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A Abordagem Evolutiva no Estudo do Comportamento Animal e Humano

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Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro

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Um século de Conhecimento | 631

E c o l o g i a c o m p o r t a m E n t a l

a aBorDagEm EVolUtiVa no EStUDo Do comportamEnto animal E HUmano

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro1

O estudo do comportamento

A afirmação de que um organismo se comporta de uma determinada maneira porque “seus genes estão lhe ordenando que ele assim o faça” pode parecer um tanto fantasiosa e, no caso dos seres humanos, até mesmo ofensiva. Entretanto, quando consideramos a evolução de um comportamento, podemos chegar a conclusões como essas. O intuito deste capítulo não é demonstrar a veracidade dessa afirmação, mas introduzir o leitor no pensamento evolutivo e na maneira pela qual ele tem sido aplicado ao estudo do comportamento em geral, seja ele animal ou humano.

Quando desejamos investigar as causas de um determinado comportamento, que pode ser definido como o conjunto de atitudes e reações dos organismos, duas categorias de perguntas podem surgir em nossas mentes. A primeira refere‑se às causas próximas (ou imediatas) do comportamento, de como ele é realizado ou que mecanismos operam, dentro do animal, para que ele possa comportar‑se daquela maneira. A segunda refere‑se às suas causas remotas, que tentam explicar por que aquele determinado comportamento evoluiu numa dada espécie animal. Essas causas, também conhecidas como causas evolutivas, são as causas que procuramos desvendar quando estudamos a evolução de um comportamento, e constituem o objeto desta revisão.

1 Professor adjunto do Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade de Brasília. Doutor pela Universidade de Oxford, Inglaterra.

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Causas próximas e remotas do comportamento não são antagônicas, mas complementares, e ambas compõem (ou deveriam compor) o conteúdo programático da maioria dos cursos universitários de comportamento animal. Entretanto, elas diferem substancialmente nas suas origens históricas.

Estudos que versam sobre as causas próximas do comportamento são de fato mais antigos e têm suas origens no estudo da anatomia e da fisiologia animal, da psicologia e da filosofia. Ilustres estudiosos do comportamento animal, como Konrad Lorenz, Niko Timbergen e Karl von Frish, conhecidos como os fundadores da etologia, ficaram famosos por sua pesquisa sobre as causas próximas do comportamento, tendo até mesmo recebido pelo conjunto de suas obras o prêmio Nobel de medicina de 1973.

As causas evolutivas do comportamento, entretanto, só puderam ser investigadas a partir da “teoria da evolução através de seleção natural” de Charles Darwin (1859), que nos abriu as portas do pensamento evolutivo. O desenvolvimento pleno do pensamento evolutivo, entretanto, só veio a ocorrer nas últimas décadas do século XX, período em que também se desenvolveram duas áreas da biologia, a genética e a ecologia, que agora formam os pilares do pensamento evolutivo. Por essas razões, este capítulo inicia‑se com uma breve revisão da teoria de Darwin, a nossa grande herança do século XIX, e em seguida são apresentados alguns de seus desdobramentos no estudo do comportamento animal e humano durante o século XX.

Conforme veremos, a aplicação da abordagem evolutiva ao comportamento, especialmente ao comportamento social e a temas como o egoísmo e o altruísmo, culminou por deflagrar a última grande revolução no próprio pensamento evolutivo: a substituição do indivíduo (ou dos organismos propriamente ditos) pelo gene (ou grupos de genes) como as unidades de seleção relevantes. Para encerrar o capítulo, algumas críticas relativas à influência dos genes no comportamento (especialmente no comportamento humano) são apresentadas e discutidas, juntamente com algumas

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perspectivas de estudos futuros sobre as causas evolutivas do comportamento.

A herança do século XIX para o estudo do comportamento: as teorias de Darwin

A teoria de Darwin é mais facilmente compreendida quando desmembrada em uma série de teorias interligadas (para uma revisão detalhada de cada uma destas teorias, ver MAYR, 1982). Nosso interesse obviamente recai sobre a teoria da seleção natural, mas para que possamos melhor entendê‑la e relacioná‑la às demais, façamos uma breve menção destas teorias, que incluem: a) a própria idéia da evolução, da transformação dos organismos ao longo do tempo, que já havia sido aventada por vários pesquisadores pré‑darwinianos (como Erasmus Darwin, o avô de Charles, e Lamarck, que propôs sua teoria em 1809, ano em que Charles nasceu), mas à qual Darwin forneceu uma série de evidências e adicionou a idéia de transformação horizontal ou da diversificação das espécies no espaço; b) a evolução por meio de descendência comum, em que Darwin postulou que todos os organismos atuais descendem de ancestrais comuns e se diversificaram através dos tempos, o que explica, por um lado, a grande diversidade de espécies atuais e, por outro lado, restringe a vida a uma origem comum, um evento único talvez (o que também permite uma investigação mais objetiva); c) a evolução como um processo gradual, confrontando assim a visão essencialista (ou tipológica) da espécie então predominante entre os naturalistas e as teorias saltacionistas, que, ao postularem uma grande descontinuidade entre espécies, previam que novas espécies só poderiam surgir mediante grandes saltos evolutivos; d) a seleção natural propriamente dita, que explica como a evolução realmente ocorre; e e) a especiação, ou o processo de formação de novas espécies, que é colocado como uma conseqüência do processo de seleção natural.

De forma simplificada (e também por uma questão de espaço), a teoria da seleção natural baseia‑se em três características freqüentemente observadas na grande maioria das espécies:

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• variação – indivíduos de uma mesma espécie podem diferir em muitas características (morfológicas, fisiológicas, do comportamento, etc.);

• hereditariedade – os pais podem passar suas características individuais para a sua prole;

• reprodução diferencial – devido às suas características especiais herdadas, alguns indivíduos deixam mais descendentes que outros.

Darwin percebeu que a evolução é o processo resultante quando essas três condições ocorrem em uma espécie. Assim, quando certos indivíduos se reproduzem mais que outros, e quando sua prole herda as características (incluindo as características ligadas ao comportamento) que permitiram a seus pais se reproduzirem com maior êxito, estas características se espalharão pela população. Por outro lado, se alguns indivíduos se reproduzem menos que outros, e sua prole herda as características que impossibilitaram a seus pais se reproduzirem com maior sucesso, essas características tenderão a desaparecer da população ao longo de várias gerações.

Um aspecto fundamental da teoria da seleção natural é que o indivíduo é claramente colocado como o objeto ou a unidade de seleção relevante. É o indivíduo que se comporta e que interage com seu ambiente físico e biológico. É o indivíduo que se reproduz. A seleção natural é apenas o processo resultante da reprodução diferencial dos indivíduos.

Já o comportamento em si, que é visto pelo biólogo como qualquer outra característica morfológica ou fisiológica observável no fenótipo dos indivíduos, poderá então evoluir ou não à medida que produza indivíduos mais ou menos bem adaptados. Essa melhor adaptação, em última análise, se refletirá no seu sucesso reprodutivo ou, como costumamos dizer, na sua aptidão, que pode ser enfim medida pelo número de descendentes diretos (filhos, netos, bisnetos) que um indivíduo deixa nas gerações seguintes.

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A maneira pela qual o comportamento se originou e as condições ambientais que permitiram ou favoreceram a sua evolução, espalhando‑se entre os indivíduos e mantendo‑se (ou não) nas populações, provavelmente nunca serão conhecidas. Teríamos, pois, que voltar no tempo e na história evolutiva da espécie em questão para conhecermos com precisão esses aspectos. Mesmo com a ajuda de um vasto registro fóssil, pouco saberíamos sobre a evolução do comportamento dos organismos, pois o comportamento em si, ou grande parte dele, não é passível de fossilização (pegadas, marcas, utensílios e outros objetos podem também indicar certos comportamentos dos organismos, mas apenas no caso de algumas poucas espécies, como a nossa).

Por outro lado, temos os organismos que ainda vivem, e que podem nos fornecer comparações relevantes e necessárias (o leitor há de concordar que seria praticamente impossível conhecermos com profundidade qualquer aspecto de nossa própria evolução se estivéssemos sozinhos neste planeta), e temos a teoria da seleção natural, que, baseada na capacidade de adaptação dos organismos, pode nos ajudar a formular hipóteses testáveis sobre a evolução do comportamento (hipóteses geram predições que, por sua vez, podem ser cientificamente testadas). Essas são, de fato, as armas de que dispomos para investigarmos a evolução do comportamento na atualidade.

Por muitos anos, entretanto, a teoria da seleção natural foi simplesmente ignorada pela grande maioria dos estudiosos do comportamento, e somente no século XX, quando o trabalho dos etologistas nos anos 1960 e 1970 passou a ser mais conhecido (e a etologia passou a ser incluída como uma disciplina formal dos currículos de biologia e história natural de várias universidades do mundo, inclusive no Brasil), que ocorreram enfim algumas tentativas de incorporar o pensamento evolutivo ao estudo do comportamento. Essas primeiras tentativas, entretanto, estavam repletas de erros de interpretação da teoria da seleção natural, conforme veremos a seguir.

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Os desdobramentos da teoria da seleção natural no século XX

O problema do “bem da espécie”

Talvez devido ao fato de Charles Darwin ter colocado a especiação como uma conseqüência do processo de seleção natural, vários estudiosos do comportamento dos anos 1950, 1960 e 1970, que tentaram de alguma maneira incorporar o pensamento evolutivo ao estudo do comportamento, passaram a utilizar a espécie, e não o indivíduo, como o objeto ou a unidade de seleção natural.

Não importava a esses estudiosos se os indivíduos variavam entre si em uma série de comportamentos, ou se esses comportamentos podiam fazer com que eles deixassem mais ou menos descendentes nas gerações futuras. O que realmente importava, ou o que parecia implícito em sua argumentação, é que pelo menos alguns indivíduos sobrevivessem e se reproduzissem para que a espécie, como um todo, pudesse então ser preservada. A conseqüência desse raciocínio foi uma aceitação crescente, entre os estudiosos da época, de que o comportamento dos indivíduos estava primariamente voltado para o benefício da espécie à qual pertenciam.

Um dos exemplos mais ilustrativos desse modo de pensar nos é fornecido por Konrad Lorenz (1966), que, numa de suas raras tentativas de explicar as causas remotas do comportamento, discute a possível evolução do comportamento agressivo no homem e nos animais totalmente baseada nas suas “funções de preservação da espécie”, mas o exemplo mais extremo até agora conhecido é o de Wynne‑Edwards (1962, 1986), que propôs uma teoria segundo a qual as espécies atuais teriam evoluído mecanismos de auto regulação populacional, com o objetivo final de evitar a super‑exploração dos recursos necessários à sua sobrevivência e a possível extinção de todo o grupo.

Tomando como ilustração os diversos tipos de agregações que muitos mamíferos, aves, peixes e répteis em geral apresentam, Wynne‑Edwards sugeriu que essas agregações permitiriam aos animais de alguma maneira estimar o tamanho da população e investir com maior ou menor intensidade na produção de novos indivíduos (na reprodução), de forma a manter os tamanhos populacionais

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compatíveis com os recursos disponíveis. Essa teoria, atualmente mais conhecida pela expressão “seleção de grupo”, tem levado vários autores a desenvolverem ou simularem modelos de seleção natural onde grupos de indivíduos ou populações inteiras pudessem tornar‑se unidades de seleção. O efeito de grupo pode até mesmo ser medido em populações naturais. Entretanto, segundo G. C. Williams (1966), a seleção natural agindo sobre as variações entre indivíduos teria sempre um efeito muito mais forte na formação do patrimônio gênico das gerações seguintes do que as diferenças entre grupos ou populações. Essa questão, na realidade, encontra‑se ainda hoje aberta a novas discussões. O problema, entretanto, está em como interpretar corretamente o comportamento dos indivíduos. Sob a perspectiva da teoria de seleção natural, espera‑se que os indivíduos se comportem “egoisticamente”, ou seja, visando ao aumento do seu próprio sucesso reprodutivo, de sua própria aptidão. Sob a perspectiva da seleção de grupo, espera‑se que os indivíduos se comportem “altruisticamente”, ou seja, visando o benefício da espécie à qual pertencem (ou dos demais indivíduos do seu grupo ou população), chegando mesmo a abrir mão de seu próprio sucesso reprodutivo.

Esta teoria tem, é claro, um certo atrativo, uma vez que coloca todos os indivíduos da população a serviço do bem comum e da coletividade. Uma “verdadeira sociedade de altruístas” que poderia servir como modelo para a nossa própria sociedade. Entretanto, conforme veremos a seguir, os exemplos de altruísmo reprodutivo são relativamente raros no reino animal e estão restritos a alguns grupos taxonômicos cuja biologia difere substancialmente das demais espécies animais.

Além de focar de maneira errada a unidade de seleção, o que a “teoria do bem da espécie” realmente não consegue explicar pode ser captado no seguinte argumento, desenvolvido por Alcock (1993): imaginemos que, numa população de altruístas, surgisse um indivíduo que (talvez devido à uma mutação) passasse a comportar‑se de maneira egoísta em relação aos outros indivíduos do grupo, investindo seu tempo e energia na criação de seus próprios filhos. Qual entre os dois tipos de indivíduos, o egoísta e o altruísta, deixaria uma prole mais numerosa e estaria mais representado nas gerações seguintes?

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Caso o leitor ainda não esteja convencido, imaginemos a coisa pelo outro lado. Digamos que, numa população de egoístas, na qual todos só quisessem saber de reproduzir‑se e cuidar dos seus próprios filhos, surgisse um altruísta que dedicasse boa parte de seu tempo e energia para o benefício (ou para o sucesso reprodutivo) dos outros indivíduos da população. Que chances teria este indivíduo em deixar descendentes nas gerações futuras? De que maneira o altruísmo se espalharia pela população?

O modelo de seleção de grupo apregoado pelos partidários do “bem da espécie” mostrou‑se desde o início inadequado para a interpretação do comportamento, mas forçou os biólogos desse período a examinarem com maior profundidade a evolução do comportamento social. Afinal de contas, se os indivíduos tendem a comportar‑se apenas egoisticamente, de que maneira o comportamento social, que exige um certo nível de cooperação entre os membros de um grupo, poderia ter evoluído pela seleção natural em tantos animais diferentes, até mesmo na nossa própria espécie?

A evolução do comportamento social e os limites da teoria da seleção natural

Viver em grupo pode acarretar sérias complicações para um indivíduo. Certas doenças parasitárias, por exemplo, podem se espalhar mais rapidamente quando os indivíduos estão de alguma forma agrupados. A competição por recursos alimentares, ou por territórios, ou por locais de nidificação, ou até mesmo por parceiros sexuais (se considerarmos o sexo oposto como um recurso, o que não é muito convencional) também pode ser muito mais intensa nessas condições. Talvez por essas razões, nem todos os organismos chegaram a evoluir qualquer forma de comportamento social. Em outras palavras (e utilizando uma argumentação puramente econômica, muito em prática na ecologia), há muitas condições ecológicas nas quais os custos (para os indivíduos, medidos pelo seu sucesso reprodutivo) podem exceder os benefícios (medidos da mesma forma) de se viver em grupo.

Entretanto, sob certas circunstâncias, os benefícios podem tornar‑se maiores e o comportamento social tem enfim alguma

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chance de evoluir. Imaginemos algumas situações. Um casal de aves ou de mamíferos, por exemplo, pode cuidar melhor de seus filhotes do que um dos pais apenas poderia, caso estivesse sozinho. Certos mamíferos carnívoros, como um grupo de leoas, por exemplo, podem se juntar para defender territórios e para desenvolverem técnicas de caça coletivas, mais eficientes que as técnicas individuais, conseguindo assim subjugar presas talvez muito maiores ou que, de outro modo, não estariam no cardápio principal do dia. De forma semelhante, mamíferos herbívoros podem formar grandes rebanhos para se defenderem de predadores, aumentando o número de “vigias” e desenvolvendo diferentes tipos de “sinais de alerta” que permitiriam aos animais fugirem quando os predadores se aproximassem, ou ainda, podem simplesmente dividir com outros indivíduos, tão apetitosos ou mais do que eles, as mesmas chances de serem atacados por um determinado predador (Hamilton – 1971 – apresenta um modelo de seleção bem mais realista para a evolução desse comportamento em certos grupos de presas, os chamados “rebanhos egoístas”). Em todos esses casos, que denominamos comportamentos de cooperação (ou mutualismo, no caso de cooperação entre indivíduos de espécies diferentes), há um benefício líquido (ou um aumento na aptidão) para cada um dos indivíduos envolvidos (comparando com suas aptidões caso estivessem sozinhos), o que torna a sua evolução perfeitamente viável por meio de seleção natural. A teoria da seleção natural não é, portanto, incompatível com a evolução do comportamento social (WILLIAMS, 1966).

O que a seleção natural clássica, baseada no indivíduo como a unidade de seleção, realmente não consegue explicar é quando a ajuda beneficia apenas um dos membros da relação. É o que podemos chamar do verdadeiro altruísmo reprodutivo, em que o altruísta sofre uma perda real em sua aptidão, enquanto o “recipiente” da ação acaba por beneficiar‑se.

Evidentemente, quando os indivíduos envolvidos são pais e filhos, não podemos interpretar esse comportamento como altruísta, uma vez que um pai ou uma mãe estaria simplesmente investindo em sua própria aptidão ao ajudar os filhos. Esses comportamentos de ajuda de pais em relação aos filhos, que denominamos cuidados parentais,

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são também totalmente viáveis quando analisamos a sua evolução pela seleção natural. Poderíamos até mesmo esperar que, sob certas circunstâncias, um pai ou uma mãe chegasse a se matar para salvar a vida de um filho ou uma filha. Mas quando o comportamento de ajuda não envolve os descendentes diretos do indivíduo altruísta, somos então obrigados a rever alguns aspectos da teoria de seleção natural.

Uma alternativa para este problema foi apresentado por Robert Trivers (1971), que propôs um mecanismo denominado “altruísmo recíproco”, no qual o indivíduo altruísta sofre inicialmente uma perda relativamente pequena como conseqüência de sua boa ação, mas recebe no futuro, do próprio “recipiente” da ação, um benefício maior que a perda inicial. Obviamente, um sistema como esse estaria sujeito a fracassar tão logo os indivíduos inicialmente ajudados simplesmente se negassem a retribuir, com juros, os benefícios recebidos. Entretanto, sob certas circunstâncias, especialmente quando os indivíduos envolvidos podem se encontrar e interagir repetidamente, o altruísmo recíproco poderia evoluir, ou, como preferem alguns, poderia tornar‑se uma estratégia evolutiva estável.

O altruísmo recíproco, entretanto, só consegue explicar um altruísmo mais brando, em que as perdas iniciais são relativamente pequenas. Há exemplos, entretanto, em que o altruísta simplesmente não parece ser recompensado de forma alguma, sofrendo perdas aparentemente irreparáveis em sua aptidão. Esses exemplos são para nós do maior interesse, pois parecem confrontar‑se diretamente com a teoria da seleção natural de Charles Darwin. Mas que exemplos são esses, afinal?

Em diversas famílias de aves, a presença de ajudantes não reprodutivos nos ninhos não é um fenômeno raro. Além do macho e da fêmea que formam o casal, encontramos nesses ninhos outras aves que auxiliam na sua construção, na coleta de alimentos e na alimentação dos pais e dos filhotes. Em vários casos, os ajudantes montam guarda e protegem os filhotes de seus predadores, enquanto os verdadeiros pais estão fora do ninho. Para o ajudante, essas atividades poderiam ser consideradas um verdadeiro desperdício de tempo e energia, que poderiam ser investidos em seu próprio benefício, em sua própria aptidão. Como então explicar tal comportamento?

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Outro exemplo clássico é aquele que envolve a evolução de castas não reprodutivas nas abelhas e em outros insetos sociais. Façamos uma breve visita a uma colméia. Lá encontraremos uma rainha, que se dedica quase integralmente à reprodução, enquanto suas irmãs, as operárias, se ocupam dos cuidados com o ninho, de sua construção, da coleta de alimentos e da alimentação da própria rainha e de sua prole. Em vez de um aparelho reprodutivo, as operárias desenvolveram um poderoso ferrão, que não hesitam em utilizar como arma contra qualquer intruso que se aproxime perigosamente da colméia, ato que as levará irremediavelmente à morte. Não seria mesmo um absurdo imaginar que elas se suicidam para defender as castas reprodutivas e sua prole. Como então um indivíduo, como essa operária, poderia abdicar de seu próprio sucesso reprodutivo para claramente beneficiar (ou colaborar com o sucesso reprodutivo) de um outro indivíduo, como a rainha?

Comportamentos altruísticos como o dessa operária podem ser encontrados numa grande variedade de insetos denominados por Edward Wilson (1975) como eusociais, que incluem, além das abelhas, as vespas, as formigas, os cupins e alguns afídeos em que castas, morfologicamente diferenciadas ou não, dividem entre si o trabalho geral da colônia e a tarefa de produzir ou não descendentes. Mais recentemente foi descoberto na África até mesmo um mamífero eusocial, um roedor, o Naked mole rat, que vive em colônias subterrâneas nas quais os indivíduos se alimentam de certas raízes. Tal como em muitos insetos eusociais, a colônia é dominada por uma rainha, uma fêmea reprodutiva maior que os outros membros da colônia, com poucos pêlos, dentes enormes e aspecto geral horripilante. Essa rainha se acasala exclusivamente com apenas dois ou três machos da colônia, enquanto os outros indivíduos, os não reprodutivos (= altruístas), dedicam‑se unicamente à tarefa de abrir túneis e coletar raízes.

Mas há ainda alguns outros exemplos envolvendo outros tipos de organismos. Uma “caravela portuguesa” (Physalia; Cnidaria) pode apresentar muitas semelhanças a uma colônia de formigas. Alguns indivíduos, os gastrozóides, se especializaram na coleta de alimentos (= operárias), outros, os dactilozóides, na defesa da colônia (= soldados) e ainda outros, os gonozóides, na reprodução (= rainhas). A diferença fundamental é que, enquanto operárias, soldados e rainhas podem

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se movimentar livremente, gastrozóides, dactilozóides e gonozóides estão unidos em um mesmo corpo, do qual partilham um intestino comum e um flutuador (uma câmara de gás) que permite à caravela flutuar sobre as águas oceânicas.

O próprio Charles Darwin sentiu que sua teoria estava seriamente ameaçada ao analisar a evolução das castas não reprodutivas nos insetos eusociais. Entretanto, ele conseguiu perceber que a seleção natural poderia estar operando num outro plano diferente do indivíduo, como a família inteira (o que equivaleria à colônia). O altruísmo reprodutivo dos insetos sociais e de outros animais, entretanto, só passou mesmo a ser mais bem compreendido quando analisado sob o ponto de vista dos genes, o que só veio a acontecer na segunda metade do século XX, quando William Hamilton, numa série de artigos publicados (1964a; 1964b; 1970; 1971; 1972), propôs que os genes seriam a unidade de seleção relevante. Antes de entrarmos na evolução do altruísmo reprodutivo, entretanto, vejamos como os genes poderiam ser considerados as unidades de seleção natural.

Os genes como as unidades de seleção

Darwin (1809‑1882) obviamente não tinha conhecimento do conceito de gene e de seu papel na hereditariedade. Esse conceito só passou mesmo a ser mais conhecido e divulgado a partir de 1920, quando vieram a público os experimentos de Mendel e de outros naturalistas que realizaram experimentos de cruzamento em plantas. Tal como Darwin, Mendel não estava a par da composição química dos genes, que hoje sabemos constituir‑se de DNA, ou de sua estrutura em forma de “dupla hélice” (descoberta por Watson e Crick em 1953), mas foi capaz de estudá‑los e identificá‑los pela sua expressão no fenótipo dos indivíduos, como a cor (verde ou amarela) e a forma (lisa ou rugosa) das sementes de ervilhas que ele estudou. Talvez mais importante do que os conceitos de dominância, recessividade e das próprias “leis de Mendel”, seja a contribuição desse autor na própria concepção do significado do gene e, especialmente, na sua natureza particulada (genes se segregam independentemente durante a meiose), que expôs enfim o gene aos olhos da ciência.

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Atualmente nós sabemos que os genes estão presentes em cada uma das células de um organismo (que podem chegar a mais de 1 trilhão no corpo humano). Dentro das células, os genes codificam a síntese de proteínas, os blocos de construção dos seres vivos e, especialmente, de enzimas (também um tipo de proteína) que controlam o metabolismo celular. Entretanto, a característica mais extraordinária dos genes (e mais relevante para o nosso estudo) é a sua capacidade de produzir réplicas de si mesmos. Segundo Richard Dawkins (1989), nós, os indivíduos, nascemos, crescemos, nos reproduzimos (reproduzimos os genes) e morremos. Mas os genes, ao produzirem réplicas de si mesmos, podem tornar‑se potencialmente imortais.

Para produzirem suas réplicas, entretanto, os genes precisam fabricar os indivíduos, sejam eles seres solitários ou coloniais, que competirão e/ou colaborarão entre si para deixar seus descendentes (os novos portadores das réplicas de genes) nas gerações seguintes. Com essas informações em mente, podemos então imaginar a teoria da seleção natural operando ao nível dos genes de modo análogo ao que Darwin imaginou para os indivíduos, como proposto por Alcock (1993):

• Variação genética – genes ocorrem em duas ou mais formas alternativas, os alelos, dentro de uma espécie. Diferentes alelos levam à produção de formas relativamente diferentes da mesma proteína.

• Hereditariedade – alelos podem ser transmitidos de pais para filhos.

• Reprodução diferencial – alelos produzem efeitos que permitem aos seus portadores produzirem mais réplicas de si mesmos do que indivíduos com alelos alternativos do gene em questão.

A idéia do gene como a unidade de seleção se constitui na última grande revolução da história do pensamento evolutivo. Ela nos leva a pensar que os indivíduos não se comportam para o benefício de outros indivíduos de sua espécie ou população (= seleção de grupo) e nem para o seu próprio benefício (= seleção individual clássica), mas em benefício

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de seus genes. Nessa nova perspectiva, o que podemos esperar dos indivíduos é que eles se comportem no sentido de aumentar a sua aptidão inclusiva, um conceito desenvolvido na próxima seção que é a chave para a compreensão do altruísmo reprodutivo.

O conceito de aptidão inclusiva e a evolução do altruísmo reprodutivo

Em vista do que foi exposto na seção anterior, podemos concluir que a produção de réplicas de um alelo (ou de um grupo de alelos) se constitui no grande projeto de vida dos indivíduos, essas “máquinas de sobrevivência”, que funcionam como “veículos” para a replicação dos genes (DAWKINS, 1989). Obviamente, o caminho mais direto para se realizar esse projeto é o investimento em sua própria reprodução ou, como vimos anteriormente, em sua própria aptidão. Mas há também um caminho alternativo para os indivíduos produzirem réplicas de seus genes, descoberto por William Hamilton (1964b): ajudando indivíduos aparentados (como irmãos, primos, sobrinhos, etc.), e que também podem possuir a mesma réplica do alelo, a sobreviverem e a produzirem os seus filhos. É o que pode ser chamado de aptidão indireta, que, juntamente com a aptidão direta (pela reprodução pessoal), compõe o que Hamilton chamou de aptidão inclusiva, um termo que pode ser aplicado tanto ao indivíduo como ao próprio gene ou um de seus alelos.

Utilizando o coeficiente de parentesco (ver Tabela 1) como a probabilidade de dois indivíduos partilharem de uma mesma réplica de um alelo, Hamilton propôs uma regra para se estabelecer como um alelo raro qualquer, como aquele que promove o altruísmo em seu portador, poderia espalhar‑se numa população. Essa regra pode ser expressa por meio da seguinte fórmula:

Br – C > 0

Em que r = coeficiente de parentesco (ver Tabela 1); B = benefício (ou o número adicional de parentes cuja existência se deve à ação do altruísta) e C = custo na aptidão direta do altruísta.

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Tabela 1 – Coeficiente de parentesco (r) entre diferentes tipos de parentes.

(r)

Clones ou gêmeos idênticos 1.0

Pais/mães e filhos/filhas 0.5

Irmãos (ãs) 0.5

Meio irmãos (ãs) 0.25

Avô/avó e neto/neta 0.25

Tio/tia e sobrinho/sobrinha 0.25

Primos (as) 0.125

A regra de Hamilton diz de forma simples que, para que um alelo se espalhe, ou para que o altruísmo possa evoluir numa população, os custos diretos para o indivíduo altruísta (= C) precisam ser menores do que os benefícios indiretos (= B). Os custos são, obviamente, o número de descendentes diretos (filhos e filhas) que o altruísta deixou de produzir, e os benefícios são o número adicional de parentes (não descendentes diretos), cuja sobrevivência se deve exclusivamente à ação do altruísta (e não o número total de parentes do altruísta, como aparece numa grande maioria de livros didáticos), multiplicado pelo coeficiente de parentesco entre o altruísta e o (s) “recipiente” (s) da ação.

Imaginemos, como ilustração, que um indivíduo altruísta deixou de produzir três filhos como conseqüência de sua ação. Em uma espécie diplóide qualquer, que se reproduz sexuadamente, um filho herda metade de seus genes de seu pai e outra metade de sua mãe. O custo para o altruísta será, portanto, de 0,5 (= r entre pai e filho) x 3 (= número de filhos) = 1,5 unidade genética. Entretanto, Em razão de sua boa ação, sete sobrinhos foram capazes de sobreviver e se reproduzir, o que resulta num benefício de 0,25 (= r entre tio e sobrinho) x 7 (= número de sobrinhos) = 1,75 unidade genética. Há, portanto, um ganho líquido de 0,25 unidade genética para o altruísta, o que elevará a freqüência do alelo que promove o altruísmo na população.

Esse é, obviamente, apenas um exemplo hipotético. Na prática tem sido bastante difícil não apenas conhecermos com precisão as verdadeiras relações de parentesco entre os indivíduos de uma

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população animal qualquer vivendo em condições naturais, como também estimarmos com precisão as possíveis perdas na aptidão direta dos indivíduos altruístas. Já existem, entretanto, alguns estudos reveladores. Num estudo realizado com um passarinho australiano, a “cambaxirra de duas cores”, Austad e Rabenold (1985) descobriram que, quando os pais estão sozinhos no ninho, a média de filhotes obtida por ano é de apenas 0,4, mas, quando um ajudante está presente, e sua principal tarefa parece ser a de defender o ninho contra predadores quando os pais estão fora, essa média sobe para 1,3 filho por casal/ano. Em média, um único ajudante aumenta as chances de sobrevivência dos filhotes (seus irmãos e irmãs) em 0,9 filho/ano (B = 1,3 x 0,5 = 0,65; C = 0,4 x 0,5 = 0,2; B > C).

Hamilton (1964b; 1972) foi também o primeiro a perceber que o sistema haplodiplóide, que determina os sexos nas vespas, formigas e abelhas, propicia uma maneira diferente de se estimar o coeficiente de parentesco entre indivíduos de uma colônia. Nesse sistema, os machos são haplóides (originam‑se de um óvulo não fertilizado), enquanto as fêmeas são diplóides (originam‑se de um óvulo fertilizado por um espermatozóide). Se calcularmos então o coeficiente de parentesco (r) entre uma operária e sua irmã, a rainha, veremos que ambas possuem uma cópia idêntica de genes (oriunda de seu pai haplóide, o zangão) e probabilísticamente, mais uma das duas cópias possíveis presentes em sua mãe, a rainha que lhes deu origem. Assim, elas partilham 0,5 + 0,25 = 0,75 de seus genes. De fato, elas não são irmãs como costumamos entendê‑las, mas “superirmãs” (compare com r entre irmãos diplóides na Tabela 1). Se, por outro lado, essa operária pudesse ter tido a opção de produzir os seus próprios filhos (se, em vez de um ferrão, tivesse desenvolvido um aparelho reprodutivo funcional), poderíamos também verificar que seu coeficiente de parentesco com sua filha (rainha ou operária) seria de apenas 0,5. Dedicar‑se então à tarefa de ajudar a rainha a cuidar de seus filhos pode ser, para essa operária, mais vantajoso para a produção de réplicas de seus alelos do que investir na sua própria reprodução.

Esse raciocínio é, na realidade, uma simplificação, pois teríamos de incluir nesses cálculos o número total de filhos e filhas produzidos pela rainha e pela operária (se isso fosse possível; ou considerá‑lo

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de fato nulo), bem como o número total de operárias e rainhas com as quais o benefício é dividido. Mas o simples fato de um altíssimo coeficiente de parentesco estar envolvido já é um indicativo bem forte de que ajudar parentes pode ser mesmo um investimento nos próprios genes de um indivíduo.

Um coeficiente de parentesco bastante elevado foi também encontrado no caso dos cupins e do naked mole rat, mas, contrariamente às abelhas, vespas e formigas, os machos e fêmeas desses insetos e desse roedor são diplóides. Nesses casos, o que se tem observado é que existe um alto grau de endocruzamento (ou cruzamento entre parentes) nessas colônias, o que, por sua vez, também pode ampliar em muito o coeficiente de parentesco entre os indivíduos.

Talvez por não apresentarmos um coeficiente de parentesco tão elevado como os exemplos citados anteriormente, nós e muitos outros organismos em que o altruísmo reprodutivo pode ser encontrado (como aquelas aves em que ocorre a presença de ajudantes) não evoluímos em direção a eusocialidade, mas em direção a comportamentos sociais alternativos. Nosso sistema de determinação dos sexos é bastante diferente do sistema haplodiplóide das abelhas, vespas e formigas, e o endocruzamento praticado pelos cupins e pelo naked mole rat é uma prática claramente evitada na nossa sociedade e, na realidade, na grande maioria dos animais que se reproduzem sexuadamente (veja na próxima seção uma breve discussão sobre o incesto). Entretanto, seja a espécie em questão eusocial ou não, o altruísmo reprodutivo só tem sido observado quando os beneficiários da ação são parentes (mesmo que muito distantes) do altruísta.

Neste momento de nossa discussão, chegamos então a um ponto bastante revelador sobre o altruísmo reprodutivo. Ele só pode ser concebido ou imaginado do ponto de vista dos indivíduos. Do ponto de vista dos genes, não há altruísmo algum, apenas genes investindo egoísticamente em seu próprio benefício, em sua própria reprodução e, somente por essa razão, o comportamento altruísta pôde evoluir nos indivíduos de várias espécies, até mesmo a nossa (sim, nós temos inúmeros exemplos de altruísmo reprodutivo na nossa espécie e, apesar de não sermos eusociais, temos também as nossas “castas não reprodutivas”).

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Essa nova forma de se conceber a seleção natural operando ao nível dos genes não invalida o pensamento clássico de Darwin, que, como vimos, permanece basicamente o mesmo quando transposto do indivíduo para o gene. Entretanto, ele certamente o torna mais amplo, possibilitando‑o incorporar comportamentos até então considerados contraditórios com a teoria da seleção natural, como o altruísmo reprodutivo. Da mesma forma, essa nova visão da seleção natural não necessariamente invalida os vários estudos previamente realizados que utilizaram estimativas de aptidão baseados apenas no número de descendentes diretos de um indivíduo, e não na sua aptidão inclusiva (que incorpora a aptidão direta e indireta). Para o propósito desses estudos, essas estimativas continuam válidas e, na maioria dos casos, elas podem mesmo eqüivaler‑se à verdadeira aptidão inclusiva, uma vez que a aptidão indireta só parece ser importante num número limitado de espécies (creio tratar‑se do nosso caso). Num certo sentido (não muito correto, pois estaríamos colocando os indivíduos e os genes ao mesmo tempo como as unidades de seleção), poderíamos até pensar que o “interesse do indivíduo” e o “interesse de seus genes” são grandemente coincidentes. Talvez por essa razão, passamos tanto tempo sem perceber o papel dos genes no comportamento. Na próxima seção, apresentando algumas críticas ao pensamento evolutivo baseado no gene como a unidade de seleção, bem como algumas perspectivas de estudos futuros nesta área do comportamento.

As críticas à abordagem evolutiva do comportamento no final do século XX e algumas perspectivas de estudos futuros

Desde que lançada a público, a idéia de que os genes podem de algum modo determinar o comportamento dos animais e dos homens tem provocado um grande debate em nossa sociedade. Uma das críticas mais comuns a essa nova abordagem do estudo do comportamento é a de que a influência dos genes no comportamento dos indivíduos ainda não foi devidamente demonstrada, especialmente no caso de nossa própria espécie. Antes de responder a essa crítica, entretanto, precisamos considerar algumas características dos genes e de seu papel no comportamento dos organismos.

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Há na realidade alguns estudos que mostram que um determinado comportamento pode ser controlado por um único gene, obedecendo às leis mais simples da genética mendeliana. Meu exemplo preferido é o de Rothenbuhler (1964), que realizou experimentos de cruzamento entre duas linhagens de abelhas, as “higiênicas” e as “não higiênicas”. Para entendermos este comportamento, lembremo‑nos que, entre as abelhas, existe uma doença denominada American foulbrood que pode eventualmente atacar as larvas e levá‑las à morte. Para manter a limpeza dentro dos ninhos, e evitar que a doença se espalhe, algumas abelhas simplesmente abrem as “células” onde as larvas mortas se encontram, e as removem para fora do ninho. Esta é a linhagem “higiênica”. Em uma outra linhagem destas mesmas abelhas, a “não higiênica”, as larvas não são removidas, permanecendo vedadas por uma tampa dentro dessas células, que se transformam assim em sua tumba mortífera. Quando Rothenbuhler cruzou essas duas linhagens, obteve uma primeira geração totalmente não higiênica, demonstrando assim que esta característica (e seu respectivo alelo) era dominante em relação à linhagem higiênica. Entretanto, quando esses híbridos foram cruzados com a linhagem higiênica original, encontrou‑se o seguinte resultado. Num total de 29 colônias obtidas, em seis delas as células foram abertas (a tampa foi retirada) e as larvas foram removidas; em nove delas as células foram abertas, mas as larvas não foram removidas; em outras seis, as células não foram abertas pelas abelhas, mas depois que o pesquisador as abriu, as larvas foram removidas; e em oito delas, as células não foram abertas e as larvas não foram removidas (mesmo depois que o pesquisador retirou as tampas). Esses resultados mostram, em primeiro lugar, que os comportamentos de “abrir ou não” a célula e “remover ou não” a larva morta de seu interior são controlados por diferentes genes e, em segundo lugar, que cada um destes comportamentos pode ser explicado com base num único par de alelos.

Em outros estudos, observou‑se que o comportamento em questão era controlado por dois ou mais genes, mas na grande maioria dos casos o que se tem mesmo observado é que um comportamento qualquer pode ser afetado por um conjunto enorme de genes. Trata‑se da chamada herança poligênica, descoberta bem depois de Mendel e

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que nos permite explicar as variações contínuas entre os indivíduos (variações quantitativas e não qualitativas). Se pudéssemos então suprimir o efeito de cada gene no genótipo de um animal qualquer, de tal maneira que um determinado comportamento se modificasse ou passasse a não mais ser exibido pelo animal, poderíamos atingir uma porção considerável de seu genótipo. Por essa razão, não tem mesmo sido fácil demonstrar o efeito dos genes no comportamento (exceto talvez no caso de certas doenças genéticas que produzem alterações drásticas no comportamento), mas isso não significa de forma alguma que o efeito em si não exista.

É bastante provável que, com o desenvolvimento da biologia molecular, genes que afetam direta ou indiretamente determinados comportamentos humanos ou não humanos venham a ser descobertos no futuro próximo. Descobrir genes para o comportamento, entretanto, não é a meta da abordagem evolutiva do comportamento ou da sociobiologia. O aspecto fundamental nestas ciências é descobrir se o comportamento em questão realmente evoluiu (e, neste caso, uma base genética seria absolutamente imprescindível), e de que maneira ele poderia ter se espalhado na população, contribuindo para a aptidão inclusiva dos indivíduos que o exibiam, em relação a outros indivíduos que apresentavam comportamentos alternativos. São esses aspectos do comportamento que nos interessam e que podem enfim nos ajudar a formular as hipóteses e as predições necessárias para a sua investigação científica.

Outro argumento freqüentemente utilizado contra a influência dos genes no comportamento é o de que a cultura, geralmente imaginada como uma característica exclusivamente humana, seria o principal fator na determinação do nosso comportamento, e não os nossos genes. Essa argumentação, entretanto, também carece de maiores esclarecimentos. Em primeiro lugar, se imaginarmos a cultura (ou a “protocultura”, se preferirem) como sendo a transmissão de informações e conhecimentos entre indivíduos e gerações, o que parece bastante razoável, poderemos facilmente verificar que muitos animais de fato a praticam. Mas mais importante do que isto é o fato de que, sob a luz da abordagem evolutiva, não existe uma dicotomia verdadeira entre o que poderia ser classificado como “genético” e “cultural”.

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Não há de fato sentido algum em se afirmar que um determinado comportamento é “exclusivamente cultural”, pois a cultura também é vista como uma manifestação genética dos animais, evoluída dentro das populações e moldada por seleção natural de acordo com as necessidades impostas pelo ambiente físico e biológico em que estes animais se desenvolveram. Somos, portanto, seres culturais porque fomos moldados pela seleção natural para sermos assim.

Nós podemos, é claro, afirmar que o fato de falarmos uma determinada linguagem, por exemplo, depende da cultura na qual vivemos. Mas não podemos nos esquecer que nossa habilidade geral para a fala, que inclui nosso aparato vocal, nosso sistema nervoso, nossa capacidade de aprender e memorizar certos símbolos, e até mesmo a idade mais adequada para aprendermos com maior êxito uma nova línguagem, claramente dependem dos nossos genes e podem ser vistas como adaptações biológicas à cultura. Atualmente acredita‑se que há genes até mesmo para a religiosidade humana e o principal argumento em favor desta idéia é que, apesar da enorme diversidade étnica e cultural encontrada entre os homens, ainda hoje não se descobriu qualquer povo ou civilização totalmente ateu sobre o nosso planeta. Além disso, diversas funções adaptativas para a religiosidade, envolvendo claros benefícios para os indivíduos que a praticam, têm sido enunciados (WILSON, 1975, 1978; DAWKINS, 1989).

Um exemplo bastante ilustrativo da falsa dicotomia entre o “genético” e o “cultural” pode ser encontrado no caso da chamada “repressão social ao incesto”. Vimos na seção anterior que a grande maioria das espécies evita as práticas que levam ao endocruzamento e a razão para este fato é que os indivíduos assim produzidos podem apresentar sérios problemas de adaptação (alelos recessivos, cuja expressão no fenótipo poderia ser suprimida se combinados com alelos dominantes normais, poderiam se apresentar em dose dupla e manifestar os seus efeitos deletérios no indivíduo). Entretanto, alguns pensadores contemporâneos têm proclamado que a repressão ao incesto na nossa sociedade é algo “exclusivamente cultural”, na prática, um simples tabu.

Vários estudos têm mostrado que os acasalamentos incestuosos, especialmente entre pais e filhos ou entre irmãos (r = 0,5 em ambos)

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são relativamente raros em condições naturais (menos de 2% nas aves e nos mamíferos). Há na realidade duas maneiras principais pelas quais os animais evitam cruzarem‑se com parentes. Num conjunto de espécies, um dos sexos se move para longe de sua área natal, antes de se acasalar. Num outro conjunto, os animais permanecem próximos, mas desenvolvem uma aversão sexual pelos parentes quando atingem a idade reprodutiva. Esse é o caso dos seres humanos. Num experimento realizado com crianças criadas conjuntamente nos Kibbutz israelenses (SHEPHER, 1971), verificou‑se que, num mesmo grupo de crianças, o casamento entre os seus membros parece jamais ter sido observado. A experiência de terem sido criados juntos, como pseudo irmãos e irmãs, parece simplesmente ter destruído a atração sexual entre eles. Em condições naturais, os indivíduos criados juntos são mesmo aparentados entre si e, em conseqüência, uma tendência genética para a aversão sexual por parentes poderia ter evoluído por meio da seleção natural, como uma adaptação para se evitar o endocruzamento e seus efeitos maléficos, o que parece ter de fato ocorrido. Se dermos ouvidos aos partidários do tabu do incesto, tudo que conseguiremos será a produção de uma prole mal adaptada e, se sobrevivêssemos a isto, poderíamos ao longo de muitas gerações até mesmo nos transformar numa espécie eusocial, como o Naked mole rat.

Outro exemplo de comportamento muitas vezes citado como devido “exclusivamente à cultura” na nossa espécie refere‑se à escolha de parceiros sexuais. Entretanto, quando se investigou mais profundamente quais as características dos homens e das mulheres mais desejadas por pretendentes de sexos opostos (BUSS, 1989), observou‑se que os homens priorizam (entre várias opções possíveis) certas características relacionadas à idade (de fato as mulheres mais jovens) e a determinados atributos físicos (os quais, também se acredita, sinalizam aos machos sua aptidão física para produzirem filhos), enquanto as mulheres priorizam características masculinas que indicam status social elevado, e melhores perspectivas de sucesso financeiro. Apesar de inesperado (e talvez “socialmente injusto”), esse resultado foi repetidamente obtido numa pesquisa envolvendo mais de 10 mil pessoas em 37 diferentes culturas espalhadas em cinco continentes e em cinco ilhas isoladas adicionais. Muitas pessoas obviamente duvidam

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que a escolha de parceiros sexuais possa ter evoluído dessa maneira na nossa espécie, mas, apesar da cultura e de sua enorme diversidade, podemos constatar que essas preferências humanas são consistentes com o que seria esperado, caso quiséssemos mesmo aumentar a nossa aptidão inclusiva.

Outro argumento comumente apontado contra a influência dos genes no comportamento humano é o de que essa abordagem despreza totalmente o papel de nossa consciência no nosso comportamento. Essa é, na minha opinião, uma afirmação verdadeira e com a qual concordo inteiramente. Mas perceba o leitor o seguinte: para que nos comportemos de uma maneira adaptativa, ou visando ganhos na nossa aptidão inclusiva, não é mesmo necessário que estejamos conscientes do que estamos fazendo. Vejamos, como referência, os outros animais com os quais partilhamos o nosso planeta. Nós freqüentemente afirmamos e aceitamos o fato de que eles se comportam no sentido de aumentar a sua aptidão inclusiva, mas sabemos que muitos deles não apresentam, ou não parecem apresentar, qualquer forma de consciência ou de autoconhecimento (deve haver algumas exceções a essa regra; pessoalmente, sempre quis saber a opinião das baleias sobre a vida e sobre elas mesmas). Conforme nos lembra John Alcock (1993), nossos mecanismos de “tomada de decisões” foram moldados pela seleção natural para aumentarmos a nossa aptidão inclusiva, não para monitorarmos conscientemente as conseqüências evolutivas ou os ganhos em aptidão de cada uma de nossas ações (de fato, seríamos chatíssimos e poderíamos até mesmo sofrer perdas irreparáveis na nossa aptidão inclusiva se nos comportássemos desta maneira o tempo todo).

A consciência, portanto, não parece fundamental para que nos comportemos de maneira adaptativa, mas isso não impede, por outro lado, que possamos investigar as bases adaptativas da consciência na nossa espécie e nos outros animais. Essa é, entretanto, uma questão totalmente diferente daquela apresentada anteriormente, e que na prática tem se constituído numa das investigações mais difíceis de serem realizadas, uma vez que ainda não dispomos de maneiras adequadas para observarmos e medirmos diferentes níveis de consciência nos diversos organismos vivos e até em nós mesmos. A simples possibilidade

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de investigação científica da consciência humana e animal já é, por si só, um grande desafio para os pesquisadores do comportamento no novo milênio.

Outro exemplo de comportamento freqüentemente citado pelos críticos da abordagem evolutiva do comportamento (e que realmente parece confrontar‑se com a teoria da seleção natural operando ao nível dos indivíduos ou dos genes) é aquele que envolve a adoção de crianças na nossa espécie. Como esse comportamento poderia ter evoluído? Alguns estudos preliminares realizados em países do Ocidente vêm mostrando que a adoção de crianças por parentes (mesmo que parentes distantes da criança adotada) ocorre numa proporção muito maior do que a adoção de não parentes, o que permitiria a evolução desse comportamento por meio de seleção natural, mas ainda precisamos saber se esta é uma tendência geral na nossa espécie (o que ocorreria, por exemplo, entre as populações indígenas da América do Sul e em outros povos de origens distintas espalhados pelo nosso planeta? E o que ocorreria com outras espécies de animais onde a adoção de jovens também já foi observada?).

Conforme podemos observar nos exemplos até agora apresentados, muitas das críticas contrárias ao pensamento evolutivo na atualidade provêm da falta de informações biológicas corretas e de erros de interpretação do pensamento evolutivo por parte de um variado grupo de escritores e pensadores. Mas há evidentemente muitos outros problemas reais que permanecem não resolvidos e para os quais poderíamos direcionar nossas investigações no futuro.

Um dos problemas mais incômodos que temos de lidar no momento é o fato de que a única maneira que possuímos para estimar a probabilidade de dois indivíduos quaisquer possuírem um mesmo alelo é pelo coeficiente de parentesco, tal como proposto por Willian Hamilton. Entretanto, indivíduos não aparentados também poderiam compartilhar certos alelos (talvez numa proporção menor do que os indivíduos aparentados) e, em decorrência disso, também apresentar certos comportamentos de ajuda. Uma maneira visualizada por Richard Dawkins (1989) para que um alelo presente num indivíduo fosse reconhecido por outros indivíduos também portadores do alelo (mas não necessariamente parentes) e recebesse deles algum tipo de ajuda,

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poderia ocorrer caso o indivíduo sinalizasse a presença do alelo por meio de alguma característica fenotípica bastante incomum (como, por exemplo, uma boca enorme, uma orelha pontuda ou uma barba verde, o que originou a expressão “green beard selection”, proposta por Dawkins para explicar a evolução dessas características). Apesar de algumas tentativas infrutíferas, essa possibilidade permanece não demonstrada.

A importância de sabermos como dois indivíduos quaisquer (não aparentados) poderiam partilhar um mesmo alelo é, na nossa opinião, fundamental para interpretarmos não apenas os comportamentos de ajuda entre os indivíduos, mas também certos sentimentos associados ao ato de ajudar, como, por exemplo, a simples bondade, a simpatia, a amizade, a capacidade de entender e perdoar, e outros. Cremos que, se descobríssemos quais e quantos alelos afinal de contas partilhamos, poderíamos talvez encontrar aí a origem da virtude humana, o que nos parece uma linha de investigação bastante interessante.

Poderíamos também, por outro lado, descobrir a origem da maldade humana e dos sentimentos negativos (baseados talvez na baixa quantidade de alelos em comum, ou em interações complexas entre diferentes alelos em diferentes genes, ou ainda em certos alelos mutantes), o que já não nos parece uma linha de pesquisa das mais excitantes. Seja lá como for, para desvendarmos as virtudes e maldades da natureza humana, precisaremos conhecer um pouco mais sobre os genes e, além disso, sermos capazes de formular hipóteses adaptativas e predições testáveis sobre os indivíduos portadores desses genes, o que nem sempre é uma tarefa trivial (qual a vantagem adaptativa em ser bonzinho? Qual a vantagem adaptativa em ser ruim? Quem deixaria mais cópias de seus alelos nas gerações seguintes?).

Não se duvida hoje em dia que, tal como os sentimentos, as emoções humanas (e dos animais em geral) também apresentem uma base genética. Entretanto, ainda não sabemos muito bem sob que circunstâncias as emoções poderiam influenciar na adaptação dos indivíduos. Descobrir enfim de que maneira os sentimentos e emoções poderiam contribuir ou influenciar na adaptação dos indivíduos é na realidade mais um desafio interessante para os pesquisadores do novo milênio.

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Mas além do comportamento humano, há também o estudo do comportamento dos outros animais, que pode tornar‑se tão interessante ou mais do que o comportamento humano e que, em última instância, nos leva a uma melhor compreensão da vida e do próprio homem. Na impossibilidade de listar aqui todas as perspectivas de estudos futuros sobre a abordagem evolutiva do comportamento dos animais, deixamos ao leitor a tarefa de aprofundar‑se no assunto (as referências ao final do capítulo podem ajudar bastante), com a esperança de que a leitura desta breve revisão possa ter contribuído para despertar seu interesse para esse tema tão fascinante do conhecimento humano.

rEfErênciaSALCOCK, J. Animal behavior: an evolutionary approach. 5ª ed. Sunderland, Massachussetts: Sinauer, 1993.

DARWIN, C. The origen of species. London: John Murray, 1859.

DAWKINS, R. The selfish gene. 2ª ed. Oxford: Oxford Univ. Press, 1989.

HAMILTON, W. D. The genetical evolution of social behaviour, I. Journal of Theoretical Biology, n. 7, 1964a, p. 1‑16.

HAMILTON, W. D. The genetical evolution of social behaviour, II. Journal of Theoretical Biology, n. 7, 1964b, p. 17‑52.

HAMILTON, W. D. Selfish and spiteful behaviour in an evolutionary model. Nature , n. 228, 1970, p. 1218‑1220.

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LORENZ, K. Z. On aggression. London: Methuen, 1966.

MAYR, E. The growth of biological thought. Harvard: Harvard Univ. Press, 1982.

TRIVERS, R. L. The evolution of reciprocal altruism. Quarterly Review of Biology, n. 46, 1971, p.35‑57.

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WILSON, E. O. Sociobiology: the new synthesis. Cambridge: Harvard University Press, 1975.

Wilson, E. O. On human nature. Cambridge: Harvard University Press, 1978.

gloSSárioAdaptação: uma característica ou atributo que confere maior

aptidão inclusiva a um indivíduo.Alelo: Uma das formas alternativas de um gene.Altruísmo: Comportamento de ajuda que aumenta a aptidão

do “recipiente” (= aquele que recebe a ajuda), enquanto diminui a do altruísta (aquele que pratica a boa ação).

Aptidão: Na abordagem clássica da seleção natural refere‑se ao número de descendentes diretos de um indivíduo. Numa abordagem ao nível dos genes refere‑se ao número de réplicas de um alelo (ou um grupo de alelos) na geração seguinte.

Aptidão direta: Genes contribuídos por um indivíduo para a geração seguinte, obtidos através da reprodução do indivíduo.

Aptidão inclusiva: O somatório da aptidão direta e indireta de um indivíduo (ou das réplicas de seus genes).

Aptidão indireta: Genes contribuídos por um indivíduo para a geração seguinte obtidos através da ajuda a indivíduos aparentados, e cuja sobrevivência e reprodução seriam impossíveis sem a referida ajuda.

Diplóide: Portador de dois conjuntos de genes (um originário do pai e outro da mãe). Organismos diplóides produzem gametas (espermatozóides ou óvulos) haplóides.

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Egoísmo: Comportamento que aumenta a aptidão inclusiva de um indivíduo em decorrência da diminuição da aptidão inclusiva de outros indivíduos.

Endocruzamento: Cruzamento entre indivíduos aparentados.Especiação: Processo de formação de novas espécies.Espécie: Unidade básica da classificação biológica dos seres

vivos. Dois organismos podem ser considerados da mesma espécie quando (desde que sexualmente maduros e de sexos opostos) podem cruzar‑se e produzir uma prole fértil em condições naturais.

Etologia: Nome pelo qual ficou conhecido o estudo do comportamento animal nos anos sessenta e setenta; também conhecido como o estudo das causas próximas do comportamento.

Eusocial: Nome dado a uma forma de organização social que envolve (1) cooperação entre indivíduos nos cuidados com os jovens; (2) divisão de trabalho em castas reprodutivas e não reprodutivas e (3) sobreposição de gerações.

Evolução: Em termos gerais refere‑se às mudanças graduais nos organismos; em termos genéticos refere‑se às alterações nas freqüências gênicas das populações de uma espécie ao longo de sucessivas gerações.

Fenótipo: Qualquer atributo ou característica mensurável de um indivíduo, que se expressa devido à interação dos seus genes e do ambiente (físico ou biológico) no qual se desenvolveu.

Genótipo: conjunto (ou subconjunto) dos genes de um indivíduo.Haplodiploidia: Sistema de determinação dos sexos das vespas,

formigas e abelhas onde os machos são haplóides (originam‑se de ovos não fertilizados) e as fêmeas diplóides (originam‑se de ovos fertilizados).

Haplóide: Portador de um único conjunto de genes (ver diplóide).Meiose: As duas divisões sucessivas do núcleo que precedem a

formação dos gametas.Mutação: Alteração na forma de um gene, mais freqüentemente,

um erro na replicação do DNA cromossômico.Patrimônio gênico: conjunto de genes de uma população.População: conjunto de indivíduos de uma mesma espécie, que

vivem num mesmo local e ao mesmo tempo.Seleção de grupo: Processo de seleção que ocorre entre grupos

de indivíduos.

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Seleção de parentesco: nome utilizado por Maynard Smith para designar o que atualmente se entende como seleção indireta. Wilson (1975), entretanto, coloca a seleção de parentesco como um tipo de seleção de grupo, o tem lhe valido muitas críticas por parte de outros pensadores importantes.

Seleção indireta: Processo que ocorre quando indivíduos diferem em sua capacidade de ajudar indivíduos aparentados (excluindo‑se os descendentes diretos) e/ou com réplicas de seus genes, a sobreviver e a reproduzir‑se.

Seleção natural: Processo que ocorre quando indivíduos diferem na sua capacidade de produzir descendentes, em virtude de suas características herdadas. Também chamada seleção direta.

Sociobiologia: uma disciplina que usa a abordagem evolutiva no estudo do comportamento social.

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