Upload
lydiep
View
214
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
que corpo é aquele que imerge no mar?
Trabalho final de História Antiga II Prof. Francisco Murari Pires Felipe de Medeiros Guarnieri, No USP 5712278
Dept. de História, FFLCH, USP
Uma análise do mito de Ícaro em quatro instâncias
e além
que corpo é aquele que imerge no mar? e d
PINDARVM·QVISQVIS·STVDET·AEMVLARI
IVLE·CERATIS·OPE·DAEDALEA
NITITVR·PENNIS·VITREO·DATVRVS
NOMINA·PONTO.
PÍNDARO QUEM QUER QUE DESEJA EMVLAR,
JULO, AO CÉU MUNIDO DE DEDÁLIAS ASAS
ALÇA DE CERA, CONDENADO À FAMA
EM NOVÍSSIMO MAR.
Pindarum quisquis studet aemulari, Iule, ceratis ope Daedalea nititur pennis vitreo daturus
nomina ponto.
Quem com Píndaro se esforça por rivalizar, Julo, fia-se em asas com cera unidas pelo engenho de Dédalo, e o seu nome dará
a um limpído mar.
Q. HORATI FLACCI CARMINVM
LIBER IV.II vv.1-4 trad. Pedro Braga Falcão (Cotovia, 2008)
* Queda de Ícaro Anônimo
Marfim?, s.XVII
Musée Antoine Vivenil, s.XVII
Fonte: Wikipedia
Apontamentos: significações.
O texto não tem maiores pretensões que apontar significados
– tem ele caráter pro(me)téico, inacabado, no que o autor confessa
humildemente ainda não ter capacidade para concluir, posto que
propôs-se o desafio de enfrentar esta quimera. O pano do texto,
todavia, cai a cabo da análise de James Joyce, no que os fragmentos
de uma conclusão são afterthoughts, a partir de Hannah Arendt e
Walter Benjamin e outros autores, das implicações da balança entre
fardo/fio da tradição rastreada partir das fontes no texto.
O rodapé aponta para trechos usados no corpo do texto, ao
passo que as obras referidas estão todas listadas na bibliografia.
Citações de autores e teorias não foram todas referenciadas, para não
acumular discussões paralelas nas notas. Tomamos a liberdade de
revolver num mito a partir de diversas fontes diferentes, nem todas
disponíveis no Heros, para assim estabelecer o diálogo entre antigos
e moder(íssim)os e questionar, mesmo que minimamente, as
modalidades da construção da tradição no corpo (textual?) da
história humana e as vicissitudes, sempre reinterpretadas, da
condição humana a partir de Ícaro, fundamentando-nos em Hannah
Arendt. Tomamos a liberdade de perder-nos nel mezzo del cammin –
convidamos o leitor para uma viagem, do labirinto de Knossos, ao
suor da terra, para as profundezas do Oceano e, após, à Lua.
Questionamos a tradição: o que ela é? Sua função:
movimento. Certamente, não um museu onde os bustos empoeirados
dos “grandes homens” são expostos como modelares; a tradição,
antes, é um embate do histórico com o (pretensamente) ahistórico.
Formula-se como a herança do pecado original em Santo Agostinho,
em dialética com o livre-arbítrio: a busca de redenção. Em Hegel, o
particular e o geral no Espírito. No marxismo, a tradição é a dialética
entre os homens que fazem sua história e a história herdada de
gerações anteriores que lhes pesam como a corda da forca no
pescoço: entre o trabalho humano e leis (quase) naturais também
feitas pelo homem. Aqui, tomaremos a tradição como o conjunto de
símbolos revolvendo em círculos narrativos –μύθορ.
Interpretações, se múltiplas, estabelecidas em dois núcleos
distintos, entre positivo e negativo: há como fugir da dialética, e
estabelecer núcleos hermenêuticos em constante movimento de
estilhaço e constante (re)construção do saber (histórico)? Quatro
importantes autores apontaram esta possibilidade entre os séculos
XIX e XX, em aspecto teórico; o terceiro, poético. Friedrich
Nietzsche em Além do bem e do mal (1885), o eterno retorno e o
esforço em estabelecer um tempo não-linear, isento da ingenuidade
dos fatos e (in)sustentado em interpretações sempi-dependentes do
observador. O Jetztzeit de Walter Benjamin emerge nos escombros
da dialética da experiência, não mais possível após ruírem as vigas –
físicas e intelectuais – do “Zeitgeist/mind of Europe”: o romance,
gênero trágico por excelência, vem no resgate da tradição ao elevar a
experiência individual do sujeito à experiência comunal da narração
histórica (e ficcional). Hannah Arendt em A Condição Humana
(1958) afirma que, no caminhar das coisas, a tradição aponta seu
precipício – implicações estéticas, filosóficas, sociais e até mesmo
físicas. Tomaremos aqui a figura de Ícaro como arquétipo do mito
de/reconstruído: a condição humana, embate entre trabalho e
natureza, mãos e molde, por excelência. Em terceiro lugar, afamada
postulação de T. S. Eliot no ensaio Tradition and the individual
talent (1919), a constante reinterpretação do passado (e,
consequentemente, do presente) segundo os (sempi-novos)
preconceitos do presente: na crítica literária, interpretação
potencializada já em Samuel Johnson e Samuel Taylor Coleridge. O
quarto registro, poético: Ezra Pound, il miglior fabbro, n‟Os Cantos:
to “see again”
the verb is “to see,” not “walk on”
i.e., it all coheres all right
even if my notes do not cohere.1
1 Ezra Pound, Canto CXVI In The Cantos (New Directions, 1993), p.816.
Hércules vintecentista cuja tentativa de construir um épico
homérico, abarcando a multiplicidade das fraturas do tempo de
indivíduos e massas, deu com a(s) história(s) n‟água. Pound
demorou décadas para perceber que o século XX não abarcaria um
novo Homero, nem um novo Dante. A tradição – se ocidental,
europeia, inglesa-francesa-alemã; aqui não nos importa o viés
antropológico da história, e sim seu aspecto ontológico, o
maquinário da construção da tradição na supervivência de todos os
tempos. Isto é, o pensamento político e filosófico inventado por
Platão, o histórico por Tucídides, o poético por Homero –
despedaçou-se e precisa ser (re)construída por seu interlocutor: nas
palavras de T. S. Eliot, permanentemente conquistada pelo talento
individual de cada um.
Portanto, até que ponto não é esta tradição uma invenção e
interpretação ela-mesma? E existiu uma unidade de fato de
pensamento sobre a multiplicidade no mundo antigo, ou trata-se de
uma idéia propagada pela coleção de ruínas elevadas pelos
Renascentistas? Um exemplo, que “Aristóteles” é o de Descartes, e o
de outros homens e tempos, cuja parte mais importante da obra –
seus diálogos – perdeu-se? E os ideais moldados pelas mãos dos
alexandrinos, dos renascentistas? Homero toma forma primeira
apenas no governo de Pisístrato, e o Homero de Platão é deveras
diferente do de Calímaco, e do Homero preservado nos códices
medievais. O homem do século XX inventou ou descobriu que a
história está em constante movimento? Ambos? E até que ponto os
modernistas não se apoiam numa reconstrução da tradição, longe da
ideia futurista de construir à revelia do herdado? Foi o fio que ligava
Homero a Wilamowitz arrebentado? Existiu esse fio?
E, no entanto, deve haver, no mais pequeno poema de um
poeta qualquer coisa por onde se note que existiu Homero2.
A tradição: conjunto de símbolos revolventes em núcleos
narrativos, estabelece-se em mitos, arquétipos, alegorias, sendo todas
representações de verdades idealizadas; isto é, sempre
(re)interpretadas. Ícaro se nos apresenta como alegoria do embate
entre trabalho e natureza nas Metamorfoses de Ovídio; alegoria,
veremos, retomada por Peter Bruegel, William Carlos Williams e
James Joyce. E, se os Renascentistas apoiaram-se na autoridade de
Cícero e Aristóteles, e na redescoberta do grego, os modernistas
2 Fernando Pessoa, Obra em prosa (Nova Aguilar, 1995), p.147.
apoiam-se em Virgílio e Horácio conjugados por Dryden e Golding,
Petrarca e Shakespeare. Não queremos aqui afirmar uma construção
retilínia de uma tradição que se confunde muitas vezes com o
pensamento histórico: a história, a nosso ver, é constante movimento
entre lembrar-se e esquecer-se: seu reduto mais secreto é a memória.
O triálogo entre antigos e modernos e moderníssimos. Santo
Agostinho aparecerá nos penhascos destas montanhas, cuja encosta
ainda se encontra a nossa vista: nos sumus tempora: quales sumus,
talia sunt tempora3.
A tradição é (re)construção: trabalho humano fundamentado
dentro do, a partir do, no tempo: memória. Abaixo, o material da
forja modifica o conjunto das idéias; e vice-versa: há o movimento.
A história descasca-se em camadas de uma cebola.
Este texto terá quatro faces:
I. MITO. Apresentação e a alegoria de Ícaro em Ovídio.
II. O ARTÍFICE. A representação do arquétipo no
diálogo dos antigos e modernos. A μίμηζιρ visual de
3 Santo Agostinho, sermão 80,8. Encontramos a versão latina em
http://www.augustinus.it/latino/discorsi/index2.htm. A sentença é proverbial.
Ovídio na Paisagem com queda de Ícaro de Pieter
Bruegel, o Velho.
III. O OBSERVADOR. A representação da representação
no diálogo entre modernos e moderníssimos. A
μίμηζιρ verbal de Bruegel em Williams Carlos
Williams.
IV. DÉDALO. A representação da representação da
representação. O triálogo entre antigos e modernos e
moderníssimos. Aqui, a geometria temporal não é
linear, tampouco platônica. O cume em James Joyce.
As implicações do diálogo entre antigos e modernos
no modernismo.
Comecemos por Ovídio.
I. Ikarus! Ikarus! Jammer genug.4
Daedalus interea Creten longumque perosus
exsilium tactusque loci natalis amore
clausus erat pelago. “terras licet” inquit “et undas
obstruat: at caelum certe patet; ibimus illac.
omnia possideat, non possidet aera Minos.”
dixit et ignotas animum dimittit in artes
naturamque novat. nam ponit in ordine pennas,
a minima coeptas, longam breviore sequenti,
ut clivo crevisse putes. sic rustica quondam
fistula disparibus paulatim surgit avenis.
tum lino medias et ceris adligat imas,
atque ita compositas parvo curvamine flectit,
ut veras imitetur aves. puer Icarus una
stabat et, ignarus sua se tractare pericla,
ore renidenti modo, quas vaga moverat aura,
captabat plumas, flavam modo pollice ceram
mollibat lusuque suo mirabile patris
impediebat opus. postquam manus ultima coepto
imposita est, geminas opifex libravit in alas
4 O coro espanta-se e ecoa Ovídio com o alçar de Euforião no Fausto II, ato III,
vv.9901-9902 de Goethe (editora 34, 2007); na trad. de Jenny Klabin Segall:
“Ícaro! Ícaro, ah! Mortal pesar!”, p.723.
ipse suum corpus motaque pependit in aura.
Instruit et natum “medio” que “ut limite curras,
Icare,” ait “moneo, ne, si demissior ibis,
unda gravet pennas, si celsior, ignis adurat.
inter utrumque vola. Nec te spectare Booten
aut Helicen iubeo strictumque Orionis ensem:
me duce carpe viam.” pariter praecepta volandi
tradit et ignotas umeris accommodat alas.
Inter opus monitusque genae maduere seniles,
et patriae tremuere manus. dedit oscula nato
non iterum repetenda suo, pennisque levatus
ante volat comitique timet, velut ales, ab alto
quae teneram prolem produxit in aera nido,
hortaturque sequi damnosasque erudit artes
et movet ipse suas et nati respicit alas.
hos aliquis tremula dum captat harundine pisces,
aut pastor baculo stivave innixus arator
vidit et obstipuit, quique aethera carpere possent
credidit esse deos. et iam Iunonia laeva
parte Samos (fuerant Delosque Parosque relictae),
dextra Lebinthos erat fecundaque melle Calymne,
cum puer audaci coepit gaudere volatu
deseruitque ducem caelique cupidine tractus
altius egit iter. rapidi vicinia solis
mollit odoratas, pennarum vincula, ceras.
tabuerant cerae: nudos quatit ille lacertos,
remigioque carens non ullas percipit auras,
oraque caerulea patrium clamantia nomen
excipiuntur aqua: quae nomen traxit ab illo.
at pater infelix, nec iam pater, “Icare,” dixit,
“Icare,” dixit “ubi es? qua te regione requiram?”
“Icare” dicebat: pennas adspexit in undis
devovitque suas artes corpusque sepulcro
condidit, et tellus a nomine dicta sepulti.5
O testemunho poético mais contundente6 da história de Ícaro
e Dédalo na antiguidade é uma pequena seção no canto VIII das
Metamorfoses do poeta latino Públio Ovídio Nasão (43 a.C. – 17
d.C.), as quais provavelmente vieram a tona no ano 8, sob o
principado de Augusto, antes do poeta ser condenado ao exílio no
Ponto. As Metamorfoses são uma coleção de mitos, transformações
5 P. Ovidi Nasonis Metamorphoses VIII, vv.183-235 (Oxford, 2004), p.222-224.
Referimos a tradução de Paulo Farmhouse Alberto em Ovídio, Metamorfoses, pp.201-202 (Cotovia, 2007). 6 Não é, porém, o único. O evento é mencionado passim em poetas gregos
arcaicos, embora, no que constam as fontes conhecidas, o enfoque seja sempre em
Dédalo. Pseudo-Apolodoro narra o episódio na Biblioteca, Diodoro Sículo na
Biblioteca da História (4.64) e Higino nas Fábulas.
de homens/animas/plantas, histórias alegóricas e da tradição
mitológica Greco-romana que, na esteira da poesia alexandrina,
(re)constrói-se ludicamente (com)funde deliberadamente realidade
com ficção.
Ícaro e Dédalo tentam fugir do labirinto em Creta, construído
a mando de rei Minos a fim de esconder o Minotauro. O Hades não
comporta rotas de escape por terra: por mar, a fúria de Netuno os
acabrunha, como a Odisseu. Resta fugir pelo céu – omnia possideat,
non possidet aera Minos – e, assim, naturamque novat - (re)inventa
a natureza. Ícaro e Dédalo tentam vencer a força natural através da
arte humana: do trabalho. Falham miseravelmente.
A queda de Ícaro é a glorificação de Apolo: do Sol que
derrete as ceras daquele que tenta alcançar os deuses. É a
insignificância do craft, da Kunst do homem frente ao poder
incomensurável do natural. Empédocles afogando-se no Etna: Ícaro
afoga-se na costa de Samos. Excesso de transgressão do homem:
como Creso em Heródoto, como a Atenas de Tucídides, Ícaro é a
acometido pela ὕϐπιρ – no mito, seu arquétipo – incorre-lhe, por isso
mesmo, a νέμεζιρ. Ou é ele vítima da inexperiência, da atmosfera? O
artista é transgressor ao desafiar a natureza e tentar imitá-la – ut
veras imitetur aves? Voa, tentando atingir o Sol: tenta ser um deus.
Transgride ao desafiar as leis (políticas) dos deuses (chefes)? Foi
esta precisamente a causa do exílio de Ovídio: questionar a
veracidade do mito – e o mito é, em Roma, arma política.
Lembremo-nos da dimensão política do mito.
Encontramo-nos, nas Metamorfoses, em violento embate
entre a imitatio e a aemulatio da natureza: fas ou nefas? Até que
ponto os autores antigos poderiam entortar o mito, e, no caso da
natureza, tomando as rédeas da (μεηά)θύζιρ, submetê-la à ηέχνη?
Esta dimensão também seria (im)possível na historiografia,
submetendo as res gestae ao domínio da ars, nos termos latinos? Em
que medida podemos confiar na veracidade postulada por Tito Lívio
na Ab urbe condita, a narrativa oficial do Império Romano?
Bastante conhecida é a censura que Platão faz à μίμηζιρ no
livro X da República e no Íon: o poeta, representante de terceira
instância, pois (re)representa a partir das representações materiais na
natureza, está demasiadamente longe da verdade cujo monopólio
pertence ao filósofo, e assim não será admitido na vivência da πόλιρ.
Poetas são perigosos: (re)representam a realidade com mentiras e, no
aspecto construtivo, procuram emular o movimento da natureza: da
realidade fenomênica7: para Platão, um absurdo em termos. A
história, fria, não tem, a princípio, tais pretensões. Ela trata de
particulares, não de gerais. A dimensão idealista da poesia em Platão
é complementada pela análise técnica da tragédia na Poética
aristotélica; nela, o filósofo recupera a função social da poesia, e
releva a importância do provável frente ao possível e efetivo8.
Importa a verossimilhança e unidade do enredo: para a tragédia ser
verídica, ela deve ser falsa: tenhamos aqui qualquer tipo de texto.
Até que ponto o mito (não) é uma invenção do homem? Até que
ponto os deuses (não) são invenções humanas? Até que ponto a
história dos particulares (não) se pauta por um geral, fio condutor do
7 Platão, República, trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado (Martins Fontes,
2006) 396b-400e, seguindo a discussão acerca da elocução na poesia; “Então,
disse eu, se não for um orador como esse, quanto mais reles for, mais imitará tudo
e nada julgará indigno de si, a tal ponto que imitará com seriedade, e diante de
muitas pessoas, mesmo aquilo de que falávamos agora, trovões, rumor do vento e
do granizo, ruído dos eixos e das roldanas dos carros e som de trombetas, flautas,
siringes e de todos instrumentos e ainda a voz de cães, ovelhas e pássaros.”,
pp.102-103. Até que ponto o historiador, ao tentar aproximar-se do wie es
eingtlich gewesen, não é culpado da mesma transgressão em relação ao tempo? 8 Aristóteles sobre a Tragédia e a Epopéia em On Poetics, trad. Ingram Bywater
(University of Chicago, 1952), 1460a; “A likely impossibility is always preferable
to an unconvincing possibility. The story should never be made up of improbable
incidents; there should be nothing of the sort in it”, p.696. Ainda mais verdadeiro
para a escrita crítica historiográfica: verossimilhança: a construção da verdade
numa narrativa coesa e concisa, interpretar os indícios deixados pelo/no tempo.
fardo narrativo, ficção que sustenta os detalhes, verdade construída
no e a partir do texto? O mesmo em Tucídides: a causalidade é o
falseamento – verdadeirização – dos eventos reais. Nenhuma história
é compreensível se não narrada – se não se constrói uma verdade
unívoca para que a compreendamos.
Longa digressão cujo ponto é unívoco: encontramo-nos, em
Ovídio, no berço da tradição ocidental. E, no que tange à História
que garante sua (pretensa) objetividade ao trabalhar cientificamente
com documentos, interessa-nos lembrar que tal método não foi
descoberto, e sim inventado por Tucídides. A tradição é uma
invenção.
Estabeleçamos os núcleos em Ovídio: de um lado, a tradição
literário-mitológica (a imitatio); de outro, o trabalho (o aemulatio); a
tradição e a possibilidade de transgredi-la: no mito de Ícaro, a
natureza e a ciência humana. Utilizando conceitos gregos,
construamos um tripé entre θύζιρ e νόμορ e ηέχνη.
Caelique cupidine tractus altius egit iter: voltamos a Ovídio;
saltemos para Bruegel.
II. né quando Icaro misero le reni9
Representação imagético-narrativa do mito de Ícaro e Dédalo é o
quadro Paisagem com queda de Ícaro, de Pieter Bruegel, o Velho.
Feito pelo pintor durante sua estadia em Bruxelas, na década de
1560, a tela nos apresenta interpretação outra da queda de Ícaro.
Ovídio estranhado: Ícaro, mero detalhe no canto inferior
esquerdo do quadro. A representação aqui não é o puro mito, mas o
resultado alegórico que se encontra no trecho acima: a dialética entre
o homem que molda e batalha a natureza através do trabalho e a
inexorabilidade desta, uma vez que o homem dela depende para
sobreviver – e, segundo suas leis, condenado a morrer. Nos sumus
etiam tempora.
Primeiro, a superfície. Os trajes do agricultor e do pastor, os
instrumentos, a cidadela na encosta, as embarcações: elementos
todos pintados como se do século de Bruegel, em nenhum momento
9 Dante Alighieri, Inferno, canto XVII, vv.109-111 – “né quando Icaro misero le
reni / senti spennar per la scaldata cera, / gridando il padre a lui: „Mala vita
tieni!‟”; Dante Alighieri, Commedia: Inferno (Mondadori Meridiani, 1991), p.529.
da Antiguidade – e, no entanto, personagens já presentes em Ovídio,
espécie de ut poesis pictura10
de sua fonte.
hos aliquis tremula dum captat harundine pisces
aut pastor baculo stivave innixus arator
vidit et opstipuit, quique aethera carpere possent
credidit esse deos.
Acreditaram serem Dédalo e Ícaro deuses. Ícaro, do qual vemos
apenas as pernas de um corpo que i/emerge n/do mar, dista das
idealizações e dramaticidade de um Rubens. O retrato de Bruegel é
bastante sóbrio e tácito, sem paixão. Encobre o quadro a perspectiva
comezinha de mais um dia de trabalho; o sofrimento de quem se
afoga é ignorado: about suffering they were never wrong, the Old
Masters11
; de Ícaro não mais que uma mão o aponta. A
10 O expressão inversa é de Horácio, v.361 da Ars Poetica, In Opera (Oxford,
1901), p.264 11 Ver W. H. Auden, Collected poems (The Modern Library, 2007), p.179.
Preferimos não nos estender sobre o poema no texto, por acreditar que fugiria da
interpretação proposta; embora seja interessante compará-lo ao Landscape with
the fall of Icarus, de William Carlos Williams: ambos são registros poemáticos,
assaz diferentes, do mesmo quadro de Bruegel.
impessoalidade é conquistada pela perspectiva quase puramente
espacial do quadro: momento comedido de um movimento.
Aprofundemos. Um peregrino, trabalhador comum, desloca a
queda de Ícaro do centro do quadro: o agricultor no centro
conduzindo o arado. Quem é ele? É Adão, o homem após a queda,
que no suor do rosto comerás o pão, até que se torne a terra; porque
dela foi tomado; porquanto é pó e em pó se tornará12
? Bruegel, ao
adaptar o trecho de Ovídio, realiza-o através de seu resultado
alegórico, adicionando o elemento cristão, e invertendo a
interpretação mito: o resultado da ὕϐπιρ humana não é a efetivação
da νέμεζιρ olímpica: a razão humana molda a matéria-bruta da
natureza: o primado da ηέχνη, do trabalho. Hélio, Apolo, o Sol
abateram o homem e reduziram-lhe novamente a sua insignificância:
pouco importa. A morte de Ícaro é o negativo do trabalho dedáleo –
lembremos, o mito continua. Dédalo consegue fugir do labirinto e
pousar no reino de Cocalo, onde se torna amigo íntimo do rei e
mecânico da corte, gozando de sua genialidade.
12 Gênesis, 3:19.
O mito descentralizado pelo trabalho cotidiano. A história do
passado a serviço da história do presente: Maquiavel reescreve Tito
Lívio13
. Os modernos dialogam com os antigos.
A tradição é uma (re)construção e o passado é uma
(re)interpretação: “deslocamentos da pintura bruegeliana operados
pela e contra a memorização ovidiana”14
.
Ícaro afoga-se.
O fazendeiro continua a arar seu campo.
III. and the European mind stops15
According to Brueghel
when Icarus fell
it was spring
13 Maquiavel, nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (Martins
Fontes, 2007), pp.5-7, toma empreitada filosófica semelhante à recriação visual de
Bruegel em Paisagem com queda de Ícaro. O florentino esforça-se para
compreender seu tempo tomando os livros de Lívio como exemplares, longe de
tornar-se servo de seu mestre; imita-o, contudo adaptando-o ao presente; sua obra
ainda é, portanto, uma imitatio, de Tito Lívio. 14 Francisco Murari Pires, em “A morte do herói(co)”, cf. Bibliografia. 15 Ezra Pound, Canto CXV In The Cantos (New Directions,1993), p.814.
a farmer was ploughing his field
the whole pageantry
of the year was
awake tingling near
the edge of the sea
concerned
with itself
sweating in the sun
that melted
the wings‟ wax
unsignificantly
off the coast
there was
a splash quite unnoticed
this was
Icarus drowning16
16 William Carlos Williams, “Landscape with the fall of Icarus”, orig. pub. o em
Pictures from Bruegel, 1943; In The collected poems of William Carlos Williams,
vol.2 (New Directions, 2001), p.385.
William Carlos Williams, poeta norte-americano, amigo de
infância de Ezra Pound e conhecido explorador do desconhecido no
verso.
Bruegel adapta Ovídio: Williams adapta Bruegel – according
to Brueghel. Terceira instância a partir do mito. Bruegel viu a queda
de Ícaro com os olhos de Ovídio: Williams vê a queda de Ícaro com
os olhos de Bruegel com os olhos de Ovídio.
A concisão e economia de meios em Williams poderiam,
numa primeira leitura, suscitar a mera descrição do quadro; o poema,
entretanto, é narrativo, como o quadro. Versos que se aproximam da
inversão colocada por Bruegel – é, por assim dizer, uma adaptação
verbal consumada do visual – representação da representação. A
disjunção da expectativa, no que Bruegel descentraliza o mito,
traduz-se na sintaxe quebrada, típica da obra de Williams. Os
elementos relevados individualmente por Bruegel são transcriados
entre as paredes do verso por Williams: it was spring, a farmer was
ploughing his field, the edge of the sea <concerned with itself> (a
ação adjunta), a splash quite unnoticed. Ícaro aparece duas únicas
vezes: segundo verso, após o poeta tomar os olhos de Bruegel (com
os olhos de Ovídio), e no último, ação contínua e perene no passado
– presente – futuro.
Ícaro afogando-se.
O fazendeiro continua a arar seu campo.
O poema de Williams nos oferece narração fria e objetiva,
minimamente construída, do quadro de Bruegel. Ausenta-se o mito
em completude; Ícaro, esvaziado da tradição que carrega, subsiste
apenas como substantivo próprio, como subsistiu como duas
pequeninas pernas na tela. Williams, por sua vez, adiciona um
elemento ao episódio a partir de Bruegel a partir de Ovídio: mesmo
se narrativo, o quadro é sempre um momento do movimento – a
perspectiva de Bruegel é quase puramente espacial – off the coast
baliza qual ablativo anglicizado. A poesia, no entanto, é movimento,
ao que se consuma no tempo – na fala. Ícaro cai entre um advérbio –
unsignificantly – e um particípio adjetivado – unnoticed. Contra as
ondas de verbos narrativos no imperfeito batendo nas encostas da
sintaxe rompendo-se, marés obrigam-nos a pausar atentivamente a
leitura de cada ofensiva súbita da cesura e de conjunções; analisa-se
o movimento. Vemos Ícaro cair – it was spring – of the year was –
there was – this was. E Ícaro realiza apenas duas ações – fell e
drowning. Um verbo contínuo inicia o poema, outro finaliza:
according / drowning. Persiste o movimento e a tradição, em cacos
após duas grandes guerras, é (re)construída pelos modern(íssim)os.
O mito, no entanto, esvazia-se, para ser preenchido novamente.
A tradição é uma (re)(re)construção e o passado é uma
(re)(re)interpretação a encosta do mar absorta em si mesma suando
no Sol que derreteu a cera das asas –
IV. et ignotas animum dimittit in artes17
Ícaro afogando-se na costa de Samos: seu nome no mar.
Subimos as rochas da encosta cuja base é o mito nascente em
Ovídio. Meio do caminho, nossos olhos foram os do artífice de
Bruegel, o trabalhador que observa a paisagem e nela a queda de
Ícaro. Alguns metros acima, tomamos os olhos de Williams,
observador dos trabalhadores observando a paisagem e nela a queda
17 P. Ovidi Nasonis, Metamorphoses VIII, v.188; ou, a epígrafe de James Joyce, A
portrait of the artist as a young man (W. W. Norton, 2007).
de Ícaro. O observador do artífice é ele mesmo um artífice. Olhemos
agora aos olhos do vento: aos olhos de Dédalo.
James Joyce, household name do modernismo anglo-
americano, elabora toda sua obra fundamentando-se no triálogo entre
os antigos, modernos e modernistas. O Ulysses, dito inúmeras vezes,
é a Odisséia do modernismo, e não só – é também sua Eneida, seu
Fausto e sua Divina Comédia. Em A portrait of the artist as a young
man, novamente Ícaro e Dédalo, Joyce elabora um bildungsroman a
partir das mudanças estético-sociais na Irlanda no entre-séculos,
entremeio ao embate entre o protestantismo e catolicismo na tradição
cristã da Irlanda, entremeio ao material dos tumultos políticos à beira
da Guerra de Independência do país. Consumando uma comunhão
entre as Metamorfoses de Ovídio – a reelaboração do mito em
personagens arquetípicos – e Santo Agostinho – o Confiteor, centro
do romance, lembra-nos as Confissões do bispo de Hipona, Joyce
recuperará, na queda de Stephen Dedalus, a dimensão política do
mito – desnudar a forja onde se (re)produz a tradição.
O protagonista sofre duas quedas. A primeira queda, icária e
inconsciente, acontece devido à ὕϐπιρ na desobediência da lei divina
pelo pecado da impureza: o sexo com prostitutas. Estamos no
capítulo central do livro, o terceiro. Segue o sermão de São
Francisco, a morte e o inferno divino, lar dos pecadores:
A wasting breath of humiliation blew bleakly over his soul to
think of how he had fallen, to feel that those souls were dearer to God
than his. The wind blew over him and passed on to the myriads and
myriads of other souls, on whom God's favour shone now more and now
less, stars now brighter and now dimmer, sustained and failing. And the
glimmering souls passed away, sustained and failing, merged in a moving
breath. One soul was lost; a tiny soul: his. It flickered once and went out,
forgotten, lost. The end: black cold void waste. (p.122)
A queda, entre Ícaro e também Adão: a ὕϐπιρ é o pecado. A
Dedalus, diferente de Ícaro, é permitida absolvição através do
confessionário e da entrega da alma a Deus, dimensão agostiniana da
obra, consumando-se no capítulo quarto.
Há, no mesmo capítulo, uma segunda queda, mas é ela
Icária? É o mesmo mito, sem dúvidas. Agora, a queda não se dá
ocorre pela ὕϐπιρ, mas pela recusa consciente da lei divina, a
afirmação da lei humana, o alçar vôo do Dédalo:
Now, as never before, his name seemed to him a prophecy. So
timeless seemed the grey warm air, so fluid and impersonal his own
mood, that all ages were as one to him. [...] Now, at the name of the
fabulous artificer, he seemed to hear the noise of dim waves and to see a
winged form flying sunward above the sea, a prophecy climbing the air.
What did it mean? Was it a quaint device opening a page of some
medieval book of prophecies and symbols, a hawlike man flying sunward
above the sea, a prophecy of the end he had been born to serve and had
been following through the mists of childhood and boyhood, a symbol of
the artist forging anew in his workshop out of the sluggish matter of the
earth a new soaring impalpable imperishable being?
[...]
His soul had arisen from the grave of boyhood, spurning her
graveclothes. Yes! Yes! Yes! He would create proudly out of the freedom
and power of his soul, as the great artificer whose name he bore, a living
thing, new and soaring and beautiful, impalpable, imperishable. (pp.148-
149)
Dois passos além de Bruegel, no qual o contraste entre o
artífice observador – Adão – e aquele que cai – Ícaro – ainda é tênue
e vaga; e, noutra direção, um passo além da frieza narrativa de
Williams; em Joyce, as tradições Greco-romana e Cristã copulam:
Stephen Dedalus (con)funde-se com Ícaro e é o mesmo que Adão e é
além – existe no único presente, tempo de agoras, ao que Dedalus
alça o vôo para além da adolescência – é a maturidade do
pensamento, a afirmação do homem seguinte à recusa de Deus, o
surgimento do indivíduo, o artífice consciente de si, o longtemps, je
me suis couché de bonne heure de Proust, o romper final do fio da
tradição!
Stephen Dedalus, o Ícaro-Adão joyceano, procura fugir do
labirinto do próprio subconsciente ao alçar vôo em direção às nuvens
– to live, to err, to fall, to triumph, to recreate life out of life! (p.150)
– se cair, que abracemos as ondas e vasculhemos o desconhecido no
fundo do mar! – tornando-se uma força natural ao modificar the
sluggish matter of the earth em uma new soaring impalpable
imperishable being. A queda de Ícaro não será mais a mesma como
interpretamos até então. Entretanto, no cume da montanha, voltamos
a sua encosta: Ovídio. Perfaz-se o trabalho humano frente às leis
divinas na natureza na afirmação da ποίηζιρ, a criação: o mito
reinterpretado.
Joyce, igualmente, recupera a dimensão política do mito ao
tomar como pano-de-fundo as turbulências na Irlanda pré-Guerra de
Independência: estamos nas décadas finais do século XIX e iniciais
do XX, já após Marx, Kierkeegard e Nietzsche. Embora Dedalus
seja omisso à política em grande parte da obra, sendo exposto a ela
no início, e escondendo-se, quando adolescente, no manto jesuítico;
ao que, na universidade, esconde-se nas elucubrações filosóficas
acerca de Tomás de Aquino e Platão e na busca do belo na poesia;
acaba por sujar as mãos na argamassa política ao final da obra.
The soul is born [...] first in those moments I told you of. It has a
slow and dark birth, more mysterious than the birth of the body. When the
soul of a man is born in this country there are nets flung at it to hold it
back from flight. You talk of me of nationality, language, religion. I shall
try to fly by those nets. (p.179)
Não se escapa da tradição: mesmo que seu fio, segundo
Hannah Arendt, tenha-se rompido, sua força coercitiva permanece-
se: we shall try to fly by those nets. Numa re(des)interpretação,
devemos, pois, superá-la, e gritar a plenos pulmões: Welcome, O
life! I go to encounter for the millionth time the reality of experience
and to forge in the smithy of my soul the uncreated conscience of my
race (p.224).
O coming-of-age de Dedalus é o coming-of-age da tradição.
A tradição é uma (re)(des)(re)construção: movimento de
constante construção, reconstrução, desconstrução. O passado é uma
(re)(des)(re)interpretação: esquecer-se, lembrar-se. A tradição como
batalha entre o histórico e o (pretensamente) ahistórico no que se
rompe o fio e o fardo da história – simultaneidade: o Erwige
Wiederkunft de Nietzsche: a tradition de Eliot: a Jetztzeit em
Benjamin. Passado e futuro dissolvem-se no presente.
A tradição, longe de etérea, faz-se na forja do tempo e da
memória: emerge em dialética com o histórico, com o trabalho
material e intelectual. Na encosta, a manjedoura ovidiana: o mito
como arma política em Roma; o imitatio dos Renascentistas em
Bruegel; o esvaziamento do mito em Williams; a
re(des)interpretação do mito como arma política em Joyce.
A voz que ecoa da garganta humana não é mais a da Musa,
torna-se a do indivíduo. Ποίηζιρ: triálogo entre antigos, modernos e
moderníssimos; superação do trinônimo θύζιρ e νόμορ e ηέχνη.
Subsiste o tempo e nunca é ele o mesmo e é sempre o
mesmo. Uma vez o dito o feito o sonho não perece. Há o
movimento: vórtice da memória. Abraça-se o escuro do mar: se ao
homem não é dado chegar ao Sol, o que o impede de explorar as
profundezas do Oceano ou de conquistar a Lua?
There questions are very profound, Mr. Dedalus, Said the dean.
It is like looking down from the cliffs of Mother into the depths. Many go
down into the depths and never come uip. Only the trained diver can go
down into those depths and explore them and come to surface again.
(p.163)
Verte-se ao princípio inverso: Ovídio. O μύθορ persiste na
memória do mundo, constantemente (re)interpretado. A tragédia do
heróico de Ícaro será agora, em Dedalus, a tragédia do trabalho e da
política. et nos fuimus/sumus/erimus tempora.
Tomemos uma última fonte, visual: o Ícaro de Matisse,
gravura feita em pochoir no ano de 1947. É ainda Ícaro? O que
sugere? Ele se afigura – apresenta-se – em simples cores, simples
formas, simples linhas. A noite cobre azul o cosmo e o ser explode,
os astros cortam de amarelo, massa solta em todo breu; o mito que
em Ovídio aclara se dissolve: nem a narrativa de Bruegel, tampouco
a concisão de Williams. Um ponto rubro, entanto, aclara a negra
essência: oníricos recônditos em Joyce, o tempo em Agostinho, o
homem sobrehumano, a recuperação da dimensão heróica: a partir
do homem comum humano? Entre antigos, modernos,
moderníssimos.
O fardo e o fio da tradição realmente se romperam?
E que corpo que sempre e ainda e/imerge d/no mar?
ῥῆμα δ᾽ ἑπγμάηων χπονιώηεπον βιοηεύει,
ὅ ηι κε ζὺν Χαπίηων ηύχᾳ
γλῶζζα θπενὸρ ἐξέλοι βαθείαρ.18
18 Píndaro, IV Neméia, vv.6-8; citado de Pindar, Nemean Odes, Isthimian Odes,
Fragments (Loeb Classical Library, 1997) – na trad. de William H. Race, “For the
words live longer than deeds, / which, with the Graces‟ blessing, / the tongue
draws from the depths of the mind.”
This lantern doth the hornèd moon present.
Myself the man i'th’ moon do seem to be.19
[fragmentos de uma conclusão]
A ruptura de nossa tradição é realmente um fato acabado?
Em Joyce, inverte-se o primado da razão/providência para dar vazão
à supremacia do trabalho/homem. [A condição humana só será
superada no momento em que o homem conquistar a morte, ou ao
menos saber o que está para além dela.]
A tradição aparece-nos como a encosta acidentada, montanha
de píncaros e cavernas perigosíssimas, onde nos metemos em
passagens obscuras, becos sem saída, corredores íngremes, caminhos
maravilhosos nunca percorridos. O homem, ao atravessá-los,
modifica-os, dando nova feição à montanha, cuja base, neste caso, é
Ovídio. Atravess(ar)am-na, mediante tortuosos dutos, Dante;
Bruegel; Goethe; Pound; Williams no mesmo caminho de Bruegel;
Joyce no caminho de Píndaro, Ovídio, Dante, Bruegel, Goethe,
Santo Agostinho; viram-na Hannah Arendt e Nietzsche.
19 Starveling [como Moonshine] em A midsummer’s night dream V, ato 1, vv.235-
236; citado de The Norton Shakespeare (W. W. Norton, 2005), pp.891.
* Ícaro Henri Matisse, 1947
© The Metropolitan Museum of Art, NY
[Da tradição à história: as vicissitudes do mito na construção
da memória em Tucídides. Elementos da tragédia, construção da
verdade.]
[Notre héritage n’est précedée d’aucun testament em René
Char. Kafka como a flor da estufa do horror, início e fim da
literatura moderna.]
[Veracidade no trabalho histórico? Tucídides e os problemas
da causalidade e do tempo linear. Recuperar os antigos como
homens, seres humanos.]
[Joyce entre Dédalo e Jesus Cristo – Ovídio e Santo
Agostinho. Et tu cum Iesu Galilaeo eras – Matheus 26.69)]
[Romper com a natureza e conquistar por vez o espaço:
tornar-se sobrehumano, segundo Hannah Arendt, é romper
(definitivamente?) com a tradição de idéias que se constrói desde os
antigos; ou, reinterpretá-la à luz de novos dados? Inclinamo-nos ao
segundo; no entanto, a tradição assenta-se em uma idéia, mesmo que
vaga, do que é o homem... haverá rompimento. O tempo será outro.]
O ano é 1957, uma década antes de 2001: Uma odisseia no
espaço e do Ubik de Philip K. Dick. E, todavia, a realidade torna-se
cada vez mais semelhante à ficção científica.
Os soviéticos lançam o Sputnik no espaço. O mesmo
permanece durante algumas semanas e, depois, cai. Os deuses ainda
não admitem a presença de objetos humanos entre eles.
Hannah Arendt, no prólogo à Condição Humana, declara as
palavras de um repórter americano, cujo nome, omitido pela autora,
destaca a mensagem na ausência de qualquer atribuição: “a
humanidade não permanecerá para sempre presa a terra.”
[Joyce e Benjamin, no que resta ao homem, mediante sua
sensibilidade, elevar sua experiência individual (Erlebnis) aos
patamares da experiência comunal (Erfahrung) da narrativa, através
da reavaliação da tradição e da semelhança.]
[Hannah Arendt: “A era moderna trouxe consigo a
glorificação do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda
a sociedade em uma sociedade operária. A sociedade que está para
ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de
trabalhadores...O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de
uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única
atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior.”]
Horácio, Ode segunda do livro IV:
Pindarum quisquis studet aemulari,
Iulle, ceratis ope Daedalea
nititur pinnis, uitreo daturus
nomina ponto.
monte decurrens uelut amnis, imbres
quem super notas aluere ripas,
feruet inmensusque ruit profundo
Pindarus ore,
[...]
multa Dircaeum leuat aura cycnum,
tendit, Antoni, quotiens in altos
nubium tractus; ego apis Matinae
more modoque
grata carpentis thyma per laborem
plurimum circa nemus uuidique
Tiburis ripas operosa paruus
carmina fingo.
[...]20
20 Q. Horati Flacci, Carminum Liber IV.II, vv.1-8 & 25-32, In Opera (Oxford,
1901), pp.88-89; a trad. de Pedro Braga Falcão encontra-se em Horácio, Odes
(Cotovia, 2008), pp.262-265.
[Ícaro, Prometeu, condição humana coloca – o homem entre
passado e futuro no eterno presente – o homem que desobedece a lei
divina: o primeiro tenta vencer as forças da natureza através da arte
humana. Joyce no ápice da criação: Stephen Dedalus abandona a lei
divina e afirma-se na ποίηζιρ, em todas suas conseqüências positivas
e negativas – os antigos dialogam com os modern(íssim)os: a arte,
ainda em Bruegel e Maquiavel, é imitatio de uma tradição, e imitatio
da natureza, natura naturata. A arte em Joyce e no modernismo
recupera a latência em Píndaro: natura naturans. Dois núcleos a
partir da epígrafe: entre o apis Matinae more modoque de Horácio e
o monte decurrens velut amnis de Píndaro: a natura naturans.
Empédocles afogando-se no Etna para provar que é um Deus. O
homem pindárico. O Sputnik no espaço e o homem pisando na Lua
em 1969. Modernismos entre Píndaro, Prometeu e o Sputnik: o
homem conquistando o espaço divino: natura naturans.]
[Hannah Arendt: “Esse homem futuro, que segundo os
cientista será produzido em menos de um século, parece motivado
por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada -
um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele
deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo.
Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa
troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual
capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é
apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento
científico e técnico - e esta questão não pode ser resolvida por meios
científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e, portanto,
não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos
profissionais.” Dedalus afirma-se como artífice: o Deus da criação
poética – The artist, like the God of the creation, remains within or
behind or beyond or above his handiwork, invisible, refined out of
existence, indifferent, paring his fingernails – Flaubert, 1857.]
[Marx: “O trabalho criou o homem” – e vice-versa: a natura
naturans em Píndaro – homem como força da natureza.]
I have brought the great ball of crystal;
who can lift it?21
21 Ezra Pound, Canto CXVI In The Cantos (New Directions,1993), p.815.
[Formulamos a pergunta não mais como o que somos, mas o
que seremos. Quase sabemos para onde vamos. Ícaro agora poderá
alçar voo, tomar o coche apolíneo sem cair no mar? Verte-se ao
princípio inverso: Ovídio. Júlio César já se transforma em um
cometa ao fim das Metamorfoses.
hanc animam interea caeso de corpore raptam
fac iubar, ut semper Capitolia nostra forumque
divus ab excelsa prospectet Iulius aede!”
vix ea fatus erat, medi cum sede senatus
constitit alma Venus nulli cernenda suique
Caesaris eripuit membris nec in aera solvi
passa recentem animam caelestibus intulit astris
dumque tulit, lumen capere atque ignescere sensit
emisitque sinu: luna volat altius illa
flammiferumque trahens spatioso limite crinem
stella micat natique videns bene facta fatetur
esse suis maiora et vinci gaudet ab illo.22
22 P. Ovidi Nasonis Metamorphoses XV, vv.840-851, pp.479-480; na trad., p.388
(v. nota 5).
O trabalho da aemulatio Caminhamos para uma sociedade
sem trabalho? Onde o trabalho, finalmente consumado, dominará
por vez a natureza, desligando o homem de suas raízes, tornando-o
sobrehumano, desligando-o da necessidade de trabalhar? Torná-lo
independente da terra e das condições às quais, do primeiro homem
em milhões de anos a fio até hoje, foi submetido? Politicamente
viverá no ócio, como Hannah Arendt acreditava ter sido o caso na
πολιρ grega, retomando o primado da razão sobre o trabalho? Ou o
dualismo será finalmente superado? A condição humana deixa de ser
icária, tampouco prometéica. Tamborilar as asas em direção à Lua.
O homem está preparado para carregar o fardo do fio rompido?
[A condição humana só será superada no momento em que o
homem conquistar a morte, ou ao menos saber o que está para além
dela. Até então, o único meio encontrado pelo homem foi a memória
solidificada no verbo.]
E qual será o papel da (meta)história nesta nova ordem de
coisas? Após longa subida na escarpa da tradição, ainda foi/é/será
possível a história reter seu papel de magistra vitae na medida em
que (re)construiremos novas verdades? Voltamos a Ovídio na
dissolução dos tempos: mesmo além do homem, (a memória d)o
homem sobreviverá. E talvez tais dúvidas alhures consumar-se-ão na
forja de novas Ilíadas, Odisséias.
„αὐηὰπ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα καηήλθομεν ἠδὲ θάλαζζαν,23
23 Odisséia, canto XI, v.1; no que ecoamos Ezra Pound no verso primo do Canto I
– “and then went down to the ship”. Trajano Vieira traduz como “quando nos
deparamos com a nave no mar”, cf. Odisséia (editora 34, 2011).
ΑΙΑΣ. ἅπανθ᾽ ὁ μακρὸς κἀναρίθμηηος χρόνος θύει η᾽ ἄδηλα καὶ θανένηα κρύπηεηαι: κοὐκ ἔζη᾽ ἄελπηον οὐδέν,
AJAX. O tempo, em sua sucessão de números, revela e encobre o que trazia à luz, inexiste o imprevisto.
ΑΙΑΣ ΣΟΘΟΚΛΗΣ vv.346-348 trad. Trajano Vieira
(São Paulo: Perspectiva, 1997)
* Cartão-postal comemorando o lançamento do
Sputnik N. Shishlovsky, 1958
© Rykoff Collection
BIBLIOGRAFIA
AGOSTINHO de Hippona. Confissões, trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina (São Paulo: editora Abril, 1973), coleção Os Pensadores [Santo Agostinho]
ARENDT, Hannah. A condição humana, trad. Roberto Raposo (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981).
________. Entre passado e futuro, trad. Mauro W. Barbosa de Almeida (São Paulo, Perspectiva, 1979).
ARISTÓTELES. On poetics, trad. Ingram Bywater (Chicago: Chicago University Press, 1952), Great Books of the Western World [Aristotle, vol.II].
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1, trad. Sérgio Paulo Rouanet (São Paulo: editora brasiliense, 1996).
CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito, trad. J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman (São Paulo: Perspectiva, 2009).
DANTE Alighieri. Commedia: Inferno (Mondadori I Meridiani, 1991).
ELIOT, T. S. “Tradition and the individual talent” In Selected Essays, 1917-1932 (London: Faber and Faber, 1951).
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto II, trad. Jenny Klabin Segall (editora 34, 2007)
HARTOG, François. “Regime de historicidade” em http://www.fflch.usp.br/dh/heros/excerpta/hartog/hartog.html
HERODOTUS. The Histories, 4 vols., trad. A. D. Goodley (Harvard: Loeb Classical Library, 1920).
HORÁCIO.Odes, trad. Pedro Braga Falcão (Lisboa: Cotovia, 2008).
HORATI FLACCI Opera, ed. H. W. Garrod (Chippenham: Oxford, 1901).
JOYCE, James. A portrait of the artist as a young man (New York: W. W. Norton, 2007).
MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, trad. MF (São Paulo: Martins Fontes, 2007).
MARX, Karl. A Ideologia Alemã (São Paulo: Boitempo editorial, 2007).
_____. Manifesto Comunista (São Paulo: Boitempo editorial, 1998).
_____. O 18 Brumário de Luís Bonaparte (São Paulo: Boitempo editorial, 2011).
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, trad. Paulo César de Souza (São Paulo: Companhia das Letras, 1992).
OVIDI NASONIS Metamorphoses, ed. R. J. Tarrant (Chippenham: Oxford, 2004).
OVÍDIO. Metamorfoses, trad. Paulo Farmhouse Alberto (Lisboa: Cotovia, 2007).
PINDAR. Nemean Odes, Isthmian Odes, Fragments, trad. William H. Race (Harvard: Loeb Classical Library, 1997).
PIRES, Francisco Murari. Mithistória (São Paulo: humanitas, 1999).
_____. Modernidades Tucidideanas (São Paulo: Edusp, 2007).
_____. “A morte do herói(co)” em http://www.fflch.usp.br/dh/heros/humancondition/ensaios/heroicomorte.htm#_ftn7
PLATÃO. República, trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado (São Paulo: Martins Fontes, 2006).
POUND, Ezra. The Cantos (New Directions, 1993).
ROCQUET, Claude-Henri. Bruegel, ou l’atelier des songes (Paris: Denoël, 1987).
SHAKESPEARE, William. A midsummer’s night dream In The Norton Shakespeare (New York: W. W. Norton, 2005).
SÓFOCLES. Ajax, trad. Trajano Vieira In Três Tragédias Gregas (São Paulo: Perspectiva, 1997).
THUCYDIDES. History of the Peloponnesian War, 4 vols., trad. C. F. Smith (Harvard: Loeb Classical Library, 1928).
WILLIAMS, William Carlos. The collected poems, vol.2 (New Directions, 2001).
E textos disponíveis em http://www.fflch.usp.br/dh/heros/