípios, ressalvadas aquelas que são da União. E aí você vê que a ressalva é
muito maior que a regra geral. Então você tem todo este problema pra falar em
titulação. Depois, uma ausência – eu não sei se por uma questão de interesse da
sociedade, ou de grupos – de não dar efetividade à legislação que vem, só em
1976, que é a Lei de Registros Públicos. Eu passo pelo período de Código Civil,
onde você vai encontrar milhares de títulos, de regularizações, etc, etc, etc.
Mas... mas... todas elas usando metragens que são cômicas! “A profundidade do
imóvel é o trote de um cavalo de dois dias, por uma extensão adentro”, “até onde
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a minha vista avista”, “a sombra da jaqueira”, e aí as medidas são as mais
estapafúrdias. Quando a gente encontra, naquelas medidas, um acidente
geográfico, um rio, um costão, uma montanha, a gente dá graças a Deus! Que
você pode trazer, recuperar essa planta pros dias atuais. Então, ainda, entre
1850 e o Código Civil, eu tenho duas leis, que é a Lei do Registro Geral de
Hipotecas, que dá uma certa... certeza, e depois o Registro Torrens, que também
não foi utilizado no Brasil, jogando-se o custo. Porque o Registro Torrens, na
verdade, era a homologação judicial das medidas de confrontações. É um
registro que veio de Torrens – Torrens é um cidadão viveu na Austrália, ele cria
esse registro pra regularizar a situação fundiária lá, e ele é rapidamente adotado,
em 1890, pelo Brasil. E que hoje tá em vigor, de acordo com a Lei 6.015, lá nos
seus artigos 277 e seguintes. Então, eu tenho esse quadro de indefinição
fundiária. Quando entra a Lei 6.015, em vigor em 73 - e ela é publicada meio na
marra, no dia 31 de dezembro, e ela só entra em vigor em 76 - ela vai tentar
utilizar o sistema alemão para fazer o cadastro imobiliário. Porque nós não temos
o cadastro imobiliário. Nossos títulos são de acordo com os negócios jurídicos
feitos. Então, “Dona Maricotinha comprou de seu Pedrinho, em tal época, pagou
por tanto”. Qual é a descrição do imóvel? “Ah, uma casa onde se vê duas janelas
e uma porta”. “Um lote de terras que tem de dimensão um trote de cavalo circular
por dois dias”. Então, coisas mais estranhas. Esta lei, por conta do cadastro,
exigia, paulatinamente, os registros antigos feitos naqueles livros, eles fossem
sendo, na medida em que fosse havendo a modificação, qualquer, do registro,
eles fossem se transformando em matrícula. Onde você começa com o... com a
descrição do imóvel. E depois os negócios jurídicos vão sendo registrados, e/ou
averbados, de acordo com o artigo 167, 168 dessa lei. O que que aconteceu?
Então, quando você modificava o registro velho, vamos chamar assim, para a
matrícula imobiliária criada no sistema cadastral, então você vem fazer a
atualização do imóvel, a princípio da especificidade. Da especialidade, perdão.
Então, o que que eu vou fazer? Eu vou descrever, de maneira precisa, de
maneira que no final, o que tenha no papel, tenha no chão, o que tenha no chão,
tenha no papel. Só que daí vai, “vai ser caro”, “não tenho agrônomos suficientes”,
“eu vou resolver muito o problema fundiário”, “que não é conveniente”... Porque
enquanto tem indefinição fundiária, todo mundo é dono de qualquer coisa, e faz o
que quer, “eu manipulo máfia”, e assim por diante. Então, há uma lei que diz que
quando não há alteração do perímetro, você pode manter a descrição como ela
estava. Então, eu continuo tendo uma casa onde se vê duas janelas e uma porta,
70
e um imóvel que tem de diâmetro, de perímetro um trote de cavalo, em círculo,
por dois dias. E daí pra frente. O que nós temos hoje? Vamos tentar fazer de
novo o georeferenciamento. O georeferenciamento deve resolver? Eu espero que
sim. Só que: “olha, não tem dinheiro, não tem recurso, não tem gente...”. Será
que ele vai resolver nosso problema? Vai. Então, “vamos adiar”. E ele já foi
adiado. O prazo fatal, que era esse ano, para determinar, determinando...
determinadas dimensões, o prazo fatal é agora e vai procrastinando no tempo.
Só que, já, o prazo fatal deste ano, já foi prorrogado. Tá? E mais, e aí, todo
mundo quer ganhar dinheiro. Então, eu já tenho uma série, eu já recebi gente, na
minha procuradoria, que vieram integrar o imóvel pro INCRA. Porque, “eu não
tenho dinheiro pra pagar, Dona”. “Mas, meu senhor, isso não é caro”. Fazendo
uma análise, vamos imaginar, nesse caso, que eu passei a mão no telefone, e
liguei pro meu agrônomo, e disse: “me diz uma coisa, um imóvel dessa
dimensão, quanto seria pra fazer um georeferenciamento?”. Ele disse: “olha,
doutora, uns 5 mil reais”. Eles tavam cobrando 100 mil reais pro pessoal. Então,
sabe como é que é? Então, já virou um caos danado. Vai resolver muito
problema? Vai. Este é um fato pra formação territorial.
Um outro fato pra nossa questão agrária: a falta de uma política agrícola
condizente. Então, muitas propriedades são grandes extensões de terras, isso é
inegável, que estão... não estão cumprindo a sua função social. Têm grande
concentração fundiária. Se elas cumprissem a sua função social, elas gerariam
empregos, gerariam arrendamento, gerariam um série de fatores que inibiriam a
pressão social que você tem. Mas elas não cumprem a função social por “N”
motivos. Inclusive, uma falta de política agrícola por anos e anos e anos e anos
no país. Bom, então, o que que eu tenho agora? Tenho uma pressão social. Eu
não posso mais dizer que o filho do agricultor gaúcho, saiu em busca de terra
para si, por causa da micro propriedade, ou do minifúndio, lá no Rio Grande do
Sul. Esse era o meu primeiro perfil de INCRA. Quem era o meu Sem-Terra? Era
o filho do produtor, era o produtor, cuja propriedade não tinha dimensões, ou ele
não tinha mais terra. Hoje o meu... a maioria da minha clientela, nos termos de
Movimento Sem-Terra, e outros movimentos, é uma última opção de trabalho.
Com dignidade. Então, eu tenho um movimento migratório às avessas. Eu tenho
muita gente na Zona Rural, mas eu tenho muita gente que é filho, ou neto, ou
bisneto, daquele que migrou pra Zona Urbana. Que foi o metalúrgico, ou o filho
foi contador, ou neto é um desempregado. E a opção que ele tem é voltar pra
Zona Rural. Porque é o maior programa de capacitação humana, ainda é a
71
Reforma Agrária no Brasil. Ele é uma grande solução pra vida dele. Então você
tem problemas de ordem social, e problemas de ordem espacial, física, que é o
problema fundiário em si. Questão da falta, total, de Regularização dos nossos
imóveis, por aí.
E Você descreveu muito bem essa ausência de um controle do Estado, no seu
território. Eu queria que você me falasse um pouco sobre, ainda dentro deste
contexto do problema agrário brasileiro, dos reflexos da estrutura agrária para o
meio urbano. E daí, numa terceira etapa, nós entraríamos aí nessa questão dos
conflitos fundiários, hoje, e do aparecimento dos Sem-Terra, e dos movimentos
sociais.
E Quais os reflexos da questão agrária na área urbana?
MC Se você olhar pra qualquer lugar, que a gente se vire dentro da Zona Urbana,
não há nada aqui que não venha da Zona Rural. Então, da roupa que a gente
usa, que vem do bicho da seda, da calça jeans, que você tem o algodão do
índigo, do sapato que tem o solado feito de borracha artificial e borracha natural -
não há nada, na Zona Rural, que não tenha reflexo na Zona Urbana. A Zona
Urbana não vive sem a Zona Rural. Eu posso ter uma população,
majoritariamente urbana hoje, mas ela sobrevive graças à “Mimosa” que tá lá no
campo. Eu digo pros meus alunos: “o leite não dá na caixinha, o chopp não dá no
barril, né, e frango não dá na gandula do supermercado”! Eu só tenho uma
socialidade urbana boa, produtora, porque eu tenho uma Zona Rural que a
sustenta. Portanto, qualquer desequilíbrio dessa Zona Rural, gera efeitos
devastadores pra Zona Urbana. O êxodo rural de décadas passadas, é fruto
disso. Se você der um pulo, por exemplo, vamos centrar na França, que tá com
sérios problemas hoje: 3% da população francesa faz umas das melhores
agriculturas do mundo. Mas quando aquele caboclo francês diz assim: “Ah, vou
subir o preço não sei do quê”, e ele foi nos carneiros, na avenida Champs
Elisées, a França pára. Por quê? Porque ele precisa do cara do campo, e ele não
quer o cara da cidade. Enquanto o cara está na França, enquanto o cidadão está
no campo, eles dá fonte de subsistência pro cidadão da Zona Urbana. E se esse
cidadão da Zona Rural vier pra Zona Urbana, ele vai ter que dividir o que ele tem
de escola, de saúde pública, de ensino, de habitação, de transporte, etc, com o
cidadão que tá na Zona Rural. Então, você quando fala em grandes cidades,
enormes como São Paulo, você tá falando de um inchaço populacional. Isso não
é cidade desenvolvida. Isso daqui é um caos! Você pega a Zona Leste inteira,
90% deles são de origem migratória! Porque perderam as suas condições na
72
Zona Rural. As duas senhoras que trabalham na casa da minha mãe, com 50, 50
e poucos anos, o pai é um sitiante, razoavelmente com uma boa extensão de
terra, no interior da Bahia! Mas ele não tem a mínima... Sabe o que a gente faz?
A gente manda comida pra ele! Porque ele não tem como plantar! Mas como que
ele não tem como plantar? Porque não tem condições. Então falta, realmente,
política... Falta não. No papel, elas tão aí. Falta executoriedade, efetividade,
políticas públicas para a agricultura e para redimensionamento de espaços
físicos ociosos. E isso é um fato importante.
Outro fato importante, da falta de um controle maior de Estado, é que a gente
reduziu tanto a máquina o Estado, na virada do governo militar pro governo civil,
a gente tentou reduzir tanto - e o fenômeno da privatizações, etc. – que o Estado
se encolheu tanto, que nós não temos mais Estado. No redimensionamento do
Estado totalitário, nós perdemos o próprio Estado. Então, hoje, isso é uma
verdade. Hoje eu tenho situações, e que por questões de uma “ata” de uma
democracia, que não é a verdadeira democracia que se almeja, mas pela
alegação da democracia, o Estado não mais consegue interferir e agir como
deveria agir. Você que ver um problema fatal, que eu tenho? Existe uma Medida
Provisória... Não, mentira, desculpa. Não é Medida Provisória. Existe uma... um
parecer da Advocacia Geral da União, aprovado pelo presidente, então, o
Fernando Henrique, esse parecer foi publicado no Diário Oficial e tem força de
inibir a atuação do Poder Executivo. Quem? O INCRA. A lei está revogada? Não.
A lei está em vigor. O INCRA pode atuar fiscalizando a questão de imóvel rural
por pessoa jurídica estrangeira? Não. Então, meu amigo, se você é um
estrangeiro pessoa física, que comprove três hectares aqui em São Paulo, você
tem que passar por toda aquela via crucis, que é o processo administrativo. O
que não é difícil. Que é fácil. Mas você tem que fazer isso, para poder adquirir
esse imóvel rural. Você tem que ter uma prévia autorização do governo federal.
Mas se você é pessoa jurídica, (???) não sei em que buraco nesse mundo, você
compra livremente! E eu não tenho mais controle sobre isso. Por quê? Porque
tem esse parecer que inibe a atuação do INCRA. Tá? Então você hoje tem o
Estado, que de alguma forma, ao meu ver, está afastado disso, que é um bem,
que serve de desenvolvimento nacional, e de estratégia de defesa nacional, que
é o imóvel rural.
E Esse problema agrário tem alguma ligação direta com o desemprego no meio
urbano?
73
MC Eu acho que hoje tem. Eu acho que hoje está intimamente ligado. É o êxodo rural
às avessas, é o êxodo urbano. Você, quando observa os questionários
respondidos pelos candidatos, na forma da Lei 8.629, você vê, assim, às vezes
até por ingenuidade, assim: “me diz uma coisa? O senhor... mora na Zona
Rural?”, porque ele tem que ter vocação, tem todo aquele... 8.629, de 93, como o
Estatuto da Terra já determinava anteriormente, você tem uma vocação prevista
em lei, quem é que pode ser assentado. Em primeiro lugar, há uma preferência
do desapropriado no seu próprio lote; depois posseiros, arrendatários e
trabalhadores rurais do imóvel; as mesmas figuras dos imóveis circunvizinhos; os
pequenos proprietários cujo imóvel não atinge a dimensão do ponto de equilíbrio
econômico, etc, etc. E depois, o cara que tá na estrada. Ele é o último, dessa
história. Então quando você começa a fazer os questionários, pra colocar as
pessoas na ordem de preferência que a lei determina, umas das questões mais
comuns é perguntar: “me diz uma coisa, o senhor tá na Zona Rural?”. “Ah, to”. “O
senhor sabe...?”. “Ah, sei”. “O senhor sabe mexer com a enxada? Olha, a vida lá
é difícil. O senhor sabe?”. “Ah, sei, claro que sei”. “Me diz uma coisa, quantos
anos o senhor tem?”. Mesmo que na ficha... “Ah, eu tenho 26 anos”. “Ah, sei. E o
senhor morava aonde?”. “Ah, eu morava em Santo André, em São Bernardo,
Votuporanga, sei lá o quê”. “Ah, sei, sei. E o que o senhor fazia lá?”. “Ah, eu perdi
o emprego, então por isso...” (risos). Ele tem 26 anos. Há 2 tá na... tá na... vamos
dizer, tá na lona, como eles dizem. Mas a grande maioria perdeu a vocação
agrícola, porque eles são filhos ou netos de população urbana. Tem pessoas que
vivem na Zona Rural? Tem muitas. Não to dizendo que não tem. Mas você tem
um contingente enorme de pessoas da Zona Urbana, que vão pra Zona Rural.
Então, daí você tem um outro problema: Eles tem direito? Claro que eles tem
direito. Não to negando direito a eles. Mas o que eu to dizendo é que você tem
que treiná-los com mais eficiência. E aí, nos últimos anos, o Estado – não vou
dizer que abandonou, mas não pode atender aos assentados como a lei
determina aquilo. Então, muitos dos assentamentos, entre aspas, quase que
foram abandonados. E aí, você não fez a Reforma Agrária, certo? Você distribuiu
terra e disse “dana-se”! Aí você não fez Reforma Agrária. Reforma Agrária é você
trazer esse cara... Você só faz – é isso que eu dizia uma vez ao Presidente do
INCRA – “você não vai fazer Reforma Agrária, no governo Lula. Você vai
continuar no processo, e vai deixar outro pra alguém fazer”. Porque é um
processo contínuo!
74
E Estamos assistindo, já, há cerca de 10 anos, 15 anos, semanalmente, inclusive,
ou mensalmente, na imprensa, as notícias de conflitos agrários, ocupações de
terra. Qual a razão, ou como é que você vê essa intensificação desses conflitos,
nesses últimos 10 anos, ou 15 anos?
MC Eu acho que é uma... to falando francamente. Tá? Dois pontos: Um, é uma falta
de sensação que pelos meios e legítimos e pacíficos, as coisas se resolvem. Faz
25 anos, 30 anos, que o Movimento Sem-Terra - dando esse nome a todos os
movimentos que existem, e que são vários. Tá? Não só o MST, como o...
E Exato.
MC Há quantos anos esses caras fazem planos, etc? Isso é um fato. Dois: A
manipulação de imagem. Então, eu faço pressão, e assim eu consigo alguma
coisa. É claro, foi assim que eu aprendi. Então, eu faço pressão. E neste quadro
de envolvidos, nesses movimentos, você tem gente... que nós sabemos que
ganha diária pra fazer isso. Tem gente que não tem nada a ver, que é
arregimentado pra fazer, que a gente chama de “soldado do movimento”. Certo?
E esta figura, e neste meio, além de tudo, tem gente infiltrada pra fazer bagunça.
E pra desacreditar o movimento. E o que é pior, nesse último congresso da FAO,
agora, em Porto Alegre, agora em outubro, eu ouvi, de viva voz, de... dizerem –
eu não tenho comprovação disso – de dizerem que infiltrados no movimento,
você tem figuras... é... Eles tão com muito medo, porque dentro do movimento, tá
entrando todo tipo de bandido, quadrilha, tráfico, etc. Então, eles tão muito
assustados. De usar o movimento legítimo, pra este fim. E isso, o que que
acontece? Você vai contar que hoje foi um dia maravilhoso, que não aconteceu
nenhum crime dentro do jornal? Não. O que que vende? A Dona Maricotinha, lá
do fim do mundo, bateu com o martelo na cabeça de alguém. Isso vende
horrores! Então, a dimensão da notícia é enorme, né? E, algumas coisas, e aí vai
muito – é lógico, não pertenço ao movimento, mas eu vejo do lado de fora –
algumas coisas que são radicalizações. Eu não sei se por falta de esperança, por
dogma, ou... fincar pé, eu não sei o que é. São algumas radicalizações. Nós
somos – no meu tempo era assim – o candidato, ele era contra o pecuarista.
“Mas o senhor não come carne?” “Como”. “Então o senhor é contra o pecuarista
por quê? Porque ele é pecuarista, ou porque ele não cumpre a função social?
São duas coisas diferentes!”. E a questão não tinha resposta. Hoje, eu vejo: “Eu
sou contra o agro-business”. Por quê? Porque eu sou contra? Tá, o agro-
business... Nós temos espaço suficiente pra ter agricultura de agro-business, eu
tenho espaço suficiente pra ter agricultura familiar. Eu acho que as duas
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empresas se completam. Uma não pode viver sem a outra. Porque ninguém
pode, em sã consciência, pensar que vai plantar soja, pra exportação, numa
propriedade familiar. Se eles tiverem um monte de propriedades familiares, onde
eles fazem um cultivo ultra-extensivo, uma empresa em cima deles, chamada
Cooperativa, Consórcio, Associação, empresa “X”, seja lá o que for, aí eu posso
dizer que você vai concorrer no mercado. Mas há mais de 10 anos, eles pensam
assim, a propriedade familiar, em si, é uma utopia falida. Se ela não se agrega à
outra, e nisso, nós não temos uma entidade maior, uma empresa, com o nome
que se queira dar, a forma societária que se queira dar, eles não sobrevivem! É
lindo, mas não sobrevivem! Eu vou plantar feijão? Eu tenho sítio! Você acha que
eu vou plantar feijão? Pra comer o feijão que eu planto? É muito mais caro do
que eu cruzar a rua e ir no supermercado! Então, a economia de escala é uma
realidade. Então, essa coisa que é bonita, que é utópica, não tem condição. Você
precisa trabalhar no sentido de quê? Você vai ter atividades produtivas que
exigem - ou seja, eles chamam de agro-business, de uma maneira geral – e
atividade produtivas que exigem a propriedade familiar. Como hortifrutigranjeiros,
etc. Exigem as duas coisas que podem exigir. “Ah, eu sou contra”. Contra por
quê? E aí, quando você pergunta o porquê, a pessoa não dá resposta.
E Voltando ao problema agrário brasileiro. Você acha que uma política pública, de
Estado, seria capaz de resolver e de redimensionar a estrutura agrária brasileira,
que pudesse responder as demandas sociais urbanas e rurais?
MC Eu acho que sim. Só que nós temos uma política pública. O que nós não temos é
a efetivação dela. Política pública, nós temos tudo! Nós não temos uma política,
mas tem definição do que seja política agrícola! Tem definição constitucional do
que seja política agrária! Como nós já temos na lei, temos que cumprir. Tem
coisa pior, do que hoje, ter um projeto que quer revogar o Estatuto da Terra?
Quando o mundo inteiro adotou a figura do módulo rural, criada, essa foi a
grande sacada - a coisa mais importante do Estatuto da Terra é a criação da
figura, do módulo rural. Essa é a grande invenção brasileira. Que foi adotada, a
partir daí, em todo o mundo. Aí, como foi adotada, nós começamos a
descaracterizar o módulo rural e criamos: o Módulo Fiscal, o Módulo de
Exploração Indefinida, - e o Módulo Rural? Esqueça dele! - a Fração Mínima de
Parcelamento... Que é uma contradição! Se o Módulo Rural é a área mínima
necessária para a subsistência de uma família, porque que eu posso reduzir a
quantidades inferiores, que é a Fração Mínima de Parcelamento? “Ué, e daí não
tem condição legal de subsistência”. “Ah, mas tá dentro da Fração, pode”. Ué?
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Dentro da própria lei, você cria contradições. E daí você, pra completar, você tem
projetos de lei que quer acabar com o Módulo Rural. Quando esse projeto só
devia acabar com as outras figuras. Aquilo que foi invenção brasileira, que foi
criação... Então, o que que acontece? O que falta não é lei, não é política. A
política, tá escrito, a política agrícola “é”, tá na constituição – a política agrária “é”,
tá na constituição. Falta efetivação dessas políticas públicas. Como? Pelo
momento, pra começar: uma máquina que funcione. Não uma máquina capenga,
que não funciona. E hoje, tá muito melhor. A partir do governo Collor é que caiu
brutalmente. Já no governo Sarney foi, no mínimo, um desmanche fantástico. A
biblioteca agrária, que eu tinha dentro do INCRA, foi vendida pro jornal velho, por
ordem do senhor Collor de Mello. O que a gente conseguiu “quase que
esconder”, a gente conseguiu esconder. Mas é o mínimo do que tinha lá dentro.
Uma biblioteca tombada pelo patrimônio.
E Então, do ponto de vista legal, da legislação, nós temos instrumentos?
MC Eu acho que nós temos. Temos. Eu tenho uma grande preocupação do Estatuto
de Terra ser revogado, pelo projeto do Chico Graziano. Tá? Que acaba... que
tinha um embate, com ele, na Sociedade Nacional da Agricultura, uma vez, foi
hilário, eu fui convidada pra falar sobre a reforma do Estatuto. E eu fui e sentei.
E o Chico Graziano, inclusive, foi no mesmo avião, sentamos do lado, e eu não
sabia quem era o... (risos) Aí, “não, porque vamos acabar com o Módulo Rural”.
Eu subi na mesa, quase! (Risos) “Como, acabar com o Módulo Rural? Tem que
acabar com o resto! Não tem cabimento acabar”. A legislação é boa, é claro que
algumas coisas precisam ser atualizadas. A forma de... formação desses
assentamentos, de cima pra baixo, que já não se faz mais com aquela... Tira
aquela cooperativa integral de Reforma Agrária. Aquilo pode ser utilizado, mas
desde que haja... que venha do seio do grupo. Então, quando nós tínhamos os
departamentos de Associativismo, de Cooperativismo, que a gente fomentava
essas estruturas. Mas é a lei que faz, e é a lei que deve ser cumprida. O que não
pode, o que não pode é Medida Provisória ir atravessando essa lei, rompendo
tudo e todos. Você pega, na ação de desapropriação, e você fala que para
fiscalizar o imóvel, que não cumpre a função social, isso é poder de polícia, do
Estado. Você tem que notificar o cara, com tantos dias de antecedência, etc.
Você não notifica o botequim da esquina, quando você, membro da fiscalização
sanitária veio fazer... dar um flagra aí, ou não? Claro que não! Seu poder de
polícia está exatamente nisso. De você chegar e constatar a fraude do cidadão.
Por que que eu não... por que que eu não tenho de notificar o botequim da
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esquina, e chega a fiscalização sanitária e fecha, atua e multa e eu tenho de
notificar o proprietário que descumpre a função social? Isso veio como uma
Medida Provisória atravessar o direito. Então, por melhor que a gente tenha na
lei, elas, ainda por cima, estão sendo retalhadas e recortadas pelo poder da
polícia. Tem todo... Interessa, né? Cada um pelo seu.
E Ainda no Módulo Rural, a descrição exata do que é um Módulo Rural está na
legislação?
MC Está, está. Está na lei. Módulo Rural, artigo 4, inciso 1, no Estatuto da Terra.
Então ele diz assim: a propriedade familiar é aquela que supre as necessidades –
resumindo, né – as necessidades sócio-econômicas de um produtor e sua
família. Módulo Rural é... o inciso assina. Ele define, Módulo Rural, como sendo o
conceito de propriedade familiar.
E Certo. O INCRA tem uma independência dentro da estrutura organizativa do
Estado?
MC O INCRA é uma autarquia federal, hoje vinculada ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário, que integra a Presidência da República. Ele já foi uma
secretaria especial, ou, já foi, perdão, uma autarquia especial, vinculada
diretamente à Presidência da República. Isso em tempos de governo militar, eu
não me lembro qual. Por muitos anos, nós temos uma ligação direta com o
gabinete da república. Figueiredo, Geisel, eu não tenho certeza. Figueiredo com
certeza. Então, ele é uma autarquia, ele tem patrimônio próprio, tem gestão de
recursos próprios. Não tem mais representação judicial própria. Por quê? Porque
na Constituição houve a agregação das procuradorias. Então, hoje a gente tem
Advocacia Geral da União. E eu sou egressa da procuradoria do INCRA, e me
sinto procuradora do INCRA. Só que hoje a gente é uma procuradoria
especializada a serviço do INCRA. Então, a advocacia Geral da União faz a
defesa de todas as suas autarquias, também. Mas algumas procuradorias têm
localização na própria autarquia. O INSS, o IBAMA, o INCRA, o CAD... Eles tem
procuradorias chamadas “especializadas”. Então, graças a Deus, não entrou na
vala comum da defesa da União, que aí, qualquer procuradora, qualquer lugar.
Porque é uma matéria extremamente especializada. E eu acho que, a bem
verdade, porque ninguém quer botar a mão em certas caixinhas.
E O INCRA hoje tem estrutura suficiente pra desenvolver a política pública
necessária pra fazer a Reforma Agrária?
MC Eu acho que não.
E Por quê?
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MC Porque falta, falta... Eu acho que melhorou muito, nesses 3, 4 anos, tá? Mas eu
fiquei 9 anos fora do INCRA. E eu me assustei muito, nesses 9 anos, eu fui me
assustando dia-a-dia. E voltei ao INCRA, em 93, e, paulatinamente, falando
apenas da minha superintendência, a gente tem visto um crescimento da
produtividade. Agora falta: mão-de-obra... – e melhorou muito – falta mão-de-
obra, falta mão-de-obra especializada, as próprias procuradorias do INCRA são
procuradores recém-formados, ou recém-concursados, nos últimos 7 anos, pra
cá – muito capacitados, mas que vêem a questão agrária como matéria de direito
administrativo. Então, não há formação. E por que não há formação? Não há
formação porque na escola não se ensina. Essa é uma escola onde o curso de
Direito Agrário era matéria obrigatória, até 3, 4 anos atrás, quando aquela
portaria do MEC jogou essa matéria como matéria optativa. Então, pela portaria
do MEC, ela deixou de ser obrigatória. Se ela é obrigatória, como era, eu tinha...
2 e 2, 4... eu tinha uma média de mil alunos, por ano, e que saía daqui com os
conceitos mínimos necessários de Direito Agrário. Hoje, por ano, devem sair
uns... 200. Isso reflete na formação do advogado, na formação do juiz, na
formação do Ministério Público, assim por diante. Há um total desconhecimento
da legislação agrária - que não é apenas a lei de Reforma Agrária. Essa
vinculação de Direito Agrário com o Direito da Reforma Agrária, é
equivocadíssima. Não é apenas isso. Isso é umas das matérias.
E Vamos tentar entrar um pouco na legislação que estabelece a Reforma Agrária.
Existe uma discussão sobre se Reforma Agrária se faz desapropriando
propriedade que não cumprem a função social, ou propriedades que são
improdutivas. Como que você isso?
MC É que não cumprem a função social. Artigo quinto da constituição - pra mim isso
é claríssimo! Eu não tenho nenhum problema com isso. Só que eu sou voto
vencido. Quando você fala - falando já, agora, em termos de constituição -
quando você fala que “recepcionou o dispositivo do Estatuto da Terra”; “O imóvel
que não cumpre a função social é passível de desapropriação”. Qual é o imóvel
que não cumpre a função social? Aquele que não atende, ao mesmo tempo, os 4
parâmetros: produtividade, meio ambiente, trabalho – relações de trabalho, que
se adote as normas de trabalho, enfim – e trazer o bem-estar ao produtor rural ou
rurícola, de uma maneira geral. Esses são os 4 critérios, que devem ser
observados, ao mesmo tempo. Se faltar 1, não cumpre a função social. Seja
porque ele detona o meio ambiente, seja porque ele tem trabalho escravo, seja
porque ele não cumpre outras normas, de toda forma de trabalho - que pode ser,
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não precisa ser trabalho assalariado, pode ser arrendamento, parceria, etc. - ou
seja por causa da produtividade. Acontece que, tradicionalmente, especialmente
a partir dos governos civis, onde se deixou o foco da colonização e se assumiu o
foco da desapropriação, só – o próprio INCRA, ele só pesquisava o imóvel que
não era produtivo. Como se produtivo fosse igual ao descumprimento da função
social. Tenho colegas, que têm teses, sobre o descumprimento da função
ambiental. Mas isso é simplesmente abandonado. Eu tinha um embate com uma
juíza federal, alguns anos atrás, num congresso em Salto no Rio Grande do
Norte, eu embati - de uma maneira civilizada. Eu na mesa e ela dizendo: “De jeito
nenhum!”. Porque é um artigo, lá no final da Constituição, que diz: “o imóvel
produtivo não será desapropriado”. Ora, você não pode fazer uma leitura disso
como um dos únicos dos parâmetros, que é a produtividade nacional. Eu só
posso entender esse imóvel produtivo aqui em baixo, não como aquele que tem
produtividade nacional, mas como aquele que cumpre a função social em toda a
sua extensão. Eu não posso falar em desenvolvimento, eu não posso falar em
desenvolvimento sustentável de um imóvel rural, sem que ele atenda as normas
do trabalho, que é o meio ambiente do trabalho; que ele atenda as normas do
meio ambiente natural, que é na proteção chamada meio ambiente, aquela que
nós mais conhecemos; e a produtividade. Produtividade, excesso de produção,
pode ser um imóvel que não cumpre a função social. Porque eu vou lá e
barranco, até a beirada do rio, e planto até lá. Uai, cadê a minha mata ciliar?
Produtividade é 130. Cadê o meio ambiente? Ele não é um imóvel produtivo. Tá?
Ele descumpre a função social. Porque ela exige os 4 parâmetros. Então, essa
visão tem que ser notificada. O próprio INCRA, recentemente, nesses anos mais
recentes - tem inclusive um trabalho muito bom, de dois colegas de Brasília, que
fizeram recentemente, da função social, ambiental, como razão do
descumprimento da função social. Do imóvel passível de ser desapropriado. Eu
tenho uma sentença - não me lembro agora da onde, mas sem dúvida dentro do
Estado de São Paulo - de primeira instância, que o juiz dá, ao condenar o imóvel
por descumprir as normas ambientais, determina que seja desapropriado por fins
de Reforma Agrária. Tá em grau de recurso, com efeito suspensivo, mas a gente
tá esperando pra ver o que que faz. Então, isso pra mim, eu não posso entender
produtividade, aqui do artigo 185, se eu não me engano, sem entender os demais
parâmetros. Produção Racional é uma coisa, produtividade aqui em baixo é
outra.
E Por que o INCRA...
80
MC Mas não é isso que a justiça federal entende, tá? Não é isso. Ainda, nós estamos
começando a questionar isso judicialmente.
E Por que o INCRA, supostamente tem - a partir de 88, mesmo anteriormente a
isso - utiliza o critério apenas da improdutividade?
MC Porque era o mais... mais visível! Que gerava maior visibilidade!
E Porque era mais fácil?
MC Não, não é mais fácil. Porque... questionamento ambiental só vem depois! O
questionamento ambiental... Porque... fazer queimada não é crime ambiental. É
crime contra a política agrícola, desde o tempo da Coroa! E ninguém fala isso! A
queimada passou a ser uma coisa preocupante, depois de 88, depois das novas
legislações ambientais. Porque o Direito Ambiental teve um boom tão grande,
que passou a ser visto como uma coisa muito importante. Antes, a questão
ambiental, era renegada! A segundo plano, terceiro plano, quinto plano. E o que
que era mais visível? O que que era os primeiros imóveis a serem
desapropriados? Os imóveis que eram improdutivos. Porque eles eram
visivelmente fáceis de serem detectados. Pelo INCRA, pelos movimentos, enfim.
Pelo próprio cadastro...
E Existe uma tentativa, ou um trabalho para resgatar o conceito da função social
para desapropriação, em detrimento do conceito da improdutividade e
produtividade?
MC Hoje tem, hoje tem. Hoje tem. A gente tem debatido muito sobre isso, dentro da
própria procuradoria do Estado de São Paulo, e já com colegas de Brasília. Tem
um encarte novo... O Paulo Sérgio Migues, há muitos anos, fala isso, há mais de
15 anos, fala isso, aqui em São Paulo. E hoje tem até, nós temos até um encarte,
publicado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, onde há um trabalho de
dois colegas de Brasília falando da possibilidade disso. E há toda uma doutrina
se voltando pra isso, já há uma certa conscientização do Ministério Público
Federal – e isso é muito importante. Porque, quando eles chegam e condenam,
sendo os exploradores do meio ambiente, eles chegam e conseguem condenar o
imóvel rural. Bom, condenou e daí, o que faz? Puxa, olha, tem uma sanção
constitucional, aqui. Ele passível de descumprimento da função social. Então,
isso tem sido um grande parceiro do cumprimento da função social. Do Ministério
Público Federal. De uma maneira geral.
E Quais os critérios pra dizer quando um imóvel é improdutivo?
MC Esso é um conceito que vem da Ciência Agronômica, e que, na verdade, de
maneira simples, eu posso dizer o seguinte: existe um ponto de equilíbrio entre o
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espaço físico que eu posso produzir. Por exemplo, dentro dessa sala em que nós
estamos, dá pra produzir bicho da seda? Dá, puxa vida! Dá bastante. Eu ponho
umas certas mesas aí, os casulos ficam aí, eu jogo folhas de amoreira, e aquilo
se desenvolve e eu entrego pra qualquer outra empresa que manipula o casulo e
pronto. Mas sem dúvida, dentro dessa sala eu não crio um boi. Portanto existe,
dentro da Ciência Técnica Agronômica, eu tenho recomendações que vão se
legalizando, para dizer que dentro desse espaço físico eu posso ter tanto
animais, e as regras gerais: bom, depende do que? Depende da região que eles
estão, depende do tipo de trato de animal, se o animal de... confinado, semi-
confinado, solto no pasto, tudo isso dá o nosso – voltamos aí, o Módulo Rural.
Então, esse cumprimento, ou não, da função social, no critério de produtividade,
está ligado a essa idéia: que nesse espaço físico, nesse estado, que tem essa
expectativa de produção, ele atende ou não, o perfil dele está enquadrado ou
não. No Estado, como São Paulo, existe produtividade, que são muito elevados.
Né? Por quê? Porque eu tenho cultura com alta tecnologia, eu tenho condições
de culturas grandes, grandes culturas, com grandes produtividades, eu tenho
portos pra escoamento, aeroportos pra escoamento da produção, e assim por
diante. Então é um Estado cujo perfil do produtor tem um perfil muito grande,
muito próximo do ótimo. E que isso, inclusive, mexe com o valor dos hectares
que do Módulo, lá atrás. Sem dúvida nenhuma, dependendo do tipo de produção
que ele tem, ou da região que ele está, e da dimensão do seu imóvel, ele terá
mais ou menos prosperidade, de acordo... para ser considerado produtivo, ou
não. Então, eu volto dentro dessa sala, um boi é altamente improdutivo. Que dirá
uma manada. Mas num espaço territorial de alguns hectares, ou de muitos
hectares, vão caber tantos animais, tantas cabeças em pé. Se for confinado, vai
caber muito mais. Se for semi-confinado, um tanto. Se for solto, muito menos.
Mas essa Ciência Agronômica nos dá esses dados. E quando o cidadão está, ou
não, é ou não produtivo, é porque ele atingiu aos índices de 100% do GUT e 80%
do grau da efetiva exploração.
E Qual é o profissional que assina o levantamento pra dizer se uma propriedade é
produtiva ou não?
MC Os agrônomos treinados para tal. Hoje eles são chamados Peritos Agrários
Federais.
E Eles são funcionários públicos?
MC Eles são funcionários públicos. O INCRA tem um quadro, na visão técnica de
agrônomos, agrimensores, engenheiros florestais – aqui em São Paulo, hoje, não
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tem engenheiro florestal, se eu me lembro, mas que eu me lembre não tem. Mas
eles são formados, são pessoas capacitadíssimas pra exercer essas atividades.
Tá? E eu posso, mediante convênio, conforme a constituição me permite,
celebrar isso com outras entidades, especialmente se forem estaduais. Tá? Para
a celebração, para a efetivação dessas perícias. Mas eles não fazem de acordo
com a vontade deles. Eles também têm essas tabelas, que normalmente são
editados pelo Instituto, no Estado de São Paulo, Instituto Agronômico de
Campinas, IMBRAPE, etc, que dizem estes valores. Então, quando eu faço uma
perícia para a avaliação de um imóvel, esses dados não tá de acordo com a
cabeça do agrônomo, e nem do INCRA. Ele se utiliza de uma série de dados
oficiais para a análise.
E A imprensa tem noticiado uma discussão sobre a atualização dos índices da
produtividade. O que significa isso?
MC Sim. Os índices de produtividade adotados por tabela e aprovados por normas
internas, normas legais, eles têm como base o censo de 1970. E o censo de 70,
a publicação de 70 está... tem como lastro a década de 70. Então, a tecnologia
avançou bastante – a tecnologia, ela lida os animais, e na agricultura, ela
avançou muito mais – onde eu antes, eu tinha uma ou duas safras, hoje eu posso
ter cinco, seis. E, portanto, se eu não tenho esse cinco, seis e tenho só uma e
duas, eu, em tese, em termos atuais, eu não sou produtivo. Mas como as
tabelas, as atualizações, não foram feitas até hoje, basta ter uma ou duas safras,
pra eu ser considerado produtivo. Então, o que é preciso é voltar a isso. Voltar a
estes índices e atualizá-los. Se atualizados, é obvio que a produtividade geral
dos imóveis vai cair mais ainda. Tá? Isso em alguns imóveis, tem imóveis que
são altamente produtivos, né? Mas aquele que tá lá, usando o imóvel apenas
para... como reserva de capital, ele vai ficar realmente frustrado. Não adianta ter
10 vacas, que dão 5 litros de leite... Uma vaca, a média no Brasil, parece que é
15 litros de leite. Isso é uma aberração! Você vai pra Holanda, a Holanda é do
tamanho de um ovo! Na Holanda, se você andar três passos mais depressa,
você sai do país. Uma vaca leiteira dá 60 litros de leite, dia, na Holanda. E aqui
no Brasil dá 15, por quê? Não tem cabimento! E falta. Aí, você também volta
naquela história de falta de política agrícola. Então, o agricultor, o agricultor, no
fim, também, ele é penalizado. O agricultor é penalizado. Não tem coisa pior, foi
uma das piores experiências que eu tive, foi encontrar um Liechteinstein - que é
um paiseco do tamanho de um ovo, que é, literalmente uma rua, um café, uma
montanha, e um bando de lojinha em baixo. Que é entre a Áustria e a Alemanha
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– entre a Suíça e a Alemanha. Eu tô tomando um sorvete, comprando uma
camiseta, “estive aqui e lembrei de você”, aquelas coisas básicas de turista.
Escuto uma voz, atrás de mim, e dentro da Áustria, como é bom ouvir gente falar
português. Eu me virei pra ele e disse assim: “Tá aqui passeando também?”. Ele
disse “não, eu trabalho aqui”. Eu disse “aonde?”. “Ah, Dona, eu sou produtor
rural. Eu perdi o meu sítio pro Banco do Brasil. Eu, e o grupo que veio comigo”.
Então, a cada – eu não me lembro, mais, o ciclo temporal, mas era assim – a
cada 5 anos, há um grupo de gaúchos que trabalha na produção de gado leiteiro
de Liechteinstein. Eu disse “mas aqui não cabe uma vaca”. Ele disse: “Mas o sítio
doou, o pessoal daqui é lá na Suíça ou na Alemanha”. (risos). Mas ele deixa o
Brasil – o que é uma coisa inacreditável! – e vai trabalhar lá! Depois ele volta, fica
30 anos aqui, e pode voltar. A mesma pessoa pode fazer isso. Nós estamos
exportando mão-de-obra! Porque o cidadão não tem condições! E ele era um
produtor rural efetivo. Quer dizer, aí não é falta de política agrária, é falta de
política agrícola também, que incendeia mais a falta de política agrária.
E Por que os índices não foram atualizados?
MC Eu acho que há muito interesse deles não serem atualizados. Fica extremamente
cômodo. Eu não sei se esse interesse se transforma numa ação inibitória à
atualização. Mas é lógico que é cômodo. Se eu sou proprietário remediado, se eu
utilizo mais aquilo como uma reserva de capital e mantenho um mascaramento
de produtividade, um índice atualizado vai fazer com que eu tenha de investir
muito mais.
E Qual é a tua avaliação da ação, da atuação do poder judiciário, no Programa
Nacional de Reforma Agrária?
MC Isso, o Lula outro dia até falou na televisão que ele acha que o Poder Judiciário
emperra, de alguma forma ele falou isso. Não é o Poder Judiciário. Eu não acho
que é o Poder Judiciário, e até eu e o presidente do INCRA estávamos
conversando isso. Não é “o” Poder Judiciário, isso eu falei até na FAU, outro dia.
A legislação permite você se utilizar de uma série de mecanismos. E o juiz só
tende a decidir, de acordo com que está na legislação. Então, eu volto de novo.
Eu tenho uma lei, que diz que eu posso vistoriar o imóvel, com poder de polícia,
pra verificar se ele cumpre ou não a função social. Vem uma Medida Provisória e
atravessa isso, que é a 2.173, se eu não me engano, e diz o seguinte: “ó, mas
pra fazer essa vistoria - que na verdade é o exercício do poder de polícia pra
fiscalizar, como pra fiscalizar qualquer coisa, inclusive o boteco aqui da esquina -
tem que avisar o cara com tantos dias de antecedência”. O que ele faz? Ele traz
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as vacas do vizinho e põe no imóvel dele. Ele tem... você dá chance ao cidadão,
de ele mascarar o seu imóvel. Então você dá chance a ele, de o quê? De entrar
com um pedido legal, pra que o imóvel não seja vistoriado. Pra entrar com uma
ação declaratória de produtividade. Pra entrar com um monte de coisa, de
medidas judiciais, previstas em lei. A que o juiz tem que receber! Ele não pode
não receber. Não o juiz... o juiz não senta em cima do processo. De dizer “eu
casso” - vamos imaginar uma situação, que eu desconheço. Mas ele não senta
no processo, engaveta o processo e diz “isso aqui eu não julgo”. Não é isso. Ele
tem mecanismos legais que permitem, hoje, você ter uma legislação – aquela
história do excessivo, aspas, uma democracia, que não é uma democracia,
porque ela torna o Estado mais... – não que eu seja contra a democracia, não é
isso que eu tô dizendo... Deu pra entender o que eu estou dizendo, né? Em que
a pessoa, você dá, você reduz o papel do Estado, no exercício dos próprios
ditames constitucionais. Então, você permite... Se eu digo assim: “eu vou
desapropriar”. A primeira coisa que o camarada faz: ele entra com uma ação
para que eu não tenha acesso ao Poder Judiciário. Eu tenho uma sentença do
Supremo Tribunal Federal, que inibia o INCRA a propor uma ação de
desapropriação. Ora, mas isso é acesso... inibir o acesso ao Poder Judiciário!
Como é que pode? Se é... não se pode inibir o acesso judiciário de ninguém! Que
é norma profissional. Daí, o cidadão entra com uma ação, um mandato de
segurança, pra que a gente não vá fazer a vistoria. A gente não faz. Daí ele entra
com um mandato de segurança contra o Presidente da República, quando já tá
em fase mais adiante, pra ele não declarar o imóvel passível de desapropriação.
Mas como? Isso é um ato privativo do Presidente da República! Mas ele tem o
mecanismo lá, no mandato dele. Depois ele entra, ou ainda, ele entra com ação
declaratória quando eu vou entrar com a ação de desapropriação. Com a ação
declaratória – há um equivoco aí de interpretação, mas é o que tá sendo
considerado – a ação declaratória de produtividade, na verdade, ela retira da
ação de desapropriação a sua fase instrumental. Por quê? Porque a fase
instrumental disso é provar que cumpre, ou não, a função social. Provar que é
produtivo, no melhor sentido da palavra, ou não. E o proprietário retira isto, e joga
dentro de uma ação declaratória de produtividade, que, por sinal, inibe a ação de
desapropriação. Só que é o seguinte: a ação de desapropriação tem critério
preferencial, e prejudicial, a todas as demais ações que versem sobre o imóvel.
Mas os tribunais entendem que não!
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E Aí nós temos, então, a partir desta última um problema de legislação, que abre
muita brecha jurídica?
MC Sem dúvida! Porque era o Decreto 554, de 79? Que falava... que era o primeiro
Decreto sobre fins de Reforma Agrária? O INCRA entrava com uma ação, o juiz
tem 48 horas determinava a “titulação” do imóvel, em nome do INCRA, e depois
dizia assim, pro desapropriado: “olha, o senhor vai contestar, se o senhor quiser”.
Bom, suponha - que é a grande discussão – mas se o INCRA estiver
desapropriando errado? Então, você tem mecanismos, na legislação, em vigor.
Se eu desapropriar errado – que isso pode, ele é passível – se eu desapropria
errado, a própria lei determina que eu vou pagar o cara em dobro, porque eu
tenho que pagar perdas e danos. É o Estado que age mal que é obrigado a
indenizar. Então, se eu desapropriei um imóvel que não era passível de ser
desapropriado, lá no final, essa desapropriação, que seria por interesse social,
para fins de Reforma Agrária, cujo pagamento é em títulos e dinheiro, ela vai se
transformar em uma desapropriação por interesse social, prevista na Lei 4.132.
Cujo pagamento é integral, à vista e em dinheiro! Mais perdas e danos. Então eu
tenho um mecanismo, eu já tenho um mecanismos, para sancionar o Estado –
mecanismos legais, legítimos – para sancionar o Estado, que venha,
eventualmente, a agir equivocadamente. E não emperrar a ação de
desapropriação, e criar uma ação de produtividade, que não tem fim! E o que é
pior: quantos milhões de reais não são depositados nas Caixas Econômicas, e
nas agências dos bancos, por esse interior afora, aguardando o término da ação
declaratória, que vai até o final, pra depois eu continuar ou não com a ação de
desapropriação? Quantos recursos públicos foram alocados, por essa agência –
porque pra eu entrar com essa ação de desapropriação, eu tenho que levar
dinheiro pra lá, eu tenho que fazer o depósito prévio. E eu faço o depósito prévio.
E essa ação fica parada. O que acontece com esse dinheiro? Tá parado. Bom, tá
parado, claro. Não tá perdido. Mas ele não tá alocado pra outra coisa. Inclusive
pra outra reforma agrária. Porque eu tenho um valor de orçamento, que acabou,
acabou!
E Na tua opinião, qual é o problema, então, para a efetivação da política pública de
Reforma Agrária?
MC Jesus, é muita coisa! É muita coisa. Primeiro: vontade. Capacitação profissional
efetiva. Que a gente já tem bastante, mas falta muito. Recuperar o órgão de
política fundiária – seja ele com o nome do INCRA, ou nome que queira dar. E,
efetivamente, uma legislação melhor e adequada. Porque a legislação, hoje, é
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uma colcha de retalhos. De retalhos. O Canotilho, aquele constitucionalista
português, ele diz uma coisa séria: a constituição, na verdade, ela é formada
pelos diversos atores sociais, que representam os diversos segmentos da
sociedade. Ninguém nega isso. Portanto eu tenho, no nosso assunto, aqui, um
ator, que é um representante daqueles que não têm terra, com o ator daqueles
que têm terra. E volta o ator daqueles que têm terra e produzem. Essas três
pessoas entram em choque. E o que precisa depois? É uma “equação” desses
interesses. O que acontece na constituição é que, quando chegou num – na
nossa constituição hoje – é que quando chegou num ponto da revisão do texto
constitucional, o Doutor Ulysses Guimarães, é ou vai ou não vai! Porque senão
nunca mais ia sair, aquela constituição. Então esses descompassos, essas
coisas marotas que tão sendo colocadas aqui e ali, criando todos esses obstas
que nós temos hoje que nós temos hoje, precisavam ser readequados! Isso é um
fato. Bom, como a gente não pode dizer que existe norma “constitucional” e
“inconstitucional”, aquele critério de propriedade produtiva tem que estar
adequado ao artigo 5°, que a cláusula pétrea. Aqui ele diz que o imóvel garante a
propriedade privada, desde que se cumpra a função social. É aquilo que vai... E
cumpre-se a função social quando atende aos quatro requisitos ao mesmo
tempo. Então, eu tenho problemas de legislação, problema de maior vontade,
problema de equipamento dos órgãos públicos, dos órgãos públicos que cuidam
da Reforma Agrária, tudo é necessário. E todos esses atores que estão brigando.
É claro que o proprietário tem direito de defender a sua propriedade privada.
Ninguém tá negando isso à ele. E tem todo direito. E ele tem todos os
mecanismos! Os mecanismos legais! Então, o poder judiciário decide ou não
dentro daquilo que é proposto a ele. Então, você tem a ação declaratória,
medidas incidentais, ação, desapropriação, o poder judiciário vai julgar! E isso
tem um tempo. E esse tempo é que transforma, essa ação, hoje, num calvário!
Tá? Precisa mudar a lei, adequar a lei à realidade... Precisa maior vontade
política de equipar, equipar, melhorar os equipamentos humano e não humano...
Revendo, então. Você tem que alterar a legislação, uma legislação mais
adequada à realidade, mais atualizada, menos conflitante, entre si. Que faça que
o Poder Judiciário tenha maior agilidade na tomada das decisões. Você tem que
equipar material humano e não-humano, os órgãos que cuidam da política
fundiária, sem dúvida nenhuma, isso é fundamental. Porque o INCRA foi
completamente desmontado. É uma coisa absurda, o que fizeram com essa
estrutura. E que, graças a Deus, nesses últimos 3 anos conseguiu, eu não sei
87
como, mas conseguiu ter um lastro maior. Tá? Isso é fundamental. Isso pra
mim... E, sem dúvida nenhuma, uma maior conscientização das necessidades de
uma política agrícola e agrária, condizentes com as nossas necessidades,
através de educação, desde a educação escolar, isso é fatal, tá. Então, o Luciano
Godoi, nesse mesmo evento que nós estávamos, na FAO, ele disse uma coisa
muito interessante: o direito agrário encolheu, nós últimos 20 anos. Quando ele
começou, quando ele começou a... terminando, aliás, o seu curso de Direito, e
que ele foi fazer pós-graduação em Direito Agrário, a gente tinha um quadro... o
próprio INCRA tinha um quadro, em São Paulo – falando de São Paulo, que eu
conheço – nós tínhamos um quadro de professores, doutores, de professores
titulados, com grande conhecimento em direito agrário... o Direito Agrário era
administrado em diversas faculdades do Brasil, e é de São Paulo, São Paulo
tinha cursos de doutorado em Direito Agrário, e ninguém sabe o que aconteceu
com ele. Tem professor catedrático que não recebe alunos de Direito Agrário.
Como você é doutor em direito, ele escolhe de outra base, e faz direito agrário.
Sabe, umas outras escolas abriram um curso de especialização e pós-
graduação, como Goiânia, como o Pará... Quase nada! Eles são uns verdadeiros
heróis. Então, o ensino está encolhendo. O juiz, hoje, formado, não tem a menor
idéia do que você fala. Por quê? Porque não aprende na escola! É claro que não!
Desapropriação, pra ele, é matéria de Direito Administrativo, e não de Direito
Agrário, que tem todo um contexto. E uma... merchandising, sabe? Eu acho que
falta, pra gente, muito de merchandising. As coisas boas, da política agrária, não
são levadas. Eu tenho um ex-aluno, que é meu... um aluno, que é estagiário
meu, lá, outro dia, em processo de assentamento, ele parou... chegou em mim e
disse assim: “Professora...!”. Por quê? Porque nós somos um bando de bandido!
O que que é visto no INCRA e o que é visto no Movimento Sem-Terra? O
Movimento Sem-Terra é o dono do INCRA, e é um bando de bandido. Todos
comunistas, vão comer criancinhas amanhã. E não é nada disso! Ele sentou,
fazendo relatórios pra mim, de projetos de assentamentos, virou e disse assim:
“Puxa, professora! Nós estamos pagando pra gente beber água potável!”. Porque
a gente abre poço, leva a... no assentamento se leva o extensionismo rural à
essas regiões. Então, o agrônomo vai ensinar como é que produz, o que produz,
abre-se poço, abre-se estrada, dá dinheiro pra construção de casa e etc. Nós
estamos, o que ele me disse, nós estamos dando dignidade a essa gente! Tem
gente que vai beber água, hoje, porque nós pagamos um poço, a abertura de um
poço artesiano! Nós estamos dando subsídios agrícolas, pra eles! Isso, não é
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levado pra ninguém. Isso não sai no jornal. Então, merchandising, ainda é um
negócio muito importante, que também resolve.
E Na tua opinião, o que é um assentamento de Reforma Agrária? Qual é o
conceito, e como deve ser, enfim, a partir do ponto de vista legal?
MC O assentamento é um caminho para essa consolidação da Reforma Agrária, que
como eu já disse, é a integração do homem ao sistema produtivo. Então, sorte
que um assentamento, nos termos da lei, ele deve trazer, em primeiro lugar,
atendendo às pessoas, que, por lei, tenham vocação para isso, lá na 8.629, que
seria o proprietário, até mesmo o proprietário desapropriado, a preferência da
escolha do primeiro lote; depois aos posseiros, empregados, enfim, do imóvel;
posseiros, empregados e outros colonos, de uma maneira geral, que estavam
nos demais imóveis; e assim a lei traz lá um elenco de preferência, e depois
desse elenco de preferência, uma segunda vocação que é as famílias mais
numerosas, com maior força de trabalho e maior experiência, dali, da agrária,
versus o que tem menor família, menor experiência, assim por diante. Então, tem
essa vocação legal. Uma vez adotado esses critérios, e escolhidos os
beneficiários desses assentamentos, que é o segundo passo dessa
desapropriação; uma vez lá instalados, através do INCRA, é feito, então, a
divisão em parcelas, ou lotes, como eles chamam - na verdade, o nome técnico é
“parcelas” - com estradas vicinais, com aberturas de poços artesianos, e outros
benefícios levados à Zona Rural, que são necessários. Projetos pra construção
de moradias, num primeiro momento moradias mais simples, depois, eles
mesmos podem melhorar isto. E, enfim, de uma maneira geral, quando você fala
em assentamento, você fala em colocar a pessoa na terra, e levar a ela aquilo
que é chamado os “benefícios de apoio”, para que ela tenha condições de
integrar o processo produtivo nacional. Então, o INCRA já teve todo um setor de
assistência, de extensionismo rural, onde englobavam psicólogos, pessoas...
assistentes sociais, técnicos de toda ordem, que faziam esse papel, inclusive de
como essas pessoas têm que se relacionar. Você coloca, às vezes, 400, 500
pessoas que nunca se viram. Que não tem o menor contato. Então, essa
integração dentre elas é muito importante. Tinham técnicos em sindicalismo,
técnicos em cooperativismo, tudo isso ia ao lado da primeira fase, que é a fase
da desapropriação, do retalhar a terra, e de “ó, esse lote é seu”. Não é só isso. O
assentamento, eu acho que é o momento mais importante: um assentamento
bem feito, com boa infra-estrutura, é a fase mais importante para que você
consiga atingir aquilo que a gente chama de Reforma Agrária. Que é integrar,
89
finalmente, modificar a estrutura da pendência, da posse da terra, e, mais do que
isso, integrar o cidadão ao processo produtivo. Porque, retalhar, entregar um lote
pra cada um, e continuar tudo num estado de miséria, isso não faz ninguém feliz.
Não é esse o contexto final. O INCRA já teve setores de cooperativismo, por
volta de 88 deixou de haver atividades, do INCRA, em cooperativismo. Existe o
Departamento Nacional de Cooperativismo, vinculado ao Ministério da
Agricultura, eu não sei, sinceramente, o que ele faz nesse papel. Mas a gente
tem tentado, até mesmo aqui dentro do INCRA, moldar ou incentivar os
assentados a se constituírem em cooperativas, que na verdade é uma grande
forma deles poderem colocar a sua produção no mercado. Porque ele não
produz só pra comer, isso é um primeiro momento, ele deve produzir para
integrar o mercado, para sobreviver com isso. Não subsistência, exclusivamente.
E Vamos entrar um pouco no caso da fazenda Timboré. Eu queria, inicialmente,
que você me dissesse quais as informações que você tem sobre aquele caso da
Fazenda Timboré, que iniciou-se em 1986, com o Decreto Presidencial,
considerando Área de Interesse Social pra fins de Reforma Agrária...
MC As informações que eu tenho não são diretas, posto que em 86 eu passei um ano
internada num hospital, por força de um acidente automobilístico na estrada, que
eu já comentei com você. Mas de qualquer modo, as informação são de que era
um imóvel, que foi dado como passível de desapropriação pra fins de reforma
agrária. Houve um Decreto Presidencial, esse Decreto foi revertido, já havia
assentados... Houve um seqüestro da área. Essas ações correram
paralelamente, houve a declaração de produtividade do imóvel. O imóvel foi
declarado produtivo. E a partir daí, são quase 20 anos, ou mais de 20 anos... é
20 anos, exatamente. A partir daí, criou-se um impasse. Por quê? Porque eu
tenho um imóvel que é produtivo, ou declarado produtivo pela justiça, em decisão
já com resultado julgado, e eu tenho um assentamento, literalmente, consolidado
há 20 anos. Então, o que fazer? Além disso, o proprietário entrou com uma ação
indenizatória, a que tem direito, e, por outro lado, não tem direito de pedir a
retomada do imóvel. Entendeu? Uma coisa, ou outra, né? Se não, ele tá tendo aí
um enriquecimento ilícito, né, um enriquecimento sem causa, em razão disso. Ou
se entrega o imóvel, ou se indeniza. Isso tem gerado uma série de perturbações,
com liminares, pedindo a desocupação imediata do imóvel, etc, etc, mas, o que
se deve fazer, sob o ponto de vista legal, é, sem dúvida, uma vez que houve a
decisão apresentada e julgada, que eu não vou questionar, mas um vez que ela
existe, é preciso indenizar. Se o imóvel cumprir a função social, segundo a
90
sentença, a indenização dele não sai por títulos, deverá ser em dinheiro, por
força, não mais da lei complementar de 86, mas por força da lei 4.132, de 62,
desapropriação por interesse social, simplesmente. Que eu posso desapropriar
qualquer imóvel, ainda que produtivo. Não é a função do INCRA, essa, mas
quando acontece essa situação, que é única, a gente tende a atender a lei, é
lógico. E portanto a indenização dele, salvo um acordo, salvo uma interpretação
divergente, deverá ser em dinheiro, por força da lei, e ponto final. O
assentamento existe, e você não tem como tirar 20 anos dessas pessoas daí, é
um número considerável de pessoas, e o que eu creio, que deve acontecer, é
justamente é a indenização, e a pacificação do assentamento. O Estado, em
tese, pode devolver a terra e retirar os assentados? Pode. Mas aí, nós vamos ter
um problema ainda maior do que é, a indenização, porque eles são parceiros de
boa fé, etc, etc.
E O primeiro Decreto Presidencial, considerando a área de Interesse Social para
fins de Reforma Agrária, foi de 86. E a primeira ação desapropriatória foi de 88, e
havia passado 2 anos além do prazo estipulado para ingressar com a ação
desapropriatória. Esse foi o motivo para que a primeira ação desapropriatória
fosse julgada, nem fosse julgado o mérito. Essa situação de passar 2 anos é
muito comum no INCRA? Qual é o motivo...?
MC Não. Não é comum. É uma situação bastante incomum. Não é comum o INCRA
perder o prazo. O que a gente tem que lembrar, nessa desapropriação da
Fazenda do Timboré, é que nós vivíamos sob a égide do Decreto 554, de 1969, e
já se questionava a caducidade desse Decreto. Tanto é que em 93 vem a surgir a
Lei-complementar 76, e a Lei 8.629. O Decreto não tinha prazo específico,
determinado, pra a propositora da ação. Utilizava, portanto, o Decreto-lei 3.365,
de 41, cujo prazo era de 5 anos. Então, esta ação ocorreu em 86, ela foi
alcançada pela constituição de 88, e foi alcançada pelas leis de 93. E o próprio
INCRA, nesses momentos, ainda, ele tinha uma tremenda experiência na
primeira opção do Estatuto da Terra, que era a colonização. Então, como você
mesmo disse, como é que é essa primeira ação de desapropriação? E isso,
realmente, deve ter - eu não vivi aqui, nessa época – mas deve influenciado,
entre tentativas de acertos, e erros, acertos e erros, a esta ação, que em tese
não teria sido proposta utilizando-se a legislação de hoje, em época “A”. No
segundo momento, a desapropriação foi considerada nula, por falta de vistoria
prévia.
E Citação...
91
MC ... de citação pra vistoria prévia. Isso também, hoje, de novo, é questionado,
porque nós temos jurisprudência hoje, dizendo que, antes de caducar o Decreto,
mas se não foi possível, ainda, fazer essa vistoria, eu posso reeditar o Decreto. E
tem jurisprudência dizendo que não. Então a matéria, tanto naquela época, como
hoje, não está pacificada. Tá completamente em ebulição. Há uma total... Há
posições controvertidas à própria jurisprudência, não só no Estado de São Paulo,
como nos demais Estados. O que é importante, hoje, declarar, é que nós já
estamos mais escaldados, sem dúvida nenhuma, em tantos anos, de 20 anos de
experiência em desapropriação, nós, o INCRA, quer dizer, e que dificilmente uma
ação, ela demoraria 2 anos para ser proposta. O que acontece, sem dúvida
nenhuma, é que na medida em que eu informo o proprietário, que ele vai ser
vistoriado, ou, já numa segunda fase, quando há o Decreto, entre o Decreto do
Presidente da República, declarando o imóvel passível de desapropriação – que
o decreto, simplesmente declara que é passível a desapropriação, que autoriza o
INCRA a propor a ação – nós, muitas vezes, não conseguimos entra com a ação,
porque o proprietário obsta, por medidas judiciais – que são previstas em lei, de
forma de medida provisória, ou não, mas estão previstas em lei – ele obsta a
entrada dessa ação. Nós temos uma posição, doutrinária, específica, dizendo
que a ação de desapropriação, ela é preferencial e prejudicial a qualquer outra
ação que verse sobre o imóvel. Portanto, ainda que ele entrasse com qualquer
medida, ela não teria o condão de suspender a ação de desapropriação. Mas não
é esse o entendimento da Justiça Federal Paulista, que tem se propagado pelas
outras regiões da Justiça Federal. Se o camarada entrar com uma liminar, se o
camarada entrar com uma ação declaratória, seja lá o que for, ele obsta o Poder
Judiciário. Então, chegamos ao ridículo de ter uma medida judicial que impedisse
o INCRA a propor uma ação judicial. Isso é o máximo! Você impede o acesso à
justiça. Né? Então, realmente, o que nós temos... tudo sempre chega no mesmo
ponto: um estrangulamento da lei. A lei precisa ser... Ela foi feita de um jeito, foi
retalhada, virou uma... tem uma medida provisória, com dispositivos
completamente estapafúrdios. E essa lei precisa ser – dentro do processo
democrático, discutida, novamente, pelas Câmaras – mas ela deve ser alterada,
porque se não, não é possível dá continuidade.
E Quando o INCRA entrou com a segunda ação de desapropriação, o proprietário
entrou com uma cautelar denominada de “produção de provas”, pretendendo
demonstrar que a área era...
92
MC Era produtiva. Que é o que eles fazem, atualmente. E, o que casa, também,
porque, de uma maneira muito tímida, talvez, quero crer, a instituição, o INCRA,
naquela época, em que pese muitos procuradores já propalarem isso, até em
termos de defesa de tese, em universidades, etc, o único critério, ou o primeiro
critério – porque era o mais visível – porque era aquele que batia na idéia de “não
cumpre a função social, porque não produz”, a produção é a coisa mais
escancarada, e também, não tinha... não se tinha essa preocupação ambiental,
sob o ponto de vista da sua executoriedade, e não sob o ponto de vista legal – o
próprio INCRA, nas suas perícias, ele também não verificava a fundo, a
possibilidade, ou não, de atender os demais parâmetros. O critério visível era
esse: produtividade. E isso é uma coisa que não tem cabimento, porque a própria
constituição, como o antigo Estatuto da Terra, ele fala em critérios que devem ser
atingidos ao mesmo tempo. Onde você conclui que se não atingir um deles, não
há, porque dentro da função social, isso é pacífico.
E A realização de uma política pública, como a Reforma Agrária, deveria levar em
consideração a mobilização, por parte do Poder Executivo dos outros poderes,
ou seja, Poder Judiciário, Poder Legislativo?
MC Ele tem possibilidade. Quer dizer, hoje se permite a impedir... tem Mandato de
Segurança contra o Presidente da República, pra ele não declarar o Decreto, pra
não assinar o Decreto. Quer dizer, são interferências, no meu entender, de
competências. O Poder Judiciário não pode impedir o Presidente da República
de decretar alguma coisa. Isso é competência privativa e exclusiva do
Presidente. Mas essa interferência teria acontecido de maneira gritante.
E Qual é o caminho para que houvesse uma mobilização do Estado, enquanto 3
poderes, para a discussão de uma política, como a Reforma Agrária?
MC Maior conhecimento. Maior conhecimento legal. Uma visão melhor, disto, como
política pública. Um maior conhecimento nas faculdades, aos formandos em
Direito. Isso é fundamental. Uma visão que seja agrária, e não civilista, aos
moldes do que foi o Código Civil, até agora. Porque o Código Civil, até agora, era
o direito de propriedade da Doutrina Liberal Francesa. Então, quando você
estuda propriedade, você estuda aquela Doutrina, que é super superada. Quando
agora, o novo Código Civil fala em função social, ele mesmo comete aquilo que
ele fala em Função Social e Proteção Ambiental, como se fossem duas coisas
diferentes. Tá no 1.228, do Código Civil, parágrafo 1°. Como se fossem duas
coisas diferentes, e não é. E Função Social não é limite à propriedade. Função
Social é conteúdo dos Direitos de Propriedade. Isso é uma lei, ó, de 1906. A
93
propriedade obriga. Você tem direito, desde que você cumpra a função social.
Você tem, realmente, ao seu proprietário, você tem ônus, você tem encargo, para
com a sociedade. E isso, só agora, o Código Civil, por força da Constituição,
recepciona pro imóvel rural, e recepciona pro imóvel urbano, também. Então,
este conhecimento, esta modificação de visão. A Reforma Agrária não é um
assunto de Direito Administrativo, e muito menos de Direito Civil. É um assunto
de Direito Agrário. E ela tem que ser vista dentro de um contexto maior, onde
você conhece todos os institutos, do Direito Agrário, aí você consegue
compreender porquê que a lei, ou porquê que a Reforma Agrária tem que ser
feito nestes moldes, dentro da lei. E não modificar a lei, à idéia, às idéias, ou à
interpretação judicial, e dos tribunais, sob o ponto de vista de uma visão civilista
de 1789! Que é do Código Napoleônico, de 1804. Então, isso tem de mudar. É
preciso educação; é preciso, talvez, maiores interligações entre os 3 poderes, eu
acho que isso é muito importante. Um seminário com cursos de workshop, seja o
que for. Eu não quero impor a vontade do Poder Executivo, mas eu acho que
deve tem de um entrelaçamento, entre eles, justamente pra um maior
entendimento. Até mesmo pra fazer um subsídio de uma política executiva cada
vez melhor. E não cada um falando o que quer, do lado que quer, em posições
opostas.
E Teria algum conselho para as universidades, as faculdades, específica, no que
diz respeito à formação...?
MC Teria que ter um conselho para o Poder Executivo, fazer ver ao Ministério da
Educação, que ele tem de modificar essa portaria que cria, ou que organiza as
faculdades de Direito. O Direito Agrário é matéria obrigatória. Nós somos um país
agrícola. Quer queira, quer não (risos). Não é porque a gente manda gente pra
Lua, não é porque a gente tem indústrias, etc. Nós não deixamos de ser um país
agrícola. O segundo maior produto de exportação dos Estados Unidos é
alimento. Primeiro é avião, o segundo é alimento. Na França, é perfume. O
segundo é alimento. Então, e eles têm uma grande preocupação, especialmente
aquele que não está na Zona Rural, eles têm uma grande preocupação em
manterem, em boas condições, a Zona Rural. Com as suas pessoas, com a
forma de produção, etc. Porque ele vive disso! É o que eu disse no início: tudo o
que a gente olha – se você olhar em nossa volta – tudo vem da Zona Rural. Ou
porque se exerce atividade agrária, ou porque não se exerce atividade agrária,
pois nós temos atividade rural. Da onde se extrai o petróleo, da onde se faz os
produtos sintéticos, etc, etc. Então, falta, talvez, à Zona Rural um pouco mais de
94
merchandising, que eu tava brincando no início, né? E eu acho que precisa haver
esse maior entendimento. Pra ver se eles entram dentro próprio Ministério! O
Ministério da Agricultura não vê o assentado como produtor rural. Ele é um
bandido... (risos) De modo que tem muito técnico falando isso. Eu não estou
falando isso do Ministro, mas eu to falando isso de muitos técnicos – e de muitos
produtores rurais. E muitos produtores rurais, que tem na sua origem assentados,
(risos) eles fazem hoje a discriminação. O assentado velho, não quer o
assentado novo! Isso é o máximo! (risos). Isso é o máximo da coisa! (risos) Tá?
E o assentado velho, também, muitas vezes, não se entende como um produtor.
Ele não consegue, também, às vezes, mudar de posição. Ele pode continuar,
perfeitamente sensível ao Movimento Sem Terra. Mas ele tende a reacionar,
como um produtor rural que é. Maior ou menor, isso não tem nada a ver. Mas ele
é um produtor rural. Então, esse congraçamento – uns não pulam de assentado
– o que não deixa de ser um produtor rural – mas ele não deixa, ele não sai da
condição de assentado, ele não se integra, enfim. Outros assentados não
aceitam os assentados novos. Os produtores rurais, mais tradicionais, também
não aceitam os assentados. Então, é um nó! Chega lá no fim, você não consegue
resolver o problema. Há muitos anos, teve aqui um senhor - muitos anos - e ele
começava: porque ele era do Movimento Sem-Terra, porque não sei o que,
porque “pápápá”. Eu disse: “Mas o senhor já foi assentado...”, “ah, já. Eu tenho
um lote, eu sou assentado no programa tal...”. E era um dos casos raros, que ele
já tinha sido, inclusive, titulado. “Mas que ótimo! E o senhor faz parte do
Movimento Sem-Terra?”, “faço”. Eu dei uma risada, e falei assim: “O senhor tá no
lugar errado, senhor tem de entrar pra UDR”. Ele “imagina, doutora! Imagina
doutora, eu não vou pra UDR...”. Eu falei: “Escuta, sem terra, aqui, sou eu. O
senhor é produtor rural”. Passou um ano, aparece ele aqui, de novo, “a senhora
tinha razão. Eu fui pra UDR!”. (risos) Isso é uma brincadeira, naturalmente. Mas é
o que eu disse a ele: “O senhor tem que se ver como um produtor rural. E não
como um assentado de canequinha na mão”. O senhor é um produtor rural, que
tem direitos de produtor rural, como assentados tem direitos a... Mas o senhor
tem que migrar, pra essa concepção que o senhor integra o país, como produtor,
e tem os seus direitos como isso. É essa a sua visão. Porque fazer... assentar
uma galera pra dar cesta básica, pelo amor de Deus! Pro cara morrer na miséria?
Pelo amor de Deus! Ele tem uma agricultura de subsistência, em caminho a uma
agricultura de mercado, no melhor sentido da palavra. Isso que ele deve ser. Aí
você tem, senão não tem razão de ser! Senão não tem razão. Custa uma fortuna,
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pro cara ficar o quê? Comendo de canequinha? E como é que ele faz isso? Ele
não precisa ter... ele não precisa ter agricultura ultra-extensiva, ou ele ser fã
desses – como chama – transgênicos. Não é nada disso. Ele produz, lá, uma
cestinha de batatinha, produz... mas ele se agrega com associações, com
cooperativas, com consórcios. Ele se agrega àquele grupo, ele se agrega a
outros grupos, o grupo dele se agrega a outros. Forma essa coisa incrível, que é
o trabalho em conjunto, Agricultura de Grupo, se chama. E aí, vai pra frente. Mais
ou menos. Ninguém tá querendo que todo mundo seja rico. Mas também não
precisa ser todo mundo pobre. Precisa desenvolver as pessoas. Não é?
E Teria mais alguma observação a se fazer, sobre essa questão?
MC Não. Eu acho que é um grande programa social. Hoje, é um grande programa
social pra Zona Rural, e um grande programa social para a Zona Urbana. Porque
ainda que ele seja deficiente, esse cidadão que tá migrando, de novo, pra Zona
Rural, ele tá encontrando, ali, uma renda de 3 mil reais, se ele ficar bonitinho,
fizer certinho – coisa que ele não tem na Zona Urbana. Então, é preciso, quando
você encontra esse programa social, você não vai dizer assim: “Ah, não vou
aceitar”. Dentro da escala, da vocação, da lei, ele tem que ser aceito, mais cedo
ou mais tarde. Então, o papel do Estado se torna muito maior, muito mais
importante. Ele tem... o extensionismo rural é fundamental. E é isso que os
governos, de uma maneira geral têm que ver. Reforma Agrária não é distribuir
terra. “Desapropriei 500 milhões de hectares”, isso, você não fez Reforma
Agrária. Reforma Agrária é criar novos proprietários rurais. É uma política de
fortalecimento da propriedade produtiva. Ela não é contra a propriedade
produtiva, ela é a favor, tanto é que ela transfere uma, ela consegue criar 300,
400. Se a gente focar isso, e verificar as condições, você dá condições para este
homem deixar de ser um párea, deixar de ser uma pessoa que tá à margem da
sociedade, do processo de distribuição de riqueza do país.
E Você falou em 3 mil reais, que seria um rendimento médio...
MC Médio de um assentado. Ele já estabelecido. Ele já recebeu... Porque ele,
quando entra, ele recebe alguns... 1300, 2 mil reais. Ele vai recebendo recursos
públicos pra construção da casa, pra construção... pra formação de sua primeira
roça, etc, etc. E isso é uma inversão de dinheiro muito grande, no todo. Quando
ele se estabiliza – a gente tem gente aqui plantando, tem uns gaúchos, aqui,
plantando fruta, aqui perto da Castelo Branco, num assentamento... esqueci o
nome. Ele tá tendo uma renda... Planta goiaba, e outras frutas, ele já tá tirando 3
mil reais por mês. O que eu falo não é o absoluto, sem dúvida, merece toda
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contestação. Mas é a visão que eu tenho, direta ou indiretamente, ligando dentro
do INCRA, há... pelo amor de Deus, desde 1980, pelo menos. E vem de uma
família que esteve dentro do IBRA e do Ministério da Agricultura há séculos.
Então a gente tem uma história de vida, que não é só a minha, mas eu tenho dos
meus tios, dos meus avós, e assim por diante. De outras pessoas que,
coincidentemente, trabalharam dentro... dentro também, do Ministério, e, enfim, é
a visão que a gente tem.
Entrevista Paulo Sérgio Domingues Dia 16 de maio de 2006
Rua Libero Badaró, 73 – São Paulo - SP Entrevistador Gostaria que o senhor falasse sobre o trabalho da Justiça Federal
na área da política de Reforma Agrária. PSD Em breves palavras, o trabalho, ele é o de intervir em processos
onde a gente tem sempre o poder público de um dos lados da ação. O interessante do trabalho da Justiça Federal é exatamente essa visão de que a gente está sempre analisando uma conduta do Estado: se o Estado está certo ou não em alguma das suas atitudes. Quando alguma parte ingressa com uma ação na Justiça Federal, necessariamente, em se tratando de uma ação cível, ela está contestando uma atitude do Estado. Está dizendo que o Estado agiu errado de alguma maneira, e portanto ela quer que a justiça tome uma providência. Esse já é um fator interessante, porque nós não estamos falando da briga entre duas pessoas físicas, de briga com uma empresa... Estamos falando de uma ação onde o cidadão está brigando com um ente, um “ente desconhecido”, né. Quem quiser assistir a uma audiência onde tenha uma grande briga, né, é melhor não procurar a Justiça Federal, porque isso é muito raro. Porque dificilmente você vai ter dois vizinhos brigando, duas pessoas físicas discutindo. Você vai ter alguém querendo um apelo em relação ao Estado, esse ente impessoal, desconhecido, e que até
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por ser desconhecido muitas vezes as pessoas... as pessoas acham que as coisas do Estado são coisas de ninguém. Então essa é uma coisa característica interessante dessa atuação da Justiça Federal. Na parte especifica de Reforma Agrária, é uma atuação que não é muito grande, porque ela acaba acontecendo especialmente quando se consegue evocar a intervenção do INCRA, nesses processos, nas questões de Reforma Agrária. E infelizmente não é muito, na verdade. Mas existe, e acho que ela tem - o interessante é ela estar se transformando, deixando de ser uma atuação meramente passiva, para, em alguns casos, retomar uma posição de condução verdadeira do processo, o que é uma coisa muito interessante.
Entrevistador Como é que você vê a atuação do Estado, como ente único, na execução das políticas públicas.
PSD De uma maneira geral? Entrevistador De uma maneira geral. PSD Como ente único, você está querendo dizer? Veja, é... Tudo bem,
o Estado é quem deve definir políticas públicas de maneira geral. Ele é eleito pra isso, o legislativo é eleito pra isso. O problema é que as formas de eleição de prioridades dentro do Estado, é uma forma, que nós temos visto, não é das mais... Das mais... sérias, baseadas somente em critérios... de necessidade, mesmo. As formas de eleições de prioridades públicas são as mais variadas. E alguém tem que definir essas prioridades. Agora, o Estado naturalmente não está conseguindo definir essas prioridades de acordo com o que a gente gostaria como cidadão. Tudo bem, temos que pagar bilhões de juros, ok. Mas o restante do dinheiro que sobra está sendo dividido nas mais variadas políticas públicas, de uma maneira que ninguém consegue compreender quais são os verdadeiros critérios.
Entrevistador E a atuação do Estado na execução de política pública de Reforma Agrária.
PSD Eu acho que, infelizmente, essa é uma decepção, com relação ao governo atual. Porque se nós já não tínhamos uma política pública de Reforma Agrária definida, eu hoje não verifico também a existência de uma política pública que se possa reconhecer como tal, na área da Reforma Agrária. A gente vê algumas ações isoladas aqui e ali, mas uma política que compreenda a definição de áreas, uma real preocupação com quais as áreas que serão atingidas, com como se fará a distribuição da terra, com o financiamento de produção, assistência técnica, escoamento, não é, da produção feita naquele local... A gente não vê isso. Então, infelizmente, a gente tem visto é o contrário, é algumas situações em que assentamentos dão errado, as terras acabam sendo abandonadas e passadas adiante.
Entrevistador Como você definiria a atual política de Reforma Agrária? PSD Não consigo. Não consigo. Acho que ela... como eu disse, ela é
tão baseada em atitudes esporádicas, e que a gente... Na minha opinião pessoal, é claro – você entende disso muito mais do que
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eu, mas na minha opinião pessoal – a gente não consegue identificar uma linha. A gente vê atitudes esparsas. Quase que espasmos. E eu não consigo ver, não dá pra identificar um padrão, na minha opinião.
Entrevistador E dá pra você fazer uma avaliação do trabalho da Justiça Federal ou do Poder Judiciário, nessa atual política de Reforma Agrária?
PSD Olha: nessa, atual, compreendendo os últimos anos, inclusive anos do governo anterior – que eu acho assim, que o governo, ele brinca, às vezes, com a justiça. O poder público brinca com a Justiça. O Judiciário procurou especializar a vara, depois procurou descentralizar novamente as ações nas varas do interior, porque se está mais próximo do local onde está desapropriando, mas o que a gente vê é que muitas vezes, o poder público não sabe o que ele quer. O poder público, ele gosta de fazer barulho com ação, mas ele brinca com as ações, ele não se preocupa numa avaliação correta, ele não se preocupa com o acompanhamento verdadeiro dos processos... E a Justiça acaba sendo... acaba ficando envolvida na história. Tudo bem, a Justiça é lenta? É. A Justiça não está preparada pra atender as situações com a velocidade que às vezes ela exige? Sim. Mas o governo, ele é assediado de uma maneira... Ele não... é... Ele não prepara convenientemente até mesmo os procuradores que vão agir nos processos, muitas vezes.
Entrevistador Houve, na Justiça Federal, a experiência da especialização de
varas para a Reforma Agrária. Qual a sua avaliação dessa experiência?
PSD Eu acho que é muito bom, a gente especializar varas, de certo modo. Mas, às vezes, a gente tem aquela dificuldade da distância. Então é uma questão que a gente tem que analisar com cuidado. Porque, se a gente, na capital de São Paulo, tinha uma vara especializada, até alguns anos, quando a Justiça Federal, pouco descentralizada, pelo interior, havia uma certa razão: você tem vinte e tantas varas aqui na capital, vamos pegar uma e especializar, pra matéria de Reforma Agrária. Agora, a partir do instante a Justiça Federal se capilariza, chega mais perto do cidadão na cidade do interior, me parece razoável que a gente tenha, que aquele juiz da localidade, que está vendo a situação acontecer, que tem uma consciência maior do problema, uma visão melhor do problema, porque... é razoável que ele vá julgar. Agora: também se deve dar, a própria Justiça deve dar assistência para o juiz, para que ele possa agir naquele processo, que não é um processo corriqueiro, não é um processo daqueles que gente lida no cotidiano. É uma dificuldade grande, não adianta. A gente tem uma vara com 8 mil processos. O juiz tem que dar conta de 200 novos processos que ele recebe todo mês. Desde aqueles que são mais repetitivos, até os mais complicados, e mais individualizados. É claro que aqueles mais complicados, aqueles mais delicados, aqueles... onde se exige uma certa atenção maior, como é o caso desses de Reforma
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Agrária, e de desapropriação para fins de Reforma Agrária, esses trâmites, eles acabam andando muito devagar. Infelizmente.
Entrevistador O planejamento e a execução de uma política geral, profunda, de Reforma Agrária, implicaria na criação de uma Justiça especializada para atender essa demanda?
PSD Não acredito. Não acho que ele seja necessário, não. Eu acho que haveria – há como a gente trabalhar, uma política pública de Reforma Agrária, no âmbito da Justiça Federal. A gente escuta, dentro dessas... em vários setores, necessidade de se pensar em uma Justiça especializada, ou em varas especializadas. O que eu penso é que a questão aí teria que ser analisada em termos de política judiciária, não... mais até do que na política de Reforma Agrária. A nossa Justiça, ela deveria atuar nessa espécie de problemas. E não em milhões de ações idênticas, que o cidadão propõe contra o Estado. Nós não devíamos estar nos preocupando, por exemplo, em julgar dois milhões de processos iguaizinhos, com relação ao reajuste das aposentadorias... no ano, no mês de janeiro de 94. O problema, o que que deveria acontecer: deveria, no momento em que alguém, um dia, julgou definitivamente, o Supremo reconheceu que “os aposentados têm direito ao reajuste de janeiro de 94”, o governo deveria, num momento ou em outro, aplicar esse reajuste pra todo mundo. Pra todo cidadão que estivesse naquela mesma situação. Com isso, ele estaria respeitando, demonstrando respeito ao cidadão, e demonstrando respeito à Justiça. Mas não. O que que o governo faz? Ele diz: “Então tá. Eu vou pagar pra este aqui - e aí, ele diz - mas eu não vou estender pra todo mundo. Cidadãos: vou lhes dar um calote; vocês, se quiserem, entrem com uma ação contra mim. Eu vou pagar no dia em que eu for obrigado pela Justiça”. É uma coisa do tipo “devo, não nego, só pago quando obrigado pela Justiça”. Aí, o que acontece: nós acabamos recebendo um milhão, dois milhões de processos iguaizinhos sobre aquele assunto, e sendo obrigados a julgá-los, ainda tendo que escutar o governo dizendo “tá vendo como a Justiça é lenta?”. Porque esses processos demoram pra sair! Com relação a ultima grande leva de processos previdenciários, nós tivemos, em quatro meses, um milhão de processos propostos. Em quatro meses tivemos que dar conta disso. Felizmente, temos uns juizados especiais federais que já estão informatizados, então deu pra dar conta disso de uma certa maneira. Mas periodicamente acontecem essas coisas, e a Justiça se congestiona. Em todas as cidades do país onde há Justiça Federal. Então, o que acontece? Essas ações mais complexas, que são realmente casos individualizados, acabam ficando pra trás. Então, a postura do poder público, que leva a que essas ações de Reforma Agrária seja complicada, seja difícil, pro trâmite dessa ação seja difícil, é a mesma postura que faz com que o Judiciário esteja congestionado por ações idênticas, e não possa tomar conta, como se deve, das ações mais complicadas. Então é um problema de política judiciária, é um problema de
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postura ética do poder público perante os seus cidadãos, e da postura ética do poder público em juízo. E isso congestiona a Justiça, e impede que ela atue dentro daquilo que devia. Então, pra concluir: se a gente tiver - acredito eu, tem – na escala do movimento de diminuição do número de processos, atualmente; na medida em que esse processo se concretizar – porque a correção monetária acabou, e grande parte dos nossos problemas dizia respeito à discussão sobre índices, planos econômicos mirabolantes, e aquela história toda, e isso esta diminuindo com o passar do tempo; e nós não temos tido grandes levas de discussão de inconstitucionalidade, grandes teses tributárias, etc, isso não tem surgido com freqüência, atualmente. Então, se se mantiver essa tendência dessa queda da quantidade de novos processos, a partir do instante em que o Judiciário conseguir dar conta de limpar o “estoque acumulado”, eu acredito que nós teremos uma melhora na velocidade dos processos. Isso num curto prazo, até mesmo em dois, três anos. E vai fazer com que a Justiça Federal acabe realmente cumprindo o seu verdadeiro papel, que é o de julgar esse tipo de causa complexa com maior eficiência. Isso torna-se, pra mim, desnecessário a criação de uma nova Justiça, de uma nova estrutura burocrática, para analisar esse tipo de questão. Uma estrutura como essa daqui a pouco vai acabar entrando no mesmo processo que outras estruturas burocráticas: acabar lutando pela sua própria sobrevivência, ao invés de lutar para atingir o objetivo para o qual ela foi criada.
Entrevistador É possível perceber, da parte do poder executivo, alguma mobilização do Poder Judiciário, dos juizes federais, para dar celeridade no processo de Reforma Agrária?
PSD Do executivo? Entrevistador É. Que desenvolvesse alguma ação para sensibilizar o Poder
Judiciário, chamando a atenção e reclamando celeridade nas ações de desapropriação?
PSD Nunca. Entrevistador Nunca? PSD Pelo contrário. Pelo contrário! Quando alguém... Quando
qualquer governo propõe uma ação de desapropriação, qualquer que seja ela, na minha... pelo menos na minha experiência, o que a gente vê é que o que interessa pra ele é a emissão na posse. É um dinheirinho ali pra obter a emissão na posse, e resolvido isso, não interessa que o processo ande rápido. Porque o processo andar rápido significa o quê? Pagamento em dinheiro! E eu não conheço nenhum governo que tenha pressa em pagar. Então eu não tenho visto isso, não. Tenho visto algumas atitudes, assim, de uma melhora na postura, nessa postura ética, a que eu me referi há pouco. Tenho visto, porque a própria criação dos juizados especiais federais, significou uma disposição do governo em fazer com que as ações contra ele demorassem menos. Uma coisa que foi criada no governo anterior, e solidificada neste. Mas isso é pro processo em geral, e jamais
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alguma coisa especifica com relação à Reforma Agrária. Muito pelo contrário: tivemos alguns exemplos no finalzinho do governo passado terríveis, onde processos demorados de Reforma Agrária eram jogados nas costas do Judiciário, e quando a gente ia ver o que que tinha acontecido no processo, a gente via que tinha pedido de desistência da ação por parte do governo, depois o governo desistia da desistência... Uma confusão enorme, né, nos processos, onde parecia que o governo não se entendia dentro do próprio INCRA, do próprio Ministério. (risos)
Entrevistador Qual a sua avaliação do trabalho do INCRA nas ações de desapropriação. Dá pra fazer uma avaliação?
PSD Olha: a minha avaliação pessoal vai ser até há algum... há algum tempo. Tá? A minha avaliação pessoal, nesse aspecto, estaria um pouco defasada, uns dois ou três anos. Mas é uma atuação ruim. Uma atuação ruim... Como era ruim, como toda a advocacia pública, pela falta de estrutura que era dada aos procuradores. Mas eu tenho detectado uma melhora na qualidade da advocacia pública, nos últimos anos, uma melhora na... na espécie de defesa que se fazia, né? E eu tenho detectado essa melhora no âmbito geral. Então eu acredito que isso também deva estar acontecendo no INCRA.
Entrevistador O juiz federal, e o Poder Judiciário como um todo, o próprio Supremo, acabam dando grande peso, na hora de decidir, para o laudo elaborado pelo perito do INCRA que fez a avaliação da área, que diz se a área é produtiva ou improdutiva. Não existe aí uma grande carga, sobrecarga, sobre este documento, elaborado pelo perito do INCRA, ao dizer se a propriedade é produtiva ou improdutiva? Não haveria um outro mecanismo que pudesse ser mais coerente, digamos, com a função social daquela propriedade, ao elaborar este laudo, atestando se a área é produtiva ou improdutiva?
PSD É. Toda vez que o juiz depende de uma prova técnica, e ele vai se utilizar da perícia, ele vai enfrentar esse problema. Estejamos nós falando de uma avaliação em termos financeiros, estejamos nós falando se a área é produtiva ou não é produtiva, ou se nós vamos estar falando, por exemplo, de uma perícia médica de uma pessoa, pra saber se ela é apta ao trabalho ou não, pra saber se ela vai receber uma aposentadoria por invalidez. Né? Então sempre vai enfrentar esse problema. A questão é: o juiz conseguir ter peritos da sua confiança, em que ele consiga verificar se naquela área há a produtividade ou não... A questão é saber se nós teremos condições de ter uma decisão bem subsidiada. Elementos que já dêem a decisão. Tudo bem, hoje a gente tem muito mais o laudo do INCRA, porque é difícil... o que que a gente vai ter, vai por no lugar? Se a gente tem outras coisas pra por no lugar, nós vamos nos fiar em outras, e ver aquela balança: do perito judicial, do INCRA, né, do réu, ou seja lá de quem for. Tem outros elementos: a gente vê por exemplo, laudo com aqueles elementos baseados nas fotos de satélite, em
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satélite, aquele projeto da Embrapa, né? Existe essa possibilidade. E dali, de se começar a analisar qual é a produção que tinha naquela área nos últimos anos. Com base nisso você consegue checar se aquela área realmente é produtiva, se ela é improdutiva, ou se ela se tornou produtiva de repente, só pra esperar a avaliação. Né? Isso é possível de ver. Agora: é... por outro lado, a gente não pode esquecer que o Poder Judiciário, ele, em si, ele é um poder conservador. Isso tá mudando? Tá. Nos temos visto posturas mais progressistas por parte dos juizes, com mentalidades novas, baseadas até mesmo na mudança da própria origem dos juizes que iniciam a carreira, né? Que não é... Mas ainda é, o Judiciário, um poder conservador. E isso faz com que a própria demanda sejam vistas com olhos diferentes. Né? Eu sou otimista nesse aspecto, acho que a gente tá melhorando.
Entrevistador Sobre a legislação que institui a política de Reforma Agrária. Qual a sua avaliação sobre a legislação como um todo, desde a Constituição Federal e das leis ordinárias que estabelecem as regras para as ações de desapropriação?
PSD A mesma coisa. Altamente conservador. A gente não tem, hoje, nem sequer clima pra pensar em algo diferente. Porque a... a postura adotada pelo governo em relação a isso é uma postura ambígua. O Congresso também, afinal de contas quem tá no Congresso são pessoas que refletem o substrato social que consegue ter acesso àquele lugar, né, com raras exceções... E isso também é conseqüência de... de movimentos como os que deram origem a uma oficina do Fórum Social Mundial – do primeiro, não, do segundo Fórum Social Mundial que nós fizemos – sobre a criminalização dos movimentos sociais. Os movimentos sociais hoje são vistos como... é... como... esses movimentos sociais são vistos como movimentos criminosos, como um bando de baderneiros, e essa tendência, ela dificulta qualquer medida concreta que vise se buscar uma legislação de Reforma Agrária mais produtiva. Acaba, ainda, alimentando a visão de que “esse povo é gente que tem que ir trabalhar ao invés de ficar reclamando dessas coisas”.
Entrevistador Mas na sua visão, a atual legislação seria suficiente para o Estado desenvolver uma política de Reforma Agrária eficaz? Ou teríamos que, teríamos necessariamente que ter a alteração?
PSD Não, dá. Dá. Acho que se ele quisesse, faria. Mesmo com a atual legislação. Acho que os instrumentos, eles existem. Essa legislação é conservadora – ah, agora entendi. Essa legislação é conservadora? É. Mas se quisesse dava pra fazer. Acho que dava.
Entrevistador Existe uma discussão que nasce a partir da Constituição Federal, e que tem a ver com posturas mais conservadoras ou mais progressistas. Qual a sua opinião sobre aquele princípio de regras da Constituição Federal que diz que a Reforma Agrária tem que ser feita na propriedade que não cumpre a função social?
PSD Bom. Que é polêmico, naturalmente que é. E... as decisões que prevalecem, hoje, elas são aquelas que assumem a posição mais
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conservadora. Mas eu entendo o contrário: eu acho que a função social, ela é um elemento intrínseco à propriedade, e a propriedade que não cumpre essa função social, ela “não o é”. E ponto. E aí então a gente analisar, tem que olhá-la de uma maneira diferente. Tá? Eu acho que não é uma questão só de produtividade ou não. É uma questão da função social, que vai além disso, certamente.
Entrevistador Na sua opinião, se o INCRA provocar, através de uma ação a desapropriação de uma propriedade - não apenas pelo critério da produtividade, mas pelo conjunto da função social - o juiz federal tem condições, de acordo com regras legais, de decidir pela desapropriação, porque não cumpre a função social?
PSD Olha... Acho que tem, e... mas a discussão ainda vai mais longe sobre o que que vai significar esse descumprimento da função social. Ainda que o juiz fale “tá, eu concordo. Se não está cumprindo sua função social, pode desapropriar”. Aí nós vamos pra uma outra análise, que é igualmente subjetiva, sobre se estará ou não atingindo aquilo, dentro do que se espera pra aquela propriedade, do que se espera pra aquele local. Acho que dá uma confusão danada, mas eu acho que já já isso vai começar a acontecer. E já andou acontecendo.
Entrevistador Aproveitando o gancho dos movimentos sociais, qual é a sua visão sobre os vários movimentos sociais, ou especialmente sobre o MST?
PSD Olha. Não é um movimento isolado não, acho que é uma coisa altamente organizada, hoje, e... Ao mesmo tempo, se a gente tem algum movimento em direção à Reforma Agrária, hoje, no país, é porque existe essa pressão. Se não houvesse essa pressão, isso não aconteceria. E como qualquer movimento de pressão, comete excessos. E, claro que, pelo lado que se opõe a ele, ele será julgado pelos excessos, e não pelo movimento que ele representa efetivamente, como um todo. Não é? Então, eu acho que se não fosse a existência desses movimentos, nada aconteceria. Então, eu acho, eu vejo uma real utilidade dele pra poder movimentar o governo a fazer as coisas. Não digo só e simplesmente esse, é como eu estou dizendo: o poder público de maneira geral.
Entrevistador Você teria algum conselho para um curso de direito que se proponha a discutir a política de Reforma Agrária?
PSD Levar todo mundo pra discutir. Um curso de direito, ele tem a obrigação de fazer com que os alunos possam se tornar, não mais massa de manobra, mas sim uma massa crítica. Então, eles têm que dar informações a eles, de todos os lados que existem numa questão, pra permitir que cada aluno possa formar, fazer sua própria análise critica sobre aquela questão, e chegar às suas próprias conclusões. Sem ficar simplesmente reproduzindo o que vê no jornal da noite na televisão – não vou nem dizer o que lê no jornal, porque hoje poucos lêem isso. Mas - mesmo os que lêem o jornal - então os alunos têm que formar sua própria conclusão. E pra isso tem que levar todo mundo. Não foi
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diferente, não foi outra coisa o que a gente fez lá em Ribeirão Preto, num evento sobre Reforma Agrária, que a AJUF promoveu lá, quando nós levamos o MST e o Ministério da Reforma Agrária pra discutir a questão da Reforma Agrária, num debate que durou três horas e meia, e que foi mediado por um juiz federal. Nós fizemos a mesma coisa com um juiz federal, levando esse tipo de informação a ele, que também nem sempre é acessível.
Entrevistador Se tiver outras considerações o microfone está aberto. PSD Você conversou comigo antes sobre a atuação do judiciário nas
políticas públicas, como quase um formulador de políticas públicas. Eu acho que o Judiciário vai intervir cada vez mais nisso, sim. E isso não é um absurdo. Acho que a visão positivista, estritamente positivista, do nosso direito, ela está cedendo à realidade... E acho que vai existir cada vez mais uma... um chamado do judiciário a intervir em questões que digam respeito a políticas públicas. E o ponto ótimo dessa intervenção ainda está longe de ser alcançado. Ainda está longe de ser descoberto e alcançado. Penso que o ideal seria que não precisasse. O ideal seria que os governantes definissem as políticas públicas, que elas fossem políticas de médio e longo prazo, muito bem definidas, que permitissem ao eleitor decidir, né, e toda vez que um juiz fosse chamado a analisar uma política pública, analisar, saber se essa ou aquela atitude deve ser tomada pelo poder público, ele dissesse: “não, isso aí vocês votaram nesse governo, que tem essa plataforma, que tem essa política, nesse partido, e vai ser assim”. E esse poderia ser o ideal. Mas infelizmente isso não acontece, e está longe de acontecer. O judiciário vai ser chamado sim, porque muitas vezes há cidadãos que permanecem à margem de qualquer política pública, e eles têm o direito de tê-las! Têm o direito de serem beneficiados por políticas públicas. A dificuldade é: que nós vamos estar substituindo o formulador da política pública, o definidor da política pública. Né? Mas vai ser com o exercício desse tipo de dialética que nós vamos chegar no ponto ótimo.
Entrevistador Uma outra questão ainda: no caso que nós estamos analisando, que é o caso da Fazenda Timboré, verificamos a ação do poder do Estado, através do Poder Executivo, que é quem tem a competência para desenvolver a política de Reforma Agrária, e, paralelo a essa ação do Estado, observamos o trabalho do particular, proprietário, através de um mandato de segurança, que impediu a ação do Poder Executivo, na discussão da política de Reforma Agrária. Aí não existe uma contradição interna do próprio Estado – você estava até falando agora há pouco, que o Poder Judiciário irá cada vez mais interferir nas políticas públicas. Mas aqui não houve uma contradição, no caso especifico da fazenda Timboré? Como explicar isso?
PSD É, veja... Eu não conheço os detalhes do caso, tá, mas a princípio, eu vejo assim: que toda questão tem no mínimo dos lados, e aí o cidadão está tentando - o particular - estava tentando defender a sua posse, a sua propriedade. Tudo bem,
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ele tem direito a fazer isso, e foi o que ele fez, pelo visto. Ele estava entrando com uma ação, um mandado de segurança, tentando impedir que sequer se discutisse a desapropriação.
Entrevistador Exato PSD Não é? Direito ele tem. E esse direito, ele deve ser analisado,
também, com o mesmo cuidado que se analisa os outros direitos que estão colocados aí na balança. A dificuldade, pra mim, é verificar como é que um mandado de segurança - se ele foi baseado em... se dizer se um laudo está certo ou está errado - a dificuldade pra mim está principalmente aí, de saber se é possível um mandado de segurança bloquear todo um processo de desapropriação, com base em um laudo. Isso é uma matéria de fato... totalmente fática, essa matéria. Então fica difícil imaginar que num mandado de segurança diga “não, este laudo está errado, logo, pare”. Mas além disso, eu não vi, exatamente, a questão.
Entrevistador Bom, eram essas as questões. Agradeço muito, agradeço muito a consideração pela entrevista.
PSD Não, eu que agradeço a deferência, de ser honrado com essa possibilidade de conversar com você. Fico muito contente. Muito obrigado.
Entrevista com juiz federal Luciano Godoy Avenida Paulista – Prédio do Tribunal Regional Federal da 3ª Região
Entrevistador
Gostaria de saber qual é a tua opinião sobre a responsabilidade do Estado na solução do problema agrário brasileiro. Entendido aqui problema agrário como o complexo problema que gerou, entre outras coisas, o êxodo rural e a concentração de muita gente em algumas cidades, a concentração da propriedade na mão de poucas pessoas e a baixa produtividade das terras brasileiras em comparação com outras nações.
LG Agradeço a oportunidade de falar. Eu tenho uma vinculação com a questão agrária, não só a partir da origem, de ser uma pessoa interiorana, do interior de São Paulo, como por uma vocação
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profissional, que trabalhei nas questões do Pontal do Paranapanema como procurador do Estado e depois fiz o meu mestrado em Direito Agrário na USP. E nesse trabalho de mestrado, eu elaborei uma idéia que a Constituição Federal de 88, traz um sistema nacional agrário, um sistema nacional de direito agrário onde o constituinte, o legislador da constituição pretendeu estabelecer um conjunto de institutos - que nós poderíamos mencionar sete institutos que vinculam o Estado e os três entes, a União e os estados, e com menor importância os municípios, mas também os municípios - no desenvolvimento de uma política agrária nacional, baseada na aplicação do princípio da função social da propriedade. Princípio da função social que está disciplinado no artigo 186, já trazido do estatuto da terra. E por esse princípio, a propriedade agrária deve ser, deve atender os seus requisitos, basicamente ligados a três aspectos, que é: a produção e a produtividade, o respeito ao meio ambiente e as relações de trabalho. Com vistas a quê? Com vistas à melhora do ambiente do meio rural, o ambiente onde estão as pessoas empregadas, os trabalhadores rurais, mas principalmente atender a idéia de segurança agro-alimentar, que é uma idéia de um conceito já não tão moderno, que viaja pelo mundo; isto é, produzir alimentos e matérias-primas para as pessoas que moram na cidade. Então, são duas as finalidades da política agrária: gerar o bem-estar entre proprietários e trabalhadores no meio rural, e atender à produção de alimentos e matérias-primas para o país e gerar uma segurança alimentar. Em razão disso, a Constituição traz seus inúmeros institutos que podemos destacar três: política agrícola, imposto territorial rural progressivo e desapropriação para fins de reforma agrária. Institutos que sempre levam a estimular a produção e desestimular a improdutividade. E outros institutos como usucapião, como a aquisição de terras por estrangeiros, como a proteção da pequena propriedade rural e a disciplinação do uso de terras públicas, esses outros institutos são complementares desta aplicação do princípio da função social. E a Constituição, é interessante dizer que ela compatibiliza todos os institutos no artigo 186 em torno da idéia da Reforma Agrária, mesmo quando o instituto não é diretamente ligado à Reforma Agrária, como o uso das terras públicas, a constituição liga, dizendo: "A disciplinação em terras públicas deverá ser vinculado ao projeto nacional de Reforma Agrária". Mesma coisa, a questão do usucapião: o usucapião, de início, não tem vinculação à Reforma Agrária, mas tem uma finalidade social de atender a uma pessoa que não tem imóveis, que não é proprietário, e ali tem que tornar produtivo o imóvel para adquirir usucapião. Então, é um sistema nacional que visa atender uma política nacional agrária com essas duas finalidades: o bem-estar da população que vive nesse meio, e a produção de alimentos. No entanto, sabemos que o Estado, e aqui o Poder Público, e em regra a União Federal, não vêm dando cumprimento a este comando constitucional de forma adequada. A política agrícola é capenga; os créditos agrícolas, em
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regra, não chegam aos pequenos produtores; os juros são altos; o imposto territorial progressivo não é cobrado seriamente, de forma a punir aquele não produz e de forma a estimular quem produz; a Reforma Agrária, por meio de desapropriação, é feita de uma forma pontual, sem nenhum planejamento; a questão da aquisição de terras por estrangeiros também não é levada de forma muito organizada; e a questão da disciplinação em terras públicas é algo que vem caminhando de forma muito devagar. Isto é, não há um investimento estatal, do Estado, não há investimento do poder público na política agrária, que conjugaria todos esses institutos.
Entrevistador E qual a responsabilidade do Poder Judiciário na implementação de uma política pública de Reforma Agrária?
LG Eu penso – até já me manifestei outras vezes nesse sentido, e publiquei trabalhos – que o juiz, no Estado moderno – ainda mais num Estado moderno de um país que é tido como “em desenvolvimento”, um país que é um país pobre como o Brasil – que o juiz tem um papel até mais importante que se fosse um país plenamente desenvolvido: ele ocupa um papel de ter que analisar, no caso, julgamento, não só a questão jurídica ali, mas a repercussão da sua decisão. A sua decisão irá causar um impacto no meio social, na sociedade como um todo, de forma relevante. E isso em todos aspectos onde há política pública envolvida. Então, podemos falar dos casos próprios da Justiça Federal, como é o caso dos benefícios previdenciários. É lógico que os juizes julgando as causas, ou a estrutura judiciária tendo aparelhagem suficiente para julgar as causas, você vai estar favorecendo uma população que é pobre, que não tem acesso à justiça, que não vêm obtendo os benefícios, porque o INSS os concede de forma muito econômica. Em outras áreas, como a área de proteção ao consumidor e proteção ambiental: o Estado também não atua da forma como deveria, então a cobrança das entidades civis, das associações civis, das ONGs, por meio do judiciário, é importante para a defesa do meio ambiente e defesa do direito dos consumidores. Especificamente no caso da Reforma Agrária, há necessidade do juiz ter uma sensibilidade social na questão envolvida, na questão envolvida. Por quê? Porque é uma questão que remonta a cinco séculos, desde da origem do país. É uma questão que vem da colonização, que uma camada da sociedade brasileira sempre teve acesso a terra e mantém este volume de terras de forma bastante grande, até hoje. Até porque, durante muito tempo, - acho que hoje diminuiu, mas ainda presente – o poder político era derivado da quantidade de terras que essa camada da população tinha. E uma outra camada da população nunca teve acesso ao meio de produção, né? Era uma camada da população desfavorecida, e por isso que gera uma desigualdade na distribuição de terras no Brasil. E que também nunca foi corrigida: os programas de Reforma Agrária nunca chegaram ao fim, os governos sempre foram econômicos e nunca fez-se nada que tivesse continuidade – nem durante o Regime Militar, que
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editou o Estatuto da Terra, nem depois da redemocratização do país a partir de 85. Então, o juiz, para entender esta questão, precisa um pouco considerar a evolução histórica desta questão. Eu chamo “evolução histórica da formação territorial do Brasil”. Porque está muito ligado a isso. E pensar, que muitas vezes, alguma atitude dos movimentos sociais são criminalizadas, não porque seja um crime em si, mas porque isso vai favorecer a manutenção deste próprio status quo. Nós, por meio da Associação dos Juizes Federais do Brasil, já fizemos vários trabalhos sobre esta questão de criminalização de movimentos sociais para a manutenção do status quo jurídico, - isso também está publicado, e foram trabalhos feitos durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre nas suas várias edições. Então, o juiz, e o juiz federal, que é um juiz que lida com políticas públicas, resumindo, é um juiz que tem que ter uma sensibilidade social para essas questões, e nas questões de Reforma Agrária ainda maior, porque a discussão envolve apelo social e envolve uma causa que é originária da formação territorial do país.
Entrevistador O Poder Judiciário vem desempenhando a contento o seu papel na execução da política de Reforma Agrária?
LG Não, acho que não. Não vem, porque as causas acabam ficando de grande litigiosidade, acaba-se demorando muito para se ter o resultado, e o resultado nesse tipo de demanda, quando demora, ele faz perpetuar o conflito existente. Se existe um conflito subjacente na sociedade, a demora da solução pelo Judiciário faz permanecer o conflito, envolvendo até risco de vida para as pessoas. Por isso é que eu, particularmente, defendo a posição, e a nossa entidade também, em vários seguimentos, que sejam criadas varas especializadas em questões agrárias, no âmbito da Justiça Federal, e varas que julgariam não só os processos relativos à Reforma Agrária, mas também as reintegrações de posse entre proprietários e trabalhadores rurais, que envolvesse discussão coletiva. Essa questão caminhou em 2004, foi apresentada ao Governo Federal, e o Governo Federal iria apresentar como projeto de emenda constitucional, e não apresentou até hoje, essa criação de varas federais agrárias. Mas a nossa defesa é isso, que a especialização vai trazer uma melhora no quadro. Não acredito que vamos, não vai resolver da noite pro dia, porque a causa é complexa. Mas vai melhorar o quadro. Você tendo juizes especializados, você tendo a quem recorrer, tendo interlocutores, irá criar um “meio ambiente”, dentro do Judiciário, favorável, que as causas tramitem com mais velocidade. E essa é uma demonstração que hoje não está sendo julgada a contento.
Entrevistador Em São Paulo, durante um tempo, houve uma vara especializada nessas questões de desapropriação. Por que foi modificada sua competência?
LG Na verdade, a criação que foi feita dessa vara especializada, foi feita de forma equivocada. Ela foi feita por uma norma administrativa do Tribunal, que baixou uma resolução e criou,
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dentre as varas da capital, uma que era especializada em matéria agrária. Na época, a Justiça Federal não tinha varas no interior do estado, eram varas todas na capital. Então, dentre as varas da capital, uma julgava essa matéria. A partir de 1992, a Justiça Federal começou a interiorizada em maior velocidade, e hoje nós temos 50 cidades que têm varas da Justiça Federal no estado de São Paulo, pra maior acesso da população ao Judiciário Federal. E, nesse meio tempo, foi julgado, num conflito de competência aqui do TRF, uma questão sobre uma ação de desapropriação para fins de Reforma Agrária, fazendo um confronto entre essa resolução interna e o código de processo civil, que diz que as causas que julgam imóveis, as causas de natureza real, têm que ser julgadas no foro do domicílio do imóvel. E acabou prevalecendo essa posição, porque a lei que ocorre o processo civil teria que prevalecer. E a resolução, então, foi revogada por decisão judicial do próprio Tribunal. A partir daí é que nós defendemos, então, a criação dessas varas especializas, que terão foro na capital, mas terão atuação, terão jurisdição em todo estado. Então as causas do estado todo concentrarão numa vara só, que pode estar localizada em qualquer lugar, de preferência também na capital, mas pode estar localizada numa outra cidade do interior. As causas serão concentradas ali, e o juiz irá se deslocar - até pra fazer vistorias e acompanhar os trabalhos - por todo o estado, né, seria uma vara que teria um caráter um tanto quanto itinerante, né. Então seria uma concentração, só que isso feito por meio de emenda constitucional e depois por projeto de lei, pra não ter essa discussão acerca da legitimidade perante o código de processo civil.
Entrevistador Os juizes, em sua maioria, possuem informação técnica-jurídica para atuar nessas ações de desapropriação?
LG A questão é perversa. (risos) Faço questão de usar esse termo: perversa. Porque é um ciclo de ineficiência. Não há cadeira de direito agrário nas faculdades. Até onde eu sei, no estado de São Paulo, nós temos quatro faculdades que ensinam direito agrário, que é: a Universidade de São Paulo, a Universidade São Judas, a Universidade Mackenzie e a Faculdade de Direito de Itu. São essas quatro faculdades. Eu, por muitos e muitos anos, fui e sou professor e "palestrista" de direito agrário e profiro palestras, cursos em vários lugares e sei do desconhecimento que os profissionais em direito, em geral, têm da matéria. Então a cadeira não é ensinada. Se não é ensinada, nós temos advogados, juizes, promotores, delegados de polícia, funcionários de cartório... todo o aparato que lida com a justiça, que passa pela faculdade de direito, desconhece o assunto; porque ele não estudou aquilo, ele não teve discussão na faculdade, ele não teve que pegar um livro... Ele sabe que existe, ele ouve dizer, geralmente por notícia de jornal, mas não tem uma proximidade com o assunto. Com isso - nós deveríamos ter as cadeiras, e já foi pedido ao MEC que incluísse no currículo geral. No entanto, nós sabemos que não há professores para dar a cadeira. Por quê?
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Porque as faculdades precisariam ter cursos de pós-graduação e não têm. A única faculdade, a única universidade que tem curso de mestrado e doutorado em direito agrário é a Universidade de São Paulo. Nem a PUC, que tem toda uma visão social do direito, uma vinculação com a igreja católica, nunca ensinou direito agrário na sua escola de direito. Nem a PUC de São Paulo, nem a PUC de Campinas. Isso no estado de São Paulo. Então, você teria que ter formação de professores, para que pudesse instituir isso na grade geral. E é isso, os profissionais do direito como um todo, acabam não tendo conhecimento na matéria. Não tendo conhecimento da matéria, o que gera uma perversidade depois, na aplicação dos institutos que eu acabei de mencionar, quando eles se judicializam. Porque os institutos são aplicados sem aquela chamada “mentalidade agrária”, que é um termo usado pelos agraristas antigos como Paulo Tomini, como Fernando Pereira Sodero, que falavam que o profissional precisava ter uma mentalidade agrária. Por isso, mais uma vez, que eu reforço: a criação de uma vara especializada seria um momento de fomento do estudo da matéria. Porque essa vara precisaria de profissionais como juizes, servidores do cartório, haveria procuradores da União, haveria advogados e membros do Ministério Público destinados a isso, e criaria-se um ambiente saudável para o estudo e o amadurecimento da matéria e da discussão. Isso aconteceu com a Justiça do Trabalho: o Direito do Trabalho no Brasil se desenvolveu muito a partir da criação da Justiça do Trabalho, porque você precisava de profissionais para trabalhar nesse novo ramo especializado da Justiça. Então o Direito Agrário é perverso por isso, você cria um ciclo: como você não tem professores, você não tem alunos e aí você não tem quem trabalhe direito, e você começa a não gerar professores. Então é ciclo todo, que eu tenho certeza e convicção, por experiência de vida, que nada é sem razão. A razão é justamente que a matéria não amadureça porque não se quer mudar o status quo atual.
Entrevistador Em que medida este despreparo dos magistrados e do sistema jurídico como um todo contribui com as mazelas do problema agrário brasileiro?
LG Eu não saberia dimensionar, não tenho pesquisas para fazer isso. Mas pela experiência de vida, sem dúvida. A falta de amadurecimento da matéria, gera uma falta de conhecimento. A grande maioria dos juizes, eu tenho convicção que são pessoas de boa fé, dedicadas ao seu trabalho e competentes. Mas muitas vezes não têm a informação jurídica-técnica suficiente para o julgamento. E com isso, vão aplicar outros ramos do direito no julgamento, numa causa que teria que ter uma mentalidade agrária envolvida: Direito Civil, Direito Administrativo, Processo Civil. E volto a falar: eu acho que a falta de desenvolvimento da matéria tem por dentro uma intenção também perversa, de que o desenvolvimento do Direito Agrário vai desenvolver maior questionamento. Então é melhor deixar como está, porque não se criam tantos problemas. No Judiciário, no Judiciário, o
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encaminhamento da questão, por incrível que pareça, hoje, eu acho que é bem melhor do que já foi há cinco, dez anos atrás, né. O trabalho dos movimentos sociais e da advocacia dos movimentos sociais vem esclarecendo a questão e vem melhorando a “assimilidade” do assunto, né? Hoje você tem um tráfego melhor dessas causas do que tinha há dez anos atrás, sem sombra de dúvida. Se hoje já não é muito bom, há dez anos era pior. Mas não é aquela discussão técnica ainda. Técnica-jurídica, da aplicação da Constituição, da função social da propriedade agrária, da discussão dos princípios que o legislador traz e assim por diante, né. Então, os processos acabam ficando muito mal trabalhados. Além disso – e aí volta na questão da especialização, que eu acho que hoje é a saída – além disso, as varas federais de São Paulo, elas são muito abarrotadas de processo, o que nós chamamos aqui, que o tráfego de processo aqui é bastante lento. E isto é, nós temos um número insuficiente de juizes para o volume de causas. E o juiz tem que lidar, então, com uma escolha de prioridades; e a Reforma Agrária, por mais prioritária que seja, são processos muito trabalhosos e de uma dedicação muito grande. E ele convive com processos da mesma vara, de benefício de aposentadoria, de auxilio doença, questões relativas a servidor público, relativas a sistema financeiro de habitação... Todas causas importantes, porque se está na Justiça é porque tem uma demanda de dois que tão litigando, e na Justiça Federal é sempre alguém litigando contra o Poder Público Federal. Então, por uma questão até de trabalho cotidiano, de sobrevivência diária, essa demanda, que é trabalhosa, que levaria um mês pra julgar, vai ficando pra trás. Porque ele vai julgar aquilo que está mais à mão, e que também é importante, que são principalmente as causas de aposentados, né. As varas do interior têm essas causas em volume bastante grande, aposentadoria rural, pensão por morte e etc. Então, há necessidade não só do aprimoramento técnico, mas de ampliação, de ampliação da estrutura judiciária, né? Da ampliação da estrutura judiciária, que no estado de São Paulo é ainda bastante pequena. Para se ter uma idéia, em 2002 a AJUF fez uma pesquisa, e se verificou que metade dos processos da Justiça Federal do país tramitam no estado de São Paulo. A outra metade tramita em 26 estados. E que o Tribunal Regional Federal da terceira região, este que nós estamos, o TRF, tem mais da metade dos recursos julgados pela Justiça Federal. Os outros quatro TRFs não são do tamanho, somados, não são do tamanho do TRF de São Paulo. Por quê? Porque é o estado mais populoso, é o estado onde as pessoas tem maior nível de acesso à informação, aos advogados, então o nível de questionamento judicial é muito alto, o que se transmite em muitas causas, né. E as questões de Reforma Agrária estão nesse meio, né, como mais um problema a ser resolvido.
Entrevistador Qual a tua avaliação do trabalho do INCRA nas ações de desapropriação?
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LG Eu não conheço muito o trabalho do INCRA. O que eu conheço são trabalhos muito bem feitos. Não tem grandes reclamações a fazer. Mas já ouvi reclamações de ineficiência do trabalho do INCRA, porque o número de procuradores é reduzido, e as causas estariam espalhadas por todo estado. Até diziam, na época da criação da vara especializada, que essa era uma demanda também para favorecer o INCRA, que tem os seus procuradores concentrados na capital. Era uma das alegações da época. Mas, sinceramente, não tenho conhecimento de trabalho ‘ineficaz’ do INCRA. Eu sei que falta estrutura... Tenho notícias de trabalho de perícias, de judiciais, de laudos de vistoria do INCRA, e que nem sempre são bem realizados. E o juiz tem que repetir essa prova. Não adianta o INCRA, na hora de fazer o processo administrativo, na hora de fazer o laudo de vistoria prévio à ação de desapropriação, ser tendencioso ou alterar... ou levar a questão de forma a criar as condições para a desapropriação, porque isso só cria meios e brechas pra depois haver uma discussão judicial sobre aquele laudo de vistoria. Então, quanto mais idôneo, mais isento, melhor detalhado for o laudo de vistoria, menor chance de discussão judicial aquilo terá depois no judiciário, né. Então, já ouvi dizer. Mas de perto, pessoalmente, de frente, não conheço e não posso dizer que haja um trabalho que não seja bom.
Entrevistador As leis que temos hoje são suficientes para o Estado desenvolver uma política pública capaz de resolver o problema?
Luciano Eu acho que são em parte, em parte são suficientes. Eu não acho que a lei complementar 76 é uma lei de processo boa. No atual ambiente constitucional, não teria meios de se fazer uma lei que fosse mais eficaz do que aquela, pela preservação do direito de defesa, a lei já é uma lei bastante rígida com o proprietário, que é o réu da ação de desapropriação. A lei 8.629 também, com as alterações que foram realizadas, me parecem condizentes, está de acordo com a jurisprudência do Supremo. Eu faria só algumas observações. A primeira questão é: se volta a falar da criação de vara especializada, e que exigiria uma alteração processual. A segunda é a inadequação e até uma inconstitucionalidade da Medida Provisória que proíbe a desapropriação de áreas ocupadas ou invadidas – que esse não é um obstáculo que a Constituição coloca, e eu sempre me posicionei, porque eu acho que é imprópria essa legislação, que o governo atual mantém. A terceira questão é o artigo 7º da lei 8.629 que autoriza a apresentação de um projeto técnico para imunizar a propriedade de expropriação agrária pelo prazo do projeto técnico. Essa é uma abertura que eu também acho que não deveria acontecer, porque ela isenta de forma muito fácil, alguém que hoje não cumpre a função social, mas que promete cumprir no futuro. E não há uma fiscalização do INCRA pra ver se esse projeto agropecuário está sendo executado. Outra alteração legislativa que acho que poderia ocorrer, seria na questão da prova técnica da Reforma Agrária, na perícia judicial, né. A perícia judicial não poderia ser deixada na mão de um perito só, e mais um perito que geralmente está na região do conflito, e
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que trabalha para os produtores rurais, né. Seria o correto aí. Então, eu acho que a prova pericial talvez seja o ponto maior que tem que ser atacado, para que a perícia judicial, que vai avaliar a vistoria do INCRA, seja feita por um corpo de técnicos. O laudo de vistoria é feito por vários técnicos: agrônomos, zootecnistas do instituto. A prova judicial não pode ser feita só por um agrônomo, teria que ser feita também por alguma instituição, por algum corpo técnico que pudesse ter uma maior amplitude de discussão, uma visão isenta daquela discussão sobre a produtividade do imóvel. Então, não só nessa questão, mas em outras também eu acho que a perícia judicial tem que caminhar para uma prova técnica institucional, um instituto, uma faculdade de agronomia, algum instituto de terras, ou pelo menos um corpo de peritos que pudesse fazer a prova de forma mais adequada, e com total isenção. Então é uma outra proposta de alteração legislativa que já fiz várias vezes. Ah, e por último, já estava me esquecendo, tem que ser discutido critérios legais para indenização. Porque se a falta de dinheiro do poder público é a maior alegação para a Reforma Agrária, nós temos que adequar a indenização que é prevista na Constituição, mas uma indenização que seja justa, que seja constitucionalmente admitida, mas que não seja também superavitária, que não seja uma indenização super valorizada. E aí a principal questão, que aí passa por reforma legislativa, mas também por evolução jurisprudencial, evolução da consciência do juiz, é a questão dos juros compensatórios em Reforma Agrária, que eu acho que não deveria existir, porque se a propriedade não cumpre função social, não deveria haver o pagamento de juros pela perda da propriedade. Juros sim, de mora, pelo atraso no pagamento. Mas não os juros compensatórios. Já existem alguns precedentes de Tribunais Regionais Federais, principalmente da primeira região e do Superior Tribunal de Justiça, e eu acho que é um caminho que nós vamos percorrer e alcançar, que é o não pagamento de juros compensatórios na indenização da Reforma Agrária.
Entrevistador Uma ação de desapropriação, ela tem início com uma vistoria prévia do INCRA, que desta vistoria prévia autoriza um decreto presidencial. Esse decreto presidencial autoriza a ação desapropriatória. No entanto, nós temos observado que, em alguns casos, o proprietário consegue impedir o andamento da ação desapropriatória com um mandado de segurança no STF, discutindo o objeto central da ação desapropriatória que é o laudo prévio, ou algum problema na elaboração e na produção do laudo técnico, o laudo prévio. Como decidir isso, já que através da ação desapropriatória o Poder Executivo está realizando uma obrigação do Estado, que é a política pública de reforma agrária?
LG É. Em princípio, se há uma concessão de uma decisão judicial obstando a política pública, a idéia central, a idéia nuclear, seria que houve um problema legal, processual, de adequação do procedimento administrativo que gerou o laudo de vistoria. O Supremo tem a competência constitucional para fazer o controle
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de legalidade dos atos baixados diretamente pelo Presidente da República - artigo 102 da Constituição. Por isso que os mandados de segurança, quando decreta o Presidente da República, vão ingressar direto também no Supremo Tribunal Federal. Em razão disso que o Supremo tem a competência constitucional. A parte lesada vai ao Supremo porque verifica que tem a possibilidade de questionar o ato do Presidente da República por algum aspecto formal, naqueles mandados de segurança originariamente propostos pelo Supremo, só pode haver o questionamento de aspectos formais do procedimento administrativo que gerou o laudo de vistoria prévio ao decreto expropriatório. Por isso que eu disse que é muito importante que os procedimentos administrativos do INCRA sejam levados de forma muito adequada, muito... de forma muito rígida, sob o ponto de vista da lei, pra não se abrir brechas para questionamentos futuros. Porque a questão, a causa agrária, a questão agrária, não é segredo pra ninguém, tem uma litigiosidade inerente muito grande: o proprietário expropriado, ou em expropriação, resiste muito a que haja a expropriação. Os advogados que trabalham com essa matéria, geralmente têm uma dedicação bastante grande, gerando uma dificuldade até de realização de acordos. É um ambiente onde a possibilidade de acordo sempre é muito complexa, é muito difícil, porque envolve uma belicosidade bastante grande. E isso que eu acho que deveria partir pra se diminuir. Lógico que o Estado tem que desenvolver a política pública, mas sob o ponto de vista das partes envolvidas, teria que ter uma certa acomodação, uma certa forma de se encaminhar para, vez ou outra, ter acordos. Mas é uma causa judicial que envolve aspectos ideológicos, envolve aspectos políticos, sociais e vem tendo nos últimos trinta anos, com certeza, um nível de belicosidade bastante grande, e isso acaba desaguando na mão do juiz e do judiciário. Por isso a necessidade de uma maior consciência, de maior informação, de maior proximidade do Judiciário com a questão agrária, para que ele possa ter essa sensibilidade no julgamento. É verdade, é sabido também, que o judiciário é um dos ramos mais conservadores da sociedade; e quanto mais se sobe na hierarquia institucional judiciária, mais conservadoras são as decisões. E essas causas exigem uma posição mais progressista da Justiça para solução do problema. Então talvez aí também uma das, vamos dizer, das frustrações, que a sociedade, que os movimentos sociais, que aqueles que querem ver a Reforma andar têm da própria atuação do Judiciário. Eu junto tudo: é a falta de estrutura, falta de formação, falta de sensibilidade e também uma inadequação dos procedimentos administrativos ao poder público, que geram abertura para o questionamento judicial.
Entrevistador A Constituição Federal, nas ações de desapropriação pode ser interpretada de duas maneiras: uma autorizando a desapropriação, apenas pelo critério da produtividade, e uma outra interpretação, onde é possível desapropriar propriedades a
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partir do descumprimento da função social. Qual a tua opinião sobre isso?
LG Este é um dos núcleos da minha defesa de dissertação de mestrado, está num livro publicado, que chama "Direito Agrário Constitucional", que eu acho que como foi adotado pelo critério da lei agrária 8.629, que o artigo 185 da constituição deve ser interpretado, que a propriedade pode ser desapropriada, aquela propriedade improdutiva, e também a propriedade que não cumpre a função social. Quando a Constituição diz: "é imune à desapropriação a propriedade produtiva", quer dizer a propriedade produtiva que cumpre a função social da propriedade. Infelizmente, a Justiça, pros seus tribunais, já foi mais pró a essa posição que eu falei. As decisões já foram mais no sentido de harmonizar o artigo 184, 185, 186, para criar o meio ambiente favorável à desapropriação, mediante complementação social. Recentemente, tenho visto decisões dos Tribunais Superiores e também dos Tribunais Regionais Federais, na posição de interpretação mais literal - que eu volto a dizer, eu acho que não é a melhor, acho que está errado - que é "a propriedade é produtiva, então não cumpre função social". E isso leva a um outro problema: até a Constituição de 88, o Judiciário não podia apreciar a legislação anterior à Constituição de 88 à improdutividade do imóvel. Isto é, se ele era produtivo ou não, se ele cumpria a função social ou não. E isto era uma discussão que acontecia no âmbito só do procedimento interno da administração pública, do procedimento interno do INCRA. A partir da Constituição, passou-se a discutir, na ação da desapropriação, se o imóvel cumpre função social ou não. Então, eu trouxe um volume de questões de fato, que eram questões que não eram julgadas no processo judicial, e hoje são. A discussão de fato, é o maior entrave para o encerramento célere da desapropriação, porque fica toda uma discussão de produtividade por perícias, por laudos técnicos, até onde ela pode chegar ou não. Se nós formos ver o procedimento geral da lei de desapropriações, de uma desapropriação normal, do dia-a-dia da administração pública – que o metrô de São Paulo desapropria para construir estação de metrô, ou a prefeitura desapropria para fazer uma rua, uma avenida, ou um posto de saúde ou uma escola - o Judiciário não pode ingressar no mérito da desapropriação, não pode ingressar no motivo da desapropriação, porque a lei geral de desapropriação proíbe. Isto é, o juiz não pode dizer: "olha, esse lugar aqui não é bom pra fazer uma escola, aqui é bom fazer um hospital", então eu julgo improcedente a desapropriação que quer fazer escola, ou julgo improcedente a desapropriação pra construir estação de metrô, porque não é bom passar uma linha de metrô nesse lugar. O judiciário não pode fazer isso, sob pena de interferência de um poder no outro. Na verdade, é o administrador, o Poder Executivo, eleito pela maioria da população, que tem a possibilidade de fazer as opções políticas de onde se gasta o dinheiro público, e isso envolvendo os projetos de políticas públicas de execução dos atos.
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O juiz da desapropriação normal da lei geral de desapropriação verifica o quê? Se o procedimento seguir os requisitos da lei, se há legalidade, e se a indenização está sendo ofertada no preço que reflita o justo preço de mercado. No entanto, na Reforma Agrária, o motivo da desapropriação, que é o não atendimento da função social, é o mérito da própria desapropriação, é o que mais se discute. Então, é uma desapropriação que tem uma discussão, vamos dizer, ampliada, uma discussão mais complexa, porque você traz pra dentro de um processo que foi feito pra discutir só questões de direito, você traz toda discussão da matéria de fato. E é isso que entrava. Porque a matéria de fato é conflituosa, a matéria de fato ela é debatida, a matéria de fato, ela tem que ser feita a partir de discussões em laudos técnicos, né, e o juiz tem que fazer ali opções do que ele acha que é a discussão técnica. Aí, você vê jurisprudência da Reforma Agrária discutindo: "a mata não explorada, além da reserva legal, é indenizada ou não?"; "O custo da aração da terra pra se fazer a pastagem, é indenizada ou não?"; "A cerca, as construções, os barracões, são indenizados pelo valor de custo ou pelo valor atual?"; "Deprecia-se o valor do custo ou não se deprecia?". Então, são discussões que vão fazendo com que o processo se demore. A discussão em torno da produtividade e em torno da indenização.
Entrevistador Na tua opinião, é possível desenvolver alguma política de Reforma Agrária tendo como principal mecanismo o mercado, ou seja, a compra e venda de imóveis, para o assentamento de lavradores, os sem-terra?
LG Não sei dizer. Isso deveria ser feito a partir de estudos do próprio INCRA. Com certeza o nível de debate político e agilidade do processo seria maior. Nós teríamos, vamos dizer, maior agilidade com menos desgaste dos atores desta questão, dos atores desta questão. Por outro lado, a Constituição tem um comando que não abre mão de que o Estado atue por meio da desapropriação. Então, sendo alguém que trabalhou na terra e que tem uma experiência, sem maiores dados técnicos, eu acho que deveria aliar os dois meios. Não acho que a gente deva abrir mão, a princípio, nem de um modelo, nem de outro. Deve-se aliar alguns meios. O país é muito grande, a legislação é nacional, talvez em algumas regiões do país se aplicar a desapropriação, porque é adequada, e esses outros meios onde houver oferta de terras a preços mais baixos, não se justifica a desapropriação. Nós sabemos, também já foi dito, que em algumas regiões do país onde há excesso de oferta de terras, até por questões de má organização de recursos, foi feita desapropriação para favorecimento dos próprios expropriados. Se o Governo comprasse aquelas terras, compraria mais barato do que a desapropriação. Então, eu não excluiria nenhum dos meios, né. E acho que sempre os processos devem ser transparentes, com maior controle público possível, com participação do Ministério Público, com participação dos interessados, do trabalhadores, dos
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movimentos sociais, assim que o país vai avançar numa democracia plena e com transparência.
Entrevistador Bom Dr., se desejar pode fazer considerações finais, ou algum conselho aos estudantes de direito?
LG É, eu acho que nós temos que trabalhar para criar um meio ambiente favorável a estudos do Direito Agrário. Precisa-se ampliar o estudo, por meio de, primeiro por cursos de extensão, depois por centros formadores de professores, por cursos de especialização, para nós podermos depois caminhar para uma segunda etapa da instituição da matéria como cadeira obrigatória nos cursos de direito. Hoje, muito provavelmente, nem uma literatura básica para o estudo vai se encontrar com qualidade, né? E eu, que estudo Direito Agrário há 15 anos, não há um dia nesse país nos últimos 15 anos que você não abra o jornal e não tenha uma notícia de um conflito de terras. Isso eu digo porque presto atenção todos os dias. Todos os dias, nos grandes jornais do país, há notícia sobre o conflito de terras. E a matéria, juridicamente, ela é pouco estudada. Então, preciso da ajuda, e estou à disposição para ajudar outras pessoas, mas precisa haver uma rede de esforços entre aqueles que têm afinidade com a matéria, para criação de um meio ambiente saudável ao estudo e à criação de disciplinas. E enquanto isso, cursos de extensão, e cursos de especialização, e convênios com a escola da magistratura, com escolas do Ministério Público, com as faculdades de direito para a divulgação da disciplina e estudo da matéria, e assim nós vamos criar aquilo que chamamos uma “sensibilidade agrária”, de uma “mentalidade agrária”, naqueles que são advogados, juizes, promotores, delegados de polícia, servidores do judiciário, do Ministério Público e do próprio Poder Executivo.
Entrevistador Muito obrigado. Luciano Eu que agradeço.
Entrevista com Juiz Federal aposentado Sérgio Lazzarini Dia 9 de junho de 2006 – Rua Hadock Lobo, 337 – São Paulo/SP
Entrevistador Eu gostaria de algumas considerações do senhor sobre o problema
agrário brasileiro. Ainda cabe falar em Reforma Agrária na atual conjuntura brasileira, na atual estrutura agrária brasileira?
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SL Bom, eu tive contato mais efetivo com essa questão da Reforma Agrária, foi quando eu fui juiz federal, na Justiça Federal de São Paulo, a partir de 1987. Na época, eu fui titular da 21ª vara de São Paulo, que era a única vara incumbida de qualquer feito, em todo o Estado de São Paulo, especializada em Reforma Agrária. Interessante notar que, à época, anterior à Constituição de 88, toda a legislação que existia, que regulava a matéria, era uma legislação vinda do Regime Militar. E, por mais que possa causar espécie, o famoso Estatuto da Terra, que foi feito na época do Regime Militar, foi considerado, e ainda é, um dos diplomas jurídicos mais aperfeiçoados em matéria de Reforma Agrária. De lá pra cá, não se conseguiu fazer, ainda, um instrumento jurídico mais eficiente e bem elaborado, daquele que foi feito dentro do Regime Militar. Esse Estatuto da Terra, à época, 1987, ele estabelecia critérios, normas reguladoras da Reforma Agrária, do uso da propriedade com uma função social definida, que talvez não sejam os mesmos critérios de hoje, modernos, porque a tecnologia avança, o maquinário avança... E o que inspirava a Reforma Agrária na época, até mesmo nessa legislação ainda hoje, é a fixação do homem na terra, e uma fixação com o uso produtivo da propriedade, preenchendo a sua função social. Hoje em dia, muitas propriedades rurais são extensas, enormes, são produtivas, mercê de maquinários, implementos agrícolas, que muitas vezes se realizam sem a primeira preocupação, que é a fixação do homem na terra. Hoje, vemos que está havendo um fenômeno diferenciado, que merece um estudo profundo: a produtividade da terra, hoje, está cada vez mais ligada aos interesses agrícolas, aos maquinários, do que à ação humana. Vejam-se por exemplo as grandes fazendas de soja, que produzem, que são grandes responsáveis por produção de exportação no Brasil, e pela balança de pagamentos. O número de pessoas que trabalha nessas fazendas é muito pequeno; são grandes máquinas, grandes maquinários. Então, me parece que hoje, a questão da Reforma Agrária ainda está sendo vista sob um enfoque de 30 anos atrás, ou 20 anos atrás, com uma mudança social muito rápida que nós estamos experimentando. Então, qual é o problema que se vive hoje: há cada vez menos gente assentada na terra, muitas áreas latifundiárias produtivas – o latifúndio é produtivo, e hoje, tem-se grandes latifúndios produtivos – e o problema da fixação do homem. Eu me lembro que, na época, já o INCRA, que era bastante eficiente, ele tinha um problema: ele fazia a desapropriação para a Reforma Agrária, e o problema maior do INCRA não era fazer a desapropriação; o problema maior era, depois, como assentar, quem assentar e de que maneira assentar. Então, tínhamos muitos processos na vara que, de um simples processo de uma desapropriação de uma fazenda tida como improdutiva, surgiam inúmeros processos de briga de assentamento. Porque o INCRA tinha uma classificação de famílias, os trabalhadores do Movimento Sem-Terra impunham uma outra lista de pessoas que eles achavam que deveriam ser assentadas; muitos assentados ficavam um tempo, não produziam na terra e vendiam a área, o INCRA acabava
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pedindo reintegração de posse de lotes, e eu tive muitas ações desse tipo. Então, no Estado de São Paulo, que é um Estado que tem muita produtividade, nós tínhamos umas duas ou três áreas conflagradas, e tínhamos na vara umas seis, oito desapropriações, no máximo, para reforma agrária. Mas o número de problemas surgidos depois era muito maior, e aumentava o número de processos. Isso falando genericamente de todos os processos. Um outro problema que existia muito, na época: quando começavam esses movimentos de invasão de terras, e de reintegração de posse, isso tudo ficava, por competência, ao julgamento da Justiça Estadual. Só passava à Justiça Federal quando o Presidente da República fazia um decreto de interesse social federal. Aí então a competência se deslocava para a Justiça Federal. Enquanto isso, os conflitos continuavam na Justiça Estadual, e era juiz estadual dando liminares, Tribunal de Justiça cassando...etc. O que fazia o Movimento dos Sem-Terra na época, e faz hoje: forçava a desapropriação de fazendas tidas como improdutivas, e se o Governo Federal se conscientizasse que, pela análise do INCRA, era isso mesmo, fazia um decreto de desapropriação. Posteriormente – eu não sei se foi no governo Fernando Henrique – como começou a haver muita invasão de terras pra provocar o processo de desapropriação, fizeram um decreto que impedia o Presidente da República de desapropriar se a área estivesse invadida.
Entrevistador: Medida Provisória. SL Uma medida provisória. E... foi fazer um escudo para o próprio
Presidente da República ter uma desculpa pra não desapropriar mais. Aliás, foi o problema do incidente, na semana passada, no Congresso, que parece que era pra revogar esse dispositivo. Aquela invasão toda lá no Congresso, parece que era esse que... o objetivo era esse. Pela notícia no jornal.
Então, o que eu vivi na época, esses processos de desapropriação - com exceção da Fazenda Timboré, que teve esse caso de uma cautelar de seqüestro – as outras desapropriações acabavam sendo feitas normalmente. Eu me lembro que tinha uma desapropriação grande, enorme, de uma área nobre da famosa família Ribas, e acabou em indenização, em pagamento com títulos, e... foi desapropriada, não teve problema. Resistiram, mas depois a desapropriação foi feita. Então, as desapropriações que foram feitas na época, todas foram realizadas, com exceção dessa da Timboré, que ficou, que foi contestada até o Supremo Tribunal Federal.
Entrevistador Como o senhor analisa a participação do Poder Judiciário na
execução de uma política pública, nesse caso a política pública de Reforma Agrária?
SL Bom o Poder Judiciário, tem que se saber sempre, é um poder que não toma iniciativas. O Judiciário é um poder chamado “passivo”, porque age por provocação de alguém. Nenhum juiz determina a abertura de um processo, nenhum juiz determina a iniciativa de uma desapropriação, ou qualquer coisa. É preciso que alguém provoque o
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assunto. Então, o que o Judiciário pode fazer, nesse momento, é, uma vez provocado, uma vez instaurado o processo, através do juiz – com aquele ensinamento de que ele deve atender mais a função social da propriedade e da própria lei, os fins sociais da lei – ao aplicar a lei, ponderar e estabelecer o equilíbrio das relações sociais. Aí eu acho que o Judiciário ajuda muito. O Judiciário que evita conflitos sociais, ou que, de certa maneira, contorna problemas graves fundiários, ele colabora pra evitar problemas mais graves. Porque um juizado insensível, ele acaba ocasionando conflitos maiores, de conseqüências maiores. Uma vez provocado, instaurado o problema, cabe ao juiz ter o equilíbrio necessário para adotar todas as medidas para evitar danos maiores à própria sociedade.
Entrevistador O senhor acha que a instituição de varas especializadas, ou uma
Justiça Agrária especializada, seria a solução? SL Eu vou lhe dar um dado histórico: quando eu assumi a 21ª vara de
São Paulo, ela era, como todas as outras, uma vara cível, com competência geral. E, na época, se pretendia ampliar o numero de varas federais e era Presidente Sarney que queria criar varas especializadas em Reforma Agrária. E todos achavam que criando varas especializadas em Reforma Agrária isso iria resolver todos os problemas sociais do Brasil, e... efetivamente isso não resolve. Então, os Membros do antigo Tribunal Federal de Recursos convenceram o Presidente que não precisava fazer varas especializadas, varas exclusivamente agrárias. Eles o convenceram que poderiam determinar determinadas varas, com competência exclusiva agrária – que foi o caso da 21ª em São Paulo que, como eu lhe falei nós tivemos de 6 a 8 processos de Reforma Agrária, só. E não se justificava, e não se justifica criar em determinados lugares varas exclusivamente agrárias, porque... é... não há tanto número de processos que justifique uma vara exclusiva disso. E, você tendo uma vara com outras competências, que seja especializada nessa matéria, dá pra processar tudo, sem necessidade de uma vara específica só pra isso. E com um outro agravante: se se cria uma única vara, com uma única competência, no fim, fica-se na mão de um único juiz, que poderia ter um entendimento de um lado ou de outro, e... não... não ajuda, eu acho que complica mais. Ao passo que hoje a Justiça Federal tem competência de todas as varas estaduais – antes era só São Paulo -, temos, no interior, vamos dizer, 10, 12 juizes federais com competência agrária, que podem até temperar uma jurisprudência melhor. Porque é perigoso, para um lado e para o outro, ter um único juiz em um único Estado, com competência exclusivamente agrária. Ele teria o “monopólio” da Reforma Agrária, uma única pessoa.
Entrevistador O senhor tem alguma avaliação sobre o trabalho que o INCRA
realizava e realiza na execução da Reforma Agrária? SL Olha. Na execução, eu realmente não acompanhei, não se sabe do
resultado. O que chegava às nossas mãos era o processo de desapropriação, e aquilo que eu lhe falei que eu sentia: depois de
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um ano, alguns meses, depois de feito a imissão na posse, o INCRA demorava mais ou menos um ano pra fazer os assentamentos. Depois de feitos os assentamentos, começávamos a ter problemas secundários em relação a eles. Eram lotes que não produziam, assentados que acabavam indo embora e vendiam o seu lote, ou então cediam para terceiros, o INCRA se via obrigado a entrar com a reintegração, invasão de lotes dos assentados por terceiros, por posseiros, nada a ver com a Reforma Agrária... Então, aí surgia um outro tipo de processo. Isso é o que a gente via na Justiça. Agora, parece que, no geral, os assentamentos e a Reforma Agrária, na época, estavam indo razoavelmente bem. Agora tudo isso depende de o INCRA ter recursos, ter dinheiro – Reforma Agrária se faz pagando as fazendas, ainda que em títulos da dívida agrária. Me parece, a impressão que eu tenho, é que hoje o INCRA tem menos recursos pra fazer a Reforma Agrária do que tinha naquela época. Não sei se... por conta de toda uma política econômica, de contingenciamentos, de necessidade de... de se diminuir verbas... Na Reforma Agrária, não sei se está funcionando agora como funcionava na época.
Entrevistador A legislação agrária dá suporte necessário ao Poder Executivo para
executar uma política de Reforma Agrária séria? SL Dá. Eu acho que sim. Eu acho que o Estatuto da Terra, no Brasil, é
um documento muito bem feito, com muito estudo, durante anos, comparativamente com outros países. E não é por falta de instrumentos jurídicos que não se faz a Reforma Agrária, não. Instrumentos jurídicos existem. De lá pra cá, até piorou um pouco, com essas alterações legislativas que inibem, de certa forma, a desapropriação de algumas áreas, porque tem invasão, ou porque considera o imóvel produtivo. Mas a legislação está à disposição do governo, se quiser... não vejo problema, não.
Entrevistador E por que não faz a Reforma Agrária? SL Por quê? Isso é decisão política. Fazer Reforma Agrária ou não fazer
é decisão política de governo. Isso... tem que ter vontade política. E volto a falar aquilo, eu não sei se hoje o conceito de Reforma Agrária que se fez, de desapropriar uma terra, dividir em lotes, entregar e assentar, se está funcionando, hoje. Até porque, muitas áreas improdutivas e desapropriadas, são improdutivas e continuam improdutivas. Então, o que se faz: tira-se de um latifundiário, divide em lotes, dá para os assentados, que não conseguem produzir quase nada, a não ser uma agricultura de fundo de quintal, que não... não resolve. E acaba não fixando o homem na terra.
Entrevistador Gostaria de saber a sua opinião sobre a função social da
propriedade. A Constituição fala que “será desapropriada para fins de Reforma Agrária a propriedade que não cumpre a função social”. O artigo 186 estabelece os critérios para a perícia. E o artigo 185, parágrafo segundo, diz que não será desapropriada a terra
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produtiva. Na opinião do senhor, o INCRA, e o Poder Judiciário, deveriam utilizar o critério da função social, ou o da produtividade?
SL Existe uma regra de hermenêutica, de interpretação da Constituição, que diz que existem normas com conflito aparente, na Constituição. Então, é muito comum nós encontrarmos artigos ou parágrafos que, às vezes, colidem uns com os outros. Esse é um caso típico, em que um artigo diz que não poderá desapropriar a fazenda, a área produtiva, e o outro fala da função social, e diz o que se considera o cumprimento da função social. A saída que os juristas têm para isso é uma expressão que diz o seguinte: na Constituição existem “conflitos aparentes” de normas. Não existem conflitos de normas na Constituição. Então esses conflitos são aparentes. O que quer dizer que eles têm que ser interpretados conjuntamente. Então, quando se fala em função social da propriedade, isso já é uma expressão que já é pra afirmar que não existe a propriedade privada absoluta. Qualquer que seja o interesse social, o particular pode perder a sua propriedade pra isso. Quando, para fins de Reforma Agrária, se colocaram aqueles requisitos do 186, nós achamos que aquilo basta, e é suficiente, para configurar a função social. E a expressão “produtividade” está embutida naquilo que diz do uso racional da terra, como os bens de preservação do meio ambiente, etc. Então, falar que “basta a produtividade” – pra mim nunca foi, e acho que isso nunca foi contestado – a simples produtividade não é motivo suficiente para não fazer Reforma Agrária. Porque, imagine um grande fazendeiro que tenha uma fazenda produtiva, e que usa o trabalho escravo no imóvel. Então ele não está preenchendo a função social. Ou que ele tenha uma fazenda produtiva e comece a desmatar toda a área da Amazônia, em desobediência ao meio ambiente, para produzir e para plantar. Então, o critério de produtividade é o minus em relação aos requisitos do 186.
Entrevistador No caso especifico da fazenda Timboré. É possível que foi um
equívoco do INCRA entrar com a ação apenas dois anos após o decreto presidencial que declarava a área de interesse social para fins de Reforma Agrária?
SL Olha, o retardamento dessa ação deve se dar por motivos, acho que meramente econômicos e financeiros do governo, porque o... ao desapropriar, ele tem que indenizar a parte de benfeitorias produtivas, tem que depositar em dinheiro, quando tem a emissão na posse. E o restante é que o governo emite os títulos da dívida agrária. E pode ser que, na época, não tinham reservado recursos pra fazer a emissão na posse. Só isso. Mas o INCRA estava preparado, já tinha... o cadastramento da fazenda, já tinha o laudo... tinha tudo. Isso é um aspecto formal, de não ter desapropriado em dois anos, que foi o motivo pra anular o processo, mas a realidade é que você joga no vaso o decreto de interesse social. Então... se não for em dois anos, renova-se novamente. Eu acho que o governo, quando viu que a área ficou conflagrada, começou... aí ele se apressou em fazer outro decreto pra desapropriar.
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Entrevistador No caso da Timboré foi utilizada uma ação de seqüestro
protagonizada pelo INCRA. Na avaliação do senhor, essa ação foi uma saída adequada para a situação?
SL Na época, eu me lembro que, no Estado de São Paulo, nós não tínhamos tido um conflito fundiário tão grave como aconteceu... os seguranças da fazenda, de tiroteio... E não se imaginava que pudesse chegar a um Eldorado de Carajás, como aconteceu mais tarde. Mas foi pra evitar, imaginando que uma coisa dessas pudesse acontecer, que nós fizemos, que o INCRA requereu o seqüestro da área e eu concedi. E, graças a Deus, eu acho que com aquilo, pelo menos, nós pacificamos o conflito e evitamos mortes, e coisas piores. Talvez, se tivessem feito isso em outras áreas, não tivesse acontecido o que aconteceu. Porque aí, gera conflito armado, e no conflito armado as conseqüências são imprevisíveis. Não há quem saiba onde elas possam terminar.
Entrevistador Porque que o INCRA não faz uso rotineiro desse instrumento? SL Mas eu acho que agora o INCRA tem esse impedimento legal, não
existia essa norma legal, antes, que impedia de se adotar qualquer medida judicial, relacionada com a desapropriação, de área invadida. Eu acho que hoje, o INCRA... se o INCRA fizer isso, ele pode submeter a sua diretoria, os seus agentes, a processos por... processo crime, até, por descumprir a lei. Hoje tem lei impedindo esse uso. É lei, e vale pra sempre. Para todo o sempre. Então, eu acho que o INCRA não tem hoje a legitimidade processual pra fazer isso, sob pena de desobedecer ao impeditivo dessa medida provisória. E talvez tenha sido... também para o governo - para os governos, sem falar em qualquer governo - uma blindagem de evitar que ele se veja forçado a desapropriar para a Reforma Agrária toda vez que houver uma invasão, e se essa invasão ficar cada vez mais grave com ameaça de conflito o governo tem que intervir e pedir o seqüestro. Porque aí, como aconteceu nessa, ele pode ser condenado a pagar grandes indenizações.
Entrevistador A ação indenizatória proposta pelo proprietário contra a União, onde
ele conseguiu indenização pelo valor da terra nua, benfeitorias e lucros cessantes no valor de 9 milhões de reais. Se fosse feita uma desapropriação direta, com o pagamento por títulos da dívida agrária, esse valor seria menor?
SL Olha. Eu não conheço exatamente o que aconteceu depois disso, nessa ação. Mas supondo que ele entrou com uma ação de indenização porque a ocupação do INCRA foi tida como irregular, o que se pede, no fundo, é perdas e danos pela perda da posse, apenas, nesse período. E, nas ações de reintegração de posse, que se discute a devolução da posse para o proprietário, se calcula uma espécie de um aluguel, que seria 1% do valor da propriedade. Então... nas ações cíveis em geral, a indenização calculada é essa. Se se imaginar que alguém fique com uma propriedade por 10 anos, a juros de 1% ao mês, em 10 anos eu tenho 100% do valor da área,
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a titulo de ação, como se fosse só o aluguel, sem a perda da propriedade. Talvez seja porque aí eles pediram a indenização, e ainda estão pedindo a indenização pra pedir a fazenda de volta.
Entrevistador Na ação indenizatória eles pedem o valor da terra, como sendo uma
desapropriação indireta, mais lucros cessantes, do fato de ter deixado a área durante dois anos, e mais o valor das benfeitorias que havia naquela época.
SL Bom. Eu não sei o que foi essa ação de indenização. Porque essa indenização, você pode transformar a ação numa simples ação de perdas e danos, sem que ele esteja renunciando o direito à propriedade, ou ele pode pedir as perdas e danos, e também já pede pra transformar a desapropriação indireta, porque ele já deu como perdida a área. E nesse valor de 9 milhões que você me falou, eu não sei se esse valor foi só pelos lucros cessantes, ou se foi também já pra desapropriar indiretamente a área. Se já foi pra desapropriação também, aí ele não poderia pedir a reintegração, porque ele já pediu o pagamento da expropriação indireta da área.
Entrevistador O senhor tem algum conselho aos estudantes de Direito? SL Olha, eu acho que, para os estudantes, a Justiça é... é muito bonita,
tem aspectos muito interessantes, e esses conflitos que existem, principalmente de Reforma Agrária, são assuntos que fazem o juiz, os advogados, as partes, pensarem muito na utilização da terra, na... na tentativa de fazer as ligações do homem com a terra, o seu assentamento. Eu apenas levanto um problema para a discussão: será que hoje, nos dias de hoje, com a tecnologia moderníssima, com equipamentos, com a informática, com a globalização do mundo, se nós não temos que repensar uma maneira de fazer a Reforma Agrária, para ver se nós também não estamos caindo num desuso, que também não resolve o problema social, e vai agravar cada vez mais. Será que os postulados da Reforma Agrária de 20 anos atrás são os mesmos de hoje? Essa é a grande questão.