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Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no Santuário Nossa
Senhora da Guia na cidade de Lucena-PB.
José Adailton Vieira Aragão Melo1
INTRODUÇÃO
O referido trabalho tem como objetivo principal, tentar compreender os modos de
vida da Comunidade da Guia e do Santuário Nossa Senhora da Guia, sendo este último um
local de relevância histórica e turística na região do litoral norte paraibano. Neste trabalho
pretendo compreender melhor as relações estabelecidas entre os moradores da
comunidade e os frequentadores do Santuário, mas também as relações que os moradores
estabelecem uns com os outros, a partir de seu pertencimento religioso e as possíveis
tensões entre os devotos da santa e os evangélicos, uma vez que nas observações foi
possível presenciar algumas situações entre católicos e evangélicos. Além de tentar
apreender como é vender a imagem da santa e outros adereços católicos e em outro
momento falar mal dos santos católicos e dos devotos? Essas questões são importantes para
melhor compreensão do fenômeno religioso na conjuntura atual.
Palavras-chave: Fé, devoção, tensão.
A PROBLEMÁTICA DA PESQUISA
Tendo sido, eu próprio, motivado a ir ao Santuário da Guia pelo seu apelo religioso
(para pagamento de uma promessa que fizeram por mim2), uma das primeiras surpresas de
campo foi descobrir que a maior parte da comunidade não se diz católica, e não frequenta o
Santuário – aliás, o frequenta como “meio de vida”, o que ocasiona enormes críticas entre os
católicos. Segundo me contaram, o Santuário ficou abandonado durante muitos anos e
1 Mestrando em Sociologia (PPGS/UFPB). Membro do GRUPESSC (Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura – PPGA/UFPB). E-mail: [email protected] 2 Conforme analiso no meu TCC (MELO, 2014).
nesse período a igreja evangélica Assembleia de Deus foi inaugurada no local, reunindo
grande parte dos moradores da comunidade, restando poucos católicos. Esse quadro não
teria se modificado significativamente com a reabertura do Santuário.
Tudo indica que existe uma relação ambígua e certa “tensão” entre os moradores
evangélicos e os católicos. Moradores de ambos os credos possuem comércio no Santuário,
vendendo adereços religiosos, entre outras mercadorias, embora muitos desses
comerciantes preguem a inexistência de santos intercedendo pelos homens. Nas visitas às
casas de alguns moradores evangélicos, em alguns momentos eles tentavam nos convencer
de que a Igreja da Assembleia de Deus é a única correta e abençoada por Deus, dizendo que
o Santuário e os católicos não são corretos e nem estão salvos. Já os poucos católicos da
comunidade achavam “um absurdo” falar mal da Santa e, ao mesmo tempo, possuir
barracas no Santuário onde comercializam sua imagem. As relações de tensão/cooperação
entre ambos os grupos, apenas apontadas no TCC, serão mais bem investigadas neste
segundo momento.
Esta pesquisa tentará compreender melhor como ocorrem as relações de
tensão/cooperação entre católicos e evangélicos na comunidade da Guia, e destes com os
devotos do Santuário. Acreditamos, junto com Couto (2002), entre outros autores, que a
mudança em curso do perfil religioso brasileiro tem promovido a cada vez mais a convivência
de pessoas de diferentes credos, principalmente entre diversas denominações cristãs que se
apresentam, em alguns aspectos, como fortes concorrentes no mercado de bens de salvação
(WEBER, 2004). O que nos parece interessante no caso aqui apresentado é que, apesar de
existir certa tensão entre ser evangélico e ser católico na comunidade, esta tensão parece
ser mediada pelo “negócio da Santa”, uma vez que nunca presenciamos qualquer situação
maior de intolerância, como agressão ao patrimônio ou à imagem da Santa. Antes pelo
contrário, os evangélicos são os primeiros interessados em que a devoção à Santa prospere,
pois isso lhes permite fazer negócios. Nesse sentido, pensamos que a realização deste
trabalho tem, no mínimo, três interesses/justificativas: a) permite compreender, a partir de
um caso específico, o modo como as pessoas lidam em seu cotidiano com a
pluralidade/diferença religiosa, atentando para o fato de que os moradores têm entre si
relações de muita proximidade; b) contribui com o conhecimento das dinâmicas sociais
construídas ao redor de espaços simbolicamente relevantes dentro do mapa religioso da
Paraíba; c) apresenta um registro sociológico/antropológico da comunidade e do Santuário,
respondendo assim a demandas da população e da gestão pública de Lucena, analisadas no
meu TCC (MELO, 2014).
A pretensão desta pesquisa é proporcionar algumas possíveis respostas às
indagações mencionadas e tentar compreender a dinâmica atual da Comunidade da Guia,
que ao mesmo tempo une e separa os indivíduos.
OBJETIVOS
O objetivo geral é realizar um estudo etnográfico na Comunidade e no Santuário de
Nossa Senhora da Guia, na cidade de Lucena-PB, com foco na pluralidade religiosidade e sua
manifestação no cotidiano da Comunidade e do Santuário. Registrar, verificar e tentar
compreender até que ponto a religião atua como ferramenta de exclusão, tensão, coesão e
suas dinâmicas. Como objetivos específicos, tenho a pretensão de: Analisar as relações
sociais; traçar o perfil religioso dos moradores da Comunidade da Guia; identificar como
essas diferenças são performatizadas; verificar até que ponto a identidade dos moradores
está relacionada à religião; vivenciar o cotidiano dos evangélicos e dos Católicos no
Santuário;
METODOLOGIA
Este trabalho é fruto do Projeto financiado pelo Edital CNPq nº 07/2011, intitulado:
“Etnografia da Guia: estudo antropológico sobre a comunidade de Nossa Senhora da Guia no
Município de Lucena/PB”, coordenada pela professora Ednalva Neves, juntamente com
outros pesquisadores, além de mim mesmo. Realizada em visitas regulares à comunidade e
ao Santuário da Guia, junto a outros pesquisadores e individuais. Período do projeto:
2011/2013. Em 2014 fiz visitas individuais, priorizando: As missas dos romeiros, os três
Figura 1. Imagem do Santuário de Nossa Senhora da Guia – Lucena/PB. Fonte: Arquivo do autor. 13 de abril de 2012.
momentos/eventos: o dia da festa da padroeira – 08 de dezembro, dia de Finados - 02 de
novembro, dia da Romaria da Guia - 12 de outubro. Outro recurso utilizado foi o registro
fotográfico e escritos, buscando registrar a característica do lugar e as relações entre as
pessoas, a santa e a comunidade; a relação entre fiéis e devotos.
PAISAGEM E FÉ: APRESENTANDO O LOCAL DA PESQUISA
O Santuário Nossa Senhora da Guia começou a ser construído no final do século XVI,
tendo sido concluído na segunda metade do século XVIII pelos padres Carmelitas, que
chegaram à Paraíba em 1591. O Santuário tem uma construção sólida em pedra calcária, em
estilo barroco, com detalhes de plantas silvestres, frutas típicas da região, que estão
expostas em suas fachadas externas e internas. O tombamento da Igreja de Nossa Senhora
da Guia pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) ocorreu em
16/05/1949.
Além de seu valor histórico, o Santuário possui características paisagísticas que
atraem os turistas, sendo considerado o cartão postal da cidade de Lucena. O Santuário fica
no alto de uma colina, numa área de preservação ambiental, onde há resquícios de Mata
Atlântica e pode-se observar ao mesmo tempo o mar e a zona rural, esta última composta
Figura 2. Mapa da Comunidade da Guia em Lucena – PB. Fonte: Google Satélite com adaptações do autor.
principalmente por plantações de cana-de-açúcar e coqueirais, conforme figura 2. A cada
ano o número de visitantes vem aumentando consideravelmente, principalmente no verão e
no carnaval. Essas atividades movimentam a economia da comunidade e do Santuário, seja
através do comércio local ou até o ramo imobiliário. Afora a movimentação motivada pelo
verão/carnaval, existe um calendário religioso específico no Santuário que prioriza dois
eventos: o dia em que se comemora a festa da padroeira, dia 08 de dezembro, e o dia da
Romaria da Guia, dia 12 de outubro, momentos em que centenas de devotos se dirigem ao
Santuário para o pagamento das promessas feitas ao longo do ano.
Situada ao pé do Santuário, a comunidade da Guia foi até meados da década de 1950,
uma fazenda de plantações de cana de açúcar e criação de gado, segundo relatos colhidos
em campo. Neto do antigo proprietário do terreno, seu Dore conta que o avô era funcionário
da fazenda e que sofreu um acidente no trabalho, levando-o a óbito. Os familiares
Casa dos romeiros
Cemitério
Santuário
Comunidade da Guia
Figura 3. Igreja Assembleia de Deus. Fonte: Google imagens. Julho de 2014.
receberam como indenização uma parte de terra, que foi posteriormente dividida entre os
trabalhadores e familiares, dando origem à comunidade.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Durante a pesquisa, foi possível perceber uma relação de parentesco muito forte na
comunidade. Muitos moradores atuais são membros da mesma família, ou se conhecem há
muito tempo, estreitando as relações mútuas. Nas pesquisas em campo era possível ver uma
família em ligação com outra, ora tem família de primeiro grau morando quase todos na
mesma rua, ora ocorrem casamentos entre primos e primas, reforçando as relações de
parentesco no local.
Uma das primeiras surpresas de campo foi descobrir que a maior parte da
comunidade não se diz católica, e não frequenta o Santuário – aliás, o frequenta como “meio
de vida”, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo
me contaram, o Santuário ficou abandonado durante muitos anos e nesse período a igreja
evangélica Assembleia de Deus foi inaugurada no local, conforme figura 3, reunindo grande
parte dos moradores da comunidade, restando poucos católicos. Existe uma relação
ambígua e certa tensão entre os
moradores evangélicos e os católicos.
Moradores de ambos os credos
possuem comércio no Santuário,
vendendo adereços religiosos católicos,
embora muitos desses comerciantes
preguem a inexistência de Santos
intercedendo pelos homens. Nas visitas
que fiz, foi possível perceber certa
inquietação dos católicos em ver os
evangélicos vendendo as imagens da Santa e no culto evangélico falarem mal de Nossa
Senhora da Guia.
Pelo que pude perceber, existe a comunidade da guia e o “povo da santa”, esta
última não são moradores da comunidade da Guia, são devotos e romeiros que vem de
várias regiões, seja da capital, cidades interioranas ou de outros estados. Essa comunidade é
assídua e participa das festividades e do calendário do Santuário. Muitos vão ao Santuário
para pagar promessas ou para visitação, pois é um lugar histórico e possuído de beleza
natural, fazendo parte das atrações turísticas da cidade de Lucena. A relação da comunidade
com o “povo da Santa” não é amistosa. Nas visitas à comunidade pude perceber a tensão
existente entre os evangélicos da Assembleia de Deus e os Católicos devotos da santa.
Conforme conversa informal com o Seu Zé Bil, morador e proprietário de uma barraca no
Santuário, ele confirma o fato de, a maioria dos moradores serem evangélicos e pregam
contra a Igreja Católica, em especial, o Santuário da Guia e dos Santos Católicos, pois os
protestantes só aceitam Jesus como único santo.
Perguntei ao seu Zé Bil, se ele conhecia alguma família ou alguém que fosse católico
além deles. Respondeu dizendo que não sabia de mais ninguém na comunidade que fosse
católico: “na minha rua mesmo todo mundo é evangélico”, ele olhou para a barraca do lado
e falou: “todo mundo aqui do lado é evangélico, mas vende as coisas aqui e depois vai falar
mal daqui lá na igreja evangélica, dizendo que estão salvo e que não precisam dos santos,
apenas de Jesus, mas tão aqui direto vendendo os santos pro povo”. Fiquei ouvindo as
palavras do seu Zé e depois ele acrescentou: “o povo de lá fala direto que estão salvos, que
já estão no céu, que isso e aquilo, mas por que não param de vender as coisas aqui?! É isso
que eles falam. Fiquei interessado na conversa do seu Zé, já que pude perceber certo
conflito religioso na comunidade, uma dicotomia entre o discurso e a prática dos próprios
evangélicos da comunidade e que têm as barracas no Santuário. Segundo Weber (2004),
existe a ética utilitária, ética que mercantiliza o tempo, ética que visa acumulação de
dinheiro, através dos dogmas da ética protestante. Já tinha percebido isso em outras visitas,
algo interessante para pensarmos.
Recordo que em uma visita a uma das moradoras mais antigas da comunidade, a
senhora Nevinha, mãe de Enalva que é técnica em enfermagem e trabalha no posto de
saúde da comunidade da Guia, nos falou que o Santuário ficou um tempo fechado e depois a
igreja evangélica foi instalada na comunidade, então muitos católicos foram frequentar a
igreja e se “converteram” ao protestantismo. Mesmo depois o Santuário sendo reaberto, os
moradores da comunidade continuaram frequentando e seguindo os dogmas do
protestantismo, restando poucos católicos e que frequentam o Santuário, no caso da dona
Dalva e seu Zé, pelos menos são os únicos católicos que conheci na comunidade.
Nas visitas às casas de alguns moradores evangélicos, em alguns momentos eles
tentavam nos convencer de que a Igreja da Assembleia de Deus é a única correta e
abençoada por Deus. Conforme menciona Weber (2004): “Somos ou não escolhidos para ir
para o céu? O sucesso no trabalho e resistência ao pecado, é um sinal de ser escolhido por
Deus”. Essas questões causavam alguns constrangimentos nos pesquisadores. Os moradores
da comunidade ressaltavam que o Santuário e os católicos não são corretos e nem estão
salvos. Já os poucos católicos da comunidade achavam “um absurdo” falar mal da Santa e,
ao mesmo tempo, possuir barracas no Santuário onde comercializam sua imagem e outros
adereços religiosos, como camisas e cruzes, entre outros. Para nossa pesquisa, fica claro essa
tensão entre ser evangélico e ser católico na comunidade.
O povo da santa não parece ser ciente dessas tensões, ou pelo menos, durante os
anos da pesquisa não presenciei qualquer reação das pessoas com os evangélicos que
vendem tais objetos católicos. Já as pessoas responsáveis pelo santuário conhecem essa
desavença e elaboram simbolicamente a primazia do culto católico frente ao evangélico. Frei
Geraldo, o padre responsável pela celebração das missas, nos contou que muitos moradores
falam mal da santa, mas quando precisam de alguma “ajuda”, recorrem a ela
conscientemente ou em sonhos. Conforme relato do frei: “um senhor muito evangélico teve
um sonho com a santa, ela pedia para ele não dormir sem camisa, e quando acordou vestiu a
camisa e desde então cumpriu o pedido da santa”. Segundo o frei, essas histórias são
corriqueiras, pois essas pessoas, mesmo que hoje sejam evangélicos da Assembleia de Deus,
nunca deixaram de acreditar na Santa. Hoje são evangélicos, mas sempre serão católicos.
Outro fato interessante é que alguns comerciantes evangélicos produzem os produtos que
são vendidos no Santuário, e que repassam para os outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É perceptível que existe uma tensão entre a comunidade e o Santuário, devido ao
fato de grande parte dela ser evangélica da Assembleia de Deus. Os evangélicos vendem
objetos católicos e nas conversas informais percebemos que existe um respeito pela Santa.
Mesmo não admitindo que foram católicos um dia, nas conversas percebemos que em
algum momento já fizeram algum pedido à santa, pois antes da igreja protestante, a
comunidade era católica e muito assídua. Hoje, essa relação está fragmentada, mas não
rompida totalmente. Católicos e protestantes fazem parte do círculo de trocas ao redor da
Santa e os conflitos, que podem ser observados pelas críticas e boatos mútuos, são
minimizados pela existência de um interesse comum, principalmente na questão em torno
do mercado da salvação, ou o interesse de o comércio no Santuário prospere, pois será bom
para a economia da comunidade da Guia como um todo (WEBER, 2004) – embora esse
interesse também possa ser observado como um elemento de disputa, no sentido de que
católicos e protestantes são possíveis concorrentes no “negócio da santa”. A pesquisa ainda
não permitiu determinar isso, mas é um aspecto a ser considerado. Segundo Weber (2004),
essa configuração presente na comunidade, nos demonstra um modus operandi de relações
sociais e que gera um acumulo de capital.
Os estudos sociológicos/antropológicos sobre religião e seus impactos na sociedade
são relevantes e objeto de muitos debates dentro e fora da academia. Porém, existe um
relativo consenso sobre as mudanças que ocorreram em torno da temática religiosa. Entre
elas, o compartilhamento da fé, as relações de troca entre os indivíduos e as divindades e as
formas de sacrifício/promessa religiosa e o mercado religioso em volta do Santuário. Essas
questões nos levam a refletir sobre a devoção católica, as crenças dos protestantes, e as
tentativas de proximidade com os santos (católicos) e o divino (evangélicos). Para tentar
entender as dinâmicas religiosas, do Santuário e da Comunidade, foram priorizadas as
leituras do Ensaio Sobre a Dádiva (Marcel Mauss), As Formas Elementares da Vida Religiosa
(Émile Durkheim), A ética protestante e o espírito do capitalismo (Max Weber) e Sobre o
Sacrifício (Mauss e Hubert).
Sobre a relação de proximidade estabelecida, os processos de conversão e
pertencimento religioso, foram priorizadas as leituras do Gênero, família e pertencimento
religioso na redefinição de ethos masculinos e femininos (Márcia Couto). Outros autores
contemporâneos foram de utilidade e importância para a compreensão dos diversos
elementos das práticas religiosas, como as leituras de Flores Filho (2012), Lima (2013),
Maués (2013), Lévi-Strauss (2008), Sáez (2009) e entre outros.
A obra de Durkheim (2000) nos permite reflexões em torno do que o autor denomina
as religiões primitivas e, a partir disso, entender alguns aspectos do fenômeno religioso
existente no Santuário, na Comunidade e entre os frequentadores. Segundo Durkheim
(2000, p. 38), os ritos e símbolos religiosos são capazes de criar entre os indivíduos certa
afinidade sentimental e estão intrincados às classificações e às representações coletivas.
Sobre as relações de troca entre os moradores da Comunidade da Guia,
frequentadores do Santuário são elementos interessantes para serem observados e
empreendidos, tanto entre os evangélicos como os católicos. Conforme Mauss menciona:
“Se coisas são dadas e retribuídas, é porque se dão e se retribuem “respeitos” – podemos
dizer igualmente “cortesias”. Mas é também porque as pessoas se dão ao dar, e, se as
pessoas se dão, é porque se “devem” – elas e seus bens – aos outros.” (MAUSS, 2003, p.
263).
Desta forma, entendemos que o processo de transmissão/conversão é importante
para compreender como surgem as novas religiões, considerando que tal advento
representa a adesão de milhares de pessoas a outras práticas religiosas que aquelas que
herdaram de suas famílias, ocasionando transformações históricas e culturais do campo
religioso e na sociedade (COUTO, 2002).
Sobre o processo de uma possível tensão entre o grupo evangélico e os católicos,
podemos considerar a importância da leitura do Nobert Elias e John L. Scotson, que
possibilita reflexões sobre a dinâmica atual na Comunidade e no Santuário, onde em alguns
momentos as diferenças religiosas se sobressaem e um grupo acaba por estigmatizar o
outro. Pensando ainda na contribuição do Elias e Scotson (1994), pude perceber a relação
tensa entre os Estabelecidos (antigos moradores) e Outsiders (novos moradores), conforme
pesquisa em campo, um casal recém chegado para morar na comunidade, estavam sofrendo
algum tipo de exclusão ou indiferença por parte dos antigos moradores, eles achavam que a
comunidade era totalmente católica e estavam surpresos em ver que a maioria dos
moradores são evangélicos, moram a muito tempo no local e são muito unidos, o casal
estavam se sentindo excluídos da comunidade. Desta forma, podemos pensar sobre como a
religião funciona como um mecanismo de coesão e também exclusão.
Pensado sobre a ideia de tensão existente na comunidade, a leitura de Bourdieu
(1992), nos ajuda a pensar essas relações entre os católicos e os protestantes, e que estão
inseridos em algumas falas dos nativos da comunidade (católicos e evangélicos), mesmo que
de forma branda, assim como as frases observadas no campo: “vendem a imagem da santa e
depois falam mal dela”, “eles (evangélicos) acham que já estão salvos”.
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