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Sonia Maria Berbare Albuquerque Parente
EM BUSCA DA COMUNICAÇÃO SIGNIFICATIVA: TRANSFORMAÇÕES NO OLHAR DE UMA ANALISTA NA
CLÍNICA DA INIBIÇÃO INTELECTUAL
Doutorado em Psicologia Clinica
PUC/SP SÃO PAULO
2005
Sonia Maria Berbare Albuquerque Parente
EM BUSCA DA COMUNICAÇÃO SIGNIFICATIVA: TRANSFORMAÇÕES NO OLHAR DE UMA ANALISTA NA
CLÍNICA DA INIBIÇÃO INTELECTUAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutora em Psicologia Clínica sob a orientação do Prof. Doutor Luís Claudio Mendonça Figueiredo
PUC/SP SÃO PAULO
2005
Banca Examinadora
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__________________________________
DEDICATÓRIA
À Sara Paín
Representante de tantos outros Mestres que, como ela,
ousaram criar a partir do pensamento de outros Mestres.
Esperando que o tempo de encontros entre Mestres
e discípulos continue...
AGRADECIMENTOS
Neste momento especial tenho muito a agradecer às pessoas que vem me
acompanhando com carinho, generosidade e respeito neste caminhar, pessoas
que compartilham o gosto pela pesquisa e pela aventura da descoberta.
A vocês:
Crianças que atendo e que nos canteiros do seu sofrimento permitem que
sementes de esperança brotem para serem regadas e germinadas na experiência
compartilhada.
Pais das crianças, que quando olhados e compreendidos no seu sofrimento,
favorecem que processos de transformações aconteçam.
Luís Cláudio Figueiredo, por ter me dado a moldura para desenhar os traços e o
caminho da pesquisa.
Gilberto Safra, que com carinho me acompanha e permite compreender que o
fruto pode ser a causa do ramo.
Tânia Vaisberg e Nelson Coelho Junior pelas sugestões tão pertinentes no exame
de qualificação.
Leslie Marko, amiga de tantas interlocuções e com quem transito entre a arte, o
brincar e o aprender.
Sanny S da Rosa, amiga e parceira de tantas indagações e trocas significativas no
campo da aprendizagem criativa.
Regina Cruz e Creuz e Bia Mazzolini, amigas tão presentes e interlocutoras
entusiasmadas.
Winnicott e Sara porque se emprestaram e me permitiram estranhar, distanciar e
criar.
Meus pais, primeiros educadores da minha vida, meus irmãos, companheiros de
viagem, berço de raízes, de saudades, de movimento.
Grupo de orientação: Ana Luiza Nogueira Vessoni, Alessandra Ribeiro, Beatriz
Rouco, Suzana Pastori, Daniele John, Regina Amaral, Nora Miguelez, Karin
Slemenson, Soraya Martins e Suzete Capobiano pelas discussões e
contribuições sempre instigantes.
Marilú Tassetto pela revisão cuidadosa.
CAPES por acreditar e incentivar a pesquisa no nosso país.
RESUMO
Neste trabalho, tomo a experiência clínica desenvolvida ao longo de meu
percurso profissional como objeto de investigação, focalizando os momentos que
levaram a ampliações e/ou a mudanças de vértices na direção do meu olhar
clínico. Para tanto pretendo dar visibilidade aos dispositivos clínicos usados, às
intervenções realizadas e aos efeitos produzidos nos atendimentos de crianças
com sofrimento psíquico ligado a momentos e/ou a estados de inibição intelectual.
O objetivo é desenvolver uma reflexão sobre o processo de transformação no
modo de conceber e usar os referenciais teóricos de Sara Paín e D.W.Winnicott.
Inicialmente, o trabalho de aprofundamento em determinado referencial
permitia apropriar-me da teoria ou de aspectos dela e, num segundo momento,
aplicá-la para determinado objetivo, verificando a sua eficácia ou a sua
possibilidade de lançar luz sobre algum aspecto do fenômeno em jogo. Na minha
experiência, a teoria é útil e interessa quando serve para iluminar a clínica.
Proponho, portanto, um uso transicional da teoria na clínica.
No percurso realizado, pude estabelecer relação entre a inibição intelectual
e o tema da comunicação significativa, concepção que desenvolvi inspirada na
noção de espaço potencial de Winnicott. Essa concepção mostrou-se fundamental
em minha prática clínica, por ter favorecido a superação das dificuldades da
criança e também por ter se revelado como o fundamento ético de minha prática
como analista. A comunicação significativa acontece no campo terapêutico
intersubjetivo, transformando a subjetividade do pesquisador-analista em sua
prática clínica e em sua compreensão das teorias que usa, ao mesmo tempo em
que promove a superação da inibição intelectual das crianças atendidas.
ABSTRACT
In this work, I get the clinical experience developed within my professional
life as an investigation object, focusing on the moments which guided to
enlargements and / or to vertex changes in the direction of my clinical view.
However, I intend to give visibility to used clinical devices, realized interventions
and produced effects in the attendance of children with phychic suffering closed
to moments and /or states of intellectual inhibition. The objective is to develop a
reflection about the process of changing as to conceive and use Sara Paín and
D.W.Winnicott’s theoric referencials.
Initially, the serious study in determined referencial allowed to assume its
theory or aspects and, later, to be applied to a determined objective, verifying its
efficacy or possibility of throwing light on some phenomenon aspect at stake. In my
experience, the theory is useful and it interests when it serves to make clear the
clinic I propose, therefore, a transicional use of the clinical theory.
In the realized path, I could establish the relation between the intellectual
inhibition and the theme of the significative communication, a conception which I
inspired developed in the notion of Winnicott potential space. This conception
revelead crucial in my clinical practice, for also having favored the overcoming of
the children’s difficulties and also for having disclosed how the ethinical bedding of
my practice as analyst. The significative communication happens in the
intersubjective therapeutical field, changing the subjectivity of the researcher-
analyst into his clinical practice and in his understanding of the theories which use,
at the same time that promotes the overcoming of the intellectual inhibition of the
attended children.
SUMÁRIO
Introdução...............................................................................................................1 I. Viagem de Ida: Diálogo entre o quadro de inibição intelectual e diferentes contribuições teóricas........................................11 Estação 1. Contextualizando o percurso e o campo.....................................11 Estação 2. Contextualizando o quadro de Inibição Intelectual....................26 Estação 3. Compreendendo Carol à luz do confronto entre Klein e
Paín.................................................................................................44 Estação 4. Compreendendo Carol à luz de Paín e Winnicott.......................62 II. Baldeação: Repensando a Inibição Intelectual a partir de novas
indagações teóricas.....................................................................80 III. Viagem de Volta: Comunicação Significativa e Jogo Tridimensional na Clínica da Inibição Intelectual...........................................89 Estação 5. Compreendendo Eric à luz do fenômeno estético.....................89 Estação 6. Testemunhando o caminhar de Eric na criação da
externalidade do mundo.................................................................112 Estação 7. Transformações do Olhar..........................................................138 Considerações Finais....................................................................................161 Referências Bibliográficas............................................................................168
1
INTRODUÇÃO
"A verdade é uma experiência
e cada um deve tentá-la
por sua própria conta e risco.” Tagore1.
Neste trabalho, pretendo tomar como objeto de investigação a experiência
clínica desenvolvida ao longo do meu percurso profissional, focalizando os
momentos que levaram a ampliações e/ou a mudanças de vértices na direção do
meu olhar clínico. Para tanto, pretendo dar visibilidade aos dispositivos clínicos
usados, às intervenções realizadas e aos efeitos produzidos nos atendimentos de
crianças com sofrimento psíquico ligado a momentos e/ou a estados de inibição
intelectual, com a finalidade de desenvolver uma reflexão sobre o processo de
transformação no modo de conceber e fazer uso de determinados referenciais
teóricos.
Um dado importante a ressaltar é que meu percurso profissional realizou-se
a partir de duas vertentes de formação e prática clínica: uma como psicóloga
institucional, nas áreas escolar e clínica, e outra, como psicanalista.
Desenvolvidas, inicialmente, de forma paralela, essas vertentes foram se
imbricando numa prática singular de atendimento a crianças com problemas de
aprendizagem. Enquanto a experiência institucional me levava a um
aprofundamento na Psicopedagogia Clínica, proposta por Paín, a partir das
contribuições da Psicanálise e da Escola de Epistemologia Genética de Genebra,
a experiência como psicanalista me levava a usar de forma mais flexível,
determinados referenciais teóricos na busca de compreensão sobre o
funcionamento psíquico de crianças com inibição intelectual.
1 TAGORE, R. Pássaros perdidos. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
2
Assim encontrei as contribuições de Klein e Luzuriaga, num primeiro
momento, e, num segundo, as de Winnicott. O diálogo com Paín constituiu-se
numa ponte que permitiu o trânsito entre esses dois momentos. Esse percurso é,
essencialmente, fruto do diálogo entre a prática desenvolvida com pacientes com
sofrimento psíquico ligado às queixas de problemas de aprendizagem e à minha
forma de compreender e fazer uso de aspectos presentes em tais referenciais
teóricos.
Considero importante esclarecer o uso que pude fazer dos referenciais em
jogo. Num primeiro momento, um trabalho de aprofundamento em determinado
referencial permitia apropriar-me da teoria ou de aspectos dela e, num segundo,
aplicá-la para determinado objetivo, verificando sua eficácia ou sua possibilidade
de lançar luz para algum aspecto do fenômeno em foco. Assim, é curiosa a
questão da teoria no caso de um terapeuta – pesquisador que pretenda construir
conhecimentos em Psicologia Clínica. Em minha experiência, a teoria é útil e
interessa quando serve para iluminar a clínica. Se com Paín, aprendi que é
preciso ser cético em relação à teoria e ingênuo em relação à prática, com
Winnicott, aprendi que a originalidade se dá a partir da tradição e da capacidade
de usar as contribuições de outros, para criar e desenvolver a própria.
Em trabalhos anteriores2, estabeleci um diálogo entre o atendimento clínico
de crianças com inibição intelectual e os referenciais teóricos de Sara Paín e D.
W. Winnicott. No primeiro, aprofundei-me na passagem da contribuição de Paín,
em Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem (1985), para a
teoria sobre a Função da Ignorância (1987, 1989), que trata das relações entre as
dimensões afetiva e cognitiva no pensamento do sujeito que aprende, focalizando
o atendimento de uma criança com inibição e outra com problema-sintoma de
aprendizagem. No segundo, levantei artigos e conceitos presentes na vasta obra
2 Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, 2000, e Pelos Caminhos da Ilusão e do Conhecimento, 2003, ambos publicados pela Casa do Psicólogo. No segundo livro, incluí parte da dissertação de mestrado: Inibição intelectual: o paradoxo no sintoma expressando paralisia e busca da criatividade. Defendida na PUC/SP, em 1996.
3
de Winnicott3 — como o de espaço potencial, noção de uso de objeto e
fenômenos transicionais — e os usei para fundamentar uma clínica da
aprendizagem e, também, para lançar luz sobre o atendimento de outras duas
crianças com inibição intelectual.
Se nos dois trabalhos realizei um diálogo entre a prática e esses
referenciais teóricos, situados em momentos determinados, focalizando o tema da
aprendizagem e a relação da criança com os objetos da cultura, aqui desenvolvo e
aprofundo uma reflexão incluindo todo o meu percurso profissional, inclusive um
primeiro momento de passagem, ainda não analisado anteriormente. Refiro-me à
contribuição de Klein, patamar de onde parti na busca de compreensão sobre o
funcionamento mental das crianças com inibição intelectual. Esse referencial foi se
mostrando insuficiente, pois não respondia às questões suscitadas na clínica, o
que me levou à busca, ao uso e ao diálogo entre a prática e os referenciais de
Paín e Winnicott. Este percurso me levou a priorizar a abertura de um espaço de
troca e comunicação significativa entre a criança com inibição intelectual e o
mundo de realidade compartilhada, a partir da criação de símbolos,
testemunhando o seu caminhar em direção à criação da externalidade do objeto
do mundo compartilhado favorecendo, assim, a instauração de um processo de
autoria e apropriação de conhecimentos.
Ao dar visibilidade aos dispositivos clínicos que construí, e venho utilizando
a partir da transformação de determinados conceitos de Winnicott e Paín,
pretendo resgatar as aproximações, rupturas e conflitos entre estas heranças
teóricas, buscando recuperar, não apenas o fio que determinou essas passagens,
mas também acompanhar a reconstrução histórica desses dispositivos e a forma
como uso esses referenciais atualmente na prática que desenvolvo com crianças
com inibição intelectual.
3 WINNICOTT (1941, 1945, 1949, 1952,1954-5,1959,1960,1963-a,1963-b,1963-c, 1964, 1965-a,1965 b, 1968, 1959; 1967a ; 1969; 1975,1990, 1994).
4
É preciso esclarecer um aspecto importante. Embora este trabalho
considere as diferenças epistemológicas existentes entre os referenciais
utilizados, o foco não é discutir essas contradições, mas sim considerá-las,
quando necessário, para acompanhar o percurso e os momentos de passagem
que levaram a transformações no olhar da minha escuta clínica. Com isso,
reafirmo que o meu objetivo é dar visibilidade aos dispositivos clínicos4 usados
atualmente na minha experiência de atendimento, para desenvolver uma reflexão
a respeito do processo de transformação no modo de conceber e fazer uso desses
referenciais teóricos. Embora considerados incompatíveis, ao mesmo tempo, do
ponto de vista da clínica, eles se apresentavam como ferramentas consistentes e
efetivas. Essa situação paradoxal trazia, para mim, um certo desconforto.
Uma questão, então, se impôs: seria possível conciliar duas teorias,
consideradas epistemologicamente distintas na prática clínica? Se sim, como? Em
caso afirmativo, será que esses dois referenciais, se usados durante um mesmo
atendimento, aconteceriam em tempos diferentes, concomitantemente, ou mesmo,
um posterior ao outro? E, mais! A contribuição de Winnicott apontaria para uma
ruptura ou para uma ampliação no campo de observações e intervenções
clínicas? Enfim, como pensar a clínica do desenvolvimento e da aprendizagem à
luz de Paín e Winnicott? Neste trabalho busco mostrar que, se do ponto de vista
teórico stricto sensu encontrávamos dificuldades, na clínica as diferenças
epistemológicas não representavam empecilhos para o desenvolvimento dos
atendimentos. Até pelo contrário, pareciam se complementar.
Encontrar palavras para expressar aquilo que, muitas vezes, intuía e
alcançava pela sensibilidade na experiência com crianças, especialmente aquelas
com severa inibição intelectual, tornou-se possível, à medida que pude usar
algumas noções de Klein, Paín e Winnicott. Como opero de forma intuitiva, pela
4 Uso o termo dispositivo clínico, neste contexto, para referir-me às funções exercidas pela analista buscando oferecer condições de a criança usufruir situações que permitam o desenvolvimento do seu potencial ativo e criativo.
5
sensibilidade, estabeleço uma relação subjetiva, isto é, quando ouço a criança, é
como se eu fosse ela. Daí a necessidade de um conceito que atue como um
terceiro para operacionalizar a minha sensibilidade, permitindo traduzi-la em
pensamento, operações e intervenções, até para poder apropriar-me daquilo que
vivi na experiência. Assim, trata-se de uma forma de usar a teoria em que faço um
uso temporário dos conceitos que permitem lançar luz sobre aquilo que vivi na
experiência clínica.
Por isso mesmo, concordo com Figueiredo5 quando afirma que o fato de
não podermos explicar racionalmente as nossas escolhas teóricas não nos
dispensa de ter claro quais são elas e nem de dar visibilidade aos dispositivos
clínicos usados a partir delas. Além da nossa relação obscura com a escolha e
com as teorias, existe nelas um ethos6 subjacente que opera e tem efeitos,
determinando uma leitura, uma compreensão e conseqüentemente, um tipo de
intervenção. Daí a necessidade de um trabalho de reflexão e organização das
minhas heranças teóricas para verificar o uso que fiz e faço das contribuições
desses autores.
Muito tempo se passou até que pudesse estabelecer a relação entre a
inibição intelectual e o tema da comunicação significativa7 de fundamental
importância, já que no meu percurso, a experiência com essas crianças evoluiu,
também, de um registro não-verbal para um verbal.
A trajetória não foi fácil. Não bastasse a complexidade do campo, era
preciso nomear, dar palavras e inteligibilidade para o que acontece, sabendo de
saída que as palavras estariam aquém da pretensão de expressar o que se
5 FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as Psicologias: Da Epistemologia à Ética nas práticas e discursos psicológicos. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes, 1996. 6 Segundo Figueiredo (1996): “(....) ethos - o objeto da ética tomada como reflexão ou “teoria” – se refere, à morada". (p.44) Neste contexto, ethos é usado como aquilo que fundamenta e dá sustentação à teoria. 7 Inspirada na noção de espaço potencial de Winnicott (1941, 1975), a comunicação significativa, como é usada neste contexto, permite a instauração do fenômeno da ilusão da onipotência mantendo a continuidade e estabilidade do ambiente e a entrada da criança no movimento do jogo tridimensional que abre o campo do brincar, conhecer e aprender.
6
almejava. Disso sabem bem os que escrevem sobre os assim chamados casos
clínicos. Enfatizo, assim, que dar palavras e inteligibilidade para esse tipo de
acontecimento exige que um analista – pesquisador clínico –, suporte a tensão e
lide com pensamentos e sentimentos paradoxais.
Trabalhar a partir do modelo da intersubjetividade, tal como o entendo,
implica explicitar o processo de relação do terapeuta com ele mesmo, dele na sua
relação com os pacientes, dele com o seu processo singular de identificação com
as concepções e fundamentos teóricos adotados e, especialmente, a de um
trânsito entre todos esses eixos. Trata-se de um caldeirão de muitos ingredientes
que se tornam enriquecedores quando bem aproveitados e digeridos.
E não é só isso! No campo terapêutico intersubjetivo, cada experiência
clínica significativa contribui para transformar a subjetividade do pesquisador-
terapeuta e, conseqüentemente, a sua forma de ler e compreender seja as teorias,
seja a prática, o que transforma não só o diálogo que estabelece, mas também, a
sua própria maneira de compreender, fazer intervenções, dialogar e usar as
teorias.
Importante ressaltar que, neste campo, – o da intersubjetividade – tudo o
que acontece põe em xeque tanto o terapeuta quanto o paciente, já que é fruto da
história de uma relação e de uma experiência estabelecida num campo criado e
compartilhado por ambos. Essa perspectiva rompe com a noção de neutralidade
do analista e exige poder transitar num modelo que opera fora da dicotomia
sujeito-objeto, desenvolvida na perspectiva do pensamento racionalista. O que
organiza o campo de vivências no campo intersubjetivo é muito mais do que uma
lógica. Trata-se de um movimento, de processos ambíguos e paradoxais que
admitem, portanto, a existência simultânea de elementos contraditórios. Implica,
também, numa outra forma de compreender o vínculo transferencial: como
exercício de funções psíquicas para atender as primeiras necessidades da
7
criança, sendo a primeira delas a da comunicação significativa. Que permite a
entrada da criança no movimento que caracteriza o jogo tridimensional8.
No meu caminhar da clínica dos problemas de aprendizagem que focaliza
as relações entre as dimensões afetiva e cognitiva do pensamento do sujeito que
aprende (PAÍN, 1985, 1989) para a da comunicação significativa, tema a ser
aprofundado neste trabalho, operacionalizei e flexibilizei a noção de Paín sobre a
Função da Ignorância por meio da noção de uso de objeto e de fenômenos
transicionais de Winnicott. Essa flexibilização se tornou possível devido a uma
forma pessoal de compreender e fazer uso dessas noções e, especialmente, a de
acolher a noção de Função da Ignorância como lugar, como ethos. Isso permitiu o
desenvolvimento de uma atitude que estou propondo chamar de espera receptiva
do analista.
Nesse caminhar, outras dimensões, para além da técnica, tornaram-se
importantes. Refiro-me às dimensões ética e estética. Como já disse, uso a
primeira noção, no sentido desenvolvido por Figueiredo9, de que há em cada
teoria um ethos que opera e tem efeitos. Da mesma forma, talvez seja a partir de
um ethos, isto é, de uma concepção de homem e visão de mundo, que o analista
compreende um fenômeno clínico, o que lhe permite identificar, escolher e usar
determinada teoria, ou aspectos dela, justamente porque ilumina tal fenômeno.
Já a dimensão estética, tal como é usada neste contexto, refere-se à
capacidade de o analista se deixar afetar pela ressonância que o modo de ser e
estar no mundo da criança provoca nele. Isso é possível graças à sua
disponibilidade genuína de ser testemunha do processo, deixar-se afetar de
forma visceral pela marca singular que a criança imprime na atmosfera do
ambiente e sustentar os encontros por meio da comunicação significativa que
8 O jogo tridimensional ao qual me refiro não se refere à triangulação, como comumente é abordada no campo psicanalítico, relacionada ao complexo edípico e à angústia de castração. 9 FIGUEIREDO, L. C. M. Revisitando as Psicologias: Da Epistemologia à Ética nas práticas e discursos psicológicos. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes, 1996.
8
acontece numa área em que não há diferenciação entre sujeito e objeto. Quando o
impacto em questão pode ser transformado e entrar no espaço de jogo, ele é, em
si, transformador, como veremos na apresentação dos atendimentos clínicos,
especialmente nas Estações 4 e 5.
Nada melhor do que fazer uso dos atendimentos clínicos que mobilizaram o
surgimento das questões que levaram às mudanças no modo como passei a
compreender e a fazer intervenções na clínica. Para acompanhar as
transformações nos vértices do olhar da escuta clínica, dividirei esta tese em dois
grandes momentos: A viagem de ida e A viagem de volta. As estações que as
compõem serão paradas, momentos para refletir sobre como os referenciais, ou
melhor, como algumas noções de Klein, Paín e Winnicott iluminaram aspectos da
clínica com essas crianças, permitindo a construção dos dispositivos clínicos.
Na viagem de ida, na Estação 1, apresento um histórico de como, a partir
da experiência desenvolvida como psicóloga em Escolas e Clínicas de Saúde
Escolar da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, recortei o campo dos
problemas de aprendizagem e o quadro de inibição intelectual como objeto de
investigação. Essa experiência levou-me à Psicopedagogia Clínica e à busca de
formação em Psicanálise.
Na Estação 2, contextualizo o objeto e as questões mobilizadas pelo
diálogo entre a prática e diferentes contribuições teóricas. Buscava resposta para
a indagação, geralmente feita pelos profissionais que atuam nessa área: por que
uma criança com potencial intelectual preservado, não pode fazer uso da sua
inteligência e aprender?
Na Estação 3, estabeleço um confronto entre as concepções presentes nas
contribuições de Luzuriaga, desenvolvidas de acordo com a perspectiva kleiniana,
e a de Paín, afastando-me da abordagem da primeira por meio de um diálogo com
9
o atendimento de Carol, uma menina de 9 anos, com um quadro de inibição
intelectual.
Na Estação 4, aproximo determinadas noções de Paín de outras de
Winnicott, focalizando momentos do atendimento de Carol, usado aqui para
acompanhar a construção histórica dos dispositivos clínicos.
A seguir, faço uma pausa – Baldeação – para refletir sobre o que aprendi
na experiência de diálogo entre os referenciais de Luzuriaga (Klein) e Paín,
ressaltando as novas questões que se me impunham naquele momento,
preparando-me, assim, para fazer a viagem de volta por meio do diálogo entre o
atendimento de Eric, um menino de 7 anos e as contribuições dos autores
anteriormente citados.
Na estação 5, retomo o caminho trilhado após a defesa da dissertação de
mestrado10 e estabeleço um diálogo entre o atendimento de Eric e determinadas
noções provenientes do referencial de Winnicott que permitiram compreender a
participação do fenômeno estético como possibilidade de abertura do espaço de
comunicação significativa.
Na Estação 6, busco dar visibilidade aos dispositivos clínicos que
favoreceram a criação de condições para a instauração de um campo de
comunicação significativa e a entrada de Eric no movimento do jogo
tridimensional, que permitiu a abertura de um campo, no qual o brincar, o
conhecer e o aprender aconteceram.
Na Estação 7, apresento uma concepção de conjunto de meu percurso,
bem como uma compreensão sobre ele, explicitando como conceitos de Paín e
10Inibição intelectual: o paradoxo no sintoma expressando paralisia e busca da criatividade, defendida na PUC/SP, em 1996, sob a orientação do Prof. dr. Gilberto Safra.
10
Winnicott, já transformados, permitiram desenvolver uma posição ética da qual
decorre a atitude de espera receptiva.
11
I VIAGEM DE IDA: DIÁLOGO ENTRE O QUADRO DE INIBIÇÃO INTELECTUAL E DIFERENTES CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS Estação 1. Contextualizando o percurso e o campo
“Importa compreender melhor o passado, porque, além dele
apontar para o futuro, nele já se fecundam as sementes do
presente”.
Pretendo contar como a experiência institucional desenvolvida inicialmente
como psicóloga escolar, numa atuação preventiva nas escolas municipais da
periferia de São Paulo, de 1977 a 1980 e, posteriormente, como psicóloga clínica
com crianças de pré, 1ª e 2ª séries nas Clínicas de Saúde Escolar da Secretaria
Municipal de Educação, de 1981 a 1987, numa atuação terapêutica individual ou
em grupo, determinou o recorte do campo dos problemas de aprendizagem e o
tema da inibição intelectual como objeto de interesse e investigação. Na busca de
compreensão sobre o funcionamento psíquico de crianças com esta
sintomatologia, fui aproximando, aos poucos, duas vertentes de atuação e
formação: como psicanalista e como psicóloga escolar e clínica institucional, o que
me levou a psicopedagogia.
A experiência como psicóloga escolar O início do trabalho como psicóloga escolar aconteceu na mesma época
em que era professora supervisora de Técnicas de Exames Psicológicos – TEP,
na faculdade de Educação e Cultura de São Caetano – FEC, e fazia o curso de
especialização em Psicodrama. Recém-formada e cheia de sonhos, comecei a
atuar como psicóloga escolar. Não sei se por destino ou acaso, pois isso parecia
natural e dava continuidade a algo que havia começado muito antes. Filha de um
educador não-formal e de uma professora que considerava sua missão alfabetizar
crianças de 1ª série com dificuldade para aprender, cresci imersa num ambiente
12
em que o campo de vivências era organizado por temas relacionados às questões
educacionais.
Na época, havia um mito que organizava o funcionamento familiar: o
famoso querer é poder. Como todos em minha família, creio que até
aproximadamente 1980, eu tinha uma leitura do mundo bastante linear, lógica e
que valorizava a dimensão da objetividade. Ainda não tinha constatado a
participação do inconsciente nos acontecimentos humanos!
Penso que fatores de ordem pessoal vividos na época, aliados,
especialmente, à experiência como psicóloga escolar, foram fundamentais para as
transformações que se seguiram. Fazer as intervenções no âmbito escolar não era
tarefa fácil, especialmente, devido à resistência à mudança que os educadores
apresentavam. Era inegável a distância entre o que falavam e o que faziam. Era
gritante o caráter de repetição das suas atitudes e, conseqüentemente, da
repetição dos acontecimentos. Era impossível não acreditar na existência de uma
força – e reconhecer que ela era interna – que impedia esses educadores de
fazer as transformações necessárias para que uma mudança real acontecesse na
realidade externa. Esse era um dos elementos, entre outros, que me levava a
reconhecer que mesmo pessoas inteligentes e sem problemas de aprendizagem
formal podiam emburrecer e não fazer uso do seu potencial intelectual, no caso,
mesmo se tratando de adultos e com formação em Educação.
A mesma questão que geralmente (pré) ocupa os que atuam no campo da
aprendizagem se colocava: como compreender o fato de que pessoas inteligentes,
em determinados momentos, podiam não ter a disponibilidade de fazer uso do seu
potencial e aprender?
Embora, na época, ainda não trabalhasse com a questão da patologia da
aprendizagem, já me interessava em observar momentos de paralisia e/ou inibição
intelectual, o que viria, posteriormente, a ser o meu tema de investigação. Só
13
muito mais tarde, poderia associar essas experiências a dois dos pilares da
psicanálise: o de que o inconsciente opera e tem efeitos e que o caráter de
repetição é uma das propriedades fundamentais da pulsão.
A partir daí, não podia mais acreditar apenas na dimensão da objetividade,
nem que querer era poder. Tinha sido marcada de forma irreversível pela
consciência de que o inconsciente tinha uma participação decisiva nos
acontecimentos humanos. O reconhecimento de que pessoas brilhantes do ponto
de vista intelectual, às vezes, não podiam fazer uso do seu potencial, nem mesmo
para viver de forma criativa, cada vez mais me afastava da leitura ingênua, linear e
lógica que, até então, tinha da vida.
Trechos de um poema de Álvaro de Campos, um dos heterônimos do poeta
português Fernando Pessoa, talvez ajudem a comunicar o que pretendo:
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto (...)
E a alegria de todos, e a minha,
Estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim”
(...)
Aniversário11
Na minha experiência, reconhecer a existência e a força do inconsciente,
significou, também, reconhecer que havia uma relação entre ele, a existência de
uma dimensão afetiva e o funcionamento da inteligência. Após reconhecer a força
11 CAMPOS, Álvaro de. Aniversário. In PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1997. p. 379-0.
14
de algo que funcionava para além de uma possibilidade de conhecimento e
continência e que levava os educadores a um certo emburrecimento e à repetição
de mesmos padrões de comportamento e atitudes, não fazia mais sentido dar
continuidade ao trabalho de conclusão do curso de especialização em
Psicodrama, que, justamente, buscava demonstrar a possibilidade da eficácia
daquela técnica para mobilizar uma mudança de atitude nos educadores.
Talvez uma mudança já tivesse se operado em mim, acabando por
determinar dois movimentos de busca. Por um lado, iniciei um processo de análise
pessoal e, por outro, o curso de Mestrado em Psicologia da Educação na PUC-
SP. Nele buscava encontrar um referencial teórico que permitisse dialogar e
refletir sobre a prática escolar que desenvolvia. Infelizmente não era essa a linha
do curso de Mestrado em Psicologia da Educação, pelo menos, naquela época.
Com a abertura de mais duas Clínicas de Saúde Escolar ligadas ao Serviço de
Psicologia do mesmo departamento, transferi-me para uma delas para atuar como
psicóloga clínica.
Contextualizando a época e a experiência como psicóloga clínica Vale lembrar que o Serviço de Psicologia da Secretaria Municipal de
Educação, fundado em 1964, existiu até 1989 e chegou a contar com mais de 140
psicólogos, entre escolares e clínicos, especialmente nas décadas de 1970 e
1980, época em que o fracasso e a evasão escolar atingiram índices altíssimos,
determinando uma série de movimentos que implicaram várias mudanças,
inclusive a da concepção em relação à compreensão dos problemas de
aprendizagem e da intervenção sobre eles.
Em outro trabalho12, contei como a maioria dos profissionais (pedagogos,
educadores de saúde pública, médicos, fonoaudiólogos) que atuavam no campo
dos problemas de aprendizagem vivia um momento de transformação. Por
12 Ver PARENTE, S.M.B.A. Pelos caminhos da ignorância e do conhecimento - fundamentação teórica da prática clínica dos problemas de aprendizagem. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. cap. 1 e 2.
15
motivos diferentes, buscavam definir os limites da sua atuação e apropriar-se de
uma identidade profissional. Buscavam libertar-se das funções normativas a eles
atribuídas até então, as quais favoreciam uma prática de exclusão social. Em
termos da Psicologia Escolar, era o caso, por exemplo, das avaliações
psicológicas usadas para a formação de classes: forte/média/fraca, o que, muitas
vezes, levava à construção de estereótipos que não favoreciam os processos de
desenvolvimento e aprendizagem.
Por outro lado, nas Clínicas de Saúde Escolar, era evidente que o tipo de
atendimento realizado não dava conta nem da demanda - era grande o número de
crianças em fila de espera - nem da problemática: embora houvesse um bom
desenvolvimento das crianças na área interpessoal (relacionamento na escola,
família), o mesmo não ocorria em relação ao motivo do encaminhamento, isto é,
do fracasso e repetência escolar. Isso, muitas vezes, contribuía para desistências
e abandonos durante o processo terapêutico. Vale lembrar que, na etapa do
tratamento, usávamos as técnicas da psicomotricidade e da ludoterapia,
especialmente na linha kleiniana e de forma individual, tal como desenvolvidas em
consultório. O objetivo da ludoterapia era a mudança nas relações no mundo
interno e na fantasia inconsciente da criança, sendo as questões da
aprendizagem, familiares, escolares, pouco consideradas.
O diagnóstico também era feito da maneira tradicional e geralmente
chegávamos à conclusão de que havia ”a presença de fatores emocionais
interferindo no possível rendimento intelectual”, o que pouco acrescentava ao que
já sabíamos. Falava-se uma linguagem a que os pais não tinham acesso. Mais de
uma vez, ouvi mães comentarem que não entendiam por que seus filhos não
aprendiam, o que estava sendo feito para ajudá-los e como elas poderiam
participar do processo. Não conseguíamos ajudar os pais porque também nós não
entendíamos porque as crianças não aprendiam. Era evidente que havia ali uma
questão ética. Nós nos comprometíamos com a questão dos problemas da
16
aprendizagem e não a considerávamos. Isso porque a formação acadêmica não
fornecia elementos para o desenvolvimento da prática que precisávamos realizar.
Na esteira de todo esse movimento, no início da década de 1980, todo o
Departamento de Assistência ao Escolar passou por uma reformulação: era
preciso mudar as concepções e oferecer um tipo de atendimento condizente com
a demanda. A questão era: como atualizar o modelo de atendimento e adequá-lo
àquela realidade? Era preciso também demonstrar a eficácia do trabalho do
Serviço de Psicologia e desenvolver novas estratégias para resolver a questão do
fracasso e evasão escolar, que continuava com índices altíssimos.
Hoje, poderíamos dizer que as crianças continuavam a denunciar com seu
fracasso escolar, o fracasso do sistema educacional como um todo. Mas isso não
estava claro para nós naquela época! Já não se acreditava mais que as crianças
não aprendiam por problemas de carência social, desnutrição ou problemas
neurológicos. Esses mitos não mais se sustentavam e todo um movimento se
desenvolvia contrariando essas concepções.
No bojo desse movimento, de 1982 a 1985, passei a ser a coordenadora
técnica do Serviço de Psicologia Clínica e a observar a resistência à mudança,
agora, por parte de muitos psicólogos que não acreditavam na eficácia do trabalho
grupal e nem estavam abertos para conhecer referenciais que focalizassem a
questão da aprendizagem. Foi a chance para me aprofundar ainda mais na
compreensão sobre o funcionamento de crianças que, apesar de inteligentes, em
determinados momentos não tinham a disponibilidade de fazer uso da inteligência
e aprender.
Duas preocupações norteavam minha busca. Uma de ordem prática: dispor
de um modelo para fazer o diagnóstico e o tratamento dos problemas de
aprendizagem individual e grupal nas Clínicas de Saúde Escolar. Outra de
natureza teórica: encontrar um referencial que permitisse compreender a
17
articulação entre afeto e inteligência no problema de aprendizagem através da
perspectiva psicanalítica. Além disso, havia a proposta de escrever trabalhos
sobre as experiências que vinham sendo desenvolvidas, até então, nas Clínicas
de Saúde Escolar, inclusive a que sistematizava passos para a consecução de um
diagnóstico grupal dos problemas de aprendizagem.
Aproximando as formações em psicanálise e em psicopedagogia A prática como psicóloga escolar naquela instituição aliada a de
atendimento como psicóloga clínica durante aproximadamente 7 anos definiu não
apenas o percurso, mas também o recorte do campo e do objeto de investigação.
Na minha experiência, uma reflexão crítica sobre o trabalho que fazíamos nas
Clínicas de Saúde Escolar e a abertura de um campo de interlocução voltado para
as interfaces entre a psicanálise, a aprendizagem e o trabalho grupal aconteceu
por meio da experiência de supervisão com Mary Carpossi13, iniciada durante o
curso de formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae. Os relatos de
trabalhos desenvolvidos por ela com grupos de crianças, juntamente com
psicopedagogos na Argentina, levou-me a buscar subsídios nessas contribuições,
já que a formação acadêmica brasileira não nos preparava para trabalhos
institucionais dessa natureza.
Algum tempo depois, por seu intermédio, conheci Ana Maria Muñiz14, com
quem comecei minha formação e supervisão em Psicopedagogia Clínica. Fazer
parte como psicopedagoga da equipe de profissionais coordenada por Muñiz, para
pôr em prática uma experiência pioneira, incentivou-me ainda mais a aprofundar
minha formação no campo dos problemas de aprendizagem.
13 Mary Carpossi, psicanalista argentina, com grande experiência em trabalho institucional residiu muitos anos em São Paulo, introduzindo muitos psicanalistas em abordagens psicodinâmicas de orientação psicanalítica, especialmente na de família e casal. Com ela fomos num grupo de aproximadamente 20 profissionais ao Primer Congreso Argentino de Psicoanalisis de Família e Pareja, em maio de 1987, em Buenos Aires. 14 Ana Muñiz, psicopedagoga argentina, residiu por aproximadamente 10 anos em São Paulo, onde realizava grupos de diagnóstico psicopedagógico, formando várias turmas de psicopedagogos. Foi responsável pela introdução da abordagem dinâmica na Psicopedagogia Clinica e faleceu em 13 de abril de 2002, em Buenos Aires.
18
Na época, estudava, por um lado, as contribuições de autores como
Pichón-Rivière, Bleger, Dolto, Klein, Luzuriaga na vertente da psicanálise e, por
outro, Piaget, na vertente da psicopedagogia. Buscava entender as relações entre
o aspecto emocional e o funcionamento da inteligência, as relações entre
pensamento e linguagem, ação e percepção, indagando-me, também, sobre o que
fazer com a família e a escola, não apenas no diagnóstico, mas também no
tratamento. Note-se que a terminologia usada na época era a do modelo médico:
falava-se em distúrbios de problemas de aprendizagem, diagnóstico, tratamento e
prognóstico.
Foi nessa esteira que entrei em contato com a contribuição de Paín em
Diagnóstico e Tratamiento de los Problemas de aprendizaje, que viria a ser
publicado em português, em 1985. Tal contribuição permitiu não apenas focalizar
e nomear melhor minhas questões, mas também começar a refletir sobre um novo
projeto de atendimento. Nesse novo projeto, grupos de Intervenção
Psicopedagógica (os GIPPI) poderiam ser realizados nas escolas da Prefeitura e
utilizados de forma preventiva com pais e professores, enquanto os Grupos
Terapêuticos (GT) continuariam a ser feitos nas Clínicas de Saúde Escolar.
Entretanto, essas considerações que deveriam constituir um projeto de
Psicologia Clínica Escolar foram literalmente varridas e não saíram do papel,
devido a mudanças administrativas e políticas. Estávamos em 1985. Com a
mudança política, Jânio Quadros assumiu a Prefeitura em 1986, dando início, por
um lado, ao processo que levou, num primeiro momento, à descaracterização
desse trabalho de Psicologia e, depois, à sua extinção na administração que o
sucedeu. Por outro lado, a questão do fracasso e evasão escolar foi curiosamente
“resolvida” em 1986, com a institucionalização do que viria a ser chamado sistema
de promoção automática tanto nas escolas estaduais, quanto nas municipais de
São Paulo. É possível compreender a deterioração do sistema de ensino público
que levou a educação ao que é hoje. Colhemos os frutos dessa política em vários
segmentos, inclusive na Educação Superior. Muitos são os universitários que
19
apresentam defasagem na capacidade de abstração e reflexão crítica, o que
dificulta bastante o processo de ensino-aprendizagem e reconstrução de
conhecimentos.
Lamentavelmente, os ajustes e transformações que vinham sendo
discutidos pelos profissionais sobre as questões não apenas técnicas, mas
especialmente éticas, sobre a formação e desenvolvimento da Psicologia Clínica
e Escolar naquele Serviço focalizando o campo dos problemas de aprendizagem
foram sendo paulatinamente minados. Com a mudança de coordenação no
Serviço de Psicologia, enquanto alguns psicólogos eram deslocados para outras
áreas (Saúde, Cultura etc.), outros, desacreditados do trabalho, demitiam-se, não
sendo substituídos. Em 1989, o que hoje se denominaria Serviço de Psicologia
Clínica Escolar, já totalmente descaracterizado, foi transferido para a Secretaria
Municipal da Saúde.
Antes ainda da minha demissão em 1987, juntamente com o grupo que
sistematizava os passos para a consecução do diagnóstico grupal dos problemas
de aprendizagem, talvez numa tentativa de preservação do trabalho, lutamos e
conseguimos dar continuidade à proposta de escrever artigos sobre as
experiências que vinham sendo desenvolvidas, até então, nas Clínicas de Saúde
Escolar. Esses trabalhos, que acabaram por ser apresentados no II Encontro
Estadual de Psicopedagogos15, eram realizados pelos estagiários de psicologia,
pois era grande a resistência dos psicólogos clínicos para se envolver no tipo de
trabalho grupal proposto.
Vale lembrar também que, durante esse II Encontro Estadual de
Psicopedagogos de São Paulo, em 1986, foi fundada a Associação Brasileira de
Psicopedagogia, que tinha como preocupação central a questão do fracasso e
evasão escolar. É importante ressaltar que o primeiro curso de especialização em
15 Ver SCOZ, Beatriz Judith Lima et al. Psicopedagogia: o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. cap. 5, 12 e 13.
20
Psicopedagogia tinha orientação reeducativa e começou em 1979, no Instituto
Sedes Sapientiae. E também que, segundo Rubinstein (1987), o grupo que fundou
a ABPP era “composto na sua maioria por pedagogos que fizeram o curso de
especialização em Psicopedagogia no Instituto Sedes Sapientiae16. Muitos deles,
igualmente, faziam grupos de formação com Ana Muñiz.
Interessante essa reflexão histórica, pois permite resgatar as heranças e as
marcas do percurso dos diferentes movimentos ligados à Psicopedagogia no
Brasil. No caso da Associação Brasileira de Psicopedagogia - ABPS-SP, ela se
formou na esteira da Psicopedagogia Reeducativa e, posteriormente, da
Psicopedagogia Clínica de orientação dinâmica, aqui, introduzida por Muñiz.
É preciso dizer que os psicopedagogos argentinos, formados, como Paín,
na tradição piagetiana e psicanalítica, influenciaram e marcaram a história da
Psicopedagogia brasileira de diferentes formas e em diferentes regiões. Se em
São Paulo foi importante a contribuição de Muñiz, no Rio de Janeiro o foi a de
Jorge Visca, com a introdução da abordagem convergente. Mais adiante contarei
como foi a chegada de Sara Paín a Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro.
É preciso dizer que esse grupo que fundou a ABPS foi muito bem-sucedido
em algumas de suas propostas, especialmente a de afirmar e defender a atuação
do psicopedagogo. Basta ver o aumento do interesse por esse campo no final da
década de 1980, e a proliferação de cursos de Especialização Lato Sensu em
Psicopedagogia, na de 1990. Entretanto, a meu ver, pouco cuidado foi dispensado
ao aspecto da formação profissional, que implicaria necessariamente numa
reflexão e aprofundamento na discussão de questões éticas e técnicas ligadas às
dimensões do diagnóstico, acompanhamento e dos tipos de intervenção, seja na
prática institucional, seja na de consultório.
16 SCOZ, Beatriz Judith Lima et al. Psicopedagogia: o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. cap 1.
21
Discriminando duas Modalidades de Psicopedagogia Em 1985, época em que as questões relacionadas ao tema do fracasso e
evasão escolar estavam em plena ebulição foi publicado, no Brasil, Diagnóstico e
Tratamento dos Problemas de Aprendizagem. Nesse livro, Paín defende – o que
não é pouco – a especificidade do campo, enfatiza a diferença entre a
Psicopedagogia Clínica e a Reeducativa e introduz a teoria psicanalítica na
análise do problema de aprendizagem entendido como sintoma. Além disso,
propõe uma classificação dos problemas de aprendizagem, que foi de extrema
importância não apenas no meu percurso, mas no dos que seguiram
acompanhando o desenvolvimento de seu pensamento. Cito, aqui, duas de suas
contribuições que, acredito, operaram uma transformação no pensamento desse
grupo. A primeira, refere-se à consideração da participação das dimensões
familiar e escolar na constituição do sintoma; a segunda, à ênfase de que há os
que não aprendem porque não lhe são dadas oportunidade para desenvolver os
instrumentos de pensamento adequados, o que produz sujeitos passivos, sem
autonomia e capacidade de reflexão crítica.
Gostaria que se compreendesse por que desde essa época, venho
assinalando tanto a importância de discriminar entre as duas modalidades de
Psicopedagogia: a Clínica Escolar, que encontra sua fundamentação em Sara
Paín e a Cognitivista ou Adaptativa, que encontra sua fundamentação em Piaget.
São vertentes que trabalham a partir de concepções diferentes17, o que não é
pouco, pois determinam diferentes leituras, compreensão e, conseqüentemente,
diferentes tipos de intervenção. E mais! Tanto uma modalidade de psicopedagogia
como outra podem ser usadas tanto na instituição (escolar, hospitalar, empresarial
etc.) quanto no espaço de consultório.
Assim, o dispositivo do profissional da aprendizagem, seja o psicopedagogo
clínico escolar ou o cognitivista, não se define pelo espaço físico no qual a sua
17 Ver cap. 1, 2, 3 e 4. In Pelos caminhos da ignorância e do conhecimento e Introdução. In Subjetividade e Objetividade: Relações entre desejo e Conhecimento. CEVEC.
22
ação se realiza e, sim, pela escolha decorrente de sua identificação com uma ou
outra concepção. Na verdade, o que se tem de levar em consideração é a crença
na participação do inconsciente e na dimensão da subjetividade organizando o
campo de relações entre o sujeito e o objeto a ser conhecido e, doutra parte, a
desconsideração por essa dimensão. Claro que tudo isso tem relação com o
aspecto da formação do profissional. A meu ver, faz-se urgente uma reflexão a
esse respeito. Isso se queremos não apenas o reconhecimento da especificidade
de uma profissão, mas, mais do que isso, que ela seja ética e contribua para a
formação de sujeitos que possam apropriar-se e ser protagonistas da sua história.
Talvez, fique mais fácil de entender se eu afirmar que da mesma forma que
não se pode ser psicanalista sem estudar a contribuição de Freud, não se pode
ser psicopedagogo sem estudar a de Paín, desenvolvida a partir das contribuições
de Piaget e da Psicanálise. E isso não para concordar ou discordar da sua
construção teórica e, sim, porque se trata de uma abordagem que define e
defende a especificidade de um campo, apresenta um modelo teórico e uma teoria
da técnica, o que possibilita um ponto de partida para o desenvolvimento de uma
reflexão crítica.
É apropriado mencionar dois outros movimentos, a meu ver,
importantíssimos, nem sempre lembrados, quando se considera o
desenvolvimento histórico da Psicopedagogia. Refiro-me ao Grupo de Estudos
sobre Educação, metodologia de Pesquisa e Ação – GEEMPA-POA, fundado em
1970, que trouxe pela primeira vez Sara Paín a Porto Alegre, após o fim da
ditadura militar na Argentina, em 1982, e do Centro de Estudos Educacionais Vera
Cruz – CEVEC-SP que a trouxe a São Paulo.
No CEVEC, Paín realiza, de 1982 a 1987, assessorias, seminários e
conferências e, em 1987, ministra um curso18 em que apresenta as bases do seu
18 PAÍN, S. Subjetividade e objetividade: relações entre desejo e conhecimento. Centro de Estudos Educacionais Vera Cruz-CEVEC, 1996.
23
pensamento de forma bastante acessível, pois, na época, estava reescrevendo o
que viria a ser a versão em francês, ampliada e atualizada, de A Função da
Ignorância (1987, 1989, 1999)19.
Nesse curso, fica claro o seu objetivo: a construção de um conhecimento
cientifico sobre o pensamento do ser humano que permita refletir tanto sobre a
prática educacional quanto a terapêutica. Além de “subverter a ordem vigente”,
reconhecendo que a ignorância não é o oposto do conhecimento, pois faz parte de
sua gênese, ela ressalta que mais importante do que ensinar é desenvolver a
capacidade do indivíduo de formular perguntas, sua capacidade de reflexão crítica
e autonomia de pensamento. Definia-se, assim, o campo teórico-prático da
Psicopedagogia Clínica Escolar. Nesse curso, apresentei o atendimento de uma
criança com sérios problemas de aprendizagem para ser supervisionado por Paín.
Essa experiência teve uma influência decisiva em todo o meu percurso, não
apenas como psicopedagoga, mas também como psicanalista.
Bem, mas o que interessa para este trabalho é que quando me demiti da
Prefeitura, em 1987, segui investigando as questões ali mobilizadas, em relação
aos problemas de aprendizagem, até porque recebia muitas crianças e
adolescentes com esse tipo de queixas no consultório. Então, comecei a observar
um fato curioso: o encaminhamento para a psicopedagogia passou a ser um meio
para driblar a resistência de pais em levar seus filhos ao consultório do psicólogo,
visto que este era um lugar de atendimento para “doidos”.
Atualmente podem-se observar práticas que começaram naquela época e
são comuns até hoje, como o encaminhamento, às vezes, indiscriminado de
crianças para os consultórios psicopedagógicos, deslocando-se para esse espaço
19 A primeira data refere-se à primeira publicação de A Função da Ignorância – na realidade, um seminário ministrado por Paín, antes do período de ditadura militar e do seu exílio em 1977, em Paris, onde reside até hoje. Foi publicado em 1985, em castelhano, sem a revisão da autora depois da abertura política, e em português em 1987, na esteira do movimento que levaria ao desenvolvimento do mercado de trabalho e a uma proliferação dos cursos de Psicopedagogia, na década de 1990. Em 1989, é publicada em francês revista e ampliada pela autora, com o mesmo título, vindo a ser publicada em 1999, no Brasil.
24
o que, muitas vezes, poderia ser da competência da escola, da família, do
psicólogo ou de até outros profissionais.
Foi fazendo sentido, para mim, a crítica de colegas, especialmente, do
Serviço de Psicologia Escolar da Secretaria Municipal da Educação, assinalando o
fato de que alguns pais de crianças de classe social alta acreditavam estar
cuidando muito bem de seus filhos, porque, além de freqüentarem uma boa
escola, eram levados, quase sem fôlego, como pequenos executivos e pelos
motoristas, ao ortodontista, às aulas de natação, ao curso de Inglês e... ao
psicopedagogo. Isso me leva a refletir sobre a necessidade de não sermos
engolidos pelo sistema, evitando transformar os espaços “psi” em artigos de
consumo.
Hoje, reconheço que a minha dupla formação, talvez, tenha permitido
compreender o “mau uso” que começou a ser feito da psicopedagogia desde
aquela época. E, mais, talvez tenha preparado o terreno para que eu pudesse
compreender a importância da dupla escuta preconizada por Paín como
dispositivo para dar conta da relação entre a dimensão subjetivo-afetiva e a
cognitivo-inteligente no pensamento do sujeito que aprende.
Algumas Considerações
É possível até aqui dar-se conta de que na década de 1980 não era como
hoje, em que há tantos cursos de formação em Psicopedagogia ancorados nas
contribuições de várias disciplinas entre elas, a Psicanálise. Não era comum o
intercâmbio entre os profissionais das áreas da Educação, Psicanálise e
Psicopedagogia, que, aliás, como vimos, até o início dessa década, só existia na
linha da Reeducação. A aproximação dos psicopedagogos em relação aos temas
psicanalíticos voltados para a participação do inconsciente e da subjetividade no
processo de aprendizagem e construção de conhecimentos foi bastante lenta.
25
Naquela época, mais do que a falta de troca e diálogo entre os profissionais
das áreas da aprendizagem e os da psicanálise, tratava-se, como bem apontado
por Paín, de dois campos, que além de se ignorar, não se valorizavam. A situação
não era diferente no meio psicanalítico que eu freqüentava. Era difícil a inserção
de questões ligadas ao campo dos problemas de aprendizagem. Não havia uma
reflexão sobre as possíveis relações entre as dimensões afetiva e cognitiva do
pensamento do sujeito, pois era como se o desenvolvimento emocional dirigisse o
psicomotor e cognitivo da criança. Na ludoterapia, o foco era o mundo interno de
relações objetais e a fantasia inconsciente da criança, mesmo quando havia
queixas de problemas de aprendizagem. Pouca importância se atribuía à
participação do ambiente familiar e escolar na constituição desse sintoma.
Por um lado, o aprofundamento nas contribuições de Freud e Klein na
tradição do modelo pulsional, intrapsíquico na vertente da Psicanálise, e, por
outro, na contribuição de Paín, na vertente da Psicopedagogia Clínica Institucional
possibilitou a aproximação entre ambas ao recortar o quadro de inibição intelectual
como objeto de investigação, como veremos no capítulo que se segue.
26
Estação 2. Contextualizando o objeto e as questões
“Toda experiência é construída ou, melhor dizendo, toda
experiência é em construção”.Figueiredo.20
Neste capítulo pretendo contar como a busca de compreensão sobre o
funcionamento mental de crianças com inibição intelectual permitiu aproximar as
duas vertentes de formação e atuação como psicopedagoga e como psicanalista,
desenvolvidas inicialmente de forma paralela. Tenho claro que não falo do que
realmente aconteceu e sim daquilo que a memória – enriquecida por muitas outras
experiências pessoais e profissionais – alcança.
Recorte do quadro de inibição intelectual Desde o início do meu trabalho clínico tanto nas escolas quanto nas
Clínicas de Saúde Escolar e, também, no consultório, era o grupo de crianças com
inibição intelectual o de diagnóstico mais grave, o que mais me mobilizava a uma
reflexão, constituindo um objeto privilegiado de observação e questionamentos21.
O que me intrigava é que, além da dificuldade para fazer o diagnóstico
diferencial dessas crianças, elas apresentavam uma boa evolução e
desenvolvimento, principalmente, quando alguém da família e/ou da escola
apostava no seu potencial e se envolvia com elas de forma genuína. Entretanto,
não era isso o que a literatura psicanalítica, especialmente a kleiniana,
preconizava sobre o quadro.
20 FIGUEIREDO, L. C. (2002) O tempo nos processos de singularização (apostila usada em aula). 21 Isso foi tema do cap. 6 em Pelos caminhos da Ignorância e do Conhecimento e dos cap.4 e 5 em Pelos caminhos da Ilusão e do Conhecimento.
27
Soifer conta que Pichón-Rivière cunhou o termo oligotimia ou inibição
cognitiva para estabelecer a diferenciação entre esse quadro e a oligofrenia
(deficiência mental). Na classificação que faz sobre os quadros psicopatológicos,
numa perspectiva psicanalítica, Soifer inclui esse quadro no grupo das psicoses
simbióticas e salienta um prognóstico bastante desfavorável para ele. Descreve as
características das crianças oligotímicas da seguinte maneira:
crianças com características autistas e, ao mesmo tempo,
simbióticas, que mostram retração e dependência (...)
apresentam persistência de situações orais primitivas
associadas a núcleos depressivos e a intensa ansiedade de
separação, a traços de fixação anal e elaboração deficiente
da problemática edípica. Excessiva ansiedade paranóide
constitucional ligada a ansiedade de aniquilação no início da
vida. (SOIFER, 1985, p.115)
Além do forte colorido kleiniano, trata-se de um prognóstico bastante
fechado. Note, caro leitor, que o meu interesse em investigar o quadro de inibição,
como psicopedagoga, nasce da distância entre o que observava a partir da
experiência especialmente na instituição e o que a literatura psicanalítica falava
sobre elas. Na busca de compreender tal distância, após 1987, época em que saí
da Secretaria Municipal de Educação, segui aprofundando o estudo sobre o
funcionamento mental dessas crianças que, apesar de inteligentes, não
aprendiam. Diferentes autores contribuíram para o meu caminhar.
Na realidade, o meu percurso no campo dos problemas de aprendizagem
foi influenciado por duas linhas que se desenvolveram, a partir da contribuição de
Freud e Klein, na Argentina, nas décadas de 1960 e 1970. Uma desenvolvida por
meio das contribuições de Pichón-Rivière, que cunhou o termo oligotimia ou
inibição cognitiva, e outra que continuou usando o termo inibição intelectual.
Enquanto Pichón-Rivière – perspectiva adotada por Paín – acrescentava a
28
dimensão social à abordagem de Klein, Luzuriaga acrescentava a contribuição de
Bion à de Klein, cunhava a noção de contra-inteligência22 e seguia usando o termo
inibição intelectual. O uso de terminologias diferentes para nomear o mesmo
quadro já evidencia diferentes concepções e anuncia a complexidade do tema.
As questões mobilizadas pelo diálogo entre a prática e diferentes contribuições teóricas.
Na estação anterior, contei que na década de 1980, era difícil a inserção de
questões ligadas ao campo dos problemas de aprendizagem no meio psicanalítico
que eu freqüentava. A crença era de que a dimensão emocional, afetiva,-
organizava e dirigia o desenvolvimento psicomotor e cognitivo. A ludoterapia era a
técnica utilizada e o foco era o mundo interno de relações objetais e a fantasia
inconsciente da criança. Os fatores ambientais pouco contavam, mesmo quando
havia queixas de problemas de aprendizagem. O mesmo acontecia com os
psicopedagogos que mantinham um distanciamento em relação a temas
psicanalíticos voltados para a participação do inconsciente e da subjetividade no
processo de aprendizagem. Assim, era difícil o diálogo entre os profissionais
dessas áreas, o que dificultava uma interlocução significativa.
É preciso lembrar que durante a minha formação como psicanalista havia
começado minha análise pessoal e algumas supervisões na tradição do modelo
Kleiniano, sendo essa perspectiva uma das adotadas no curso que eu fazia no
Instituto Sedes Sapientiae – SP. Como era comum naquela época, me via muito
mais submetida à dimensão conceitual do que propriamente ao movimento
presente na experiência com o paciente. Como é sabido, a experiência vivida nas
supervisões clínicas e, especialmente, na análise nos marca profundamente.
Outra experiência, também marcante, foi proveniente de um grupo de
estudos formado por mais quatro psicanalistas. Nele, aprofundávamos o estudo da
leitura histórico-crítica da obra de M. Klein, realizada em dois volumes, por J. M
22 LUZURIAGA, I. La inteligência contra sí misma. Buenos Aires: Psique, Siglo XXI, 1972.
29
Petot23. e, também, a leitura de A Pulsão de morte24, um livro resultante dos
trabalhos apresentados por vários autores, durante o Congresso de Marselha,
realizado em 1984. Ambos foram publicados no Brasil, em 1988.
A mola propulsora das indagações e do diálogo com tais publicações
provinha da clínica e se relacionava com o tema da repetição da pulsão e da
possibilidade de mudança psíquica dos pacientes. No meu caso, o das crianças
com inibição, especialmente, na experiência institucional.
A Contribuição de Green e Segal No final de março de 1984, foi realizado o Simpósio de Marselha em que
várias questões foram colocadas, acerca da pulsão de morte. “Seria tal noção
necessária para compreender a natureza conflitiva do jogo pulsional e a idéia de
morte na atividade psíquica? Permitiria ela explicar os limites da ação terapêutica
e daria conta das estruturas psicopatológicas?” (GREEN, p. 95). Em síntese, a
indagação era: qual a utilidade da teoria sobre a pulsão de morte, tendo em vista a
prática clínica? O que manter dela?
O curioso foi que dos pensadores ali presentes, os que mais se
aproximaram foram Hanna Segal e André Green. Ambos reconheciam a
importância da noção de pulsão de morte na clínica, relacionando-a com a noção
de desinvestimento. Em Hanna Segal, há uma fantasia de desinvestimento que
expressa um ataque contra o desejo. Para ela, todo narcisismo é uma expressão
da pulsão de morte, na medida em que é desobjetalizante, o que a aproximou de
Green, que já havia feito referência à noção de narcisismo de morte. Além de
reconhecerem que o desinvestimento das representações era obra do instinto de
morte, havia uma concordância em articular a pulsão de vida com a função
objetalizante e a de morte com a função desobjetalizante.
23 PETOT, Jen-Michel. Melanie Klein I e II. Estudos 96. São Paulo: Perspectiva, 1988. 24 GREEN et al. A pulsão de morte. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Escuta, 1988.
30
Interessante resgatar os pontos que me mobilizaram na época e
determinaram a mudança que foi se operando, aos poucos, no meu modo de
pensar. O primeiro foi o salientado por Green: a compulsão à repetição é uma
propriedade fundamental da pulsão em geral e, em particular, da sexualidade. Em
toda pulsão, há uma tendência repetitiva, como já apontava Freud; assim, a
pulsão, conclui Green é conservadora e, portanto, ligada à compulsão e à
repetição. Esta é ainda mais forte quando ligada à pulsão de morte.
O exemplo apresentado por Green, para ilustrar tal idéia é brilhante e
inquestionável. Ele estabelece uma diferenciação entre o luto estruturante,
salientando o seu caráter de mudança e o luto impossível, sempre infiltrado por
elementos destrutivos, opondo a melancolia ao luto. Hanna Segal acrescenta, na
mesma linha de Green, que enquanto o instinto de vida permite a elaboração do
luto e a simbolização, sendo uma força de adaptação e de mudança, as forças de
morte são estáticas. Se são estáticas, levam a uma paralisia.
Durante um tempo, fez sentido, para mim, a idéia de Isabel Luzuriaga de
que a inibição intelectual seria fruto de um conflito em que a pulsão de morte
levaria a melhor, já que o que observava nas crianças com inibição era uma
impossibilidade de movimento, de brincar e de estabelecer trocas com o mundo
externo.
Não me aprofundarei, aqui, nas apresentações de Segal e Green.
Entretanto, um outro ponto assinalado por Segal é importante. Segundo Freud,
negociamos com a pulsão de morte desviando-a para dirigi-la contra os objetos.
Após ilustrar com o exemplo clínico do impulso de um paciente de querer matá-la,
como único meio de enfrentar a morte dentro dele, Segal afirma que Klein vai mais
longe:
(...) O ponto de vista de Melanie Klein, tal como o
compreendo, é que o desvio da pulsão de morte, contra os
31
objetos, não é apenas uma transformação em
agressividade, mas antes de mais nada uma projeção. Ao
mesmo tempo, a pulsão de morte de dentro se torna
agressividade (o desvio de que fala Freud) dirigida contra o
objeto mau criado pela projeção original. Na situação
analítica, a projeção da pulsão de morte é freqüentemente
muito potente e afeta a contra-transferência. (p. 39-40).
(grifos nossos)
Isso significa que, se em Freud, a pulsão de morte opera de forma sutil,
disfarçada e silenciosa no próprio corpo do indivíduo, em Klein ela é
extremamente turbulenta, atingindo o ambiente, impedindo a discriminação e
lançando o indivíduo num estado confusional.
De qualquer forma, o ponto que interessa para este trabalho relaciona-se
ao aspecto de compulsão à repetição – propriedade fundamental da pulsão em
geral, e, em particular, da sexualidade, sendo mais forte ainda, quando ligada à
pulsão de morte, conforme ressaltado por Green.
A contribuição de Petot Ao resgatar anotações da época do grupo de estudos, verifiquei que as
questões significativas encontram-se no vol. II – mais especificamente, nos
capítulos 11, 12 e 13 da obra de Petot (1988). O primeiro trata da questão da
inveja e da gratidão, o segundo da relação entre a metapsicologia kleiniana e os
processos de mudança e o terceiro da atualidade das últimas concepções
kleinianas.
No capítulo 12, Petot assinala que, para Klein, o objetivo do trabalho
psicanalítico seria facilitar a integração no ego da parte destrutiva, invejosa e
voraz, até então, destacada pela clivagem e projetada no outro. Essa integração
32
efetuar-se-ia na e pela depressão, bem como estaria relacionada com o
desenvolvimento da capacidade de reparação.
O encontro com Petot foi providencial. Ao focalizar a meta psicologia
kleiniana e a questão da possibilidade de mudança terapêutica do paciente, ao
longo de uma psicanálise, ele discute a importância do papel etiológico dos fatores
do meio, nas últimas concepções de Klein. Salienta que as declarações otimistas
rareiam a partir de 1946. Em 1952, em Inveja e Gratidão, ela admite que “a
existência de fatores inatos assinala os limites da terapia psicanalítica”.
Segundo Petot: “Mais preocupada em avançar sua prática do que
fundamentá-la em teoria, ela pôde simultaneamente formular as premissas de um
raciocínio que, levado a sua conclusão, afirmaria a imutabilidade da constituição
psíquica”. (PETOT, 1988, p.174)
Para Klein, a inveja implica a destruição do objeto e é uma expressão
sádico-oral e sádico-anal dos impulsos destrutivos a operar desde o início da vida.
Sabemos que tais impulsos provêm da intensa ansiedade persecutória despertada
pelo nascimento, sendo a sua base, portanto, constitucional. Dessa ansiedade
decorre a relação dupla com a mãe, isto é, com o seio bom e o seio mau. Essa
seria a projeção originária de que fala Segal.
Não bastasse o fato de a relação inicial com o seio ser já naturalmente
difícil, ela poderia, ainda, ser agravada por circunstâncias externas, tais como
parto difícil, falta de oxigênio etc. Nesses casos, a capacidade do bebê de
experimentar fontes de gratificação é prejudicada, pois ele não pode internalizar
suficientemente um objeto primário realmente bom.
Assim, tanto a inveja quanto a pulsão de morte atacam até mesmo a vida e
as fontes de vida. Klein nunca mudou seu pensamento em relação ao que afirmou,
33
especialmente, entre 1929 e 1946: o verdadeiro amor objetal funda-se na culpa e
na necessidade de reparar.
Em 1952, ela reafirma, de forma categórica, o mesmo de 1946: "(...) o ego
está presente e ativo desde o começo da vida, o que deixa claro que o ego não se
forma, que ele dispõe de uma força constitucional, ou seja, inata e repartida de
forma desigual, segundo os indivíduos". (PETOT, 1988, p 163).
E quanto ao peso dos fatores do meio? Ele seria, por princípio, nulo: o
indivíduo teria apenas uma quantidade limitada de agressividade a gastar para
responder às privações ou aos acontecimentos que sinta como desagradáveis.
Ainda segundo Petot, Klein:
tende a sucumbir ao peso de uma verdadeira ideologia
constitucionalista, a qual parece não apreender o caráter
aporético. Após ter admitido que as privações reais podem
modificar um certo equilíbrio pulsional e dar lugar à avidez,
ela limita radicalmente o alcance desta afirmação,
assinalando que a avidez sobrevém tão mais facilmente na
medida em que o componente agressivo inato é mais
poderoso e não hesita em concluir: conseqüentemente a
força das pulsões destrutivas em sua interação com as
pulsões libidinais fornece a base constitucional da
intensidade da avidez. (PETOT, 1988, p.173).
Paín e o modelo pulsional de Klein Ao discutir o texto kleiniano de 1952, Paín (1989) aponta que, se o lugar do
sadismo na obra de Klein permanece o mesmo desde 1933, o mesmo não ocorre
em relação à angústia persecutória que passa a estar mais ligada ao medo de
aniquilamento vinculado ao instinto de morte do que ao medo da Lei de Talião.
34
Paín assinala que, para Klein, o motor do interesse do bebê pelos objetos
novos e pela simbolização procede das pulsões destrutivas. Considera, também,
extremamente difícil sustentar a hipótese de um sadismo e de um narcisismo
primário, a menos que se veja aí a projeção do adulto. É ela quem afirma:
O sadismo é o prazer provocado pelo sofrimento de outrem.
Para ter um prazer sádico seria preciso, não somente, que
esse sofrimento fosse percebido claramente como estando
no outro, mas também que fosse diferente do prazer que o
sádico sente. Sabemos que a criança só tardiamente é capaz
de presumir no outro sentimentos que ela não sente
simultaneamente (...). Além disso, dado que a noção de parte
e de todo como continuidade interdependente é bastante
tardia, seria impossível para o bebê conceber uma idéia de
destruição sem ter, ao mesmo tempo, idéia de fragmento.
Ora, o bebê habita um universo absolutamente fragmentado,
à maneira de um quebra-cabeças disperso e variável, cuja
organização lenta e laboriosa é o resultado da ação sobre as
coisas. Como o despedaçamento, sendo anterior à noção de
objeto, não pode inicialmente ser imaginado como diferença.
A tensão que o adulto sente perante um lactente que grita é
acompanhada de uma urgência para acalmá-lo. O adulto
pode ser conduzido, então, a atribuir ao bebê intenções
agressivas, mas para o pequeno é a única maneira de
mobilizar o meio. O sadismo é instalado no bebê como uma
projeção do adulto que dá significação aos seus gestos e
comportamentos. “Que impaciente! Seja bonzinho! Como tu
és mau! Não chore!” introduzindo-o num universo ético.”25
(PAÍN, 1999, p.146-7)
25 PAÍN, S. A função da ignorância. As estruturas inconscientes do pensamento. vol. 1. A gênese do inconsciente. vol. 2. Foi publicado em 1985, por Ed. Nueva Visión, Buenos Aires; em 1987, pela Ed. Artes
35
Paín assinala que o bebê demonstra mais curiosidade do que temor quando
ocorre a destruição de um objeto que ele manuseia, a não ser quando os pais
reagem violentamente. Ainda segundo Paín: “(...) o bebê é um pesquisador: ele
vai colocar o fantasma à prova inúmeras vezes para tentar conhecer a causa
eficaz da reação materna”.( PAÍN, 1999,p.146).
Penso que o encontro com Sara foi significativo. Ela dava ainda mais
sentido de realidade às contribuições trazidas por Petot sobre Klein, ligadas à
dificuldade de mudança psíquica; e por Green e Segal ligadas à função
objetalizante da pulsão de vida e a desobjetalizante da pulsão de morte. Na
realidade, por meio de Paín pude seguir aprofundando o estudo sobre a
importância do papel do meio ambiente na possibilidade de mudança psíquica das
crianças com inibição, como veremos, ao longo deste trabalho.
Assim, passo agora a focalizar o confronto que pude fazer das
contribuições de Klein e Paín no sentido de compreender o funcionamento mental
de crianças com inibição.
A noção de contra-inteligência de Luzuriaga
Luzuriaga (1972) desenvolve, em La inteligência contra si misma, a noção
de contra-inteligência, para se referir ao processo em que a criança usa o próprio
potencial intelectual para se manter numa atitude passiva, evitando, assim,
contato com conteúdos dolorosos. Segundo ela, esses seriam os efeitos dos
ataques destrutivos” da criança à própria inteligência e aos vínculos com a
realidade interna e externa, seja ao conteúdo, seja àquele que o transmite26.
Médicas, Brasil. Na França, essa obra deu origem a uma outra reescrita por Paín e publicada em um único volume pela Ed. Peter Lang, Berne, em 1989. Desta, houve uma tradução para o português, em 1999. 26 LUZURIAGA, I. La inteligência contra sí misma. Buenos Aires: Psique, Siglo XXI, 1972.
36
Ela não considera que as dificuldades intelectuais das crianças se devam a
distúrbios orgânicos ou a uma inibição de seu desenvolvimento mental. Não
seriam, portanto, consideradas como uma detenção do desenvolvimento, mas sim
fruto de processos inconscientes que mantêm a criança isolada. Às vezes, a
percepção inteligente da realidade objetiva e de seu mundo interior mobiliza na
criança conflitos e sofrimento psíquico.
Além de assinalar que a contra-inteligência luta contra a percepção e a
compreensão do mundo externo e interno devido às vivências que ambas lhe
despertam, Luzuriaga reconhece que os conteúdos vividos como perigosos são
muitos e poderiam ser classificados, seguindo a denominação de Klein, em
ansiedades depressivas e paranóides. Mas, segundo essa estudiosa, como os
matizes tanto da perseguição quanto da culpa e da perda podem ser muitos,
propõe-se a fazer uma apresentação de alguns tipos de ansiedades, classificando-
as muito mais pelo conteúdo encontrado no material clinico, que pela sua
qualidade (persecutória ou depressiva). Entre esses conteúdos aponta a
rivalidade, a solidão e, especialmente, a inveja. É ela quem afirma:
Aprender do outro, significa que ele tem algo valioso, de
forma que não entender pode ajudar tanto a negar este
conteúdo que fere como a desvalorizá-lo já que é valioso,
porém, ininteligível. O tédio diante do saber dos outros é uma
forma de desprezo que constitui uma das melhores armas
contra a inveja. Todas essas fantasias são totalmente
inconscientes para o paciente, que somente vivencia delas
uma ansiedade, cuja origem não consegue compreender,
mesmo que busque explicações racionais. Essa origem só
pode ser desentranhada por meio do trabalho psicanalítico
porque se expressam de forma simbólica que cabe ao
psicanalista decifrar. (LUZURIAGA, 1972, p. 89) [tradução
livre do autor]
37
Para melhor compreensão, sugiro os casos clínicos e a excelente descrição
fenomenológica por ela apresentados, pois não me deterei sobre eles, uma vez
que fugiriam ao objetivo desta estação. A pouca consideração atribuída aos
fatores ambientais, na perspectiva de Luzuriaga, empobrecia a possibilidade de
compreensão e de intervenção clínica, pelo menos, com essas crianças. Não
favorecia, também, a abertura do campo de relações da criança com o mundo de
realidade externa. Além disso, não ajudava a compreendê-la no seu contexto
ambiental mais amplo, suas repetências escolares e suas dificuldades de
relacionamento familiar e escolar. Talvez a experiência como psicanalista com
pacientes com outros tipos de queixas, tenha contribuído também, para que eu me
desse conta de que carregar nas tintas da destrutividade, levava -os a um estado
de isolamento e retração ainda maior. É importante notar que essa concepção não
aposta na saúde.
É possível imaginar o que significou para mim o encontro com a
contribuição de Sara, que se afinava mais com a linha de Pichón, buscando o
sentido do sintoma e considerando o ambiente familiar e escolar. Na minha
experiência, tal contribuição possibilitou, o que não foi pouco, definir a
especificidade do trabalho psicopedagógico, reconhecer a sua inserção no campo
da psicoterapia breve de orientação psicanalítica27 e discriminar que o olhar e a
escuta clínica poderiam ser usados não apenas no consultório, mas também no
contexto institucional.
Além disso, permitiu definir que o objetivo seria o resgate do prazer da
aprendizagem e o foco do trabalho voltado para a observação das relações entre
as dimensões afetiva e cognitiva do pensamento da criança reveladas pela sua
forma de aproximar-se do objeto de conhecimento. Mais do que isso permitiu
encontrar a primeira ponte para aproximar as duas vertentes de atuação
psicanalítica e psicopedagógica.
27 Trato do assunto em O difícil diálogo entre a prática e as teorias. (1995)07-18 In Boletim Formação em Psicanálise, vol. IV, n. 1.
38
Vale lembrar que Paín (1985) não apenas adota o termo cunhado por
Pichón-Rivière em Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem,
como estende seu uso para referir-se à oligotimia social – situação de indivíduos
com aprendizagem mecânica, pobre e muito abaixo das suas possibilidades, que
além de não incomodar o sistema, contribuem para a manutenção da ignorância e,
conseqüentemente, do status quo. Assim, pode-se entender por que na década de
1980, a contribuição de Paín teve tanta importância não apenas no Brasil, mas
igualmente nos, assim chamados, países em desenvolvimento. Não por acaso,
Paín foi consultora da Unesco na área da Educação.
A contribuição de Sara Paín
O não-aprender não é o contrário de aprender e tem uma
função tão integradora quanto o aprender... Respeitar a
singularidade do sujeito fora das categorias certo-errado,
bonito-feio, normal-patológico, verdadeiro-falso, para que ele
possa fazer-se cargo de sua marginalização e aprender a
partir dela, transformando a si e à realidade... Mais
importante do que ensinar a responder é formular
perguntas... A ignorância não é o oposto do conhecimento
mas ela está na sua origem. (PAÍN, 1999, p. 12)
Paín trazia noções tão bombásticas que, de fato, subvertiam a ordem
vigente. E ressalte-se, não apenas na questão do conhecimento, mas, a meu ver,
também, na da psicanálise.
Em Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem, além de
insistir na necessidade de investigar o significado inconsciente que o aprender
tinha adquirido para a criança, oferecia, também, uma classificação dos problemas
de aprendizagem. Desenvolvida à luz das contribuições de Freud em Inibição,
Sintoma e Angústia (1925) afirma que o problema de aprendizagem pode se
39
apresentar de duas formas: como oligotimia ou inibição cognitiva e como sintoma.
Assinala, ainda, que enquanto o termo inibição relaciona-se ao aspecto de
diminuição da função cognitiva28, o termo sintoma refere-se à transformação dessa função, porque as operações da rede cognitiva passam a ter um outro
significado no universo psíquico da criança, ficando aprisionadas nas teias da rede
afetiva.
Desde cedo, ficou evidente para mim, que as provas psicométricas pouco
ajudavam no caso das crianças oligotímicas ou com inibição. Muitas tinham
histórias anteriores de avaliação e desligavam-se, paralisando-se diante delas.
Embora fosse de fundamental importância diferenciar os "pseudos" e os
"verdadeiros" deficientes, avaliando o grau de deterioração da inteligência, como
fazê-lo? E, isso, não apenas para apostar no potencial intelectual da criança, mas,
especialmente, para mobilizar nos pais a crença e a esperança, já que eles,
geralmente, não tinham nenhum projeto para elas.
Na experiência clínica, após ter claro que não se tratava de um problema
escolar, relacionado ao aspecto da transmissão do conhecimento, portanto,
reativo a situações externas, era preciso estabelecer a diferenciação entre o
problema de aprendizagem como inibição ou como sintoma. Nesses casos, o que
está em jogo é o aspecto da recepção e elaboração do conhecimento. Trata-se de
um funcionamento intra-psíquico no qual a dimensão afetiva e a cognitiva não
fazem aquilo que seria a sua função, porque se mesclam, havendo uma quebra
onde se inscreve o problema de aprendizagem.
Retomo o que já afirmava em Pelos Caminhos da Ignorância e do
Conhecimento:
Sara postula um modelo para pensar o funcionamento do
aparelho mental. Para ela, essas duas dimensões devem
28 Em A função da ignorância (1987, 1989), Paín não mais usará o termo inibição cognitiva, nem oligotimia.
40
funcionar no sujeito de forma independente e simultânea
para que uma não aprisione o funcionamento da outra. Mas
como elas se unem? Através da função da ignorância, por
ela definida como “um espaço opaco e vazio” que, ao mesmo
tempo, separa e une essas duas dimensões, de forma que
uma desconhece, ignora a existência da outra, o que permite
que cada uma faça aquilo que é sua função29. Quando um
sujeito aprende bem, isso ocorre porque existe, entre essas
duas dimensões, uma cisão fundamental e constitutiva.
(PARENTE, 2000, p. 57)
Daí a necessidade de compreender o "não-aprender" que, por ter uma
função tão integradora, mantém a criança assujeitada em um lugar por onde o
prazer da aprendizagem não pode circular. O dispositivo clínico para desarmar a
armadilha que a dimensão afetiva fez à cognitiva e, assim, ajudar a criança a
ocupar um outro lugar e a resgatar o prazer da aprendizagem seria a dupla escuta
– escuta simultânea dessas dimensões.
Assim, foi, cada vez mais, fazendo sentido para mim a contribuição de Paín
sobre a questão de como um sujeito se constitui, ao mesmo tempo em que
constrói o conhecimento, e, também, a ênfase colocada na questão da busca de
autonomia e realização, bem como a da importância de uma aprendizagem com
significado para a criança, aspectos geralmente não-considerados pelos
kleinianos.
Concordava com Paín que não se podia focalizar apenas o mundo de
relações de objeto e a fantasia inconsciente do funcionamento mental das
crianças com queixas de problemas de aprendizagem, ainda mais se elas
estavam na época de serem alfabetizadas.
29 Em Subjetividade e objetividade, relações entre desejo e conhecimento, publicado pelo CEVEC (1996), p. 40-1, Sara apresenta sua concepção do funcionamento do aparelho mental e analisa os problemas de aprendizagem usando o modelo do tear.
41
À medida que reconhecia o aspecto de urgência nessa modalidade de
atendimento, via sentido na terapia focalizada nos problemas de aprendizagem, o
que me levou a um aprofundamento na especificidade desse campo e no tipo de
noções (resistência, transferência, contra-transferência, regressão etc.)
necessárias para nele intervir.
Paín defende a validade do trabalho clínico centrado no sintoma:
Diz Freud que o que resta da doença depois da desaparição
(sic) do sintoma é apenas a disposição para formar novos
sintomas; entretanto, quando se trata da aprendizagem e das
atividades cognitivas, o reforço destas deixa o sujeito numa
melhor disposição para elaborar o seu trauma, caso se
submeta a uma psicanálise e para encontrar vias de
satisfação e sublimação na sua vida quotidiana. (Paín, 1985,
p. 77).
E afirma ainda que, para que alguém possa superar seu problema, "é
necessário devolver ao sujeito a dimensão de poder (poder escrever, poder saber,
poder fazer) para que ele possa dar credito às potencialidades de seu ego". (1985,
p. 78).
Ao enfatizar que a aprendizagem é uma função que dá prazer, que pode
ser perdida ou pervertida no triângulo edípico, mantendo o sujeito resistente a
entrar no princípio da realidade e pela preocupação com o fracasso escolar e suas
conseqüências para a criança e a família, recomenda uma atitude mais ativa por
parte do terapeuta no tratamento. Este seria operativo, situacional, devendo
constituir-se numa situação de realização para o sujeito.
Percebe-se, com isso, que Paín enfatiza não a interpretação dos conteúdos
destrutivos da criança, mas sim a compreensão do significado presente nos seus
42
erros sistemáticos, relacionando-os com a sua história de vida, investigando,
assim, o lugar ocupado pela criança e o sentido do sintoma no triângulo edípico.
Além disso, oferece elementos para refletir sobre a dimensão do ambiente familiar
e escolar que tinham se mostrado tão importantes na minha experiência
desenvolvida na instituição.
Na busca de compreender o caráter de repetição presente nas crianças
com quadro de inibição intelectual e compreender a mudança que se operava no
meu pensamento nessa passagem da contribuição de Klein para a de Paín,
debrucei-me sobre o atendimento de Carol, uma menina de quase 9 anos, com
um quadro de inibição.
Algumas Considerações Hoje, com o distanciamento necessário, constato que o que mais me
incomodava naquela época, não era apenas a distância entre a minha prática
clínica institucional e a de consultório, mas, especialmente, a postura que adotava
a partir de uma e outra. Talvez elas refletissem o clima vigente na época. O fato é
que, como psicopedagoga, especialmente na instituição, sentia-me mais livre de
filiações teóricas podendo usar vários referenciais, desde que eles contribuíssem
para o desenvolvimento da prática e ampliassem a compreensão do campo e do
fenômeno em jogo. Já como psicanalista, tentava muito mais me adaptar à técnica
e ser fiel aos princípios e preceitos preconizados pela teoria, no caso, a kleiniana.
Vale lembrar que, refiro-me a um tipo de kleinismo que dominou alguns
lugares da Argentina e, de São Paulo, especialmente, na década de 1970 e 1980,
que é diferente das contribuições atuais ligadas à tradição kleiniana.
Penso que é compreensível que exista o desejo de que a teoria em que
acreditamos se cumpra na prática. Entretanto, se isso se torna mais forte do que a
experiência de relação com o paciente, há o risco de uma submissão à dimensão
conceitual e de tentar encaixar o paciente nessa dimensão. Nesse sentido, a
43
razão pode ficar cativa, tornando-nos míopes como observadores, pois podemos
selecionar alguns dados da realidade clínica para adaptá-los ao referencial teórico
adotado. Isso implica uma forma de usar a teoria não para que ela favoreça a
abertura do campo de observação e, sim, para seu fechamento.
Hoje, penso que à medida que a Função da Ignorância começou a operar
no meu pensamento, fui podendo dar mais atenção às inquietações surgidas a
partir das observações provenientes da prática também no consultório, já que elas
colocavam em xeque não apenas o que a teoria preconizava, mas o meu próprio
processo de aprendizagem.
E, aqui, mais uma vez a referência é Paín. Nota-se que era como se sua
contribuição me autorizasse a ter maior flexibilidade também no consultório, pois a
minha forma de usá-la referendava a minha aposta na criança, abrindo o campo
de observações.
Penso que Klein e Paín foram muito convenientes neste momento, a que
nomeio de Estação 2 – tempo da passagem dos porquês ao como.
44
Estação 3. Compreendendo Carol à luz do confronto entre Klein e Paín
Reconhecer o outro na sua busca. Apostar no seu potencial.
Será isso o que opera, tem efeitos e sustenta um campo de
experiências compartilhadas?
Neste capítulo, focalizo algumas questões surgidas durante o atendimento
de Carol, uma menina de 9 anos, de primeira série, com um quadro de inibição
intelectual e estabeleço um diálogo confrontando as concepções presentes nos
referenciais de Paín e Luzuriaga, apresentadas no capítulo anterior.
A título de esclarecimento
Em relação à terapeuta, esse atendimento marca um caminhar do modelo
intra-psíquico para o intersubjetivo devido à forma pela qual ela foi sendo
“afetada”, por um lado, pelo ritmo e impressão que Carol imprimia na atmosfera do
ambiente e, por outro, pela ressonância de determinadas afirmações de Paín e
Winnicott que iluminavam o que se revelava na experiência clínica. Marca,
também, uma mudança na forma de fazer o diagnóstico, de usar a teoria como
objeto transicional e o início do reconhecimento do que, mais tarde, viria a ser
chamado de fenômeno estético.
Creio que há situações que transformam, constituindo-se em verdadeiros
marcos de um antes e de um depois. Assim foi, para mim, a experiência com
Carol. Nunca mais duvidei de que o que opera e tem efeitos, o que permite manter
a esperança no horizonte, lidar com sentimentos ambivalentes e as agruras da
vida é a relação com alguém que, de fato, nos reconhece na busca, acolhe no
encontro e acompanha no percurso. E, isso, porque faz uma aposta. E toda
aposta exige uma crença. No caso, a crença na possibilidade de desenvolvimento
do ser humano. Creio que Carol foi fazendo uma opção pela vida, à medida que a
terapeuta foi fazendo uma aposta no desenvolvimento do seu potencial. Não sei
se tal movimento teria acontecido, pelo menos, dessa forma, sem a aposta que
45
Sara também fazia no trabalho da terapeuta durante as várias supervisões desse
atendimento, recortado inicialmente para provar a eficácia do referencial de Paín.
Para este trabalho, vale ressaltar a importância do resgate de muitas
anotações escritas antes do exame de qualificação de mestrado “Inibição
intelectual: O paradoxo no sintoma expressando paralisia e busca da criatividade”,
defendida na PUC/SP, em fevereiro de 1996, sob a orientação do Prof. dr. Gilberto
Safra. Essas anotações apresentadas na estação anterior, nesta e na próxima
permitirão dar visibilidade e, ao mesmo tempo, contribuirão para sistematizar as
questões que impulsionavam o meu pensamento na época em que caminhei
também em direção a uma outra forma de construção de conhecimentos no
modelo desconstrutivista.
Embora as indagações surgidas durante o atendimento de Carol
impulsionassem o diálogo com os referenciais teóricos, não fez parte da
dissertação por sugestão da banca. Na ocasião, a opção foi estabelecer um
diálogo entre os atendimentos de outras duas crianças com inibição a partir do
pensamento de Winnicott. Aprofundo aqui, então, a reflexão lá pretendida e ainda
não realizada: acompanhar a mudança que se operava no meu pensamento, à
medida que me distanciava da contribuição de Luzuriaga (kleiniana) e me
aproximava da de Paín e da de Winnicott. O que permitia aproximá-las é que
ambas apostavam – o que não é pouco – na possibilidade de desenvolvimento do
ser humano, dando ênfase à noção de pulsão de vida, reconhecendo a
importância do fator ambiental e maturacional no funcionamento psíquico. Esta
reflexão permitirá também acompanhar o processo histórico de construção dos
dispositivos.
O atendimento de Carol foi paradigmático e permitiu repensar uma série de
questões, especialmente a das relações entre o desenvolvimento psíquico, o
jogar, o brincar, o conhecer e o aprender, ligadas, não apenas ao campo
46
psicopedagógico, mas também ao psicanalítico, aproximando cada vez mais
minhas duas vertentes de atuação e formação clínica.
A compreensão da inibição a partir de Klein e Paín
A inibição intelectual seria mesmo a expressão do predomínio da pulsão de
morte que levaria a criança a fazer ataques invejosos e destrutivos aos vínculos,
levando a uma desconexão seja com o conteúdo, seja com aquele que o
transmite, como defendido por Luzuriaga? Ou a oligotimia seria o lugar ocupado
pelo sujeito "tornando possível a existência de uma estrutura equilibrada na qual
sua própria sobrevivência torna-se possível?" (PAÍN, 1985, p. 69).
Essas eram as duas grandes indagações que me fazia na época. A questão
era: como compreender a permanência da criança numa posição por onde o
prazer da aprendizagem não circula? Diferentemente da leitura de Luzuriaga,
criticada por Paín, não se trataria de interpretar os conteúdos destrutivos da
criança, e sim de compreender o significado presente nos seus erros sistemáticos,
relacionando-os com a sua história de vida, investigando, assim, o lugar ocupado
por ela no triângulo edípico.
Reforço que meu interesse aqui não é discutir a existência ou a validade
dos pressupostos presentes nestas teorias mas de refletir sobre a conveniência de
usá-las para favorecer a abertura do campo de relações da criança com os objetos
da cultura, entre os quais se encontra o assim chamado objeto de conhecimento.
Atendimento Clínico Importante salientar que comecei o atendimento de Carol sem acreditar que
ele pudesse realizar-se devido ao histórico de abandonos de tratamentos
anteriores e à ausência de esperança de cura por parte dos pais – aspectos
geralmente presentes no atendimento de crianças com inibição. Por isso, introduzi
algumas modificações em relação ao modelo de diagnóstico até então adotado,
propondo um período de aproximadamente dois meses para fazer o diagnóstico
47
diferencial entre oligofrenia e oligotimia por meio de uma intervenção e não de
provas psicométricas.
Meu objetivo era também estabelecer a linha de conduta terapêutica e,
especialmente, avaliar o grau de envolvimento e compromisso dos pais, já que eu
parecia ser mais uma a ser posta à prova na longa lista de profissionais a ouvir
que “Carol não tinha jeito mesmo, apesar de todo nosso empenho” (sic mãe).
Intervenção Diagnóstica O meu primeiro contato com Carol se deu por meio de uma sessão de
observação familiar, prática que vinha adotando diante de situações em que havia
uma dinâmica familiar conturbada. Compareceram os pais, a menina e o seu único
irmão de 12 anos. Chamou-me a atenção o quanto ela destoava da família: os
pais e o irmão, além de bonitos, eram bem cuidados, ao contrário dela,
descabelada, mal vestida e usando um tipo de óculos que parecia enfeá-la.
Chamou-me a atenção, também, a sua forma de cumprimentar-me com a
mão esquerda, enquanto segurava uma boneca conhecida como bebê
moranguinho. Ela, de fato, parecia colocar-se no lugar de uma criança “bobinha”,
apresentando-se como aquela boneca.
Num determinado momento dessa sessão, observei que ela estava
prestava mais atenção nos pais do que na brincadeira de pega-varetas que jogava
com o irmão, que se esforçava para ajudá-la. Em determinado momento, ela
interrompeu a conversa que os pais estavam tendo comigo e, ao chamar a mãe,
mostrou que tinha conseguido tirar apenas dois palitos enquanto o irmão tinha
conseguido pegar todos os outros. Isso pareceu provocar uma expressão de
irritação, aliada a um certo ”ar de desprezo”, por parte da mãe, o olhar
compungido do pai e o mal-estar do irmão.
48
Observei que a mãe olhou para mim, buscando uma aliança como se
dissesse: Viu? É assim que ela faz. Não é terrível? Era como se a mãe intuísse
que ela dava uma de boba para fazer o outro de bobo. A questão era: como
compreender a atitude de Carol?30
Sem dúvida, seria possível compreendê-la a partir do pensamento
kleiniano, isto é, como expressão da presença da pulsão de morte, o que levaria a
interpretar o desligamento e desprezo da menina em relação à ajuda que o irmão
queria lhe dar como efeito da sua inveja e da sua incapacidade de abrir-se para o
novo. Por outro lado, era inegável que Carol parecia ocupar o lugar de perdedora.
Ela tinha um “ar” de vitima, mas de certa forma triunfante, parecendo valorizar o
fracasso. Será que aquele era o lugar possível para sobreviver num tipo de
dinâmica familiar pouco favorecedora do seu desenvolvimento, perguntei-me a
partir da minha leitura de Paín?
O foco da minha observação era a dinâmica familiar e o lugar que a menina
ocupava no triângulo edípico (PAÍN) Era possível observar que a atitude de Carol
organizava grande parte da dinâmica daquela família. Era como se ela mantivesse
o controle sobre todos por meio das suas atitudes que perturbavam seus pais e
irmão: enquanto a mãe disfarçava seu desprezo e sua irritação, o pai e o irmão
tinham uma atitude disfarçadamente protetora em relação a ela.
Deixando operar a função da ignorância desloquei o eixo da tradicional
indagação de o porquê a criança não aprende para o como Carol fazia para
permanecer numa posição por onde o prazer da aprendizagem não podia circular,
passando, então, a observar a sua atitude diante do assim chamado objeto de
conhecimento.
Nos primeiros contatos, chamou-me a atenção a sua movimentação lenta,
seu andar arcado, como se carregasse o mundo nas costas. Usando a
30 Os trechos em itálico referem-se às reflexões, aos questionamentos ou lembranças da autora.
49
terminologia dos neurologistas, diria que Carol era hipotônica. Entretanto, o que
mais me marcou, além de sua postura corporal, foi seu olhar observador e
"esperto", geralmente acompanhado de uma atitude entre a "gozação" e a
"expectativa", aliás, semelhante àquela já observada durante o atendimento
familiar. Especialmente no início das sessões, ela ficava sempre de olho em mim.
Mas muito mais do que numa linha de controle, parecia que ela me estudava.
Eu me indagava: O que queria dizer aquele olhar curioso, entre a gozação e
a expectativa, que parecia buscar algo e, às vezes, de forma disfarçada? Haveria
ali uma tentativa de comunicação ou de controle? Embora essa inquietação
persistisse, eu procurava ficar atenta ao que era passível de observação. Note-se
a capacidade da menina em “criar” uma atmosfera envolvente que mobilizava a
minha curiosidade. Hoje me dou conta de que surgia naquela época, o que mais
tarde viria a nomear como Fenômeno Estético, que será desenvolvido,
oportunamente, ao longo deste trabalho, especialmente durante o atendimento de
Eric.
O primeiro dispositivo clínico usado foi ficar atenta para não repetir o
tipo de vínculo transferencial observado na sessão familiar. De olho na contra
transferência, evitei permanecer no lugar ocupado pelos pais e irmão na relação
com a menina. Por outro, mantive-me atenta à atitude de Carol diante do objeto de
conhecimento, observando como ela fazia para evitar estabelecer contato com
ele. Ela tinha uma forma curiosa de não escolher, nem explorar os materiais, bem
como de cortar contato com o mundo externo e se desligar. Sempre que algo a
incomodava, cheirava a borracha (colocando-a entre o nariz e a boca – como no
desenho que tinha feito na primeira entrevista) ou ficava mexendo em algum
objeto, ou ainda encostando alguma parte do próprio corpo na mesa num
movimento rítmico e disfarçado.
Note-se que, se por um lado, ela cortava os receptores à distância (visão e
audição), incrementava os de contato. Nesses momentos, parecia devanear e sua
50
expressão era de quase beatitude. Atitude típica, aliás, de crianças com inibição.
Entretanto, quando ela voltava desse vôo, eu não via atitudes que demonstrassem
as tais ansiedades paranóides ou depressivas, sugeridas por Soifer e Luzuriaga.
Seu ar não era nem mesmo de preocupação. Na verdade, ela parecia
reabastecida e ainda mais disponível e curiosa para me observar. Além do ar de
gozação, passei a observar outras nuances, porque parecia haver agora um ar de
expectativa e curiosidade.
Como compreender as atitudes de esquiva e desconexão de Carol? Estaria
ela lutando contra a percepção e compreensão do mundo externo e interno e
contra as vivências que elas lhe despertavam, como defendido por Luzuriaga?
Será que ela sentia o mundo como perigoso e ameaçador devido aos ataques
feitos ao bom objeto anteriormente? Seria o medo da retaliação o responsável
pela sua atitude de retração e evasão? Seria uma forma de evitar contato com
conteúdos vividos como perigosos ou dolorosos?
Retomando a descrição de Soifer e observando Carol, seria possível dizer
que ela, de fato, parecia apresentar as tais “características autistas e simbióticas,
a persistência de situações orais primitivas, ansiedade paranóide e elaboração
deficiente da problemática edípica” (SOIFER, 1985). Também se poderia dizer que
o mundo parecia ser sentido por ela como perigoso e ameaçador, devido aos
ataques feitos anteriormente ao bom objeto, e que o medo da retaliação
provocaria a atitude de retração e recolhimento como forma de evasão.
Essa leitura seria possível e reforçaria a idéia da existência da pulsão de
morte, mas, como disse, não observava atitudes que reforçassem essa
compreensão. Carol não parecia ansiosa nem com receio da retaliação ou de ter
perdido ou estragado alguma coisa. Falar de ansiedade paranóide e depressiva e
de conteúdos dolorosos não fazia sentido. Pelo contrário! O que eu observava
assemelhava-se muito mais àquele ar de gozação disfarçada, presente na sessão
de observação familiar.
51
Gostaria de assinalar que reconheço a excelente descrição fenomenológica
dos kleinianos, porém as observações provenientes da experiência clínica não
coincidiam com elas. Em relação a Carol, o que me chamava a atenção, é que ela
parecia desempenhar um papel, cumprir uma tarefa. Sempre com aquele olhar
entre a gozação e a expectativa, parecendo estudar as minhas reações. Aos
poucos, foi se soltando mais, mas, mesmo assim, parecia procurar o tempo todo
um indício de qual era o efeito, o impacto de sua atitude sobre mim.
À medida que a Função da Ignorância operava no meu pensamento, mais
curiosa eu ficava, formulando perguntas que abriam ainda mais o campo de
observações e indagações. Mais do que seguir a técnica preconizada por Paín,
desenvolvia uma atitude mais crítica em relação à técnica e mais aberta à
experiência.
Carol criava uma série de jogos que, de fato, me deixavam curiosa. Neles, o
que ficava evidente era sua tendência de criar um "clima" permeado por um
cenário de confusão, segredo e dúvida, que ia se instalando em um "crescendo", e
que despertavam tanto a curiosidade dela, quanto a minha. Eu nunca sabia onde
ela estava e, às vezes, me sentia enredada num jogo de ”gato e rato” identificando
em mim, o mesmo sentimento de confusão, a que os pais tinham feito referência
na entrevista inicial. Como eles, eu também oscilava, entre a atitude de
superproteção e a de impotência. Como eles, eu também ficava em dúvida se ela
estava ou não entendendo a situação.
Será que eu poderia encontrá–la, descobri-la? Eu via acontecer aquilo que
Winnicott conseguiu descrever em um de seus paradoxos: "É um sofisticado jogo
de esconder em que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser
encontrado" (WINNICOTT, 1963-a, p. 169).
Gostaria de contar que, de todos os textos que li de Winnicott, essa frase,
que se encontra no artigo de 1963 – Comunicação e falta de comunicação levando
52
ao estudo de certos opostos – afetou-me sobremaneira e tem me acompanhado
desde então. Foi ela que me abriu a possibilidade de compreender o que hoje é,
para mim, o objetivo de uma terapia: superar a dissociação (no caso de pacientes
com outros tipos de problemática) e a cisão (no caso de pacientes com inibição)
entre as duas dimensões que nos constituem: a do ser, que permite o ponto de
repouso, a constituição do espaço de confiança – espaço potencial e do si
mesmo–, e a do fazer, que permite a inscrição do gesto pessoal no mundo, seja
para acolher o eu (o familiar) seja para repudiar o estranho (o não-eu). A base da
primeira dimensão (a do ser) é a constituição e desenvolvimento do elemento
feminino puro e a da segunda é a do elemento masculino puro, relacionado com a
agressividade e a área do fazer. Aprofundarei esse ponto ao longo deste trabalho.
Vi nela, também, a expressão do desejo da menina de sentir-se autora,
protagonista, sujeito de sua própria história e não mero objeto do desejo do outro.
Na realidade, eu já transitava entre Winnicott e Paín, tentando entender o que
brotava do movimento e na relação a partir de ambos.
Fez sentido o que Paín assinalou durante uma supervisão: quando uma
criança sentiu-se olhada como ilegítima, boba e confusa e "permaneceu" nesse
lugar, pode simbolizar em um objeto de seu uso essa relação. Isso a impede de
conhecê-lo e de transformá-lo em objeto de conhecimento. É a sua forma de
mostrar, atuando e invertendo por identificação a sua dramática inconsciente.
Penso que cada vez se instaurava mais o campo intersubjetivo, porque
muitos movimentos borbulhantes aconteciam e se entrelaçavam, não apenas na
relação com a garota, mas também no diálogo entre as teorias. Do lado das
leituras teóricas, além de confrontar Klein e Paín, tendo por eixo o tema da pulsão
de morte na compreensão da inibição, usava Winnicott, quase que sem perceber.
Como disse na estação anterior, o aprofundamento no pensamento desse autor
começou a ser feito no grupo de psicanalistas que, também como eu,
desencantados com Klein, tinham se debruçado sobre o estudo de Winnicott.
53
De fato, passei a compreender Carol por meio de determinadas frases ou
aspectos do pensamento de Winnicott que se impunham, lançando luz e de
alguma forma referendando o que eu via, permitindo não apenas compreender,
mas também nomear e acompanhar o movimento da menina.
O leitor pode imaginar a situação. Na época, meu objetivo era estabelecer
um diálogo com a teoria de Paín para mostrar a sua eficácia, já que tinha sido
muito interessante fazer o diagnóstico focalizando a relação da menina com o
objeto de conhecimento. Entretanto, à medida que um campo de confiança foi se
instaurando na relação com Carol, algo de Winnicott se impunha diante de
determinados movimentos da garota, iluminando o que eu via. A supervisão com
Paín funcionava como uma segura cama elástica que dava continência a todo
esse movimento. Isso foi cada vez mais flexibilizando o meu pensamento,
permitindo o afastamento de Klein e uma aproximação e um trânsito entre Pain e
Winnicott.
Vale lembrar que Sara é uma filósofa e uma teórica por excelência. Tinha
se proposto e vinha realizando uma tarefa: a de construir uma teoria que
abarcasse as relações entre as dimensões dramática e cognitiva do sujeito que
aprende. Cá entre nós, eu sou uma pessoa da prática clínica e a teoria me
interessa quando é útil e permite realizar meu objetivo, que é compreender e
acompanhar o paciente.
Note-se que com Paín aprendi que o conhecimento pode ser elemento de
trânsito entre dois seres humanos, para que cada um possa realizar seu projeto
existencial no mundo. Não é à toa que digo que quem me apresentou Winnicott foi
Sara. Creio que isso se materializa por sua capacidade de respeitar o outro e
suportar a alteridade, já que na época ela usava o referencial de Lacan.
54
Por isso, desde aquela época, reconheço que "não basta a busca! É
preciso o encontro. Este acontece quando se é reconhecido na busca, acolhido na
própria singularidade e acompanhado no percurso" (PARENTE, 2000).
À medida que a Função da Ignorância operava no meu pensamento, as
indagações impunham-se e ampliavam o campo de observação e eu me
entregava ao movimento. O foco não era mais apenas o das relações entre afeto e
cognição no funcionamento mental de Carol, revelados pelo tipo de vínculo e pela
distância que ela estabelecia com o objeto de conhecimento. Era, também,
acompanhar os movimentos psíquicos da menina na relação que se estabelecia
no campo intersubjetivo, incluindo a sua maneira de se comunicar de forma não-
verbal – trocas de olhares e comunicação silenciosa veiculada, às vezes, pela
presença do “bebê moranguinho”. Ilustro com um episódio que relato a seguir e
que implicou o fechamento de um contrato terapêutico.
O Fechamento do Contrato Terapêutico Na primeira das duas sessões que se seguiram, Carol parecia curiosa. Foi
até o armário e, enquanto escolhia um jogo para 12 anos, disse que o irmão tinha
esse mesmo jogo. Já havia observado que ela escolhia algo para fazer,
independentemente de estar dentro de suas possibilidades, passando a fazê-lo de
forma indiscriminada e desorganizada – atitude bastante comum nas crianças com
inibição.
Como entender essa sua atitude? Seria um ataque à sua percepção e ao
vínculo com o objeto? Seria a negação da diferença entre ela e o irmão, também
fruto do ataque à própria percepção, como diria Luzuriaga? Ou seria fruto da
permanência num lugar por onde o prazer da aprendizagem não podia circular
para salvar a pulsão, como diria, usando Paín? Será que ela se fazia de boba para
me fazer de boba?
55
Vinha observando que assinalar a sua dificuldade e falta de discriminação –
seja numa linha da onipotência seja de ataque – mobilizava na menina uma
expressão de desesperança, levando-a a cortar o contato comigo. Assim, assinalei
e valorizei sua vontade de envolver-se com algo da realidade externa. Claramente
lhe disse que aquele jogo não era adequado para a sua idade, esclarecendo o
porquê e apresentei-lhe algumas atividades mais adequadas às suas
possibilidades cognitivas.
Observei que, ao escolher um jogo de encaixe, apesar do seu interesse e
envolvimento, Carol não conseguia realizá-lo, pela sua pressa em querer usá-lo e,
também, devido à sua dificuldade de pedir e aceitar instruções.
Novamente me indaguei: Como entender aquela sua vontade entusiasmada
que a levava a ter tanta pressa e a ir com tanta “sede ao pote”? Comecei a me
indagar se não haveria uma diferença entre ansiedade e angústia. A primeira
estaria relacionada ao anseio diante da possibilidade de ter uma ação significativa
no mundo e a segunda com situações de frustração, perdas e faltas. Comecei a
me indagar se o que até então parecia fruto da onipotência do seu desejo, não
poderia ser a expressão de um entusiasmo, o nascimento de um interesse e,
principalmente, a esperança diante da possibilidade de se realizar por meio de
uma troca significativa com algo do mundo. Somente depois disso é que se
poderia falar de desejo, falta e diferentes formas de lidar com a frustração.
Após testemunhar essa sua atitude, legitimei sua pressa e entusiasmo, o
que pareceu tranqüilizá-la. À medida que a ajudei a se organizar adaptando a
atividade às suas possibilidades, ela demonstrou um envolvimento genuíno,
montando várias vezes e, com grande satisfação, o jogo de encaixe.
É preciso dizer que, naquela época, entusiasmada com o desempenho de
Carol usei a terminologia de Paín nos registros que fiz. Talvez pudéssemos pensar
que os mecanismos da dimensão afetiva: projeção e identificação estivessem
56
enlaçados e enriquecendo os mecanismos da estrutura cognitiva: assimilação e
acomodação. Talvez, Carol estivesse reconhecendo que, para aprender algo, é
preciso reconhecer que não se sabe e que há alguém que sabe, que pode e quer
ensinar. Até então, é possível que ela acreditasse mesmo que era possível nascer
sabendo. De alguma forma, esse é um tipo de teoria ignorante comum nas
crianças com problemas de aprendizagem e que determina uma certa leitura do
mundo.
Na terminologia de Paín (1989) diríamos que o funcionamento da garota é
projetivo e o mecanismo de assimilação encontra-se inibido. Fui observando
através do atendimento clínico de crianças com inibição cognitiva que elas tinham
poucas experiências concretas no sentido de uma ação, de um fazer propriamente
dito, ligado à realidade. O que significa também que têm poucas oportunidades de
se colocar em situações que envolvam, de fato, os riscos de saber ou não saber,
de poder ou não poder.
Note-se que são essas experiências concretas que possibilitam à criança
entrar em contato com a realidade objetiva e, inclusive, com as resistências que os
objetos da realidade oferecem. Assim, quando carecem dessas experiências, o
prazer da aprendizagem não circula, havendo então o predomínio na utilização
dos mecanismos de projeção e identificação – mecanismos próprios da dimensão
dramática, afetiva, com os quais não há possibilidade de regulação e articulação
com os mecanismos da dimensão cognitiva – assimilação e acomodação. Isso é o
que permite a construção de um universo objetivo e a constituição de um sujeito
que possa reconhecer-se nele.
Retomando a sessão que vinha narrando, observei que o envolvimento de
Carol no jogo de encaixe era tamanho que parecia esquecer-se da minha
presença.
Desde esse período, comecei a pensar na presença da terapeuta em
determinados momentos como testemunha, como um pano de fundo, como o
57
invisível que organiza um campo31. Muito tempo depois viria a reconhecer nisso
um dispositivo clínico, como veremos adiante. Comentamos no final da sessão
como o tempo havia passado depressa e combinamos retomar a atividade, desde
que ela o quisesse. Aproveitei, também, para mostrar-lhe que havia outros jogos
semelhantes àquele usado por ela.
Notemos que naquela sessão havia, agora sim, uma situação de
aprendizagem – uma relação entre Carol e um objeto de conhecimento. Até então,
talvez fosse apenas o desejo da terapeuta de que ocorresse essa situação. Em
verdade, ainda não havia, pois não existia uma relação triangulada entre Carol,
necessária para a circulação da aprendizagem. Foi ali que fui me dando conta da
importância de existir diferenciação entre a criança, o outro e o objeto a ser
conhecido como entidades separadas para que uma situação de aprendizagem
tivesse lugar (PAÍN, 1985).
Talvez hoje possa dizer que, naquele momento, já intuía o que mais tarde
viria a chamar de movimento no jogo tridimensional – Carol podia se “esquecer”
da presença da terapeuta, relacionar-se com o objeto de conhecimento e a
terapeuta podia continuar presente,“em ausência”, como testemunha, sustentando
o campo de experiências.
Na sessão seguinte, fui chamar Carol bastante entusiasmada – quem sabe,
ela se envolveria com atividades semelhantes à da sessão anterior, exercitando,
assim, a circularidade necessária para o desenvolvimento da rede cognitiva
(PAÍN). Entretanto, encontrei-a novamente segurando a tal boneca, com o mesmo
ar de boba e o mesmo olhar entre a "gozação" e a expectativa dos primeiros
encontros.
31 Ver O difícil diálogo entre a prática e as teorias (1995)07-18 In Boletim Formação em Psicanálise, vol. IV n. 1.
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Comecei a me indagar: por que Carol se apresentava com essa atitude,
como se não houvesse o registro da experiência anterior? Isso era algo que me
chamava a atenção no atendimento de outras crianças com esse mesmo tipo de
problemática.
Seria um ataque agora não mais à percepção mas sim à memória, como
diria Luzuriaga? Ou seria a tentativa de permanecer num lugar de gozo, por onde
o prazer da aprendizagem não poderia circular, como diria Sara? Por que depois
de uma experiência de realização, envolvimento e interesse pelo objeto de
conhecimento, ela se apresentava com a tal boneca?
Observei que, naquela situação, apesar da presença da boneca, Carol
parecia atenta, com um certo ar maroto, mas sem a atitude de alheamento das
primeiras sessões – quando cortava os receptores à distância, fazia movimentos
rítmicos e ficava com o olhar ausente. Tentei resgatar o clima, apresentando o
mesmo jogo da sessão anterior. Ela ignorou o meu convite, mas me deu um sinal
de que se lembrava muito bem do que acontecera na sessão anterior, pois, após
se levantar, pegou no armário um outro jogo, também de encaixe, dentre os que
havíamos separado.
Sempre com aquele olhar, entre a "gozação" e a expectativa, ela o abriu e
silenciosamente acenou com a cabeça em direção a ele. Aos poucos, através de
suas expressões e de intensa troca de olhares, compreendi tratar-se de um
convite para que eu a ensinasse a usá-lo. Eu ficava cada vez mais curiosa e
intrigada, inclusive por testemunhar a liberdade que ela demonstrava naquela
sessão de poder escolher, usar a terapeuta, o corpo, o espaço e o tempo. Aos
poucos, ela se envolveu de tal forma com a atividade – passível de ser feita
individualmente – que pareceu se esquecer da minha presença.
Lembrei-me, então, do paradoxo de Winnicott sobre a capacidade da
criança de estar só na presença do outro (mãe). Segundo Winnicott (1958), a
capacidade de estar só depende da experiência de poder estar só na presença de
59
alguém, ou seja, só ocorre dentro e a partir de uma relação de confiança. Passei a
pensar no meu papel como o de alguém que, em momentos como esse, apenas
deveria acompanhá-la, participando do seu processo como testemunha.
No final da sessão, Carol disse que não ia mais trazer o "bebê
moranguinho", que ele só fazia coisa errada, enquanto o abraçava e levava com
ela.
Uma coisa era certa: a hipótese de que Carol permanecia num lugar por
onde o prazer da aprendizagem não podia circular e que dava uma de boba para
me fazer de boba não mais se sustentava. Se assim fosse, ela não teria escolhido
o jogo, nem teria o envolvimento e interesse que demonstrou em relação a ele.
Algumas Considerações Até aqui é possível perceber que o movimento que aconteceu no campo
intersubjetivo, por um lado, levou Carol a sair do lugar por onde o prazer da
aprendizagem não circulava. Por outro, levou a terapeuta a usar um dos
paradoxos de Winnicott e a passar a exercer a função de testemunha,
distanciando-se, assim, da atitude técnica mais diretiva preconizada por Paín.
O curioso é que, na época, era possível, valendo-me também do
pensamento de Paín, compreender o movimento de Carol. Nós duas podíamos
ficar do mesmo lado, como se estivéssemos na mesma margem de um rio,
olhando para um mesmo objeto, surgindo, nessa relação triangular, o interesse e a
curiosidade – situação similar à do bebê que começa a olhar na mesma direção do
olhar da mãe, porque quer dividir e compartilhar com ela o objeto de seu olhar e
interesse. Na época, escrevi: "Em outras palavras, isso equivale a dizer que a
criança deixa de ser objeto de desejo para se constituir em sujeito desejante"
(PARENTE, 2000, p. 81).
Dados provenientes das sessões de acompanhamento familiar reforçavam
a compreensão de que o lugar ocupado, até então, por Carol, relacionava-se à
60
forma de equilíbrio encontrada para sobreviver no triângulo edípico e, nesse
sentido, para salvar a pulsão (PAÍN).
Quando fechei o contrato terapêutico, combinei sessões de
acompanhamento quinzenais com a família, o que não aconteceu, porque sempre
havia algo que dificultava sua vinda. Desde os primeiros contatos, fui constatando
a dificuldade de a mãe aceitar o desenvolvimento da menina e o gradual
afastamento do pai, que, quando vinha às sessões de acompanhamento familiar,
literalmente dormia.
Eu me indagava: Por quê? O que levaria uma mãe a negar a evolução da
própria filha? Não seria essa uma maneira de assinar o atestado do seu próprio
fracasso como mãe? Se pensasse a partir de Klein, de fato, teria que reconhecer
que ela poderia estar atacando a sua percepção, pela dificuldade em reconhecer
que a terapeuta poderia estar fazendo algo de que ela não fora capaz: ajudar a
própria filha. Teria que reconhecer que a pulsão de morte estaria operando à
medida que ela se rendia à própria inveja.
E o pai, que dormia nas sessões a que comparecia e sofria de insônia em
casa? Usando Klein, teria que reconhecer que havia uma negação e um ataque de
tal ordem que ele parecia evitar qualquer vínculo verdadeiro com as questões da
própria filha.
Um outro episódio significativo ocorrido mais tarde, quando um trabalho da
menina foi elogiado na escola, confirmou, mais uma vez, a dificuldade da mãe em
aceitar a evolução da filha, pois ela duvidou de que Carol o tivesse feito. O mesmo
aconteceu quando a garota demonstrou o desejo de ficar bonita, colocar brincos,
mudar seus óculos, que constituiu um dos momentos marcantes de sua mudança
de uma posição de "bebê moranguinho" para a de menina–flor, como veremos na
próxima estação.
61
Ao longo do atendimento, fui confirmando a impressão inicial de que o casal
parecia usar Carol para se manter junto e ocupado e, aparentemente, envolvido
com a filha. Não era à toa que a menina parecia ser a depositária das brigas,
acusações e desencontros dos pais. Pior, eles a usavam para justificar seus
desafetos.
Note-se que os dois dispositivos usados pela analista que operaram e
tiveram efeito foram, num primeiro momento, o corte da repetição do tipo de
vínculo familiar na transferência e, num segundo momento, o caminhar de uma
atitude diretiva para a de testemunha. Isso foi possibilitando o desenvolvimento
dos mecanismos das dimensões afetiva e cognitiva do pensamento de Carol, bem
como a comunicação e expressão da dramática na qual ela estava aprisionada, o
que permitiu a sua saída do lugar por onde o prazer da aprendizagem não
circulava.
Nesse atendimento, compreendi que a inibição era não apenas fruto de um
conflito pulsional, mas também resultado da ausência da presença psíquica (falha
ambiental) de um outro.
62
Estação 4. Compreendendo Carol à luz de Paín e Winnicott
"Nem quero ser estanque como quem constrói estradas e
não anda. Quero no escuro como cego tatear estrelas
distraídas". Zeca Baleiro32.
Neste capítulo, veremos, por um lado, como a relação intersubjetiva que se
estabelecia no campo terapêutico e a forma paradoxal de Carol se relacionar com
os objetos oferecidos nas sessões, levavam a terapeuta, cada vez mais, a usar a
noção de uso de objeto e fenômenos transicionais, provenientes da teoria da
criatividade de Winnicott. Por outro lado, foi se revelando a situação de intenso
sofrimento psíquico em que a menina se encontrava devido à impossibilidade de
poder brincar de forma espontânea e, assim, usar seu potencial, seu corpo, o
tempo, o espaço e os objetos a ela oferecidos.
Atendimento terapêutico propriamente dito No primeiro encontro após as férias, eu estava curiosa. Será que Carol viria
com a sua boneca? Pois bem, além de não trazê-la, a menina tinha outra atitude:
animada, interessada, foi logo escolhendo um dos jogos já conhecidos. Durante
essa e várias outras sessões, ela aceitava e pedia esclarecimentos, respeitava
limites e queria entender as regras, envolvendo-se com jogos que favoreciam o
desenvolvimento da dimensão cognitiva. Mostrava que podia lembrar-se de fatos
acontecidos em outras sessões. O aumento de confiança na relação e o
envolvimento com os objetos oferecidos eram evidentes. Percebia-se assim uma
diferença considerável no tipo de atitude de Carol em relação à terapeuta e aos
objetos, destacadas pelos grifos acima, em oposição ao período anterior.
32 Música: minha casa. CD Líricas – MZA/Universal Music, 2000.
63
Evidentemente, trabalhava numa linha psicopedagógica, buscando o
desenvolvimento do aspecto cognitivo, isto é, das dimensões do corpo e da
imagem. Pela assimilação ocorria a criação de novos esquemas de ação e pela
acomodação acontecia a internalização de imagens e do exercício da lógica. O
objetivo era "devolver à menina a dimensão de seu poder: poder escrever, poder
saber, poder fazer para poder dar crédito às potencialidades de seu ego". (PAÍN,
1985, p. 77) Jogos de se esconder ou esconder objetos, para depois achá–los,
eram também comuns nessa fase, ao lado de outros escolhidos por ela, como
pega-varetas, Ciclovia, Solta bichos, Cara a Cara, jogo-da-velha, forca etc. As
sugestões técnicas de Paín norteavam o projeto terapêutico e permitiam graduar
as propostas de atividades, segundo o desenvolvimento das possibilidades
cognitivas de Carol, que demonstrava grande interesse e envolvimento com elas.
Entretanto, não se tratava de um movimento linear e progressivo. Nos
períodos em que Carol ousava e experimentava mais, ora parecia feliz com suas
conquistas, ora voltava a criar a mesma atmosfera de suspense e segredo, ora
parecia bastante assustada. O brilho do olhar de Carol, os pequenos e sutis
"sinais" que ela expressava, eram o tempo todo um sinalizador para mim,
possibilitando as intervenções. Por exemplo, às vezes, Carol parecia desligada e
depois me dava um sinal de que estava ligada. Outras vezes, ocorria o oposto:
parecia atenta, mas, por algum sinal, deixava-me perceber que tinha estado no
mundo da lua. Gostava quando eu conseguia verbalizar e discriminar a diferença
entre essas situações para ela. Brincando, às vezes, eu lhe dizia: Ah! Querendo
brincar de dar uma de boba, para saber se eu estou atenta, né? Ela sorria feliz.
Note-se que essa intervenção é bem diferente de uma outra que poderia
interpretar que a menina dava uma de boba para fazer alguém de bobo. Na
primeira, assinala-se - o que não é pouco - um campo de experimentação e
investigação por meio de um brincar, o que abre ainda mais a criação do espaço
de jogo. Note- se ainda que a terapeuta está tão implicada no movimento quanto a
criança, o que reafirma a sua participação e interesse genuínos, diminuindo,
64
inclusive, o clima de perseguição. Era gratificante observar como os olhinhos de
Carol brilhavam naqueles momentos em que se sentia compreendida, mostrando-
se, cada vez mais presente, envolvida e interessada.
Logo surgiria um outro tipo de jogo que evidenciava, ainda mais, o aumento
na relação de confiança: a menina me pedia para ficar fora da sala de atendimento
para que eu tentasse achar algum objeto que ela escondera. Hoje, diria que ela
estava lidando com a questão da ausência na presença e vice-versa, interpondo
espaço e tempo entre nós, apropriando-se do espaço físico e da presença da
terapeuta na sua ausência.
Ressalte-se a diferença de uma interpretação à moda de Klein em que se
poderia assinalar o ataque na forma de roubo do espaço da terapeuta.
Na esteira da técnica sugerida por Paín, numa situação ocorrida algum
tempo depois da abertura desse espaço de jogo, interesse e curiosidade de Carol,
apresentei-lhe um jogo semelhante a outros que ela sempre usava e gostava
muito. Usando Paín, o objetivo da minha intervenção era provocar o desequilíbrio,
o que permitiria o surgimento da falta e o caminhar da menina em direção ao
resgate do prazer da aprendizagem.
Quando apresentei o jogo para Carol, ela não só não se envolveu com ele,
como novamente começou a criar o tal cenário de confusão, segredo e dúvida.
Assinalei que talvez ela resistisse a continuar desenvolvendo-se para ficar como o
"bebê moranguinho". Seu olhar desvitalizou-se e pela primeira vez ela saiu da sala
de atendimento dizendo que ia ao banheiro.
Hoje posso nomear o incômodo sentido na época, enquanto a esperava e
indagar-me se a interpretação feita sobre a sua resistência em querer
desenvolver-se não teria a ver com a minha decepção por ela não ter se envolvido
com o jogo que eu havia lhe apresentado. Lembrei-me do movimento das duas
65
sessões antes das férias, descrito no capítulo anterior, em que além de vir com a
boneca ignorou o jogo que eu lhe oferecia, impôs o seu e escolheu um, a partir de
um gesto que poderia ser visto como de oposição e resistência.
Cada vez mais me dava conta de que a sugestão de Paín, no sentido de
cortar a repetição do vínculo familiar na transferência, caracterizava uma atitude
mais diretiva do terapeuta, opondo-se ao que seria o exercício da função de
testemunhar e acompanhar o processo da criança como em Winnicott.
Uma outra observação interessante é que, embora na época não me desse
conta, estava lidando com a idéia de pulsão de morte e de vida, se considerar a
primeira como objetalizante e a segunda como desobjetalizante. Assinalar que,
talvez, ela resistisse a continuar desenvolvendo-se para ficar como o "bebê
moranguinho", enfatizava o não suportar lidar com o conflito e a tentativa de
reduzir o nível de tensão a zero (pulsão de morte). Observações desse e de outros
atendimentos foram mostrando o aspecto de desvitalização do olhar e a
expressão de desesperança das crianças com inibição diante de assinalamentos
como esses.
Na volta da sua ida ao banheiro, Carol propôs que fizéssemos um jogo – o
jogo da múmia. Não só concordei, como pedi que me ensinasse. Ela fecharia ou
tamparia seus olhos para não enxergar e não pensar. Só faria sons cavernosos e
de olhos fechados, tentaria me tocar. Quando isso acontecesse, eu também me
transformaria em múmia. Em outras palavras, “o contato” mumificava.
Temos, aqui, de forma belamente colocada, a metáfora de uma relação: o
olhar de medusa congela e paralisa não apenas as trocas na dimensão da relação
intersubjetiva, humana, mas também a da possibilidade de pensar. O jogo, além
de expressar a forma como Carol se sentia aprisionada em determinado lugar
(PAÍN), também revelava o intenso sofrimento psíquico que a mantinha em estado
de paralisia, sem poder brincar, usar a imaginação, os órgãos dos sentidos, seu
66
corpo e, assim, comunicar-se e estabelecer relações com o mundo de realidade
externa. Sabemos que sem ação e troca com os objetos, não ocorre a atualização
e o desenvolvimento da rede cognitiva.
Com Carol também aprendi que, às vezes, um afastamento, a falta ou
atraso do paciente numa sessão, poderia ser a forma encontrada para sustentar o
campo de experiências compartilhadas, não sendo nem a expressão de um
ataque ao vínculo, nem o medo de uma retaliação (KLEIN). Note-se que, saindo
da sala, Carol pôde manter a presença da terapeuta na sua ausência, mantendo
viva a sua imagem no dentro e no fora do espaço físico. A menina não parecia
mais ser lançada num “buraco negro”, vivência sem tempo nem espaço, onde não
podia brincar, nem sonhar, nem usar seu corpo e órgãos dos sentidos.
No caso, sair da sala constituiu um gesto que pôde abrir o campo de
comunicação significativa, à medida que a terapeuta sustentou a continuidade da
relação. Percebe-se com isso que o gesto da criança ao mesmo tempo afasta e
repudia a terapeuta, que se tornou estranha e invasora. Ao ter liberdade para sair
da sala e encontrar tudo como antes, Carol permitiu a comunicação da situação
através da criação do jogo da múmia. Seu gesto não caía mais no vácuo. Havia
um outro para quem ela podia endereçar uma comunicação. Por meio do jogo, ela
pôde expressar o sofrimento que a impedia de se desenvolver e se realizar como
pessoa.
Quando eu estava como múmia comecei a falar da escuridão, do medo e
da solidão presentes. Penso que fui dando voz à sua vivência. Abria-se ainda mais
o campo da comunicação significativa na experiência compartilhada. O término do
jogo da múmia se deu através de um toque mútuo em que voltávamos a ser
humanas, após o que ela quis brincar de luta, podendo usar vários objetos (corda,
cadeira, almofada), estabelecer algumas regras para determinar a separação de
campos etc. Ela podia usufruir mais livremente do tempo e do espaço que lhe
eram oferecidos, bem como dos movimentos do próprio corpo.
67
Na sessão que se seguiu, Carol entrou animada, comentando que havia
levantado sem fazer barulho, para não acordar o "bebê moranguinho", que de fato
nunca mais compareceu concretamente na sessão.
Em seguida, fez o desenho de um passarinho preso numa gaiola. Do lado
de fora havia uma bomba perigosa na entrada de um caminho. Fez também um
desenho com tinta branca e vermelha, dizendo que era neve pintada com
manchas vermelhas. Muito perigosa! Quem chegasse perto morria. O último
desenho feito, nessa sessão, foi de duas borboletas separadas por um traço.
Vale assinalar que até então Carol, como geralmente acontece com
crianças com a mesma problemática, preferia jogos e objetos com formas
definidas, evitando contato com material sem forma (plastilina, argila, tinta etc.).
Seguiu-se um período de várias sessões em que ela lidou com situações de
separação demonstrando cada vez mais autonomia. Até que em determinada
sessão, fez dois desenhos querendo usar tinta. No primeiro desenhou naves
perigosas que soltavam bombas. No segundo, após dividir a folha no meio, disse
que havia, de um lado, uma cidade escura, onde as pessoas tinham medo e, de
outro, uma cidade clara: era o mundo feliz.
Quando foi lavar os pincéis, enxugou-os na toalha branca, e não na que
deveria ser usada para enxugá-los. Ao observar o seu olhar provocativo,
comentou: “Ah! Como o 'bebê moranguinho', né?" Ela disse rindo: "Ele sempre
gosta de fazer o que não pode".
Veja-se como a dimensão da agressividade começou a entrar em cena com
o aumento da confiança e como ela foi podendo botar “as manguinhas de fora”,
estudando o que acontecia no ambiente externo.
68
Durante muito tempo, indaguei-me sobre o significado daquela boneca.
Penso hoje que, desde o início, ela apresentava por um lado uma dimensão
dissociada de Carol e por outro revelava a busca e esperança de poder ser
reconhecida e, assim, desenvolver-se através de um novo encontro. Indaguei-me
também se a boneca não era usada para repudiar o outro, quando este se portava
como um estranho invasor, pois ela comparecera na sessão em que eu de fato
tinha aumentado as minhas expectativas sobre o seu desempenho e tentado
apressar o seu desenvolvimento cognitivo. Comecei a pensar na boneca como um
objeto subjetivo, já que ela era usada para ganhar tempo, estudar e testar a
fidedignidade do ambiente e, principalmente, para não ter que se submeter ao
desejo do outro.
Na sessão que se seguiu, Carol entrou dizendo que havia deixado o "bebê
moranguinho" de castigo, porque ele estava malcriado e tinha aprendido a cuspir.
Foi até o armário, e pegou um jogo de montar. De forma apressada, começou a
montá-lo sozinha. Rapidamente pegou outro, chamando-me para montar junto.
Novamente não me esperou. Disse: “Pronto. Ganhei!”.
Do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, vemos aí, um
funcionamento do tipo hiper-assimilativo e hipo-acomodativo que caracteriza,
segundo Paín (1985), o problema de aprendizagem como sintoma. Este é o
caminho de evolução no tratamento do quadro de inibição. A função cognitiva se
desenvolve, mas sob a égide da dimensão subjetivante, cuja lei é o desejo. Fui
aprendendo com Carol e outras crianças que é preciso que seja assim, o que foi
me levando, aos poucos, a reconhecer a importância do processo de regressão à
dependência e ao paradigma de mãe suficientemente boa (WINNICOTT, 1945,
1960).
Depois, Carol começou a rabiscar a mesa num movimento ao mesmo
tempo "disfarçado e provocativo", enquanto me observava com o mesmo olhar
entre a "gozação" e a expectativa.
69
Assinalei que ela parecia estar me provocando e que eu sabia que ela sabia
muito bem disso. Nós duas sabíamos. Ela sorriu levemente. Depois, pegou uma
folha de papel, onde desenhou duas borboletas separadas. Ela vinha
desenvolvendo, cada vez mais, a capacidade de discriminar as suas próprias
ações das dos outros.
Hoje diria que a agressividade vai podendo ser usada de forma integrada à
ação para inscrever o gesto e se realizar no mundo, à medida que um processo de
separação, vai acontecendo. Carol, às vezes, ficava assustada quando podia
repudiar ou apossar-se de algo. "A integração traz consigo a expectativa de um
ataque (...).A reunião dos elementos do self associada à constituição de um
mundo exterior produz por algum tempo um estado que poderia ser rotulado de
paranóide"" (WINNICOTT, 1990, p. 141). Através do atendimento de Carol e
outras crianças com inibição observei que isso é tanto mais verdadeiro quanto
mais tardiamente acontece. Note-se que o uso da "boa" agressividade, ou seja,
aquela que não se confunde com destrutividade, permite o desenvolvimento da
capacidade de discriminação, que é a base do processo de aprendizagem formal.
Em todos esses movimentos, é possível reconhecer a idéia apontada por
Winnicott (1975) de que ao longo do processo de desilusão gradativa do bebê, é
preciso a oposição do meio, para que a agressividade entre em cena. À medida,
que surge um lado mais ativo da menina e sua agressividade vai surgindo, ela vai
querendo deixar sua marca no ambiente. Assim acontece a passagem do estágio
de "relação de objeto para a de uso de objetos", o que vai permitindo uma
mudança em termos de princípio de realidade. Isso será aprofundado no
atendimento de Eric, o Homem-Aranha.
Outra tomada de sessões ocorridas mais adiante, mostra como Carol
começou a transitar entre e nos diferentes espaços através do brincar.
70
Em determinada sessão, ela disse que ia me mostrar uma coisa que tinha
aprendido na escola, durante a aula de artes. Misturou algumas tintas num papel,
depois o dobrou, apertando os dois lados. Ao abri-lo, apareceram manchas com
formas. Enquanto colocava o papel para secar disse que era uma cidade cheia de
morcegos e que lá tinha um morcego que vivia sozinho, que podia até morrer de
tanto medo que tinha dos outros que, por sua vez, também, tinham medo dele.
Em seguida, pintou uma folha com tinta preta, dizendo que ia fazer a
escuridão. Enquanto passava o cabo do pincel, fazendo sulcos na tinta, disse que
estava fazendo a cidade ficar mais clara.
Quando foi lavar tudo, pareceu assustada ao ver que tinha sujado a blusa
da escola e disse que a mãe ia ficar brava. Foi até o banheiro, para limpá-la.
Lembro que já havia solicitado à mãe de Carol que a trouxesse com roupas velhas
e adequadas para o tipo de atividade que vínhamos realizando. Não entendia por
que ela a trazia pronta para ir à escola, embora voltasse com a menina para
almoçar em casa, antes de ir para lá.
Ao voltar para a sala de atendimento, Carol quis brincar. Ela seria a mãe.
Eu, a filha de quatro anos que ia ficar vendo TV, enquanto ela (mãe) saía para
comprar brinquedos de montar, de números e palavras, que era o presente que a
filha gostaria de ganhar.
Vemos a mudança e a ampliação na natureza no modelo de relação. Carol
não fala mais por meio de um objeto subjetivo (bebê moranguinho) nem de um
modelo de relação, cuja base é a sujeira e o desencontro e nem faz o papel de
uma mãe brava e retaliadora. Na sua dramatização, ela expressa a possibilidade
de um movimento de busca, encontro e prazer com alguém continente.
71
Na sessão seguinte, continuou querendo brincar de mãe e filha. Mas,
diferentemente das vezes anteriores, quando ela determinava o tipo de filha que
eu deveria dramatizar, disse que eu podia ser uma filha do jeito que eu quisesse.
Começou, então, a representar uma mãe que duvidava o tempo todo e não
largava do pé da filha, o que nos permitiu conversar sobre a sua dificuldade de ter
mais autonomia e fazer amizades.
Veja-se que foi ela quem me autorizou a dramatizar uma filha do jeito que
eu quisesse, porque, até então, ela era a diretora da cena e determinava como e o
quê eu deveria ou não fazer. Mais tarde relacionaria e compreenderia a
necessidade de crianças com inibição que sofreram invasões desde muito cedo de
poderem ter o outro sob seu controle onipotente e usufruírem situações de
continuidade do ser. (WINNICOTT, 1945, 1960).
Mais adiante, Carol dramatizou uma mãe que lia estórias para a filha. Fiquei
impressionada com o envolvimento, interesse e fluidez da menina, durante a
leitura. No início dessa mesma sessão, a mãe havia tentado entrar na sala. Isso,
às vezes, ocorria e eu via – diferentemente de hoje – como uma invasão da mãe.
Nos últimos 10 minutos, quando então a mãe entrou, contou sobre um
episódio que "reforçava a inadequação" da filha. Carol, então, pegou o livro
tentando mostrar-lhe a sua conquista na leitura. Isso não pareceu interessar à
mãe que a apressava para ir embora, alegando estarem atrasadas.
Não quero generalizar, nem estou dizendo que Carol era assim ou assado
por "culpa" da mãe. Mas um fato era inegável: ela carecia da presença de um
"bom" olhar que sustentasse o seu desenvolvimento.
Fazia sentido, para mim, a letra da música de Suely Costa e Abel Silva:
72
Só o que me cega / O que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri.
As sessões alternavam-se: Carol, às vezes, queria trabalhar com jogos de
classificação e de azar, noutras com atividades plásticas e psicodramáticas. Estas
últimas permitiam que a menina expressasse, por um lado, a solidão, tristeza,
medo, confusão, paralisia e sujeira associadas com a escuridão e, por outro, a
alegria, felicidade e beleza associadas com a claridade, luz e movimento. Ela
parecia continuar resgatando vivências anteriores ao início do andar e enxergar
em torno dos dois anos, época em que começou a usar óculos.
Havia uma diferença sutil nas suas diferentes formas de expressão e de
ação, seja ao desenhar, pintar seja ao contar sobre fantasmas bravos que
assustavam e deixavam crianças apavoradas. O mesmo acontecia quando
desenhava cidades e casas que entravam em curtos circuitos que deixavam todos
na escuridão. Entretanto, na relação comigo, já não ficava mais tão assustada e
podíamos conversar sobre sua produção e sobre os sentimentos dos seus
personagens. Em suas dramatizações apareciam cada vez mais mães e
professoras continentes que ajudavam o desenvolvimento da criança.
Naquela época, ela e a mãe passaram a se referir a experiências novas:
Carol podia ficar com o irmão sozinha em casa e aceitar sua ajuda; podia ser
convidada e ir a aniversários. Paralelamente, demonstrava o desejo de querer
ficar bonita: quis furar as orelhas para colocar brincos, mudar seus óculos e cortar
o cabelo.
Todo esse movimento coincidiu com a época de seu aniversário, quando
pediu, e ganhou, uma outra boneca de nome Menina-Flor. Talvez esse momento
simbolizasse, e foi nessa linha que conversamos, a morte da menina Bebê
Moranguinho e o nascimento de uma outra Carol – a Menina-Flor, que podia
confiar em si mesma e nas pessoas, queria crescer e se desenvolver. Transcrevo
73
suas palavras ao referir-se, então, ao "bebê moranguinho": "malcriado, gostava de
cuspir nos outros, fazer coisas erradas. E, também, sujava a calcinha, porque não
sabia se limpar direito".
Na mesma época, ela trouxe também dois ursinhos de sua casa e, usando
um carrinho do consultório, dramatizou um pai e um filho que passavam por
muitas aventuras, sendo bem-sucedidos. Na sessão seguinte, trouxe mais um
ursinho, colocando-o no banco de trás do carrinho. Disse então que era o pai, a
mãe e o filho.
Como nas sessões que se seguiram, brincou usando vários animais, em
situações em que sempre havia um que fazia shows para o casal de pais,
compreendi que talvez ela estivesse dramatizando a situação de exclusão que
continuava a viver na família. Talvez, percebesse a relação de proximidade e o
bom olhar, especialmente do pai para o irmão, tanto que pareciam formar uma
dupla, e como nem o pai, nem a mãe ou o irmão formavam par com ela.
Bem, mas acompanhemos a finalização do atendimento de Carol. Sua mãe
comunicou-me que não iria mais trazer a menina para suas sessões. Isso porque
ela já estava bem na escola e o pai estava com problemas econômicos. Talvez,
tivessem até que mudar para um bairro muito distante. Pela primeira vez, vi Carol
dizer alto e em bom som que se ela saísse dessa escola, não estudaria em
nenhuma outra.
Nas três últimas sessões concedidas pela mãe para a finalização do nosso
trabalho, Carol contou sobre as brigas entre seus pais. Embora ela não fosse mais
o motivo delas, continuava a ser envolvida pois, às vezes, tinha que ceder seu
quarto para o pai e dormir com a mãe. Na época, ela falava muito de medo e
insônia, contando como era a noite na sua casa. Desenhava fantasmas bravos,
que gostavam de assustar crianças.
74
Numa dessas sessões, a menina criou um jogo bastante interessante que,
aliado à sua atitude de se recusar a mudar de escola, levou-me a pensar que
Carol já podia marcar uma posição própria, defendendo-se de invasões externas,
talvez, pela possibilidade conquistada de transitar entre espaços diferentes – o da
casa, o da escola e o da terapia.
O jogo era o seguinte: ela fazia dois esconderijos usando caixinhas de
papelão como tampas. Em um deles, ela esconderia um objeto enquanto eu
permaneceria de olhos fechados e de costas para ela. Em seguida, eu teria que
adivinhar qual esconderijo estava vazio. A minha aposta nunca se realizava, já
que ela colocava sempre um objeto embaixo dos dois esconderijos.
Embora essa questão tenha sido levantada na época do atendimento de
Carol, só muito tempo depois é que comecei a pensar sobre esse complexo e
sofisticado jogo que geralmente surge nas crianças quando se abre o campo
transicional no qual a Função da Ignorância, que permite fazer observações e
indagações, começa a operar.
Na época, Carol, após divertir-se muito vendo que eu nunca acertava,
mostrou-me que havia um objeto debaixo dos dois esconderijos, dizendo que ela
era mesmo uma mentirosa e gostava de enganar os outros. Achei importante
deixar claro que se ela quisesse me enganar, de verdade, não teria me contado.
Só depois é que me daria conta de que ela fazia um exercício da “boa”
agressividade, necessária para a inscrição do gesto no mundo, para se apossar
de um escudo que permitisse se defender de invasões e, ao mesmo tempo,
conquistar sua própria espada para afastar intrusos, marcando e defendendo
posições.
Na última sessão, ela desenhou uma menina punk, dizendo que ela possuía
dois lados: em casa era boazinha e obediente e, tanto na rua, como na escola,
tinha amigos e era diferente. A meu ver, isso confirmava a hipótese da capacidade
75
conquistada de transitar entre e nos espaços diferentes. E mais, marcava a
possibilidade de usar a "boa" agressividade, para discriminá-los e poder cuidar de
si mesma.
Algumas Considerações A propósito: a hipótese inicial levantada na primeira sessão em que Carol
veio com sua família, confirmava-se. Como disse, os pais e o irmão eram bonitos
e bem cuidados e ela feia, descabelada, com a tal boneca na mão e os óculos que
pareciam enfeá-la ainda mais.
A partir deste atendimento e do de outras crianças com inibição, fui
compreendendo como, muitas vezes, os pais apresentam o filho de uma forma em
que ele destoa da família, o que revela já a sua situação de exclusão. Isso os
lança numa situação de isolamento psíquico. Adianto que a percepção desse
destoar se dá por uma experiência de impacto estético, ou seja, pela ressonância
que a composição física e psíquica da criança inserida na família, naquele
momento, provoca no terapeuta.
Aproveito para salientar que, ao trazer várias avaliações com diagnósticos
graves e prognósticos desfavoráveis (deficiência mental, psicose, comportamentos
fóbicos e autistas etc.), os pais geralmente assinalam a gravidade e a
impossibilidade de uma mudança dessa situação. Além de tratar a criança como
uma coisa, um objeto, a situação de impotência é mantida e embora os pais
pareçam procurar ajuda, na verdade, muitas vezes, marcam a impossibilidade da
sua concretização, o que acaba mantendo o precário equilíbrio conseguido por
todos, até então.
Por isso, a meu ver, uma das funções do terapeuta que trabalha com essas
crianças é a de re-apresentá-las aos pais. Fez sentido, para mim, a idéia de Paín,
durante uma supervisão, de que elas sentem-se ilegítimas no desejo dos pais,
situação que as leva a ocupar um lugar marcado, como vimos no atendimento de
76
Carol. E, paradoxalmente, para sobreviver, ficam aprisionadas nesse lugar a elas
destinado. Aos poucos, fui me dando conta da participação do falso-self
(WINNICOTT, 1945, 1960) no funcionamento psíquico de crianças com inibição33,
tema que será aprofundado na estação 5.
Note-se que a passagem de Paín para Winnicott não constituiu uma ruptura
tão brusca e marcada como a anterior de Luzuriaga (Klein) para Paín. Em
determinados momentos do atendimento de Carol, pude usar a noção de objetos e
fenômenos transicionais de Winnicott para flexibilizar determinadas noções de
Paín, especialmente a de Função da Ignorância.
Mais do que uma ruptura, houve uma ampliação do campo, já que a
inibição seria compreendida não apenas como fruto de conflitos pulsionais, mas
também de falhas do ambiente no atendimento às necessidades primitivas da
criança. Com Carol, fui me dando conta de que a Função da Ignorância operava e
permitia o desenvolvimento da rede cognitiva e o seu casamento com a rede
afetiva, à medida que o campo transicional se abria para ela e para mim. Assim,
fui podendo operacionalizar a contribuição de Paín através de Winnicott. Descobri
que era no movimento paradoxal e ambíguo que caracteriza o campo onde
acontece o brincar, que a situação de aprendizagem significativa acontecia. Aliás,
eu mesma podia usufruir disso durante as supervisões com Paín. Reconheço que
só se pode fazer pelo outro o que podemos viver na relação com alguém. Usufruir
isso é condição para exercer determinadas funções, já que elas são introjetadas a
partir do movimento presente no campo de experiências compartilhadas numa
relação de confiança. É isso que permite transitar no jogo de um e de três.
Aproximar-se, distanciar-se na medida justa e no tempo certo, dão condições para
que um jogo espontâneo tenha lugar, favorecendo a abertura do campo do
conhecer e aprender.
33 Aprofundo essa noção também nos capítulos 3 e 4, respectivamente, o atendimento de João - o Porco-Espinho e de Cacá - a Cobra-Naja em Pelos caminhos da ilusão e do conhecimento, 2003.
77
A partir de Winnicott foi possível compreender que há diferentes graus de
inibição intelectual e que esta ocorre como resultado da falha ambiental, ou seja,
devido à ausência da presença psíquica do outro ao longo do seu processo
maturacional e não apenas como fruto de conflitos pulsionais, seja pelo
predomínio da pulsão de morte (KLEIN), seja pelo da pulsão de vida (PAÍN).
Quando mais cedo o meio ambiente falhar no atendimento das primeiras
necessidades do bebê, mais cedo poderá ocorrer uma situação de não
desenvolvimento do potencial intelectual, a qual poderá ir desde uma situação de
quase paralisia até uma outra em que paira a ameaça de um colapso da
inteligência.
O fato de a defesa intelectual não se constituir ou falhar, indica que a
criança não pôde desfrutar de experiências constitutivas que permitiriam o
surgimento da memória (criada a partir das experiências na mutualidade aliada ao
uso da capacidade imaginativa). Daí a necessidade de favorecer um processo de
regressão a esse estágio de dependência, buscando colocar em marcha as
potencialidades "congeladas" do seu vir-a-ser.
A teoria sobre a criatividade de Winnicott ancorada na noção de uso de
objeto e fenômenos transicionais ampliou o meu foco de observação e
intervenção, permitindo encontrar respostas e sentido para algumas noções de
Paín, entre elas a da Função da Ignorância. Pude também aproximar ainda mais
as duas vertentes de atuação clínica como psicopedagoga e psicanalista e
estabelecer relações entre as contribuições de ambos os autores, tendo no
horizonte a questão do desenvolvimento do brincar, pensar, conhecer e aprender.
O foco também se ampliou, já que não era mais possível pensar a clínica da
aprendizagem, sem considerar a clínica do desenvolvimento psíquico.
Vale ressaltar a diferença da contribuição de Winnicott e a de Paín, que
focaliza as relações do sujeito com o objeto de conhecimento e ancora-se numa
78
compreensão intrapsíquica segundo um modelo pulsional e opera com noções de
desejo, falta e frustração. Pressupõe a separação entre sujeito e objeto desde o
início da vida.
Na sua perspectiva, o objetivo da intervenção seria resgatar o prazer da
aprendizagem devido à possibilidade de a criança encontrar um outro lugar,
tornar-se sujeito, protagonista e não somente objeto de desejo do outro. Sugere
uma atitude mais ativa por parte do terapeuta.
Já Winnicott (1945), como vimos, supõe um estado inicial de não-
diferenciação entre eu e não-eu, ou entre sujeito e objeto, sustentado pela
adaptação ativa da mãe que, basicamente, respeita o tempo de tolerância do
bebê, adaptando-se e suprindo as suas necessidades.
À medida que fui compreendendo que Carol adotava a máscara de boba,
especialmente em situações de fracasso, permitiu-me, também, aos poucos,
perceber que se tratava de uma defesa. Penso que foi aqui que comecei a fazer
uso do conceito de falso-self de Winnicott, reconhecendo a sua participação nos
casos de pacientes que apresentam sofrimento psíquico ligado às queixas de
problemas de aprendizagem. Fui compreendendo que, num ambiente inóspito, era
melhor ocupar esse lugar do que não ter lugar nenhum no mundo.
Os versos de Fernando Pessoa passaram a fazer cada vez mais sentido
para mim:
O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente /
Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.
Conforme fui utilizando as contribuições de Winnicott para acompanhar os
movimentos psíquicos de Carol e mergulhar com ela num campo de experiências
intersubjetivas, uma outra compreensão tornou-se possível.
79
Fui fazendo outro tipo de intervenção, o que levou a menina a sair do lugar
ocupado até então. Isso foi levando a uma ampliação no campo de observação, já
que fui ficando atenta não só à relação intrapsíquica entre as dimensões
dramática e cognitiva do funcionamento mental de Carol, mas especialmente ao
contato humano que se criava entre nós no campo intersubjetivo.
A experiência com Carol abriu a possibilidade de que eu pudesse, mais
tarde, nomear comunicações dessa natureza, assinalando para as crianças com
severa inibição que eu podia compreender que elas sorriam e falavam com os
olhos, ouviam com a nuca etc. Isso foi me levando a reconhecer a importância da
função de testemunha do terapeuta - papel de espelho, participação do fenômeno
estético – WINNICOTT (1963a, 1967 a,1971a, 1971b, 1975) que, ao lado da
função de discriminação do analista, possibilita o início do longo processo de
constituição da ilusão de contato. E, posteriormente, de separação e constituição
das fronteiras entre o eu e o não-eu.
Poder inscrever o gesto aceitando o familiar e/ou repudiando o não-familiar
(invasão) além de inaugurar a possibilidade de estabelecer as fronteiras entre eu e
não-eu, permite o sentimento de autoria, condição para o desenvolvimento do
processo de apropriação criativa de conhecimentos.
Hoje, penso que muitas das atitudes de Carol que, na época eu não podia,
ainda, nomear e que me intrigavam, favoreceram a abertura do espaço de jogo, de
uma área de experiências na mutualidade, sustentando a criação da ilusão e de
um brincar compartilhado, organizado pelo movimento paradoxal que caracteriza o
campo transicional.
80
II. BALDEAÇÃO
Repensando o objeto e contextualizando novas questões
Nos capítulos anteriores, na busca de compreender o funcionamento
psíquico das crianças com inibição, focalizei determinados momentos do
atendimento de Carol, estabelecendo um diálogo com as concepções presentes
nas abordagens de Klein, Paín e Winnicott. Na Estação 3, confrontei a concepção
de Luzuriaga desenvolvida na perspectiva Klein-Bion e a de Paín, afastando-me
da concepção da primeira que opera a partir da defesa do predomínio da pulsão
de morte no funcionamento mental. Na Estação 4, estabeleci uma aproximação
entre Paín e Winnicott, autores que rompem com a crença na pulsão de morte e
reconhecem a importância de considerar dados do desenvolvimento e do
ambiente da criança no diagnóstico e no atendimento.
Assim, foi possível operacionalizar e flexibilizar a noção de Paín sobre a
Função da Ignorância por meio da teoria da criatividade de Winnicott ancorada na
noção de objetos e fenômenos transicionais. Foi possível, também, reconhecer a
partir do atendimento de Carol, que a inibição seria fruto não apenas de um
conflito pulsional (PAÍN), mas também resultado de uma falha do ambiente em
atender as primeiras necessidades da criança (WINNICOTT).
No caso de Carol, observei que seus pais não tinham fantasia de cura, seu
discurso era organizado pela dúvida em relação à existência do potencial
intelectual da menina e acompanhado de uma alta carga de intensidade
dramática. Observei, também, troca mútua de acusações entre eles. Além disso,
as primeiras relações entre mãe e criança foram marcadas por problemas que
começaram muito cedo, nos dois primeiros anos de vida da menina. Embora não
lesivos, esses problemas foram supervalorizados ou negados pelos pais, o que
81
provocou graves desencontros na relação mãe-bebê, entre o casal e, também, na
dinâmica familiar.
Sabemos que há crianças que nascem com problemas semelhantes, mas
esse desencontro entre pais e filhos não acontece, assim como há situações em
que mesmo sem esse tipo de problemas, a criança pode ser olhada como não
legítima, como veremos no atendimento de Eric. Paín e Winnicott reconhecem a
importância do olhar da mãe na história de desenvolvimento da criança.
Quando o desencontro acima mencionado acontece, segundo Paín, o que
está em jogo é a questão da legitimidade da criança no desejo dos pais, e não o
fato de ela ter, ou não, problemas mais ou menos lesivos. O fato de um bebê ser
legitimado no desejo dos pais depende da capacidade do casal poder lidar com as
características do bebê, aceitando-as ou não. A aceitação permite a resignação e
a ressignificação frente a distância entre o bebê desejado e o encontrado. Dito de
outra forma, a resignação depende da capacidade de os pais poderem lidar com a
sua própria frustração34. Para exercer a função de espelho, é preciso que a mãe
se relacione com um bebê sem a distorção que a lente do desejo impõe. Quando
não há ressignificação, a mãe se relaciona com um filho imaginário. Assim, num
primeiro momento, durante o atendimento de Carol estabeleci uma aproximação
entre Paín e Winnicott em relação ao reconhecimento da importância do olhar da
mãe na história de vida da criança.
Uma indagação foi fundamental e apresentada na passagem de Klein para Paín: a inibição intelectual seria fruto de problemas de detenção no
desenvolvimento ou de conflitos intrapsíquicos?
34 Nesse sentido, o leitor poderá ler Esquema Corporal e Imagem do Corpo. In DOLTO, Françoise. A Imagem Inconsciente do Corpo. Trad. Noemi Moritz Kon e Marise Levy. São Paulo: Perspectiva, 1992.
82
Retomemos Luzuriaga. Ela não considera a inibição intelectual como uma
parada ou uma inibição do desenvolvimento e, sim, como fruto de processos
inconscientes que mantêm a criança isolada, evitando, assim, entrar em contato
com a realidade interna e a objetiva, o que provoca situações de conflito e
sofrimento. Além de assinalar que a contra-inteligência luta contra a percepção e a
compreensão do mundo objetivo e do interno, reconhece que os conteúdos vividos
como perigosos são muitos e os classifica, a partir de sua relação com a
rivalidade, a solidão e, especialmente, a inveja. O pensamento desenvolvido na
tradição de Klein está ancorado na noção de destrutividade, medo e culpa,
defende a existência de um ego desde o início da vida, e opera num modelo que
pressupõe a separação entre sujeito e objeto.
Retomemos Paín. Ela opõe-se à tradição kleiniana, criticando muitos
aspectos presentes nesse referencial como as noções de narcisismo e sadismo
primário, pulsão de morte etc., bem como a pouca importância dada aos fatores
ambientais – familiar, escolar e social. Ao assinalar que o não-aprender não era
apenas o contrário de aprender e tinha uma função tão positiva quanto o aprender,
Paín insiste na necessidade de entender o porquê e o para quê do problema de
aprendizagem, propondo considerar também os fatores ambientais no processo
diagnóstico das crianças.
Na compreensão kleiniana, a inibição seria resultado de conflitos pulsionais,
devido ao predomínio da pulsão de morte no funcionamento mental (LUZURIAGA,
1972), o que justificava a pouca consideração dada aos fatores ambientais.
Diferentemente, Paín, na tradição freudiana, entendia a inibição como fruto de um
conflito entre a pulsão de vida e as exigências da cultura, o que implicava uma
outra compreensão e intervenção diferente da de Klein.
A partir da experiência clinica, constatei a não conveniência de usar o
cenário kleiniano no atendimento de Carol, o que já vinha observando, também,
83
em outros atendimentos de crianças com inibição e com outros tipos de
problemáticas. Isso porque o tipo de compreensão e de interpretações apontando
para os aspectos destrutivos da criança geralmente as lançava, ainda mais, num
estado confusional e numa situação de isolamento psíquico.
Retomemos alguns aspectos do atendimento de Carol. Num primeiro
momento, segui a sugestão de Paín no sentido de cortar a repetição do tipo de
vínculo familiar na transferência e adotei uma atitude mais diretiva. À medida que
um campo de confiança se abriu, Carol começou a inscrever um gesto pessoal de
oposição à atitude diretiva da terapeuta que foi se colocando mais no papel de
testemunha, acompanhando os movimentos da menina. Com a abertura do
campo de comunicação significativa, ela foi criando jogos por meio dos quais
estudava os efeitos de suas ações no ambiente, especialmente, na terapeuta. Nos
jogos e cenários criados por ela, mais do que mostrar, atuava seu drama pessoal,
fazendo a terapeuta de co-personagem deles. Num desses jogos, o da múmia,
ficou evidente a situação de paralisia e sofrimento psíquico em que a criança se
encontrava pela ausência da presença real de um outro ser humano que a olhasse
e com quem pudesse estabelecer uma relação de troca e comunicação
significativa, tema que será aprofundado na Estação 7.
Assim, fui reconhecendo que o vínculo de confiança e troca com Carol foi
acontecendo à medida que ocorria um encontro por meio do olhar e da
comunicação não-verbal da menina. Ser testemunha dos movimentos favorecia a
criação do espaço de comunicação significativa e permitia que a função da
ignorância operasse no pensamento da terapeuta. Poder ser vista e reconhecida
como autora dos jogos que criava sem ser mal interpretada por pais, escola ou
terapeutas, ser olhada e encontrada num lugar diferente, do que até então estava
acostumada, poder jogar com os símbolos criados até aquele momento, permitiu
que Carol pudesse tomar consciência da sua possibilidade de jogar e ser autora.
Aos poucos, ela foi se sentindo incluída na relação e dela participante. Digamos
84
que a minha atitude foi norteada, por um lado, pela noção de função da ignorância
e, por outro, pelo que está belamente colocado na frase "É um sofisticado jogo de
esconder em que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser
encontrado”. (WINNICOTT, 1963a, p.169).
Gostaria de usar o cenário bíblico, para refletir sobre a situação de exclusão
que observei na dinâmica da família de Carol e de outras crianças com inibição
que acompanhei35. Poderíamos dizer que Carol e crianças com essa
sintomatologia, geralmente, encontram-se identificadas no lugar de Caím.
Retomando o mito, vale lembrar que Javé teve bons olhos para os presentes de
Abel, o que provocou a inveja e a hostilidade de Caim, que não pôde dominá-las.
Depois de matar Abel, Caim foi amaldiçoado: expulso do solo fértil, andaria errante
e perdido pelo mundo, cultivaria o solo e este não lhe daria nada. Após admitir sua
culpa e tormento, diante de Javé, expressou o medo de ser perseguido e morto.
Javé, então, colocou-lhe um sinal para que, mesmo reconhecido, não fosse morto
por quem o encontrasse.
A partir do atendimento de Carol e de outras crianças com inibição, fui
compreendendo como, muitas vezes, os pais apresentam o filho de uma forma em
que ele destoa da família – o sinal de Caim – que já revela a sua situação de
exclusão. Isso geralmente o lança numa situação de isolamento psíquico. No
primeiro encontro com Carol, notei que os pais e o irmão eram bonitos e bem
cuidados e ela feia, descabelada, com a tal boneca na mão e os óculos que
pareciam enfeá-la ainda mais. A hipótese inicial levantada na primeira sessão,
pela terapeuta, de que Carol era a depositária das brigas e desencontros
familiares, bem como a de que encarnava o aspecto negativo, negado e
dissociado da família, confirmou-se. A percepção desse destoar deu-se por uma
experiência de impacto estético, ou seja, pela ressonância que a composição
35 Ver João - o Porco-Espinho e Cacá - a Cobra-Naja. In PARENTE, Sonia. Pelos Caminhos da Ilusão e do Conhecimento.
85
física e psíquica da criança inserida na família, naquele momento, provocou na
terapeuta.
Hoje diria que por meio da boneca e da máscara de boba, a menina podia
manter um tênue contato com o mundo externo, estudar a reação do ambiente,
mapeá-lo e, assim, fugir dos perigos. O problema é que isso a afastava de um
contato verdadeiro com ela mesma e com o outro, o que foi me levando a
reconhecer a participação do falso self no funcionamento das crianças com
inibição intelectual, como vimos na Estação 4. Além disso, por meio da boneca,
Carol conseguia provocar efeitos e afetar, não apenas, o ambiente familiar e
escolar, mas também a terapeuta, o que foi me levando a reconhecer o que mais
tarde viria a nomear como fenômeno estético, tema que será aprofundado na
Estação 5, por meio do atendimento de Eric.
A leitura sobre a história de desenvolvimento de Carol à luz de Winnicottt
levou-me a compreender que os momentos iniciais de desencontro surgidos entre
os pais e a menina desde as primeiras situações de amamentação, no episódio de
convulsão até as dificuldades visuais associadas ao pequeno atraso no
desenvolvimento psicomotor, embora não lesivos, implicaram em paradas no seu
desenvolvimento, evidenciando a falta de condições ambientais favorecedoras de
um processo de aprendizagem.
A aproximação entre Paín e Winnicott, permitiu operacionalizar e flexibilizar
o conceito de Paín sobre Função da Ignorância. Ou melhor, à medida que se abriu
o campo dos fenômenos transicionais, a Função da Ignorância começou a operar
no pensamento da terapeuta, sendo possível, num primeiro momento, reconhecer,
que a inibição seria fruto não apenas de um conflito pulsional (PAÍN), mas também
resultado de uma falha do ambiente em atender as primeiras necessidades da
criança (WINNICOTT).
86
Havia outros pontos importantes relacionados à clínica da inibição que
permitiam aproximar Paín e Winnicott e marcavam o distanciamento em relação a
Klein. Nem um, nem outro usam a interpretação como Klein. Seria mais adequado
usar a palavra “intervenções”. Uma outra diferença marcante é que tanto Paín
como Winnicott consideram a etapa de diagnóstico de fundamental importância, o
que não ocorre com os Kleinianos.
Entretanto, apesar dessas aproximações entre Paín e Winnicott, (ambos
rompem com a pulsão de morte, reconhecem a participação do ambiente etc.)
havia diferenças importantes. Vimos na Estação 4 que o pensamento de Paín em
relação ao processo de constituição do sujeito e da reconstrução de
conhecimentos ancora-se na noção de desejo que é investida no objeto e
pressupõe a separação entre este sujeito e o objeto. Já Winnicott (1945),
reconhece a existência de um estado inicial de indiferenciação entre mãe e bebê,
sustentado pela adaptação ativa da mãe que basicamente respeita o tempo de
tolerância, alimenta sua onipotência e supre as necessidades do bebê. Nesse
estado, ainda, não se poderia falar de desejo.
Uma outra diferença marcante é que, para Paín, o prazer da aprendizagem
poderia ser perdido ou pervertido no triângulo edípico, enquanto para Winnicott a
aprendizagem seria algo a ser conquistado na relação com a mãe suficientemente
boa a partir do respeito às determinadas condições maturacionais e ambientais ao
longo do desenvolvimento.
No início do atendimento de Carol, ficou evidente que ela não estabelecia
relação com o objeto a ser conhecido, ou melhor, que não havia relação de
triangulação, que caracterizaria o campo da aprendizagem. Carol ainda não havia
se constituído em sujeito desejante e não se relacionava com o objeto de
conhecimento. Portanto, o quadro de inibição, não poderia ser incluído no campo
psicopedagógico.
87
Buscando aprofundar as diferenças acima mencionadas, recortei o
atendimento de Eric, um garoto, que segundo a escola, parecia viver isolado numa
bolha. Ele veio encaminhado por queixas de problemas de aprendizagem
apresentando um quadro de severa inibição intelectual. Esse atendimento permitiu
aproximar, ainda mais, as vertentes como psicanalista, cujo foco era voltado para
indagações sobre o desenvolvimento e/ou funcionamento psíquico das crianças
com inibição intelectual, e como psicopedagoga, voltada para a questão da
aprendizagem, entendida como processo de autoria de conhecimentos.
Várias indagações se me impunham: quais conceitos de Paín e Winnicott
seriam usados na construção dos dispositivos clínicos que permitiriam a abertura
do campo de relações entre Eric e o mundo de realidade externa? Será que a
aproximação entre Paín e Winnicott teria se constituído num momento de
passagem ou as contribuições dos dois autores estariam presentes nos
dispositivos clínicos usados atualmente?
Como disse na introdução, havia um incômodo por usar dois referenciais
com pressupostos incompatíveis do ponto de vista epistemológico. Mas a minha
indagação era: seria possível articulá-los na prática? Em caso afirmativo, será que
essas duas abordagens, se usadas durante um mesmo atendimento,
aconteceriam em tempos diferentes, concomitantemente, ou mesmo, em dois
tempos subseqüentes?
Havia, ainda, mais indagações, agora em relação às questões técnicas:
como pensar a dupla escuta proposta por Paín que opera num modelo
intrapsíquico e pulsional à luz do modelo intersubjetivo de Winnicott? Como
conciliar a atitude mais diretiva sugerida por Paín no sentido de focalizar as
relações da criança com o conhecimento e fazer o corte da repetição do tipo de
vínculo familiar na transferência e, ao mesmo tempo, acompanhar seus
movimentos não-verbais exercendo a função de testemunha até que um sentido
se constituísse?
88
Como compreender o que a criança buscava comunicar por meio da
repetição? Com Carol e outras crianças, eu havia aprendido que desrespeitar um
movimento que não partisse delas, adotando uma atitude mais ativa e diretiva,
provocava uma ruptura na relação intersubjetiva, incrementando a situação de
resistência e paralisia.
E mais! A contribuição de Winnicott apontaria para uma ruptura ou para
uma ampliação no campo de observações e intervenções clínicas? Enfim, como
pensar a clínica do desenvolvimento e da aprendizagem à luz de Paín e
Winnicott?
Agora, posso retomar a viagem de volta com Winnicott, Paín e Eric.
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III. VIAGEM DE VOLTA: COMUNICAÇÃO SIGNIFICATIVA E JOGO TRIDIMENSINONAL NA CLÍNICA DA INIBIÇÃO INTELECTUAL Estação 5. Compreendendo Eric à luz do fenômeno estético
(...) O encontro com o objeto da cultura que presentifica o
estilo de ser de um determinado indivíduo é também
estabelecido pelo reconhecimento de si no objeto assinalado
pela experiência estética. Safra, 199936
Nesta estação, retomo o caminho trilhado após a defesa da dissertação de
mestrado37 e estabeleço um diálogo entre o atendimento de Eric e determinadas
noções provenientes do referencial de Winnicott que permitiram compreender a
participação do fenômeno estético como possibilidade de abertura do espaço de
comunicação significativa.
Diagnosticando Eric e sua família No primeiro contato com Eric, encontrei um garoto desvitalizado, triste e
desesperançado, que destoava da família, como Carol e tantas outras crianças
com inibição. Na entrevista inicial, os pais haviam contado que Eric tinha
quase sete anos, freqüentava a pré-escola e apresentava dificuldades de
adaptação escolar, comunicação e relacionamento. Segundo eles, em casa só
fazia o que queria, não aceitava, nem seguia "voz de comando", resistia ao
contato e preferia ficar sozinho. Não era competitivo, mas não gostava de
perder. Era desleixado e cuidava pouco de sua higiene corporal.
1 Safra, 1999, p. 143-4. 37Inibição intelectual: o paradoxo no sintoma expressando paralisia e busca da criatividade, defendida na PUC/SP, em 1996, sob a orientação do Prof. dr. Gilberto Safra.
90
Pela escola, foi descrito como um garoto desligado, desatento, dócil,
"fechado no próprio mundo", com problemas de compreensão, expressão,
comunicação e linguagem. Evitava contato com crianças. Segundo a orientadora
da escola: "Eric não acumulava experiência e não conseguia transferir os
conteúdos aprendidos. Na sala de aula, às vezes, fazia desenhos de monstros e
em momentos inadequados. 'Parecia viver num mundo imaginário e dentro de
uma bolha', dizia a coordenadora da sua escola". (sic)
O pai de Eric não havia sido aceito pela família da mãe porque era mineiro
e, não alemão, já que essa é a origem da família. A gravidez que a mãe tanto
esperava, apesar do pouco interesse do pai, ocorreu quase 5 anos após o
casamento. Os pais relataram ter tido altíssimas expectativas em relação ao
menino, esperando inclusive, com esse nascimento, reatar relações com os avós
maternos, rompidas por ocasião do casamento, o que de fato acabou ocorrendo.
Segundo a mãe, Eric passou um pouco da hora de nascer, não pegou o
seio facilmente e não era guloso. "Muitas vezes, não queria mamar na hora certa
e depois ficava chorando" (sic). A partir do 3º mês, a mamadeira foi introduzida
porque era tempo de a mãe voltar a trabalhar. Os pais não ofereceram chupeta
para evitar problemas futuros, como demorar em deixá-la, estragar os dentes etc.
A mãe relata um acontecimento curioso: com quase dois anos, Eric
ameaçou jogar fora o seu crocodilo de estimação porque tinha brigado com a
mãe. Além de não impedi-lo, a mãe o desafiou a fazê-lo. Depois de jogá-lo, o
menino se arrependeu. A mãe explicou que havia coisas na vida irreversíveis. O
pai se mostrou preocupado com o aspecto emocional e interpretou a atitude do
menino à sua maneira: “Para ferrar com a gente, ele ferra com ele mesmo. O que
me preocupa é que ele puxou a mim, que também sou assim e só me ferro” (sic).
Além de ter tido muitas babás e de diferentes nacionalidades, até 4 anos,
o garoto só falava alemão. Como era o único neto, sobrinho e filho, havia sido
91
muito paparicado. Passou a ficar muito tempo com os avós maternos, depois que
as relações familiares foram reatadas. Duas tentativas fracassadas foram feitas
para alfabetizá-lo: a primeira em inglês e a segunda em espanhol. Os pais
acreditavam que o aprendizado se daria melhor, quanto mais cedo ocorresse.
Desde os 4 meses, Eric viajava com os pais para diferentes países, sendo
bombardeado com um arsenal de informações.
Na ocasião do nosso encontro, a mãe se mostrava muito preocupada com
o desempenho do menino. O pai se acusava de ter sido omisso, fraco e
submetido à família da esposa, deixando até mesmo que a língua falada na casa
fosse o alemão, língua que ele não falava. Na verdade, os pais pareciam
perdidos, brigavam muito e era possível perceber que eles haviam começado a
duvidar de tudo, inclusive da capacidade intelectual do menino.
Relatarei o desenrolar do primeiro contato com Eric e a compreensão que
tive dos seus movimentos psíquicos a partir da minha experiência com ele.
Conhecendo Eric Como já disse anteriormente, encontrei um garoto desvitalizado, triste e
desesperançado que destoava da família. Submeteu-se à ordem dos pais de ser
educado e tentou agradar, beijando-me, num contato robotizado e superficial. De
repente, saiu caminhando para o fundo do consultório. Parecia alheio a este
mundo (uma alma penada).
Foi curioso observar a aproximação de Eric da analista e dos objetos a ele
oferecidos. No primeiro contato que tivemos, após entrar na sala, ele ficou de
costas para mim, parecendo querer esconder com seu corpo, os movimentos que
fazia ao mexer na caixa de brinquedos. Parecia não querer estabelecer contatos
e, sim, evitar aproximação. Fundamental para compreender e respeitar Eric foi
92
observar a sua postura corporal: ele brincava, mas de forma defensiva num
estado de isolamento e retraimento.
Já tinha aprendido com Carol, com João, o Porco-Espinho e com Cacá, a
Cobra-Naja38, que, em determinados momentos, até um olhar poderia ser
invasivo para essas crianças, de forma que observava Eric à distância e com
muito cuidado.
Lembrei-me de alguns episódios vividos com João e que, creio, permitiram
que eu devaneasse, suspendendo temporariamente a minha presença39. É
preciso dizer que a inspiração para essa atitude vinha do paradoxo descrito por
Winnicott sobre a capacidade de estar só por estar em presença de alguém.
(WINNICOTT, 1958)
A capacidade de brincar da criança depende da situação ambiental
fornecida pela mãe, que mesmo envolvida com algo de seu interesse, mantém
potencialmente a sua disponibilidade para a criança que brinca ao seu lado,
também envolvida com algo de seu interesse. Trata-se assim de uma via de mão
dupla, já que a mãe mantém sua presença em suspensão, à medida que a
criança vai se tornando independente e desenvolvendo seus próprios interesses.
E esse é o grande paradoxo, a criança está bem e só, porque, mesmo à
distancia, sente-se acompanhada. O paradoxo é aquilo que está para além da
opinião, qualquer tentativa de resolvê-lo reduziria a complexidade do fenômeno,
já que admite a presença de dois elementos que se excluiriam no campo da
lógica, a qual opera numa relação de causa e efeito.
38 Ver O bote da naja em Pelos caminhos da Ilusão e do Conhecimento e A história de um porco-espinho em Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, ambos publicados pela Casa do Psicólogo. 39 Os trechos em itálico referem-se às reflexões teóricas, aos questionamentos e lembranças da autora.
93
A atitude de poder estar ausente em presença de Eric pela suspensão da
minha presença, tornava-se possível graças ao movimento presente no que
chamo de jogo tridimensional. Isso permite exercer a função de holding, ser
testemunha, o que permite alimentar a onipotência da criança e instaurar o
fenômeno da ilusão.Disso decorre a possibilidade do desenvolvimento de seu
potencial alucinatório e a criação do sentimento de ser real, a partir do qual se
pode criar, também, posteriormente, o sentido de realidade dos objetos do
mundo compartilhado.
Para que Eric pudesse transformar-se num ilusionista, era preciso contar com o
apoio e disponibilidade genuína da analista. Esta, por sua vez, precisava
reconhecê-lo como um objeto do mundo compartilhado, com características,
ritmo e estilo próprio e, ao mesmo tempo, identificar-se com ele na área dos
fenômenos subjetivos, para tomar a forma necessitada por ele. Trata-se de uma
capacidade para transitar num movimento, cuja natureza é ambígua e paradoxal,
da ordem da tridimensionalidade. Isso é algo aprendido pela experiência na
relação com um outro significativo.
A atitude à distância e cuidadosa pareceu surtir efeito, pois Eric se ajeitou
melhor, sentando-se no chão e ficando de lado, o que permitiu que eu pudesse
observar seus movimentos e a sua forma singular de se aproximar dos objetos da
caixa lúdica. Ele fazia uma classificação, cujo critério era separar os super-heróis,
dos animais domésticos e selvagens.
Disse algo que não consegui entender direito. Acho que ele nem ouviu,
quando perguntei o que havia dito. Aliás, era como se eu não existisse na sala.
Parecia muito envolvido na sua busca. Apresentava sérias dificuldades de fala,
expressava-se mal, cortando rapidamente o tênue contato, quando não era
compreendido.
94
Perguntou novamente algo e aí consegui entender que ele estava
procurando pelo Homem-Aranha. À medida que tirava um a um dos super-heróis,
ia olhando-os bem e dizendo: "neste falta boca, neste falta nariz; neste falta boca
e nariz".
Lembrei-me, também, de que a orientadora tinha dito que ele parecia viver
numa bolha. Comecei a me indagar: Será que ele era como aqueles super-heróis
que não tinham boca nem nariz? Será que ele não tinha estabelecido ou perdido
a relação com esses órgãos, não podendo usá-los como aberturas para
estabelecer contato significativo com o mundo externo? Será que ele não podia
usar nem seus receptores à distância e nem os de contato? Lembrei-me de Carol
que, num primeiro momento, usava seus receptores à distância (visão e audição)
e os de contato (cheirava a borracha, encostava partes do seu corpo na mesa)
para defender-se e evitar contato, usando-os depois para criar um jogo de
esconde-esconde até brincar de jogo da múmia. Pois bem! Será que Eric
apresentava a si mesmo ou um arremedo de si? Alguém que não tem boca, nem
nariz, nem a disponibilidade de fazer uso de seu corpo, de se comunicar e
interpretar os sinais do ambiente, estando, portanto, sujeito a vivências de
desintegração?
Finalmente encontrou o Homem-Aranha, com quem manteve uma relação
de fascínio, colocando-o na asa de um avião. Depois começou a fazer um
solilóquio, falando das viagens, das peripécias e da coragem do Homem-Aranha.
Este lutava contra o mal que era muito forte, não morria e era cheio de truques.
Depois surgiam vários aliados, até que, após muitas lutas, era levado para o
hospital para ser cuidado. Quando saía do hospital tinha que consertar um monte
de coisas quebradas.
Eu me indagava: qual o significado do encontro com o Homem-Aranha,
super-herói corajoso, que vivia para lutar contra o mal e consertar coisas
quebradas? Eu pensava no clima de preocupação do seu brincar defensivo e no
95
significado dentro de sua história. Seria o Homem-Aranha a expressão idealizada
dele mesmo, o bebê super–herói esperado pela família materna, que não tinha
correspondido às expectativas e tinha sido banido, como Caim? Era evidente que
o mundo externo era sentido como ameaçador e a presença do outro era
disruptiva. Seria o Homem-Aranha, paradoxalmente, a expressão de uma ruptura
e, ao mesmo tempo, a de uma ponte que poderia estabelecer ou restabelecer a
relação com o mundo? Através do Homem-Aranha, ele podia falar. Será que
apontaria para a possibilidade de integração do self?
Não sei quanto tempo se passou. Tal era o seu envolvimento no seu
brincar que eu evitava até respirar para não interrompê-lo. Lembrava-me da
experiência vivida com João, o Porco-Espinho. Note-se que, continuei mantendo
a minha presença em ausência, enquanto pensava na experiência vivida em
outra situação, que ajudou a dar sustentação ao ambiente e que relato, a seguir.
Naquela sessão, João estava absolutamente alheio e retraído. Em
determinado momento em que ele, de costas para mim, estava envolvido no seu
brincar, ocupado em provocar choques e trombadas entre dois carrinhos, eu me
movimentei na cadeira, o que provocou a queda de um objeto. João deu um pulo,
ficou de pé rápido e pegou algo da sua caixa apontando-o na minha direção,
como se fosse uma arma. Sua expressão era de tal susto e medo que,
espontaneamente, levantei-me da cadeira enquanto erguia os braços numa
atitude de rendição. Alguns momentos que pareceram eternos se passaram. Ele,
então, foi relaxando os ombros, suspirando e lentamente desfazendo o gesto
defensivo e agressivo, sem desviar os olhos de mim. Aos poucos, enquanto ele
se voltava, lentamente para os carrinhos, eu abaixava os braços retornando à
minha posição. Naquele momento, eu me dei conta, de quão estranha e invasora
era a presença de um outro para ele.
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Retomemos o que se passou com Eric. Um momento significativo ocorreu
e um encontro real foi estabelecido entre nós. A tampa da caixa de brinquedos
que estava perto dele caiu, fazendo um barulhão. Eu me assustei. E o garoto que
estava de costas, levantou-se de um salto enquanto se virava para mim,
parecendo extremamente assustado. Na sua expressão havia um misto de pavor
e medo.
Naquele momento, senti que o que ele via em mim era um ser terrível e
ameaçador. Evitei até respirar. Por duas ou três vezes, ele me olhou virando-se
de costas, como que para certificar-se de que estava tudo bem. O mundo externo
e invasor provocavam-lhe a vivência de um estado de susto, alerta e quase
pânico.
Até que trocamos um olhar, levantei o polegar fazendo um sinal de "tudo
bem?" Lenta e cuidadosamente ele pareceu concordar através do olhar e de um
leve sinal de cabeça. Senti que respirávamos aliviados e que era possível
conversar. Eu disse, então, que achava que a gente tinha se assustado tanto,
quando a tampa da caixa caiu porque parecíamos estar em outro mundo.
Eric (enquanto caminhava na minha direção, parecendo interessado),
perguntou: "qual mundo?”
Analista: Talvez na 4ª dimensão porque, para mim, a terceira é quando eu
vou para o mundo da lua.
Eric: "Às vezes, também vou para o mundo da lua... E, às vezes, pra 5ª
dimensão".
Analista: "Nessa eu nunca estive... Como é lá?"
Eric: "Só tem monstros e fantasmas... sempre em guerra. ... No mundo da
lua é bom".
Analista: "Então, talvez a gente possa se encontrar, de vez em quando, no
mundo da lua". Seus olhos pareceram iluminar-se e ele sorriu levemente.
97
Estávamos próximos do fim da sessão e antes de ir embora, ele olhou-me
perguntando onde eu tinha comprado aquele Homem-Aranha, diferente, mas
igual aos vários outros que ele tinha em casa.
Eric parecia um ser em estado de isolamento e não num mundo de
realidade compartilhada e humana. Ele estava presente na vigilância. Este
parecia ser o seu ponto de vitalidade, que lhe permitia esboçar um padrão de
defesa e interação com o meio ambiente. Essa relação era extremamente tênue
e feita numa linha defensiva. Um encontro na área dos fenômenos subjetivos
permitiu a comunicação significativa... a possibilidade de um encontro... ainda
que no mundo da lua.
Estive com Eric mais três vezes. Na época, o máximo que sua mãe pôde
aceitar em relação às minhas orientações, foi sua mudança para uma outra
escola que respeitasse mais as suas características e o seu ritmo. Reforcei o
pedido da escola de uma avaliação fonoaudiológica. Após alguns encontros, sua
mãe disse claramente que não gostaria que o menino começasse uma terapia
agora, nem que era o caso de fono. Ela acreditava que tudo se resolveria com a
mudança de escola e de atitude da família em relação a Eric.
Frente à preocupação e ao pedido dos pais, expliquei-lhes que uma
avaliação intelectual quantitativa só deveria ser feita, se fosse o caso, depois que
Eric pudesse brincar e estabelecer uma outra modalidade de relação com a
realidade. Sugeri que fosse dada continuidade ao trabalho de expressão ligado à
arte-educação que o menino havia iniciado e da qual estava gostando muito,
colocando-me à disposição para acompanhá-los à distância.
No nosso último encontro, ofereci, mas ele não quis levar, o Homem-
Aranha, pedindo que eu o guardasse para quando ele voltasse. Somente depois
de aproximadamente um ano, voltei a ter notícias de Eric e sua família.
98
Dialogando com Winnicott na construção do primeiro dispositivo clínico
Na concepção de Winnicott (1975, 1990), o bebê é, desde o início, ativo e
afortunado, se, e somente se, puder transformar-se num ilusionista, isto é, se a
onipotência da ilusão de contato for alimentada. Assim, o seu potencial criativo
que é alucinatório pode atualizar-se. Para isso, ele necessita contar com o apoio
da mãe em estado de devoção a qual estabelece uma relação com seu bebê, a
partir de um movimento que é, desde o início, ambíguo e paradoxal, da ordem da
tridimensionalidade.
Por isso, ela pode relacionar-se com um bebê que, ao mesmo tempo, é e
não é ela mesma, pois ele é também um objeto do mundo compartilhado, com
características, ritmo e estilo próprios. Isso é algo que se aprende pela
experiência e não pode ser ensinado apenas de forma intelectual, mecânica. E,
assim, a mãe alcança o estado de devoção, de preocupação materna que
permite a identificação primária com o bebê. Nesse estágio, não há separação
entre sujeito e objeto.
Essa experiência pode ser pensada segundo um modelo estético
(SAFRA, 1999), já que ocorre numa situação de indiferenciação entre sujeito e
objeto, num estado de dependência absoluta do bebê. Aqui reside a relação com
o ser, com o elemento feminino puro, base da identidade. Esta é também a base
do elemento criativo presente em qualquer atividade do cotidiano e do campo
cultural em que o indivíduo esteja, posteriormente, pessoalmente envolvido.
Nas primeiras situações de amamentação, a cada encontro, a mãe coloca
o seio no momento e no lugar em que o "gesto” do bebê o coloca (objeto
subjetivo). Tem início a experiência de onipotência estabelecendo-se, assim, a ilusão do contato.
Desse modo, para que a potencialidade criativa do bebê se atualize, o
objeto precisa ser encontrado. Não se cria no vácuo. Penso que essa é uma das
99
novidades trazidas por Winnicott: é no bojo de um movimento paradoxal que o objeto é criado, porque pode ser encontrado. Atente-se para o fato de que o
objeto não é colocado no mundo pelo ser humano e que o momento do encontro
com o objeto coincide com o primeiro contato com algo exterior. Essa foi a
natureza do encontro de Eric com o Homem-Aranha.
A função da apresentação de objetos aliada a de holding e manejo,
exercidas pela mãe devotada comum, de forma simultânea e complementar põe
em marcha o início do desenvolvimento das relações com o mundo de realidade
externa. Para que a ilusão se constitua é preciso, inicialmente, certa dose de
experiência de onipotência. Daí decorre poder experimentar o sentido de ser real,
de identidade, de se poder apreender a realidade e o significado da experiência.
Se a mãe é alguém que É e não que Faz, até o bebê estar pronto para começar
a fazer, ele experimenta o sentido de ser ou identidade. (WINNICOTT, 1971a,
1975).
A mãe suficientemente boa presentifica o ser do bebê na apresentação
que faz de si mesma durante as experiências de amamentação, fornecendo
também, um ambiente perfeitamente adaptado às suas necessidades. Temos ai
uma concepção em que a ilusão é “o meio de acesso ao real”40. O bebê encontra
um ponto de descanso, de quietude e a possibilidade de um estado de não
integração e relaxamento, que permite a continuidade do ser.
O potencial ativo e criativo e a comunicação silenciosa
Winnicott (1975, 1990) ressalta que o bebê nasce com um potencial de
força vital e que este é a base da criatividade. Portanto, trata-se de uma
tendência inata que impulsiona o ser humano na busca do próprio
desenvolvimento. Por diferentes formas e vértices, Winnicott falou desse
potencial criativo.
40 Anotações de aula ministrada por Loparic no Programa de Estudos em Pós Graduação em Psicologia Clínica na PUC-SP/1995.
100
No artigo, A comunicação e A falta de comunicação levando ao estudo de
certos opostos afirma que, desde o início, e, ao mesmo tempo, o bebê
desenvolve dois tipos de relacionamento: "com a mãe-ambiente que é humana e
com a mãe-objeto, que é uma coisa e é também parte da mãe-humana".
(WINNICOTT, 1963a, p. 166)
Assim, o potencial de força vital ou potencial criativo que, no início é uma
coisa só, dá origem a dois estados, a duas modalidades de relação com a mãe
suficientemente boa:
a) por um lado, o relacionamento com a mãe-objeto no estado excitado,
no qual predomina no bebê a agressividade instintual que é parte do amor
instintivo ou da atividade ligada ao erotismo muscular já presente no feto. Essa
está ligada ao gesto espontâneo cuja fonte é a liberdade da vida instintiva.
“Se as experiências instintuais são sentidas como partes de
si próprio, por causa do apoio egóico da mãe, o elemento
agressivo (que nesta etapa é destrutivo por acaso) funde-se
com as experiências de força vital e contribui para a sua
intensidade”. (DAVIS, 1982, p. 83).
No início, a motilidade contribui para exercitar a separação entre o bebê e
a mãe. Posteriormente, dá origem à relação com o elemento masculino puro, o
fazer que permitirá a criação da externalidade e o caminhar em direção à
consecução de um senso de permanência do objeto do mundo compartilhado,
quando ocorrer a separação entre eu e não-eu, através do pensar e brincar
criativo. Tema de fundamental importância para quem trabalha com as questões
do desenvolvimento e da aprendizagem humana, ancorada na noção de criação
de símbolos.
101
E importante diferenciar esta primeira modalidade de agressividade usada
para a separação e colocação do objeto subjetivo fora da área de controle
onipotente e que permite a destruição criativa do objeto subjetivo na fantasia, de
uma outra relacionada à frustração e ligada à raiva. Para Winnicott, esse
sentimento é muito mais sofisticado e só surge, posteriormente, quando já existe
separação entre eu e não-eu. Na saúde, o motor da agressividade não é só
frustração, mas especialmente a busca ativa do objeto, pois quando a mãe não
vem imediatamente, o bebê tem como enfrentar a sua ausência real e concreta
fazendo uso de algo que pode ser uma sensação, um gesto, um objeto que
presentifica o movimento do campo que ele introjetou a partir da experiência com
a mãe. Se ela volta dentro do seu tempo de tolerância o sentimento de
continuidade do ser fortalece-se.
b) Paralelamente, o bebê se relaciona com a mãe-ambiente no estado de quietude, no qual predomina o amor não instintual e onde ocorrem as
experiências de comunicação na mutualidade.Essas geralmente são tranqüilas,
ligadas a batimentos cardíacos, respiração, fortalecendo a identificação da mãe
com o bebê, permitindo que o bebê tenha a experiência da continuidade do ser.
Essa é a área do sagrado, de toda a experiência satisfatória do ser
humano ligado à consciência de estar vivo que se desenvolve a partir do
processo de apercepção criativa, que significa um colorido pessoal de
apreender o significado do mundo e organiza até mesmo a capacidade de
perceber aquilo que será, posteriormente, a externalidade do mundo, quando
ocorrer o início da separação entre o eu e o não eu.
O potencial alucinatório vai sendo enriquecido pelas experiências
ocorridas no espaço de mutualidade sustentado pela mãe ainda num estado de
indiferenciação e o self vai habitando o corpo, à medida que vai havendo a
elaboração imaginativa das funções somáticas, ou dito de outra forma, à medida
que o bebê vai desenvolvendo a fantasia, que permite a integração psique-soma
102
– personalização. Note-se que a fantasia vai sendo criada pelo bebê, não para
suportar as frustrações da realidade externa, posto que ainda não foi
estabelecida uma diferenciação entre eu e não-eu. A fantasia precede a
percepção da realidade e faz parte do potencial criativo, que vai sendo
enriquecido pelas experiências da magia, ou seja, do viver criativo.
Na saúde, existe eventualmente um estado no qual as
fronteiras do corpo são também as fronteiras da psique. O
círculo que uma criança de três anos desenha e chama de
pato é tanto a pessoa do pato como o seu corpo. Isso é algo
que vem a ser alcançado juntamente com a capacidade de
usar o pronome na primeira pessoa do singular.
(WINNICOTT, 1990, p.144)
A criação da externalidade do objeto depende da constituição de um
vínculo de confiança que acontece quando o início da vida foi suficientemente
bom. O bebê confia que a realidade poderá trazer a satisfação de suas
necessidades e se a mãe não some do seu campo perceptivo sustenta o campo
de experiências. Assim, ele vai criando a externalidade do objeto e o princípio da
realidade não será uma afronta. A ansiedade do bebê ligada à preocupação
pelos efeitos de seus gestos nos momentos em que sente receio de consumir a
mãe dos estados excitados diminui, se ela continua presente, viva, aceitando a
contribuição que ele oferece para a mãe-ambiente.
Algo de fundamental importância é a existência da terceira área da
existência humana, a área dos objetos e fenômenos transicionais em que se
desenvolve o brincar e os fenômenos culturais (WINNICOTT, 1971b, p. 150).
Essa é a área que a mãe devotada comum, ao mesmo tempo, habita e transita,
quando está bem e tem a retaguarda ambiental daqueles que ama. Assim ela
pode estar no movimento que caracteriza o jogo tridimensional e dar sustentação
para a constituição, integração e desenvolvimento harmônico da dimensão ética,
103
estética, afetiva e cognitiva presente no potencial do seu bebê, se tudo continua
a correr bem. Note-se que ela está num movimento, num jogo organizado pela
capacidade genuína de se relacionar com o bebê podendo, ao mesmo tempo,
discriminar-se e reconhecê-lo como alguém do mundo objetivamente percebido.
É o encontro de um "(...) lugar de repouso (...) na perpétua tarefa humana
de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-
relacionadas" (WINNICOTT, 1975, p. 15) que permite a entrada no que estou
chamando de movimento no jogo tridimensional. Aí, um objeto transicional pode
ser adotado. Trata-se de uma matriz do símbolo da união e da separação, isto é,
da capacidade de o ser humano transitar e criar a presença de um outro
significativo na sua ausência e de poder estar consigo mesmo, portanto, de
ausentar-se na sua presença. (WINNICOTT, 1958, 1963-a e 1963-b)
Na transição para o estágio de dependência relativa, ou passagem da
continuidade para a contigüidade, a capacidade de espera e de manter a imagem
da mãe recebe a ajuda do intelecto, lugar das representações que se desenvolve
voltado para os objetos externos por meio da percepção.
Não se pode esquecer ainda que o intelecto começa a organizar a
experiência desde o início e dessa forma surge o pensamento. Com a transição
da dependência absoluta para a relativa, o intelecto em evolução do bebê torna
possível uma crescente consciência do cuidado materno e da necessidade desse
cuidado. Assim, na época da separação, é o pensamento aliado ao brincar
criativo que ajuda a compensar os fracassos de adaptação da mãe convertendo
um ambiente suficientemente bom num ambiente perfeito. (DAVIS, 1982, p. 70)
Note-se que o desenvolvimento cognitivo que enriquece o self é aquele
que permite estabelecer uma ponte entre a realidade pessoal e a externa,
servindo, portanto, às necessidades do self. O pensar que se desenvolve a partir
104
da integração psique-soma, morada do ser, serve à sobrevivência da experiência
da onipotência e é um ingrediente da integração.
Note-se, também, aqui, o papel determinante do ambiente externo não
apenas para a atualização da capacidade de criar (encontro com o objeto
subjetivo), mas também para o desenvolvimento da capacidade de relacionar-se
com e usar o objeto.
Um outro ponto de fundamental importância nessa contribuição é que não
apenas o objeto subjetivo é criado. Também a externalidade do mundo de
realidade compartilhada é fruto do movimento paradoxal dessa relação inicial do
bebê com a mãe. É assim que entendo a afirmação de Winnicott (1945) de que
"qualquer falha de objetividade relaciona-se ao estágio de dependência
absoluta". (p. 280)
O espaço potencial, o brincar e o pensar criativo Quando o bebê coloca o dedo na boca da mãe aos 3 meses, ele está
comunicando e vivenciando a mutualidade. O bebê está brincando e o jogo
pertence ao lugar de transição onde "a continuidade está cedendo lugar à
contiguidade". Winnicott ressalta a importância da retro-reflexão ou do olhar
mútuo entre mãe e bebê nessas experiências. Penso que aqui reside o ponto
fundamental, pois, "pode-se pensar na separação como sendo a causa da
primeira idéia da união; antes disso há união, mas não há idéia da união e aqui
os termos bom e mau carecem de função". (MILNER, 1991, p. 116)
Assim, o espaço potencial é preenchido pelo brincar criativo que surge
naturalmente do estado relaxado através do uso dos objetos transicionais. O
primeiro objeto possuído e adotado pelo bebê, a primeira posse não-eu, vem
nas esteiras das formas primitivas de se relacionar e brincar. Ele antecede o teste
da realidade e retém qualidades mágicas, possuindo também, permanência e
vida próprias vinculadas a seu valor de sobrevivência. O bebê tem agora o
105
controle pela manipulação, através do brincar. Veja-se que o sentido de realidade
do objeto e de poder ser usado, relaciona-se à sua capacidade de sobreviver à
destruição.
Interessante acompanhar como Winnicott entende a constituição e,
especialmente, a integração das dimensões do self. Para ele, à medida que o self
se constrói e o indivíduo se torna capaz de incorporar e reter lembranças do
cuidado ambiental e, portanto, cuidar de si mesmo, a integração se transforma
num estado cada vez mais confiável. Dessa forma, a dependência diminui
gradualmente. Ele afirma: "em minha descrição dos primeiros momentos de
integração a partir dos estados de não integração, as palavras eram extraídas da
aritmética. Tratava-se de saber se os núcleos do ego individual iriam ou não
somar-se para fazer uma unidade, que representa o próprio self". (WINNICOTT,
1990, p. 138)
Winnicott fala de algumas possibilidades de integração relacionando-as
com os tipos de personalidades. Quando a integração é proporcionada pelo bom
cuidado ambiental, a personalidade poderá revelar-se bem-estruturada. Quando
o acento recai sobre a integração por meio de impulsos e experiências instintivas
e de uma raiva associada ao desejo, a personalidade será interessante; quando
não há o bastante de nenhuma das duas, a integração jamais se estabelece, por
inteiro ou se estabelece de uma forma fortemente defendida, impedindo que
ocorra o relaxamento ou a não integração repousante. Há, ainda, um terceiro
modo: quando a integração aparece cedo e o acento recai sobre uma excessiva
reação à intrusão de fatores externos. Isso é conseqüência da falha do cuidado
da criança..Aqui a integração é adquirida “mediante um alto preço, visto que a
intrusão passa a ser esperada, tornando-se até necessária, e é possível
encontrar nessa estrutura o fundamento muito precoce para uma disposição
paranóide (não herdada)". (WINNICOTT, 1990, p. 140). Sobre as conseqüências
do próprio ato da integração, ele afirma que ela traz consigo a expectativa de um
ataque, que será tanto mais forte, quanto mais tarde for adquirida.
106
O abandono precoce e a atrofia do processo criativo Entretanto, quando a mãe não consegue adaptar-se ativamente às
necessidades da criança, desrespeitando o ritmo do bebê e impondo o seu gesto,
há um processo de atrofia da criatividade e a perda do uso da capacidade
imaginativa. O desenvolvimento do pensar, conhecer e aprender pode ocorrer,
então, de forma não-integrada e não se constituir em uma dimensão do self,
implicando vivências disruptivas. (WINNICOTT, 1949, 1960, 1963a,1963b, 1963c,
1965a, 1971a, 1971b,1988)
No artigo, Uma nova luz sobre o pensar infantil, afirma que quando a mãe
fracassa rápido demais, o bebê pode sobreviver por meio da mente (...) Se o
bebê possuir um bom aparelho mental, esse pensar transforma-se num substituto
para o cuidado e adaptação maternos (WINNICOTT, 1965 a, p.122). Assim, um
relacionamento caótico pode provocar não apenas um tumulto intelectual, mas
também uma deficiência mental. Quando ocorre o fracasso do contato inicial, o
bebê se desenvolve sem a experiência de ser, ou então, a experimenta de forma
deficiente. Interessante assinalar que:
"o sentido do ser tem precedência à descoberta do self que
também se relaciona à consciência do corpo. (...) Para
Winnicott o sentido do self provém apenas de uma atividade
desconexa e sem forma, ou rudimentos do brincar (de um
estado de não-integração), e mesmo assim, só se houver
uma retro-reflexão." (MILNER, 1991, p. 248).
Quando ocorre o fracasso do contato inicial e o bebê se desenvolve sem a
experiência de ser, não se pode falar em frustração, castração ou destrutividade.
Só se pode falar em mutilação. Mutilar significa perder um processo e
conseqüentemente a função a ele associada. Ocorre também, o split nas
relações objetais.
107
"Com uma metade o self se adapta à forma com que o objeto
se apresenta (falso-self). Com a outra metade do split, o self
se relaciona com o objeto subjetivo, ou com fenômenos
baseados em experiências corporais, sendo estes
dificilmente influenciados pelo mundo objetivamente
percebido. Exemplo: o balançar do autista, o funcionamento
esquizóide." (WINNICOTT, 1990, p. 167)
Se o ambiente não é confiável, nem fidedigno, o bebê tem que cuidar de si
mesmo através do desenvolvimento exacerbado de alguma função mental, numa
linha de organização do falso-self. Estudar o atendimento das primeiras
necessidades do bebê equivale a estudar a etiologia do falso-self, já que "(...) o
verdadeiro self aparece assim que ocorre qualquer organização mental e o
sentimento de ser real é fortalecido a cada período em que não se interrompe a
continuidade do ser". (WINNICOTT, 1960, p.136). Já o falso-self é reativo, carece
de originalidade criativa e é formado a partir das vivências de rupturas do ser, a
partir do desenvolvimento exacerbado de alguma dimensão da personalidade em
detrimento de outras que podem nem mesmo chegar a constituir-se.
Winnicott (1945, 1949, 1960, 1965 a, 1968) salienta que quando a falha
ocorre no estágio de dependência absoluta, como no caso da inibição intelectual,
há desespero em relação à integração. Nesse caso, a defesa intelectual não se
constitui. Nessa situação, há um "elemento desintegrador na dinâmica familiar",
sendo necessária, também, uma intervenção junto aos pais (WINNICOTT, 1959;
p. 192).
Compreendendo Eric a partir de Winnicott Algumas hipóteses são possíveis: Será que Eric pôde contar com a
adaptação ativa e sensível da mãe em estado de devoção? Será que houve o
estabelecimento do contato nos primeiros encontros com o objeto subjetivo, a
partir do gesto espontâneo e potencialmente criativo? Será que houve o encontro
108
com a mãe-ambiente dos estados de quietude, que possibilita a experiência de
continuidade do ser, experiências de troca e comunicação na mutualidade e,
assim, a criação e desenvolvimento do espaço potencial?
Eric não constituiu o sentimento de continuidade do ser, já que as
vivências de ruptura parecem ter ocorrido muito precocemente na sua vida. Ele
vivia na área dos fenômenos subjetivos, mantendo-se num estado de retraimento
e isolamento Havia um colapso da inteligência devido a não-possibilidade de
constituição do self e ele padecia de ansiedades em relação à integração.
A integração alcançada a partir de um padrão de reação às intrusões
parece ter ocorrido por meio do desenvolvimento exacerbado da dimensão da
imaginação. Esta parecia ter vida própria alienando-o de um contato com o
externo. A sua aprendizagem era feita numa linha adaptativa, de submissão ao
externo; o que aprendia não tinha significado. Brincava, mas de forma defensiva,
tentando sobreviver e defender-se frente ao mundo sentido como invasor.
Ele não sentia o cheiro, o gosto do mundo. A boca podia ser usada para
comer e sobreviver, mas não para se comunicar e estabelecer relações de
contato e troca significativas que permitiriam criar o self e a externalidade do
mundo. Sem o contato com um outro que apresente o mundo dando a ilusão da
onipotência de contato não há apetite, nem mundo apetecível. Sem a ilusão de
ser o criador do mundo, não há experiência de mutualidade, nem comunicação
significativa. Para Winnicott (1963-c) esta é a base do comer e do aprender: "(...)
a base de toda aprendizagem (assim como do comer) é o vazio. Mas se o vazio
não é experienciado como tal, desde o começo, ele aparece então como um
estado que embora temido, é compulsivamente buscado" (WINNICOTT, 1963c,
p. 76).
Nesse mesmo artigo, assinala que o paciente teme o horror do vazio e
poderá, então, organizar um vazio controlado. Como defesa, poderá não comer
109
ou não aprender ou, então, "impiedosamente o encherá por uma voracidade que
é compulsiva e parece louca". (Idem, p. 75)
A questão com Eric era: como atender a sua necessidade de usufruir
experiências que permitissem descongelar aspectos do verdadeiro self que não
tinham se constituído devido à ausência da presença real de um outro ser
humano?
Suas questões fundamentais eram, por um lado, desenvolver um escudo
que permitisse defender-se da invasão do ambiente, já que alcançava uma
integração por um padrão de reações às intrusões. Por outro, precisava ter
acesso ao que se passava com ele e desenvolver a capacidade de comunicar–se
num mundo de realidade compartilhada, isto é, precisava simbolizar e encontrar
canais de expressão.
Dispositivos clínicos usados no diagnóstico Quando conheci Eric, observei a mesma situação de exclusão já
observada com Carol e sua família, bem como de outras crianças com inibição.
Eric correspondia à descrição que seus pais faziam dele: estava mal vestido e
bastante desleixado. Destoava de seus pais. Seu olhar transparente parecia
atravessar-me. Reconheci nele o sinal de Caim – revelador da situação de
isolamento psíquico em que vivia.
O atendimento de Eric confirmou o que vinha constatando sobre a
importância de deixar-me afetar pela atmosfera do ambiente e usar a ressonância
que a apresentação da criança na composição de sua família provocava em mim
para fazer o diagnóstico. No primeiro contato, ainda na sala de espera observei o
“destoar” e a exclusão de Eric e, no consultório, o que me impressionou, além de
sua atitude e postura corporal, foi a sua busca e relação de fascínio ao encontrar
o Homem-Aranha.
110
Quando a tampa da caixa de brinquedos caiu, vi refletido nos seus
olhos o susto e o pavor exagerado, característicos de vivências de rupturas do
ser que alteravam até mesmo a sua percepção. Por meio de uma troca de
olhares e gestos, a intervenção silenciosa aconteceu. Quando foi possível uma
intervenção, comentei que o nosso susto talvez tivesse acontecido porque
estávamos em outra dimensão, o que operou e teve efeito, pois ele aproximou-
se, abrindo assim, a possibilidade da comunicação significativa. Eric pôde
contar de suas vivências em diferentes dimensões e visualizamos a possibilidade
de novos encontros no mundo da lua. Compartilhar uma vivência dessa natureza
com Eric, criou a experiência do encontro.
O menino parecia ainda nem ter constituído ou ter perdido aberturas
significativas com o mundo por meio de seus receptores de contato e à distância.
Cada vez mais relacionava esse fato a falhas no atendimento à primeira
necessidade do ser humano: a da comunicação significativa que decorre de
sentir-se incluído, isto é, ter sido um no outro, para depois poder ser um com o outro. Por não ter desfrutado da presença real de um outro disponível para olhá-
lo e reconhecê-lo na sua singularidade, o mundo não era apetecível, e sim,
estranho e invasor. Eric podia usar seus receptores de contato, bem como os
receptores à distância para sobreviver, mas não para criar o mundo real a partir
de experiências compartilhadas. Ele apresentava um nível de organização de self
muito incipiente e vivia em estado de alerta, ligado aos possíveis ataques do
mundo externo sentido como disruptivo e ameaçador.
Algumas Considerações Tenho observado, na experiência clínica, a potencialidade transformadora
do fenômeno estético, especialmente, com crianças com inibição intelectual. Na
minha prática, essa dimensão relaciona-se com a capacidade do analista de se
deixar afetar pela ressonância que o modo de ser e estar da criança provoca
nele. Está relacionada com a reação psicossomática que testemunho no
paciente e acompanho por um processo de identificação.
111
Uma questão, então, se coloca: como o analista acompanha o seu
paciente na vivência estética? Se ambos sofrem os efeitos e são co-autores na
criação desse fenômeno, como o analista acompanha a criança sem sair do seu
papel? Para acompanhar essas crianças nos momentos em que o fenômeno
estético se dá, tenho feito uso do movimento ambíguo e paradoxal que
caracteriza o campo dos fenômenos transicionais (WINNICOTT, 1971a, 1971b,
1975). Penso que é o empréstimo que o analista faz da transicionalidade de seu
campo psíquico que dá sustentação ao campo de experiências compartilhadas,
como veremos, especialmente na apresentação do atendimento de Eric.
112
Estação 6. Testemunhando o caminhar de Eric
Há um brincar
E há outro a saber
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver41
Nesta estação, busco dar visibilidade aos dispositivos clínicos que
permitiram acompanhar os movimentos e a comunicação, especialmente, a não-
verbal de Eric. Isso favoreceu a criação de condições para a entrada do garoto no
movimento que caracteriza o jogo tridimensional e permitiu a abertura do campo
do brincar, conhecer e aprender criativos.
O reencontro Os pais de Eric o trouxeram novamente, aproximadamente um ano depois
da etapa do diagnóstico, dizendo que ele, agora, com quase 8 anos, estava na 1ª
série e vinha tendo um atendimento fonoaudiológico há seis meses, por solicitação
da orientadora da escola, que havia solicitado, também, um acompanhamento
psicoterapêutico ou psicopedagógico. Segundo a mãe, ela teria dito que ele
estava um pouco mais participante, apesar da dificuldade de atenção,
concentração e lentidão. Havia um outro dado, acrescentado a esses pela própria
orientadora: Eric vinha buscando contato com outras crianças sendo rejeitado por
elas, que diziam que ele cheirava a alho. Demonstrava, também, "exagerada
sensibilidade" a qualquer comentário, inclusive dos professores, parecendo senti-
los como crítica. A hipótese levantada é que talvez os aspectos da rejeição e a
extrema sensibilidade do menino tenham determinado o retorno dos pais, naquele
momento, para o atendimento psicoterapêutico.
41 PESSOA, Fernando. Brincava a criança. In Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 510.
113
Primeiro Momento: Saindo do estado de alerta Na primeira sessão, Eric se animou ao encontrar o Homem-Aranha, como
se não tivesse se passado quase um ano. O curioso é que começou a usar
barbante e a construir várias teias, fazendo pontes, por exemplo, entre uma
cadeira e a maçaneta da porta. Nelas, o Homem-Aranha se segurava, salvando-se
e também a outros personagens ameaçados pelo mal. Aos poucos, outros super-
heróis chegavam, entre eles a Mulher-Maravilha. Eles eram seus aliados na luta
contra o Mal, representado pelo Curinga e seus comparsas.
Na terceira ou quarta sessão, o garoto movimentava-se de forma mais livre,
parecendo cada vez mais à vontade. Às vezes, trazia de sua casa um crocodilo ou
algum outro animal ou super-herói. O curioso é que eles faziam alianças com o
Mal, isto é, com a turma do Curinga. Muitas sessões se passaram em que a luta
era permanente: o Homem-Aranha nunca morria, mas o Mal também nunca
acabava e parecia sempre se fortalecer.
Um dado curioso é que era como se a analista fosse transparente ou não
existisse no consultório.
O que chama a atenção é como ele logo encontra o familiar – o Homem-
Aranha no ambiente que nem parece mais tão estranho como da primeira vez,
apesar de ter se passado tanto tempo. Às vezes, eu me indagava quanto tempo
duraria esse período e esse padrão de sessões, mas não tinha dúvida sobre a
importância de sustentar o lugar de testemunha, exercendo a função de holding
até que se abrisse o movimento no jogo tridimensional para que Eric pudesse
alcançar um mínimo de integração. Ele vivia sob a ameaça constante de ser
invadido, que o levava a estar num estado de retraimento e alerta. Compreendi
que Eric necessitava estabelecer uma relação com a analista que fosse tão real
como era, para ele, a sua relação com o Homem-Aranha. Era preciso alimentar a
onipotência da ilusão de que éramos um só, evitando vivências de
desintegração, (achar um lugar, um ponto em comum de união com ele que
permitisse instaurar um espaço de encontro na área dos fenômenos subjetivos.)
114
A questão era: como me tornar para ele tão familiar quanto o Homem-
Aranha? Como fazer parte do seu mundo e não ser uma estranha invasora? Se
ele pudesse incluir-me no seu mundo e apresentá-lo a mim, para que eu pudesse
conhecê-lo, talvez depois ele quisesse conhecer o mundo em que eu habitava.
Assim, o que me parecia fundamental era dar sustentação a esse processo ao
longo do tempo e manter a atitude de espera receptiva, tomando a forma da
necessidade de Eric.
Quanto mais Eric saía do estado de isolamento, mais me chamava para
participar das brincadeiras. Começou a me mandar personificar a voz e/ou fazer o
papel da Mulher-Maravilha. Ele determinava como seria a minha participação no
papel, não tendo a mínima paciência para ensinar-me como fazê-lo. Aliás, parecia
esperar que eu adivinhasse o que estava em sua cabeça, como se eu fosse, de
fato, uma continuação dele.
Em determinado momento de uma sessão, eu não entendi o que a Mulher-
Maravilha – papel desempenhado por mim, naquele momento – deveria fazer. Não
sei se ele não ouviu ou ignorou a minha pergunta, de forma, que tentei fazer o que
era possível para complementar o gesto que ele – Homem-Aranha – fazia. Ele,
então, me olhou e disse bravo e com ar de desprezo: "Hei, não é para fazer assim.
Você é burra?" E me ensinou, então, o que eu deveria fazer com tom autoritário e
exigente.
Impressionante como ele pôde usar sua boca, sua voz e articular as
palavras de modo tão claro naquele momento. Cada vez mais compreendia que a
minha participação, como se fosse uma extensão dele, além de não ameaçá-lo,
alimentava a ilusão de contato não só com os objetos, mas especialmente com
ele mesmo, trazendo o senso de continuidade do ser, de integração. Assim, ele
podia ser e mostrar-se, apresentar seu modo de ser e suas questões – no caso, a
da burrice, reconhecendo-a na analista, portanto, fora dele.
115
Aqui é importante trazer a noção desenvolvida por Winnicott de falha da
analista, já que, ao colocar-se fora da área de onipotência de Eric, ocorre a
reedição da deficiência do ambiente em atender à primeira necessidade do
menino – a de estar em comunicação significativa que, no início, é silenciosa –
de estar em comunhão consigo mesmo e com o mundo. Ao colocar-se fora da
área de onipotência e não sustentar a continuidade do ambiente, a analista
apresenta-se como alguém que tem uma existência própria, o que rompe o
espaço potencial que dava sustentação do campo. Eric é levado a enxergar o
mundo, não a partir da realidade subjetiva – organizada pela ilusão, dimensão da
apercepção, a que, até então, sustentava a experiência da onipotência e sim, a da
realidade objetiva e não compartilhada.
Note-se que a passagem da comunicação silenciosa para a significativa
ocorre graças aos fracassos reparados que permitem a simbolização e
desenvolvimento de dimensões do self. Estes podem, então, ser experienciados
na relação com a analista, encontrando, assim, o caminho da transicionalidade.
Muitas sessões se passaram em que tanto o Homem-Aranha como seus
comparsas saíam machucados. Algumas vezes, iam para o hospital, saindo de lá
enrolados na fita adesiva – usada como esparadrapo. Noutras, eram lançados
num precipício por um alienígena que não gostava do cheiro de alho que
exalavam. Noutras, ainda, tinham que participar de lutas sangrentas com monstros
no coliseu de Roma. Nessa fase, geralmente na hora de ir embora, depois de
guardar o Homem-Aranha, seus comparsas e inimigos na sua caixa, ele dizia:
"Tchau, Caixa-Maravilha!"
Após várias sessões com esse padrão de acontecimentos ele comunicou –
espontaneamente – que haveria uma festa dos super-heróis para comemorar a
vitória do Homem-Aranha sobre o Mal e que a Mulher-Maravilha o acompanharia à
festa para encontrar os outros super-heróis, também aliados do Homem-Aranha.
Foi contando isso enquanto pintava o cabelo da Mulher-Maravilha com tinta
116
amarela, imprimindo assim a sua marca pessoal em algo da cultura externo a ele:
um não-eu.
Veja-se que por meio do brincar, ele vai apresentando suas questões: a
eterna luta entre o Bem e o Mal e o tema da rejeição pelo cheiro de alho, até
poder chegar a comemorar a vitória do Bem, que talvez se relacione ao fato de
estar acompanhado da Mulher-Maravilha que tem os cabelos marcados com seu
gesto. É importante colocar-se agora na posição de observador da cena para
acompanhar o movimento de Eric. Alimentar a sua onipotência permitiu que ele
alcançasse uma mínima integração a partir de um movimento que partiu de sua
criação e não de um padrão de reações às intrusões do ambiente. Do ponto de
vista do menino, o estatuto da analista seria de um objeto subjetivo. O fato de Eric
sentir que ela estava sob o seu controle onipotente operava e tinha efeito, pois o
deixava livre da ameaça de ser invadido. Do lado da analista, justamente por ter
clareza de que não estava sob o controle onipotente do garoto, podia jogar como
se estivesse. Para ela, Eric era um objeto do mundo compartilhado com uma
singularidade própria. Ao mesmo tempo, podia identificar-se e discriminar-se dele,
entrando no jogo e transitando entre diferentes pólos e lugares da relação, a partir
do movimento que caracteriza o jogo tridimensional.
Segundo Momento – O Sono e o estado de relaxamento Outra seqüência de sessões seguiu-se à festa de comemoração da vitória
do Bem sobre o Mal e trouxe vários dados significativos. Na primeira, Eric
começou a tirar o tênis, quando chegava. Na hora de ir embora, pedia e gostava
que eu o ajudasse a colocá-lo. Duas sessões mais adiante, ele chegou parecendo
muito cansado e desvitalizado. Deitou-se no sofá e dormiu. Isso aconteceu em
outras sessões, como veremos adiante. O dormir na sessão parecia associado ao
cansaço e, também, à vivência de algum momento significativo. Vale dizer que o
cansaço do menino justificava-se, pois parecia um pequeno executivo entre aulas
de Inglês, alemão, natação etc.
117
Se cada encontro ocorre a partir do gesto pessoal e a analista é uma
extensão dele mesmo, uma relação de confiança vai se instaurando, um estado
de relaxamento pode ser alcançado, ele pode estar próximo fisicamente e até
dormir. Um ponto de descanso permite o estado de não-integração. Se não há a
presença demandante de um outro é possível dormir sem susto. Note-se que o
dormir significa poder estar ausente em presença de outro. Para isso, o outro não
pode ter uma presença excessiva como parece ter sido a da mãe e nem tênue
como parece ter sido a do pai, que até mesmo permitiu que o filho aprendesse a
falar alemão, antes do português; língua, aliás, que o pai não dominava e que era
falada dentro de casa.
Um momento significativo ocorreu na sessão seguinte àquela em que ele
dormiu. Eric começou a contar de uma viagem que havia feito nas férias
anteriores. À medida que falava, pegou uma folha e caneta e foi desenhando a
Caverna dos Morcegos em que havia o Deus da Morte. Enquanto mostrava a
entrada da caverna, contou ter sentido tanto medo que até precisou "segurar o
pinto para o xixi não escapar" (sic). No momento em que falou sobre isso foi ao
banheiro.
É possível o enfrentamento do mal, a expressão e comunicação do
sentimento. O medo só pode ser humanizado, portanto, simbolizado na
experiência e na relação com um outro que acolhe. Note-se que há uma
triangulação, um trânsito entre a ressonância daquela situação (o medo que sentiu
na caverna) e a da situação vivida no aqui e agora que lhe dá tranqüilidade e
segurança. A presença da analista que testemunha e sustenta um campo na
distância necessitada (na medida certa e no tempo justo) permite que Eric transite
não apenas entre os dois momentos vividos por ele, mas também entre o espaço
dentro e fora do consultório. Note-se que até mesmo o trânsito no espaço físico
decorre da possibilidade do trânsito no espaço psíquico. Assim, Eric vai
aumentando a distância entre o que acontece aqui e agora na relação comigo e o
que tinha acontecido com ele em outro tempo e lugar. E o que é fundamental: ele
118
pode sair da sala e ir ao banheiro. Começa a desfrutar da liberdade da vida
instintiva.
Note-se que, nesse processo ele se torna narrador, isto é, ele se transforma
em testemunha do que viveu porque a analista sustenta o conteúdo e a
veracidade da sua narrativa, o que dá legitimidade à história. Tornar-se narrador
é ganhar distância em relação ao vivido, é poder ocupar o lugar de terceiro,
daquele que testemunha. Aos poucos, Eric vai podendo criar distância em
relação aos sentimentos, o que permite reconhecer, apropriar-se e descobrir
formas de lidar com eles. Pode representar seu medo por meio de desenhos e
falar sobre seus fantasmas. Isso constitui o próprio processo de simbolização.
A partir daí, seu corpo foi se apresentando cada vez mais. Ele passou a
apresentar certo maneirismo observado também na escola e em casa: ele
suspendia a calça e apertava muito o cinto. Quando falava dos medos e situações
de excitação corporal, geralmente ia ao banheiro, o que, aliás, é bastante comum
em crianças que estão começando a habitar o próprio corpo, a construir um dentro
e um fora corporal delimitado pela pele. Outras vezes, durante alguma
dramatização ele me olhava, parecendo assustado e dizia: "é faz de conta, viu;
não é de verdade!".
O brincar assusta devido à "inter-relação entre o que é subjetivo e o que é
objetivamente percebido" (WINNICOTT, 1975, p. 71). Isso porque até mesmo as
fronteiras entre a realidade pessoal, subjetiva (que abarca o eu e o não-eu) e o
mundo de realidade externa ou objetivamente percebido vão sendo criadas por
meio do brincar em estado de relaxamento quando o ambiente dá sustentação ao
processo.
Enquanto brincava, Eric ia dominando idéias, controlando impulsos,
entrando em contato com sentimentos e experienciando as fantasias que o
mantinham, até então, em estado de alerta. O potencial alucinatório vai sendo
enriquecido pelas experiências ocorridas no espaço de mutualidade enriquecida,
119
agora, por tantas informações de que dispunha. Assim, Eric vai habitando o
próprio corpo (personalização) por meio da elaboração imaginativa das funções
somáticas.
É tempo de começar o processo de desilusão. Eric já tem um lugar de
descanso (integração), habita o próprio corpo, portanto, tem um dentro e um fora.
Pode passar do estágio de dependência absoluta para o de dependência relativa,
com a ajuda do intelecto em evolução. O espaço potencial-herdeiro da ilusão que
começa a existir na época da separação permite caminhar em direção à criação
da externalidade do mundo, estabelecer ainda mais os limites entre realidade
subjetiva e externa com o uso da agressividade e, assim, caminhar em direção ao
reconhecimento da qualidade de permanência dos objetos, (base da aceitação da
lei própria que rege o funcionamento do universo objetivamente percebido).
Terceiro Momento – Descobrindo que o Mundo pode ser apetecível
Algumas sessões mais adiante, Eric novamente chegou bastante
desvitalizado e dormiu. Na sessão que se seguiu, outro movimento e tema
surgiram: ele não abriu a sua caixa e caminhou em direção ao armário onde havia
jogos. Parou e ficou certo tempo quieto, ora olhava para mim, ora para o armário.
No caso de Eric, talvez a sua questão fosse: podia ou não abrir o armário?
Será que haveria algo de interessante lá? Não me parecia que sua hesitação
fosse pelo medo de alterar a estabilidade do ambiente, isto é, por medo da reação
da analista. Considero que aqui a Função da Ignorância começou a operar, se a
entendemos como a possibilidade de se fazer perguntas e estudar o ambiente.
Eric parecia, ao mesmo tempo, curioso e cauteloso.
Na trilha de Winnicott, segui evitando qualquer interferência. Para Eric
tornar-se protagonista de sua história, é preciso que ele continue a dirigir a
experiência. Com a abertura do campo transicional, a indagação é: quanto Eric
quer e pode assimilar daquilo que está buscando?
120
Após algum tempo, lentamente abriu o armário e pegou um jogo – "Caça às
bruxas". Após chamar-me para sentar perto dele, espalhou as peças na mesa e
começou a criar um cenário por meio da narrativa. Disse que estávamos num
mundo onde as bruxas dominavam e como havia muitos perigos: cobras,
escorpiões, nós deveríamos ficar juntos, o tempo todo. Mostrou, então, o espaço
na própria cartela do jogo onde deveríamos permanecer. Só assim poderíamos
vencer as bruxas. Éramos um só, ameaçados pelo mal, que estava fora e era
representado pelos objetos. Cada vez mais eu fazia parte do seu mundo pessoal,
"diferente do início em que eu era parte do mundo repudiado e ele estava só".
A nossa tarefa era encontrar a chave da esperança que nos daria a
salvação. Após a encontrarmos, éramos perseguidos pela bruxa, esperta e
malvada que novamente a roubava de nós. Após novas lutas, conseguíamos
reavê-la novamente, através da astúcia e, assim, vencíamos as bruxas que iam
para a cadeia.
Já somos mais humanos estamos num mundo mais terreno. Apesar de
tantas desgraças, Eric pôde conceber uma outra modalidade de relação com a
realidade externa, pois há esperança e salvação. Assim, é possível usar a
inteligência e a astúcia para proteger-se até mesmo criando novas armas, para
além da espada e do escudo, no caso, a chave da esperança e, assim, proteger-
se das bruxas.
Seguiu-se um período em que Eric continuou a usar outros jogos de
forma semelhante à usada com o jogo "Caça às bruxas". Ele agora tinha
vitalidade, chegava parecendo muito alegre. Algumas sessões ocorridas mais
adiante, entusiasmado com uma situação que criou, jogou um monte de coisas
para cima, misturou tudo, gritou e subiu no sofá. De repente, parou quando algo
que havia jogado veio na minha direção. Olhou-me parecendo assustado, mas
não como da primeira vez quando a tampa da caixa de brinquedos caiu.
121
Note-se que na primeira sessão o susto foi provocado por algo do ambiente
externo, enquanto nesta, o susto vem, não com a mesma intensidade, de algo que
brota de dentro dele, isto é, do seu próprio gesto. Como os gestos do menino
foram desde muito cedo mal interpretados, parecia existir na cabeça de Eric uma
equivalência entre fazer, usar os objetos, isto é, entre exercer uma ação sobre
eles e destruí-los. Aqui ele vai entrando no estágio da preocupação pelos efeitos
dos seus gestos no mundo. Se os impulsos agressivos que permitem a inscrição
do gesto não se integram com os amorosos devido à ausência do olhar do outro, a
criança não pode criar uma imagem e ver a si mesma na relação com a realidade
externa.
Ou se uma intenção destrutiva é atribuída ao seu gesto, pode ocorrer uma
inibição da ação no mundo e da agressividade, o que impede o desenvolvimento
do processo de criação do self e da externalidade do mundo. Isso equivale a uma
mutilacão, pois leva, também, à inibição do desenvolvimento do potencial
conquistado até então. Quanto mais cedo isso acontecer, maior o dano. Não se
pode ser, nem fazer. O poder do olhar do outro é enorme. Basta lembrar o poder
de congelamento por meio do olhar representado pela figura da medusa.
Com Eric, a questão era: Como manter a continuidade do ambiente e o
campo de experiências compartilhadas evitando a re-atualização de situações de
desintegração? Para criar condições para Eric criar e estabelecer fronteiras entre
sua subjetividade nascente e a realidade externa, era preciso dar sustentação à
continuidade do espaço potencial.
Aguardei um pouco e, enquanto nos olhávamos, lentamente peguei uma
almofada, dizendo que agora eu tinha um escudo e podia me defender e lutar a
seu lado se fosse preciso. Isso pareceu acalmá-lo, pois voltou a brincar. No final
da sessão, ele quis ajudar a arrumar a sala. Diante da sua preocupação pelo
estado dos objetos, assinalei que tínhamos feito uma bagunça e não um estrago.
(Seu gesto foi aceito).
122
Note-se que a função de manejo, aliada à de testemunha, ajuda a manter a
estabilidade do ambiente e permite a entrada no estágio de preocupação pelo
dano feito ao objeto. Ser testemunha permite legitimar o processo perceptivo da
criança, enquanto exercer a função de manejo possibilita manter a continuidade
do ambiente e do campo de experiências evitando a ruptura do espaço potencial.
Concordo com Winnicott: a realidade põe freios à fantasia. Aqui novamente
apresenta-se a questão de estabelecer as fronteiras entre o eu e o não-eu,
colocada num outro patamar, pois se trata, agora de uma criação de si mesmo no
mundo dos objetos compartilhados (e não-subjetivos) que operam uma outra
transição diferente da anterior. Agora a questão não é mais como lidar com o outro
que não é eu. Aqui a tarefa é: Como lidar com o outro que tem uma existência
própria e diferente da imaginada? Dito de outra forma, é chegado o tempo de
caminhar em direção à criação da externalidade do mundo, quando o ser humano
se torna desejante e tem que dar conta dos efeitos dos próprios gestos sobre a
realidade externa.
Trata-se, agora, de um trabalho voltado para a criação das características
da realidade objetiva dos objetos e do olhar que Eric tem para si mesmo.
Poderíamos nos perguntar: Por que ele tem que viver para salvar o mundo?
Concordo com Winnicott, quando afirma que se a invasão é precoce, além de não
poder criar as fronteiras entre o eu e o não-eu e repudiar o fracasso do ambiente,
o indivíduo ainda se sente responsável pelo que acontece. Eric tinha sido
desautorizado também no seu processo perceptivo que permitiria a criação das
representações de si, do mundo e de si na relação com o mundo. O
reconhecimento que a analista faz de que os objetos estão inteiros, e não
quebrados, o tira do lugar daquele que tem que viver para consertar, o que
permite o diálogo entre a imaginação e a realidade compartilhada. Após
verificarmos que não havia danos irreparáveis, guardamos tudo.
No caso de uma criança invadida, quando o mundo se torna apetecível,
abrem-se o interesse e a curiosidade para conhecer como o outro funciona por
123
meio dos objetos que estão no campo de relação com ele. Percebe-se que aqui,
sim, estamos no campo do conhecimento, da aprendizagem informal e do
surgimento de uma outra dimensão: a desejante.
Usando, agora, Paín, reconheço que quando se abre o campo em que se
podem fazer indagações sobre a realidade externa, começa a operar a Função da
Ignorância.Note-se que quando Eric jogou coisas na minha direção, isso foi
transformado num jogo. O importante é que ele pôde usufruir uma experiência
com início, meio e fim em função da continuidade do ambiente.
Interessante o tema das sessões que se seguiram a essa. Estávamos no
mundo do inferno e éramos ladrões de bancos disfarçados de ajudantes e
policiais. Dávamos pistas falsas do esconderijo dos bandidos a alguns policiais
verdadeiros, que acabavam engolfados pela areia movediça enquanto outros
caíam num rio e eram comidos pelas piranhas.
Observe-se que o desenvolvimento de capacidade simbólica e de
movimento psíquico permitem que Eric ganhe distância e possa divertir-se,
brincando até mesmo de experimentar estar do lado do Mal sem se confundir com
ele. Aqui ele está no movimento do jogo tridimensional, o Bem permanece ao
longo do tempo, como pano de fundo, mesmo ele brincando (ampliando as
fronteiras) de estar do lado do Mal. O tempo e o espaço se constituem como
formas de sensibilidade a partir da experiência na relação com o outro.
Na sessão seguinte, ele me chamou para brincar: tínhamos que desligar
uma bomba que podia destruir o mundo todo. Era chegado o tempo de poder
acompanhá-lo no trânsito entre os absolutos positivo e negativo, tudo ou nada.
Logo em seguida, vieram as férias.
124
Quarto Momento: Regressão e Retraimento Na primeira sessão após as férias, ele estava novamente arredio,
desconfiado e brincando em estado de isolamento. Diferentemente da situação em
que há a regressão, no retraimento não há o reconhecimento e a aceitação da
dependência e a presença do outro geralmente é sentida como disruptiva.
Mantive a atitude de espera receptiva, aguardando que Eric novamente
conquistasse a confiança no ambiente e nos seus processos internos e ativos. Um
aspecto observado ao longo do processo de Eric reflete o que geralmente ocorre
no trabalho clínico feito a partir da perspectiva de Winnicott: aspectos do
verdadeiro self vão se expressando, são perdidos e novamente resgatados até
serem simbolizados. Concordo com Safra ao afirmar que o self não se constitui de
uma vez e nem de forma linear. Trata-se de um movimento contínuo de
transformação e vir a ser. Enquanto ele brincava em estado de isolamento, eu me
indagava: qual seria o cenário desta vez?
Nas sessões que se seguiram, Eric começou a trancar a porta e fechar
janelas e cortinas. Mais uma vez era necessário esperar para que uma
compreensão se fizesse a partir da experiência. Mais uma vez, o Homem-Aranha
retorna para travar uma luta entre o Bem e o Mal. Desta vez, o Mal estava mais
forte do que antes. Um pesquisador havia soltado o morcego da morte e o
Homem-Aranha logo foi parar no hospital.
As sessões se alternavam: ora ele brincava só, ora eu participava, mas
como sua extensão, isto é, na área dos fenômenos subjetivos. Até que ele isolou o
Deus das Trevas. Pudemos, então, conversar. Ele contou que, nas férias, tinha
estado no México e visitado um labirinto onde os astecas enterravam os mortos
que viravam, então, espíritos do mal. Passou tão mal lá dentro que até ficou com
enjôo, sendo ajudado por seu pai, que saiu com ele do labirinto. Pôde também
falar de várias outras situações que sentiu como muito ruins na viagem.
125
Note-se como as áreas da existência – as da realidade subjetiva e as da
realidade objetivamente percebida se misturam e como Eric desenvolveu a
capacidade de identificar o que sentia: medo e enjôo (personalização) e, de
alguma forma, expressá-lo podendo ser ajudado pelo pai. A experiência clinica
tem mostrado que não há mudança psíquica que não venha acompanhada de
mudanças corporais. Compreendi aquele seu movimento de fechar portas, janelas
e cortinas como necessidade de delimitar um espaço de intimidade e desenvolver
uma barreira de proteção às invasões ambientais. Neste lugar, seu mundo podia
ser compartilhado com a analista, os objetos podiam ser transformados e usados
a partir de um movimento pessoal.
Nessa época, uma reunião foi feita com ele e seus pais, a pedido da mãe.
Segundo ela, Eric lhe teria dito que talvez não conseguisse passar de ano, o que
não tinha respaldo na realidade. Isso permitiu que se falasse sobre seus medos,
sobre o incidente da viagem e sobre a confusão que ele, às vezes, fazia entre o
que estava na sua cabeça e o que estava fora dela. O pai o entendia bem,
enquanto a mãe não via com bons olhos o que ela achava ser exagerada
sensibilidade e fragilidade.
Na época, a escola estudava o encaminhamento de Eric para um
acompanhamento escolar, mas como o pai fazia as lições com o filho, julgou
melhor esperar mais um pouco. Era evidente a dificuldade, agora do pai, de incluir
um outro na vida do menino.
Outro movimento significativo ocorreu, algumas sessões adiante, sempre às
portas trancadas. Até então, era Eric quem determinava o quê e como eu devia
fazer este ou aquele personagem e, sempre, de maneira autoritária. Dessa vez,
porém, ele me disse para fazer o personagem que ele determinava, mas do jeito
que eu quisesse.
126
O cenário era o seguinte: estávamos na Grécia e éramos escravos da
Rainha Atena. Não podíamos dormir, comer ou descansar. Ficávamos o tempo
todo submetidos à sua cruel tirania. Ele sempre fazia o papel de um escravo
totalmente submisso e obediente. Eu comecei, então, a representar um escravo
rebelde que se defendia, sempre que possível, afirmando que até mesmo um
escravo tinha seus direitos. Ele fez, então, o papel da rainha, defendendo sua
posição tirânica, mas prestando muita atenção aos meus argumentos para contra
argumentar.
Percebe-se que aqui, sim, a função de apresentação de objeto pode ser
exercida, pois ele me autoriza a poder sair da sua área de controle onipotente.
Com a ampliação do campo transicional, amplia-se também o campo do
conhecimento e ele começa a poder se alimentar (aprender) de outro que é
“não-eu” e perceber que a analista existe com as suas próprias características.
Na dramatização seguinte, Eric propôs que fôssemos escravos que
construíam as pirâmides dos astecas. Foi ele que passou, então, a fazer o papel
de escravo rebelde, desenvolvendo argumentos próprios em defesa da liberdade
possível. Em determinado momento, cortou a brincadeira, pegou papel, caneta,
lápis, tesoura e fita adesiva. Disse que essas eram as "nossas armas". Desenhou,
então, dois tipos de pirâmides, explicando por que a dos astecas era diferente da
dos egípcios. Quando falou sobre a dos astecas, desenhou labirintos, campos
magnéticos, armadilhas, ciladas.
O mesmo movimento apresentado pelo menino no contexto terapêutico de
construir uma barreira de proteção frente às invasões do ambiente e começar a
defender a liberdade possível começou a ocorrer também em outras situações. Os
pais e a escola relataram episódios que mostravam que Eric expressava e
comunicava melhor suas necessidades, possibilidades e limites, o que permitia
que a realidade externa fosse se adaptando ao seu ritmo e necessidades.
127
Um exemplo disso foi como a escola deu retaguarda ao processo de Eric.
Como ele era um garoto bastante diferente, que chamava a atenção, alguns
cuidados foram dispensados. Por exemplo, não seria feita nenhuma intervenção
para socializá-lo e ele poderia estar sempre no mesmo grupo do colega com quem
parecia sentir-se mais seguro. À medida que foi ficando mais confiante, começou
a levar coisas que lhe eram significativas. Por exemplo, um dia foi vestido de
vaqueiro, noutro, levou coisas da cultura alemã e se pôs a contar sobre isso. A
escola extremamente habilidosa sempre dava um jeito de incluir suas propostas,
ainda que estranhas, dentro de alguma atividade, dando-lhe um espaço para falar
sobre elas, o que o fazia sentir-se bastante importante. Numa das vezes foi
vestido de tirolês e a escola usou esse episodio para iniciar um trabalho em que
cada aluno falaria sobre a cultura de seus ascendentes, num determinado dia da
semana.
Quinto Momento: O encontro nos estados excitados A partir da sessão seguinte, Eric já chegava num estado de excitação.
Assim que me via, já ia subindo as escadas. Como ele costumava chegar muito
antes do seu horário, geralmente, reclamava do que definia como "meus atrasos".
Assim que entrava na sala, desenvolvia uma espécie de ritual: trancava a porta,
fechava janelas e cortinas. Enquanto batia na mesa, dizia para eu pegar nossas
armas: papel, caneta, lápis, tesoura e fita adesiva. Depois graduava o abajur
chamando-o de "a luz de nosso sol" e aí uma cena podia acontecer. A graduação
do abajur marcava diferentes períodos. À noite, ele desligava o abajur e
dormíamos. Interessante o que dizia: "Agora é hora do lugar escurinho e gostoso.
É hora de descanso".
Em qual mundo estamos? Aqui os limites corporais se expandem até as
paredes. Há todo um movimento de transfiguração, em que os objetos do mundo
compartilhado são e não são eles mesmos, porque são transformados a partir da
forma singular imprimida pelo olhar e gesto de Eric. Estamos num mundo em que
o movimento é da ordem do paradoxo e da ambigüidade.
128
Quando uma cena ficava muito dramática e amedrontadora, ele dizia:
"Corta!!" Éramos, então, diretores de um filme, estávamos em Hollywood, a cena
podia, ao mesmo tempo, continuar se passando na África, no Egito, aqui ou em
Hollywood mesmo.
Outra seqüência de sessões mostra como para Eric o bom rapidamente
podia se transformar em algo ruim. Numa determinada sessão, ele era médico e
eu enfermeira. Após salvarmos 200 pessoas machucadas durante uma tragédia,
íamos para a sala de descanso. Mas não podíamos tomar café ou relaxar, porque
o telefone tocava, anunciando mais desgraças e nos chamando para o trabalho
que era ininterrupto.
Eric perde novamente o ponto de descanso que permite o estado de
relaxamento. Mostra o padrão de reações, desenvolvido para se defender das
exigências ambientais. Era época de provas na escola e ele de fato estava sendo
mais exigido.
Aos poucos, comecei a representar uma enfermeira que se cansava e
reclamava de tantas tragédias, através de verbalizações no próprio papel. Dizia,
então: "A gente nem pode descansar. Só vêm desgraças. Nem café se pode tomar
em paz. Só cuidar dos outros e trabalhar, trabalhar. Assim não dá para agüentar!".
Ele me olhava, então, longa e fixamente, mudando um pouco o ritmo e oferecendo
momentos de descanso.
Atente-se novamente para a função de apresentação de objetos e a sua
capacidade de colocar-se no lugar do outro e atender seu pedido.
Mais adiante, o mesmo tema voltou com outro colorido. Agora a tragédia
quase acontecia, porém podíamos obter êxito. Éramos cozinheiros. Ganhávamos,
então, o concurso e éramos eleitos os melhores cozinheiros do mundo. Mas
tínhamos que cozinhar para um general que visitava o Brasil. Se ele não gostasse
129
da nossa comida, seríamos guilhotinados. Não tinha jeito. Havia sempre uma
nuvem negra, pois a desgraça sempre pairava no ar. Creio que ele mostrava como
seu espaço psíquico tinha sido organizado em torno da exigência, da doença e de
como se sentia machucado.
As sessões começaram a ter outras variações. Eric, às vezes, pegava
alguns jogos e usava-os de maneira singular. Inventava jogos e regras com leis
próprias ditadas pela dimensão desejante, subjetiva, mas considerando também
dados das leis próprias dos objetos externos. Por exemplo: 6 bichos concorriam
para ser presidente e mandar nos outros. Após a nossa votação, o jacaré
ganhava, mas não podia assumir porque não era um animal da África, país onde a
eleição acontecia. Ganhava o elefante, segundo classificado, porque era da África.
Depois, ganhava o tigre porque era da Ásia, etc.
Aqui ele fazia uso de informações e conhecimentos objetivos sobre países
e capitais associadas à origem dos animais, para fazer ganhar os animais de que
mais gostava. Entretanto, desenvolvia argumentos e estabelecia relações a partir
das leis do mundo da realidade objetiva compartilhada. Numa determinada sessão
mais adiante, éramos cientistas investigadores no Mundo Perdido. Depois me
contou que havia assistido ao filme: "O mundo perdido".
Suas fantasias giravam em torno do filme, a partir de um colorido pessoal.
Tínhamos armas antivelociraptor e antitiranossaurus, por isso podíamos
descansar, tomar cafezinhos, enquanto discutíamos sobre nossas possibilidades
de defesa num mundo tão perigoso. Ele apagava o abajur para simular que era
noite e o acendia para anunciar o dia. Ele construiu com objetos de montar de
plástico, uma forma de cruz e disse que era a imagem, o símbolo de Cristo que
tinha poder e nos protegia, enquanto a empunhava.
O pensamento desenvolve-se aliado ao brincar criativo e permite ir criando
uma ponte entre o mundo pessoal e a realidade externa. A mente é produto da
130
integração psique-soma e ajuda a passar da relação de objetos para a de uso dos
objetos.
Disse, então, que não precisávamos mais nos preocupar porque o Deus da
magia, da água, do fogo, do ar e da terra era nosso aliado. Em seguida, fez um
desenho de dois dinossauros, um grande, outro pequeno, falando das diferenças
entre eles. Depois, enquanto montava uma outra cena em Nova York, transformou
a forma que havia construído e usado para representar o Deus da magia, dando-
lhe agora uma outra forma e função: era um arma antitiranossaurus.
Pode-se destruir o objeto-símbolo que perde seu significado porque os
fenômenos transicionais se esparramam pelo território intermediário entre a
realidade psíquica interna e o mundo externo. O mesmo material permite a
construção da cruz, como símbolo de proteção, descanso e contato com o
Absoluto e da arma, símbolo da defesa que permite afastar o outro que ameaça.
Sexto Momento: O Conhecimento e o desenvolvimento da lógica
Na sessão antes das férias, Eric constituiu um tribunal para julgar um aluno
que tinha tirado conceito B, em Português no 1º semestre e C, no 2º, algo que
tinha acontecido com ele e sido considerado pelos pais como um retrocesso
imperdoável. Ele representava o juiz e eu, as diferentes testemunhas: os pais e
suas críticas, os colegas e sua compreensão, a professora e suas ponderações.
Para responder às suas perguntas, fazia uso das informações dadas por ele na
sessão anterior. Quando estava no papel da professora remeti-me às dificuldades
anteriores dos pais em ajudar o aluno, colocando-o em escolas inadequadas e
invadindo o seu ritmo. Em seguida, no papel de colega, falei de como ele estava
mudado: estava mais comunicativo e companheiro.
Após depoimentos de várias testemunhas, ele chegou a uma interessante
decisão: o aluno foi absolvido e os pais considerados culpados. A mãe foi
perdoada e o pai condenado a 100 anos de prisão, já que sem a presença de um
131
pai, disse ele, uma mãe não poderia sozinha, mesmo com a ajuda dos avós, dar
conta da educação de um filho.
Note-se que por meio do seu brincar, Eric expressa o desejo de saber mais
sobre si mesmo e de como os outros o vêem por meio do espelho do olhar da
analista. Pode, assim, reconhecer a si mesmo como um objeto objetivo bem como
as características dos pais dentro de um mundo compartilhado. Fez sentido, para
mim, afirmação de Milner (1991) de que "o objeto transicional é o símbolo de uma
jornada. Parece mesmo ser uma jornada de ida e volta; ambas voltadas para a
descoberta da realidade objetiva do objeto e para a descoberta da realidade
objetiva do sujeito – o eu sou". (p. 248).
Observe-se, também, que é como se Eric fosse recriando as concepções
teóricas de tantos autores e, particularmente, de Winnicott, sobre a importância da
presença de um casal e da presença do pai no sentido de manter a
indestrutibilidade do ambiente. Esta seria condição para a mãe exercer as funções
no atendimento das primeiras necessidades de seu filho. Cada vez mais, o garoto
distancia-se de uma situação podendo apropriar-se da sua experiência por meio
de um pensamento reflexivo.
Na mesma sessão, ainda, desenhou dois ETs, um grande e outro pequeno
assinalando não as semelhanças, mas as diferenças entre eles. Depois, passou a
falar de experiências que havia feito no sítio com o pai. Contou que jogou sal
numa lesma e ela derreteu. No final de semana que se seguiria, pretendia jogar
açúcar, acrescentando que tinha certeza que ela iria endurecer. Não apenas
respondeu às minhas indagações sobre suas certezas, mas refletiu sobre várias
questões relacionadas ao tema, trazendo, inclusive, situações discutidas em sala
de aula. No final, reconheceu que talvez os cientistas tivessem certeza do que
poderia acontecer com a lesma, pois já deviam ter feito essa experiência, mas ele
precisaria ainda testar sua hipótese, aliás, firmemente ancorada num raciocínio
lógico do mundo objetivo: se o sal derretia a lesma e era o contrário do açúcar,
132
este também deveria causar o efeito oposto. Trouxe outras situações em que
podia refletir sobre o efeito de dois elementos diferentes e complementares sobre
um terceiro e mesmo elemento.
Note-se que o prazer da aprendizagem podia circular. A base do
desenvolvimento da atitude científica relaciona-se à possibilidade que vemos
surgir em Eric de que a Função da ignorância comece a operar. Na época, ele
estava na 3º série e pediu para iniciar o acompanhamento das tarefas escolares já
proposto pela escola com o objetivo de ajudá-lo a organizar-se e ampliar sua
capacidade de expressão oral e escrita. O reconhecimento e a aceitação de suas
próprias características pessoais coincidia com o aumento da sua capacidade de
reconhecer a existência e a qualidade de permanência dos objetos externos.
Veja-se, também, que o estabelecimento da tridimensionalidade, o início
das questões triangulares edípicas coincidiu com o desenvolvimento do
pensamento criativo e com a capacidade de observação da experiência num
mundo de realidade compartilhada. Podia usar o pai no que ele tinha de melhor e
fazer experiências cientificas com ele. Winnicott (1956) aponta que a possibilidade
de que a criança possa usufruir e experimentar a vida instintiva e pulsional num
ambiente seguro e indestrutível, faz parte da função paterna. Aponta, também,
que o pai representa o primeiro terceiro que entra na vida do filho, sendo um ser
absolutamente diferente e com autonomia, o que vai permitir que a criança se
perceba como um ser integrado e também autônomo, acentuando, ainda mais o
distanciamento da mãe. (WINNICOTT, 1969)
Dispositivos usados no atendimento de Eric
A atitude de espera receptiva basicamente ancorada na função de
testemunha, que permitiu o encontro e a criação do vínculo de confiança no
momento do diagnóstico, continuou a dar sustentação ao campo de experiências.
O Homem-Aranha, objeto-símbolo com que Eric se relacionava na área dos
fenômenos subjetivos, apresentava a ausência da presença de um outro, ou
133
melhor, a história de uma relação não-humana. O campo de comunicação significativa abriu-se por meio desse objeto que ao ser humanizado, permitiu o
caminhar do menino em direção ao jogo tridimensional. Assim Eric foi podendo
usufruir experiências necessárias para estabelecer um outro tipo de relação com o
mundo de realidade externa.
Observe-se, também, a importância da noção de fracassos reparados. Foi
quando a analista saiu fora da área de onipotência de Eric que ele pôde repudiá-
la, usando a boca para restabelecer a comunicação significativa. No terceiro
momento, quando Eric dirigiu-se ao armário, surgiu a hesitação relacionada à
curiosidade em saber se o mundo podia ser apetecível, ou seja, se podia existir
alguma coisa boa para ser experimentada, conhecida.
Quando Eric abriu o armário e pegou o jogo "Caça às bruxas" continuou a
trabalhar as suas questões fundamentais: Como se defender diante de um mundo
estranho e ameaçador? O jogo foi usado na área dos fenômenos subjetivos
continuando a expressar aquilo que era objeto de seu interesse: a eterna luta
entre o Bem e o Mal, ajudado agora pela sua astúcia (sic) podendo, assim,
proteger-se e caçar as bruxas.
NO artigo A observação de bebês numa situação estabelecida
(WINNICOTT, 1941) são descritos os três momentos em que um bebê entre cinco
a treze meses pode se relacionar com um objeto – a espátula – e usá-lo. Num
primeiro momento, o bebê é atraído pela espátula e começa a salivar (experiência
psicossomática, visceral). Ele tem uma questão: pode ou não pegar a espátula?
Encontra-se em conflito. Num segundo, toma posse e usa a espátula na área do
faz de conta: brinca de alimentar a mãe como se a espátula fosse uma colher. E,
num terceiro momento, o bebê passa a jogar a espátula no chão e desfruta do ato
de se livrar dela. Se a espátula lhe é devolvida, ele novamente a joga no chão até
se desinteressar por ela. Pode, então, voltar-se para outros objetos. Trata-se de
uma experiência com início, meio e fim que enriquece o self, pois decorre de uma
134
escolha e de um gesto espontâneo e é acompanhada do sentimento de autoria e
realização pessoal.
Na minha experiência tenho feito uso desse modelo que opera como um
dispositivo e permite investigar em que área da existência o paciente transita e
habita: a dos fenômenos subjetivos, a dos fenômenos culturais (transicionais) ou a
da realidade objetivamente percebida.
No caso de Eric, à medida que se abriu o campo de relações entre ele e o
mundo de realidade compartilhada, o manejo e a noção de apresentação de
objetos tornaram-se importantes, permitindo também incluir e ajudar a organizar a
retaguarda do ambiente familiar e escolar.
O mesmo movimento apresentado pelo menino no contexto terapêutico de
construir uma barreira de proteção frente às invasões do ambiente e começar a
defender a liberdade possível começou a ocorrer também em outras situações.
Tanto os pais quanto a escola relataram episódios em que ele comunicava suas
necessidades, possibilidades e limites, o que permitiu que a realidade externa
fosse se adaptando ao seu ritmo e necessidades.
Winnicott (1975) afirma:
É no brincar, e talvez apenas no brincar que a criança ou o
adulto fruem sua liberdade de criação (...). Se o terapeuta
não pode brincar, então ele não se adequa ao trabalho. Se é
o paciente que não pode, então algo precisa ser feito para
ajudá-lo a se tornar capaz de brincar, após o que a
psicoterapia pode começar. (p. 79-0)
Algumas Considerações Reconhecer a importância de investigar a constituição e o desenvolvimento
do campo onde a comunicação significativa acontece levou-me a considerá-la
135
como a primeira necessidade psíquica do ser humano e a incluir, cada vez mais e
de diferentes formas, os pais nos processos terapêuticos dos filhos. Na minha
experiência com Eric reconheci a importância de aprender a respeitar o tempo, o
que significou fazer uso da própria noção de Função da Ignorância como ethos,
como lugar que permitiu acolher e suportar o meu próprio não saber.
Vale lembrar que as necessidades do paciente e da família variam muito
de caso para caso e em diferentes momentos do processo. No primeiro ano de
atendimento de Eric, houve vários encontros com os pais, deles juntamente com
Eric e, também, com algum dos pais separadamente. Acompanhar e conversar
com os pais sem criticá-los, permitiu abrir um campo de comunicação significativa.
Dar retaguarda aos pais é torná-los um multiplicador para que eles possam fazer o
mesmo com seus filhos.
Assim como muitos outros pais, os de Eric puderam falar dos sentimentos
que acompanharam a chegada e o começo de vida do garoto, os quais variavam
entre culpa, vergonha, medo, susto por ter uma criança tão diferente e distante da
esperada. Tenho ressaltado42 a importância da função de re-apresentação da criança aos seus pais, como sendo de fundamental importância no atendimento
de crianças com inibição.
A capacidade de trânsito no movimento que caracteriza o jogo
tridimensional permitiu que a analista pudesse identificar-se com Eric e seus pais
e, ao mesmo tempo, diferenciar-se deles exercendo as funções necessitadas e
facilitando, assim, a comunicação significativa entre eles.
A finalização do atendimento: transformação do self e da realidade
compartilhada
Na terceira série a escola encaminhou Eric para um trabalho
psicopedagógico. Acompanhei o menino até a 7º série quando ele resolveu “dar
42 PARENTE, 2000, 2003.
136
um tempo” e interromper o seu processo terapêutico, porque se sentia preparado
para andar sozinho. Continuei a ter notícias dele por intermédio de seus pais e de
sua psicopedagoga.
Depois de três anos, cursando já o primeiro ano do ensino médio, a mãe de
Eric telefonou-me pois ele havia pedido para conversar comigo. Deparei com um
rapagão. Contou que tinha superado o Homem-Aranha, pois havia se tornado um
herói. Explicou-se: havia dentro dele, agora, um Eric mais forte que administrava
todos os outros lados que habitavam dentro dele, inclusive, o que poderia ficar sob
o domínio do Mal porque queria o poder. "O poder é corruptor, como o anel",
disse-me ele, referindo-se ao livro O Senhor dos Anéis, que vinha lendo
apaixonadamente. "Quanto maior o poder, maior a responsabilidade. O herói é
quem usa o poder com responsabilidade, ao contrário do vilão". Ele poderia se
tornar um ou outro. Contou ter conquistado, também, o poder das palavras, o
controle e domínio de si mesmo, inclusive do seu lado animal que sob o domínio
do Mal, isto é, quando descontrolado e dominado pela raiva poderia até matar
alguém, contando alguns episódios desta natureza.
Após várias reflexões sobre o desejo do ser humano de ser bom e de que
só existisse o Bem, reconheceu a necessidade de controlar e alcançar o equilíbrio
entre eles, já que o Bem não existiria sem o Mal, assim como a luz não existiria
sem a sombra. Disse-me de seu apreço pela questão do livre arbítrio, do seu
desapego pelas coisas materiais, de suas conversas com o professor de filosofia,
assim como das leituras que costumava fazer, inclusive da Bíblia. Falou de sua fé
e como vinha aprendendo que o homem tem tempo para tudo: dormir, acordar,
passear e, até, para viver bem e, também, para morrer. Aos poucos, fui
compreendendo o motivo de sua volta naquele momento, quando comentou que
queria estudar numa outra cidade e sabia do embate que teria que travar com
seus pais. Era claro para ele que seus horizontes pessoais, profissionais e
econômicos eram organizados em torno de valores diferentes. Mas como tinha
controle sobre suas emoções e tinha adquirido a coragem porque conhecia os
137
seus medos, achava que teria condições de adaptar-se e transformar as
situações.
Contou que a característica que mais admirava nos seres humanos que se
transformavam em heróis, porque cumpriam sua missão na vida, era a criação e a
habilidade de tirar o véu da cegueira. Falou sobre as defesas que vinha
desenvolvendo para poder ser ele mesmo e sobre o combate de vontades que
travava com os pais e com os avós maternos para ser respeitado. Aprendeu o
poder da esquiva: faz de conta que concorda que vai fazer o que os pais querem
que ele faça, finge ser seu aliado até que eles possam entender e aceitar o que
ele quer. Tem uma vida boa, mas preza o desapego porque quanto mais a pessoa
precisa de coisas materiais para ser feliz, mais insatisfeita é. Pensa que, se
encontrar uma mulher que o ame e tiver um filho, vai ensinar-lhe que o bem maior
do ser humano é o livre arbítrio. Contou que, uma vez, a mãe se arrependeu de ter
ameaçado tirar seu computador e outros bens materiais para castigá-lo, ao ver
sua tranqüilidade e perceber que isso não o abalava.
Aliás, na conversa que tive com os pais constatei a sua gratidão pelo
trabalho realizado com o filho e o quanto tinham aprendido a admirar o seu jeito
diferente, mas interessante de ser.
Vemos ai, belamente ilustrada, a introjeção da função transicional do campo
intersubjetivo desenvolvido no espaço analítico espalhando-se por diferentes
áreas do cotidiano de Eric. Não só o menino transformou-se a partir do diálogo e
troca com a realidade, mas provocou a transformação da realidade compartilhada
(ambiente familiar, escolar e analítico).
138
Estação 7. Transformações do Olhar
“Se não houvesse o ponto, o ponto em repouso
não haveria nenhuma dança. E só há dança”. T.S. Elliot
Nesta estação, retomo o problema apresentado na Baldeação e que é a
mola propulsora deste trabalho: como conceitos provenientes de duas teorias
consideradas epistemologicamente distintas puderam ser articulados na prática
clínica? Qual a herança de Paín e Winnicott no desenvolvimento do meu
pensamento e no trabalho clínico que desenvolvo atualmente com crianças com
inibição?
Pretendo dar visibilidade ao ethos que organiza a concepção de Paín sobre
as relações entre o ser humano e o mundo de realidade externa e sobre o papel
da aprendizagem e do conhecimento, buscando marcar diferenças entre a sua
contribuição e as transformações que fiz em alguns dos seus conceitos,
especialmente no de Função da Ignorância, a partir do atendimento de Carol, já
sob a influência do de Winnicott.
Buscando apresentar não só uma concepção de conjunto do meu percurso,
mas também uma compreensão sobre ele, é preciso, agora, examinar como essas
teorias permitiram a construção de dispositivos clínicos43. Considerando que Paín
opera a partir de um modelo intra-psíquico e Winnicott de um campo
intersubjetivo, é preciso examinar como um e outro concebem a participação do
ambiente e do fator maturacional no desenvolvimento do ser humano. E, também,
como esses autores concebem as relações entre a criança e a realidade externa.
Procurarei salientar, aqui, muito mais as diferenças entre eles, já que o
43 Uso o termo dispositivo, neste contexto, para referir-me às funções exercidas pela analista buscando oferecer condições de a criança usufruir situações que permitam o desenvolvimento do seu potencial ativo e criativo.
139
aprofundamento e as aproximações entre eles foram realizados em trabalhos
anteriores44.
Sobre os Fundamentos de Paín e Winnicott - Marcando diferenças Concordo que “(...) em nenhum campo cultural é possível ser original,
exceto numa base de tradição“ (WINNICOTT, 1967b, p.138). Assim, é preciso
considerar o percurso, o contexto histórico e o cenário cultural em que cada um
desses autores desenvolveu o seu pensamento para explicitar como pude articulá-
los e usá-los na experiência clínica.
Paín, filósofa e psicopedagoga argentina, mora em Paris desde 1977.
Profunda conhecedora da Epistemologia Genética de Piaget interessou-se
inicialmente pelo desenvolvimento das estruturas de pensamento voltadas para a
construção do conhecimento. Faço, a seguir, um resumo do que escrevi em Pelos
Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, para marcar algumas diferenças
entre o seu pensamento e o uso que fiz dele. Para tornar mais preciso, é preciso
dizer que após realizar um levantamento dos livros de Paín, recortando os temas-
objeto de suas pesquisas, classifiquei-os em três eixos dominantes, encontrando,
assim, o que é, para mim, a linha de continuidade do seu pensamento: a questão
do par conhecimento-ignorância.
No primeiro eixo, temos a Paín piagetiana, com quatro livros publicados e
voltados para a construção do conhecimento. No segundo, temos a Paín
psicopedagoga e filósofa, diretamente interessada no par conhecimento-
ignorância, com dois livros publicados. E, no terceiro, temos a Paín-
psicopedagoga – arte terapeuta, investigando a ressonância da ignorância no
corpo e interessada nas relações entre a cognição e a atividade artística, com um
livro publicado. Isso sem contar com os inúmeros artigos e seminários publicados
em cada um desses eixos.
44 Parente, 1995, 1996, 2000 e 2003.
140
Em Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, focalizei o segundo
eixo do pensamento de Pain, movida por dois objetivos. Por um lado, pretendia
introduzir o leitor-estudante no pensamento da filósofa e psicopedagoga franco-
argentina, buscando a linha de continuidade entre seus dois livros publicados
nesse período: Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem e A
Função da Ignorância. Buscava, também, apresentar o meu pensamento
desenvolvido a partir do dela, explicitando a forma como pude apreendê-lo e usá-
lo para estabelecer um diálogo entre o atendimento de Carol– o Bebê
Moranguinho, que tinha um quadro de inibição cognitiva e de Olga, a menina que
não podia ser fração, cujo diagnóstico era problema de aprendizagem como
sintoma.
Neste trabalho continuo a focalizar o segundo eixo do pensamento de Paín,
época em que ela estava reescrevendo a Função da Ignorância45 e passou a ser
minha orientadora-supervisora, o que reforçou ainda mais o meu distanciamento
do pensamento de Luzuriaga. Como vimos na Estação 2, na viagem de ida, Paín
não concordava com a concepção presente na tradição kleiniana sobre o
predomínio da pulsão de morte no funcionamento mental, nem com a noção de
sadismo primário, já que, para ela, o bebê é um pesquisador. Gostaria de
reafirmar que me refiro a um tipo de “kleinismo” que dominou alguns lugares da
Argentina e de São Paulo, especialmente, nas décadas de 1970 e 1980, muito
diferente das contribuições atuais ligadas à tradição kleiniana.
À medida que Paín atende crianças com potencial intelectual preservado,
porém, sem a disponibilidade para usá-lo, vai reconhecendo a participação da
dimensão dramática, subjetivante no pensamento do sujeito que aprende e
voltando-se para a busca de um referencial na Psicanálise que permitisse
compreender a articulação entre o potencial intelectual afetado e a dramática
inconsciente na qual a criança estava enredada.
45 Em Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento, cap. 3, aprofundo o contexto histórico e o cenário cultural em que Paín desenvolveu seu pensamento.
141
Em seu primeiro livro desse período, defende a especificidade do campo
psicopedagógico, operacionaliza um modelo de diagnóstico e tratamento e
introduz a teoria psicanalítica na análise do problema de aprendizagem
considerado por ela como um sintoma. Apresenta uma teoria da técnica que
abarca o enquadre, o diagnóstico, a orientação terapêutica, o tratamento,
objetivos, técnicas e a direção da intervenção na clínica.
Na mesma esteira de Freud, Paín desenvolve seus pressupostos a partir da
noção de desejo, falta e frustração, buscando construir um modelo de
funcionamento do aparelho mental ancorado na dimensão pulsional, incluindo,
também, o funcionamento da dimensão cognitiva. Na mesma tradição de Freud,
reconhece que: "foi preciso escolher entre a pulsão e a civilização, e a civilização
venceu. Através da educação a civilização pretende manter a pulsão em seus
trilhos, e aproveitar sua energia em obras culturais". (PAÍN, 1985, p. 18)
Salienta o aspecto de reprodução da aprendizagem que torna o outro
semelhante. Aprendemos para fazer parte da cultura a que pertencemos. É assim
que ocorre a transformação do filhote biológico em ser de cultura. Por isso, a
aprendizagem está muito mais ligada ao instinto de reprodução – porque produz
um outro semelhante – do que à função de adaptação. Diferentemente dos
animais – que trazem inscritos na sua bagagem genética aquilo que precisam para
sobreviver – o ser humano não nasce com conteúdos inscritos geneticamente.
Para ele, tudo deverá ser aprendido na relação com um outro que transmite os
modos de ser e os valores do grupo social e da cultura a que pertence.
A curiosidade intelectual não decorre da curiosidade sexual relacionada à
cena primária: "Não é que haja um prazer de aprender porque o aprender esteja
significando a sexualidade propriamente dita e, sim, porque há um prazer próprio
da função, assim como há o prazer de respirar" (PAÍN, 1999)46. Entretanto, essa
46 Uma conversa com Sara Paín. Boletim Associação Brasileira de Psicopedagogia, São Paulo, julho 99, número 17.
142
função pode ser perdida ou pervertida no triângulo edípico, mantendo assim o
sujeito num lugar por onde o prazer da aprendizagem não pode circular e, desta
forma, resistente a entrar no princípio da realidade.
Reconhece a importância de proceder a uma investigação para verificar
qual estrutura possibilita a disfunção da inteligência e como ela ocorre. O seu
modelo de diagnóstico envolve o uso de testes e técnicas específicos da formação
e do campo de atuação do psicólogo, no Brasil. Propõe, também, uma
classificação, desenvolvida à luz das contribuições de Freud (1925) em Inibição,
Sintoma e Angústia, que permite fazer o diagnóstico diferencial do problema de
aprendizagem. Enquanto o termo inibição relaciona-se ao aspecto de diminuição
da função cognitiva, o termo sintoma refere-se à transformação desta função. Em
A Função da Ignorância assinalará que nos momentos em que a estrutura
objetivante cai nas garras da subjetivante, o objeto de conhecimento é convertido
em objeto de pulsão e o sujeito fica aprisionado na rede do desejo47.
Assinala que o trabalho psicopedagogico é operativo, situacional, devendo
constituir-se numa realização para o sujeito. Assim, o tratamento é desenvolvido
em torno de uma proposta, exclusivamente a partir do que ocorre na sessão. Ao
salientar a importância dos enquadramentos reais, assinala:“O aspecto
fundamental não recai sobre a relação transferencial que o psicopedagogo deve
sempre levar em consideração, ainda que não a explicite, a não ser que perturbe a
tarefa e que esteja tão evidente que precise apenas de uma confirmação verbal
para ser assumida”. (PAÍN, 1985, p. 78).
O objetivo do tratamento, como já foi dito, seria o resgate do prazer da
aprendizagem, devido à mudança da criança para uma posição na qual o prazer
da aprendizagem possa circular. Note-se que, de alguma forma, o aspecto de
urgência é contemplado, sem deixar de lado o respeito aos processos de
47 Ver cap. 7 A menina que não podia ser fração - O problema de aprendizagem como sintoma. In Pelos caminhos da Ignorância e do Conhecimento.
143
subjetivação da criança. E tudo para que ela descubra o prazer e a autonomia do
exercício da função do conhecimento. A ignorância, órgão fundamental do
inconsciente e a dimensão subjetivante do pensamento da criança são o foco para
Paín, enquanto possibilidade de “levar“ o sujeito para o conhecimento.
Na esteira de Freud, reconhece que a fantasia permite lidar com a
frustração e que resignação e integração são duas caras do mesmo processo de
realização. O sujeito pode resignar-se quando compreende e sistematiza, “mas
necessita certa resignação, certa conformidade com a realidade para despedir-se
dos prazeres da fantasia” (PAÍN,1985, p. 81).
A partir dessas noções, recomenda, durante o tratamento, uma atitude mais
ativa e diretiva por parte do terapeuta, o que, como vimos durante o atendimento
de Carol, levou-me a contrapor essa atitude com outra, inspirada em Winnicott, já
que a menina parecia necessitar de alguém que a acompanhasse exercendo a
função de testemunha. A partir daí, foi se operando o meu distanciamento da
atitude clínica preconizada por Paín e uma apropriação singular dos seus
conceitos48, especialmente o de Função da Ignorância, à medida que me
aproximava da contribuição de Winnicott, o que levou a muitas outras
transformações, como veremos, ao longo desta Estação.
Em A Função da Ignorância (1987, 1989, 1999), Paín afasta-se da clínica e
elabora uma teoria unitária do pensamento concreto, ou seja, uma teoria das
relações entre a dimensão do pensamento do sujeito capaz de objetividade e a
dimensão do pensamento do sujeito capaz de significar a ignorância.
É preciso salientar que diferentemente do que alguns acreditam, Paín
(1987) não pretende conciliar, juntar ou mesclar Freud e Piaget e, sim, articulá-los,
na construção de uma teoria que dê conta do campo dos problemas de
aprendizagem. De certo modo, sigo na sua esteira e apresento, aqui, o mesmo
48 Ver especialmente Cap. 3, 4 e 5. In Pelos caminhos da Ignorância e do Conhecimento.
144
que fiz em relação ao uso de sua contribuição e da de Winnicott com uma
preocupação essencialmente voltada para a clínica da inibição intelectual, tema
que não foi diretamente o foco da preocupação de nenhum deles.
É preciso salientar, também, que temos em Paín uma teoria do pensamento
e da aprendizagem. Para ela, o pensamento é o equivalente funcional do instinto
no ser humano e a aprendizagem, lugar de articulação entre a estrutura
subjetivante e a objetivante. Trata-se de um livro eminentemente teórico,
reaproximando a autora da Filosofia. É ela quem afirma na contracapa da edição
francesa da Função da Ignorância (1989/99): "(...)foi no contato com os problemas
concretos da prática pedagógica e da clínica dos problemas de aprendizagem
que a questão fundamental da epistemologia - como o conhecimento é possível?-
apresentou-se na forma de sua inversão dialética: Como é possível a ignorância?”
Mais adiante veremos que essa preocupação direciona-se, também, para o
aprofundamento nas relações entre o corpo e o pensamento, pois a ignorância se
dá no corpo. Este será o tema do que chamei de terceiro eixo do seu percurso.
Para explicitar a concepção de Paín sobre as relações entre o ser humano
e o mundo de realidade objetiva, retomemos Freud, já que o pensamento de Paín
desenvolve-se na mesma perspectiva. Para ele, a primeira situação de
atendimento a uma necessidade – amamentação – levaria ao surgimento do
desejo, definido como a busca alucinatória da repetição dessa primeira situação
de satisfação. Assim, o desejo seria investido no objeto. Esse é o paradigma do
funcionamento de toda a vida pulsional do ser humano para Freud e, também,
para Paín.
Concordo com Safra49 quando assinala que, para Freud, o psiquismo se
organiza a partir do desejo investido no objeto. Assim, a ênfase é colocada na
relação do sujeito com a realidade e do manejo que ele faz dela em termos de
49 Faço, aqui, um uso livre das anotações feitas durante supervisões e cursos de Gilberto Safra no Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica – PUC/SP, 2002 -2003.
145
satisfação ou frustração do desejo. Ao assinalar o aspecto da realidade, enfatiza-
se também – o que não é pouco – uma concepção na qual o indivíduo necessita
se adaptar à realidade, apesar da frustração, já que disso depende a sua
sobrevivência. Nessa perspectiva, a busca do conhecimento da realidade seria
resultado da frustração. Trata-se, assim, de uma relação à qual o ser humano tem
que se submeter para poder sobreviver. Essa concepção presente em Paín é
muito diferente da de Winnicott que, como vimos nas Estações 3 e 4, favoreceu
compreender e acompanhar os movimentos e a comunicação não-verbal de Carol.
Se Paín, como Freud, desenvolve seus pressupostos a partir da noção de
desejo e falta, buscando construir um modelo de funcionamento do aparelho
mental abarcando, também, a dimensão cognitiva, a preocupação de Winnicott é
outra, já que ele opera um deslocamento da ênfase colocada na noção de objeto e
de representação para a de campo, paradoxo e ilusão.
A partir do encontro com Winnicott uma nova indagação se impôs: seria o
ser humano para sempre alienado no desejo do outro ou isso aconteceria devido a
uma falha do ambiente no atendimento do que estou chamando, inspirada em
Winnicott (1958, 1963-a, 1975) de primeira necessidade pois a integração
depende dela: a de ser visto e reconhecido o que permitiria a criação da
comunicação significativa que se dá por meio da troca de olhares ou experiências
na mutualidade.
No atendimento de Carol vimos que o distanciamento de Paín se deu em
relação a função de testemunha. Quando ela refere-se ao olhar, está
considerando a questão da legitimidade do bebê no desejo dos pais, segundo uma
concepção de um sujeito para sempre alienado no desejo do outro. Assim, o ato
projetivo é inerente a todo e qualquer ato de construção do mundo, incluindo-se
aqui também a construção do conhecimento. Isso significa que ela funda as bases
do seu conceito de Função da Ignorância no mecanismo da projeção.
146
Já para Winnicott, os mecanismos de projeção não podem ser
considerados antes de existir uma separação entre o eu e o não-eu. Mesmo
quando essa separação começa a ocorrer, a primeira idéia é a da união e não a
da separação. Assim, a meu ver a ignorância seria condição para a ilusão. A
primeira ignorância seria a da consciência do estado de desamparo e impotência
com que se nasce. E isso devido à disponibilidade genuína da mãe desenvolvida
durante a gestação que permite estar no movimento que caracteriza o jogo
tridimensional e ver o bebê como ele é, isto é, como um objeto externo,
reconhecendo, assim, seu estilo e singularidade e, ao mesmo tempo, podendo
identificar-se com ele, alimentando a sua onipotência.
Para Paín, a aprendizagem supõe um ato de renúncia e é possível devido à
capacidade de resignação e ressignificação. Teríamos aí a noção da modificação
do princípio do prazer em princípio da realidade. Ela usa a experiência clínica para
construir uma técnica e uma teoria e opera no modo de pensamento racionalista,
característico do iluminismo. Trata-se de uma concepção de homem e de mundo
que envolve noções de aparelho e funcionamento mental.
Já Winnicott opera no modo de pensamento que admite a noção de
paradoxo e ambigüidade. Corta com a tradição do pensamento cartesiano que
supõe a separação entre a subjetividade e a objetividade. Não acredita na
neutralidade do observador, garantida pelo setting e pela abstinência do analista,
mito da ciência natural, no final do século XIX e começo do XX. Ele passeia pelas
teorias, usando-as como quem rabisca, tendo a experiência clínica e a dimensão
ética e estética, sempre no horizonte, privilegiando a experiência, a relação com o
outro. Trata-se de uma teoria da forma e não do conteúdo, o que traz à baila os
temas do manejo do tempo e da ampliação do espaço (MILNER, 1991; DAVIS,
1982). Sua concepção de setting permite modificações, quando necessárias, em
relação à freqüência ou ao tempo da sessão.
147
Quando Winnicott fala do olhar da mãe é no sentido de uma metáfora.
Evidentemente ele não nega que a mãe tenha desejo, mas acredita que ela pode
olhar e ver o bebê como um objeto do mundo compartilhado, podendo refleti-lo.
Segundo Winnicott num primeiro momento, o bebê não olha para perceber e sim
para "aperceber", olha para comunicar e não para ver. Se o bebê tem que
começar a ver para perceber o estado do "humor" da mãe, por exemplo, ele tem
que abrir mão da ilusão da onipotência muito cedo, não havendo lugar para que
ele possa criar a mãe, o que equivale a dizer que já começa um processo de
"atrofia" da criatividade. Essa é a base do desenvolvimento do falso-self. Se a mãe
está bem, ela pode ver a criança como um objeto do mundo compartilhado e
assim refleti-la a partir do que ela é, e não a partir do que ela (mãe) projeta nela.
(WINNICOTT, 1975, p.155). A meu ver, está ai claramente colocado qual seria o
protótipo da posição ética de um analista, independentemente do tipo de
sofrimento psíquico que o paciente apresenta.
Diferentemente para Paín, o olhar da mãe está diretamente relacionado à
questão da legitimidade da criança no seu desejo. Temos então a noção de um
sujeito alienado no desejo do outro. Importante ressaltar que Paín apresenta,
como afirma Melo: “uma teoria unitária do pensamento e uma teoria dualista do
sujeito”. (MELO, 1987)
Aos poucos fui me dando conta de que entender o sentido do sintoma no
triângulo edípico é bem diferente de tentar compreender o que a criança busca
comunicar, inclusive de forma não-verbal, por meio dele. Da mesma forma, foi
ficando claro, para mim, a diferença entre compreender a repetição que
caracteriza o sintoma como expressão da permanência da criança num lugar por
onde o prazer da aprendizagem não pode circular e de compreender a repetição
como busca da presença de um outro ser humano que possa oferecer condições
ambientais para o desenvolvimento das potencialidades do self.
148
Uma outra diferença importante é que Winnicott não trabalha com as
noções de desejo, falta e frustração como Paín. Isso tem sérias implicações na
clínica. Na sua perspectiva, a transferência é entendida como exercício de funções
psíquicas necessárias ao atendimento das primeiras necessidades – integração,
personalização e realização do bebê, e não como projeção de conteúdos ou
fantasias numa linha de deslocamento no tempo.
Gostaria de assinalar, à moda do que fiz em relação a Paín, alguns pontos
apresentados em Parente, 200350, para explicitar a minha forma atual de
apreender a noção de espaço potencial e paradoxo de Winnicott, e como pude
usá-la durante o atendimento de Eric, a partir, também, das transformações
realizadas sob a influência do diálogo com a teoria de Paín sobre a Função da
Ignorância.
Já na introdução, localizo o leitor, explicitando o meu objetivo: num primeiro
momento, levantar na obra desse autor o que, a meu ver, poderia ser uma
fundamentação teórica interessante na Clínica da Aprendizagem e, num segundo,
mostrar como ela poderia ser usada no atendimento de duas crianças com
inibição intelectual, que fizeram parte da Dissertação de Mestrado51, aprofundando
algumas noções teóricas. Enquanto nesses atendimentos propunha o uso de
jogos e atividades cognitivas no campo transicional, buscando favorecer o
caminhar das crianças em direção à criação da externalidade do mundo, no
atendimento de Eric, meu objetivo era acompanhar a criação e constituição do
fenômeno da ilusão e do seu herdeiro, o espaço potencial – espaço de troca e
jogo que abre o campo de relações significativas entre a criança e outro ser
humano, como aquele que presentifica e apresenta a realidade externa.
50 Pelos Caminhos da Ilusão e do Conhecimento – Uma Fundamentação Teórica na Clínica da Aprendizagem a partir de D. W. Winnicott 51 Inibição Intelectual: o Paradoxo no sintoma expressando a paralisia e a busca da criatividade, apresentado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, PUC/SP, 1996
149
Ressalto, também, o uso que fiz da teoria da criatividade de Winnicott
(1975) para refletir, por um lado, sobre a participação da ilusão, imaginação e
capacidade simbólica na constituição da subjetividade e, por outro, sobre a
dimensão da agressividade na criação da externalidade do objeto do mundo.
Quando há a integração entre essas dimensões: a do amor dos estados tranqüilos
e a do amor do estado excitado é possível a constituição de um ser que, por
sentir-se real e integrado em termos psicossomáticos, pode ir para um mundo de
realidade compartilhada e nele se realizar.
Assinalo, ainda, que no artigo de 1941 – Observação de bebês numa
situação estabelecida – em que Winnicott descreve os três momentos de relação e
uso de um objeto – a espátula, por um bebê entre cinco e treze meses de idade-
encontrei o que é, para mim, o protótipo do movimento presente no brincar,
conhecer e aprender criativos52 e que seria a matriz da relação do ser humano
com o conhecimento e a aprendizagem.53 Por meio do jogo da espátula,
compreendi as implicações do uso da noção de espaço potencial e dos
fenômenos transicionais, na clínica. Na minha experiência atual, o diagnóstico e o
atendimento propriamente dito são feitos a partir do que chamei de atitude de
espera receptiva inspirada na noção de espaço potencial54 e da minha forma de
usar o modelo proposto por Winnicott no jogo da espátula. Esses conceitos
operam como dispositivos e permitem investigar em que área da existência, o
paciente transita e habita: a dos fenômenos subjetivos, a dos fenômenos culturais
(transicionais) ou a da realidade objetivamente percebida. Na experiência clínica,
se o paciente está na área dos fenômenos subjetivos, trata-se de uma situação de
inibição intelectual e a relação com o mundo é disruptiva ou até mesmo
ameaçadora, como vimos com Eric. Já com Carol, pudemos observar que já podia
usar um objeto subjetivo - o Bebê-Moranguinho – de forma transicional.
52 Ver Parente, 2003, cap. 1, p.28-30, em que a relação entre o jogo da espátula e a aprendizagem é apresentada. 53 Ver Parente, 2003, cap. 2, em que aprofundo as relações entre criatividade, aprendizagem e conhecimento. 54 Ver Winnicott, 1941 e 1951 retomado em 1971, especialmente nos cap. 5, 7 e 8 do Brincar e a Realidade.
150
Ao reconhecer os dois eixos presentes na teoria da criatividade de
Winnicott: o da comunicação significativa, que no início, além de incomunicável é
silenciosa e que permite a criação do espaço potencial e o da agressividade que
se desenvolve voltado para as representações e permite a criação da
externalidade do mundo, compreendi a importância dada por Winnicott ao estágio
do EU SOU, aliás, muito bem compreendido por (Milner,1991) “o objeto
transicional é o símbolo e o fim de uma jornada. Parece mesmo ser de uma
jornada de ida e volta; ambas voltadas para a descoberta da realidade objetiva do
objeto e para a descoberta da realidade objetiva do sujeito - o "EU SOU" (p.249).
Nesse estágio, é possível a integração dessas duas dimensões que permite a
relação de alguém consigo mesmo. Essa integração vem acompanhada de um
sentimento de medo e perseguição e depende sobremaneira da presença da mãe-
ambiente que sustenta a continuidade da experiência simplesmente por manter-se
inalterada e disponível, o que dá sustentação ao senso de continuidade do ser –
espaço potencial, como vimos com Eric.
Penso que embora essas noções atravessem a obra de Winnicott desde
1941, é na década de 1960 que ele caminha em direção à possibilidade de
integrá-las, como se pode ver em Brincar e a Realidade de 1971. Reconhecer o
estado de indiferenciação entre mãe e bebê e a noção de ilusão da onipotência
permitiu a Winnicott desenvolver uma forma singular de conceber a relação entre
o ser humano e a realidade externa que opera a partir da noção de movimento e
paradoxo no campo intersubjetivo. Não é mais apenas o seio (mãe), como objeto
parcial ou como objeto de desejo, e sim como objeto subjetivo e a presença da
mãe ambiente – isto é, a presença de um clima, de uma atmosfera, de uma
estética, o que importa. Assim o que conta é a disponibilidade materna no sentido
de tecer um campo de acontecimentos no qual se torna possível a criação do self,
e, posteriormente, da exterioridade do mundo pelo bebê. E, isso graças a gestos
de busca gerados pela necessidade do bebê que encontram o objeto
subjetivamente concebido no momento e no lugar certo, no tempo e no espaço
justo. Simultaneamente à realização dessa necessidade, que se dá por uma
151
experiência, acontece a criação de um espaço de comunicação silenciosa, numa
área não diferenciada por meio da troca de olhares e experiências na mutualidade.
A ilusão organizada pela apercepcão do bebê vai cedendo lugar ao espaço
potencial, palco de um outro acontecimento: o desenvolvimento da percepção e do
início do reconhecimento de que a mãe é não-eu e, posteriormente, de que ela
tem uma existência separada. Quando a mãe começa a introduzir o processo de
desilusão de forma gradativa, movimentando-se no espaço dentro do tempo de
tolerância do bebê, ele tem a ilusão de que ela continua sob o seu controle e
domínio apesar de suas idas e vindas. Para fazer frente a essa situação, o bebê já
terá adotado algo, oferecido por ela, que se tornou significativo, pois presentifica a
história de uma relação de encontros e desfrutes vividos de forma genuína, graças
à capacidade oblativa da mãe que sustenta a primeira ignorância: a da situação de
desamparo, impotência e finitude, características do ser humano. Assim, o bebê
vai desenvolvendo a capacidade simbólica, isto é, a capacidade de manter viva a
imagem da mãe enquanto dá tratos à sua própria imaginação na espera do
encontro certo e garantido.
Assim, o objeto transicional, a meu ver, ao mesmo tempo em que é a prova
cabal da criação do espaço potencial, também ajuda a mantê-lo. Aqui, o intelecto
em evolução do bebê ajuda a passar da situação de dependência absoluta para a
relativa e a operar passagens, não apenas em relação a situações em que a mãe
está presente como, também, naquelas em que está ausente. Assim, o bebê pode
transitar entre situações de sono e relaxamento e de vigília e entusiasmo porque
introjetou a mesma atmosfera que é criada na presença da mãe-ambiente do
estado de quietude (atmosfera receptiva e tranqüila) após o encontro com a mãe-
objeto (seio, objeto subjetivo) dos estados de excitação. Note-se a importância da
presença da mãe que sobrevive e se mantém inalterada, tanto ao atender as
necessidades do bebê no estado de excitação (entusiasmo), quanto na promoção
do estado de relaxamento.
152
Talvez essa seja a tarefa maior do ser humano: a integração entre esses
dois estados ao longo de toda a vida, em diferentes estágios e áreas da
existência. Começa na relação com um outro que alimenta a onipotência de uma
ilusão de contato. Talvez essa seja a primeira ignorância e seja justamente ela
que permite o senso de continuidade do ser, pois é possível ser um no outro. Se e
somente se, a mãe continua a dar sustentação, é possível ser um em si mesmo e
com ela, para finalmente, se as condições maturacionais estão dadas e as
ambientais são mantidas, ser um no mundo. Winnicott (1945, 1960, 1967a, 1967b,
1971b,1990) chamou o primeiro de integração, o segundo de personalização e o
terceiro de realização.
Quando falo em criação, constituição, desenvolvimento e integração, refiro-
me à introjeção de um movimento presente num campo de relações ao longo de
um tempo a partir da presença do outro. E isso antes mesmo que um processo de
identificação possa ter lugar. Assim, talvez o ser humano introjete o modo de olhar
e se relacionar daqueles que o amam e a quem ele ama sem disso ter
consciência. Talvez seja a partir desse lugar, desse ethos que os encontros
aconteçam e que escolhemos inclusive as teorias ou aspectos de teorias. Talvez
seja a partir da sensibilidade, isto é, de uma atmosfera, que nos identificamos com
o movimento que intuímos fora de nós por sua ressonância e possibilidade de
refletir algo que existe dentro de nós. Ainda que não tenhamos a consciência
disso! Assim, não se trata de projeção, pois primeiro introjetamos a modalidade de
relação, isto é, o movimento presente num campo de relação com um outro.
Daí a importância de um olhar que nos reconheça, que olhe para ver e não
para entender ou, o que é pior, para atribuir uma intenção interpretando o que
fazemos, dizemos ou pensamos. Assim, quando os pais olham o filho como objeto
subjetivo, não podendo reconhecê-lo na sua singularidade, o cenário será o do
desencontro. O que passa a fazer parte do mundo pessoal da criança carrega o
germe da atmosfera do espaço compartilhado nas primeiras relações, que envolve
a relação do casal que o gerou, dos que os geraram e do campo cultural em que
153
todos estão inseridos. No caso de Eric, vimos que a sua tarefa era a de um super-
herói: ele seria aquele que viria para salvar a família, resgatar as relações entre os
avós e os pais rompidas por ocasião do casamento devido a um choque entre
culturas. Vimos, também, como a sua identificação com o Homem-Aranha
procedia, porque esse objeto da cultura parecia simbolizar o tipo de relação
introjetada por ele a partir da atmosfera presente na dinâmica familiar. Quanto a
Carol, o Bebê Moranguinho, parecia simbolizar o lugar a ela destinado dentro da
família.
Sobre o fenômeno Estético
Na Estação 5, vimos que, com Eric, a experiência de encontro se deu por
meio de uma vivência de impacto estético, quando a tampa da caixa de
brinquedos caiu e ele teve uma reação de pavor exagerado. Compartilhar uma
vivência dessa natureza, criou a experiência do encontro. Tenho observado, na
experiência clínica, a potencialidade transformadora do fenômeno estético,
especialmente, com crianças com inibição intelectual.
Na minha prática, essa dimensão relaciona-se com a capacidade do
analista se deixar afetar pela ressonância que o modo de ser e estar da criança
provoca nele. Está relacionada com a reação psicossomática que testemunho no
paciente e acompanho por um processo de identificação. Ou seja, quando escuto
o paciente, eu sou o paciente. O impacto em questão pode ser transformado,
sendo em si transformador, quando é possível acolher o que emerge no campo
intersubjetivo acompanhando o movimento pulsante desse encontro.
Estabeleço aqui um paralelo entre o uso do objeto transicional e o que
estou chamando de objeto símbolo55. Enquanto o primeiro carrega a história de
uma relação de encontros entre mãe e bebê e desfrutes de necessidades – o
objeto-símbolo - no caso de Eric, o Homem-Aranha e no de Carol, o Bebê
55 Inspiro-me, aqui, na contribuição de Gilberto Safra (1999) de que não é o significado de um símbolo que importa, mas “a sua possibilidade de veicular uma experiência , uma vivência” (p. 23).
154
Moranguinho, o segundo apresenta a história dos desencontros e, talvez, da
atmosfera presente no campo de relações dos primeiros desencontros.
No caso de Eric, o Homem-Aranha abriu a possibilidade do encontro.
Reconhecer a sua presença em determinados momentos foi de fundamental
importância para instaurar o espaço de jogo e comunicação significativa em que o
menino pôde, ao mesmo tempo, conhecer e desvelar seus segredos, mostrando
onde e como poderia ser encontrado.
Gostaria aqui de salientar que, com crianças com severo grau de inibição
intelectual, é preciso, antes de exercer a função de apresentação de objetos - que
se torna importante depois que se abre o campo transicional - estar disponível e
sintonizada para captar a apresentação que a criança faz do objeto que carrega a
potencialidade do encontro e da abertura do campo de relações entre ela e o
mundo de realidade externa.
Sobre crianças com Inibição Intelectual e o trabalho com seus pais Na minha experiência confirmo o mesmo que Winnicott (1958,1963a, 1975):
criança que não brinca de forma espontânea, não se comunica, não constitui a
dimensão da subjetividade, nem estabelece pontes entre a realidade pessoal e a
externa não podendo, assim, usufruir experiências significativas e necessárias à
criação do self e a da externalidade do mundo.
Quem trabalha com elas, sabe como são assustadas e vivem num estado
de desconfiança e isolamento, não se sentem confortáveis na própria pele, não se
envolvem e nem se interessam por nada que lhes é oferecido por um outro que,
no início, além de estranho, não passa de um invasor.
O fato de a criança sentir-se incluída na dimensão humana, alcançar a
integração e entrar no movimento que caracteriza o jogo tridimensional tem
relação direta com a aprendizagem, pois relaciona-se com o desenvolvimento de
155
determinadas capacidades intelectuais, como, a de seriar e classificar os objetos,
por exemplo, reconhecer que uma laranja faz parte do grupo das frutas, um porco-
espinho está incluído no dos animais etc. Antes de a criança classificar os seres
humanos, é preciso a integração e o sentimento de se sentir participante da
dimensão humana.
Notemos que as situações de Eric e Carol são muito diferentes.
Retomemos o que acontecia com a menina tendo no horizonte o tema da
comunicação significativa. Ela tinha certo movimento psíquico e conseguia
provocar efeitos e afetar não apenas o ambiente familiar e escolar, mas também a
terapeuta. Adotava um objeto-símbolo, a boneca, que parecia funcionar como uma
espécie de escudo, permitindo estabelecer um tênue contato com o mundo
externo. Por meio dele podia estudar a reação do ambiente, mapeá-lo e fugir dos
perigos. O problema é que isso a afastava de um contato verdadeiro com ela
mesma e com o outro.
No início, ela podia ligar-se e desligar-se no e do que acontecia fora dela,
ligando e desligando os receptores à distância (visão e audição) por meio do
incremento dos receptores de contato (cheirava a borracha, encostava partes do
seu corpo na mesa). Se, por um lado, podia defender-se do que sentia como
invasão, por outro, ficava aprisionada num lugar por onde o prazer da
aprendizagem não circulava. À medida que a confiança na relação cresceu, pôde
transitar ainda mais entre dois estados: estar ausente (desligada) e estar presente
(ligada) na presença da analista, mas criando um jogo em que podia fazer de
conta que estava desligada-ausente, quando havia estado ligada-presente e vice-
versa.
O que operou e teve efeito com Carol foi poder ser vista e reconhecida
como autora do jogo que criava sem ser mal interpretada por pais, escola ou
terapeutas. Ser olhada e encontrada num lugar diferente do que até então estava
acostumada, poder jogar com os símbolos criados até aquele momento, permitiu
156
tomar consciência da sua possibilidade de jogar, sentir-se incluída, participante e,
aos poucos, tornar-se autora, apropriando-se de seu próprio processo. Isso está
belamente colocado na frase "É um sofisticado jogo de esconder em que é uma
alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado". (WINNICOTT,
1963a, p. 169).
Diferentemente, Eric parecia ainda nem ter conquistado a chance de
constituir aberturas significativas para o mundo por meio dos órgãos dos sentidos
ou tê-las perdido, devido a invasões e falhas de atendimento à primeira
necessidade do ser humano: a da comunicação significativa, que decorre de
sentir-se incluído, isto é, ter sido um no outro, para depois poder ser um com o outro. Por não ter desfrutado da presença real de um outro disponível para olhá-
lo, reconhecê-lo como diferente e acompanhá-lo, o mundo não era apetecível, e
sim, estranho e invasor. Assim, seus receptores de contato, bem como os
receptores à distância podiam ser usados para sobreviver, mas não para criar o
mundo real a partir de experiências compartilhadas.
Acho oportuno assinalar, neste momento, a diferença entre o trabalho
realizado com os pais de Eric e de Carol, pois se trata de um aspecto de
fundamental importância, especialmente, no trabalho com crianças com inibição
intelectual em que a falha ambiental se dá muito cedo e a criança padece de
ansiedades impensáveis num mundo sentido como disruptivo e ameaçador. No
atendimento de Carol houve um tom de quase indignação quando a analista
relatou o episódio em que a mãe da menina não a trazia com roupas adequadas
para suas sessões, duvidando do seu desenvolvimento e da autoria dos trabalhos
realizados por ela e elogiados pela escola. Era evidente que, assim, a mãe
desautorizava o processo da menina, sua percepção e a da própria escola. Isso
parecia mobilizar a insegurança e a confusão de Carol, levando-a a adotar uma
atitude mais regredida e infantilizada, usando a boneca como um escudo.
Mobilizava, também, a raiva em alguns educadores da escola.
157
Minha aprendizagem, a partir da experiência com Carol e outras crianças56
crianças com inibição permitiu-me adotar uma outra atitude com Eric e sua família:
podia estar no movimento que caracteriza o jogo tridimensional, identificar-me com
as necessidades do garoto e de sua família e, ao mesmo tempo, discriminar-me
delas, acompanhando o movimento no jogo estabelecido no campo intersubjetivo.
Assim, podia exercer as funções necessitadas, facilitando a troca e comunicação
significativa entre todos.
Aproveito, também, para salientar a importância que os pais possam, de
fato, ser incluídos no trabalho e desfrutar de um espaço de confiança, podendo
contar, não apenas fatos, mas experiências, resgatando, assim, a atmosfera que
organizava o campo de relações na época do nascimento da criança. É muito
diferente a situação de uma mãe que passe por uma situação de luto ou descubra
que o marido tem uma amante, um filho, ou que seja alcoólatra durante a
gestação, de uma mãe para quem esse período transcorra como ela sempre
sonhou.
Lembrando que as necessidades do paciente e da família variam muito de
caso para caso e em diferentes momentos do processo, no atendimento de Eric,
vimos que a retaguarda dada a seus pais permitiu que eles pudessem fazer o
mesmo com o garoto, modificando, inclusive, a sua maneira de vê-lo.
Aproveito, também para assinalar outra diferença em relação ao trabalho
com os pais, agora em relação ao modelo de diagnóstico de Paín, que faz uso de
provas projetivas e psicométricas. Na minha experiência, mesmo pais ansiosos, e
que solicitam avaliações, entendem e aceitam que tal procedimento só poderá
acontecer, se necessário, depois que a criança puder brincar, isto é, depois do
desenvolvimento da capacidade simbólica e do estabelecimento de uma outra
modalidade de relação com o mundo de realidade externa. Sem relação com um
mundo apetecível não se abre o campo transicional nem o do conhecimento, já
56 Ver Cap. 3 e 4. In Parente, 2003.
158
que um é acompanhado pelo outro. O conhecimento é função da transicionalidade
e carrega o germe das primeiras relações interpessoais (JONES, 1992).
Nessa mesma linha, (MILNER, 1991) ressalta que o processo de
identificação, subjacente à formação simbólica, não é resultado de forças
proibitivas e nem da necessidade de reparar os objetos. Ele seria fruto da
necessidade de estabelecer uma relação com a realidade externa. Assim, usa a
"palavra símbolo não apenas para se referir a uma função defensiva, com
finalidades de distorção". (MILNER, 1991, p. 110).
Usando Paín, compreendi que a aprendizagem implica um movimento
dialético e complementar entre a subjetividade e a objetividade e envolve a
dimensão da autoria por parte do sujeito. No período do percurso de Paín, que
focalizo neste trabalho, portanto, antes de sua preocupação voltar-se para a
questão da relação entre a ignorância e o corpo presentes em Seguindo as
pegadas do sujeito, infelizmente traduzido para o português com o título Teoria e
Técnica da Arte Terapia – a compreensão do sujeito, a sua concepção sobre o
conhecimento desenvolve-se na perspectiva filosófica e pedagógica, o que é
coerente com a sua formação, percurso, interesse e, especialmente, com seu
passado piagetiano. Diferentemente, o meu encontra-se mais próximo da clínica
psicanalítica em que o conhecimento estaria relacionado às experiências de vida
consigo mesmo, com os outros e com os objetos da cultura.
Nessa perspectiva, na experiência clínica, muito mais do que o objeto
interessa o uso que se faz dele. Nesse sentido, o conhecimento não é uma
qualidade do objeto e, sim uma criação do sujeito. Assim, a minha concepção de
aprendizagem amplia, ainda mais a de Paín, pois se trata da capacidade de
aprender de si e da realidade externa que inclui o outro e os objetos da cultura, a
partir da experiência de vida. Somos seres no mundo e a aprendizagem que
enriquece o self é a que permite a inscrição do gesto e a realização de um projeto
existencial o mundo.
159
Lembro o que afirmei na introdução deste trabalho e que na verdade é a
minha tese: no campo terapêutico intersubjetivo, cada experiência clínica
significativa contribui para transformar a subjetividade do analista e,
conseqüentemente, a sua forma de ler e compreender, seja as teorias, seja a
prática, o que transforma não só o diálogo que estabelece, mas também a sua
própria maneira de compreender, fazer intervenções, dialogar, transformar e usar
as teorias.
A noção de Função da Ignorância e de paradoxo como posição ética Após a transformação feita na noção de Função da Ignorância, ela passou
a constituir-se na sustentação de uma posição ética. É esta posição que permite
estar num movimento, transitar e recortar conceitos de diferentes teorias, usando-
os na construção de dispositivos para iluminar um fenômeno clínico ou aspectos
dele e assim poder comunicá-lo. Quando me refiro a acolher a Função da
Ignorância e de paradoxo como morada, como ethos, refiro-me, também, a uma
forma de usar essas noções, que dá sustentação e permite ao analista manter a
atitude de espera receptiva, acolhendo o seu próprio não-saber, o do paciente e o
de sua família, deixando, desse modo, que o tempo trabalhe e a “luz” se faça. É
essa atitude que permite identificar as questões do paciente e exercer as funções
necessitadas para descongelar aspectos de seu self que podem variar desde uma
atitude de acolhimento até a de colocar condições para iniciar ou manter a
continuidade de um atendimento.
Um outro aspecto importante é que, em cada atendimento, é possível
levantar os dispositivos usados como vimos com Eric, em que determinadas
funções, especialmente a de testemunha, holding, manejo e apresentação de
objetos, foram exercidas e permitiram que ele usufruísse situações que colocaram
em marcha o desenvolvimento das potencialidades do seu self, até então
congeladas. Entretanto, o que pretendo, neste trabalho, não é apresentar um
modelo que segue uma seqüência. Aliás, nada mais distante do que acredito!
Reafirmo tratar-se de uma posição, de uma postura ética que no meu percurso
160
tornou-se possível pelo encontro e recorte de determinadas noções provenientes
dos referenciais de Klein, Paín e Winnicott e que dá sustentação à atitude de
espera receptiva.
Reconheço em Paín, a disponibilidade genuína que caracteriza e ilustra o
que é ser um profissional suficientemente bom. E este é mais um dos paradoxos,
porque foi ela que me apresentou o paradigma de terapeuta inspirada na noção de
mãe suficientemente boa de Winnicott, pois ofereceu a sua própria contribuição
para ser usada e transformada, não à luz da epistemologia e sim à moda das
crianças e do uso transicional que elas fazem dos objetos da cultura, realizando,
assim, seu projeto pessoal no mundo.
Para acompanhar a transformação feita no conceito de Paín, transcrevo o
último parágrafo de Pelos Caminhos da Ignorância e do Conhecimento:
Usando a linguagem de Sara, aliada à de Winnicott, diria que
neste espaço transicional em que a função da ignorância
opera, porque somos e não somos, porque estamos aqui e
lá, porque suportamos o movimento paradoxal da vida, os
mistérios, os enigmas, podemos, à medida que nos
apropriamos de nossas questões pessoais, aprender da e
pela experiência. Isso permite, também, estar
permanentemente num diálogo, num trânsito, num entre,
inclusive entre a prática e a teoria. Note-se que isso implica,
não apenas na criação e/ou reconstrução de conhecimentos,
mas também na participação de um processo de
aprendizagem de si, do outro, do mundo, que tem na função
da ignorância a sua mola propulsora.
(Parente. 2000, p. 115-116)
161
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“A cultura é como a lente através da qual o homem vê o
mundo”.57
Há viagens que nos deixam cansados e que, por isso mesmo, desejamos
que acabem logo. Outras nos encantam e desejamos que nunca se acabem. Claro
que no plano do impossível, porque nada é mais terrível do que o sempre ou o
jamais, o tudo ou o nada. Na experiência com Paín, aprendi que sem relativizar
permanecemos no absoluto positivo ou no negativo. Concordo, pois em ambos os
casos, não podemos estar no movimento que caracteriza o que há de mais
humano em nós: o interagir com a cultura!
Numa viagem, após comprar os bilhetes–passagens, embarcamos! Muitas
vezes, sabemos onde queremos chegar, em outras, os rumos se modificam. Há
momentos da vida que isso nos incomoda, noutros nos encanta. No percurso aqui
apresentado, o primeiro bilhete que comprei na viagem de ida foi Klein, ou melhor,
um certo kleinismo do final dos anos 1970 e 1980, muito diferente do uso que se
faz atualmente das contribuições kleinianas. Por meio do referencial de Luzuriaga,
desenvolvido nessa tradição e diretamente voltado para o quadro da inibição
intelectual, recortei o objeto de investigação.
Com Paín, focalizei o campo voltado para a clínica dos problemas de
aprendizagem e para uma teoria que dava conta das relações entre as dimensões
afetiva e cognitiva no pensamento do sujeito que aprende (PAÍN, 1985, 1989) e
comecei a estabelecer um diálogo com a prática institucional e de consultório.
Com Winnicott, compreendi que o problema de aprendizagem precisaria levar em
consideração o desenvolvimento psíquico global da criança, o que implicou
reconhecer o papel determinante do fator maturacional e do ambiente na inibição
57 R. Benedict apud Laraia, 1997, p.69.
162
intelectual. Compreendi que a ilusão de criar o mundo de realidade compartilhada
era condição para o brincar, conhecer e aprender criativos, como vimos, na
viagem de ida, no atendimento de Carol, o que me levou, aos poucos a
reconhecer a importância de exercer a função de testemunha e a admitir o
processo de regressão à dependência. Aos poucos, fui reconhecendo a
importância de usar jogos e atividades cognitivas no campo da transicionalidade.
Isso porque respeitar o gesto e o tempo da criança, por meio da suspensão dos
parâmetros da lógica linear ajudava a abrir, ainda mais, o campo de relações entre
ela e o mundo de realidade externa. Aqui as noções de uso de objeto e de
fenômenos transicionais foram fundamentais.
Entretanto, o aprofundamento no estudo e na compreensão da noção de
espaço potencial – espaço de confiança, troca e comunicação significativa levou-
me a usar o jogo da espátula tal como descrito por Winnicott (1941) e apresentado
na Estação 7, como um dispositivo não só para fazer o diagnóstico, mas também
para acompanhar todo o processo de intervenção, buscando favorecer a
constituição de uma outra modalidade de relação da criança com um mundo que
pudesse ser sentido como apetecível. Atualmente, reconheço que exercer a
função de apresentação de objetos torna-se importante somente depois que se
abre o campo dos fenômenos transicionais, que permite o caminhar da criança em
direção à criação do objeto objetivamente percebido, base da aprendizagem
formal.
Na minha experiência, as crianças com inibição intelectual habitam a área
dos fenômenos subjetivos, portanto, padecem de ansiedades impensáveis; sua
organização de self é incipiente e a relação que estabelecem com o mundo é
disruptiva ou, até mesmo, ameaçadora. A integração, geralmente, é alcançada por
um “padrão de reações às intrusões”. Nessa situação, houve muito mais do que
frustração ou privação, pois elas foram mutiladas, por não desfrutarem das
condições que permitiriam constituir e usar seus receptores de contato e/ou à
distância como canais de abertura para o mundo, isto é, para uma comunicação
163
significativa, como vimos nos atendimentos de Carol e Eric. O que operou e teve
efeito para que o menino entrasse no jogo tridimensional foi a atitude da analista
de manter-se em estado de relaxamento e, ao mesmo tempo, de atenção para
captar a apresentação que ele fazia do objeto que carregava a potencialidade
transformadora do seu self (SAFRA, 1999).
No meu caminhar da clínica dos problemas de aprendizagem passando
pelo da criatividade e desenvolvimento psíquico até chegar ao da comunicação
significativa, fui me apropriando de uma forma transicional de usar as teorias,
mantendo no horizonte aquilo que, para mim, é o importante: a experiência de
encontro significativo com o paciente, na qual o acontecimento humano se dá.
Retomando o meu percurso, reconheço que uso determinado conceito ou teoria
como objeto transicional, como um terceiro, como ponte que permite transitar e
ganhar distância em relação ao que se revelou na experiência clínica. Como opero
de forma intuitiva, pela sensibilidade, estabeleço uma relação subjetiva: ou seja,
quando ouço o paciente é como se eu fosse ele.
Trata-se, assim, de uma forma transitória de usar as teorias, não como um
sistema ou rede que revele significados que poderiam ser remetidos aos
pressupostos epistemológicos das teorias, mas para explicitar o que se revelou
num encontro significativo.
Por isso, o que defendo neste trabalho é que no campo terapêutico
intersubjetivo, cada experiência clínica significativa contribui para transformar a
subjetividade do pesquisador-terapeuta e, conseqüentemente, a sua forma de ler
e compreender seja as teorias seja a prática, o que transforma não só o diálogo
que estabelece, mas também a sua própria maneira de compreender, fazer
intervenções, dialogar, transformar e usar as teorias.
Se com Paín aprendi a atitude conveniente para uma investigação: ser
ingênua na clínica e cética em relação à teoria; com Winnicott aprendi a liberdade
164
de poder usar a teoria priorizando a clínica, bem como a de fazer uso do
pensamento de outros para criar o próprio.
Assim, quando me refiro à noção de Função da Ignorância e de paradoxo,
deparo com mais uma situação paradoxal, pois, ao mesmo tempo, falo e não falo
do mesmo lugar de Paín e de Winnicott, já que o foco, o objeto de interesse e o
meu percurso são diferentes do deles, mas sem o diálogo com eles e entre eles e
a prática clínica, talvez não tivesse feito a viagem que fiz, nem chegado onde
cheguei. Este, mais do que um ponto de chegada se constitui, creio, numa nova
baldeação para reflexões em percurso:
Quais as implicações deste trabalho num repensar o campo
psicopedagógico? Qual a contribuição desses dispositivos ao psicopedagogo que
trabalha na e/ou com a instituição?
Quais as implicações contidas na afirmação de que a falha na comunicação
significativa poderia relacionar-se diretamente com a inibição intelectual? Será que
outras crianças com inibição intelectual não elegem também um objeto da cultura
buscando não perder contato com um outro? Será que esse objeto guarda as
marcas da atmosfera e da história de desencontros vividas por outras crianças,
como Eric, nas primeiras relações vinculares? Será que o tema da comunicação
significativa estaria relacionado com outros tipos de inibição, por exemplo, a
sexual?
E assim termino este percurso de autoria e apropriação de conhecimento a
partir da experiência, remetendo-me ao que escrevi em 1995, no artigo: O difícil
diálogo entre a prática e as teorias58:
58 Boletim Formação em Psicanálise, vol. IV, n. 1, p.7-17.
165
Acredito que buscamos um referencial teórico para melhor
compreender os fenômenos estudados (dimensão
conceitual) e para operar no campo de atividade a que nos
dedicamos (dimensão das práticas). Não é qualquer teoria
que tem ressonância dentro de nós e que nos faz sentido. O
sentido (tem a ver com o conhecimento tácito, a crença e a
vivência pessoal)‚ algo construído a partir de uma dramática
inconsciente (articulada, desenvolvida e construída a partir
de um percurso que envolve a nossa própria história).
Descobrimos uma teoria com a qual nos sentimos
identificados a partir de algo que é da ordem da
subjetividade. Brincando um pouco a partir de Winnicott: as
crianças brincam com os objetos como se eles não fossem
apenas parte da realidade objetiva, mas também parte da
realidade subjetiva. Será que o que nós adultos fazemos é
sonhar com a teoria? Será que brincamos com as teorias que
criamos e descobrimos?
Penso que podemos estabelecer um paralelo entre o que
ocorre com a criança ao usar o objeto transicional e o que
ocorre conosco (pesquisadores analistas) no processo de
uso e escolha de uma teoria.
Quando usamos a teoria como pano de fundo, como o
invisível que organiza um campo, podemos privilegiar a
comunicação e a relação humana com o paciente. Podemos
estabelecer um diálogo entre a teoria e o fenômeno que
pode, então, ser observado e não reduzido a partir de um
modelo teórico.
166
Quando a forma de relação que se estabelece com a teoria é
feita nesta terceira área da experiência, podemos reconhecer
quando ocorre uma fratura. Quando a teoria não dá conta do
observado, cria-se o espaço vazio.
A partir dos desencontros entre teoria e prática é possível
(quando o vazio pode ser tolerado) mobilizar o pensamento e
estabelecer um novo diálogo entre teorias ou aspectos de
teorias e a realidade clínica.
Quando é possível fazer algo com a falta e transformá-la a
partir do que a realidade oferece, há também a possibilidade
de se poder fazer um tipo de articulação na qual se pode
usar a própria subjetividade e enriquecê-la através do
contato com a objetividade. É possível desenvolver um
diálogo com a realidade e um enriquecimento da dimensão
da objetividade, a partir da própria subjetividade.
Podemos buscar e encontrar uma teoria (ou zonas de
superfícies ou recortes entre diferentes teorias) para estudá-
la e usá-la, estabelecendo um diálogo com a realidade que a
prática clínica nos oferece. Podemos, também, fazer uso da
teoria como se ela fosse a verdade, a certeza, como fazia o
conhecimento científico na vertente positivista do século XIX.
Ou seja, podemos fazer como as crianças que usam os brinquedos para
não brincar.
Volto para o que já estava anunciado, só que agora enriquecida pelo
caminho trilhado e pelas experiências nele vividas, e ainda mais convencida dessa
forma de usar a teoria para dar visibilidade àquilo que se revelou no encontro
significativo com o paciente e que acaba por permitir a transformação, tanto dele
167
quanto da analista; que permite a inscrição de um gesto no mundo, que permite
que o conhecimento seja um elemento de trânsito para que cada um realize os
seus projetos existenciais no mundo. E, termino, tomando emprestadas as
palavras de Guimarães Rosa:
Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas
experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de
raciocínios e intuições. Tomaram-me tempo, desânimos,
esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-
me, porém, um tanto à parte de todos, penetrando
conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por
exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tem idéia do que
seja na verdade – um espelho? Demais, de certo, das
noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica.
Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um
mistério. Inclusive, os fatos ou a ausência deles. Duvida?
Quando nada acontece, há um milagre que não estamos
vendo.
ROSA, Guimarães. O Espelho. In Primeiras Estórias. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1972, p. 71-8.
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