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Educação de um bandido Por Osvaldo Valente Edward Bunker é mais conhecido pelo papel de Mr. Blue que interpretou no filme Cães de Aluguel (Reservoir Dogs), de Quentin Tarantino. Meu encontro com Bunker, contudo, é mais antigo. Era um adolescente quando vi, pela primeira vez e numa televisão preto e branco, o filme Liberdade Condicional (Straight Time). Estrelado por Dustin Hoffman, o filme contava a história de um condenado em liberdade condicional que pouco a pouco se vê de volta a velhas práticas que o levaram à cadeia. Àquela altura, nada sabia sobre Bunker. Não havia como: ele era um perfeito desconhecido no Brasil. Seus livros só seriam traduzidos nos anos 2000, e isso sob o impacto, um tanto tardio, do filme de Tarantino. A cultura pop o havia absorvido sob a forma de Mr. Blue. O primeiro de seus livros que li foi Cão Come Cão (Ed. Barracuda, 2005), mas gostaria de falar mesmo sobre a sua autobiografia, Educação de um bandido (Education of a Felon), publicado no Brasil pela Editora Barracuda. A primeira coisa que salta aos olhos é o que há de corriqueiro em sua vida – e William Styron faz um resumo muito útil da história pessoal de Bunker, com uma listagem bem feita dos principais acontecimentos. Passou uma parte considerável de sua infância em reformatórios juvenis, onde conhece o lado escuro da vida e estabelece contato com outros adolescentes que reencontrará mais tarde como adulto, em prisões californianas. O relato incorpora uma série de fugas e uma série de tentativas frustradas de estabelecer uma relação mais duradoura e permanente com seu pai, que eventualmente trabalhava na indústria cinematográfica americana. De colégios internos para reformatórios. Do Privado para o público. Uma infância e adolescência vividas longe da família. Esse é o lado corriqueiro de sua vida. Como a maioria dos que perpetram crimes violentos, sua origem são os chamados “lares desfeitos”. O caminho de Bunker segue reto até as prisões do estado da Califórnia. No livro encontram-se descrições vívidas das famosas Saint Quentin e Folsom Prison. E é possível estabelecer uma

Educação de Um Bandido

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Pequeno artigo sobre a autobiografia de Edward Bunker

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Educação de um bandido

Por Osvaldo Valente

Edward Bunker é mais conhecido pelo papel de Mr. Blue que interpretou no filme Cães de Aluguel (Reservoir Dogs), de Quentin Tarantino. Meu encontro com Bunker, contudo, é mais antigo. Era um adolescente quando vi, pela primeira vez e numa televisão preto e branco, o filme Liberdade Condicional (Straight Time). Estrelado por Dustin Hoffman, o filme contava a história de um condenado em liberdade condicional que pouco a pouco se vê de volta a velhas práticas que o levaram à cadeia. Àquela altura, nada sabia sobre Bunker. Não havia como: ele era um perfeito desconhecido no Brasil. Seus livros só seriam traduzidos nos anos 2000, e isso sob o impacto, um tanto tardio, do filme de Tarantino. A cultura pop o havia absorvido sob a forma de Mr. Blue.

O primeiro de seus livros que li foi Cão Come Cão (Ed. Barracuda, 2005), mas gostaria de falar mesmo sobre a sua autobiografia, Educação de um bandido (Education of a Felon), publicado no Brasil pela Editora Barracuda.

A primeira coisa que salta aos olhos é o que há de corriqueiro em sua vida – e William Styron faz um resumo muito útil da história pessoal de Bunker, com uma listagem bem feita dos principais acontecimentos. Passou uma parte considerável de sua infância em reformatórios juvenis, onde conhece o lado escuro da vida e estabelece contato com outros adolescentes que reencontrará mais tarde como adulto, em prisões californianas. O relato incorpora uma série de fugas e uma série de tentativas frustradas de estabelecer uma relação mais duradoura e permanente com seu pai, que eventualmente trabalhava na indústria cinematográfica americana. De colégios internos para reformatórios. Do Privado para o público. Uma infância e adolescência vividas longe da família. Esse é o lado corriqueiro de sua vida. Como a maioria dos que perpetram crimes violentos, sua origem são os chamados “lares desfeitos”.

O caminho de Bunker segue reto até as prisões do estado da Califórnia. No livro encontram-se descrições vívidas das famosas Saint Quentin e Folsom Prison. E é possível estabelecer uma diferença entre as duas, famosas no mundo inteiro por serem cantadas por Johnny Cash e por serem palco de filmes. Ao ar elétrico da primeira, contrapõe-se o tempo lento e modorrento da segunda. Ao falar da explosão dos conflitos raciais nas prisões americanas, Bunker descreve como isso aconteceu em Saint Quentin.

Talvez a principal característica de seu livro seja a sinceridade. Seria muito fácil ele se dizer vítima. Vítima do alcoolismo de seu pai, da rigidez de sua mãe, do sistema americano de vigilância que sempre aponta para o encarceramento como solução para todo e qualquer problema comportamental. Mas não é isso que se encontra em suas memórias. Ele teve tempo para se conhecer. Adulto em idade avançada quando escreveu suas memórias, ele olha para trás e vê sua insanidade temperando sua relação com todas as questões das quais poderia se dizer vítima. Diante de um pai que não sabe bem o que fazer com um filho, ele não aceita tal situação e teimosamente prefere fugir repetidas vezes de colégios internos e escolas militares para procurar pelo pai que, sabe, não ficará com ele; evita sua mãe por não ver espaço para si próprio naquele mundo tão ordenado. Por fim, consome os produtos da sociedade, mas não

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acha um lugar nela para si. Criança ainda bate com violência em muros que não compreende e que não conseguirá derrubar. Por isso termina em reformatórios.

No fundo, uma parte considerável de sua história é como conseguiu controlar esse jovem insano que habitava dentro de si. Pois é esse jovem que terá que fazer duas coisas importantes. A primeira é sobreviver, chegar à velhice, permanecer vivo num mundo marcado pela morte prematura. O mundo do crime precisa, essa é uma das lições presentes no livro, de equilíbrio. Ele não se dá muito bem com assassinos descontrolados. Cedo, criadores de caso morrem. E Bunker é instável demais, assustador e insano demais. Mas, mesmo assim, ele alcançou a velhice. Como? Adaptando-se às leis do crime, conhecendo-lhe as minúcias. Teve tempo e tino para se dar conta de como seu temperamento explosivo não era um salvo conduto ali. E esse ali é a dupla face do mundo do crime: o mundo das ruas e o mundo da prisão. São dois polos inseparáveis.

A segunda é sair do circuito fechado composto do mundo do crime nas ruas e do mundo das prisões: das ruas para prisão, desta de volta para aquelas e destas novamente para as celas. E aí entra a literatura. Adaptou-se para sobreviver ao mundo do crime, mas para sair era necessário algo mais. E esse algo mais foi a literatura. Escreveu seis livros antes de finalmente ter o sétimo aceito por uma casa editorial. Foi construindo seu caminho como escritor detrás das grades.

É esse final que não está previsto em sua trajetória. É isso que faz sua história sair do corriqueiro. Bunker vira um escritor; tem um livro que escreveu na prisão publicado e vê o mesmo livro virar filme alguns anos mais tarde. Seria muito fácil dizer que encontrou redenção pela literatura. A arte e seu papel redentor. Mas nem tudo é assim. A arte é, antes de mais nada, um terreno cediço. Instável. E Bunker sabia disso. No posfácio reconhece que voltaria a ser um bandido caso algo saísse errado com sua carreira de escritor, que apenas começava, quando seu segundo livro foi um fiasco de vendas. O caminho para fora é tão duro quanto aquele que o levou ao mundo das prisões californianas. O curioso é que seu tema será sempre aquele do qual quer se afastar: o mundo do crime. Fala deste para dele se afastar. Convenhamos, uma estratégia bem mais esperta do que tentar cobrar segurança de cafetões.

Sim, “um lírio definitivamente cresce em meio ao lodo”, como observa Bunker no final de sua autobiografia. Mas esse lírio só é plenamente belo quando se sabe como ganhou os seus traços, seu contorno e sua consistência. E é isso o que se encontra no seu livro.