9

EDITORIAL - maeds.amrs.ptmaeds.amrs.pt/images/2018/outubro/almadanOnline22_setubalarq17.pdf · ruínas do Teatro Romano de Lisboa, nomeadamente A Paz de Aristófanes, em 2016, e O

Embed Size (px)

Citation preview

3

EDITORIAL

II Série, n.º 22, tomo 2, Julho 2018

Proprietário e Editor |Centro de Arqueologia de Almada,Apartado 603 EC Pragal, 2801-601 Almada PortugalNIPC | 501 073 566Sede | Travessa Luís TeotónioPereira, Cova da Piedade, 2805-187 AlmadaTelefone | 212 766 975E-mail | [email protected] | www.almadan.publ.ptISSN | 2182-7265Estatuto editorial |www.almadan.publ.ptDistribuição | http://issuu.com/almadanPatrocínio | Câmara M. de AlmadaParceria | ArqueoHoje - Conservaçãoe Restauro do PatrimónioMonumental, Ld.ªApoio | Neoépica, Ld.ªDirector | Jorge Raposo([email protected])Publicidade | Centro de Arqueologiade Almada ([email protected])Conselho Científico |Amílcar Guerra, António Nabais, Luís Raposo, Carlos Marques da Silvae Carlos Tavares da SilvaRedacção | Centro de Arqueologia deAlmada (sede): Vanessa Dias,Ana Luísa Duarte, ElisabeteGonçalves e Francisco Silva

Resumos | Jorge Raposo (português),Luisa Pinho (inglês) e Maria Isabel dosSantos (francês)Modelo gráfico, tratamento de imageme paginação electrónica | Jorge RaposoRevisão | Elisabete Gonçalves, Fernanda Lourenço e Sónia TchissoleColaboram neste número |Sara Brito, Jacinta Bugalhão, MafaldaCapela, Guilherme de Jesus P. Cardoso,João Luís Cardoso, Alexandre Carrança,

António Rafael Carvalho, LilianaCarvalho, Ana Rosa Cruz, Vitor Durão,José d’Encarnação, José da SilvaFerreira, Maria Teresa Ferreira, SilvérioFigueiredo, Miguel Lago, Eva Maria F. Leitão, Sebastião L. de Lima Filho,António Marques, Sérgio Monteiro--Rodrigues, Andreia Moreira, MariaJoão Neves, Susana Nunes, FranklinPereira, Silvina Pereira, Paula Queiroz,Ana Cristina Ribeiro, Carla Ribeiro,Morgana Cavalcante Ribeiro, Maria

Capa | Jorge Raposo

Composição sobre imagem da anta Olival da Anta, um dos monumentosmegalíticos do Município de Avis.

Foto © Ana Cristina Ribeiro, Câmara Municipal de Avis.

de Jesus Sanches, João Luís Sequeira,Miguel Serra, Armando Coelho F. da Silva, Rodrigo Banha da Silva, SaraSimões, Fábio Soares, Cátia Teixeira, Ana Vale, Marco Valente, Carlos VítorD. D. Vasques e Sofia N. Wasterlain.

Os conteúdos editoriais da Al-Madan Onlinenão seguem o Acordo Ortográfico de 1990.No entanto, a revista respeita a vontade dosautores, incluindo nas suas páginas tantoartigos que partilham a opção do editorcomo aqueles que aplicam o dito Acordo.

E ste novo tomo da Al-Madan Online abre com um merecido destaque ao Patrimónioarqueológico megalítico do Município de Avis. Um vasto conjunto de monumentosfunerários, erguidos pelas comunidades que aí viveram entre o 5.º e o 3.º milénios a.C.,

ainda hoje marca a paisagem e justifica estratégias sustentadas de gestão, valorização e promoção que articulem o seu importante valor científico com as não menos relevantes valências culturais e turísticas. Um processo a seguir e, principalmente, a fruir através das múltiplas ofertas de roteiros de visita.A Arqueologia de campo está presente através dos resultados de intervenção realizada no centro histórico de Pinhel, em níveis de necrópole medieval-moderna que propiciaram a análiseantropológica dos indivíduos aí inumados, e ainda de trabalho que ilustra as potencialidadesabertas ao estudo da arte rupestre pelas novas tecnologias digitais, exemplificando com a sua aplicação à denominada “Pedra da Lua”, na serra do Caldeirão (Almodôvar).Correspondendo ao crescente interesse que desperta em leitores desse país lusófono, a Al-Madan Online dá também espaço à Arqueologia brasileira, publicando uma investigaçãosobre estruturas murárias ligadas à ocupação colonial da zona centro-norte da Baía na transição dos séculos XIX-XX.Outros estudos retomam problemáticas portuguesas. O primeiro incide sobre trajectos matrizesda área de Lisboa e analisa o seu papel no desenvolvimento e consolidação das urbes antigas deOdivelas, da Graça, da Colina do Castelo e da Frente de Alfama; um segundo parte dasmagníficas ilustrações de uma publicação alemã dos finais do século XVIII para avivar a memória das grutas ou cavidades naturais existentes no vale de Alcântara, entretantodesaparecidas devido à extracção intensiva de pedra calcária; um terceiro tece considerações sobre contextos e práticas funerárias neolíticas identificadas entre os estuários dos rios Âncora e Lima; um quarto sistematiza a análise iconográfica de um cofre em marfim profusamentedecorado, executado em Paris no século XIV, e contextualiza-o na arte parisiense e luso-orientalda época; um último reflecte sobre a experiência de encenar peças de repertório clássico nasruínas do Teatro Romano de Lisboa, nomeadamente A Paz de Aristófanes, em 2016, e O Misantropo de Menandro, em 2017.Um texto de opinião aborda as novidades da Lisboa romana, outro as questões de género na Arqueologia profissional portuguesa, e outro ainda enfatiza a pertinência da Arqueologia de“cota positiva”, particularmente em contextos industriais. O Património cultural, em sentidoamplo, está representado por análise documental que enriquece o conhecimento da toponímia da zona do Torrão (Alcácer do Sal) no século XV, e por recolha oral junto de Jorge Augusto, um operário e original criador artístico da zona do Porto. Por fim, há ainda uma crónicaestimulante e diversificado noticiário arqueológico, sobre livros, revistas e eventos científicosrecentes, terminando com uma agenda dos que estão publicitados para os próximos meses.Como sempre… votos de boas leituras!

Jorge Raposo

4

ÍNDICE

II SÉRIE (22) Tomo 2 JULHO 2018online

EDITORIAL ...3

CRÓNICAS

Contextos e Práticas Funerárias Neolíticas Entre os Estuários do Âncora

e do Lima (Noroeste de Portugal): algumas considerações |

Fábio Soares...72

ARQUEOLOGIA

Copiar, Colar e... Omitir! |José d’Encarnação...6

ESTUDOS

Intervenção Arqueológica no CentroHistórico de Pinhel (Guarda): resultados

arqueológicos e paleobiológicos |Susana Nunes, Carla Ribeiro,

Maria João Neves, Sofia N. Wasterlain e Maria Teresa Ferreira...18

A História Que Resiste: um estudo de caso acerca de remanescentes históricos

edificados no Centro Norte Baiano (Brasil) |Morgana Cavalcante Ribeiro e Sebastião

Lacerda de Lima Filho...34

Trajeto Matriz. Análise de trajetosmatrizes em estruturasterritoriais e urbanasantigas da área de Lisboa:Odivelas, Graça, Colina do Castelo eFrente de Alfama |Vitor Durão...47

Pedra da Lua (Serra do Caldeirão, Almodôvar): uma redescoberta à luz das novas tecnologias

[MRM - Modelo de Resíduo Morfológico] |Marco Valente...26

Entre Pedras e Pedrinhas: construção de um roteiro megalítico de Avis | Ana CristinaRibeiro...8

ARQUEOLOGIA BRASILEIRA

As Grutas do Vale de Alcântara |Eva Maria F. Leitão,Carlos Vítor D. D.Vasques e Guilhermede Jesus P. Cardoso...58

Cofre em Marfim Parisiense do Século XIV: análiseiconográfica e contextualizaçãoportuguesa | Cátia Teixeira...85

5

OPINIÃO

EVENTOS

Agenda...165

PATRIMÓNIO

NOTICIÁRIOARQUEOLÓGICO

Questões de Género em Contexto Laboral em Arqueologia: breves notas |

Sara Simões, Sara Brito, Liliana Carvalho,Jacinta Bugalhão e Andreia Moreira...111

ESTUDOS CLÁSSICOS

O Misantropo no Teatro Romano de Lisboa: quando a criação artística seencontra com a investigação académica |Silvina Pereira...93

E Algumas Coisas Que Não Deveriam Ter Sido

Esquecidas, Foram Perdidas |João Luís Sequeira...114

Topónimos da Vila do Torrão, de Meados do

Século XV: segundo um documentode administração de uma Capela

sediada na Igreja Matriz | AntónioRafael Carvalho...117

Localização do Balneário Castrejo Atribuído ao Castro de Eiras / Aboim das Choças (Arcos de Valdevez) |José da Silva Ferreira e Armando Coelho F. da Silva...136

Frutos de Roseira na Urna Funerária do Tumulus 1 do Souto (Abrantes, Portugal) |Paula Queiroz e Ana Rosa Cruz...138

Petição Pela Defesa do Património Arqueológico Nacional | Marco Valente...141

LIVROS & REVISTAS

Actas do Primeiro Encontro de Arqueologia de Lisboa |João Luís Cardoso...144

Caetobriga. O Sítio Arqueológico da Casa dos Mosaicos: recensão de uma obra fundamental |João Luís Cardoso...147

Novidades...150

X Jornadas de Jovens em InvestigaçãoArqueológica | CátiaTeixeira...151

II Encontro de Arqueologia de Lisboa | António Marques...153

Colóquio Anual da ERA Arqueologia |Mafalda Capela...155

ARQUEOCIÊNCIAS 2018. Da matéria-prima ao artefacto: algumas notas | Ana Vale, Sérgio Monteiro-Rodrigues e Maria de Jesus Sanches...158

As Ruínas da Lisboa Romana |José d’Encarnação...107

Arte Não-Académica, Arte Popular, Arte Bruta: as criações de Jorge Augusto |Franklin Pereira...127

Comissão de Arqueologia Profissional da Associaçãodos Arqueólogos Portugueses | Rodrigo Banha daSilva, Miguel Lago e Jacinta Bugalhão...142

O II Congresso Internacional As Aves:evolução, paleontologia, arqueozoologia, artes e ambientes | Silvério Figueiredo e Alexandre Carrança...161

Arqueologia, Museu(s) e Comunidade(s): arqueologia comunitária e museologia comunitária | Miguel Serra...162

147

estudado e publicado pelo saudoso Coronel Car -valho Fernandes, que fora resguardado em duasânforas. O acervo recuperado foi de 18.181 moe-das, algumas de extrema raridade. A par desteachado excepcional, ocorrido no dia 20 de Maiode 1957, recolheram-se, naquele e em diversosoutros locais, no decurso da abertura de valas ur -banas de saneamento, fragmentos de recipientesfinos, de terra sigillata, materiais diversos de cons-trução e até porções de paredes do que, muitosanos depois, viríamos a saber pertencerem a tan-ques de salga romanos, alguns dos quais foramreconhecidos e escavados ulteriormente na Praçado Bocage. Apesar de todas estas evidências, haviaquem as menosprezasse. Fernando Bandeira Fer -reira veio mesmo a publicar, em 1959, artigo in -titulado “O problema da localização de Cetó -bri ga”, procurando relativizar os achados dadosa conhecer por José Marques da Costa. Diz ele,a tal propósito (Ferreira, 1959: 58): “Todas as pe -ças parecem, em geral, muito tardias, exceptuandouns fragmentos de sigillata, mas o local em que estese outros artefactos foram encontrados, permite-nosperguntar se não teriam sido para aí levados com

Ovolume 17 (2018) da revista Setúbal Ar -queo lógica, editada pela Associação de Mu -

nicípios da Região de Setúbal / Museu de Ar -queologia e Etnografia do Distrito de Setúbal(MAEDS) é obra exemplar. Nela se evidencia ocompromisso do MAEDS com a memória da cida-de de Setúbal – ou o compromisso difícil entre apreservação da Memória e as exigências da moder-na vida citadina dos setubalenses –, o qual seassume como sua preocupação prioritária, expres-sando-se pelas múltiplas escavações no domíniourbano por si conduzidas.Remonta aos finais da década de 1970 a impor-tantíssima escavação da Praça do Bocage, comsucessivas ocupações, com as suas fábricas detransformação de produtos piscícolas de ÉpocaRomana. Tive o grato prazer de colaborar no es -tudo daqueles vestígios, contribuindo para a re -constituição da evolução paleogeográfica do espa-ço onde tais instalações se implantaram, atravésdo estudo das areias amostradas, com recurso àanálise sedimentológica dos respectivos depósitos,por via de um laboratório que então ajudei amon tar nas instalações do Museu. Assim se afir-mou o MAEDS como espaço público aberto à in -ves tigação e inovação da prática arqueológica, naverdade um exercício necessariamente multidis-ciplinar, a que não é alheia a própria formaçãocientífica de base dos seus responsáveis e anima-dores, Joaquina Soares (Geografia) e Carlos Ta -vares da Silva (Biologia). A importância da Arqueologia urbana desenvol-vida em Setúbal pelo MAEDS, num esforço entãosolitário e pioneiro, mas que revelou em muitoslocais da cidade presenças humanas inesperadas,as mais antigas da época da chegada dos comer-ciantes e navegadores fenícios ao acolhedor portode Setúbal, ainda antes da península de Tróiaes tar configurada da forma hoje conhecida, jus-tificou a realização, por iniciativa do MAEDS, nos

Paços do Concelho de Setúbal, no já lon -gínquo ano de 1985, do I Encontro deArqueologia Urbana a nível nacional,cujas actas foram publicadas logo no anoseguinte pelo IPPC. Mas a relação do mu -seu, antes de ser MAEDS, com a antigui-dade do subsolo da cidade encontra-secorporizada, desde muito antes, por Carlos Ta -va res da Silva, ao ter publicado com saudoso ar -queólogo O. da Veiga Ferreira, “Uma Bela JóiaRomana Encontrada em Setúbal”, nos EstudosIta lianos em Portugal, em 1968-1969, e, logo de -pois, “Uma Colher Votiva Lusitano-Romana”,em 1970, na Revista de Guimarães. São, pois, ri -cas e antigas as fundações do MAEDS no respei-tante à Arqueologia Urbana da própria cidade,justificando numa prática diária sempre renovada,a valia da sua actuação.Claro que importa não perder de vista o enqua-dramento legal da actividade do MAEDS nestedo mínio da prática arqueológica, com acrescidasdificuldades, até pelas consequências financeirasque dela podem decorrer; mas também neste par -ticular, a solução encontrada em estrita articulaçãocom a tutela, revelou-se essencial para a prosse-cução dos trabalhos que até ao presente têm vin -do a ser realizados, constituindo fonte de inspi-ração para outras autarquias que se debatem comsituações análogas.Mas o motivo da nossa presença hoje no MAEDSé outro. O livro, com magnífica impressão a co res,abre com uma interessante síntese sobre a ques -tão da localização de Cetóbriga, que apaixonoumuitos arqueólogos sadinos desde o século XIX,destacando-se, já no século XX, António InácioMarques da Costa, Fenando Bandeira Ferreira eFernando Castelo Branco. Ponto importantedeste debate foi a identificação, na rua de FranPaxeco, de muros de fábrica romana associados aum notável tesouro monetário do século IV d.C.,

Caetobriga. O Sítio Arqueológicoda Casa dos Mosaicos

recensão de uma obra fundamental

João Luís Cardoso 1

1 Professor Catedrático da Universidade Aberta. Coordenador do Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras (Câmara Municipal de Oeiras).

Por opção do autor, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

FIG. 1 ! Capa de CAETOBRIGA. O sítioarqueológico da Casa dos Mosaicos.

Coordenação de Carlos Tavares da Silva.Setúbal: Associação de Municípios da

Região de Setúbal / Museu de Arqueologiae Etnografia do Distrito de Setúval

(Setúbal Arqueológica, 17).

A história desta cidade, cujo declínio se inicioutalvez a partir de finais do século IV d.C. e acom-panhou o abandono das estruturas fabris do outrolado do estuário, que ao mesmo tempo adquiriuassinalável importância religiosa e funerária, en -contra-se, como acima se disse, a par e passo do -cumentada pela Arqueologia nas páginas destaobra.A evolução paleogeográfica do actual espaço urba-no, caracterizada por Joaquina Soares, acompa-nhou, naturalmente, a génese e desenvolvimentoda própria ocupação humana daquele antigoesteiro do Sado, desde o Neolítico Final / Calco -lí tico aos nossos dias, conforme indica a locali -za ção das estações identificadas pertencentes aépocas sucessivas e que foram ocupando áreasprogressivamente postas a seco, por via do asso-reamento do antigo esteiro aqui formado peloestuário.É nesse contexto de permanente transformaçãodos ambientes naturais ribeirinhos, que as suces-sivas comunidades ocuparam e souberam apro-veitar, adaptando-se e aproveitando todas as po -tencialidades por eles oferecidas, que se integramos restos postos a descoberto nas escavações daRua António Joaquim Granjo, local paredes--meias com o MAEDS, cuja publicação constituio objectivo essencial da presente obra.Designado pelo sugestivo nome de “Casa dosMosaicos”, a sequência ali encontrada abarcapra ticamente toda a história de Setúbal, com iní-cios na I Idade do Ferro, a que se reporta a iden-tificação de um forno público de cozer pão, asso-ciado a espólios orientalizantes, até ao PeríodoIs lâmico, passando pela Época Romana, repre-sentada por sucessivas fases construtivas, adiantereferidas mais em pormenor.

outros materiais, em épocas relativamente recentes,para fazer daqueles aterros que, de há muito, seefectuam em Setúbal para conquistar algum terrenoao rio […]”. Adiante, admite, quando muito, quetais restos pudessem ser atribuídos a um arrabaldeda cidade romana, industrial ou portuário, masapenas na eventualidade de aquela corresponderà área de Rotura - Alferrar, na perspectiva de osu fixo “briga” exigir um alto que só ali se obser-varia.Estes considerandos, que eram contrariados pelaprópria natureza dos achados, onde se incluíamproduções finas, como os recipientes de terra si -gillata, e em que alguns elementos arquitectónicosindiciavam edifícios de certa importância, con-trariando a hipótese de corresponderem aos restosde um pobre arrabalde, como as bases marmóreasde coluna encontradas, levaram ao desalento deMarques da Costa. Com efeito, este, tendo apre-sentado ao I Congresso Nacional de Arqueologia,reunido em Dezembro de 1958 em Lisboa, umaprimeira comunicação sobre tais achados, só em1960, e seguramente com o apoio de ManuelHe leno, os publicou, em edição da própria Câ -mara Municipal de Setúbal (COSTA, 1960). Provado apoio inequívoco daquele catedrático, do qualBandeira Ferreira era então Assistente na Fa cul -dade de Letras de Lisboa, é a sua presença, regis-tada em fotografia na referida publicação, en -quanto observava, com evidente interesse, os es -pólios recuperados. Em cartão-de-visita que fez acompanhar a devo-lução do trabalho de Bandeira Ferreira a ManuelHeleno, seu “querido Mestre e Amigo” como o tra -ta naquela missiva, Marques da Costa refere-se à“prosa delirante” do então Assistente de Letras,com provando a evidente confiança existente entreambos.Se esta introdução se alongou talvez mais do queo desejável, é porque o livro que agora temos asorte de poder ler veio confirmar inequi vo ca -mente que a antiga Cetóbriga se situava em Se -túbal, onde não faltariam casas com mosaicos efrescos como a que foi posta a descoberto peloMAEDS, através das escavações dirigidas por Car -los Tavares da Silva, a par de numerosos outros

LIVROS & REVISTAS

148 II SÉRIE (22) Tomo 2 JULHO 2018online

vestígios identificados pelo museu ao longo dosanos no casco histórico da cidade, desde fábricasde preparados de peixe a fornos para a produçãode ânforas destinadas ao transporte de tais pro-dutos, abarcando larga diacronia, do Alto-Im pé -rio à Antiguidade tardia dos séculos VI-VII d.C. Tal é indicado por certas produções cerâmicas,fo ceenses e anfóricas, como é o caso de ânforaproveniente do Egeu ou do Mar Negro, recolhidanas escavações da Rua Arroches Junqueiro, a parde elementos arquitectónicos, destacando-se capi-tel de concepção bizantina, numa reafirmação,sempre presente, do Mediterrâneo como pano defundo de toda a base económica e cultural daspopulações que então habitavam a cidade, a quenão faltava – finalmente! – o tão discutido morro,correspondente à colina de Santa Maria, masca-rado pelo casario desde há muito, e que im pediaa localização de Cetóbriga neste mesmo local.As escavações metódicas que o MAEDS realizoupor toda a malha urbana da cidade históricaconstituem hoje precioso acervo para o conhe-cimento da evolução do aglomerado humanonos últimos três mil anos. A emergência de Ce -tóbriga resultou do declínio económico de Sa -lácia, a partir do século II d.C., e cedo se funda-mentou no núcleo industrial fundado, prova-velmente no reinado de Tibério, na antiga ilhade Achale, fronteira à cidade, por iniciativa deum dos membros da influente família dos CorneliiBochii, onde se recolheu lápide a ele alusiva. Talé, a breves pinceladas a história romana de umrio e de uma cidade: Cetóbriga separada por umamplo estuário que era, em si mesmo, a razão dasua própria existência, por via de uma economiaaltamente especializada na produção de prepa-rados piscícolas apreciados em todo o MundoRomano.

FIG. 2 ! Mesa da sessão de apresentação de CAETOBRIGA. O sítio arqueológico da Casa

dos Mosaicos (Setúbal Arqueológica, 17). O autor, o Presidente do Conselho

Directivo da Associação de Municípios daRegião de Setúbal, Dr. Rui Manuel Garcia,

e o Dr. Carlos Tavares da Silva.

FOTO

:Guil

herm

e Card

oso.

149

No século VII d.C. observa-se a reutilização se -pulcral do espaço, corporizada por sepultura apa-rentemente isolada, caracterizada por JoaquinaSoares, a qual foi executada nos níveis de aban-dono de época romana. Apresenta-se estruturadapor blocos que lhe conferem contorno sub-rectan -gular, contendo diversas deposições primárias eum ossuário, cujas cronologias obtidas pelo ra dio -carbono, indicam o século VI e o século VII d.C.Tanto pela tipologia, como pela ausência de es -pólio e, claro, pela cronologia absoluta, é compa -tível com as práticas funerárias paleocristãs do -cumentadas em diversas necrópoles da mesmaépoca, mas até agora completamente desconhe-cidas em Setúbal. Enfim, a escassa presença muçulmana identificadano local, estudada por Susana Duarte, vem-sejuntar aos vestígios de interessante necrópole is -lâmica anteriormente escavada pelo MAEDS, cons-tituída por 22 sepulturas, identificada na RuaFrancisco Augusto Flamengo a par das cabanasdas Ruas de Bocage / António Cardoso. Os vestígios agora identificados correspondema 19 fossas abertas em camadas de época romana,preenchidas por detritos domésticos variados,incluindo produções de cerâmica comum lisa epintada, bem como vidrada (incluindo dois frag-mentos de corda-seca) e de tipologias variadas. Com esta presença alto-medieval, atribuível, combase na tipologia dos recipientes encontrados,aos finais do século VIII / inícios do século IX,colmata-se uma lacuna na história da cidade,que se julgava ter sido definitivamente abando-nada desde o final da Época Romana até ao sé -culo XIV, encerrando-se assim o registo arqueo-lógico do local, dado que os níveis mais modernosterão sido arrasados aquando da construção dopré dio actualmente ali existente, nos finais dosé culo XVIII ou já no século XIX.

Naturalmente, são as evidências de Época Ro -ma na aquelas que conferem ao sítio maior inte-resse patrimonial e arqueológico, evidenciadopor diversas estruturas.O Edifício A, atribuído ao 3.º quartel do sécu -lo I d.C., integrando diversos muros, abandonadono decurso do século III, a que se seguiu o rea-proveitamento de muitos dos seus elementoscons trutivos, pouco tempo depois de ter sido va -lorizado pelos mosaicos que o caracterizam, atri-buíveis à primeira metade do século III, estudadospor Licínia Wrench. Não deixa de ser estranhaesta aparente incongruência, observada em tãocurto espaço de tempo.Tais mosaicos constituem elementos até agorasem precedentes na Setúbal romana, revestindocom motivos geométricos polícromos o piso dasduas salas do edifício postas parcialmente a des-coberto. As paredes da domus encontravam-se também de -coradas por pinturas a fresco, sobre estuque, ten-do-se reconhecido três fases do seu revestimentopintado. Trata-se de motivos geométricos e figu-rativos, cujo estudo detalhado poderá trazer novaluz sobre estas manifestações artísticas, ainda tãomal conhecidas no território peninsular, por faltade um estudo sistemático de há muito requerido.Eu próprio, com Carlos Tavares da Silva, nos de -batemos com idêntica dificuldade aquando doestudo das pinturas observadas no estabe leci -mento romano de Leião (Oeiras), destruído porincêndio em meados do século I d.C. e jamaisre construído. Sublinhando a importância socialdos donos desta habitação, recolheram-se frag-mentos de placas de mármore verde, de rara bele-za, destinadas também ao revestimento parietal. O Edifício B, representado essencialmente pormuro rectilíneo, abandonado na mesma épocado anterior, tem o interesse de definir, conjun-

tamente com o muro principal do Edifício A, oprimeiro arruamento de Cetóbriga, com cercade 1,3 m de largura.

À caracterização estratigráfica, arquitectónica eartística (mosaicos e pinturas) das estruturas queintegram os dois edifícios identificados, segue--se o estudo detalhado dos espólios encontrados,a cargo de diversos especialistas.Sónia Gabriel estudou os conteúdos de umaânfora Dressel 14 da 2.ª metade do século I d.C.,tendo concluído que se tratava de sardinhas sal-gadas inteiras, a salsamenta dos romanos, conservapela primeira vez aqui identificada; as produçõesde terra sigillata foram estudadas por AntóniaCoelho-Soares; as cerâmicas de paredes finas elucernas por Eurico de Sepúlveda e Catarina Bo -lila; a cerâmica comum romana por AntóniaCoelho-Soares e Carlos Tavares da Silva; e as ân -foras romanas por este último arqueólogo. É demencionar a categoria das “ânforas lusitanas pre-coces”, não conotada com nenhuma forma nor -malizada corrente, devidamente caracterizadas ecomparadas com exemplares de outros con tex -tos conhecidos, quase todos também exploradospelo autor na região do Baixo Sado (Pedrão,Abul-A e Alcácer do Sal), a que se sucedem asbem conhecidas ânforas Dressel 14.Os estudos antropológicos foram asseguradospor Margarida Figueiredo e o estudo isotópicodos respectivos restos ósseos, realizado por AliceToso e Michelle Alexander, permitiu concluirque aqueles indivíduos teriam a sua alimentaçãoessencialmente baseada nos recursos marinhos,como seria naturalmente previsível, tal como eraesperável que a população do Monte da Cegonha,que serviu de elemento de comparação, vivendono interior alentejano, comesse essencialmentecarne. Nada que justificasse a inusitada impor-tância que os autores conferiram a tal evidência,como se ela não fosse, à partida, mais do que es -perável…O volume termina com o estudo arqueozoológicodos restos recolhidos nos diferentes contextos es -cavados, da autoria de Cleia Detry.

FIG. 3 ! Sessão de apresentação de CAETOBRIGA. O sítio arqueológicoda Casa dos Mosaicos (SetúbalArqueológica, 17).

FOTO

:Guil

herm

e Card

oso.

que a boa prática arqueológica exige, antes demais, o estudo exaustivo e irrepreensível dos es -pólios arqueológicos recuperados.Assim, o sítio designado por Casa dos Mosaicos,esta que é de facto a verdadeira “Casa das Histó -

Trata-se, pois, de uma obra verdadeiramentetransdisciplinar, como são todas aquelas a que,sempre que justificável pela natureza dos dados,o MAEDS desde cedo nos habituou, fiel ao prin-cípio irrevogável mas tantas vezes esquecido, de

LIVROS & REVISTAS

Referências

COSTA, J. Marques da (1960) – Novos elementos para a localização de Cetóbriga. Os achados romanosna cidade de Setúbal. Setúbal: Câmara Municipal de Setúbal.

FERREIRA, F. Bandeira (1959) – “O problema da localização de Cetóbriga. Seu estado actual”.Conimbriga. Coimbra. 1: 41-70.

SILVA, C. Tavares da (coord.) (2018) – CAETOBRIGA.O sítio arqueológico da Casa dos Mosaicos. Setúbal:Associação de Municípios da Região de Setúbal / / Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito deSetúbal (Setúbal Arqueológica, 17).

150 II SÉRIE (22) Tomo 2 JULHO 2018online

rias”, pelas histórias que ciosamente guardava aolongo dos séculos e agora estão finalmente deci-fradas, assume-se especialmente pela existênciade domus, com mosaicos, pinturas murais e apli-cações a mármores exóticos, evidenciando a exis-tência de uma classe abastada, relacionada como comércio e a actividade industrial, tal qual orevelado no outro lado do rio, onde também sereconheceram domus de ricos proprietários, igual-mente decoradas com pinturas murais e mosaicos,reforçando as estreitas afinidades existentes entreas duas margens da cidade romana. Por via dos trabalhos desenvolvidos pelo MAEDSdesde a sua fundação, reuniu-se um repositóriode informação essencial sobre as pré-existênciasde Setúbal, as quais, nalguns casos, com sabedoriae bom senso, os arqueólogos souberam integrarno quotidiano dos habitantes da cidade moderna,valorizando-o e dando-lhe a consistência que lhefaltava. Não haverá outra cidade portuguesa da actuali-dade cujo conhecimento seja tão completo porvia da Arqueologia Urbana, como a de Setúbal. Esta obra é, pois, mais uma prova dessa realidade,por certo a mais notável de todas elas, que bematesta a vitalidade do MAEDS, mais de 40 anosde pois da sua fundação, o vigor na concretizaçãodaquele que é um dos seus objectivos fundamen-tais, enunciados logo na Nota de Abertura escritapelo Sr. Dr. Rui Garcia, Presidente da Associaçãodos Municípios da Região de Setúbal. Por issodevemos estar gratos aos autores e a quem criouas condições, ao longo dos anos, para que a mes -ma se realizasse, tanto no terreno, como na con-cretização do livro que de hoje em diante teremoso privilégio desfrutar.

CAETANO, MariaTeresa (2018) –ANIMALIA QVÆ LACTE ALVNTVR. Mamíferos nosMosaicos Romanos da Península Ibérica. Casal deCambra: Editora Caleidoscópio.CARVALHO, Pedro C. (coord.) (2018) – EstudoHistórico e Etnológico do Vale do Tua (Concelhos deAlijó, Carrazeda de Ansiães, Mirandela, Murça e Vila Flor). Porto: Ed. Afontamento. 3 vols + DVD.COELHO, Rui Gomes (2018) – O ArqueólogoCordial. A Junta Nacional de Educação e o

Enquadramento Institucional da Arqueologia Portuguesadurante o Estado Novo (1936-1974). Lisboa: Imprensade Ciências Sociais / Universidade de Lisboa.GONÇALVES, Victor S. (ed.) (2017) – Sinos e Taças. Junto ao oceano e mais longe. Aspectos da presençacampaniforme na Península Ibérica. Lisboa: Centro deArqueologia da Univ. de Lisboa (Estudos & Memórias, 10).LOULÉ. TERRITÓRIOS, MEMÓRIAS, IDENTIDADES (2018) –Lisboa: Imprensa Nacional / Museu Municipal de Loulé(catálogo de exposição).SILVA, Carlos Guardado (coord.) (2018) – Nova HistóriaLocal. Torres Vedras. Lisboa: Edições Colibri / CâmaraMunicipal de Torres Vedras (Colecção Turres Veteras).

novidades

CONSERVAR PATRIMÓNIO(2018) – N.º 28. Direcção

António João Cruz. Lisboa: ARP - Associação Profissional de

Conservadores-Restauradores de Portugal. Em linha.

Disponível em http://revista.arp.org.pt/pt/revistas/28.html.

EBVROBRIGA. História, Arqueologia, Património,

Museologia (2018) – N.º 9.Fundão: Museu Arqueológico

Municipal José Monteiro.

novidades

[http://www.caa.org.pt]

[http://www.facebook.com]

[[email protected]]

[212 766 975 | 967 354 861]

[travessa luís teotónio pereira, cova da piedade, almada]

uma edição

[http://www.almadan.publ.pt]

[http://issuu.com/almadan]