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32 ABRIL 2014 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL ABRIL 2014 33 Quando escrever é De origem pobre no interior de Minas, o escritor Luiz Ruffato faz de trabalhadores urbanos e subempregados seus protagonistas. Para ele, a democracia só será plena com educação Por Vitor Nuzzi e Sônia Oddi C om tranquilidade, Luiz Ruffato dribla a provocação: como pode alguém nasci- do em Minas Gerais e morador de São Paulo ser torcedor do Flamengo? Se ain- da fosse o Botafogo do Paraíso, bairro de Cataguases, onde ele nasceu, em 1961... Mas também tinha o Flamenguinho cataguasense, que teve como goleiro Humberto Mauro, referência dos primórdios do cinema brasileiro. Um mito do cinema, aliás, anda solto pelo apartamento: Federico Felino, o gato mais velho, parceiro de Sky. Antes de se tornar escritor, tal- vez mais conhecido fora do país do que aqui, Luiz foi ajudante de pipoqueiro (o pai, Sebastião), balconista de armarinho, operário de indústria têxtil, gerente de lanchonete, vendedor de livros, torneiro-mecânico e jornalista. Aos poucos, como poderia dizer o tam- bém mineiro Carlos Drummond de Andrade, foi penetrando surdamente no reino das palavras. Luiz conta que sabia que seria escritor. Algo muito distante de sua realidade pobre na pequena Catagua- ses, uma cidade com divisões sociais bem definidas: burguesia, classe média, operariado, lúmpen. Fazer o curso de tornearia mecânica no Senai significava um grande passo. “Algo como sair da pobreza extre- ma para a pobreza.” Por isso, entende-se o susto de dona Geni quando o filho adolescente viu uma novela, O Feijão e o So- nho (1976), e disse que seria escritor. Como o pro- tagonista (Cláudio Cavalcanti), que sonhava em se dedicar apenas à poesia, mas que tem uma mulher pragmática (Nívea Maria) e precisa trabalhar para sustentar a família. Para construir o sonho, Luiz foi atrás do feijão. E tornou-se, talvez, o primeiro a pôr em primeiro plano o garçom, o faxineiro, a balco- nista – trilhando o caminho aberto por Roniwalter Jatobá –, preocupado em não idealizar o trabalhador. Para ele, esse mundo não aparece mais na literatu- ra brasileira porque o país, e não só os autores, des- preza o trabalho. O livro Eles eram muitos Cavalos, de 2001, tornou o escritor, então com 40 anos, co- nhecido fora do Brasil, premiado e com traduções em alemão, espanhol, francês, inglês e italiano. Ele vê melhoras no país nos últimos anos, mas diz que trocaria qualquer programa por uma política de edu- cação de qualidade para todos. E observa certa es- quizofrenia. Por um lado, ensino público e privado muito ruim. De outro, iniciativas como a de Otávio Júnior, o chamado “livreiro do Alemão”, criador de um projeto de bibliotecas no complexo de favelas ca- rioca. “Um moleque carregando um monte de livro pra criança numa caixa de plástico, no meio do ti- roteio. E sem receber nada, porque gosta. Como ele, conheci vários. Este país é esquizofrênico.” Quando se lembra de 1964, costuma-se falar das prisões, torturas, mas e a educação? O gol- pe interrompeu um projeto? A história do Brasil é uma história de exclusão. O que a ditadura fez não foi destruir um projeto em andamento, mas o que tinha de educação pública. As pessoas dizem que antigamente a educação pú- blica era boa, hoje é uma porcaria. Mentira. Era para meia dúzia de pessoas. Em Cataguases, quem tinha acesso à educação era a elite. A classe média baixa não tinha sequer acesso à educação, o nível de anal- fabetismo era altíssimo. O que a ditadura fez foi pe- gar esse restinho de educação e também destruir. A ditadura de 1964 não é um evento isolado. A história ENTREVISTA ENTREVISTA COMPROMISSO política do Brasil é uma história de golpes. Esses 29 anos de de- mocracia, que não é nada, são o maior período de democracia de toda a história do Brasil. Com tantos problemas, por onde começar? Antigamente eu achava que eram várias frentes. Hoje eu acho que é uma frente só: a educação. Saúde, por exemplo, é uma questão que se você quiser, resolve em cinco anos. Educação, não. Se você começar hoje, vai ver daqui a 20, 30 anos. Educa- ção é a longo prazo. Mas tem de começar. Eu abriria mão até de qualquer outra coisa, de uma reforma no sentido de ampliar a renda... Nem precisa. Vamos ter educação. Educar é você ter contato, experimentar. Tem uma frase de um escritor (sérvio) chamado Danilo Kis que eu acho fantástica: quem lê vários li- vros, busca o conhecimento, quem lê só um livro busca a igno- rância. Isso serve para tudo. Se você ouve uma música, está na ignorância. Se ouve outras, está pelo menos tentando conhecer. Como foi o processo de criação do livro Eles eram mui- tos Cavalos, de imersão nas histórias de personagens tão diversos? Parece conversa de mineiro, tudo tem de ter uma história... Minha mãe falava do meu pai: “Eu não aguento, ele dá umas voltas...” (risos). Mas ele amarrava bem. Então, vou retomar um pouco o que estávamos falando, de escrever sobre esse mundo operário, esse mundo do trabalho. Quando eu estava na faculdade, comecei a ler e achei estranhíssimo que não houvesse literatura a respeito. Eu queria muito escrever sobre isso e não sabia como. Não é que eu tentava e não dava certo. Eu nunca escrevia. Faltava uma forma para escrever. Eu achava REGINA DE GRAMMONT/RBA Os meus personagens, não são contra o sistema. Eles querem comer bem, ter carro, boa educação. Para mim, isso é mais revolucionário do que qualquer outra coisa

Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014

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Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014 - Por vitor Nuzzi e Sônia Oddi

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32 abril 2014 revisTa do brasil revisTa do brasil abril 2014 33

Quando escrever é

de origem pobre no interior de Minas, o escritor luiz ruffato faz de trabalhadores urbanos e subempregados seus protagonistas. Para ele, a democracia só será plena com educação Por vitor Nuzzi e sônia oddi

Com tranquilidade, Luiz Ruffato dribla a provocação: como pode alguém nasci-do em Minas Gerais e morador de São Paulo ser torcedor do Flamengo? Se ain-da fosse o Botafogo do Paraíso, bairro de

Cataguases, onde ele nasceu, em 1961... Mas também tinha o Flamenguinho cataguasense, que teve como goleiro Humberto Mauro, referência dos primórdios do cinema brasileiro. Um mito do cinema, aliás, anda solto pelo apartamento: Federico Felino, o gato mais velho, parceiro de Sky. Antes de se tornar escritor, tal-vez mais conhecido fora do país do que aqui, Luiz foi ajudante de pipoqueiro (o pai, Sebastião), balconista de armarinho, operário de indústria têxtil, gerente de lanchonete, vendedor de livros, torneiro-mecânico e jornalista. Aos poucos, como poderia dizer o tam-bém mineiro Carlos Drummond de Andrade, foi penetrando surdamente no reino das palavras.

Luiz conta que sabia que seria escritor. Algo muito distante de sua realidade pobre na pequena Catagua-ses, uma cidade com divisões sociais bem definidas: burguesia, classe média, operariado, lúmpen. Fazer o curso de tornearia mecânica no Senai significava um grande passo. “Algo como sair da pobreza extre-ma para a pobreza.”

Por isso, entende-se o susto de dona Geni quando o filho adolescente viu uma novela, O Feijão e o So-nho (1976), e disse que seria escritor. Como o pro-tagonista (Cláudio Cavalcanti), que sonhava em se dedicar apenas à poesia, mas que tem uma mulher pragmática (Nívea Maria) e precisa trabalhar para sustentar a família. Para construir o sonho, Luiz foi atrás do feijão. E tornou-se, talvez, o primeiro a pôr em primeiro plano o garçom, o faxineiro, a balco-

nista – trilhando o caminho aberto por Roniwalter Jatobá –, preocupado em não idealizar o trabalhador.

Para ele, esse mundo não aparece mais na literatu-ra brasileira porque o país, e não só os autores, des-preza o trabalho. O livro Eles eram muitos Cavalos, de 2001, tornou o escritor, então com 40 anos, co-nhecido fora do Brasil, premiado e com traduções em alemão, espanhol, francês, inglês e italiano. Ele vê melhoras no país nos últimos anos, mas diz que trocaria qualquer programa por uma política de edu-cação de qualidade para todos. E observa certa es-quizofrenia. Por um lado, ensino público e privado muito ruim. De outro, iniciativas como a de Otávio Júnior, o chamado “livreiro do Alemão”, criador de um projeto de bibliotecas no complexo de favelas ca-rioca. “Um moleque carregando um monte de livro pra criança numa caixa de plástico, no meio do ti-roteio. E sem receber nada, porque gosta. Como ele, conheci vários. Este país é esquizofrênico.”

Quando se lembra de 1964, costuma-se falar das prisões, torturas, mas e a educação? o gol-pe interrompeu um projeto?

A história do Brasil é uma história de exclusão. O que a ditadura fez não foi destruir um projeto em andamento, mas o que tinha de educação pública. As pessoas dizem que antigamente a educação pú-blica era boa, hoje é uma porcaria. Mentira. Era para meia dúzia de pessoas. Em Cataguases, quem tinha acesso à educação era a elite. A classe média baixa não tinha sequer acesso à educação, o nível de anal-fabetismo era altíssimo. O que a ditadura fez foi pe-gar esse restinho de educação e também destruir. A ditadura de 1964 não é um evento isolado. A história

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compromisso

política do Brasil é uma história de golpes. Esses 29 anos de de-mocracia, que não é nada, são o maior período de democracia de toda a história do Brasil.

Com tantos problemas, por onde começar?Antigamente eu achava que eram várias frentes. Hoje eu acho

que é uma frente só: a educação. Saúde, por exemplo, é uma questão que se você quiser, resolve em cinco anos. Educação, não. Se você começar hoje, vai ver daqui a 20, 30 anos. Educa-ção é a longo prazo. Mas tem de começar. Eu abriria mão até de qualquer outra coisa, de uma reforma no sentido de ampliar a renda... Nem precisa. Vamos ter educação. Educar é você ter contato, experimentar. Tem uma frase de um escritor (sérvio) chamado Danilo Kis que eu acho fantástica: quem lê vários li-vros, busca o conhecimento, quem lê só um livro busca a igno-

rância. Isso serve para tudo. Se você ouve uma música, está na ignorância. Se ouve outras, está pelo menos tentando conhecer.

Como foi o processo de criação do livro Eles eram mui-tos Cavalos, de imersão nas histórias de personagens tão diversos?

Parece conversa de mineiro, tudo tem de ter uma história... Minha mãe falava do meu pai: “Eu não aguento, ele dá umas voltas...” (risos). Mas ele amarrava bem. Então, vou retomar um pouco o que estávamos falando, de escrever sobre esse mundo operário, esse mundo do trabalho. Quando eu estava na faculdade, comecei a ler e achei estranhíssimo que não houvesse literatura a respeito. Eu queria muito escrever sobre isso e não sabia como. Não é que eu tentava e não dava certo. Eu nunca escrevia. Faltava uma forma para escrever. Eu achava

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os meus personagens, não são contra o sistema. eles querem comer bem, ter carro, boa educação. Para mim, isso é mais revolucionário do que qualquer outra coisa

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Condições iguais.É o mínimo. Educação igual pra todo mundo, boa

educação, mesmo. O moleque que mora lá no Morro do Alemão e o cara de Perdizes. Isso tem a ver tam-bém com o que você quer da sua vida.

Para quem ainda não descobriu o prazer da literatura, quais livros você recomendaria?

Ontem, na minha crônica do El País, contei como eu descobri a literatura. Aí você vai ver que não há uma resposta para isso. Um dia, eu estava vendendo pipoca, chegou um senhor e perguntou: “Você está estudando, menino? Onde você estuda? No Antônio Amaro? É muito ruim! Por que você não estuda no Cataguases?” Meu pai disse: “Eu vou todo ano lá e não consigo vaga”. “Fala comigo, eu consigo uma vaga pro seu filho.” E fui estudar lá. Eu entrava na sala de aula e todas as crianças sabiam que eu era pobre. Eu era discriminado. E não tinha coragem de contar pro meu pai, custou tanto para arrumar uma vaga... Aí o que eu fiz? Comecei a querer ficar invisível. Comecei a procurar um lugar em que ninguém me visse. Descobri um lugar fantástico. Até que um dia a bibliotecária pensou: “Esse menino deve ser meio maluco. De repente, quer pegar um livro emprestado e está tímido”. Ela me chamou: “Aí, pega esse livro e leva pra casa”. Fez minha ficha. “Devolve daqui a quatro dias.” Quando cheguei o meu pai, que era muito severo, perguntou: “Mas por que você trouxe pra casa?” “A mulher da escola mandou eu trazer, ler e levar de volta.” “Então devolve.” Eu li, devolvi, ela me deu outro. Cheguei em casa, de novo o meu pai: “Mas você não devolveu?” “Devolvi, ela deu outro...” “Então lê e devolve, não é nosso!” Li e pensei: “Agora acabou...” Bom. Eu li todos os livros que aquela mulher me mandou. Chegou o final do ano e eu saí do colégio, falei pro meu pai que não queria, porque os meninos me enchiam o saco. Sabe qual foi o primeiro livro que ela me deu? O que vocês imaginam? Monteiro Lobato?

Com 12 anos, era o que tinha...Ela me deu um livro chamado Babi Yar, de um

ucraniano chamado Anatoly Kuznetsov. Sabe sobre o que é? Sobre o massacre de 100 mil judeus em uma guerra mundial. Por que ela deu esse livro pra mim? Não sei, ela também não devia saber. Era uma pessoa que estava lá por acaso, deu o primeiro livro que encontrou. Passei mal lendo. Você quer que eu recomende uma coisa pros seus leitores? (gargalhadas)

você falou que em Cataguases era tudo estan-que: proletariado, burguesia, lúmpen, classe média. Por que o mundo do trabalho não apare-ceu na literatura?

O primeiro ponto de explicação é que realmente,

as artes, em geral, e a literatura, particularmente, se constroem a partir de sua experiência pessoal. E não é muito comum autores nascidos do trabalho pensado dessa maneira mais operária terem a sofisticação da linguagem para escrever literatura. Tem de ter, não adianta, a literatura é linguagem. Agora, mesmo os poucos autores que nasceram de famílias pobres, de alguma maneira ligados ao trabalho, que conseguiram ser escritores, também não escreveram sobre o mundo do trabalho por uma razão muito simples: nós, no Brasil, temos um profundo desprezo pelo trabalho. Esse desprezo acaba contaminando o trabalho nas artes, por exemplo.

e o novo livro?Vai ter uma reedição do De Mim Já Nem se Lem-

bra, junto com o romance novo, que vai se chamar Flores Artificiais. Vou tentar explicar... Tem um con-sultor do Banco Mundial que trabalhava há 25 anos fazendo consultoria para diversas coisas, na área de engenharia. Na passagem de 1999 para 2000, ele tem um apartamento ali na rua Paissandu, no Flamengo, e se vê sozinho, sem amigos. Já tem 60 e poucos anos. Entra numa depressão e vai procurar uma psiquia-tra. Ele mora em Washington, fica meses sem voltar pra lá. Ela dá alta, mas eles continuam conversan-do. E as histórias que ele conta pra ela não são da vida dele, mas de gente que ele conheceu durante as viagens que fez. E sempre são pessoas que estão deslocadas. Por exemplo, um menina portuguesa no Timor Leste que começou a ter problemas por ser muito bonita. Acaba conhecendo aqueles crocodilos de água salgada, uns bichos de sete metros, e ela se joga no mar para eles a comerem. Quem está contan-do isso pra ele é um timorense. Tem uma outra um uruguaio que conta pra ele que o pai sumiu durante a ditadura, e ele sempre dizia que o pai tinha sumi-do por problemas políticos. E um dia descobre que ele tinha vindo morar em São Paulo, e que na verda-de fugiu por causa de um mulher e o largou quan-do ele era criança. Tudo isso pra contar o seguinte: esse consultor, o Dório Finetto, é de Rodeiro, que é a colônia da minha mãe, e ele nunca tinha lido os meus livros. Falam pra ele mandar as histórias pro Luiz Ruffato. Aí eu li as histórias, achei muito ruins, e as reescrevo. O livro dele chama Histórias da Vida Alheia, e está dentro de Flores Artificiais. Mas é tu-do mentira. No final eu faço uma pequena biografia dele. Mas eu criei de brincadeira.

A Biblioteca que Virou Pó (crônica no el País sobre um local que deixou de funcionar por pressão de traficantes) é verdade?

Essa é verdade, é real (risos).

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absurdo escrever sobre esse mundo, sobre essas pessoas que eu conhecia, usando aquela fórmula de começo, meio e fim, uma invenção da burguesia, pra criar identidades mesmo. Só que os meus personagens não tinham nome e sobrenome. Eu tinha de fazer um exercício formal para entender como é que eu escreveria sobre esse mundo. Um dia estava saindo de uma bienal de artes plásticas e vi uma exposição que era na verdade um monte de calçados amontoa dos num canto. Tudo usado, sapato, tênis, chinelo de dedos.

Uma instalação...Era uma instalação estranhíssima. Acho que fiquei tanto tempo

lá pensando que o meu cérebro disse “vou dar uma explicação pra você ir embora”. A explicação que eu tive naquele momento, que até hoje eu acho melhor pra mim, é que aqueles calçados todos tinham sido usados por alguém. E, portanto, alguém tinha imprimido uma história neles. Uns tinham andado de avião, outros na periferia da cidade, nos shoppings, cada calçado representava uma história. Quando saí dali, tive esse insight. Não tenho de escrever uma história, eu só tenho de expor, e as pessoas que criem as histórias. Então fui fazer um exercício. Sentei e escrevi Eles eram muitos Cavalos. Foi um exercício para entender isso: como eu posso escrever uma história que não tem história, que o leitor é que é importante? O livro acabou tendo uma repercussão, e eu pensei: é exatamente o que eu preciso, escrever as histórias que eu queria, usando essa forma. E quatro anos depois comecei a publicar o Inferno Provisório. A ideia estruturalmente é a mesma. As histórias não têm uma sequência lógica... Eu me empenhei muito mais no Inferno Provisório do que no Eles eram muitos Cavalos. São mil páginas, um monte de personagens, e teve pouca repercussão. Foi um pouco frustrante.

as histórias vão e voltam, né? são vários tempos ali, é um tipo de construção difícil.

Esses anos todos eu passei tentando entender o “como”... Para mim, tinha uma questão muito séria, que era romper o romance burguês, de começo, meio e fim. Tinha uma questão que me incomodava: todas as poucas vezes em que na literatura brasileira alguém – tirando Roniwalter Jatobá – tentava construir personagens trabalhadores, incorria em dois erros. Primeiro, era linguagem. Porque é um personagem pobre e você tem de construir romances naturalistas; uma pessoa pobre só pode desenvolver uma história pobre. Por exemplo, vou pegar um Jorge Amado, que fez algumas coisas, incursionou mais. Os romances dele são escritos de maneira naturalista, linguagem pobre, os personagens têm psicologia pobre. Tudo simples. É demagogo. É como se você pensasse o seguinte: um leitor qualificado pode ler o Joyce, um leitor desqualificado, não. Então, você tem de rebaixar a linguagem, rebaixar a psicologia. E eu acho isso um absurdo. Desse ponto de vista, gosto muito do Oswald de Andrade. Ele entrou para o Partido Comunista e o pessoal começou a pressionar para escrever uns livros mais “fáceis”, e ele escreveu: “O meu sonho é que um dia todas as pessoas vão poder usufruir do biscoito fino que eu produzo. E não o contrário”. Genial.

e o outro erro...E a outra coisa era sempre, quando aparecia um personagem

trabalhador, era um revolucionário.

idealização?Completa. Os meus personagens, por exemplo, não são

contra o sistema. Eles querem comer bem, querem ter carro, boa educação, como todo mundo, ter geladeira, casa, água encanada. Para mim, isso é mais revolucionário do que qualquer outra coisa. É o cara que quer mudar o mundo para usufruir das coisas que todo mundo usufrui.

as pessoas não querem mudar o mundo, querem mudar o seu mundo?

Não, mas veja bem, não é uma coisa individualista, aí é que está. Vamos imaginar o seguinte. Para mim, tudo se passa no âmbito do acesso. Você tem uma família de cinco irmãos. Se vo-cê dá a eles acesso às mesmíssimas coisas, o que vai acontecer? Todos vão ser os mesmos? Não. Vamos criá-los dando funk, mú-sica clássica, música popular brasileira, rock e jazz. Isso signi-fica que todos vão gostar de tudo? Não. Mas eles todos tiveram acesso e, portanto, podem escolher. Por isso eu acho que não é uma questão individualista nesse sentido. Para mim, revolucio-nário é o cara que luta para que todos saiam do mesmo lugar.

a história do brasil é de exclusão. o que a ditadura fez não foi destruir um projeto em andamento, mas o que tinha de educação pública. as pessoas dizem que antigamente a educação pública era boa. era para meia dúzia de pessoas

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Quando eu estava na faculdade, comecei a ler e achei estranhíssimo que não houvesse literatura a respeito do mundo do trabalho. eu queria muito escrever sobre isso e não sabia como