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Escola Secundária Artística António Arroio 1973 OU ADAPTAÇÃO MODERNA DE FREI LUIS DE SOUSA Duarte Lima, n.º 7 João Sobral, n.º 10 Turma N 11º ano Professora Eli

Duarte Lima e João Sobral, "1973"

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Escola Secundária Artística António Arroio - D. Lima, n.º 7 e J. Sobral, n.º 10 - 11.º ano - Turma N - professora eli - 2010-2011

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Page 1: Duarte Lima e João Sobral, "1973"

Escola Secundária Artística António Arroio

1973

OU ADAPTAÇÃO MODERNA DE FREI LUIS DE SOUSA

Duarte Lima, n.º 7 João Sobral, n.º 10 Turma N – 11º ano Professora Eli

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PERSONAGENS: Manuel Sousa Noronha Madalena Noronha Maria Noronha Jorge Noronha Telmo Pais 3 Pessoas Lugar da cena – Almada

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I ACTO

Casa portuguesa, pequena e de elegância contida, no final de 1973. No

fundo da casa existe uma pequena varanda que olha para o Tejo, e donde se

vê parte de Lisboa. Ouvimos “que força é essa” de Zeca Afonso vindo do

gramofone; na parede está um quadro, um retrato de um moço, vestido à

militar, com uma medalha de honra. Sobre o aparador alguns livros, livros de

esquerda e obras de tricô meias feitas. Ao lado da mesa temos algumas, mas

poucas, cadeiras já gastas. É no fim da tarde.

CENA I

Madalena, sentada de frente da mesa a tricotar enquanto ouve a música

atentamente.

Uma força a crescer-te nos dedos e uma raiva a nascer-te nos dentes.

Não me digas que não compreendes...

MADALENA (respondendo para si ao verso que acabara de ouvir):

Se não te compreendo... Oh! Se não te compreendo. Já tive mais força do

que tenho hoje, já lutei muito, no meu passado está a maior luta que eu já

travei, mas ainda há outra para se travar... Mas agora, agora estou numa

imensa felicidade, numa imensa alegria... (pausa) Só espero que ele ao

menos não suspeite o estado em que eu estou... o medo, os contínuos

terrores, terrores do meu passado. Terrores que não me deixaram gozar um

só momento de toda esta felicidade, felicidade de vida... esta minha felicidade

infeliz...

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CENA II

Telmo entra em cena. A música do Vinil pára, pois chegou ao fim da sua

linha.

TELMO: Devias ouvir isto mais baixo, alguém pode ouvir.

MADALENA: Pois, e eu sou esse alguém (sorri). Que bela música, que belo

poema, que bela voz... (vira-se para Telmo) Não estás aqui há muito tempo,

pois não? Sabes por acaso onde está Manuel?

TELMO: Acabei de chegar, e volto de mãos vazias, sem panfletos. Suponho

que Manuel está ainda a distribuí-los... Eu andei pela zona do Marquês e ele

na Baixa... Esperemos que nada de mal tenha acontecido. E sim, tens razão:

esta música, este poema, esta voz… Há poucas pessoas que realmente

percebem este poema... poucas pessoas como... (contém-se. Continua

comedidamente) como Manuel...

MADALENA (interrompendo-o): E como Maria! Tão jovem, tão inocente e tão

virada para política... Sai ao pai.

TELMO: Treze anos feitos e já é uma senhora. Quase! Muito interessante de

se falar, muito eloquente, muito inteligente.

MADALENA: És tão bom amigo, Telmo... é impressionante o que nós já

passámos. Da primeira vez que te vi, da... da primeira vez que me casei, não

sabia que serias tão importante, tão fiel... És quase meu irmão, és o meu

velho amigo, meu amigo do passado. (aparte) nosso amigo...

TELMO: Não me lembres o que eu já fui, de tudo o que eu já fui. Devo muito

ao João. Desde que ele salvou a minha vida fiquei-lhe eternamente grato... e

continuo a estar.

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MADALENA: Mas porquê? Não deverias estar ainda melhor do que eras

antes? Não aprendeste mais ainda? Essa experiência não te ensinou nada?

TELMO: Sim…

MADALENA: Então pronto. Agora só te peço uma coisa, não fales muito das

tuas saídas com Manuel a Lisboa. Não lhe faz bem. Já está a ficar

demasiado como o pai.

TELMO: Mas se calhar ela deveria aprender…

MADALENA: Não, ela já está a querer saber demais para a idade dela, já

anda demasiado interessada. E tu sabes que nestes tempos isso ainda é

demasiado perigoso para uma rapariga assim…

TELMO: Tão frágil, queres tu dizer? Não te preocupes, ela há-de ficar melhor

de saúde.

MADALENA: Então tenta assegurar-te que a sua preocupação principal é

essa, a saúde. Gosto demasiado dela para a ver assim.

TELMO: Também eu… Talvez mais até que o próprio pai. Ou do que de ti…

MADALENA (rindo-se): Telmo!

TELMO: A sério. Uma das coisas que eu admiro nela é que ela tenta ser a

menina da casa. Tenta ser o próximo ...!

MADALENA (assustada): Cruzes credo! Nem me faças pensar em eu ser

mãe duma heroína nacional, ou mesmo mundial!

TELMO: Certo. Deixemo-nos de futuros, deixemo-nos de passados, fiquemos

pelo presente! Falemos de Maria! Falemos de como compreende tudo, de

como ela é uma rapariga honesta e digna de... (cala-se)

MADALENA: De quê? Diz! (agressiva) Desembucha!

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TELMO (comedido): Rapariga digna de nascer em família melhor.

Madalena olha para Telmo seriamente

TELMO: Madalena, olha para nós! Olha à tua volta! Defendemos uma causa,

defendemos o que talvez nunca conquistemos! Nunca conquistaremos a

democracia verdadeira! Defendemos algo que precisa de mais ajuda. Nós

precisamos de ajuda. Somos pobres! Nesta casa vivo eu, tu, a Maria, o Jorge

e o Manuel. Nesta pequena casa compacta! Precisamos de mais...

Precisamos... (contém-se) Desculpa. Desculpa, Madalena

Silêncio. Depois, Madalena, calma, olha para Telmo nos olhos.

MADALENA (calmamente): Temos pouco dinheiro e a casa pode não ser

muito grande, mas temos bens palpáveis. Temos a herança de João, os seus

carros, armas… Telmo, tu foste o melhor amigo do João e sempre te

preocupaste imensamente com ele. Preocupaste-te durante o treino militar, a

guerra e depois trataste de mim. Foste tão bom amigo do João que me

ajudaste, e ajudaste-me tanto que te considerei parte da minha família e

chegaste a um estado no meu espírito maior do que alguma pessoa alguma

vez chegou. Depois da morte do João na guerra fiquei viúva, órfã e sem

ninguém, com apenas vinte anos... aquela carta... ainda a tenho guardada...

Vai a uma gaveta e tira de lá uma carta.

MADALENA (lendo): “Lamentamos informar que João Montenegro de

Portugal faleceu no dia dezoito de Setembro de 1961” Não foi preciso que o

procurassem: houve testemunhas. Não restavam dúvidas a ninguém.

TELMO: Senão a mim, desde há 13 nos.

MADALENA: 13 anos... O número do azar.

TELMO: Lembro-me das últimas palavras dele que me foram dirigidas antes

de partir: “até à próxima, Telmo. Nesta ou na outra vida.” E não me apareceu,

a não ser... a não ser que te tenha aparecido!

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MADALENA (indignada): Telmo!

TELMO: Eu sei que não apareceu, mas aquelas palavras... o tom em que

foram ditas... e não te armes em desgraçada, porque o que tu não és é

desgraçada! Tu és a mulher mais feliz: casada com Manuel, o gentil Manuel,

com uma filha, a inteligente Maria, e juntos ajudamos a causa portuguesa e

esta é a verdade nua e crua!

MADALENA: Sim, tens razão... eu não sou uma desgraçada. Não sou, não.

Não vou levantar mais este fantasma! Este fantasma que me tem estado a

atormentar durante anos, décadas! Telmo, este é o último dia em que te falo

sobre este assunto. É hoje! Porque haveria de me sentir pressionada por

estar casada com o Manuel? Porque haveria de me sentir culpada com o

nascimento de Maria? Porque me haveria de sentir crucificada se o

casamento com Manuel foi a contento dos membros da minha e da família do

João? Porque me haveria de sentir tão mal se estou a contribuir para o

melhor desta nação? E porque me haveria de sentir tão desgraçada se ela

tem o amor de toda a gente, meu, dele, o teu...? (aparte) Então porque me

senti sempre tão pressionada … durante tanto tempo?...

CENA III

Maria entra com o Guerra e Paz na mão, uma edição gasta e rasgada, tão

mal cuidada que quase se não consegue ler o título. Aproxima-se de Telmo.

MARIA (brincando e querendo implicar com Telmo): Pensava que íamos

fazer a nossa sessão de leitura, como sempre fizemos. Uma leitura que nos

fizesse pensar em algo maior, que nos fizesse flutuar na casa das ideias,

mas em vez disso encontro-te com a mãe e um vinil que já chegou ao fim há

algum tempo…

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MADALENA (sorrindo): Maria, que dizes tu? Porque dizes isso?

MARIA (continuando a brincadeira): Para consolar a minha “desgraça”,

(Madalena fica mais séria) quem inventa mentiras ou quem imagina

falsidades é para se consolar, e porque é que o fazemos? Porque o que toda

a gente quer e o que toda a gente tem, mas não se apercebe, é a esperança.

Tal como nós queremos alguém de diferente no poder, eles querem que

continue assim… esperança. Tudo resumido numa só palavra.

MADALENA (tentando brincar): Maria, tu pensas em tanto, imaginas tanta

coisa, mas não percebes que és demasiado nova? Eu e o teu pai apreciamos

mas temos medo dessa tua qualidade...

TELMO: Bem eu vou-me embora, se não isto vai-se tornar numa grande

discussão... (ri-se e beija Maria na testa. Olha para ela apreensivo) Vai

repousar que estás quente.

MARIA: Mas primeiro falo com a minha mãe.

TELMO (aparte): Nem quero ver em que isto vai dar.

Telmo sai de cena.

CENA IV

MARIA: Queres saber uma coisa?

MADALENA: Sim, diz... Mas tem cuidado com o que dizes! (sorrindo)

MARIA: Preocupas-te tanto comigo... Preocupas-te com o que leio?

Preocupas-te com os meus pensamentos? Preocupas-te com a minha

saúde? Eu não preciso que andem sempre em cima de mim, eu sou

saudável.

MADALENA: Esperemos que sim, e que vivas muitos e felizes anos.

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MARIA: Isto da preocupação é excessivo, dão-me demasiados conselhos...

tenho tentado ouvir o que vocês me dizem, passo noites em branco por

causa disso. Mas o que eu quero saber é aquilo que não me dizem! Parece

que sou demasiado inocente, que sou demasiado sensível... Tento evitar a

minha inquietação, mas não consigo. Mas tenho ouvido uma actividade

estranha.

MADALENA: Maria, isso são coisas da tua cabeça…

MARIA: Não são não, eu tenho visto nos vossos olhos que andam a planear

qualquer actividade diferente.

MADALENA: Já chega desse assunto! Diz-me mas é, o que andas a ler

agora da tua biblioteca? Que livro é esse?

MARIA: Guerra e Paz, ia agora trocá-lo pelos poemas de Pessoa, que me

fazem dormir. Dormir sem sonhar, como eu gosto.

MADALENA: Sonhar, sonhas tu acordada. Imaginar é sonhar, já dizia o teu

pai que deposita grandes esperanças em ti, para que tenhas um futuro

melhor que o nosso, com boas notas.

MARIA: Notas que eu não consigo alcançar, mas não percebo, eu estudo, eu

leio…

MADALENA: Tu lês de mais Maria, devias também arejar a mente brincando

como qualquer outra rapariga da tua idade lá fora.

MARIA: Eu leio para me ocupar nos tempos em que o pai não está. Porque é

que ele já não faz aquelas reuniões?... mas no entanto está sempre em

Lisboa.

MADALENA: (Embaraçada) Não sei de que falas, aliás não voltes a falar

nisso. Espera mas é sossegada que ele deve estar a chegar… já é

tardíssimo.

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CENA V

Jorge entra em cena.

JORGE: Boas novas!

MADALENA: Boas tardes, irmão!

MARIA: Boas tardes, tio!

JORGE: Madalena, estou também ansioso como tu. Trago de facto novas…

talvez não boas, mas nada de preocupante de certo. Tenho notícias de

Lisboa.

MADALENA (assustada): Que foi? Que aconteceu?

JORGE: Não deve ser nada de suspeito, não devem ter descoberto. O

primeiro ministro apenas me confiou que quer mudar de ares, e deseja sair

da cidade. O Chefe do Governo está cansado de estar no meio de tantas

confusões.

MADALENA (irónica): Coitadinho…

MARIA: Coitadinho é do povo. Que tem que organizar tudo às escondidas,

fingindo que não existem confusões, enquanto Lisboa anda um caos! Afinal

ele devia era ficar lá e ajudar a resolver a situação. Se quer mudar de ares

que mude de atitude …que deixe de ser ditador… que seja pró-povo!

JORGE: Tens razão, mas o que podemos fazer?

MARIA: MUDAR!

JORGE: É isso Maria, grita com toda a força! (para Madalena) Tenho medo

desta rapariga.

MADALENA: Também eu, está a ficar igual ao pai…

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JORGE: Mas há uma má notícia que me apressei a trazer-vos. E preparem-

se, a sério: os governantes vêm para Almada.

MADALENA: O quê?! Será que eles descobriram?

JORGE: Achas?!... Calma Madalena…, se isso tivesse acontecido, o primeiro

ministro tinhe-mo dito… Mas o grande problema disto tudo é que eles vão

precisar de uma casa… e imediatamente pensaram na nossa. Em sítio

escondido, linda vista para o Tejo…, embora pequena é discreta, bem

localizada, agradável, confortável...

MADALENA: Estás a brincar?

JORGE: Não. Ele contou-me em segredo.

MADALENA: Mas… Mas… Isso implica viver com o inimigo. Manuel nunca

aceitará!

JORGE (apenas para Madalena): Lembra-te que aos seus olhos, somos

grandes amigos, eu sou o seu braço direito (sorri ironicamente).

MARIA: Fechamos-lhes as portas, trancamo-nos cá dentro e com sorte ainda

o conseguimos ….

JORGE: Tu… Definitivamente… és mesmo louca. Assim é que todos iriam

descobrir.

MADALENA: Mas que mal fiz eu? Há tantas outras casas...

MARIA: Xiu, o pai chegou, o pai chegou!

MADALENA (surpreendida): Não ouço nada…

CENA VI

MIRANDA: Minha Senhora… O Sr. Manuel chegou. Vem no vosso carro.

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MADALENA: Obrigado Miranda. (Receosa) Esta criança é extraordinária!

JORGE: É verdade…

CENA VII

Manuel entra em cena com mais 3 pessoas.

MANUEL: Façam como eu digo. Deixem aí os bidões de gasolina. E o resto

também. (olha para Madalena) Madalena! Maria, meu amor! Jorge… Ainda

bem que aqui estás, preciso de falar contigo.

MADALENA: Que se passa? Nunca te vi assim!

MANUEL: Sentem-se. Frei, já sei que sabes parte da história.

JORGE: Parte?

MANUEL: Já conto o resto,.. mas agora temos que sair desta casa.

MARIA: Ainda bem! Mudar de vida! VAMOS A ISSO!

MANUEL: Ainda mal! Mas tem que ser assim. Já dei ordens a todos. No

entanto devias ir ver das coisas, tal como eu vou fazer. … o que há para

salvar já está a salvo… temos pouco tempo, mas com sorte só vêm pela

manhã.

MADALENA: Então é verdade que o primeiro…

MANUEL: O primeiro ministro é só uma marioneta no meio de todos os

outros. Mas eles vão ver, vou dar-lhes uma lição. Não dizem que comemos

criancinhas? Pois hoje vamos comer governantes…

MARIA: É assim mesmo, Pai! Finalmente alguém da família que me

percebe…

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MADALENA (furiosa): MARIA! (Maria olha imediatamente para o chão,

Madalena continua, mais calma) Manuel não podes deitar tudo a perder,

agora que já construímos boas relações com eles e com o Povo. Agora que o

plano está quase a ser acabado! Isso irá ser só um pretexto para porem a

PIDE toda atrás de ti!

MANUEL: Deitar o quê a perder? Eles descobriram tudo!

JORGE: Impossível. Se assim fosse o Ministro não teria vindo falar comigo.

MANUEL: Ele não é burro e é essa parte da história que te falta. Ele sabe

muito bem o que faz, e isso só mostra a sua esperteza. Ele disse-te, para tu

nunca suspeitares de nada. Mas cheira-me que ele já sabe há muito tempo.

E não te preocupes Madalena, eles chegam de manhã e a essa hora nós já

saímos. Por isso temos que sair JÁ!

JORGE: Como é que tens tanta certeza? Como é que sabes que é mesmo

isso que vai acontecer? E se aquilo que dizes não acontece? Fugimos em

vão. Suspeitas levantam-se, e aí?

MANUEL: O povo saberá que não está sozinho, as suspeitas levantar-se-ão

dentro do governo, não saberão o que fazer. Confudi-los-à. E depois? Não

sei... Mas espero que corra o melhor possível para nós.

MADALENA: E para onde vamos a estas horas?

MANUEL: Para o único sítio onde nunca suspeitarão. Para a casa que não é

minha mas tua.

MADALENA: Aquela… aquela perto do Hospital? Oh Meu Deus, mas isso é

tão arriscado.

JORGE: Pensa, Madalena!... Nunca ninguém suspeita do que está à frente

do seu nariz. (Baixo, apenas para Madalena) E se eles sabem que estamos

no lado do inimigo, nunca irão pensar que alguma vez terias coragem para

voltar para junto do teu ex-oficial de Batalha, na Guerra Colonial.

MARIA: Já lá estou! (Levanta-se energicamente)

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MANUEL: E já são horas. (Levanta-se também)

MADALENA: Mas não há outra opção?

MANUEL: Qual? Esperar que nos venham matar?

MADALENA: Jorge, leva Maria, preciso de falar com o meu marido.

MARIA: Tio, anda ver a minha biblioteca.

JORGE: Anda, querida.

Jorge e Maria saem de cena.

CENA VIII

MANUEL: Há-de se saber em Portugal que ainda há um verdadeiro

Português.

MADALENA: Estás a brincar?

MANUEL: A brincar com o quê? Sabes que precisamos de sair!

MADALENA: Eu aceito as tuas decisões… e sabes que eu te sigo

cegamente SEMPRE! Nunca me oponho ao que me dizes… Mas para aquela

casa… não, por favor!

MANUEL: Pensei que fosses mais forte. Mas neste momento isso não

interessa, temos pouco tempo e temos que sair. Para onde iremos senão

para lá? Depois podemos mudar-nos… não agora. Qual é o problema da

casa, é grande. Por ser do teu primeiro marido… Se alguém tivesse que estar

receoso, seria eu, porque te vais afundar em memórias passadas. Mas o

presente e o futuro são meus, e sempre serão!

MADALENA: O problema é esse, não quero passar por tudo outra vez. E

Jorge tem razão, eu não tenho coragem para voltar para aquele ambiente…

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para junto do João, mas não por ser do inimigo. Na verdade tenho medo de

lá o encontrar, com uma espingarda que nos matará a todos. Sei que é

loucura, mas também sei que vou ser infeliz lá, que não vou conseguir lá

viver sem que tudo me caia em cima, sem que lá morra! Por favor, por todo o

nosso amor, vamos para uma cabana, para as ruas, mas para ali não. (chora)

Eu não consigo enfrentar os fantasmas! Não consigo!

MANUEL: Realmente nunca te vi assim. Mas tu sabes que é a única opção.

Eu preciso de ti cheia de força, e energia, sem receios, para que não me tires

a mim as forças. Que de todas preciso!

MADALENA: Que vais fazer?

MANUEL: Já te disse, Governantes em minha casa…não!

CENA IX

Telmo entra em cena a correr.

TELMO: Manuel! Um conjunto de carros foi visto a passar várias aldeias nas

redondezas. Diz-se que são os governantes e os seus lacaios.

MANUEL: Foram muito espertos! Tão cedo e já tão perto! Mas eu preparei-

me para a eventualidade. Todos fora. JÁ!

Saem todos de cena excepto Manuel, Miranda e outras 3 pessoas.

CENA X

MANUEL: Jorge, leva-as. Telmo, vai com elas também, conduz tu. Eu vou

noutro carro. (Para os criados) Têm tudo no jipe?

MIRANDA: Tudo o que nos mandou levar está pronto.

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MANUEL: Muito bem… saiam os que não são precisos! Já! Rápido! O tempo

urge!... Meninas, apressem-se… vão com Telmo e Jorge. Daqui a pouco já

estou atrás de vocês.

CENA XI

MANUEL: Espero que isto ensine ao povo que por muito dura, asfixiante, que

seja a ditadura, podemos sempre resistir. Vida miserável, que se destrói em

tão poucos segundos, mas se ilumina em ainda menos tempo. (espalha a

gasolina pela casa, vai até às portas e atira os fósforos lá para dentro. Vem

até o hall e faz o mesmo. Saem todos a correr)

CENA XII

MADALENA: Mas… O que estás a fazer, o que fizeste?

MANUEL (tranquilamente): Já te disse, estou a fazer uma fogueira, uma

grandiosa fogueira. Só faltam os porcos que estão aí a chegar!

MADALENA: Não acredito, como é que é possível… (Grita) Salvem o

Retrato!

MANUEL: Não. Não há tempo. É hora de partir. Rápido que o fogo vai

alastrar.

MADALENA: Sim, fujam!

MARIA: Só quando estiveres connosco, não parto sem ti!

MANUEL: Querida, já disse que vou no outro carro. Vá rápido!

TODOS: Fujam! (Começam-se todos a rir com malícia) Deixem-nos vir!

FIM DO PRIMEIRO ACTO