Educação Fiscal

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Revista da Faculdade de Direito e Cincias Sociais do Leste de Minas FADILESTE

Revista Vox

Revista VoxRevista da Faculdade de Direito e Cincias Sociais do Leste de Minas FADILESTEAno VII n2 Jan/Jun de 2010 Editor Responsvel Eliser de Freitas Ribeiro Conselho Editorial Jos Magalhes Junior de Lacerda; Igor Lacerda de Oliveira; Aluer Batista Freire Jnior; Paula Cristina Hott Emerick e Name Mansur Marcial. Reviso Textual e Normatizao Libni Meireles Duarte

ISSN 1808-4052Nmero 2, Janeiro a Junho de 2010

revista da faculdade de direito e cincias sociais do leste de minas uma publicao semestral do centro de pesquisa e extenso (cepex) rgo de estudo e pesquisas multidisciplinares sociedade educacional breder lopes: Jos Paulo Hott Presidente faculdade de direito e cincias sociais do leste minas Maria Clara Hott Diretora coordenadora do durso de direito: Paula Cristina Hott Emerick coordenadora pedaggica: Mariza Salazar centro de pesquisa e extenso (ceprx): Eliser de Freitas Ribeiro ficha catalgrafica VOX Revista da Faculdade de Direito e Cincias Sociais do Leste de Minas V.1, n 1, Jan/Jun de 2010 Reduto MG: FADILESTE Semestral issn 1808-4052 1. Cincias Humanas Peridicos 2. Cincias Exatas Peridicos 3. Cincias Sociais e Aplicadas Peridicos 4. Letras Peridicos CDD 001 CDU 050 Elaborada por Eliser de Freitas Ribeiro Redao e Assinatura (Solicita-se permuta/ Exchange Disued) REVISTA VOX Revista Cientfica da FADILESTE Av. Marcionlia Breder Satlher, n 01 Cep.: 36920-000 Centro Reduto, Minas Gerais, Brasil Tel.: 0 (XX) 33 3378-4000 | e-mail: [email protected] Os conceitos emitidos em artigos assinados so de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores. arte e diagramao: Cristiane Lima ctp, impresso e acabamento Grfica e Editora O Lutador Telefax: (31) 3439-8000 Praa Padre Jlio Maria, 01 Bairro Planalto - Belo Horizonte/MG

Revista Vox

SumrioCARTA AO LEITOR A EDUCAO FISCAL COMO INSTRUMENTO DE CIDADANIA Joslia Maria Gonalves A MEDIDA CAUTELAR COMO TUTELA DE URGNCIA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO APARECIDA DE FTIMA PIROVANI AMORIM LOPES A PROTEO DO EMPREGO NO SCULO XXI Ludgero Ker Raele CAMINHOS LEGAIS PARA O MASSACRE INDGENA NO SERTO MINEIRO: DIRETRIZES POLTICAS DO ESTADO EM RELAO OS NDIOS BOTOCUDOS NAS PRIMEIRAS DCADAS DO SCULO XIX (1808 1831). Name Mansur Marcial DA FILIAO SOCIOAFETIVA Ana Maria Guerra de Souza DESCONSTRUINDO O MITO DA IMPUNIDADE NO ECA Valcy Ribeiro Soares DO PODER DE INVESTIGAO DO MINISTRIO PBLICO NO PROCESSO CRIMINAL Humberson Julianno Aguiar Bastos DO USO DA FORA NO EXERCCIO DA FUNO POLICIAL MILITAR Guilherme de Paula Dalmonech NUANCES E PERSPECTIVAS DO PROCESSO JUDICIAL ELETRNICO Wberton Oliveira da Costa

O MEU E O TEU EM KANT: A POSSE EXTERNA Aluer Baptista Freire Jnior NORMAS EDITORIAIS

Carta ao LeitorTemos a imensa satisfao de tornar notria a segunda edio da revista acadmica da Faculdade de Direito e Cincias Sociais do Leste de Minas (FADILESTE), nomeadamente Revista Vox. Essa publicao tem o objetivo precpuo de ser um canal aberto para as principais discusses jurdicas, sociais, polticas e estruturais que se avolumam no cenrio nacional e internacional. Alm disso, ela ser tambm um excelente instrumento de fomento a produo de conhecimentos e ideias dos nossos professores e alunos. A publicao ressurge aps seis anos de hiato com o desafio da continuidade e de melhorar cada vez mais o processo de aprendizagem e transmisso de conhecimento da FADILESTE. Assumimos a tarefa contando que a capacidade dos nossos professores e o dinamismo dos nossos alunos sejam uma fora agregadora na direo de levar esse projeto adiante. Cabe ainda declinar que essa publicao ser sempre um veculo democrtico e aberto as discusses e a amplitude de opinies, entendendo que a liberdade e a justia sejam valores fundamentais para o desenvolvimento da nossa instituio e nossa regio. Esperamos que vrios esforos, tanto internos como externos, sejam somados, para que possamos formar em nossa regio uma massa crtica de opinies, que interfira de maneira significativa no curso de nossa histria e que de algum modo contribua para o crescimento do pas.

Eliser de Freitas Ribeiro

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A educao fiscal como instrumento de cidadaniaJoslia Maria Gonalves

ResumoA cidadania passa necessariamente pela democracia, e no mbito dessa viso democrtica surge a Educao Fiscal visando conscientizao da sociedade quanto funo social do Estado de arrecadar tributos e ao dever do cidado contribuinte de recolher os impostos aos cofres pblicos. nesse contexto que a Educao Fiscal se alinha em um amplo processo educativo para a construo e para o exerccio da cidadania. Palavras-Chave: Educao; Cidadania; Tributo; Estado; Sociedade.

AbstractThe citizenship passes necessarily for the democracy, and in the scope of this democratic vision, the Fiscal Education appears aiming the awareness of the society concerning the function of the State to collect the taxes to the public funds. It is in this context that the Fiscal Education lines up in an ample educative process for the construction and the full exercise of the citizenship. Keywords: Education; Citizenship; Tribute; State; Society.

revista vox n 2 | jan-jun | 2010

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O contexto social em que vivemos de uma realidade paradoxal, em um pas de contrastes: de um lado, uma nfima parcela da populao com condies de vida equiparada aos pases desenvolvidos, com acesso sade, educao, esporte lazer; e de outro, a grande maioria vivendo abaixo da linha da pobreza, sem direito algum, at mesmo o de saber que tm direitos, desconhecendo completamente que os artigos 5 ao 17 da Constituio da Repblica Federativa do Brasil garantem direitos fundamentais a todo ser humano. Como o direito vida, soberania, sade, moradia, educao, poltica, esporte, lazer. Observa-se que tal diagnstico de desigualdade social ocorre em funo da concentrao de rendas em mos de poucos e da m aplicao dos recursos pblicos. Diante desta realidade, destaca-se a relevncia da Educao Fiscal como meio de integrao na sociedade, capaz de favorecer a mobilidade social positiva, sendo um transformador da realidade ftica em uma sociedade mais humana e igualitria. Assim sendo, pretendemos levantar neste artigo uma reflexo sobre a Educao Fiscal dentro de uma tica crtica e de um exame consciencioso, partindo da premissa de que o cidado, querendo ou no, um contribuinte submetido ao Estado como ente tributante , por esta razo, ele tem o direito de saber quais so os tributos pagos por ele, para onde esses tributos vo e para que eles servem. Se de um lado todo cidado um sujeito de direitos e deveres, a Educao Fiscal que vai trazer a conscientizao de quais so esses deveres, dando especial enfoque ao dever do cumprimento das obrigaes tributrias e do direito do cidado de saber que tem Direitos positivados na Constituio Federativa da Repblica do Brasil, assim como positivado esto os deveres tributrios no ordenamento jurdico. Um dos grandes desafios dos dias de hoje enfrentar e buscar a soluo para os problemas de fome e de misria que assolam o pas, como resultado da m distribuio de renda e, mais especificamente, da desastrosa distribuio dos recursos pblicos que colocam limites estruturais quase instransponveis diante da assimetria social, tornando ineficazes diversas polticas sociais implementadas. Da a importncia da Educao Fiscal que no deve somente informar, mas tambm trazer uma compreenso consciente de que os direitos de cidadania, com seus matizes contemporneos,10 Joslia Maria Gonalves

devem partir dos processos pelos quais esses direitos so criados, reivindicados, transformados e, sobretudo, vivenciados como parte da experincia humana, e que ajudam a formar o cidado consciente, sensvel e responsvel. Cidado esse que saiba pensar global, mas agir localmente, para ser um agente social com capacidade para promover mudanas, a partir de sua comunidade, levando em considerao o ncleo da vida social como o trabalho, as sociabilidades, a comunicao e a produo cultural, onde a cidadania se enraza solidria, compartilhando, na medida em que se constitui, processos histricos de conquista de direitos e deveres. O tema Educao Fiscal vem sendo discutido no pas, no sentido de vencer a resistncia do brasileiro funo do Estado de arrecadar tributos e o consequente dever dos cidados contribuintes de pagar tributos. Almeja-se neste trabalho levantar a crtica e reflexo sobre a Educao Fiscal, associando a idia do tributo palavra fiscal, tendo, de um lado, o Estado como ente tributante ou o fisco e de outro, o , cidado, o contribuinte como o fiscal da aplicao do tributo, dos recursos pblicos. Ter a Educao Fiscal como uma luta contra resistncias no a melhor forma de encar-la. Vale ressaltar que durante a chamada Inconfidncia Mineira, as lutas travadas pelos homens de Vila Rica no se caracterizavam como mera resistncia exigncia de tributos, mas como a defesa de nossos potenciais econmicos e do uso racional de recursos pelo Estado. Educao Fiscal , pois, um desafio, tratandose de um processo de insero de valores na sociedade, da formao de futuros cidados conscientes do seu dever de cumprimento das obrigaes tributrias, e do seu direito ao exerccio da cidadania mediante a cobrana da coerente destinao dos recursos provenientes dos tributos arrecadados pelo Estado. Procurando construir um conceito de Educao Tributria ou Fiscal, passemos a anlise do termo educao Educao a cons. truo de conhecimentos sempre renovveis (atravs da elaborao de conceitos), o repensar constante de nossas atitudes e nossa postura diante da vida. E, como bem diz Pedro Demo: aprender a profunda competncia de desenhar o destino prprio, de inventar um sujeito crtico e criativo, dentro das circunstncias dadas e sempre com sentido solidrio (DEMO, 2000, p. 23).a educao fiscal instrumento de cidadania 11

A educao se apresenta como um dos pilares fundamentais dos Direitos Humanos e dos deveres do estado, da famlia e da comunidade. A educao uma questo estratgica de extrema importncia para o desenvolvimento da cidadania, da democracia, da sustentabilidade, da humanizao e da manuteno da paz. Desenvolver tal conscincia na populao melhorar o seu entorno, proporcionar qualidade de vida no intuito de se manter sempre a iniciativa de no acomodar-se, mas de se buscar novos saberes visando transformao social. A dimenso social da relao do indivduo com seus valores equacionada pela construo de atitudes e seus princpios. Sua atuao como cidado fundamental para as transformaes sociais desejadas. Da a necessidade do conhecimento do papel social do tributo atravs da conscientizao para o exerccio da cidadania. nesse contexto que a Educao Fiscal se alinha em um amplo projeto educativo, com o objetivo de propiciar o bem-estar social, consequncia da conscincia cidad e da construo de conhecimentos especficos sobre os direitos e deveres do cidado (ESAF, 2002) . Diante da sociedade que nos rodeia, como perceber o tributo como meio de assegurar o desenvolvimento econmico e social, sem o devido conhecimento do seu conceito, da sua funo, e da sua aplicao? a Educao Fiscal que trar um melhor conhecimento da percepo da questo tributria. Imposto. O nome j diz tudo: no opcional. Sem muita escolha, pagamos tributos ao governo para quase tudo: morar na cidade, movimentar dinheiro no banco, comprar remdio e at para se ter gua quente na hora do banho. O funcionamento do sistema de arrecadao e a maneira como o dinheiro retorna em forma de servios populao incluindo toda a matemtica envolvida so explicados pela Educao Fiscal. Desde o incio do sculo XX, as transformaes tecnolgicas e econmicas tm provocado reflexes sobre o papel do Estado. Atualmente, o desafio articular um novo modelo de desenvolvimento que traga sociedade perspectivas de relaes Estado-cidado mais equilibradas, administrao pblica menos burocrtica, tendo como escopo conceitos de descentralizao e eficincia, voltada para o controle dos resultados e mais prxima do cidado. Para parte12 Joslia Maria Gonalves

da sociedade, as obrigaes tributrias so fontes de conflito e de insatisfao, uma vez que esse grupo entende que os impostos pagos no so aplicados adequadamente ou no retornam em forma de benefcios para a populao. Percebe-se que a sociedade brasileira no acredita que o produto arrecadado est sendo revertido em melhoria das condies de vida da populao. Essa viso, aliada perspectiva de obter maiores lucros pessoais, fortalece a mentalidade de sonegao de impostos. No Brasil, talvez pela elevada carga tributria, pelo baixo nvel de retorno sociedade e pelos casos de corrupo, prepondera a cultura de no pagamento de tributos. Segundo Machado (2001) uma das pressuposies envolve o desconhecimento da importncia do Estado como regulador da vida em sociedade e dos tributos como mantenedores da mquina pblica (p. 31). Neste contexto, se insere o problema relativo ao grau de percepo da populao em geral a respeito da importncia do recolhimento espontneo dos tributos e da sua aplicao. A dinmica da luta da Educao Fiscal esta: educar o cidado a ser consciente, e, por isso prefere-se chamar Educao Fiscal e no Educao Tributria Uma vez que fiscal aquele que fiscaliza, que . vigia. Temos o fiscal de tributos, temos o fiscal do meio ambiente, temos o fiscal sanitrio, e tantos outros fiscais. Ento o que seria Educao Fiscal? Adquirir novos conhecimentos, adquirir novas capacidades, repensar atitudes. Mas o que o fiscal tem a ver com isso? A Educao Fiscal para fiscalizar quem? Primeiramente, cada um deve fiscalizar a si mesmo, cumprindo com sua parte e exigindo que as instituies cumpram com a parte delas. Devendo alcanar desde o empregado domstico, at os Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio. Tudo por uma melhor qualidade de vida. Viver com conforto, com sade, boa alimentao, gua tratada, ar limpo para respirar. E de quem depende tudo isso? Depende de cada um fazendo a sua parte e contagiando a outros para que tambm a faam. O lema da Educao Fiscal compromisso de cada um para o benefcio de todos Compromisso de cuidar do lixo, . no poluir dos rios, economizar gua, energia eltrica, participar dos oramentos pblicos, fiscalizar as contas do governo, e acompanhar a boa aplicao das verbas pblicas para que todos tenham redesa educao fiscal instrumento de cidadania 13

de esgoto, iluminao pblica, asfalto conservado, caladas, jardins, praas, parques, bons hospitais e escolas. Mas como garantir tudo isso quando h sonegao de impostos de um lado e desvio de verbas pblicas de outro? Exigindo a nota sempre no ato de uma compra ou ao contratar um servio, acompanhando a aplicao das verbas pblicas e exigindo direitos de consumidor, exercendo nossa cidadania. Em nossa sociedade ainda prevalecem falsos paradigmas sociais como o da cultura da sonegao fiscal. Muitas vezes as pessoas no atentam para o fato de que tudo o que pblico e est nossa volta e til e necessrio ao nosso cotidiano, foi construdo com os tributos que cada um pagou, uma vez que todos somos contribuintes, ainda que alguns sejam isentos do imposto de renda. Pagamos vrios impostos e contribuies ao consumirmos bens ou servios, muitas vezes sem percebermos. Portanto, o tributo algo inerente e essencial construo da vida em sociedade e, por isso, ele guarda relao direta com o cotidiano das pessoas. Portanto, a sonegao fiscal e a corrupo so crimes sociais da mais alta gravidade e que merecem o mais veemente repdio pblico. Ainda que diretamente no lesem a integridade fsica do cidado, indiretamente esses crimes tm um efeito social devastador, pois afetam principalmente as camadas da populao mais necessitada, que depende fundamentalmente dos servios Pblicos essenciais para garantir sua sobrevivncia. Quando um indivduo desinformado, inocentemente compra um CD pirateado, desconhece que o vendedor informal que o forneceu apenas a ponta de um gigantesco iceberg da indstria do crime que lucra bilhes de dlares por ano semeando a violncia, reduzindo milhes de seres humanos condio de escravo e outros tantos a um estado vexatrio provocado pela dependncia qumica que, para maioria, uma vlvula de escape, uma forma de alienao ante a dureza da realidade por elas vivida. Sabemos que mudanas comportamentais em uma sociedade complexa, multicultural e herdeira de um imenso fosso entre as classes sociais, como a nossa, so lentas e muito difceis. Mas so perfeitamente possveis quando h vontade poltica e ao coordenada dos poderes pblicos nas trs esferas. justamente por isso que no podemos mais adiar o debate sobre as questes aqui expostas.14 Joslia Maria Gonalves

nessa linha de informao que a Educao Fiscal busca, acima de tudo, sensibilizar o cidado para a funo social do tributo, possibilitando conhecimentos sobre Administrao Pblica, incentivando o acompanhamento pela sociedade da aplicao dos recursos pblicos. Evitando, assim, a inrcia da sociedade, fazendo com que a mesma se torne mais participativa e que possa opinante. Thiago Degelo Vinha afirma que:A noo da funo social do tributo, em substituio aos conceitos ortodoxos antigos, compreendia com a ateno ao dever social do Estado, que compreende obrigatoriamente a justia fiscal, num autntico Estado de Direito. (2008, p. 48)

O tributo no deve ser entendido como uma mera obrigao do cidado, mas como o preo da cidadania. A receita pblica, principalmente a proveniente da arrecadao dos tributos, fundamental para o desenvolvimento, econmico, social e cultural do pas. Por isso, tal receita dever ser aplicada para atender a funo social do tributo. Alm do que, o Estado tem a responsabilidade de destinar a aplicao adequada, os tributos vinculados, alm de prestar conta da aplicao desses recursos sociedade. Vale lembrar os dizeres de Thiago Degelo Vinha, o tributo, em sua acepo original, deve estabelecer o papel do Estado como prestador de servios ao contribuinte e no como seu patro e cobrador (VINHA, 2005, p.56). O Estado no um fim em si mesmo, mas um instrumento de organizao da sociedade. Ela a soberana, no o inverso. Portanto, o mesmo rigor que se estabelece na cobrana de impostos, precisa haver na prestao de contas. O nome disso cidadania. E a luta pela cidadania brasileira, to relevante quanto luta contra a ditadura. Sem justia tributria e sem cidadania fiscal no h democracia, desenvolvimento ou justia social. A relao jurdica tributria se verifica entre o fisco denominao dada ao Estado enquanto desenvolve atividade de tributao e aquele que est diretamente obrigado ao pagamento do tributo. O Direito, de um modo geral, tem por finalidade promover o equilbrio nas relaes entre os que tm e os que no tm poder. Sabido que o Estado a maior expresso de poder que se conhece, conclui-se que o Direitoa educao fiscal instrumento de cidadania 15

Tributrio tem por finalidade limitar o poder de tributar e proteger o cidado contra os abusos desse poder. Nessa linha de pensamento encontramos:Direito Tributrio o ramo do Direito quer se ocupa das relaes entre fisco e as pessoas sujeitas a imposies tributrias de qualquer espcie, limitando o poder de tributar e protegendo o cidado contra os abusos desse poder. (MACHADO, 2008, p. 141)

Desta forma, possvel conceituar o que disciplina o processo de retirada compulsria, pelo Estado, da parcela de riqueza de seus sditos, mediante a observncia dos princpios reveladores do Estado de Direito. a disciplina jurdica que estuda as relaes entre Fisco e Contribuinte. Cuida dos princpios e normas relativas imposio e a arrecadao dos tributos, analisando a relao jurdica (tributria), em que so partes os entes pblicos e os contribuintes, e o fato jurdico (gerador) dos tributos. O objeto a obrigao tributria, que pode consistir numa obrigao de dar (levar o dinheiro aos cofres pblicos) ou uma obrigao de fazer ou no fazer (emitir notas fiscais, etc). Devido a sua intensa atividade financeira envolvendo despesas e, em contrapartida, receitas, a conservao dos bens pblicos, o patrimnio, o controle monetrio, o oramento pblico, demandam a necessidade de arrecadao de tributos, para garantir o seu meio de subsistncia, para dirigir a economia e direcion-la para o bem estar social. O Estado, assim como qualquer indivduo, necessita de meios econmicos para satisfazer as suas atividades, sendo que o indivduo, de modo geral, tem entre as suas fontes de arrecadao de recursos, a venda da sua mo-de-obra, enquanto o Estado, para o cumprimento das suas obrigaes, a obtm atravs da tributao do patrimnio dos particulares, sem, contudo, efetuar uma contraprestao equivalente ao montante arrecadado. A Constituio Federal trata da questo tributria de forma genrica e a sua forma mais abrangente encontra-se na lei complementar, conhecida como Cdigo Tributrio Nacional. O sistema constitucional tributrio est contido no Ttulo VI, Da Tributao e do Oramento, abarcados pelos artigos 145 a 169.16 Joslia Maria Gonalves

Para atingir sua finalidade de promover o bem comum, o Estado exerce funes cujo custeio precisa de recursos financeiros ou receitas. As receitas do Estado provm de atividades econmico-privadas dos entes pblicos, de monoplios, de emprstimos, e principalmente da imposio tributria (fiscal, parafiscal, extra-fiscal). O direito de tributar do Estado decorre do seu poder de imprio pelo qual ele faz derivar de seus cofres uma parcela do patrimnio das pessoas sujeitas sua jurisdio e que so chamadas receitas derivadas ou tributos, divididos em impostos, taxas e contribuies. O Estado, ao exigir da pessoa sob sua jurisdio a contribuir, deve obedecer a determinadas normas, cujo conjunto constitui o Direito Tributrio. No latim, fiscus era o apelativo de um paneiro de pr dinheiro, um cesto de junco ou vime, com asas e que era sinnimo de tesouro do prncipe ou bolsinho imperial. Embora a palavra fisco corresponda hoje ao sujeito ativo da relao jurdico-tributria, v-se que, historicamente, fiscus, em contraposio ao tesouro pblico, era o tesouro privado do imperador, donde veio a palavra confisco . Assim, temos o Estado na sua qualidade de fisco e as pessoas que juridicamente esto a ele sujeitas na qualidade de contribuintes ou responsveis. Se para obter esses meios, o Fisco efetuasse arrecadaes arbitrrias junto s pessoas, escolhidas ao acaso, no se poderia falar de um Direito Tributrio. A caracterstica de uma imposio sob os princpios do Estado de Direito est exatamente na disciplina da relao tributria por meio da norma jurdica. A denominao tributo origina-se do latim tributum, que significa o que se entrega ao Estado, em sinal de dependncia, o que presta ou rende por dever. O conceito de tributo, ao longo de sua evoluo histrica, teve grandes mudanas na sua teoria geral, apresentando-se diferente em diversas etapas da histria. Pode-se afirmar que, mesmo nas comunidades primitivas, o tributo se apresentava como uma exigncia da autoridade para com seus subordinados, a fim de atender o interesse coletivo (MORAIS, 1996, p. 49). Historicamente, na . evoluo do conceito de tributo, percebe-se que este passou de uma forma lenta, partindo da fora, para uma forma mais aberta, baseadoa educao fiscal instrumento de cidadania 17

na lei, ou seja, deixa de ser fruto do poder arbitrrio ou discricionrio do Estado para se constituir num instrumento jurdico (legal) de receita pblica, definido pela lei originria (MORAIS, 1996, p. 62) . O conceito de tributo no Brasil est legalmente determinado pela definio do Cdigo Tributrio Nacional, no art. 3:Tributo toda prestao pecuniria compulsria, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que no constitua sanso de ato ilcito, instituda em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. (CTN, 2009)

Esta definio permite que todos os cidados conheam os elementos comuns a toda espcie tributria, bem como os elementos diferenciadores das demais receitas pblicas. Percebe-se que assim como o Estado passou por vrias transformaes, a figura do tributo tambm se modificou no decorrer da evoluo da humanidade. Hodiernamente, com o Estado de Direito, no se concebe a obteno de recursos financeiros, to somente a partir da explorao do patrimnio do Estado. Usufruindo, este, de seu poder fiscal, obtm recursos a partir da imposio legal aos particulares, fazendo com que os mesmos contribuam repassando receitas ao Estado, possibilitando-se a consecuo de seus fins. O tributo, por sua origem, uma receita pblica derivada e compulsria, com o Estado impondo ao particular uma obrigao alheia vontade deste, onde tal poder fiscal sobrevm de sua soberania. Leciona Machado: No exerccio de sua soberania o Estado exige que os indivduos lhe forneam os recursos de que necessita . (MACHADO, 2008: 31) Sendo a tributao revestida de valiosa importncia para a administrao pblica, ela se apresenta como a forma mais legtima e socialmente justa para o financiamento dos gastos governamentais. De fato, os tributos exercem a funo de assegurar o desenvolvimento econmico e o bem-estar de um povo; quando utilizados em obras e servios pblicos esto cumprindo o papel social para o qual foram institudos. Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2001) o tributo, verdadeira receita derivada o principal elemento financeiro de sustentao do18 Joslia Maria Gonalves

Estado e de seus ideais de justia, soberania e democracia (p: 27). O tributo hoje cobrado no Brasil tem funo social, com finalidades bsicas de: arrecadar receita pblica para o Estado, servir de instrumento de poltica econmica e atender s exigncias sociais. Para a realidade atual, o tributo tem funo social, uma vez que considerado como fundamento da prpria organizao social, nas suas diversas facetas, alm de ser o fundamento do Estado moderno. Nessa direo, o tributo exerce papel indispensvel para a obteno dos fins do Estado. Joo Ricardo Catarino afirma sobre isso:[...] se atravs do imposto que o Estado obtm a maioria dos meios para dar satisfao s necessidades coletivas e realizar os seus fins, ento parece poder concluir-se que o tributo algo inerente, integrante da vida coletiva, anterior at a prpria noo de Estado. (CATARINO, 1999, p. 26)

Diante dessa afirmativa, nunca demais ressaltar a importncia da atividade tributria para a manuteno do Estado e da funo socioeconmica do tributo para a cidadania, visto que o imposto demonstrado, por excelncia, nos atuais oramentos pblicos como pressuposto financeiro do aparelho do Estado e constitui uma parte substancial do produto social de um pas. Nos dias atuais, a prtica comum revela que h uma relao profunda e conflituosa entre tributo e cidadania, e que os interesses do Estado e cidado so antagnicos e conflitantes, cuja desarmonia, em parte, provocada por alguns fatores e comportamentos do atual sistema tributrio brasileiro, como a ausncia de transparncia fiscal por parte dos governos, as impropriedades na utilizao de receitas pblicas, a desobedincia aos princpios da tributao, dentre outros. Menciona Thiago Degelo Vinha que o tributo no pode ser objeto de apropriao pelo Estado, nem instrumento de legitimao do poder pblico, desligado da causa e valores que o suportam (VINHA, 2001, . p. 35). No entanto, o que se verifica hoje um Estado com crescente aumento do nmero de excludos sociais, utilizando indevidamente os impostos, elevando a dvida social do segmento mais pobre da populao. bem verdade que a dvida social acumulada no Pasa educao fiscal instrumento de cidadania 19

representa um grande obstculo para um melhor entendimento entre o Estado e a Sociedade. Sendo que o mais inexorvel de tudo isso que os objetivos e interesses do cidado e do Estado so os mesmos e no h razo para antagonismos, uma vez que isso s dificulta a aproximao e fortalece o desentendimento. Do lado do Estado apresentada uma srie de razes para justificar a exigncia do tributo, sua justia, sua aplicao correta, a necessidade de maior volume de recursos para exercer suas funes. O cidado, do outro lado, reage imposio do Estado, alegando uma srie de pontos em favor de sua posio: tributo injusto, taxao elevada, benefcios advindos dos impostos no atendem s demandas sociais, enfim, o Estado mau gestor das finanas pblicas. Um ponto fundamental a ser considerado que o governo, exercendo ou no a real funo social do tributo, necessita do envolvimento do cidado nas atividades do Estado. Alm do que, quem faz o governo so os cidados, atravs dos representantes que elegem. Ento, a eles compete utilizar os meios disponveis em busca de obter o aperfeioamento do Estado na prestao eficaz dos servios pblicos. Assim, como o processo de arrecadao tributria imprescindvel para o Estado, a participao e o controle social da gesto dos recursos pblicos pela sociedade dever ser uma busca permanente como forma do exerccio consciente da cidadania. funo do Estado, conclamar os cidados a utilizar uma das mais eficientes armas de uma sociedade civilizada e moderna: o exerccio da cidadania e o cidado como parte ativa do controle do Estado. Conceitualmente, cidadania o livre exerccio dos direitos e deveres, civis e polticos, de um cidado. De acordo com o filsofo Aristteles, se o homem pudesse viver sozinho, ento ele seria um animal selvagem ou um Deus, no poderia ser um homem comum, como os outros que vivem em sociedade. Por ser um animal perfeito para viver em sociedade, a justia a base desta, pois esta determina a vida socivel. Observa-se que, na polis, a justia que d garantias para que o homem possa se estabelecer em sociedade, pois a lei garante sua cidadania. No final da Idade Mdia, com o processo de formao do capitalismo e de afirmao da burguesia, a definio de cidadania ganhou fora. Nas cidades medievais, os habitantes j eram considerados homens20 Joslia Maria Gonalves

livres, medida que no estavam mais submetidos aos laos feudais. Com o desenvolvimento das monarquias nacionais europias, a idia de cidadania estendeu-se ao indivduo no conjunto dos habitantes de uma nao. Com a Revoluo Francesa, no final do sculo XVIII, surgiram as famosas declaraes dos Direitos do Homem e do Cidado, quando a burguesia, ao desalojar a aristocracia, conquistou o poder poltico. Nessa poca, as palavras igualdade e liberdade ganharam contedo ideolgico, bem como o conceito de cidadania. Foram as lutas polticas e sociais dos sculos XIX e XX, ao incluir parcelas maiores da populao, que ampliaram de fato os direitos de cidadania. Os deveres da cidadania so aqueles em que o individuo, em suas interaes com outros indivduos da mesma natureza e tambm nas suas relaes com o Estado, v-se obrigado a exercer: a obedincia s leis estabelecidas, o que torna possvel a vida em sociedade; a contribuio para as atividades de defesa pblica, sempre que se encontrar ameaada integridade da coletividade; a contribuio para o financiamento das atividades de interesse comum da coletividade. Desta forma, equivale dizer que o pagamento de impostos existe para viabilizar todos os servios e bens oferecidos pelo Estado sociedade. No Brasil, a cidadania uma garantia constitucional e representa a essncia do Estado brasileiro. A Constituio Federal de 1988 introduziu harmonicamente os fundamentos do Estado Democrtico de Direito, que o Estado politicamente organizado, que possui suas prprias leis e as respeitam, o que permite fundamentar a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo poltico. Em seu artigo 6, a Constituio consagrou os direitos sociais dos brasileiros como a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados. necessrio que Estado e Cidados procurem entender que cidadania muito mais que mero direito poltico. Ela participao crescente, de forma direta ou indireta, nos atos governamentais, nas decises coletivas que afetam a vida e o destino do cidado. A formao da cidadania se faz, antes de tudo, pelo seu exerccio, pois somente aprende-se a participar, participando.a educao fiscal instrumento de cidadania 21

Nessa perspectiva, a proposta ter um cidado consciente, capacitado a entender o Estado, seu funcionamento, as aes de todos os componentes de sua estrutura, e que possa avaliar a atuao dos administradores pblicos. Por outro lado, a sociedade espera por um Estado Moderno, capaz de atender s demandas sociais. Face aos mltiplos desafios do futuro, a educao surge como um trunfo indispensvel da humanidade na construo dos ideais de paz, liberdade e justia social. A justia social tem na conscincia dos direitos e deveres sua pedra angular. A construo de uma sociedade democrtica e produtiva tem suas razes no conhecimento que permite s pessoas atuarem como cidados, exercendo a cidadania consciente de sua responsabilidade social; responsabilidade essa, compartilhada entre o Estado, a Administrao Pblica e os cidados. Pedro Demo afirma que o Estado no o que diz ser nem o que quer ser, mas o que a cidadania popular organizada o faz ser e querer (DEMO, 2004, p. 54) . O estudo da arte que permitiu a elaborao do presente trabalho traz em seus postulados o conhecimento necessrio para referenciar a construo conceitual da Educao Fiscal para a Cidadania e a convico de que o Estado e a administrao Pblica devem promover e garantir os servios essenciais para os cidados e os direitos humanos bsicos como direitos civis, polticos, sociais e econmicos, permitindo aos cidados a participao ativa no processo de construo social que contribuir para uma vida cada vez mais digna para todos. Compreende-se, portanto, que a Educao Fiscal tem um enorme desafio e uma grande misso em ser um meio para construir a cidadania, abrir caminho para o desenvolvimento social, poltico, econmico e humano de uma nao, afinal, atuar como cidado para transformar o Brasil num Estado Social de Direito e ter cidados conscientes e co-participantes da construo social dever do Estado e de cada cidado brasileiro.

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Joslia Maria Gonalves

REFERNCIAS BIBLIOGRFICASAMARO, Luciano. Direito tributrio brasileiro. 13 ed. So Paulo: Saraiva, 2007 ARISTTELES. Poltica. 2 ed. Braslia: UNB, 1988. BRASIL. Cdigo Tributrio Nacional. Lei n 5.172, de 25 de Outubro de 1966. 8 ed. So Paulo: Saraiva, 2002. ______. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. 3 ed. So Paulo. ______. MINISTRIO DA FAZENDA. SECRETARIA EXECTUVA. Escola Superior de Administrao Fazendria. Programa Nacional de Educao Fiscal. Eu acredito na Educao Fiscal. DEMO, Pedro. Poltica Social, Educao e Cidadania. 7 ed. So Paulo: Papirus Editora, 2004. ESAF. Escola de Administrao Fazendria: Programa Nacional de Educao Fiscal PNEF, 2008 ESTADO. Tribunal de Contas, Tudo s Claras Lei de Responsabilidade Fiscal, 2001. FREIRE, Paulo. Educao e mudana. Trad. e prefcio Moacir Gadotti e Lillian Lopes Martins. 6 ed. So Paulo: Paz e Terra, 1994. (Coleo Educao e Comunicao, 2). MARTINS, Srgio Pinto. Manual de Direito Tributrio. 5 ed. So Paulo: Atlas, 2006. MORAES, Bernardo Ribeiro. Compndio de Direiro Tributrio. 5 ed. Rio de Janeiro, 1996 NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Considraes sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. So Paulo: Editora Renovar, 2001. VADE MECUM SARAIVA. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaborao de Luiz de Toledo Pinto, Mrcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lvia Cspedes. 5 ed. So Paulo: Saraiva, 2008. VINHA, Thiago Degelo, RIBEIRO, Maria de Ftima Ribeiro. Efeitos socioeconmicos dos Tributos e sua utilizao como instrumento de polticas governamentais. 3 ed. Curitiba: Juru, 2005.

a educao fiscal instrumento de cidadania

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A medida cautelar como tutela de urgncia no processo civil brasileiroAparecida de Ftima Pirovani Amorim Lopes

ResumoConsiste este trabalho em um breve estudo sobre o processo cautelar. Tem como meta demonstrar qual o seu objetivo principal, comentando sobre como identific-lo e qual sua utilidade, explicando seus requisitos e mostrando como funcionam as medidas cautelares preparatrias e incidentais. Palavras-chaves: Tutela Cautelar; Processo Principal; Processo Cautelar; Medida Cautelar Tpica e Atpica.

AbstractThis work consists in a brief study about the relief process. It has as a goal to demonstrate its main purpose, commenting about how to identify it and what is its utility, explaining its requirement and showing how the preparatory and incidental relief steps work. Keywords: Relief Custody; Main Process; Relief Process; Typical and Atypical Relief Step.

revista vox n 2 | jan-jun | 2010

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Desde o momento em que ocorre uma possvel leso at o momento em que, declarado o direito da parte, o Judicirio entrega ao credor o bem jurdico devido ou seu equivalente compensatrio, muitos bens jurdicos permanecem, por longo tempo, envolvidos no processo ou aguardando os atos de satisfao final. Esses bens jurdicos, em virtude do tempo, correm perigo de deteriorao, a ponto de poder tornar-se intil toda a atividade jurisdicional se no existir um outro tipo de providncia assecuratria da subsistncia e conservao material e jurdica desses bens. Contudo, durante o perodo em que o processo estiver em tramitao, a situao material no permanece imutvel ou parada de fato, ela continua viva e dinmica, podendo inclusive sofrer modificaes naturais. Assim, plenamente possvel que o processo principal chegue a seu final e no mais encontre a situao jurdica sobre a qual a jurisdio deveria atuar. Decorrente desse decurso natural do tempo em resolver a lide instaurada no processo principal que existe o processo cautelar e as medidas cautelares, que formam um tipo de atividade destinada a proteger bens jurdicos ou pessoas envolvidos no processo, os quais so representados por pessoas, bens e provas. Humberto Theodoro Junior dispe que:Toda medida cautelar caracterizada pela provisoriedade, no sentido de que a situao preservada ou constituda mediante o provimento cautelar no se reveste de carter definitivo, e, ao contrrio, se destina a durar por um espao de tempo delimitado. De tal sorte, a medida cautelar j surge com a previso de seu fim. Significa essa provisoriedade, mais precisamente, que as medidas cautelares tm durao temporal limitada aquele perodo de tempo que dever transcorrer entre a sua decretao e a supervenincia do provimento principal ou definitivo. Por sua natureza, esto destinadas a ser absorvidas ou substitudas pela soluo definitiva do mrito. (THEODORO JNIOR, 1997, p. 377)

O Cdigo de Processo Civil Brasileiro, seguindo a orientao doutrinria dominante, concebeu a funo jurisdicional como busca de trs resultados distintos: o conhecimento, a execuo e a conservao.26 Aparecida de Ftima Pirovani Amorim Lopes

Da, a diviso do Cdigo, que cuida do processo de conhecimento, de execuo e cautelar, nos Livros I, II e III, respectivamente. O processo de conhecimento tem como funo primordial a de gerar um pronunciamento judicial em que o juiz aplique situao de fato, descrita e comprovada pelo autor, o direito correspondente. No processo de execuo, por sua vez, providencia-se o cumprimento efetivo do mandamento judicial emitido no processo de conhecimento ou a realizao, no mundo emprico, do mandamento contido em documentos cuja fora e eficcia a lei praticamente equiparada de uma sentena judicial. J o processo cautelar aquele por meio do qual se obtm meios de garantir a eficcia plena do provimento jurisdicional, a ser obtido por meio de futuro (ou concomitante) processo de conhecimento ou de execuo. Desta forma, a ao cautelar consiste no direito de assegurar que o processo possa conseguir um resultado til. No Cdigo de Processo anterior, de 1939, a cautelar era tratada como processo acessrio, includo no ttulo das medidas preventivas. Quando da elaborao do atual Cdigo, a cautelar ganhou autonomia como forma de prestao jurisdicional especfica. Vale dizer, portanto, que o processo cautelar foi posto pelo legislador ao lado do processo de conhecimento e do processo de execuo. Foi-lhe conferido o mesmo status dos outros dois processos, sendo por isso denominado pelos autores como um tertium genus. Defende Pontes de Miranda queAs medidas cautelares, ou medidas preventivas so todas as que atendem pretenso de segurana do direito, da pretenso, ou da prova, ou da ao. Ensina-nos este jurista que Enrico Allorio procurou estudar a natureza das aes cautelares, mas, como desconhecia a natureza das aes mandamentais de Georg Kuttner, seu estudo tornou-se confuso. Para ele, a ao de segurana, preventiva, cautelar, seria declarativa ou executiva. Com Chiovenda a questo foi ilidida, uma vez que considerou as aes cautelares uma espcie parte. (MIRANDA, 2003, p. 3)

Apesar disso, todos os ilustres estudiosos da poca confundiam a antecipao da execuo e a assegurao da prestao Esta ltima . peculiar somente a algumas aes cautelares, pois ausente aa medida cautelar como tutela de urgncia... 27

qualquer execuo nas aes de produo antecipada da prova e na maioria das aes de exibio. Podemos concluir que o processo cautelar apresenta-se, portanto, como autnomo, acessrio, instrumental e de funo predominantemente preventiva. A eficcia do processo cautelar provisria e o processo, sumrio. Ademais, a liminar e sentena proferidas no processo cautelar, por basearem-se em prova no exauriente, so revogveis, sendo que a sentena proferida em processo cautelar no produz coisa julgada material.

1. Tutela CautelarO artigo 5, XXXV da Constituio Federal de 1988 diz que A lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito . (BRASIL,1988, p.12). Para que se alcance plenamente a pretenso contida no referido inciso do artigo 5 da Constituio Federal de 1988, prev o ordenamento jurdico formas de tutelas de urgncia que tenham aptido de evitar a ocorrncia de leso a direitos merecedores de proteo jurdica. Como o tempo de durao pode comprometer a eficcia e utilidade do provimento judicial esperado na composio definitiva do litgio, a histria do Direito Processual vem registrando, de longa data, a configurao de medidas provisrias, distintas das de satisfao do direito material da parte, mas que asseguram o seu til exerccio, caso a soluo final da demanda lhe seja favorvel. A respeito da lentido do procedimento ordinrio discorre Luiz Guilherme Marinoni:Na verdade, o direito processual imprescindvel em nvel de efetividade para a sobrevivncia do prprio direito substancial. Cabe investigar, assim, como possvel a tolerncia da difundida lentido do processo de conhecimento, e da sua consequente inefetividade para a tutela dos direitos. Partindo-se da premissa de que os detentores do poder costumam conseguir legislaes que bem tutelam os seus interesses, parece estranho que os interessados na dinamicidade da economia deixem de lado a lentido da justia civil. Tal contradio apenas aparente: primeiro porque o procedimento ordinrio no constitui 28 Aparecida de Ftima Pirovani Amorim Lopes

bice s aspiraes da classe dominante medida que esta, patrocinando o lobby, consegue procedimentos diferenciados que tutelam egoisticamente seis interesses; e, em segundo lugar, porque os grandes grupos econmicos resolvem as demandas que lhes so mais sensveis a margem da justia estatal. (MARINONI, 1994, p. 01) Assim, ao lado da tutela de conhecimento e da executiva, ambas de carter satisfativo, concebeu-se a funo acessria, complementar, da tutela cautelar, com o propsito claro de afastar os incmodos da demora inevitvel entre a deduo da demanda em juzo e a resposta definitiva da jurisdio.

A tutela cautelar caracteriza-se como uma forma autnoma de proteo jurisdicional que atua de maneira preventiva, acobertando e protegendo determinado direito, ou estado de direito legtimo e que se encontra sob ameaa de perecimento em virtude de um dano sabido, iminente e de difcil reparao. Pode-se afirmar que a tutela cautelar h de carregar consigo dois elementos sequenciais: o primeiro, de carter objetivo, a urgncia, que funciona como verdadeiro requisito legitimador da necessidade da tutela cautelar; o segundo, de ordem subjetiva, a forma em que o Judicirio dever julgar a demanda: atravs de tcnicas de cognio sumaria. Diante de tais consideraes, ficam-nos claros os motivos que levaram a doutrina a lecionar que a finalidade do processo cautelar assegurar o resultado do processo de conhecimento ou do processo de execuo . Feitas tais dedues, podemos dizer que a tutelar cautelar nasce de um estado de urgncia e exige um procedimento especial, de cognio sumria, com intuito de assegurar, de forma no-satisfativa, o direito alegado pela parte que, uma vez assegurado, poder ser alvo do processo cognitivo ordinrio, este sim de natureza satisfativa. Com base no artigo 796 do Cdigo de Processo Civil, podemos classificar primeiramente as aes cautelares em preparatrias e incidentes, a segunda classificao em inominadas e tpicas, que se subdivide em: assecuratrias de bens, assecuratrias de pessoas,a medida cautelar como tutela de urgncia... 29

assecuratrias de provas e de natureza no cautelar e a terceira e ultima em contenciosas e no contenciosas. Passamos a analisar cada caracterstica separadamente. So preparatrias: quando proposta antes da ao principal. Um dos requisitos da petio inicial dessa cautelar so a lide e seus fundamentos, ou seja, necessrio que se indique qual o objeto da demanda principal. Conhecer a lide principal essencial para que o juiz julgue se a cautelar preparatria ser concedida ou no. As cautelares preparatrias, como regra, exigem a propositura da ao principal no prazo de 30 dias aps a execuo da tutela cautelar. Essa regra geral s se aplica s cautelares restritivas de direitos, ou seja, quando se causar algum gravame ao requerido. O objetivo do prazo evitar que o requerente eternize a cautelar. Esse prazo tem carter decadencial, ou seja, no sendo proposta a ao principal, cessa a eficcia da cautelar. So incidentes: aquelas propostas no decorrer do processo principal. No caso, irrelevante que se indique qual o objeto da demanda principal, tendo em vista que o julgador tem conhecimento prvio do mesmo, devido ao fato de j existir a demanda principal. Inominadas: so aquelas fundadas no Poder Geral de Cautela do juiz. O Livro das Cautelares no Cdigo de Processo Civil dividido em duas partes. A primeira dedicada ao Poder Geral de Cautela do juiz. O Cdigo simplesmente determina que, havendo risco ou ameaa de leso, o juiz pode conceder a tutela cautelar e, a partir da, narra o procedimento para se conceder a tutela cautelar. Tpicas: so as denominadas na segunda parte do Cdigo de Processo Civil. Alm disso, o Cdigo relaciona as hipteses e os requisitos para a sua concesso. As cautelares tpicas se subdividem em: Assecuratrias de bens: cautelar para assegurar o bem objeto da demanda; Assecuratrias de pessoas: cautelar para evitar que alguma das partes perea no decorrer do processo; Assecuratrias de provas: cautelar para garantir a melhor sentena, preservando-se as provas; Natureza no-cautelar: cautelares inscritas no Livro das Cautelares, mas no se encontra nelas um provimento jurisdicional cautelar (ex.: cautelar de justificao, que tem por finalidade somente30 Aparecida de Ftima Pirovani Amorim Lopes

a produo em juzo da existncia ou no de uma relao jurdica; o juiz no produz deciso); Contenciosas: haver o nus de sucumbncia; No-contenciosas: no haver o nus de sucumbncia. A tutela cautelar apresenta caractersticas, por necessidade de tutelar-se uma grande situao de perigo de dano, abaixo podemos entender melhor cada uma: Instrumentalidade: no caso, instrumentalidade tem uma conceituao especfica, qual seja: as cautelares no tm um fim em si mesmas, ou seja, quando a parte requerer uma cautelar, estar visando a preservao de um outro direito que dever ser reconhecido ou ser objeto de um processo de conhecimento ou de execuo; Preventividade: as cautelares tm por objetivo evitar dano ou risco de dano, ou seja, depois que o dano se concretizou, a cautelar no mais a via adequada para se tentar revert-lo; Provisoriedade: as cautelares produziro efeitos at que no mais exista o risco de dano irreparvel ou de difcil reparao; Revogabilidade: concedida ou no a cautelar, a concesso ou a deciso dada luz de um determinado momento processual, ou seja, se a situao ftica for modificada, perfeitamente vlido que a cautelar concedida possa ser revogada, que a cautelar negada venha a ser concedida, ou ainda, que a cautelar possa ser modificada; Autonomia: o objeto do processo cautelar no o mesmo do processo principal, ou seja, para que o juiz julgue procedente uma cautelar, o requerente dever superar requisitos diferentes daqueles da procedncia da ao principal. No processo cautelar no h necessidade de certeza do direito; basta que exista a possibilidade do direito (cognio sumria) e o risco de dano irreparvel ou de difcil reparao. Esse dano irreparvel um dano processual, um dano que torna o provimento principal ineficaz; A fungibilidade: No direito significa a substituio de uma coisa por outra, sem alterao do seu valor, desde que se possa contar, medir ou pesar. Esta substituio j era conhecida dentro do ordenamento jurdico brasileiro na Teoria Geral dos Recursos, quando um recurso poderia ser recebido por outro, desde que o erro no fosse grosseiro e estivesse ausente a m-f por parte do postulante, bem como nas possessrias.a medida cautelar como tutela de urgncia... 31

Com o advento da lei 10.444/02 e incluso do 7 ao artigo 273 do Cdigo de Processo Civil, foi que a referida fungibilidade foi expressamente includa no texto legal permitindo sua aplicao entre as tutelas de urgncia, verificando-se que o legislador deixou de lado o rigor do formalismo jurdico, em proveito da efetividade e instrumentalidade do processo. Cndido Rangel Dinamarco leciona que:

A nova reforma procura mitigar essas dificuldades, ao estabelecer a regra da fungibilidade entre a tutela cautelar e a antecipada, o que deve abrir horizontes para uma caminhada de maior esclarecimento de ambos os institutos e do gnero que integram. [...] Quando bem compreendido em fazer do sistema das medidas urgentes, esse novo dispositivo tem um significado e uma dimenso que podem ir muito alem dos objetivos do prprio legislador, em proveito da maior efetividade da tutela jurisdicional e de sua tempestividade. Ele pode valer muito mais pelos caminhos que capaz de abrir, do que por aquele que resulta da mera leitura de suas palavras. A fungibilidade entre as duas tutelas deve ser o canal posto pela lei disposio do interprete e do operador para a necessidade caminhada rumo unificao da teoria das medidas urgentes ou seja, para a descoberta de que muito h, na disciplina explicita das medidas cautelares, que comporta plena aplicao s antecipaes de tutela. (DINAMARCO, 2002, p. 91 e 92)

Desta forma, firma-se definitivamente o entendimento de que no importa se a forma eleita pela parte em pleitear o pedido for a equivocada, at porque, por vezes, incerta a natureza do pedido. O necessrio demonstrar a urgncia da tutela preventiva, seja ela para resguardo do Direito Material ou ainda da prpria relao processual estabelecida. Cndido Rangel Dinamarco ministra que a fungibilidade se d em duas mos de direo, ou seja, tanto a medida cautelar poder ser transformada em tutela antecipada, quanto poder ser convertida em cautelar:32 Aparecida de Ftima Pirovani Amorim Lopes

O novo texto no deve ser lido somente como portador da autorizao a conceder uma medida cautelar quando pedida a antecipao da tutela. Tambm o contrario est autorizado, isto : tambm quando feito um pedido a titulo de medida cautelar, o juiz estar autorizado a conceder a medida a titulo de antecipao de tutela, se esse for o seu entendimento e os pressupostos estiverem satisfeitos. No h fungibilidade em uma s mo de direo. Em direito, se os bens so fungveis isso significa que tanto se pode substituir um por outro, como outro por um (DINAMARCO, 2002, p.92).

Verifica-se que a efetividade e a instrumentalidade do processo devero sempre ter maior enfoque em detrimento do princpio da segurana jurdica e do exacerbado apego ao formalismo processual, que hodiernamente o responsvel pelo atravancamento de milhares de processo judiciais por todo pais. Vale salientar que o referido instituto no visa o fim do processo cautelar, e sim sua flexibilidade ante o elevado grau de velocidade que os fatos ocorrem e a impossibilidade do legislador em prever todas as situaes de risco ao direito da parte. Temos visto que a fungibilidade no se restringe to somente entre as providencias cautelares, mas tambm entre cautelares e antecipatrias. Referibilidade: tem por objetivo distinguir as cautelares das tutelas antecipadas. Nas cautelares, ao requererem a tutela, as partes invocam o risco de dano a um outro direito ou a uma outra tutela. Mandamentabilidade: possuem esta caracterstica, pois, quando o juiz emite uma ordem nos provimentos cautelares, ela deve ser imediatamente cumprida, portanto, as aes cautelares renem cognio e execuo em uma nica relao processual. Por exemplo, quando um juiz defere uma ordem de busca e apreenso requerida em ao cautelar, o mesmo est expedindo que a referida ordem seja cumprida. Alm das condies de admissibilidade da ao cautelar, que so as condies gerais da ao (possibilidade jurdica do pedido, interesse processual e legitimidade das partes) para requerer essa cautelar, necessrio que se tenha como pressupostos de procednciaa medida cautelar como tutela de urgncia... 33

o periculum in mora e o fumus boni iuris. Jos Frederico Marques, ao descrever os pressupostos, diz que:[...] A ameaa de leso grave e de difcil reparao o periculum in mora. Se a ameaa no existe, ou se o risco da dilao processual no se refere a leso grave, no cabe medida cautelar. Igualmente ser esta inadmissvel se o ato lesivo, apesar de grave, for de fcil reparao. (MARQUES, 1997, p. 392)

No que se refere ao periculum in mora, deve o autor demonstrar que o fato de o magistrado no intervir de forma imediata pode importar o perecimento do direito substancial a ser disputado pelas partes na ao principal, ou seja, de que no-atuar do magistrado resultar prejuzo para a ao principal, com o perecimento do bem ou do direito que seria em juzo debatido, no se admitindo o simples receio subjetivo do autor, reclamando-se a demonstrao objetiva de que a demora natural do processo ou que atos manifestados pelo ru pem em risco o resultado do processo principal.O fumus boni iuris outro pressuposto da tutela cautelar, razo pela qual, quando se pede uma antecipao provisria do resultado final do processo, deve haver uma pretenso provvel, como objeto indireto ou mediato do processo cautelar. (MARQUES, 1997, p. 392)

Para a tutela cautela, portanto, basta provvel existncia de um direito a ser tutelado no processo principal. E nisto consistiria o fumus boni juris, isto , no juzo de probabilidade e verossimilhana do direito cautelar a ser acertado e o provvel perigo em face do dano ao possvel direito pedido no processo principal. Pois se a prova por completo robusta, firme, slida, encontramonos diante de um direito lquido e certo; sendo a prova razovel, estaremos diante da verossimilhana da alegao; na hiptese de a prova ser superficial, encontramo-nos diante do fumus boni juris. Certo que o fumus boni juris e o periculum in mora so fatores indispensveis para o deferimento da liminar, todavia, outro elemento tambm h de ser levado em considerao para se ter certeza da34 Aparecida de Ftima Pirovani Amorim Lopes

procedncia da ordem mandamental, qual seja, o imperativo e criterioso periculum in inverso, que nada mais do que a verificao da possibilidade de deferimento da liminar causar mais dano parte requerida do que visa evitar a requerente. A anlise do periculum in verso fundamental para a concesso da cautela, sendo que, poder ser fator impeditivo para que isto ocorra se mostrar-se axiologicamente superior aos dois pressupostos que, em tese, a autorizariam. Trata-se de questo de bom senso. Nenhum magistrado deferir uma medida initio litis se averiguar que os efeitos de sua concesso podero causar danos nefastos mais violentos do que visa evitar. O artigo 800 caput do Cdigo de Processo Civil define a competncia, em se tratando de primeiro grau. O juiz competente para apreciar do pedido de tutela cautelar o juiz competente para conhecer do pedido da tutela do direito acautelado. Se j existir um processo principal, o pedido da tutela cautelar ter que ser requerida ao juiz da causa. Ela poder ser requerida incidentalmente. Se a tutela cautelar for preparatria, ser competente o juzo que tem competncia para conhecer do direito que se pretende assegurar ou da condio jurdica tutelvel. J o pargrafo nico do mesmo artigo, fala sobre a competncia em segundo grau de jurisdio, ou seja, a competncia para a apreciao dos recursos contra as decises proferidas ao longo do processo cautelar, que ser a mesma estabelecida para os demais tipos de processo. Contudo, a competncia do tribunal s ser atribuda aps a interposio do recurso, o que significa dizer que mesmo aps a prolao da sentena mas antes da interposio da apelao (ou agravo, quando for o caso) , ainda que no prazo, o juzo a quo mantm sua competncia para o processo cautelar que venha a se instaurar. A partir do momento em que interposto o recurso, a medida cautelar ser requerida diretamente ao tribunal, mesmo que os autos do processo principal no tenha sido remetido para a instncia superior. A sentena proferida em processo cautelar no faz coisa julgada material, que a eficcia que torna imutvel e indiscutvel a sentena de mrito, no mais sujeita a recurso (CPC, art. 467). caracterstica de medida cautelar como provimento emergencial de segurana, a possibilidade de sua substituio (CC, art. 805), modificao oua medida cautelar como tutela de urgncia... 35

revogao, a qualquer tempo (CPC, art. 807).

2. A reforma do cdigo de Processo Civil de 1994De acordo com a redao dada pela Lei 8.952/94, o texto revogado era evidentemente assim: Art. 273 O procedimento especial e o procedimento sumarssimo regem-se pelas disposies que lhe so prprias, aplicando-lhes, subsidiariamente, as disposies gerais do procedimento ordinrio . Agora se tem positivado da seguinte forma:O juiz poder, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequvoca, se convena da verossimilhana da alegao. (MARINONI, 2008, p. 267).

As reformas do CPC foram muito importantes, pois abriram oportunidades de requerimento de antecipao de tutela, em caso de periculum in mora, Sergio Cruz Arenhart diz que:[...] no apenas em razo das novas situaes de direito material, que se mostraram carentes de tutela antecipatria, mas principalmente porque a doutrina e os tribunais no admitiam a prestao da tutela satisfativa fundada em cognio sumria, com base na tcnica cautelar. (ARENHART, 2008, p. 60)

Com essa reforma aconteceram diversas mudanas, generalizando a tutela antecipatria, trazendo inmeras vantagens para quem propor a ao, pois obteve-se consequncias no apenas no processo cautelar, mas tambm no de conhecimento e execuo, uma vez que a orientao do legislador foi clara: admitiu explicitamente a possibilidade de concesso de medidas de antecipao do prprio direito material afirmado pelo autor. Teori Albino Zavascki afirma que:Assim, aps a reforma, j no se pode mais questionar da legitimidade das medidas provisrias satisfativas, providencia que passou a ser cabvel, em qualquer ao de conhecimento. No entanto, sua concesso est sujeita a regime prprio, inconfundvel e, em alguns aspectos, mais rigoroso que o das 36 Aparecida de Ftima Pirovani Amorim Lopes

medidas cautelares, a saber: (a) a antecipao da tutela se d na prpria ao de conhecimento, mediante deciso interlocutria, enquanto as medidas cautelares continuam sujeitas a ao prpria, disciplinada no Livro de Processo Cautelar, (b) a antecipao da tutela est sujeita a pressupostos e requisitos prprios, estabelecidos pelo art. 273 do Cdigo de Processo Civil, substancialmente diferentes dos previstos no art. 798 (CPC), aplicveis estes apenas as medidas genuinamente cautelares. Inconcebvel, desde ento, pensar-se em antecipao da tutela como pretenso apta a ser deduzida em ao autnoma, ainda que preparatria a uma ao principal. (ZAVASCKI, 2008, p. 46)

Com a inovao trazida pelo Cdigo, no eliminou-se, segundo Zavascki, a distino entres as medidas cautelares e medidas antecipatrias, pois antes da reforma de 1994, perguntava-se se as medidas antecipatrias poderiam ser consideradas medidas cautelares e se poderiam, assim, ser includas no poder geral da cautela; porm, aps a reforma, tem-se discutido como podemos identificar as medidas sujeitas ao regime do processo cautelar e as subordinadas ao regime do art. 273. Sempre vai haver um questionamento, pois segundo Teorio Albino Zavascki:[...] deslocado to-somente o seu enfoque: a razo de distinguilas est em que cada uma das espcies de tutela provisria tem regime prprio, inconfundvel e, ressalvada a hiptese do 7 do art.273, infungvel insuscetvel de substituio pelo regime da , outra. (ZAVASCKI, 2008, p. 47)

3- Tendncias ProcessualisticasA morosidade do processo, bem como sua excessiva formalidade, sempre foram o maior obstculo a uma justia gil e eficiente. A maior critica feita justia como um todo, nos dias de hoje, exatamente a demora na prestao jurisdicional. Fato que tem levado a srios estudos e reformas legislativas, com o fito de agilizar os procedimentos processuais, tornando a justia gil e mais eficiente. de se ressaltar que a demora na prestao jurisdicional equivale a uma situao de verdadeira injustia. Muitas vezes a demora naa medida cautelar como tutela de urgncia... 37

soluo da lide aniquila o prprio direito das partes. Problema este j apontado pelo professor Humberto Theodoro Junior (1999) A demora na resposta jurisdicional muitas vezes invalida toda eficcia prtica da tutela e quase sempre representa uma grave injustia para quem depende da justia estatal (p. 83). Neste contexto que se torna de extrema importncia a implementao de mecanismos processuais que acelerem a prestao jurisdicional. Quando se fala em efetividade do processo, imediatamente nos vem mente a existncia de um processo clere, gil, que assegure s partes a pronta prestao jurisdicional. Sem, contudo, abrir mo das garantias constitucionais e processuais. de se concluir ento que os efeitos do tempo na relao processual esto diretamente relacionados idia de efetividade do processo. Um processo moroso e ineficaz coloca em risco a prestao jurisdicional, podendo embaraar o prprio direito das partes, o qual, no curso da relao processual, poder vir a perecer. Com isso, surge a importncia dos institutos da tutela cautelar e antecipatria. Institutos diversos, mas com um ponto de semelhana, qual seja garantir a efetividade da prestao jurisdicional.

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Aparecida de Ftima Pirovani Amorim Lopes

REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBRASIL. Cdigo Civil; Comercial; Processo Civil; Constituio Federal. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaborao de Antnio Luiz de Toledo Pinto, Mrcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lvia Cspedes. 3 ed. So Paulo: Saraiva, 2007. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Reforma da Reforma. 3 ed. So Paulo: Malheiros, 2002. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil, vol. IV: processo cautelar. 3 tir. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. MARQUES, Jos Frederico. Manual de Direito Processual Civil. 1 ed. Campinas: Millennium, v. 4, 1997. MIRANDA, Pontes de. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. Tomo XII: arts. 796-889. Rio de Janeiro: Forense, 2003. TEODORO, Jnior Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. TEODORO, Jnior Humberto. O Processo Civil Brasileiro no liminar do novo sculo. 1 ed. Rio de Janeiro. Forense, 1999. ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipao da tutela. 6 ed. So Paulo: Saraiva 2008.

a medida cautelar como tutela de urgncia...

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A proteo do Emprego no sculo xxiLudgero Ker Raele

ResumoIntenciona este artigo abordar a evoluo da relao de emprego, considerando as inovaes que o desenvolvimento tecnolgico trouxe, desde a Revoluo Industrial at a era da informao, neste incio de Sculo XXI. Visa tambm analisar os fatores que influenciam es-sa relao e os possveis desdobramentos dessa evoluo, e fixar os mecanismos jurdicos da proteo do emprego e das relaes de trabalho. Palavras-chaves: Relao de Emprego; Desenvolvimento Tecnolgico; Evoluo; Mecanismos Jurdicos; Proteo.

AbstractThis present article intent to evaluate the evolution of the employment relations considering the innovations that technological improvement brought since the Industrial Revolution until the information era, in this beginning of the 21st century. It also aims to analyze the factors that influence these relations and their possible developments, stipulating the legal mechanisms of employments protection and work relations. Keywords: Employment Relations; Technological Development; Evolution; Legal Mechanisms; Protection.

a proteo do emprego no sculo xxi

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1. A proteo do emprego no sculo xxi sabido que o vnculo laboral consequncia de uma srie de avanos e retrocessos ao longo da histria, e esse processo evolutivo inerentemente turbulento por conta dos conflitos existentes entre as partes envolvidas. A assimetria de interesses entre capital e trabalho desencadeou vrios movimentos sociais ao longo do Sculo XX; e tamanha a presso exercida pela fora invisvel desses dois plos que revolues, guerras e dispndios incalculveis foram gastos para que um lado se sobressasse ao outro. Alguns deles mudaram o paradigma do Estado e seu modelo de economia. Por conseguinte, no decorrer das ltimas dcadas do sculo passado, com o desenvolvimento de outras tecnologias, preponderantemente a informtica e a robotizao dos meios de produo, emergiu outra configurao nas referidas relaes trabalhistas, sobretudo nos pases mais desenvolvidos, onde o conhecimento se tornou um bem mais valorizado que a fora de trabalho. Ademais, tendo como pano de fundo a globalizao, as grandes empresas se ramificam por todo o globo. Vislumbrando to somente a busca por maior lucratividade, os mercados se tornaram mais permeabilizados, seguindo, nessa esteira, a disponibilizao da mo-de-obra, que j no mais necessariamente exercida pelos trabalhadores de um mesmo pas dentro da linha de produo. Outro aspecto desse processo que com a ampliao e melhoria nos meios de comunicao e informatizao, muitas outras oportunidades de trabalho surgem, com a possibilidade de determinados servios serem executados a distncia do mbito da empresa. Como resultado, postos de trabalho que pareciam slidos se desfizeram no ar, dando lugar prestao de servios independente, de maneira menos onerosa para o empreendedor. Vivemos um momento de mudanas rpidas no contexto poltico, econmico e social, de maneira que, a permanecer esta tendncia, no seria exagero dizer que, em breve, tais mudanas implantaro uma nova ordem mundial na vida laboral das pessoas. Com efeito, passamos atualmente pela efervescncia de uma crise financeira mundial e que como consequncia abala profundamente os fundamentos econmicos no qual o mundo assenta. Como regra, os cortes nos postos de trabalho so as primeiras medidas tomadas42 Ludgero Ker Raele

pelos executivos vidos por preservar os ativos das empresas. A rapidez com que se volatizam essas relaes trabalhistas aflige milhes de trabalhadores em todo o mundo, sobretudo nos pases subdesenvolvidos e emergentes, cujos governos no possuem uma rede de amparo social efetiva, deixando-os ao sabor do mercado. Considerando os elementos polticos, econmicos e sociais como partes indissociveis do nosso cotidiano, urge chamar o Direito a buscar o ponto de equilbrio, a regular essa nova conformao na dinmica e fluidez que os novos tempos requerem, mas sem perder a perspectiva dos valores supremos a que aspiramos como sociedade.

2. Vitria do capitalismo?A contemporaneidade e o sistema capitalista que a rege traz consigo um dinamismo nunca visto antes na histria. No entanto, advm uma forma quase autofgica de criao e produo, baseada na necessidade de renovao constante, transformando a realidade disforme e lquida. As relaes entre as coisas e os seus conceitos esvaem-se de maneira nova, antes mesmo de serem apreendidos de maneira slida. Neste sentido, com bastante lucidez, Marshall Berman cita Marx:O constante revolucionar da produo, a ininterrupta perturbao de todas as relaes sociais, a interminvel incerteza e agitao distinguem a poca burguesa de todas as pocas anteriores. Todas as relaes fixas, imobilizadas, com sua aura de idias e opinies venerveis, so descartadas; todas as novas relaes recm-formadas se tornam obsoletas, antes que ossifiquem. Tudo que solido se desmancha no ar, tudo que sagrado profanado, e os homens so finalmente forados a enfrentar com sentidos mais sbrios suas reais condies de vida e sua relao com os outros homens (MARX apud BERMAN, 2008, p. 118).

Sem embargo, ntida a constatao de que o capitalismo logrou maior relevncia como forma de produo econmica desde sua gnese, e em especial com o colapso do sistema socialista dos meios de produo, haja vista, por exemplo, a ruptura do bloco sovitico e asa proteo do emprego no sculo xxi 43

transformaes ocorridas com os inmeros pases que o compunham gerando a instaurao gradativa da Nova Ordem Mundial. Constatamos que a referida evoluo chegou a tal ponto que os antigos meios de produo, j h algum tempo, no tm mais a mesma valorizao que a dos tempos do pr-capitalismo. Outrossim, vemos cada vez mais na imaterialidade desses meios a fonte de maior impacto econmico-financeiro na sociedade atual. Na tica da modernidade lquida, no mais existe, necessariamente, uma relao intrincada entre capital e trabalho, propriedade e esforo; ao contrrio, esta relao se torna cada vez mais voltil, dissocivel.A presente verso liquefeita fluida dispersa, espalhada e , , desregulada da modernidade pode no implicar o divrcio e ruptura final da comunicao, mas anuncia o advento do capitalismo leve e fluente, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laos que prendem o capital ao trabalho. (BAUMAN, 2007, p. 171).

Diferentemente de hoje, tnhamos como lgica recorrente a ideia da modernidade slida, consubstanciada no raciocnio de que, para a manuteno do vigor do capitalismo, as partes empreendedores e trabalhadores deveriam estar fortemente atados um ao outro. Ideia esta caracterizada como um elemento da doutrina denominada fordismo, que modelou a maneira de desenvolvimento industrial e do vnculo laboral desde o incio at meados do Sculo XXModernidade slida era, de fato, tambm o tempo do capitalismo pesado do engajamento do capital e trabalho fortificado pela mutualidade de sua dependncia. Os trabalhadores dependiam do emprego para sua sobrevivncia; o capital dependia de empreg-los para sua reproduo e crescimento. Seu lugar de encontro tinha endereo fixo; nenhum dos dois podia mudar-se com facilidade para outra parte os muros das fbricas abrigavam e mantinham os parceiros numa priso compartilhada (BAUMAN, 2007, p. 166).

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Ludgero Ker Raele

A demonstrao mais evidente dessa liquidez e volatilidade talvez seja a possibilidade atual do fluxo de capital percorrer virtualmente distantes mercados, na velocidade do toque de uma tecla, provocando uma instabilidade ampla e desconsiderando quase por completo a economia real, que se desdobra num contingente cada vez maior de trabalhadores, transformados em meros agentes passivos diante desse novo paradigma.Hoje, rpidos avanos nos meios de transporte e comunicaes esto efetivamente nos aproximando e criando uma economia mundial a despeito do que governos conseguem regular. Governos antes controlavam o movimento do capital atravs de suas das fronteiras nacionais. Mas agora como controlar o fluxo de capital quando o dinheiro pode ser movimentado em um computador pessoal e quando podemos realizar uma transao financeira nas Bahamas sem estar fisicamente presente nas Bahamas? (HEILBRONER,1992, p. 202).

Observamos nesse perodo uma horda de trabalhadores migrando no sentido de tentar acompanhar a fluidez desse capital aptrida , de maneira a desconfigurar constantemente a composio social das naes. Novas identidades se formam e contribuem para remoldurar ainda mais a conjuntura. E o axioma postulado por Adam Smith um dos expoentes do pensamento liberal de que o prprio mercado, como uma mo invisvel que a tudo alcana, seria suficiente para corrigir distores, comprova-se ineficaz, gerando ainda mais deformidade econmica. Tem-se a impresso, em um primeiro momento, que os Estados quedam enfraquecidos ante essa fluidez amorfa. Com isso, podemos inferir que a capacidade estatal de gerir tal liquidez diminui consideravelmente, prejudicando a manuteno de polticas de promoo de bem estar social, posto que, para conseguir o financiamento de sua mquina e garantir tais polticas, faz-se necessrio o aprisionamento ou estancamento de uma parcela vultosa desses valores financeiros dentro de seu domnio territorial. Eis ento o desafio contemporneo para os chefes de governos: o de equacionar o paradoxo da modernidade lquida, qual seja, o de manter sob sua possesso algo que inslito, fludico ou at amorfo.a proteo do emprego no sculo xxi 45

Questes como essas urgem por respostas concretas, cleres, antes que o tecido social se desmantele de forma inexorvel, trazendo o caos e retalhando todas as conquistas alcanadas ao longo dos ltimos sculos. Uma vez que o desenvolvimento da sociedade est alicerado na relao laboral, seja ela emprego ou trabalho, cumpre a todos os atores que participam dessa relao e mais propriamente aos governos e seus agentes , desenvolverem mecanismos que promovam um enriquecimento sustentvel, mas equnime, respeitando as diferenas individuais e peculiaridades de cada povo. Passamos neste momento por uma situao emblemtica com essa nova modernidade. Uma crise gerada basicamente pelo excesso de fluidez desse capital virtual, com falta de controle, e pouca ou nenhuma regulamentao estatal, desconsiderando quase que por completo a relao capital-trabalho. Por esse prisma, no seria exagero dizer que tal crise sem precedentes na histria, uma vez que, em nenhuma outra conjuntura, houve tamanha agilidade de manipulao dos mercados, dos agentes e com condies de gerar tamanha instabilidade financeira e social, fechando tantos postos de trabalho em to pouco tempo. Tal turbulncia tem feito com que os pases ricos, que at ento se fartavam desse modelo macroeconmico e propalavam sua insuperabilidade por qualquer outro, hoje se vejam em enormes dificuldades para saldar seus passivos financeiros e sociais. Consideramos necessrio que antigas doutrinas sejam relidas diante desse novo cenrio que se descortina. A concluso que se faz unssona agora que tais prticas devem ser profundamente revistas e reformuladas em seus axiomas pelos governos, pois essa faceta autorreciclvel do capitalismo, combinada com a tendncia de releitura e reconceituao quase instantnea dos valores socioculturais, podem levar ao declnio do poder coercitivo do Estado para dissipar certas discrepncias e abusos na seara econmica. Medidas tm sido tomadas no sentido de abrandar os efeitos nefastos desse neoliberalismo exacerbado. A ao de governos, como a compra de bancos privados, seguradoras, o emprstimo a juros subsidiados a montadoras de automveis, levam alguns a at cogitarem em um retorno ou uma reformulao do Estado Social.46 Ludgero Ker Raele

Portanto, diante desse novo contexto, intui-se que o dinamismo liberal inerente ao capitalismo tem, mais do que nunca, que ser redimensionado e regulado dentro de uma fundamentao slida, sustentvel e principalmente justa, que preserve os ideais humanistas e promova o desenvolvimento integral da sociedade, agregando prosperidade material, financeira e econmica, propiciando o mximo de proteo contra a excluso do ser humano desse processo e lhe garanta, atravs do direito ao trabalho, o mnimo existencial bsico e uma vida dentro do princpio da dignidade humana.

3. Proteo do emprego dentro do nosso ordenamento Jurdico (Estabilidades)Remontando a esteira histrica do Direito do Trabalho, no h de se olvidar da inteno dos legisladores de incrementar a relao laboral com dispositivos para mitigar os efeitos do poder patronal de obrigar o trabalhador a aceitar situaes desfavorveis ou incompatveis com a sua dignidade, por meio de presso na oferta de emprego que, no raro, ainda assolam o universo trabalhista. No Brasil, j era possvel encontrar o que poderamos descrever como esboo do conceito de estabilidade desde as primeiras Constituies, conferindo, por exemplo, aos oficiais do Exrcito e da Armada, a garantia de no poderem ser privados de suas Patentes, seno por Sentena proferida em Juzo competente . Tambm o setor privado, como elucida Srgio Pinto Martins (2008), foi envolto por esta garantia com a promulgao do Decreto n 4.682, de 24/01/1923, a chamada Lei Eloy Chaves, constituindo num marco histrico (p. 391). Foi nesta perspectiva que, aos poucos, tal instituto foi absorvendo ou sendo absorvido por outras categorias, positivado por outras leis e principalmente, sendo primado pela nossa Constituio atual. A CLT tambm se dedicou a disciplinar a matria entre os arts. 492 a 500, dispondo inicialmente que todo empregado que completasse 10 anos de trabalho na empresa no poderia ser dispensado salvo motivo de falta grave, devidamente verificada em inqurito judicial para sua apurao, ou por fora maior efetivamente comprovada Com . a revogao desse dispositivo, houve, para o bem ou para o mal, umaa proteo do emprego no sculo xxi 47

nova concepo para o termo garantia laboral, a qual analisaremos adiante. De toda sorte, aproveitando as lies de Srgio Pinto Martins, urge ponderar sobre o conceito de garantia de emprego[...] descrevendo como o gnero que compreende medidas tendentes ao trabalhador obter o primeiro emprego, a manuteno do emprego conseguido e, at mesmo, de maneira ampla, a colocao do trabalhador em outro servio. Est, portanto, a garantia de emprego, ligada poltica de emprego (MARTINS, 2008, p. 391).

E continua, adiante, distinguindo sobre estabilidade postulando que [...] esta o direito do empregado de continuar no emprego, mesmo contra a vontade do empregador, desde que inexista uma causa objetiva a determinar sua despedida (p. 391). Teceremos breves comentrios s modalidades de estabilidades institudas em nosso ordenamento jurdico, considerando que esto coadunadas conjuntura socioeconmica em que foram construdas, e no so, portanto, o foco direto desse artigo. Anteriormente na Constituio de 1988, ao completar 10 anos em exerccio no servio, o trabalhador adquiria a estabilidade e no mais poderia ser dispensado, seno por justo motivo e depois de transcorrido todos os trmites judiciais. Com o advento da nossa atual Carta Magna, no inciso III, do Art. 7, ao tratar do FGTS, derrogou o antigo instituto e extinguiu a estabilidade em questo. Hoje, ento, para que o empregado possa ser dispensado, basta que o empregador pague todas as verbas rescisrias e a indenizao cabvel, que foi aumentada de 10 para 40%. So casos de estabilidade provisria os dos trabalhadores eleitos como membros da Comisso Interna de Preveno de Acidentes no mbito empresarial. Sendo inicialmente instituda em carter facultativo pelo empregador, a referida Comisso passou a ser de instalao compulsria com a promulgao da Lei n 6.514/77 que deu nova redao ao art. 163 da CLT. Nesta modalidade, a mens legis garantir autonomia ao comissionado para exercer sua funo com total eficincia, ainda que contrarie os interesses do empregador. Quanto48 Ludgero Ker Raele

ao aspecto de sua vigncia, ficou determinado que esta estabilidade prevaleceria desde o registro da candidatura do cargo de dirigente da CIPA at um ano aps o final do seu mandato. A proteo gestante h muito foi contemplada pela legislao brasileira. Desde o Decreto Legislativo n 20 de 30/04/65, aprovando a Conveno n 103 da OIT, de 1952. A garantia de emprego, nesse caso, denota em grande medida os anseios de proteo maternidade, insculpido em nossa Constituio em seu art. 7, XVIII. A proteo parturiente trabalhadora e ao nascituro reveste-se em legislao laboral no sentido de conceder me a tranquilidade necessria aos primeiros meses dessa nova relao que se inicia, no podendo ser dispensada enquanto durar tal perodo. Lado outro, tratou o nosso sistema jurdico trabalhista de incrementar o rol de situaes em que se concederia estabilidade no emprego a certos trabalhadores em desvantagem ocupacional. Assim, tambm o acidentado teve sua garantia corroborada pela Lei n 8.213/91, em seu art. 118, estatuindo que:o segurado que sofreu acidente de trabalho tem garantida, pelo mnimo de doze meses, a manuteno de seu contrato de trabalho na empresa, aps a cessao do auxlio-doena acidentrio, independentemente da percepo de auxlioacidente.

Como se v, no fica desamparado, ainda que por certo perodo, o trabalhador momentaneamente desvalido de sua capacidade laboral, sendo preservada sua dignidade enquanto durar o perodo de estabilidade. Expandiu a referida garantia aos Membros do Conselho Curador do FGTS e do Conselho Nacional de Previdncia Social CNPS. Em ambas as situaes, como esses representam os interesses dos empregados, entendemos que avanou a legislao ao vislumbrar tal concesso. Muito emblemtica como poltica de proteo ao trabalhador na legislao ptria a garantia de estabilidade auferida pelos reabilitados ou portadores de deficincia. Como demonstra Sergio Pinto Martins (2008, p. 414), citando o art. 93 da Lei n 8.213, a empresa com 100 ou mais empregados est obrigadaa proteo do emprego no sculo xxi 49

a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficirios reabilitados ou pessoas portadoras de deficincia. A referida lei estabelece um corolrio de garantia coletiva quando estatui um percentual de trabalhadores com necessidades especiais a ser preservado, podendo dispens-los apenas por justa causa. Em termos gerais, pode-se concluir que as demais estabilidades provisrias possuem as mesmas peculiaridades das acima descritas, contemplando nosso legislador os empregados eleitos diretores de sociedades cooperativas (Lei n 5.764/71) e membros da comisso de conciliao prvia, nos termos do 1, do art. 625-B da CLT.

4. A Juridizao do trabalho no Ps-Modernismo (Novas Demandas)Como podemos constatar, a legislao trabalhista tratou de abarcar algumas situaes em que o trabalhador estaria coberto pela garantia de manter-se no emprego ainda que provisoriamente, ou seja, enquanto durassem as condies subjetivas estabelecidas em lei. Tais mecanismos so, como j dissemos, pilares de proteo ao trabalhador contra as provveis represlias por parte do patronato sempre que viessem a ser contrariados em seus interesses por seus obreiros e sempre que se encontrassem em situao desfavorvel para se inserirem no mercado de trabalho. Entretanto, posto que uma nova e avassaladora onda circunde o universo laboral, deveremos inexoravelmente rever e reformular o modelo atual de estabilidade, adequando-a nova configurao que se revela. Defrontamo-nos hoje com um novo feitio de conjuntura macroeconmica, utilizando de novos modelos de produo, baseada nas novas tecnologias, impulsionados a uma velocidade sem precedentes, tornando os mercados contemporneos cada vez mais diversificados e pulverizados, e dependendo, portanto, cada vez menos de mo-deobra humana. Como manter uma empresa saudvel economicamente, gerando lucros e sendo obrigada a manter empregados subprodutivos s suas expensas? Como concorrer num mercado globalizado, sem uma legislao hbil a reagir s incurses de seus agentes? E como no deixar que ingerncias no mercado financeiro venham a causar50 Ludgero Ker Raele

grande impacto na economia, sobretudo de pases com menor rede de proteo social? Eis algumas questes modernas com as quais, cedo ou tarde, teremos que nos defrontar de forma mais incisiva; pois, se por um lado, no podemos deixar ao sabor das oscilaes mercadolgicas a vida de milhes de trabalhadores, por outro, a estabilidade no pode servir de pretexto a engessar a dinmica empresarial a ponto de estagnar o setor produtivo ou mesmo desestimular a livre iniciativa. Lembremo-nos, por exemplo, que a crise que assolou os mercados financeiros recentemente teve como cenrio o desregramento quase total do setor e que possibilitou sua manipulao de maneira arbitrria por alguns agentes, provocando uma imploso na confiana e derrubando postos de trabalhos por todo o planeta. Esta teria sido apenas mais uma crise de reajuste inerente ao capitalismo, no fosse pelos efeitos colossais que provocara na vida de bilhes de pessoas e que, a nosso ver, tende a se repetir caso no avanamos nessa proposta. O enfoque humanista, que pressupe que a dignidade da pessoa humana deve prevalecer sobre qualquer outro aspecto do desenvolvimento da civilizao, no nos parece efetivo em evitar que o aprimoramento tecnolgico deteriore o tecido social cristalizado com a nova roupagem capitalista. Como argumenta Paula C. Hott Emerick:No por outra razo, seno o aumento dos lucros, o capitalismo metarmofoseou-se, adotando a reestruturao produtiva psfordista como paradigma, reduzindo os custos e diversificando a produo para atender a um novo mercado, com novas exigncias, produzindo, por consequncia, mudanas nas relaes de trabalho (EMERICK, 2009, p. 88).

De maneira cada vez mais intensa e veloz, observamos o esvaziamento dos axiomas de outrora, dos valores da tica humanista, prevalecendo o efmero, o fugaz, o suprfluo. Ao considerarmos a agilidade e amplitude com que os meios de comunicao atuais potencializaram esse esvaziamento, ao permitir que os grandes mercados se interajam instantaneamente, no necessrio muito esforo para intuirmos que tal movimento no tende ao retorno ou estagnao, sem que haja por parte dos governos e organizaes sociais, um mpeto de reforma e regularizao, sobretudoa proteo do emprego no sculo xxi 51

no que diz respeito ao fluxo internacional de capitais, que busca o lucro rpido em detrimento da estabilidade laboral. Assim nos elucida Paula C. Hott Emerick (2009) ao lecionar que:Tal o modo como a ideologia do individualismo legitima as formas de precarizao do trabalho, to necessrias ao novo paradigma produtivo, que cada vez mais se utiliza mo-de-obra barata e desembaraada de custos sociais em detrimento dos empregados clssicos. Mantendo o Estado neutralizado com o discurso neoliberal, conferindo-se todo o poder ao jogo do mercado, conferem-se ares de legitimidade espoliao do ser humano (p. 86).

Defendemos que chegado o tempo em que as naes devem convergir seus esforos a desenvolver, em conjunto, a despeito de suas diferenas socioeconmicas, um sistema mais amplo de controle e gerenciamento dos mercados, tendo como fundamento a sustentabilidade do emprego e menos a proficuidade do lucro. No atual estgio em que se encontra nossa sociedade mundial, j no mais utpico argumentar que somente com a juridizao da economia global, com a criao de mecanismos anlogos ao checks and balances, por exemplo, poderamos vislumbrar um futuro com menos turbulncia financeira e menos instabilidade social. Sabemos que s as leis de mercado no geram justia social. Ao contrrio, o que se tm visto so longos ciclos de concentrao de riqueza, alternados momentos de crise em que os Estados intervm para socorrer o sistema, privilegiando o capitalista. Concordamos com a necessidade veemente dos Estados se reinventarem, reformularem-se para exercerem seu papel no mundo moderno. Todos os modelos de administrao a que incorporaram no passado iro, sem embargo, mostrarem-se insuficientes, ineficientes ou mesmo incuos para resolver os desafios que se descortinam nos dias atuais. Nem o Estado total nem o Estado mnimo servem mais como paradigma para atender conjuntura atual. Hoje, com os pases interagindo numa intensa rede de comunicaes e transportes, com o comrcio e o fluxo de capitais migrando rapidamente, precisamos de agilidade na elaborao de estudos, leis,52 Ludgero Ker Raele

instituies e de tratados internacionais, mas, sobretudo de aes capazes de nortear essa marcha. evidente que a aplicao do princpio da dignidade da pessoa humana, alojado no inciso III do Art. 1 da CR/88, autoriza a abordar o problema ligado estabilidade do emprego de maneira dilatada, considerando todos os aspectos que a concernem. No parece sensato debruarmo-nos somente na legislao domstica, imaginando estar nesta a resposta definitiva para tudo o que aflige o universo laboral. Por esse aspecto, insistimos na ideia da urgncia da transposio de uma legislao supranacional, excludente dos no signatrios, com o mister de enaltecer o ser humano, de trazer sua dignidade como ponto central de todo desenvolvimento econmico, como ocorrido no psguerra em relao cidadania. Lembrando que o Direito , ou deveria ser, a expresso mxima dos valores e preceitos que a sociedade quer que preponderem no mundo dos fatos, legtimo pretender que a positivao de tais regras supra as lacunas deixadas pelo sistema vigente e que o mercado regulado e ajustado por leis que o direcione para a consecuo desses valores o meio mais evoludo de fazer prevalecer o anseio natural da dignidade humana.

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