Ébano, A Rota Dos Escravos - Alberto Vâzquez-Figueroa

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*VAZQUEZ-FIGUEROA ALBERTO '^*Lmk (bano)Crculo de LeitoresCirculo de Leitores, Lda. *Composto em Garamond 10/11por Novotipo Impresso e encadernado por Printer Portuguesa1. *- edio: 10 000 exemplaresFevereiro de 1980Titulo original: bano, Ia ruta de los *esclavos Traduo de: Helena Graa de Carvalho Reviso de: Jaime SilvaEdio integral (@) *1974 by Alberto Vzquez-FigueroaS permitida a venda aos scios do CirculoEste romance ' *que pretende ser uma homenagem aos membros do extinto Esquadro Branco, baseia-se em dados autnticos, fornecidos por elementos da Comisso das Naes Unidas para a*Abolido da Escravatura e da Sociedade *Antiesclavagista de Londres, e em investigaes levadas a cabo pelo prprio autor na *Affica Central.Faltava ainda uma hora para amanhecer e j estavam levantados e em marcha, atravessando o denso bosque tropical. Chovia na copa das rvores gigantes, mas a gua no chegava ao cho, detida pelo imenso emaranhado de ramos e folhas.Cruzaram um riacho, uma plantao de nipa, um segundo, um terceiro e comearam a distinguir perto, entre a vegetao, o contorno de um elefante que se diluiu na primeira e indecisa claridade.Pouco depois a selva comeou a rarear, at que alcanaram o terreno livre: uma ampla savana de altas gramneas, salpicada de accias e de arbustos de tronco pelado e altas copas.Aquela era a mais tpica das paisagens africanas: larga planura aquecida pelo Sol, a @*tada por uma brisa suave e fresca e pelo canto das -- - @ *medida que nela iam avanando, David tinha a sensao de que estava a descobrir, enfim, a frica autntica: aquela que encontrara nos livros de aventuras da sua infncia.De repente, *Dngoro deteve-se e assinalou um ponto sua frente, a cerca de duzentos metros. Forou a vista e viu que alguma coisa se movia entre as ervas cor de trigo maduro. Aos seus ouvidos chegou o embate de objectos entrechocados e compreendeu o que se passava no momento exacto em que aos seus olhos o espectculo se desvendou: dois impalas lutavam junto a um pequeno bosque de accias, cujas tonalidades iam do amarelo-areia ao vermelho-prateado, passando pelo verde e o pardo.Fez um sinal a Ansok e o indgena ps no cho a pesada mochila. Duvidou entre a HasseIblad e a Nikon, mas decidiu-se pela ltima por ser mais rpida. certo que preferiria a qualidade da primeira, mas receou que o estalido do disparador assustasse os animais.Avanou devagarinho, passo a passo, como se estivesse a cometer um acto proibido, violando a Natureza, e assim caminhou vinte metros, trinta, quarenta, enquanto os antlopesentrelaavam os cornos, para se afastarem depois ganhando novas foras, instantes em que um deles aproveitou, furiosamente, para assustar o inimigo.Disparou a cmara uma e outra vez, aproximando-se defendido pelas altas ervas, at se colocar a cinquenta metros de distncia. Detendo-se ento, fascinado, ficou a olh-los, s com o mundo e com os dois machos que se entregavam eterna luta do amor e da morte, como haviam feito os seus antepassados desde o comeo dos tempos.Estavam ali os trs: actores e testemunhas, animais, Natureza, homens... e o silncio.Deus! Teria passado horas a contempl-los, esquecido de tudo, inclusive da mquina que lhe pendia do pescoo, to hipnotizado como no dia em que viu uma gazela correndo por uma das pistas de uma cidade olmpica.Boquiaberto quedou-se a observ-la, incapaz de reagir diante da majestosa elegncia daquele corpo incrvel que parecia voar, como se o que para outros significava um supremo esforo no passasse para ela mais do que um jogo infantil.- Tens de correr para mim outra vez - pediu-lhe. - No fiz uma nica foto ...- Lamento ... acabou o meu treino ...- Sairias no *Paris-Match, no Stern ... no Tempo... -Se ganhar na sexta-feira, saio... Se no, no... Ele levantou a cmara e de sbito os impalas detiveram-se, em unssono, como se uma ligeira mudana de brisa lhes tivesse levado um cheiro a homem.Olharam-no como se um fosse o reflexo do outro: a armao erguida, atentos os olhos, as orelhas alerta, as ventas soprando... Eram dois formosos machos e a fmea, pela qual lutavam, devia sentir-se orgulhosa.Por uns minutos ficaram com os olhos colados ao homem, para, no fim, como se houvessem compreendido que nenhum perigo dali lhes vinha, se afastaram lentamente, sem medo, decididos a continuar a luta mais longe, sombra e sem testemunhas.Tinham o mesmo andar grcil, juvenil com que ela se afastou, sem se voltar, por aquela passagem que conduzia aos vestirios.- *W, *espera... Como te chamas?... Ela sorriu na penumbra.- Ndia... *- respondeu suavemente. E desapareceu.Triste, a rvore podia ter talvez trs mil anos como asseguravam os nativos, mas mais parecia, pelo seu grande tronco e ridcula copa, uma enorme seta do que um parente do roble, do *sicmoro. Paquiderme vegetal, esponjoso e suando gua, no oferecia mais sombra do que uma coluna que se erguesse no centro da estepe.- s instvel e inseguro como a sombra do embondeiro -disse-lhe ela um certo dia. E teve de ir at a um prado dos Camares para compreender aquela frase.Sentou-se junto de *Dngoro, que lhe ofereceu po, gua e queijo de cabra bamilenk. *Como a maioria dos fulb e dos *haussas, *Dngoro desprezava os *bamilenks, mas adorava os seus grandes e apetitosos queijos.Nem ele, nem *Ansok, tinham prestado a menor ateno ao formoso espectculo da luta entre os dois machos. Para eles- caadores furtivos - o nico animal verdadeiramente belo era o animal morto. Os antlopes no representavam mais do que pele e cornos; os elefantes, marfim; os bfalos, couro. A pele de um dos machos podia valer dez dlares em Douala, Yaund ou Fort-Lamy, e se os no matavam era porque David lhos havia proibido.Este viu-os ficar inquietos vendo afastar-se imponentemente vinte dlares e dois belos pares de cornos, mas no os podia culpar. Vinte dlares constituam uma pequena fortuna, e no foram eles que inventaram o matar s por matar.At chegada do homem branco ao continente, os africanos no caavam mais do que o suficiente para se vestirem e alimentarem, deixando que as grandes manadas cobrissem a pradaria sem que jamais um ser humano sonhasse aniquil-las. *Foi necessrio o brbaro costume branco da caa, como divertimento, para que o indgena descobrisse, com assombro, que os animais tinham um novo valor como ---trofu". Na sua mentalidade simples, no cabia a ideia de que matar um animal indefeso fosse qualquer coisa digna de admirao e s as feras abatidas cara a cara e com perigo de vida mereciam que a sua pele fosse pendurada numa parede.Agora, porm, merc de um esforo exibicionista dos brancos, meio cento de espcies autctones havia desaparecido da face de frica e outras tantas corriam srio perigo de *extino.- J que queres passar a tua lua-de-mel em frica, traz de l umas boas fotos. Em Outubro publicaremos um nmero especial sobre animais.0 redactor-chefe era um bom tipo e o que mais havia contribudo para que David tivesse abandonado o campo da fotografia publicitria e ficasse definitivamente na revista.E ali se encontrava agora, sombra de um embondeiro, comendo queijo de cabra em companhia de dois furtivos, esperando encontrar depressa um elefante com bons colmilhos.Depois do meio-dia alcanaram uma quebrada em cujo fundo corria um riacho que devia servir de bebedouro a todos os animais dos arredores. Seguindo-o por largo tempo, acabaram por descobrir, junto a um charco que formava um remanso, folhas como enormes bandejas de mais de quarenta centmetros de dimetro, claras, profundas e frescas.- Tomou banho aqui esta manh - assinalou Ansok. -Veja: esteve a tirar barro do fundo e a gua ainda est revolvida.*Dngoro viu no alto de uma quebrada um monto de excrementos e, sem hesitar, introduziu nele uma das mos, para verificar a temperatura.-No nos leva de avano mais de uma hora -disse, e iniciaram a marcha seguindo a pista atravs de um prado que se ia enchendo de vida mais e mais, ainda que o calor obrigasse osanimais a procurarem a sombra.Era a hora da sesta. Se os bichos dormiam ou no, no podia diz-lo, mas era certo que permaneciam imveis como esttuas de pedra, e, algumas vezes, agrupavam-se vrias espcies fugindo do sol, cabea com cabea, garupa com garupa.Dormitavam as zebras, que no cessavam de agitar as caudas um s instante, enquanto sobre os arbustos se salientavam, s vezes, as pequenas orelhas e o beio grosso das girafas.frica estava quieta e os homens eram a nica coisa que semovia na savana.Um zumbido de cigarras parecia aquecer ainda mais o am-biente e, de espao a espao, o rumor de milhes de insectos que cantavam subia de tom em ondas, at alcanar um limite insuportvel que crispava os nervos, para de sbito desaparecer bruscamente, como se o mar se retirasse.- 0 rudo da morte chama-os - disse Ansok -, e dizem que h quem tenha ficado louco por t-lo ouvido...Um novo monte de excrementos indicou o tempo que o animal levava de avano. Talvez, se se tivesse detido a comer alguma coisa, no estivesse muito longe.*10*Dngoro espertou o passo e a marcha tomou-se endemoninhada.Estava a ficar nervoso.- Podamos mat-lo - disse -; o senhor ficaria com os dentes e ns com as patas e a carne.- No vim para matar animais, mas sim fotograf-los- repetiu uma vez mais -, e no tenho licena de caa...- *W, *isso no importa... Isso no importa... Ningum lha viria pedir aqui...- Dessa maneira, bem depressa acabaro os elefantes em frica...- j no h lugar para eles - comentou Ansok, que caminhava atrs dele. - Os elefantes no podem conviver com o progresso... Faz uma ideia de quanto come um elefante? Quando invade uma plantao acaba com quinhentos quilos de milho numa noite. Quinhentos quilos! A comida de toda uma aldeia durante uma semana...- Porm, bem poucos atacam as plantaes - protestou. Quando uma cabra se mete numa casa e come o que encontra frente, ningum pensa matar todas as cabras...- 0 senhor no entende: frica no quer continuar a ser terra de elefantes e de lees... Se gostam tanto deles, levem-nos para casa. Os brancos protestam porque os destrumos, mas ningum oferece os seus campos de trigo para que eles l vivam...No respondeu; sabia que todas as discusses com um nativo respeitantes ao futuro da nova frica acabavam num ponto morto. Fingiu concentrar a sua ateno numa barreira de pequenos *montculos de um metro de altura que se lhes haviam deparado, gigantescas termiteiras que naquele stio abundavam em excesso, sem que existisse, aparentemente, causa alguma que o justificasse.Tiveram que rode-las em ziguezague, verificando que em muitos pontos as patas do elefante as tinham danificado e podiam ver as trmitas-operrias lutando afanosamente para remediar o mal e evitar que o duro sol tropical afectasse a suave e fresca obscuridade dos seus mil caminhos.Saindo do reino das trmitas e no a mais de vinte metros, deram de caras com uma grande manada de antlopes, que se afastaram aos saltos, no mais belo espectculo que jamais vira.Subitamente as pegadas do elefante flectiram para o norte e penetraram numa suave colina de gramneas.*Dngoro apontou para o cimo.- Est do lado de trs - afirmou - e tenha cuidado porque esse deve ser um grande macho com mais de cinquenta quilos nos colmilhos... - e bateu levemente na culatra da sua Mannilicher4 75. *-No quer que o acompanhe?David negou com um gesto enquanto remexia nas cmaras. Colocou o 500, tirou do bolso um par de rolos sobresselentes, carregou a Nikon com pelcula mais lenta e um 100 e comeou a ascenso, enquanto os indgenas procuravam uma vez mais a proteco da sombra.Do alto da colina voltou-se observando a planura que lhe ficava nas costas.- Ela gostaria de ver isto - disse. - Foi uma longa caminhada, mas valeu a pena...Do outro lado, a paisagem era quase idntica, mas no teve tempo para contempl-la, porque nesse mesmo instante descobriu sua direita a mole do elefante, que parecia estar a afiar os dentes num tronco.0 animal devia t-lo pressentido, ou talvez tivesse sido o seu odor transportado pelo ar, porque de sbito parou a sua tarefa, ergueu a tromba e comeou a olh-lo, enquanto abanava asenormes orelhas.No estava assustado nem preocupado, embora apenas sessenta metros o separassem do intruso.Talvez fosse curiosidade o que sentia ou talvez uma ligeira irritao por se ver incomodado. Ameaador e ofensivo avanouuns metros e lanou um berro que retumbou no vale que lhe ficava detrs, mas deteve o mpeto de ataque talvez surpreendido pelo simples *clique metlico da cmara.Continuou berrando e sacudindo as orelhas enquanto o motor elctrico da Nikon funcionava uma e outra vez e David felicitava-se pela colaborao magnfica que o grande macho lhe estava a dar.Quando se cansou de carregar no obturador, olhou-o de frente, sorrindo:- Muito bem, - Valentino " ... *Acabou o teu trabalho por hoje... Podes ir...Esperou at que o paquiderme se afastasse, pesado, ondulante, bamboleando a sua ridcula cauda ao compasso do seu descomunal traseiro, e logo voltou a contemplar novamente a12planura. Agitou a mo, indicando aos indgenas que eram horas de regressar, e principiou aos saltos pela colina abaixo.- Agora, um grande passeio, um bom banho, dois tragos, uma rica ceia e...Cus! frica era o melhor lugar do Mundo para passar a lua-de-mel...Ansok tinha razo: havia lees perto de ns. Ouvamos os seus rugidos quebrando o silncio e mais adiante uma juba enorme cruzou como uma sombra o pequeno atalho, obrigando *Dngoro a preparar a sua arma.- No gosto de lees - comentou - quando andam to perto de ns. H um ms devoraram uma mulher na laguna...- Mau quando um leo se habitua a comer carne humana -murmurou Ansok. - Sabe-lhe bem, e como no lhe custa encontr-la...David no respondeu. Por momentos uma sombra de preocupao cruzou a sua mente, mas depressa a afastou ante a certeza de que Ndia nunca se acercaria da laguna sem uma arma.0 bosque apareceu ante eles e os homens mergulharam na suaespessura imensa, maldizendo antecipadamente o longo estiro que eram forados a fazer atravs de riachos e pntanos, abrindo caminho entre espinhos e lianas, saltando uma e outra vez sobre troncos cados e charcos *putrefactos.*Dngoro e Ansok tinham mudado de expresso e pareciam mal dispostos. David compreendeu que nenhum deles - como amaioria dos indgenas africanos - gostava da selva. Apesar de viverem nela, os nativos detestavam embrenhar-se no mato, longe dos trilhos que so familiares e raras vezes se afastam dos seus povoados e dos seus campos de cultivo.Caavam no bosque e pescavam nos seus rios, mas sempre dentro dos estreitos limites de um territrio concreto, pois, no seu primitivismo, acreditavam que mais adiante, no campo denso, habitavam os espritos malignos e os ---homens-leopardo---.Povoavam os atalhos de perigosas armadilhas, nas quais faziam cair veados e javalis, mas raramente se enfrentavam, entre as rvores, com os grandes animais. A lana e o arco pareciam feitos para a pradaria e se com eles a ningum temiam, na selva13aterrorizava-os os rugidos dos lees e punha-os a tremer as pegadas dos leopardos.Os gorilas, to abundantes mais para o Sul, junto da fronteira com a Guin, eram o seu pesadelo e nada havia que os fizesse tremer mais do que a possibilidade de desembocar, de improviso, numa clareira onde uma famlia deles tinha decidido passar a noite.Pacficos e tolerantes, os gorilas no suportavam intromisses e, por isso, poucos nativos se atreviam a penetrar a fundo no bosque, pela manh, antes que os grandes macacos se tivessem posto em marcha.A selva, porm, nessa tarde estava calma. s vezes, um rumor de chuva repenicava nas- copas das rvores mais altas, mas depressa era tragado pelo grito dos smios, o canto das infinitas aves, o pesado voo dos faises enormes que surgiam quase debaixo dos ps dos homens.De vez em quando, uma cobra atravessava o atalho salpicado de pegadas de animais e amide a alta seiva de copadas rvores, luz glauca e solo plano, abria caminho ao torturante bcoro, selva primria de matagais, espinhos e canas bravas, velhos campos de cultura nos quais o bosque tinha sido queimado, para mais tarde serem abandonados maleza baixa e dura. sada de uma dessas zonas, *Dngoro, que ia frente, deteve-se surpreendido e apontou o diminuto caminho.- Gente - disse. - Gente estranha.- Estranha porqu?- Botas grandes, pesadas... Inglesas e nigerianas... Alguns vo descalos. Levam pressa e vo para nordeste. At ao Chade.- Caadores furtivos? - aventurou. Ansok e *Dngoro olharam-se e moveram a cabea ao mesmo tempo que encolhiam os ombros.- Pode ser... - admitiu Ansok. - Pode ser... Retomaram a marcha, que foi ganhando velocidade at se tornar esgotante, sem que David soubesse se atribu-Ia s pegadas ou ao comeo da noite que principiava a cair, e os seus companheiros no pareciam felizes com a possibilidade de se perderem e serem forados a dormir no bosque, na companhia das sombras e dos diabos.Ele tambm no tinha interesse em dormir debaixo de uma rvore, sabendo que no fim do caminho, alm do bosque e do rio, esperava por eles uma estrada poeirenta e, no fim, uma rolote14com ar condicionado, luz elctrica, cerveja gelada, uma perna assada de veado e uma cama grande e mole, cujas molas amortizavam de tal maneira os solavancos que nem nas mais agitadas noites se vislumbrava por fora o que poderia acontecer dentro.Tinha feito fincap ao compr-la:- No quero que os transeuntes vejam que estamos fazendo amor...- Com certeza, senhor, com certeza... Podemos fazer uma demonstrao prtica... Menina! ...-Homem, no preciso...- Oh, nada receie... apenas para que ela salte para dentro... verdade que no havia em toda a frica rolote parecida e de Abidjan a Acera, do *Laoin a Cotonou, de Lagos a *Dotiala, tinha suportado caminhos poeirentos, chuvas tropicais, calores abafadios, lamas e pedras, sem mais do que alguns riscos na sua formosa pintura amarela e um ou outro pneu rebentado.E ali estava agora onde acabava a estrada poeirenta sob afrondosa ceiba, junto ao povoado indgena cujas palhotas abriam as portas traseiras para o bosque e as da frente enorme praa da savana.*Apressaram o passo, mas, ao v-los, ao longe, um grupo de mulheres correu ao seu encontro, dando grandes gritos e agitando os braos.No entendia o seu sonoro dialecto e foi forado a esperar a traduo de Ansok, cujo rosto parecia transtornado.- A senhora desapareceu... - disse. - Foi tomar banho lagoa e ainda no voltou...David sentiu que tudo girava em seu redor e foi forada a apoiar-se em *Dngoro. Levou tempo a reagir.- No possvel - negou com firmeza. - No possvel... A que horas foi?- Ao meio-dia. Os homens do povoado esto procura dela...- Santo Deus! Desatou a correr at rolote, alimentando a esperana de a encontrar l, negando-se a acreditar no que ouvia.- Ndia! Ndia! Ndia, *porem, no estava l. Deixou-se cair sobre a cama, enquanto a rolote se enchia de15mulheres e de crianas, que vasculhavam todos os cantos, desde o duche at pequena despensa.Ele via-as movimentar, mas incapaz de entender o que se passava em seu redor. Desejava concentrar-se nalguma coisa semsaber em qu, mas o vozear aturdia-o e s reagiu quando viu umamulher gorda, suja e suada, tentando vestir uma blusa de Ndia, como se esperasse herd-la de algum que nunca mais regressasse.Arrancou-lha das mos, ps l fora a turba vociferante e esfarrapada, empurrando a gorda que tinha ficado entalada na pequena porta e fechou-a atrs dela.Por alguns instantes teve de apoiar a cabea na parede e es-forou-se para no chorar. Reagindo, tirou um pesado revlver do armrio, introduziu-o no cinto e saiu para a noite.*Dngoro e Ansok esperavam-no junto da porta. Tinham lanternas e estavam armados, o primeiro com a sua *Mannficher e o segundo com uma velha escopeta de dois canos.Em silncio comearam a caminhar para a laguna, mas mal haviam percorrido duzentos metros quando uma sombra que vinha em sentido contrrio os deteve.- No vo - disse um homem com uma grande lana. - j intil.David desejava ter querido que as suas palavras nunca tivessem sado da sua boca:-0 leo? -perguntou com um fio de voz. Com um gesto, o guerreiro negou. incerta luz da lanterna, o seu rosto era *imprescrutvel, mas David julgou adivinhar umaexpresso de profunda pena nos seus olhos quando replicou lentamente:- Caadores de escravos.- Caadores de escravos?0 cnsul agitou a cabea e contemplou o seu interlocutor, como se lhe fosse impossvel admitir tal hiptese. Remexendo nos seus papis conseguiu encontrar o isqueiro de ouro, com o qual acendeu um cigarro.Estava tentando ganhar tempo.- No o creio - disse por fim. - Sinceramente no posso acredit-lo. Se a sua mulher se tivesse perdido na selva, provavelmente tinha-se afogado na lagoa, havia sido devorada por16um leo ou cara na armadilha de algum caador indgena. Mas isso que me diz... No! No acredito...- Seguimos as suas pegadas durante quatro dias, at ao rio Mbre, um afluente do Logone. Eram sete homens e levavam, pelo menos, vinte cativos. As pegadas das botas de minha mulher distinguiam-se claramente.0 cnsul ps-se de p, passeou pelo compartimento com as mos atrs das costas e deteve-se ante uma grande janela. Contemplou os telhados de Douala, o grande esturio do Wouri, e, ao fundo, o cone gigante do monte dos Camares.- Eu tinha conhecimento da caa aos escravos - admitiu por fim. - Sabia disso, da mesma forma que se sabe dos costumes canibais das tribos do Norte e dos ferozes ritos dos "homens-leopardo- ... Mas aqui, em frica, ningum rouba, mata ou de-vora ou sacrifica um branco, ---porque os brancos esto contados"... Quando um desaparece, a represlia das autoridades costuma ser terrvel... Por isso, custa-me a admitir a possibilidade de que tenham roubado a sua esposa... Seria a primeira vez que caadores de escravos roubavam uma branca...- Minha mulher negra. A sua voz soou to natural, to necessitada de *inflexes, que o cnsul dir-se-ia transformado em pedra, to de pedra comoaqueles dois soldados que se erguem na praa no monumento aos cados da Guerra de 14.Demorou a voltar-se. Quando o fez, estava completamente desconcertado. Tinha perdido a fleuma prpria e profissional e quase se poderia afirmar que gaguejava quando recuperou a voz.- Lamento - disse. - Lamento a forma como me expressei. Se o feri nalguma coisa, peo-lhe que...- Oh, no se preocupe. 0 senhor no tinha obrigao de o saber.Fez-se novo silncio. 0 cnsul regressou sua cadeira e deitou mo a papel e caneta.- Bem! Vejamos - comeou. - 0 nome de sua esposa?- Ndia... Ndia Segal Alexander...- Natural?- De Abidjan, Costa do Marfim.- Idade?- Vinte anos. -Casados h...17- Dois meses... Estamos em viagem de lua-de-mel. - A voz partiu-se-lhe e teve de empregar um esforo enorme para evitar a comoo. - * Deus! Ia tudo maravilhosamente e agora este pesadelo... Tenho de encontr-la -anunciou com firmeza. -Necessito recuper-la, custe o que custar...0 cnsul abanou a cabea:- No quero ser pessimista, mas no deve alimentar muitas esperanas... Se, como afirma, esses caadores de escravos se dirigem para Nordeste, possvel imaginar que o seu destino seja a pennsula Arbica. E quem uma vez nela entra, nunca mais de l sai. Ela devora mil escravos africanos por ano. No pense que me quero mostrar cruel... apenas porque conheo a realidade. Se quer um conselho, tente recuperar a sua mulher antes que a faam atravessar o mar Vermelho... Se o fizer, desaparecer para sempre.- Mas como? frica imensa... Onde posso encontr-la? -No fao a menor ideia. Neste momento deve estar em qualquer stio, nos Camares, no Chade ou na Repblica Centro-Africana, rumo ao Sudo ou *Etipia...- uma regio quase to grande como a Europa! ... -Por isso, o meu conselho que se v habituando a que perdeu a sua mulher para sempre... Sei que a resignao custa muito a alcanar, como se quisesse convencer-se de que ela tinha morrido.- Mas no morreu! - exclamou. - No morreu e eu hei-de procur-la ainda que viva cem anos. No poderia descansar um minuto, sabendo que est sofrendo nalgum lugar sem fazer o possvel para salv-la... juro que a encontrarei - concluiu.- Admiro a sua abnegao, meu amigo. E prometo que empregarei todos os meus esforos para o ajudar; no s oficialmente, como meu dever, mas tambm de uma forma pessoal... Como sabe, o embaixador encontra-se em Yaund,mas vou pr-me imediatamente em contacto com ele. Faremos presso sobre o governo. Alertaremos todas as guarnies e apolcia das fronteiras e vou pr-me em contacto com os meuscolegas do Chade e da Repblica. Tambm o aconselho a comunicar com o embaixador da Costa do Marfim... Entre pre... entre africanos maior o interesse pelas suas causas. A famlia de sua mulher tem alguma influncia *em Abidjan?- Seu pai, Mamadou Segal, foi catedrtico na Sorbona e *co-fundador, com o presidente *Houpliouet-Boigny, do Partido18Democrtico da Costa do Marfim... Est retirado da poltica, mascreio que ainda conserva amizades no governo...- Procure que faa uso delas. 0 presidente Boigny ohomem mais respeitado nesta parte de frica.- Realmente cr que se possa conseguir alguma coisa por via diplomtica?- Ignoro. Tenho sete anos de frica e ainda me surpreende amaioria das coisas que sucedem aqui. Bem me esforo, mas no compreendo esta gente. Quer o queiramos ou no, o seu mundo diferente do nosso e nunca sabemos como vo reagir perante um determinado problema... Milhares de homens, mulheres e crianas so raptados cada ano pelos caadores de escravos e muitos outros morrem vtimas dos ritos canibais ou sacrifcios aestranhos deuses, mas ningum parece importar-se com isso. Todavia, mobilizam todo um exrcito para apanhar um desgraado que assassinou o seu patro num momento de ira... Lamentavelmente, a sua vida, ou morte, ou a liberdade, no tm aqui o mesmo valor que na Europa ou na Amrica. - Fez uma longa pausa, apagou o cigarro e continuou: - 0 meu conselho que conserve a calma... Esta mesma tarde iniciarei as investigaes para descobrir o paradeiro de sua mulher. Faremos tudo o que humanamente for possvel. Como est de dinheiro?- Tenho algumas economias. Mas posso conseguir o que me fizer falta, ainda que trabalhe toda a vida para o pagar. Oferecer resgate daria resultado?- Estava a pensar nisso e acredito que poderia conseguir acolaborao dos nossos residentes aqui... 0 problema no est emoferecer recompensa, mas em conseguir que a notcia chegue aos ouvidos dos sequestradores. Logicamente, evitaram qualquer contacto com os lugares habitados. Consultarei as autoridades sobre o assunto... Onde posso encontr-lo?-No Hotel dos Relais Ariens, quarto 114.0 cnsul ps-se de p e *acompanhou-o at porta.- Procure descansar - pediu. - V-se que est esgotado. T-lo-ei ao corrente do que averiguar...j na rua, comeou a andar lentamente at Praa Akwa. Um txi parou a seu lado, mas despediu-o com um movimento e continuou enterrado nos seus pensamentos, sem prestar ateno aos ciclistas que regressavam s suas casas concludo o trabalho, s infinitas prostitutas. que comeavam a invadir os passeios ou magnificncia do incrvel pr do Sol, para l do monte dos19Camares, com o perfil da ilha de Fernando P desenhado ao fundo.Havia apenas algumas semanas que se tinham sentado juntos na piscina do hotel, contemplando um crepsculo semelhante e, todavia, parecia-lhe que tinha passado uma eternidade.jantaram ali mesmo, ao ar livre, observando as luzes das pirogas que iam pesca ou navegavam lentamente at s afastadas cabanas na outra margem do esturio.- Nada mudou desde o tempo de Cristo -- comentou. *-Pescam, caam e vivem como o faziam os seus antepassados h dois mil anos...- Sim - admitiu ela. - Poder-se-ia pensar que nada mudou e, apesar disso, a histria jamais assistir a transformao to brusca como a que se est a passar na alma da minha gente... Foram busc-los s suas selvas e aos seus campos para que se encontrassem na cidade com vcios que, por desconhecidos, exercem sobre eles uma atraco irresistvel. *A bebida, a droga, a prostituio e a homossexualidade esto a levar os africanos ao maior grau de degradao que jamais conheceram...- Mas isso no culpa de ningum. Ningum os fora... protestou.- Com efeito - admitiu ela. - Nada os fora, mas tu @*abes que a maioria dos nossos nativos so como crianas a quem prontamente os colonizadores ensinam uma quantidade de coisas para as quais no estavam preparados...- No o ests tu? Porque tm eles de ser diferentes?- Eu estudei em Paris... Sou negra e vivi metade da minha vida em frica, mas ningum me consideraria uma africana tpica, bem o sabes. Desde pequena tive professores e boa alimentao, coisas que faltam aqui... Branco ou negro, o problema da criana faminta e sem educao o mesmo em todos os stios... A questo que em frica pior...- E acreditas que est na tua mo solucionar esse problema?- No. Nem na minha nem na de ningum. Porm, se tive a sorte de frequentar uma Universidade e aprender coisas que podem ser teis aos meus, a minha obrigao aproveitar esses conhecimentos.Ele atraiu-a a si e beijou-a levemente por cima da mesa, tendo manchado a camisa com molho de tomate.- Emprega esses conhecimentos em mim... E nos nossos filhos, quando os tivermos. Isso o teu dever de esposa...20Ela guardou silncio. Devagar bebeu o seu copo de vinho, *pousou-o novamente na mesa e disse-lhe com firmeza:- No vais comear a pressionar-me, no? - inquiriu. -Ficou bem claro: casaramos, mas eu poderia continuar a de- dicar-me ao que meu...- Tanto significa para ti?- Duzentas mil pessoas morreram com as ltimas secas e outros seis milhes esto em perigo de perecer. Talvez dentro de trinta anos o deserto tenha comido trs ou quatro pases que se extremam com o meu. julgas que isso no significa nada para mim?No. No podia pens-lo nem tinha de que se surpreender. Sabia-o desde o primeiro momento, desde aquel '*a noite em que aceitou jantar com ele duas horas depois de ter recebido a medalha olmpica.-Ao norte do meu pas, os rios agitam-se e as rvores morrem... - disse-lhe ento. - 0 homem emigra para o Sul abandonando uma vez mais as estepes e os campos, que em pouco tempo so devorados pela areia... 0 Sara avanou quase cem quilmetros nos ltimos tempos e os sbios calculam que esta mudana de clima que afecta a frica durar sessenta anos... Que acontecer ento minha gente?- No te preocupes - intentou gracejar. - Talvez nessa altura a guerra atmica tenha acabado com todos...- E crs que isso consolar os milhares de crianas que neste momento morrem de sede, do Senegal *Etipia?... Quando meconvidaram para correr nas Olimpadas imaginei que sim, que por milagre conseguia uma medalha de ouro, que os jornalistas de todo o mundo viriam fazer-me perguntas. Isso *dar-me-ia aoportunidade de chamar a sua ateno sobre o que se est a passar em frica e a nossa necessidade de ajuda. No de uma ajuda de leite em p, cobertores e roupa usada, mas de peritos, de tcnicos capazes de acabar com a sede em frica.- Por isso aceitaste jantar comigo? - riu. - Para que pea minha revista que escreva qualquer coisa sobre a sede de frica?Sorriu levemente.- Talvez... Trs milhes de reses morreram a menos de quatrocentos metros de um imenso caudal de gua... No uma grande reportagem?-E porque no chegaram a essa gua?- Porque estava debaixo da terra... Porque no temos meios21de a fazer chegar superfcie... 0 Sara encontra-se chagado de correntes de gua subterrnea que esto espera que algum disponha de meios para faz~la aflorar... Se se pode extrair petrleo a dez mil metros, porque no gua a quatrocentos?...Aquela fora a sua primeira viagem a frica. Veio para fotografar a sede de um continente que tinha a salvao debaixo dos prprios ps, e continua parada.Que lhe havia dado Ndia? Como chegou a fascin-lo to profundamente? No foi apenas a sua beleza fsica, o seu rosto perfeito, o seu corpo duro e liso ou a incrvel harmonia dos seus movimentos. No, no era isso... Era a sua personalidade envolvente, a sua fora de carcter, a sua nsia de viver, de ajudar, de fazer sempre qualquer coisa por algum, empenhada em lutas sem esperanas, em batalhas contra moinhos gigantes, em es-foros superiores s suas possibilidades.Era a sua firmeza nas convices, a sua sinceridade ante a vida, a sua honradez em cada gesto, em cada palavra, em cada ideia, como se estivesse convencida de que de cada uma dessas aces dependia a realizao da sua raa ou do seu pas ou do mundo. Para Ndia, tudo na vida era transcendental, do mesmo modo que para ele, David, tudo na vida o tinha sido, at esse momento, prolixo, absurdo e sem sentido. Nada lhe importava mais alm de uma boa foto, mas, no fundo, sabia que uma boa foto no era mais do que uma eternizao falsa de um momento formoso e que, amide, esse momento nem sequer havia existido realmente, tinha sido necessrio cri-lo, base de um filtro especial, uma luz contrastada ou uma lente que distorcia a realidade.David era suficientemente inteligente para compreender que opormenor mais vincado da sua personalidade era, precisamente, a sua falta de personalidade e o mais marcado no seu carcter a sua carncia de carcter.Sabia-o e aceitava-o. Tinha sido assim desde criana, desde que compreendeu que na escola outros eram os lderes e outros foram os lderes na Universidade e no regimento. Dir-se-ia que a sua voz no era ouvida e, apesar da sua estatura, no fora capaz de se deixar ver ou fazer-se ouvir. Podia ter opinies ou pontos de vista inteligentes, porm deixava-se ensombrar sem luta pelos outros muito mais estpidos ou de opinies absurdas.Cedo descobriu que preferia no lutar e resultava mais fcil22dar razo a quem a no tinha do que enredar-se numa discusso sem esperanas. De qualquer maneira, sempre, fosse qual fosse o problema, dava o brao a torcer.Bastas vezes se indignava ante o facto de ficar prejudicado por no haver querido prejudicar algum que no fundo no lhe importava nada e era to sua uma mescla de timidez e bondade enfermia que chegou a amargurar-lhe a existncia, at que chegou ao convencimento de que mais amarga resultava quando tratava de lutar contra esses sentimentos e dobrar o seu autnticono carcter".Por isso, ao encontrar-se diante de uma maravilhosa mulher de outra raa, outro continente, outras ideias e outro temperamento, deixou-se absorver, sem que essa absoro significasse uma anulao, mas apenas o reconhecimento de que Ndia tinha dentro de si tudo aquilo que ele desejara ter, mas que, no fundo, o assustava.Agora, sentado ali, naquele jardim de hotel, contemplando as luzes do esturio, David tratava de analisar-se, de convencer-se,com a ajuda de uma garrafa de conhaque, de que, pela primeira vez, tinha a fora suficiente de carcter para seguir para diante na sua empresa e penetrar no corao de frica, a cumprir a suapromessa de resgatar Ndia, custasse o que custasse.No era medo, e sabia-o. *Durante anos, durante a sua adolescncia, preocupou-o profundamente o facto de que- talvez - a sua falta de carcter no fosse, na realidade, mais do que uma forma de cobardia.Mais tarde, quando a revista o enviou a guerras e a terramotos, e as balas e a morte passaram a seu lado, compreendeu, pela serenidade do pulso com que dominava as cmaras, que nunca otinha sido e nada tinha que ver a coragem com o carcter.A possibilidade de correr graves riscos, inclusive morrer, no o assustava se dele dependia a liberdade de Ndia. *Assustava-o precisar do impulso necessrio para levar para diante a empresa to rdua como era encontrar uma mulher negra na imensidade africana.-Que faria ela no meu lugar? Como iniciaria a batalha contra os mais inabordveis moinhos de vento com que jamais um ser humano se enfrentou? Como agarrar fantasmas que vagueiam pelas pradarias, bosques e desertos do mais misterioso e desconhecido dos continentes?---23*Desalentava-o o prprio desalento ante a magnitude da empresa e no saber por onde devia comear.Era necessrio dar o primeiro passo, e depois outro e outro e outro... Porm, at onde? "*Oh! Ndia, Ndia... - soluou baixinho. - Onde ests?Permaneceu quieta e em silncio. Distinguiu como a sombra se movia, em segredo, e levantou os braos quanto pde. "*Oh, *David, David! Onde ests?---, exclamou mentalmente.0 homem continuava deslizando para ela, tropeou no p de uma mulher adormecida, certificou-se de que a no tinha acordado, e seguiu caminho para se deter a menos de um metro de distncia.Ali imobilizou-se. Provavelmente tentava aguar a vista, atravessar a obscuridade para no errar o golpe, conseguir que tudo se passasse com rapidez e sem escndalo.Sentiu nas fontes o latir dos segundos. Os braos estavam cansados de os ter ao alto, pesavam-lhe as cadeias e teve a impresso de que o homem devia ouvir perfeitamente o palpitar do seu corao.Agradeceu quando chegou, enfim, o momento do ataque e pde baixar as mos com fora.Ouviu-se um grito apagado e o visitante nocturno caiu de costas levando as mos fronte. Com o p empurrou-o para o afastar de si e voltou a recostar-se na rvore com os olhos muito abertos para a noite.- Oh! David, David! Onde ests? Porque no vens libertar-me deste pesadelo?Tinham passado tantos dias que lhe parecia que toda a sua vida estivera ligada quelas cadeias. Custava-lhe recordar o que no fossem horas de andar apressada, seguindo o ritmo que marcava a cabea do homem que a precedia ou ser pisada pela rapariga que vinha atrs. Calor, sede e fadiga, e um evitar constante dos golpes do sudans, golpes que dava sempre com o grosso cabo do seu ltego, para no rasgar a pele da mercadoria.Noites de dormir debaixo de uma rvore ou na imensidade do restolhal da pradaria, atenta sempre para evitar o assalto dos guardas que aproveitavam o primeiro sono do rabe para se lanarem famintos sobre ela.25Amanheceres gelados, com o corpo *enturnecido pela insnia e a fadiga, com a mente aterrada com a ideia de um novo dia de marcha.- Oh! David! Onde ests?0 homem a seus ps no se movia. T-lo-ia matado? Por uns momentos sentiu o incontrolvel desejo de se aproximar, rodear-lhe o pescoo com as correntes e apertar at o asfixiar, impedindo assim que raptasse mais mulheres, que as aoitasse durante a caminhada ou tentasse for-las noite.Tinha sido ele que se atirara sobre ela na lagoa e a derrubou de um s golpe, sem lhe permitir alcanar a arma apoiada contra uma rvore. Surgiu de improviso de entre a maleza, como um leopardo que se lana sobre *um animal que est bebendo, e quando os companheiros chegaram beira da gua, j estava estendida na margem, acorrentada.- Bom trabalho, Amin - tinha dito o sudans. - a melhor negra que temos caado at hoje... - Obrigou-a a pr-se de p e observou-a satisfeito, girando sua volta com ares de perito.Sorriu mostrando os dentes como um coelho. - verdade que s boa, rapariga... -estendeu o brao e apalpou-lhe o seio duro e erguido. - Estpido serei eu, e indigno de continuar neste ofcio, se o chefe no me der dez mil dlares por ti...Acariciou-a voluptuosamente e deslisou as mos at s ndegas, altivas e firmes.- Pena tenho eu de te no aproveitar aqui mesmo! ... Mas o chefe mata-me se sabe que uso a sua mercadoria... - Voltou-se para os seus homens, seis negros armados que observavam a cena com olhos gulosos, sem deixar de vigiar uma coluna de cativos que traziam acorrentados. - Aquele que lhe tocar, *esfolo-o- advertiu. - Com essas duas podem fazer o que quiserem, ecom o gordo que est no fim... Porm, com o resto, nada. E a ela, nem olh-la...- Naturalmente nem sequer virgem - protestou Amin. -Como poder saber o chefe?- Por ela prpria, estpido. - E voltando-se para Ndia: -s virgem, rapariga?- Sou - mentiu ela. - E se me deixares em liberdade, o meu pai pagar-te- os dez mil dlares.---0 sudans deu uma sonora gargalhada.26- * diabo! No sei qual dessas duas mentiras maior ... Mas para que vejas que sou justo, no farei indagaes sobre nenhuma. Posso admitir que sejas virgem...- Mas verdade. Meu pai pode pagar-te esse dinheiro...- Onde se viu que uma negra que se banha numa lagoa da selva tenha dez mil dlares?... Nem sequer sabes o que isso ...- Onde viste uma negra da selva vestida com estas roupas? E estas botas e esta arma?... Eu sou Ndia, filha de *Mamadou Segal, catedrtico da Universidade de Abidjan. Estudei em Paris e Londres, falo cinco lnguas, incluindo a tua, e se no me ds a liberdade, hs-de arrepender-te toda a vida.- Por todos os diabos! um diamante que encontrmos, Amin... *Quanto pagar o chefe por uma mulher assim?... Alegra-te, rapariga, no sers uma escrava qualquer... 0 chefe nomear-te- sua favorita por algum tempo... Sabes o que isso ?... Ele tem tudo: ouro, diamantes, prolas, carros luxuosos, avies privados... Nas *sum terras jorra o petrleo como a gua nas fontes e de todas as partes do mundo vm os homens mais poderosos para o disputar ... Imagina que no pode gastar num ano o que ganha num dia ... Vai cobrir-te de jias, comprar-te os melhores vestidos e comers em pratos de ouro... E os teus filhos sero prncipes...- Vai para o inferno, filho da puta!0 sudans ergueu o chicote, mas deteve-se com o bra(*- vantado.- No... Suleiman R'Orab no cometer a *estazorrar-te, negra... Suleiman R'Orab anda h *muit oficio e tem ouvido coisas piores. Andandogente. - Quando cair a noite, quero estarE chegou a noite e estavam longe. e E continuaram a afastar-se dia ai-' os Depois navegaram toda a noit- -se E penetraram na estepe, de prasempre a proteco das rv- reiros tradas e povoados, por - Como Amin parecia *conhe- sposto a caravana ha, ' *zelhos, o mais nov(, *vam de choramingar.Suleiman R'Orab so, *di.*do... Asse-Vinte e dois, *quast ma *esDcie dechegar viva ao mar Vermelho, a viagem foi um grande negcio... preciso cuidar desta rapariga... S ela cobre os gastos... Quero-a em Suakin intacta.Apesar da advertncia, *Amin estava agora estendido a seusps, ensanguentado e inconsciente. E parecia que o negro no estava disposto a renunciar a Ndia, considerando, talvez, que pelo facto de a haver descoberto e capturado, tinha direitos sobre ela.Tinha conseguido det-lo essa noite, mas quantas mais alcanaria faz-lo?*-Oh, *David, David! Onde ests? "Tens de correr para mim outra vez. No consegui tirar-tenem uma fotografia...-Sentiu que o corao lhe dava um tombo ao v-lo alto e macio, com o cabelo cor de areia e os olhos to claros como as guas da laguna Ebri, que ao entardecer reflectia as pontes de Abidjan.*A sua inteno foi sair a correr, e correr para ele at cair esgotada; porm, retirou valor de onde no o havia, e replicou:- Lamento. Acabou o treino. Quando se afastava pelo passeio que levava aos vestirios, parecia-lhe que o mundo lhe caa em cima e o tempo tinha parado, at que ouviu nas suas costas a voz que a chamava:- *Eli! Espera... Como te chamas?- Ndia - replicou com um sorriso, e voltando-se para que ele pudesse ler na sua camisola ---Costa do Marfim---.E nos dias seguintes, durante horas, espiou a entrada da vila, e nos treinos procurou com o rabito do olho entre a gente, tentando descobrir as cinco cmaras que parecia protegerem atimidez do gigante louro.Cerrou os olhos ao recordar o novo encontro. Tinha subido ao *pdio e um velho libidinoso que a comia com os olhos acabava de lhe pr ao pescoo uma medalha de bronze. Resignada, suportou o beijo, aceitou um ramo de flores, ergueu-se para saudar opblico que aplaudia, e ali estava, olhando-a atravs de umaobjectiva, atento a retrat-la unicamente a ela, esquecido das me-dalhas de ouro e prata.Ainda agora no explicava como ele conseguiu lev-la a jantar nessa noite. Apenas se lembrava de que tinham discutido sobre asede de frica ante uma garrafa de Don *Perignon,*Em seguida passearam at amanhecer por ruas silenciosas, to solitrios que se diria que eram os nicos seres deste mundo, e28falaram de mil temas: religio e racismo, poltica e desporto, amor e guerra.Tantas coisas se passaram, e, todavia, ali estavam: uma estudante africana e um fotgrafo nrdico. Para ele, o mundo era imagem e cor em momentos formosos, dramticos, emocionantes ou de admirao que ficavam imveis para sempre.Para ela, o mundo eram ideias, injustias, necessidades, rebelio e constante movimento.David podia permanecer horas espreitando um pssaro no ninho; Ndia era incapaz de ficar quieta um s instante e sempre tinha urgncia de se mudar para outra parte, fazer outra coisa, solucionar novos problemas.Ele lia Charrire, Lon Uris e Forsyth; ela Sedar-Sengor, Marcuse e Herman Hesse. Ela gostava de Bergman e Antonioni; ele, de John Ford e David Lean.- Ento... no s partidria do amor livre?...- Com certeza... Em amor cada qual livre para fazer o que lhe apetea... Por isso no o fao.-Mas absurdo! ... No ds por isso? Vivemos no sculo XX. 0 sexo j no pecado mortal, nais do que qualquer coisa natural e lgica.- De acordo... Deve-se fazer amor quando se deseja fazer amor. 0 que acontece que eu no o desejo... Isso um delito ou que para seguir a moda tenho de ir contra os meus prprios gostos?- No, claro! ... No isso *- protestou. - ... Simplesmente no se inibir quando se sente necessidade ...- Ouve: quando os teus bisavs se deitavam ainda com camisa de dormir e um buraco na braguilha, os meus bisavs j praticavam o nudismo e se entusiasmavam com o amor livre em cada volta do caminho... Talvez se trate apenas de um "conflito generacional---. Tu reages contra os costumes dos teus antepassados, eu contra os dos meus. Para ambos, os nossos bisavs eram, no fundo, uns "selvagens" ... Talvez a autntica civilizao esteja no meio termo entre tu e eu...-E porque no o buscamos? -riu com velhacaria.- Naturalmente demoraramos um ano para o encontrar... Queres esperar?...No houve resposta e pararam a contemplar em silncio a cidade.Amanhecia.29Continuava ali, to quieto que se julgaria morto, e com a claridade que principiava a desenhar a linha das rvores, as correntes e as mos, vendo-se j o fio de sangue que lhe escorria da fronte, formava um pequeno charco no canto do olho, resvalava ao longo do nariz, cruzava a boca e perdia-se barbicha abaixo, at ao pescoo e terra.De repente, as pesadas botas de Suleiman *R'Orab apareceram junto do negro. Observou-o em silncio e ergueu os olhos.-Foste tu? Concordou em silncio e tapou-se, tentando tornar-se mais pequenina quando viu que o homem erguia o pesado ltego.Mas no foi para ela o castigo, mas para o homem que continuava inconsciente e que aoitou com incrvel fria.- Negro maldito... Filho de uma grande puta! - rugiu. -Tinha-te proibido... Tinha-te proibido! ...Continuou a aoit-lo at que as chicotadas que lhe rasgaram a pele o acordaram. Amin lanou um grunhido, ps-se de p e com incrvel agilidade, para quem havia permanecido inconsciente, perdeu-se entre as rvores, ainda perseguido pelo indignado sudans.*- Hei-de matar-te! - gritava fazendo o possvel por *alcan-lo. - Corto-te os ovos se tornas a tentar de novo. Castrar-te-ei, negro sujo!Regressou arquejante e enfrentou o grupo - captores e cativos -, que tinham assistido, silenciosos, cena.- Castrarei aquele que se atreva a tocar-lhe - disse. - Seja quem for... - desembainhou a sua larga agomia e mostrou-a, ameaador. - J perdi a conta a quantos negros capei com ela- continuou. - Todos os eunucos do palcio do chefe, foram-no pela minha mo, e no tenho problema em rachar a mais cem... Hei-de ensin-los a conterem-se, porcos!, que s pensais em rebolar-vos como animais... E agora, em marcha... - ordenou, fazendo estalar o chicote sobre as costas de um escravo. - Em marcha, negros do diabo, cambada de inteis! ...Puseram-se dolorosamente de p e reataram a marcha.Desprendeu o telefone que tocava insistentemente, ameaando rebentar-lhe a cabea ainda embotada com a bebedeira e a noite de insnia.- Alexander? Sou Blummer. 0 cnsul... Passarei por a dentro de vinte minutos. 0 seu avio parte daqui a uma hora.- Aonde vou?- Ao Chade. Desligaram. Com preciso cronomtrica, o grande carro negro fez a curva e deteve-se sob o toldo. 0 motorista guardou a mala e ele assentou-se atrs, junto do cnsul.-Porqu o Chade? -Segundo a Polcia, o caminho dos escravos no costuma internar-se na Repblica Centro-Africana, cuja vigilncia muito eficiente. Atravessa o Chade, passando entre Bousso e Fort-Archembault, e interna-se mais no deserto, rumo ao Sudo. Algumas caravanas terminam a viagem em Cartum. Outras baixam *Etipia, mas a maior parte continua para Suakin, de onde salta para a Arbia. Se o comissrio Lomu sabe o que diz, o grupo que roubou a sua mulher demorar mais de vinte dias a cruzar o Chade.- Que auxlio posso esperar das autoridades chadianas?- Pouco. As tribos macmetanas do deserto revoltaram-se contra o governo de *Fort-Lamy, controlado por negros do Sul, os Massa e os Moudang. 0 presidente Tombalmaye mantm-se graas ajuda que extra-oficialmente lhe prestam os pra-quedistas franceses, mas se estes se vo embora os guerreiros tuaregues acabaro com os negros num instante... Como compreender, no creio que Tombalmaye esteja disposto a desviar tropas em benefcio de sua mulher...- Compreendo... Afectuosamente deu-lhe uma palmada no brao.- No desanime - pediu. - No est tudo perdido... Asseguram-me que subsiste parte do Grupo bano, uma espcie de31herdeiro moral do famoso Esquadro Branco que lutou contra os traficantes de escravos na *Lbia...0 carro deteve-se porta do edifcio do aeroporto. 0 motorista dirigiu-se, com a mala e a documentao, ao balco da Air Afrique, e David Alexander e o cnsul Blumme foram em direco ao pequeno bar situado a um canto, direita da entrada.- Aconselho-o a que coma qualquer coisa - disse o cnsul. - 0 avio faz trs escalas e entre elas no ter tempo para almoar decentemente.- No tenho fome,- Esforce-se! ... No deve desesperar-se, nem deixar-se abater... Esperam-no meses de lutas e decepes; talvez se d por vencido, porm, recorde isto: tem de percorrer trs mil quilmetros para chegar ao mar Vermelho, e isso uma distncia muito grande...Estava a acabar os ovos com fiambre quando um altifalante *rouIenho anunciou a partida do seu voo.A viagem foi como que uma lio de geografia africana, passando da costa aos bosques densos e chuva tropical de Yaund, para voar quase uma hora sobre a imensa selva, encontrar depois as verdes pradarias e sobrevoar, enfim, a savana parda, na altura de Marou.Atravs da estreita vigia, contemplou a irisada paisagem, perguntando-se em que lugar daquela imensidade se encontraria Ndia.- Talvez oua passar o avio e olhe para cima. Talvez navegue por este rio ou a tenham escondido naquele bosque...Era to grande a frica! Parecia to gigantesca e desolada! Voaram baixo sobre quilmetros e quilmetros de verdes prados; de estepes amarelecidas; de terras magnficas para o algodo; do linho e do mais que ningum cultivava, e nenhum boi, mula ou tractor se distinguia, porque o Africano tinha emigrado para as cidades, concentrando-se em inmeros arrabaldes que no lhe ofereciam mais do que prostituio, vicio, misria, sfilis, tuberculose, desinteria, clera, febres e uma profunda degradao moral: uma perda total dos valores tradicionais da sua antepassada forma de vida que no era substituda por nenhum outro cdigo tico.Quando chegavam s cidades, os nativos vindos da selva procuravam agrupar-se com indivduos afins, pertencentes sua prpria raa, tribo ou crenas, e conservavam por algum tempo o32respeito pelas velhas leis, mas, pouco a pouco, com a falta de trabalho e as calamidades, a fidelidade sua prpria origem ia-se perdendo, at converter o indivduo num ser duro e egosta, fosco e solitrio, ao qual nada nem ningum importava mais do que as suas prprias necessidades e a sua fome.Tinha passado a fazer parte do proletariado negro, mais triste ainda do que o branco, porque para o negro tudo era novo e nunca sabia como fazer frente aos problemas que a civilizao de sbito tinha posto no seu caminho.Era assim com Lagos, Ibadan, Dakar, Douala, Abidjan, Libreville e tantas outras cidades que ferviam de seres desgraados, enquanto frica, a autntica frica, aparecia desolada e intil.Adiante, longe, a terra amarela comeou a brilhar com reflexos prateados, e o grande lago Chade, corao geogrfico do continente, fronteira entre o deserto e a estepe, estendia-se at ao Noroeste, at perder-se de vista na distncia.Lago! Que palavra preciosa para o que no era, na realidade, mais do que o maior charco do mundo. Vinte *mil quilmetros de gua esparramada por uma imensa planura, sem alcanar nunca dois metros de profundidade, de modo que os nativos podiam pass-lo a vau de margem a margem, sem necessidade de nadar.Quando o Sara era uma enorme pradaria verde; quando- como Ndia dizia - os seus antepassados povoavam Tasili e o Tibesti, o lago Chade foi o maior do Mundo, mas as secas e o deserto haviam reduzido cinquenta vezes a seu tamanho, deixando-o reduzido a um dos lugares mais inspitos, quentes e desconhecidos do planeta. " to cheio-, assegurava Ndia, "que quando sopra o harmat as guas avanam em ondas diminutas e estendem-se at quatro quilmetros das margens. Os indgenas tinham ento de partir correndo, abandonando as suas mseras choas e juntando os rebanhos corno podiam."Um punhado de casebres pardos e brancos, que se levantavam perto da conjuno do lago e de um rio largo e salpicado de ilhotas, atraram a sua ateno. 0 avio, que se tinha afastado para o norte, virou numa curva ampla e regressou perdendo altura.0 altifalante anunciou que estavam prestes a aterrar em Fort-Lamy, capital da Repblica do Chade, e experimentou uma desagradvel sensao de angstia ao compreender que havia33posto as suas esperanas na ajuda que pudesse obter naquele miservel canto do planeta.-Isto deve ser como o fim do mundo-, resmungou, e teve a certeza de que no estava muito longe da realidade.Quando a porta do velho Caravelle se abriu, uma lufada de arquente e seco, como sado de um forno, ameaou queimar-lhe ospulmes, enquanto uma luz branca, brilhante e violenta lhe golpeou os olhos.Duvidou sair para o exterior, e ao atravessar a pista de cimento, procurando a correr a proteco do moderno edifcio do aeroporto, um sol como jamais havia sentido em parte alguma chamuscou-lhe o pescoo, ameaando derret-lo at aos cabelos.- Deus bendito! - Assoprou ao alcanar o refgio do grande salo de entrada. - Esta deve ser a porta do inferno.Um obscuro funcionrio impertinente, que suava em bagas dentro de uma grossa jaqueta, examinou-lhe o passaporte com ar suspeito.- 0 senhor jornalista, senhor Alexander?- No precisamente... sou fotgrafo...- Mas trabalha para uma revista. Qual o motivo da sua visita ao Chade?...-Procuro minha mulher... Foi raptada nos Camares por caadores de escravos e as autoridades de Douala asseguraram-me que deve estar atravessando o seu pas...0 funcionrio olhou-o como se acreditasse que o estava a tomar por um idiota. Fechou-lhe o passaporte sem lhe pr o selo de admisso e ergueu-se com ligeireza para ganhar autoridade.-Lamento, senhor- argumentou. -Porm, deve continuar a viagem... Temos uma triste experincia do que contam os jornalistas europeus sobre os acontecimentos internos do Chade. As minhas *instrues so no sentido de no permitir a entrada a quem no tenha um visto especial do nosso embaixador em Roma...- Mas minha mulher... - tentou protestar.- Senhor... - impacientou-se o outro. - Essa a desculpa mais absurda que ouvi em toda a minha vida... 0 seu passaporte diz que solteiro...- Casmos h dois meses... E a minha mulher - hesitou africana...0 indgena pareceu surpreender-se. Pensou uns instantes e34olhou-o nos olhos como querendo convencer-se de que no mentia. Abriu o passaporte e estudou-o novamente. David teve uma sbita inspirao, procurou na maleta e encontrou o passaporte de Ndia.- Esta a minha mulher... - disse.0 funcionrio ficou em silncio; estudou os passaportes e franqueou a entrada.- Sorte!... - disse. Procurou um txi e de novo acreditou que abrasava quando saiu para o sol. 0 carro ardia, e quando se ps em marcha para a cidade, o ar que entrava pelas janelas abertas no conseguiu refresc-lo.- Faz sempre este calor aqui? - inquiriu angustiado.- Mais... Agora estamos no Inverno... Que hotel prefere o senhor?... 0 Chadienne, o Chari ou o Du Chad?Ficou surpreendido com a falta de originalidade dos nomes, mas no fez nenhum comentrio:- Qual o melhor?- 0 Chadierme o mais caro e alguns quartos tm ar condicionado que funciona sempre... A comida no Chari melhor... Madame, a dona, uma magnfica cozinheira e uma formosa mulher...- Leve-me ao Chadierme. *- *s suas ordens, senhor. Creio que escolheu bem, senhor ... mais confortvel e tem uma esplndida vista sobre o rio ...- Ficou calado, mas a paz durou s um momento. - Gosta de *Fort-Lamy, senhor?... - perguntou.- Ainda no conheo...- verdade... verdade... - agitou a cabea. - H-de gostar ... Um pouco quente, mas uma magnfica capital, senhor ... 0 autntico corao de frica... Chegam aqui pessoas de todo o continente: mercadores rabes que descem da *Lbia e da Arglia; traficantes haussa de Kano; sudaneses e senegaleses procura da barrilha do lago; os naturais dos Camares que cruzam o rio para nos roubar; pames e fangues que sobem da Guin e do Gabo; pastores fulbs com os seus grandes rebanhos. Incluindo congoleses...Entranhavam-se na cidade e verificou que o homem tinha razo. Um bosqumano cor de betume estava sentado junto de umabranca sarani com o rosto velado, enquanto uma sua vizinha passava com os peitos desnudados e um cntaro cabea. Em35Fort-Lamy, bantos, tuaregues, budumas, rabes, egpcios, fran~ ceses, gregos e os naturais do Daorn chocavam-se, confundiam-se e trocavam produtos, costumes e culturas.Poderia pensar-se numa cidade americana onde convivessem ndios da selva, pastores andinos, pescadores das *Caraffias, vaqueiros do Texas, estrelas de Hollywood, esquims do Canad e*patages de Terra do Fogo?... Ou uma capital europeia onde passeassem ciganos com os seus trajos tpicos, escoceses de gaita de foles, gregos de mini-saia, *lapes da Noruega, turcos de turbantes, lordes ingleses, camponeses russos, pastores do Tirol, etc.Era essa a impresso que produzia Fort-Lamy, na qual conviviam todas as fricas, porque existia uma frica de racismo, em*Joanesburgo; outra de lees e safaris, no Qunia; uma terceira de guerras civis, no Congo e na Nigria; uma quarta de poltica ede pirmides, no Egipto; uma quinta de mesquitas e turismo, em Marrocos; uma sexta de sede e petrleo, no Sara, e uma stima e oitava e muitas mais...E enquanto o condutor tocava insistentemente a buzina afastando dezenas de ciclistas, compreendeu que tinha chegado ao crebro do continente, e pela primeira vez compreendeu tambm que nesse continente podiam existir tambm caadores de escravos.Contornaram a Praa da Independncia e o motorista mostrou numa esquina o edifcio do Hotel Chari, recomendando-lhe que fosse l jantar qualquer dia. Em seguida cruzaram o pesado monumento que recordava que de Fort-Lamy partiu a expedio de Leclerc p,@*Lra enfrentar os tanques de *Ronimel, e depois de deixar esquerda o palcio do governo, com a sua guarda-de-honra absurdamente uniformizada de um vermelho violento, bordearam o rio e pararam no jardim do Hotel Chadienne.- Se precisar de txi, senhor, posso vir quando quiser, senhor... Nem sempre fcil encontrar um txi mo em Fort*-Lamy, senhor, e no recomendvel andar a p, porque este s faz mal aos brancos, senhor... Venho busc-lo, senhor?- Amanh. *s oito... Sabe onde posso encontrar algum membro do Grupo bano?- 0 Grupo bano... - respondeu assombrado. - No, no, senhor... Porque pensa que eu saiba isso, senhor?... E creio que amanh no posso vir busc-lo s oito, senhor... - juntou36quando arrancava j: - Tenho outro compromisso a essa hora, senhor...Havia, efectivamente, quartos com ar condicionado capaz de funcionar dia e noite. Tentou um banho, mas desistiu porque agua saa de uma cor castanha-escura, vinda directamente do rio e, em conjunto, dava a impresso de sujar mais do que de limpar. Conformou-se com um duche quente, pois por mais que deixasse correr a gua o grande caminho que esta tinha de percorrer nos canos de ferro expostos ao sol chadiano impedia que essa sasse medianamente fresca, pelo menos s nove horas da noite.Descansou um pouco contemplando o tecto e as sombras que o cruzavam, ouvindo vozes e risos das mulheres que lavavam nas margens do Chari, com o fundo, muito ao longe, de umpiraguero que cantava em dialecto kokoto, enquanto cravava o varapau no fundo do rio, impulsionando lentamente a sua em-barcao rio acima.Lembrou-se de um momento semelhante, com msica parecida ao fundo e um quarto quase idntico, na tarde em que chegaram a Cotonou. Hospedaram-se no Hotel de Ia Plage, e, depois de terem tomado banho, amaram-se at ficarem esgotados. Contemplando o tecto, ficaram a ouvir umas mulheres queconversavam na rua e um pescador que remendava as suas redes sobre a areia, cantando tambm com voz de trovo.- Pensaste alguma vez que o amor fosse isto? - perguntou. -Passava a vida a faz-lo... -E quem nos impede?... Voltaram a comear.0 homem continuava cantando. Foi at janela e ainda o pde ver, antes que a sua piroga desaparecesse definitivamente na primeira curva do rio.Noutra ocasio a paisagem t-lo-ia impressionado. Um Sol de fogo, entre vermelho e laranja, ocultava-se atrs de uma copada ceiba na orla do monte dos Camares, e as guas baixavam, parcimoniosas e em silncio, arrastando imensas balsas de papiro, troncos grossos ou adormecidos caimes, enquanto bandos de garas brancas revolteavam no ar e graves sovelas cinzentas ensaiavam infinitas reverncias afundando o agudo bico na areia das ilhotas ou no lodo da margem.As mulheres continuavam a cantar; ao longe, as crianas corriam, um jovem manchava com branca espuma de sabo a37maravilha da sua pele de azeviche e um velho pescava com infinita pacincia popa de uma piroga varada.Longe, um hipoptamo resfolegou. Anos atrs abundavam tanto os hipoptamos no lago e no rio que os hidravies que uniam Fort-Larny a Duoala capotavam uns atrs dos outros, chocando com os grandes animais.Agora j no havia hidravies, mas, pelo que tinha ouvido, depressa os caadores furtivos acabariam tambm com os hipoptamos.frica estava a acabar.- * Deus! Porque era que aquela frica era forada a acabar? Porqu, a das quietas paisagens e belas feras? Porque no a dos caadores de escravos, a da fome, da doena e da injustia?Afastou-se da janela quando o Sol se escondeu completamente. Desceu ao bar, deserto quela hora, pediu usque e bebeu-o lentamente. 0 *bannan, um francs grande e sardento, de jaqueta verde, instalou-se sua frente sem deixar de limpar uma alta pirmide de copos. Observou-o por momentos e por fim perguntou-lhe:- Mercenrio? Levantou os olhos do seu usque sem compreender.- Perdo?...- Se mercenrio?... j chegaram outros... Consta que as Naes Unidas obrigaram a Frana a retirar os seus pra-quedistas e o presidente Tombalmaye ser obrigado a recorrer a mercenrios... Aqui respeitamo-los muito... - aclarou. -Necessitamos deles para travar um pouco esses tuaregues do diabo...Com um movimento, negou:- No sou mercenrio... - Guardou silncio uns instantes e logo inquiriu: - Tem alguma ideia onde posso encontrar o Grupo bano?...- 0 Grupo bano? - 0 outro tinha baixado a voz instintivamente, ainda que no houvesse mais ningum na sala.- No. No tenho a menor ideia onde encontr-lo, se que existe... Para que o quer?-Preciso de ajuda. Os caadores de escravos raptaram a minha mulher nos Camares...- Merda! Isso to complicado... - Tinha parado de limpar os copos e apoiou-se ao balco. - No ande a falar por a em voz alta no Grupo. H gente que no gosta dele.38- Porqu? -j vai saber. Uns dizem que no so mais do que um punhado de espies imperialistas... Outros, agitadores comunistas... Outros, provocadores encarregados de avivar a luta entre maornetanos do Norte e animistas do Sul... Inclusivamente afirma-se que se trata de agentes sionistas que procuram atacar oEgipto pelas costas...- Todavia, existem? Encolheu os ombros.- So rumores... Aqui, no Chade, so mais as vozes do que as autnticas notcias... Talvez fossem os traficantes de escravos que propagassem todas essas verses sobre eles... Talvez sejam certas... Talvez no existam j ou nunca tivessem existido...-Como posso saber a verdade?- A verdade? - Soltou uma risada curta e sarcstica. -Nesta terra de mentiras e historietas, a verdade o mais difcil de encontrar. Pea-me um urso polar e pode ser que se consiga, mas a verdade... - Reassumiu a sua tarefa com os copos. - A verdade como a chuva para o Chade... nunca chega, e, quando chega, provoca catstrofes, muda tudo e at escurece o Sol...- Cem francos ajudariam?- Ajudariam... -Conte com eles.- Conto. - Fez uma pausa. - Isto anima-se at s oito da noite. Antes de se deitar, venha ver-me... Mas, por favor, no mencione o nome em pblico... E no conte a ningum o rapto de sua mulher... Eu no estou mal informado, mas asseguram que os caadores de escravos so como uma grande sociedade... Uma espcie de mafia... Ajudam-se entre si, e quando algum investiga sobre algum dos seus membros, acabam com o intruso... E aqui, em Fort-Lamy, qualquer pode estar implicado no trfico: os comerciantes gregos, os carregadores portugueses, vendedores de tecidos rabes, os negociantes egpcios, os importadores nigerianos e os funcionrios chadianos...- Incluindo voc? Mostrou o copo e o pano que tinha na mo.- Acredita que se negociasse com negros estaria aqui a enxugar copos?...Compreendeu de sbito que a sua pergunta no tinha sido afortunada, e interrompeu-,*se, confuso. Parecia agradecer mentalmente a chegada de dois tipos com aspecto de caadores,39que, suados e cobertos de p, foram sentar-se mesmo ao meio do balco e pediram cerveja gelada enquanto discutiam mal-humorados sobre o grande rinoceronte que lhes havia escapado das mos.- Trezentos quilmetros! - exclamou o mais velho, dando o barman por testemunha. - Mil quilmetros por esses caminhos do inferno, com essa maldita seca que os enche de p, e afinal o bicho foge-nos vivo... Uma semana perdida.Bebeu lentamente e observou-os em silncio. Pertenciam quela espcie de "caadores brancos" que j eram como que uma relquia no continente, fsseis vivos de tempos que partiram de frica e jamais voltariam. Tempos das Verdes Colinas... e das Neves do *Kilimanjaro; dos grandes safaris e das aventuras; de matar animais sem conta nem razo... Tempos dos ---trofus- e das lendas romnticas que haviam aniquilado pouco a pouco a mais formosa fauna que jamais existiu sobre a Terra.Eram os homens que Ndia odiava com toda a alma; os que ainda queriam aferrar-se ideia de que frica nunca seria mais do que uma imensa coutada de caa povoada por rapazes submissos que traziam armas e se inclinavam constantemente como um servial: ---Sim, bwana".*- Manacos, homossexuais, tarados mentais, impotentes! Esses so os que vm matar elefantes e rinocerontes - exclamava indignada, quase fora de si. - Matar de longe e sem perigo um animal grande e nobre uma forma como qualquer outra de deitar para fora todas as suas frustraes...- No creio que "todos" sejam "tudo" isso -tinha contrariado ele. - H quem goste de caar pelo prazer da aventura.- Aventura! Matar trinta mil elefantes num ano aventura? uma maneira de criminalidade para cobardes que no se atrevem a assassinar pessoas porque iriam parar forca... Manacos, homossexuais, impotentes! ...Quando chegavam a este ponto, David deixava, como sempre, que disparatasse vontade sem lhe levar a melhor. Faz-lo, era entranhar-se numa discusso sem esperana, em que Ndia se ia excitando mais e mais at perder por completo o seu sentido de equanimidade.*Numa ocasio estivera quase dois dias sem lhe dirigir a palavra, quando ele tentou partir uma pequena lana a favor dos caadores, e desde a tinha chegado concluso de que era um tema tabo nas suas relaes.40Agora, vendo-os ali, sujos, cansados, queimados pelo sol, cobertos de p e bebendo cerveja aps cerveja enquanto tentavam maravilhar o barman com o relato de como haviam perseguido um rinoceronte com um tiro nas costas, era-lhe muito mais fcil compreender as razes de Ndia, que tinha convivido desde pequena com semelhante espcie e escutado mil vezes as suas mil vezes repetidas histrias.Falavam em voz muito alta, procurando arrastar David para a conversa e aumentar assim o auditrio que precisavam para o relato das suas faanhas, falsas ou certas, mas ele optou por ignor-los, porque reconhecia neles aquela agressividade de palavras e gestos que tanto o incomodava; aquele querer falar mais e mais alto e mais impulsivamente que o antagonista, embora isso o levasse sempre a dizer mais asneiras, e mais seguidas, e num tom mais alto.0 mundo transbordava de caadores e David evitava-os com uma espcie de terror louco. Caadores de mulheres, caadores de astcia, caadores de velocidade em automvel, caadores de cultura... Todos dispostos sempre a contar em voz alta os rinocerontes que tinham matado, as mulheres com as quais se deitaram, os espertos que tinham sido, o muito que lhes tinha acontecido ou a fundura dos seus conhecimentos literrios, pictricos ou cientficos.Diante deles, David sentia-se presa encurralada; ambicionada espcie de *auditoris *perfectibus, capaz de suportar, uma vez capturado, horas e horas de conversa sem a coragem necessria para dar meia volta e ir-se embora ou mandar o opositor para o inferno.E essa tinha sido, desde sempre, uma das caractersticas que mais odiou na sua forma de ser: a sua incapacidade para se revoltar e a sua impotncia ante a descortesia ou a palavra inoportuna que pudesse ferir um semelhante, fosse quem fosse esse semelhante.No dia em que conseguisse lutar contra isso ou no dia em que lograsse ser irnico ou - mais simples ainda - no se sentir desconcertado pela ironia alheia, David comearia a sentir-se satisfeito consigo prprio; comearia a crer que conseguiria ter esse carcter de que sempre tivera necessidade.- 0 que acontece que s demasiado bom - repetia-lhe Ndia algumas vezes. - Demasiado bom, e tomam-te por tonto41e falho de carcter... Revolta-te contra isso! Mostra as unhas devez em quando...-A comear por ti? -Porque no? Acreditas que isso mudaria as coisas? Crs que uma discusso de morte faria com que te amasse menos?-Faria com que me amasses mais? -Tambm no...- Ento deixemos tudo como est! ... No posso mudar... Nunca poderei mudar!Mas agora, ali, sentado naquele bar, escutando sem ouvir aqueles caadores vociferantes, David perguntava-se se, efectivamente, nunca conseguiria mudar, ou, ao contrrio, se tinha comeado j essa mudana.Agora sentia dio; um dio como nunca acreditou que fosse capaz de sentir; um dio que lhe permitia, pela primeira vez, ser duro e cruel com aqueles que lhe tinham arrebatado Ndia.Perguntou-se se seria capaz de matar um ser humano, e no encontrou resposta, ainda que pensasse que havia de a encontrar depressa, porque talvez tivesse chegado o momento em que teria de enfrentar a realidade. Ndia tinha sido roubada por uma gente para quem a vida e a morte no tinham importncia, e talvez se tivesse criado uma situao em que era preciso escolher entre morrer ou matar.Nesse instante, quando uns segundos marcarem a diferena, era necessrio estar preparado para a escolha, convencido de antemo de que o mal que ele pudesse fazer ao inimigo era sempre menor do que o que o inimigo lhe pudesse causar a ele.Tentar ignor-lo, enganar-se a si prprio no conduzia a nada e o que mais o mortificava era no poder diferenar se tudo era devido sua bondade, como Ndia dizia, ou a uma enfermia timidez ou a uma completa e absoluta falta de personalidade.Houve tempo em que estivera tentado a consultar um psiquiatra pensando que a cincia lhe resolveria o problema, mas logo pensou que, na realidade, no tinha necessidade alguma de mudar, de se tornar duro, de procurar formar em si uma personalidade diferente com a qual se encontraria em eterna luta.Se durante anos havia vivido em paz consigo, que preciso tinha de mudar?...Agora, porm, no era a mesma coisa. Era muito diferente. Agora existia Ndia.Estava sentado junto s ltimas rvores, contemplando oentardecer com ar indiferente. Quando a coluna o alcanou e sedeteve sua frente, apontou para diante:- A estrada est ali e depois o rio Chari... A zona muito povoada...-Bem sei -admitiu o sudans.- H muito trfico entre Fort-Larny e Fort-Archembault... Camies na estrada, balsas e pirogas no rio...- Passaremos de noite... Amin apontou a mal tratada fila de cativos que se haviam deixado cair, esgotados, entre a alta e ressequida erva.- melhor amanh noite... Devemos andar muito depressa para que o amanhecer no nos apanhe nas margens do rio...- No gosto deste stio... Podem ver-nos e levar a novidade a Bousso...Amin apontou dois rapazinhos que vinham no fim da coluna: -No aguentam o ritmo... Ficaro pelo caminho. Suleiman R'Orab voltou-se para a caravana.- Prefiro perder dois do que todos - disse virando-lhe as costas. - Repartam a comida - ordenou aos seus homens. - E descansem, que daqui a duas horas estaremos de novo em marcha.Ouviu-se um murmrio de descontentamento, mas ele fez estalar o chicote.- Silncio! - gritou. - Caminharemos toda a noite e ao que atrasar o ritmo, *degolo-o... Est claro? No vou permitir que ningum atrase o grupo... Apertem os dentes e avivem o passo, ou esta ser a ltima noite da vossa vida...Acocorou-se diante de Ndia.- Tinha pena de te torcer o pescoo, negra... - disse. - Tu sozinha vales tanto como o resto do carregamento.- Cairs rebentado antes de mim.- j o tinha notado, negra. Parece que em toda a tua vida no fizeste mais nada do que correr e saltar. Mas ainda te ficou tempo43para estudar e aprender lnguas... s uma jia rara, negra. Nunca conheci ningum como tu e se tivesse vinte anos menos no te venderia ao chefe. *Guardar-te-ia para mim... - Tirou o grande turbante e comeou a perseguir os piolhos, que esborrachava entre as unhas com um ligeiro estalido. - Mas comeo a estar velho e cansado e quero retirar-me deste constante galopar de uma parte outra de frica... Quem sabe se poderei estabelecer-me definitivamente em Suakin vendendo prolas aosperegrinos que vo a Meca... Ali passarei tranquilo a minha velhice, contemplando o mar Vermelho, rodeado de netos.- custa de quantas vidas?... Quantos homens, mulheres ecrianas vendidos para assegurarem uma velhice tranquila?...*Suleiman *R'Orab encolheu os ombros e continuou matando piolhos. No levantou a cabea ao responder:- Todos eram escravos, negra... 0 profeta Macm, as bnos caam sobre ele, nunca proibiu a escravatura e no h uma s palavra contra ela no Coro...- Tambm as no encontrars em contrrio e eu interpreto isso como uma aceitao.Comeou a comer gulosamente uns restos de galinha que Amin tinha caado no dia anterior, e medida que limpava os ossos, lanava-os, em silncio, para os escravos, que se atiravam sobre eles procurando um resto perdido de carne ou um pedao de pele desprezada.Um guarda distribuiu punhados de milho, que devoraram em silncio, afundando a boca na concha da mo, que lhes servia de recipiente, antes que o vizinho pretendesse arrebatar-lhes parte da sua rao.Distribuiu, por ltimo, um trago de gua, extrado de umagirba suja e malcheirosa; com ele se deu por terminada a refeio do dia e cada um procurou descansar num curto sono, espera de nova caminhada.j estavam acesas as infinitas estrelas das noites africanas e uma Lua crescente fazia a sua apario no horizonte quando Amin se ps de p.Dir-se-ia que aquele negro delgado e sardento, todo nervos, no conhecia o sono, a fadiga, a fome ou a sede. No era s o explorador que ia sempre meia hora adiante procurando vtimas e avisando do perigo. Alis, carregava com todos os trabalhos pesados, fazia a maioria das guardas nocturnas, procurava a caacom a ajuda de um arco e fortes flechas e ainda lhe sobrava44tempo, na madrugada, para procurar na coluna dos cativos quem lhe saciasse o seu excesso vital.Desde o dia em que foi aoitado, tinha procurado no se aproximar de Ndia, mas esta via sempre os olhos do negro fixos nela: uns olhinhos malignos que pareciam estar sempre vendo mais para l do vestido; olhos que alguns juravam que no se fechavam nunca: riem de dia, nem de noite.At ao prprio *Suleiman R'Orab inquietava a sua presena, e Ndia ouviu como ele o confessou a um dos seus homens, em rabe, chamado Abdul:- Qualquer dia temos de matar este maldito negro... Ser uma pena, pois nunca conheci melhor guia nem pisteiro melhor, mas se no acabo com ele, acabar ele comigo... Tem o diabo dentro o grande filho da puta...- Asseguram que quando desaparece noite se transforma em fera... No Daorn, um bruxo fez dele um ---hornem-leopardo"...-Nunca acreditei em bruxarias de negros e j Maorn nos preveniu contra elas... Se uma noite se converte em animal, deixo-o seco com um tiro ... Nem os autnticos leopardos resistem a uma *Remington ...Iniciaram de novo a caminhada, e foram mais de trs horas num ritmo endiabrado, sempre precedidos pelo silencioso *Amin que parecia orientar-se por um sexto sentido.Suleiman e os seus homens praguejavam tropeando em espinhos ou raizes ocultas, e quando um escravo caa no cho arrastava consigo toda a correnteza, num barulho tal de pernas, braos e lamentos que somente a autoridade do rabe e o seu chicote conseguiam organizar a caravana.No se ouvia mais do que lamentos, golpes e *resflegos.0 mais novo dos rapazinhos caiu, por fim, derreado, e durante uns metros foi arrastado pelo resto dos cativos at que o lbio o tomou pela cintura tentando anim-lo.*- Vamos, vamos!... - pediu-lhe. - No te ds por vencido. A estrada est perto...- Deixa-me! - soluou o pequeno.- Caminha, estpido! - insistiu. - No vs que te matam se pras ?Seguiram assim durante um tempo, at que ao longe, rompendo as sombras da noite, fizeram a sua apario duas luzes gmeas que barraram primeiro a descida e se lanaram depois pradaria fora, aproximando-se a grande velocidade.45Breve se percebeu, acalmando o silncio da noite, o rugir de um pesado motor, e Suleiman R'Orab ordenou que se deitassem no cho.Do Sul, chegando de Fort-Archembault, surgiram logo osfocos de um veculo mais ligeiro, e semiocultos, entre as altas gramneas ressequidas, cativos e guardas observaram como os raios de luz caminhavam uns para os outros.0 camio foi o primeiro a passar por eles, a no mais de cinquenta metros, e um quilmetro adiante cruzou-se com o queera um jipe, que se perdeu de vista para o noroeste.Quando se fez de novo silncio, o sudans ps-se de p.- Andando! - ordenou. - Ainda falta muito caminho. A coluna comeou a endireitar-se penosamente, mas o rapazito quedou-se no cho, incapaz de novo esforo.0 lbio observou-o um instante, agitou a cabea negativamente e foi ter com Suleiman.- Este no d mais um passo... - disse. - E eu no o posso carregar toda a noite...- Aparta-o do grupo - ordenou o sudans.0 lbio disps-se a obedecer, mas Amin interrompeu-o comum gesto:- Espera! - pediu. - Eu o farei... Depressa os alcanarei... Basta seguir at ao rio...Suleiman observou com dureza:- No podes pensar noutra coisa?... - inquiriu. - Est bem! ... Faz o que quiseres...Agitou o brao indicando caravana que se pusesse de p e Amin ficou para trs, junto do rapaz, a quem havia tirado as correntes.Os cativos reiniciaram a marcha e, conduzidos por Suleiman epelo lbio, atravessaram a estrada perdendo-se nas sombras.Amin permaneceu de p, imvel, at se assegurar de que osoutros estavam longe. Depois baixou a vista para o rapaz, que o contemplou com grandes olhos escuros muito abertos. Parecia uma gazela assustada, derrubada pela primeira patada de um leopardo, esperando o fim.0 negro inclinou-se devagarinho, cravou um joelho no cho e contemplou-o de perto. Percebia-se nitidamente a ofegante respirao da criatura e era tanto o seu medo que parecia incapaz de romper em pranto.A mo de Amin desceu pouco a pouco e comeou a *acari*ci-lo.0 cuscuz de Madame era realmente fabuloso. No podia comer-se melhor no mais sofisticado restaurante de Tnger ou Casabranca, nem ainda em El Almudia de Madrid, que uma noite Ndia elogiou.0 vinho estava na temperatura ideal e os queijos, recm- ~importados, num ambiente agradvel de toalhas vermelhas, mveis escuros, lmpadas de pergaminho e magnfico ar condicionado.- Pena que o resto do hotel no esteja mesma altura! -lamentou-se David.- Eu paro pouco no hotel e por isso o prefiro ao Chadienne. Aquela comida cansa-me...Thor Ericsson acabou o seu caf, enxugou o bigode branco, acendeu um charuto e lanou uma curta olhadela que realou ainda mais os infinitos ngulos da sua cara e as profundas olheiras que rodeavam os seus olhos cor de gua.- Bem... - aceitou. - Seria absurdo continuar negando a minha identidade. Efectivamente - admitiu - dirijo em Fort-Lamy uma empresa de importaes, mas, ao mesmo tempo, tenho o cargo de delegado local da Comisso para a Abolio da Escravatura. Como compreender, um ttulo que me honra, mas, por razes de segurana pessoal, convm-me manter segredo. No mais de vinte pessoas conhecem no Chade a minha verdadeira actividade e peo-lhe que a no divulgue.- Tem a minha palavra... - assegurou. - Pode voc ajudar-me?0 sueco fez um largo movimento que no queria dizer nada.- Como saber?... Por desgraa, a Comisso para a Abolio da Escravatura igual Sociedade Antiesclavagista de Londres, ou a todos os organismos oficiais e privados que lutam contra o trfico de seres humanos e tm muito melhor inteno do que meios ao seu alcance. Moralmente, conta com todo o meu apoio, mas o que o senhor necessita no moral, mas de um exrcito para rastrear as pradarias, estepes e desertos.47-Conseguirei alguma coisa das autoridades chadianas?...- Duvido... Mais facilmente obter, extraordinariamente, o apoio das foras francesas. Tm aqui um contingente de legionrios e pra-quedistas encarregados de travar as tribos do Norte... Tentarei junto do coronel Bastien-Mathias que desvie a nosso favor uns tantos homens e um par de avies...David aguardou que o criado acabasse de lhe servir o conhaque num grande copo quente, saboreou-o devagar e observou o seu interlocutor. Por fim, decidiu-se:- Falaram-me no Grupo bano... Que sabe dele? Agora foi Thor Ericsson que bebeu demasiado devagar antes de decidir-se a responder:- Esperava a pergunta - disse. - Imaginava que j algum lhe teria falado nele...- Existe?... Afirmou pausadamente.- Sim. Creio que ainda existe.- Onde posso encontr-lo? Encolheu os ombros num movimento fatalista.- Quem saber dizer? 0 Grupo bano como a sombra da guia... Nunca passa duas vezes pelo mesmo ponto.- verdade o que contam deles?... - inquiriu inquieto.- Que lhe contaram?... Que so espies, terroristas ou agentes de Israel?... No os escute... - negou. - Ningum sabe realmente quem so, porque lutam e s ordens de quem lutam... - Fez uma pausa e sorriu ironicamente. - Nem sequer- Poderia ser, efectivamente, uma nova verso do Esquadro Branco?Thor Ericsson demorou a responder.- No o creio - disse por fim. - 0 Esquadro nunca ocultou a sua actividade e tinha o seu quartel-general na prpria *Trpolis. Bastava ir l v-lo. Eram rapazes de boas famlias, milionrios, namaioria, que lutavam por amor aventura e liberdade... Morriam como heris, dando o rosto ao perigo... Duvido que esse punhado de fantasmas que se move na sombra tenha alguma coisa a ver com eles... Se o que fazem digno e belo, porque se ocultam?...- E voc, senhor Ericsson? Se na realidade o delegado da Comisso para a Abolio da Escravatura... porque se oculta?...0 sueco mexeu-se na cadeira, como que incomodado:48- No o mesmo... - protestou. - Se se apregoasse quem sou, estaria exposto a que qualquer esclavagista me assassinasse em qualquer ruela... Eles esto armados e sempre em plena luta... Porqu ocultar a sua identidade, incluindo a mim?- Essa uma pergunta qual s eles podem responder, e tenho de encontr-los. Aferrar-me-ei a qualquer esperana de ajuda... _ Desejo-lhe sorte, mas vai ser muito difcil ach-los... H um ano nem sequer se falava neles. Se ainda existem, devem estar escondidos em qualquer canto do deserto... j se deteve a pensar no tamanho do Chade? maior do que a Frana e a *Espanha juntas e tem apenas quatro milhes de habitantes, dispersos por essa imensa geografia... Quase no existem estradas, caminhos, aeroportos, nem via alguma de comunicao... Se no quiserem que os encontre, no os encontrar nunca.- Isso pode-se aplicar tambm aos raptores de minha mulher, e, entretanto, asseguro-lhe que a encontrarei... Se esse grupo vive no deserto, necessitar de abastecer-se... Em algum stio haver algum que lhe fornea comida, armas e munies... No so fants: tm de viver... Tero famlia em qualquer stio, digo eu...- Famlia?... - Ericsson interrompeu se no movimento de levar a ponta do delgado charuto aos lbios. 0 seu pensamento estava muito longe, ainda que aparentemente tivesse a vista fixa mais para l dos haussas que vendiam estatuetas de madeira debaixo das rvores da Praa da Independncia. Meneou a cabea negativamente. - No ... No creio que ningum tenha famlia aqui em frica, mas ...- Qu?... - inquiriu com ansiedade.0 outro olhou-o; parecia pouco convencido:- No mais do que um rumor... E o Chade...- Sim, eu sei - interrompeu. - 0 Chade a terra dos boatos... Qual esse rumor?...- H um par de anos chegou a Fort-Larny uma rapariga... Viveu um tempo naquela casa do outro lado da praa e montou um colgio de prvulos na estrada que leva ao cemitrio... Disse-se que era a amante de um ministro, que a tinha encontrado num cabaret de Trpolis... Mas o ministro fugiu com uma grande soma e ela continuou aqui, sem que, ao que parece, o assunto a tivesse afectado... Foi ento quando algum me disse, muito confidencialmente, que na realidade era a amante de um membro49do Grupo bano. 0 meu *informador assegurava que cada trs ou quatro meses vinha v-Ia, ficava uns dias e desaparecia outra vez... Como lhe digo, no so mais do que vozes.- Como posso chegar a esse colgio?... Thor Ericsson consultou o relgio.- uma e meia... A esta hora costuma passar na sua carrinha apanhando os garotos... s duas continuam as classes... Eu o levarei.- No vai criar-lhe problemas misturar-se com isto?...- possvel... - esmagou o charuto no cinzeiro e levantou os olhos. -Decerto... Quem o mandou falar comigo?...- Prometi guardar segredo... Disseram-me: "*Ericsson, ou contrata mercenrios, ou traficante de escravos, ou delegado das Naes Unidas... Intente voc averigu-lo... "*- E se se desse o outro caso?... Se eu fosse traficante? No respondeu. Ningum parecia tomar em conta a sua pergunta. Acabou at ao fim o seu copo de conhaque e *p-lo de lado.- Pode haver europeus metidos nisto?...- Custa-me dizer que sim - replicou. - No de um modo directo, dedicados caa de escravos, mas sabe-se de alguns que manejam o negcio desde o Cairo, Cartum e Adis Abeba... Tambm h pilotos que os transportam na ltima etapa da viagem, capites de barcos, condutores de camies... Mas a mo dos europeus costuma estar mais acima, a nvel internacional. Cada vez que a ONU pensa tomar medidas contra os pases que aceitam a escravatura, algum se interpe... Algum que, em outros casos, ergue sempre a bandeira da igualdade e dos direitos humanos... Quer saber a razo?... - Fez uma pausa, como desejando criar um pequeno suspense. *-A razo a que move o mundo, meu amigo... A de sempre: petrleo!... - concluiu com nfase.- Petrleo?- Exactamente... Todos os principados e emirados da pennsula Arbica tm petrleo... E esses prncipes e emires gostam de escravos... No unicamente para conseguir carne fresca para os seus harns ou pelo seu eterno vcio de violar crianas... uma espcie de tradio histrica; uma necessidade de se sentirem superiores. Apesar dos seus *Cadillacs de ouro, das suas duzentas mulheres e da sua corte de aduladores, esses xeques padecem, no fundo, de um grande complexo: de h uns50anos para c, o petrleo transformou-os, de ensebados pastores nmadas que vivem em plena Idade Mdia, nos poderosos senhores do mundo, que se permitem ameaar as naes civilizadas com o simples gesto de lhes cortar a proviso de energia. Porm, no fundo, esto conscientes da sua ignorncia e de quesem a ajuda alheia no saberiam nem extrair esse petrleo de que to vaidosos so... Vo Europa e gastam fortunas em Monte Carlo, mas sentem que os miram como a bonecos de feira, e se de sbito a Humanidade deixasse de necessitar de petrleo, voltariam a morrer de fome nos seus desertos...- Que tem isso a ver com a escravido?- Ser dono da vida de seres humanos, dispor deles a seucapricho, mat-los em momentos de tdio, a mxima sensao de poder que podem experimentar. Sabia que alguns compram homens jovens e fortes, bons corredores, para se divertirem, dando-lhes caa como se fossem antlopes?...- No acredito... Ainda que mo jure, no acredito... -Se algum dia passar por Londres, visite o 3.*0 andar do n.*O 49 de Vauxhall Bridge. Pergunte ali pelo coronel Patrik Montgomery, secretrio da Sociedade Antiesclavagista e diga-lhe que vai da minha parte. Ele pode inform-lo, mostrando-lhe documentos irrefutveis e fotografias arrepiantes. 0 nosso mundo moderno, o do homem que vai Lua, a revoluo sexual, no se envergonha de admitir que existem ainda milhes de escravos, e mais de trs mil so roubados cada ano em frica e conduzidos como animais at Arbia... - Ps-se de p. - mhor irmos embora - disse. -Est na hora, e falar deste assunto pe-me de mau humor.Saram do grande ptio do hotel coberto de flores e com uma diminuta fonte no meio. Todos os quartos dos dois nicos an-dares davam para ele, o que resultava um estranho aspecto de edificio colonial sul-americano. Ericsson entrou um instante no n@*O 4, que sempre estava aberto, e saiu com um molho de chaves.Fora estava o seu automvel, um velho *Simca, pintado de azul.- Penso troc-lo todos os anos - comentou. - Mas di-me destroar um carro novo por estes caminhos do demnio...Abriram passagem por entre nuvens de ciclistas e pees, passaram diante do Hotel Chadienne e seguiram pela margem do rio, para o norte, em direco ao lago. Uma manada de vacas, de cornos gigantescos, caminhava calmamente frente deles,51ocupando toda a estrada, e tiveram de armar~se de pacincia at que aos pastores lhes apeteceu *dar-lhes passagem.- So fulb - explicou. - Gente orgulhosa e de mau carcter... Para eles, ser independente significa isto: meter o gado nas ruas e estradas e esgotar a pacincia ao europeu. Se tocar o claxon, correm-no pedrada, porque esto no seu pas... Problemas da descolonizao...- Cr que deveriam continuar a depender da Frana?... -No, meu amigo... No quis dizer isso, e no pretenda enredar-me numa discusso sem esperana... Aqui est a casa!Detiveram-se ante uma edificao amar