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Gestão Social de bens comuns urbanos no contexto da cidade justa, democrática e sustentável: o caso da orla do Portal da Amazônia, em Belém (PA)
Documento para su presentación en el VIII Congreso Internacional en Gobierno, Administración y Políticas Públicas GIGAPP. (Madrid, España) del 25 al 28 de
septiembre de 2017.
Albuquerque, Maria Claudia Bentes E-mail: [email protected]
Vasconcellos Sobrinho, MárioE-mail: [email protected]
Resumo: Considerando a existência de um aparato teórico e jurídico-institucional de cidade justa, democrática e sustentável, busca-se responder como ocorre a gestão de bens comuns em áreas urbanas. Objetiva-se analisar a gestão de bens comuns urbanos à luz da concepção de cidade justa, democrática e sustentável e dos preceitos da Gestão Social, a partir do caso da gestão da orla do Portal da Amazônia, em Belém, Pará, Brasil. Para tanto, realiza-se estudo de caso único. Observa-se que participação e cooperação constituem pontos de interseção entre as concepções examinadas, o que permite concluir que a Gestão Social pode ser aplicada para gestão de bens comuns urbanos segundo a legislação brasileira, em substituição ao modelo predominante de gestão pública tecnocrática.
Palavras-chave: Bens comuns. Gestão Social. Cidade sustentável. Orla. Belém (PA).
Abstract: Taking into account existence of a theoretical and juridical-institutional framework of fair, democratic and sustainable city, the paper seeks to answer how urban common goods have been managed. The research aim is to analyze urban commons goods management according to conception of fair, democratic and sustainable city and the social management approach. Is looks particularly at management of Portal da Amazônia waterfront public space located in Belém, Pará, Brazil. For this analysis, the research used the single case method. The paper shows that participation and cooperation are two of the main points of intersection between the concepts examined. It has been concluded that social management approach can be applied to urban common goods management according to Brazilian legislation and thus replacing the predominant technocratic public management pattern.
Key-words: Common resources. Social Management. Sustainable city. Waterfront. Belém (PA).
Resumen: Considerando la existencia de un aparato teórico y jurídico-institucional de ciudad justa, democrática y sostenible, se busca responder como ocurre la gestión de bienes comunes en áreas urbanas. Se pretende analizar la gestión de bienes comunes urbanos a luz de la concepción de ciudad justa, democrática y sustentable y de los preceptos de la gestión social, a partir del caso de la gestión de la orilla del Portal de la Amazonia, en Belém, Pará, Brasil. Para ello, se realiza un estudio de caso único. Se observa que la participación y la cooperación constituyen puntos de intersección entre las concepciones examinadas, lo que permite concluir que la gestión social puede aplicarse para la gestión de bienes comunes urbanos según la legislación brasileña en sustitución del modelo predominante de gestión pública tecnocrática.
Palabras clave: Bienes comunes. Gestión social. Ciudad sustentable. Orilla. Belem (PA)
Nota biográfica:
Maria Claudia Bentes Albuquerque é advogada, mestra em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia pela Universidade Federal do Pará, doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará e especialista em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora da graduação da Universidade do Estado do Pará.
Mário Vasconcellos Sobrinho é economista, PhD em Estudos do Desenvolvimento pelo Centre for Development Studies, University of Wales Swansea, Pós-doutor em Gestão Pública e Governo pela EAESP da Fundação Getúlio Vargas, mestre em Planejamento do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará, economista e professor da Universidade Federal do Pará e da Universidade da Amazônia.
1- Introdução
A partir da segunda metade do século XX a concepção de sustentabilidade
começou a ser discutida nos meio científico e político, passando a ser adotada,
paulatinamente, por diversos Estados ocidentais como paradigma de desenvolvimento.
Na conjuntura dos primeiros eventos internacionais sobre direitos humanos e proteção
ambiental emergiram estudos sobre gestão de recursos de propriedade comum, espécies
de bens econômicos que podem ser de origem natural ou artificial, classificados como
indivisíveis, de difícil exclusão de usuários, cujos usos, embora sujeitos à subtração, à
alta rivalidade de acesso e à degradação, devem ser exercidos coletivamente.
Debates sobre o tema tiveram como expoente a economista e cientista política
Elinor Ostrom, cujas pesquisas empíricas revelaram a possibilidade de autogestão e
regulação comunitária sustentável de recursos naturais de uso comum. Em paralelo,
discussões sobre uma inovadora concepção de cidade, baseada na Carta Mundial por
Cidades, Vilas e Povoados, Justos, Democráticos e Sustentáveis (1992), começaram a
ser impulsionadas por grupos sociais dedicados à luta pela efetivação de direitos
humanos e pela reforma urbana.
O Brasil acabou incorporando a concepção de cidade sustentável no seu
ordenamento jurídico, materialmente pela Constituição da República de 1988 e
formalmente pela Lei n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), passando a orientar as suas
políticas urbana e ambiental por objetivos, diretrizes e princípios voltados à realização
de justiça social e desenvolvimento urbano em bases democráticas e sustentáveis.
Apesar dos avanços jurídico-institucionais, a legislação brasileira não prevê modelos de
planejamento e gestão urbanos para concretização dos seus propósitos.
Na década de 1990, uma modalidade de gestão dialógica, denominada
academicamente de Gestão Social, começou a ser constituída na América Latina,
notadamente no Brasil, em oposição ao modelo predominante de gestão pública
tecnocrática, de matriz liberal. É caracterizada por um compartilhamento da autoridade
decisória, na esfera pública, entre múltiplos atores sociais, mediante arranjos
institucionais deliberativos que se baseiam na lógica da ação comunicativa de Habermas
(1989) e propiciam uma reaproximação da razão prática e da ética para resgate da
racionalidade humana.
Considerando o contexto trazido à lume, a pesquisa, cujos resultados são
apresentados neste artigo, foi desenvolvida na interseção de quatro concepções distintas:
perspectivas teórica e legal de cidade justa, democrática e sustentável, Gestão de Bens
Comuns e Gestão Social. Entende-se que é pertinente e relevante aproximar estes
campos do conhecimento para verificar em que medida eventual convergência entre eles
pode contribuir para a operacionalização do modelo de cidade assumido pelo Brasil.
Visando compreender a interface empírica desta discussão, selecionou-se a orla
do Portal da Amazônia, em Belém, Pará, Brasil, como lócus da pesquisa, por se tratar de
um tipo de bem comum urbano objeto de intervenção urbana e que apresenta
experiência recente de gestão pública, sendo representativa da realidade do município.
Entretanto, o estudo limitou-se à investigação de apenas duas variáveis de análise
(participação e cooperação), por meio de critérios extraídos da teoria da Gestão Social,
que foram testadas nas três fases da obra pública (concepção, implantação e
monitoramento).
Assim, buscou-se responder ao seguinte problema: Como tem ocorrida a gestão
de bens comuns urbanos considerando a existência de um aparato teórico e jurídico-
institucional de cidade justa, democrática e sustentável? O objetivo geral consiste em
analisar a gestão de bens comuns urbanos à luz da concepção de cidade justa,
democrática e sustentável e dos preceitos da Gestão Social, a partir do caso da gestão da
orla do Portal da Amazônia, em Belém (PA).
A metodologia baseou-se na abordagem qualitativa, de caráter analítico-
descritivo e exploratório, tendo o estudo de caso único como método de investigação.
Para obtenção de dados primários e secundários foram aplicadas as técnicas da
documentação (indireta e direta) e das entrevistas semiestruturadas, realizadas com
quinze respondentes relevantes, entre novembro de 2015 e maio de 2016. Durante a
etapa de campo foram levantados documentos em arquivos públicos e particulares,
fotografias, mapas cartográficos e legislação, organizados e analisados por mapeamento
cognitivo.
Apresenta-se na primeira seção o arcabouço teórico da pesquisa. A seguir são
demonstrados, sucintamente, os principais resultados do estudo de caso, bem como as
suas correlações com as concepções teórico-normativas examinadas. Por último, são
apresentadas as conclusões relativas ao problema investigado.
2- A concepção teórica de cidade justa, democrática e sustentável
Cidade sustentável pode ser definida como aquela onde se harmonizam relações
sociais e princípios de justiça distributiva, o que propicia um desenvolvimento
econômico compatível com a proteção ambiental e a qualidade de vida dos habitantes
(Cavalazzi, 2007: 69). Não obstante, cidade sustentável é um conceito multidimensional
que se relaciona com mais de uma escala geográfica. Trata-se de um espaço onde
Estado, sociedade e mercado cooperam no sentido de melhorar o meio ambiente natural,
construído e cultural, em âmbito local, mas conectado com os objetivos da região
(Vasconcellos Sobrinho et al., 2009: 14).
Assim, o desafio político do desenvolvimento sustentável e, portanto, da cidade
sustentável, deve ser assumido pelo Poder Público para realização da dignidade humana
e melhoria da qualidade de vida nos espaços urbanos, o que pressupõe combate da
pobreza e exclusão social. As ações do Estado devem ser balizadas pela busca da
concretização de igualdade e liberdade, premissas para o exercício da cidadania nos
espaços urbanos (Dias, 2010: 320).
As cinco principais linhas de ação elaboradas pela Rede Latino-Americana por
Cidades e Territórios Justos, Democráticos e Sustentáveis, criada em 2008 para
acompanhar a qualidade de vida em cidades da América Latina – Brasil, Argentina,
Bolívia, Colômbia, Chile, México, Equador, Peru, Uruguai e Paraguai – apresenta
estratégias voltadas à realização da cidade sustentável, conforme ilustrado no Gráfico 1.
As linhas de ação correspondem a diretrizes para apoiar a construção de cidades
justas e sustentáveis, promover controle social e participação democrática. Elas são
referências para o planejamento, a implementação, o monitoramento e o controle de
ações e políticas públicas destinadas à realização de justiça social e sustentabilidade
urbana (Cáceres, 2014: 299).
Com base no Gráfico 1, verifica-se que a gestão democrática realizada por meio
da participação direta da população e da sociedade civil na elaboração, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano é
componente essencial da cidade sustentável. De fato, a cidade sustentável busca não
apenas uma justa distribuição de seus bens, mas também a consolidação dos
instrumentos políticos de controle social adequados à garantia da cidadania e do bem-
estar social (Grazia, 2001: 70).
Gráfico 1 - Principais linhas de ação propostas pela Rede Latino-Americana por Cidades e Territórios Justos, Democráticos e Sustentáveis
Fonte: Adaptado de Cáceres (2014: 299).
Na Carta Mundial “Por cidades, vilas e povoados, justos, democráticos e
sustentáveis” (1992), o direito à cidade sustentável é citado como um direito guarda-
chuva que abrange outros direitos, como o direito à terra, aos meios de subsistência, à
moradia, ao saneamento, à saúde, à educação, ao transporte público, à alimentação, ao
trabalho, ao lazer, à informação e à liberdade de organização, bem como o respeito aos
imigrantes e o reconhecimento de sua plena cidadania. Outrossim, gestão democrática é
compreendida como uma forma de se planejar, produzir, operar e governar as cidades
sujeita ao controle e à participação da sociedade civil, destacando-se como prioritário o
fortalecimento e a autonomia dos poderes públicos locais e a participação popular.
Em todas as perspectivas, participação é apontada como um elemento
indispensável à realização do projeto político da cidade justa, democrática e sustentável.
3- concepção de cidade justa, democrática e sustentável na legislação
brasileira
Na perspectiva do federalismo cooperativo brasileiro, o artigo 21, XX, da
Constituição da República de 1988 dispõe que compete à União instituir diretrizes para
o desenvolvimento urbano, enquanto o artigo 182 define que a política de
Monitorar o estado da situação das cidades no que diz respeito à
qualidade de vida, justiça social, democracia e sustentabilidade.
Promover a participação cidadã e uma cidadania ativa.
Promover espaços para diálogo entre a sociedade civil, atores
privados e a interlocução permanente com os poderes do
Estado.
Socializar informação e conhecimento para que se promova
uma participação informada da cidadania nos processos de tomada
de decisão.
Dar seguimento e incidir sobre as políticas
públicas.
desenvolvimento urbano deve ser executada pelo Poder Público municipal para
cumprimento da função social da cidade e garantia do bem-estar social. O artigo 225,
por sua vez, garante o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preserva-lo para as presentes e futuras gerações.
A Lei n. 10.257/2001, denominada Estatuto da Cidade, ao regulamentar os
artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, fixou normas sobre o uso e a ocupação do
solo urbano para realização de igualdade, cidadania e melhoria da qualidade de vida
humana. As limitações urbanísticas visam promover a realização da função social da
posse, da propriedade e da cidade, o bem-estar humano e o equilíbrio ambiental para
efetivação do direito à cidade justa, democrática e sustentável.
O artigo 2º da Lei n. 10.257/2001 apresenta as diretrizes gerais que devem guiar
o Brasil na realização da sustentabilidade urbana, entre elas as de cunho social que
asseguram o direito à cidade sustentável, entendido como aquele que se materializa por
meio da realização do direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à
infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.
Para garantir o controle direto do Poder Público e o exercício da cidadania sob
uma perspectiva ampliada – a democracia participativa não se exaure no voto, nem se
resume ao exercício da democracia direta nas figuras do plebiscito, do referendo e da
iniciativa legislativa popular – os artigos 43 a 45 da Lei n. 10.257/2001 determinam que
os gestores municipais incluam, obrigatoriamente, a participação popular e da sociedade
civil na gestão democrática da cidade. O que se pode inferir, portanto, a partir da Lei n.
10.257/2001 é que a realização da cidade sustentável depende do exercício contínuo da
democracia na gestão urbana, mediado pela cooperação e pela participação de múltiplos
atores sociais, com liberdade e igualdade de condições para participar.
Pela inspiração política da Constituição de 1988, que se afina com as diretrizes
do Estatuto da Cidade, verifica-se que participação democrática, enquanto conquista
política, é, ao mesmo tempo, meio e fim de autopromoção para a efetivação do direito
humano ao meio ambiente e ao desenvolvimento urbano sustentável. Esse
reconhecimento, porém, exige a criação de instituições de inovação cívica para o
exercício de uma cidadania ativa e o compartilhamento de responsabilidade entre Poder
Público e coletividade.
A concepção de cidade justa, democrática e sustentável está materialmente
contida nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, uma vez que
contribui para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do
desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução
das desigualdades sociais e regionais.
A fundamentalidade do direito à cidade justa, democrática e sustentável decorre
de sua indispensabilidade ao bem-estar coletivo e à realização da dignidade humana, por
isso constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito, no qual se assenta a
unidade do ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição da República de 1988, nesse
sentido, por força dos seus artigos 5º, §1º e §2º; 182 e 225, exerce um papel integrador e
validador das normas previstas no Estatuto da Cidade, permitindo a identificação do
caráter objetivo e da horizontalidade do direito ao meio ambiente.
Apesar dos avanços legislativos, o ordenamento jurídico brasileiro assinala tão
somente a concepção política que reconheceu e positivou, mas não aponta como torná-
la concreta na prática. A superação desta lacuna pode advir de uma interseção entre as
normas jurídicas analisadas e as teorias sobre gestão a seguir discutidas, que se revelam
aplicáveis às cidades brasileiras.
4- Gestão de Bens Comuns na perspectiva de Ostrom
Apesar da relevância dos trabalhos de Gordon (1954), Hardin (1968) e Olson
(1969) sobre ação coletiva, a teoria da Gestão de Bens Comuns tem como expoente
Elinor Ostrom (Vasconcellos Sobrinho et al., 2016: 9).
Bem comum corresponde a um dos quatro tipos de bens econômico – bens de
livre acesso, propriedade privada, propriedade pública e bens de propriedade comunal
(Feeny et al., 2001: 20). É definido como aquele bem que é de todos e de ninguém ao
mesmo tempo, uma vez que atende a necessidades coletivas (Poteete et al., 2011). O uso
que uma pessoa faz de um bem comum subtrai o uso de outra pessoa, em maior ou
menor proporção, por isso, ele é caracterizado como um bem indivisível e de difícil
exclusão de usuários (Hess; Ostrom, 2007: 349), por motivos que podem ser de ordem
técnica, jurídica, ecológica ou econômica.
Bens comuns não se confundem com os bens públicos, nem com os bens de livre
acesso, que são intangíveis e não possuem valor econômico (Lauriola, 2009: 5).
Possuem natureza econômica sui generis, são subtraíveis e podem ser tanto espaços
quanto recursos naturais ou artificiais, como é o caso das orlas de uma cidade. O bem
comum forma-se a partir de uma prática social de comunalização que o torna não
mercantilizável, devendo ser usufruído por todos, sem discriminação.
Ostrom percebeu que as pessoas têm potencial para elaborar e executar acordos
autonomamente, criar e adaptar regras informais relativas ao uso de recursos de uso
coletivo e cooperar para a satisfação de necessidades comuns, sendo elas próprias as
protagonistas da estratégia de sobrevivência na comunidade, mesmo que coexista uma
autoridade externa (estatal ou privada). Verificou-se que a cultura das comunidades
estudadas era determinante para a autorregulação e autogestão dos bens comuns e
também para motivar a participação dos habitantes em prol de interesses
compartilhados.
Os elementos diálogo, confiança mútua e cooperação foram identificados como
atributos valorativos essenciais ao êxito do modelo de gestão coletiva, porque capazes
de evitar comportamentos individualistas e irracionais que conduzem à superexploração,
à escassez e à degradação de recursos comuns (Ostrom, 2011).
A importância das normas e instituições jurídicas para regulamentar e controlar
o acesso aos bens comuns não é refutada pela teoria de Ostrom (perspectiva
neoinstitucional), porém coloca-se em discussão que as estruturas governamentais
poderiam ser mais abertas ao reconhecimento das regras de cooperação criadas
espontaneamente pelas comunidades, uma vez que a gestão centralizada por autoridades
estatais ou por agentes privados é passível de fracasso.
Considerando a realidade brasileira, um questionamento que emerge dos pontos
acima apresentados é: qual modalidade de gestão pública poderia, em âmbito municipal,
propiciar o acesso e a gestão coletiva de bens comuns urbanos, a exemplo das orlas de
uma cidade, de forma compatível com os marcos teóricos e regulatórios voltados à
construção de cidades justas, democráticas e sustentáveis?
Pensar de que forma o modelo de autogestão desenvolvido por Ostrom pode ser
implementado em realidades sociais complexas sem parecer um mito ideológico e sem
se confundir com uma perspectiva liberal de gestão, é um desafio que se tentará
enfrentar a seguir, por meio da Gestão Social.
5- Gestão Social: por uma nova racionalidade prática
Os primeiros estudos sobre Gestão Social no Brasil são atribuídos a Tenório, que
tem se debruçado sobre o tema desde o início da década de 1990 (Cançado et al., 2015:
103).
A qualificação do termo “gestão” pelo adjetivo “social” traduz a essência da
modalidade gerencial, compreendida como aquela em que todos podem falar e ser
ouvidos sem coação (Tenório, 2016: 13). A Gestão Social é definida como um processo
decisório intersubjetivo, um “espaço de intermediação entre o Estado, sociedade e
mercado”, em que o procedimento da prática da cidadania deliberativa é a participação
(Cançado et al., 2015: 110). Nesse sentido, as decisões de interesse coletivo devem ser
tomadas democrática e responsavelmente pelos participantes do processo, mediante um
agir deliberativo e consciente que beneficia a todos.
Isso não significa que as ações coletivas só vão ocorrer em ambientes livres de
disputas de interesses e desconfiança, entretanto na Gestão Social os conflitos são
entendidos como inerentes à aprendizagem democrática e à interação social. Para que o
processo decisório funcione até mesmo em condições não ideais, o Estado precisa
descentralizar o poder de decisão, propiciar a criação de novas estruturas comunicativas
e de competências específicas, prerrogativa para que os cidadãos possam participar do
planejamento, da decisão e do controle de políticas públicas.
As habilidades requeridas para a tomada de decisão coletiva são fundadas na
teoria da ação comunicativa de Habermas, que busca reaproximar razão e ética para
resgate da racionalidade humana por meio do entendimento e do diálogo intersubjetivo
(Cançado et al., 2013: 81).
A Gestão Social é caracterizada pela tomada de decisão coletiva, destituída de
coerção, alicerçada na inteligibilidade da linguagem e da informação, na dialogicidade,
no entendimento esclarecido como processo, na transparência como premissa e na
emancipação como fim. Desse modo, a ação decisória pode ser mais demorada e
complexa do que na gestão tecnocrática, devido à quantidade de envolvidos no
processo, já que a deliberação coletiva, na esfera pública, é baseada na sustentabilidade
e na solidariedade entre atores sociais plurais, para que os objetivos comuns sejam
alcançados (Cançado et al., 2015: 131).
Esfera pública corresponde a um espaço no qual as pessoas apresentam suas
demandas e preocupações por meio do entendimento mútuo (Tenório, 2016: 16). Trata-
se, portanto, de um espaço propício ao debate, à comunicação e deliberação entre
sociedade, Estado e mercado (Administração Pública ampliada). É na esfera pública que
se pode contribuir para a emancipação das “[...] relações de descriminação e exploração
social” (Tenório, 2016: 17) e para o desenvolvimento da democracia.
Na Gestão Social, a cidadania deliberativa é entendida como aquela vai legitimar
as decisões tomadas coletivamente, no bojo de processos dialógicos norteados por
pressupostos de inclusão, pluralismo, autonomia, igualdade de condições para participar
e bem comum (Tenório, 2016: 16).
Tendo em visto o exposto, apresenta-se a seguir uma proposta voltada à
operacionalização dos objetivos da cidade justa, democrática e sustentável por meio da
Gestão Social de bens comuns urbanos.
6- Uma proposição para cidadania deliberativa e desenvolvimento urbano
sustentável
O Quadro 1, a seguir exposto, sistematiza uma aproximação entre as categorias
teóricas da Gestão Social, da Gestão de Bens Comuns, na perspectiva de Ostrom (2011),
e os elementos encontrados nas concepções revisadas de cidade justa, democrática e
sustentável, revelando a confluência de ideias que emerge do entrelaçamento de tais
diferentes campos do conhecimento.
Quadro 7 - Elementos teóricos convergentes
Dimensão Gestão Social Gestão de Bens ComunsCidade justa, democrática e
sustentávelPonto de partida
Participação / Democracia Deliberativa Participação Participação
Racionalidade Dialogicidade Pacto social Engajamento / controle social
Tomada de decisão
Coletiva, sem coerção / Entendimento
Coletiva / Entendimento / Acordo Democrática
Transparência Informações disponíveis e inteligíveis
Informações disponíveis e inteligíveis
Direito-dever à informação de interesse público
Espaço Esfera Pública Áreas rurais e urbanas / espaço social Áreas urbanas
Finalidade da gestão
Interesse Bem Compreendido / Bem-estar coletivo
Interesses comuns do grupo
Bem-estar coletivo / dignidade humana / proteção ambiental
Método Teoria Crítica Teoria Crítica
Teoria do Desenvolvimento sustentável / Direitos Humanos
Concepção de estrutura organizacional
Heterarquia Policentrismo Descentralização do poder
Modus operandi Cooperação
Cooperação / Confiança mútua / Autogestão / Regras informais
Cooperação / Gestão compartilhada com o Poder Público
Benefícios Melhoria na qualidade de vida Proteção de bens comuns Melhoria na qualidade de
vida e do meio ambiente
Dimensão temporal Sustentabilidade Sustentabilidade Sustentabilidade
Amplitude da ação
Preocupação geral com o contexto
Preocupação com o contexto de um grupo
Preocupação geral com o contexto
Visão Intersubjetividade Relação entre usuários de bens comuns
Relação entre sociedade, Estado e mercado
FocoSociedade / Organizações / Instituições
Grupo / Comunidade Sociedade
Consequência EmancipaçãoSustentabilidade dos recursos de propriedade comum
Justiça social e sustentabilidade urbana
Fonte: Adaptado de Cançado et al., 2015: 117).
Ao se analisar as dimensões expostas no Quadro 1, verifica-se que os elementos
das duas modalidades gerenciais examinadas são distintos em muitos aspectos –
racionalidade, espaço, finalidade, benefícios, concepção de estrutura organizacional,
amplitude da ação, visão, foco e consequência – todavia apresentam similitudes e
interseções quanto ao ponto de partida, à tomada de decisão, transparência, ao método,
modus operandi e à dimensão temporal.
Como se pode notar, quando as teorias sobre gestão são cotejadas com os
elementos formadores das concepções de cidade justa, democrática e sustentável,
percebe-se claramente uma confluência quanto ao ponto de partida, a transparência, o
modus operandi e a dimensão temporal. Participação, informação, cooperação e
sustentabilidade são, respectivamente, os quatro pontos de convergência encontrados.
Neste trabalho considera-se que a informação é corolário da efetividade da
participação e da cooperação, portanto indispensável aos processos de planejamento,
tomada de decisões e gestão de bens comuns urbanos para construção coletiva da cidade
justa, democrática e sustentável e do desenvolvimento territorial. Assim sendo,
considera-se que apenas as categorias participação e cooperação representam, de fato,
elos entre os campos do conhecimento investigados, por isso foram selecionadas para
serem testadas no estudo de caso sobre a gestão das orlas de Belém (PA), a partir da
gestão da orla do Portal da Amazônia (objeto empírico da pesquisa).
Conclui-se que a gestão de cidades orientada pelo paradigma da sustentabilidade
e pelo princípio de justiça social demanda participação deliberativa e cooperação de
múltiplos atores sociais. O exercício democrático ampliado pressupõe informação sobre
assuntos de interesse público, ferramenta capaz de proporcionar condições de debate,
diálogo e deliberação coletiva, na esfera pública, sobre bens comuns urbanos.
7- A orla do Portal da Amazônia, em Belém (PA), enquanto bem comum
urbano
O território belenense é, na sua maior parte, insular e na menor porção
continental. A cidade, capital do estado do Pará, Brasil, é entremeada e circundada por
rios e igarapés, sendo a Baía do Guajará, na direção oeste, e o Rio Guamá, ao sul, os
mais importantes cursos d’água. A orla do Portal da Amazônia, margem continental do
Rio Guamá (rio sob gestão estadual), localiza-se na bacia hidrográfica da Estrada Nova,
uma das maiores de Belém. O espaço é classificado pelo Plano Diretor (2008) como
“orla Setor A”, bem de uso comum cuja destinação preferencial é para a recuperação
urbanística e paisagística1.
A requalificação da orla (parque linear), entre os anos de 2006 e 2012, decorreu
de um projeto de intervenção urbana promovido pelo Poder Público municipal, no
contexto da implementação do grande projeto urbano denominado “Portal da
Amazônia”. A obra pública, originalmente, contemplaria 6.600 metros de extensão,
conectando pela linha viária três bairros periféricos da cidade. Apesar da proposta
inicial, apenas um pequeno trecho foi concluído, ficando a maior parte sem previsão de
execução.
Conforme demonstrado no Mapa 1, o trecho implantado apresenta 1.500 metros
e tem o formato de uma alça viária que se projeta extra continente em direção ao Rio
Guamá, executado com aterramento hidráulico da margem continental do curso d’água.
A área diretamente afetada pelo projeto é próxima ao centro comercial da cidade e
começou a ser espontaneamente ocupada na década de 1970 por pessoas de baixa renda
que não tinham acesso formal à habitação2.
Mapa 1 - A orla do Portal da Amazônia1 A gestão das orlas de Belém é orientada pelo diagnóstico propositivo do zoneamento municipal, que divide a cidade em sete Zonas de Ambiente Urbano (ZAU) e três Zonas de Ambiente Natural (ZAN). Segundo o Plano Diretor, na ZAU 5, onde se localiza a orla em estudo, os objetivos são mais voltados à urbanização e regularização fundiária de núcleos habitacionais de interesse social, à contenção das ocupações no entorno de canais, ao ordenamento do adensamento construtivo, à promoção de alternativas habitacionais que privilegiem a habitação popular, à ampliação da infraestrutura básica, dinamização das atividades de comércio e serviço e implantação de equipamentos públicos, espaços verdes e de lazer.2 De acordo com levantamento socioeconômico realizado em 2006 sob coordenação da Secretaria Municipal de Urbanismo, a área de influência do projeto era ocupada por 883 moradores SEURB (Pará, 2006a).
Fonte: Autora, 2016.
A orla selecionada como objeto empírico de análise constitui, do ponto de vista
do regime jurídico-patrimonial, um terreno de marinha, bem público de uso comum3
sujeito à gestão federal, por isso a intervenção urbana pelo Poder Público municipal foi
antecedida de autorização da União. Antes da intervenção urbana, o espaço era marcado
por precariedade de equipamentos urbanísticos, saneamento e serviços públicos. Por
estar localizado em área de várzea da cidade, o espaço apresentava um acentuado
quadro de degradação da Área de Preservação Permanente4, que expunha moradores e
comerciantes a riscos ambientais e tecnológicos, como aqueles provocados por
enchentes e poluição.
Devido aos impactos negativos que produziria, a obra pública sujeitou-se à
realização de processo de licenciamento ambiental e de Estudo de Impacto Ambiental
por exigência da legislação brasileira, os quais foram acompanhados pelo órgão
3 A comunalização da orla decorre tanto das práticas sociais, econômicas, políticas e culturais quanto das normas jurídicas produzidas para disciplinar as práticas sociais em tais espaços, isto é, as diversas formas de uso e ocupação do solo, harmonizando interesses individuais e coletivos e evitando usos insustentáveis.4 As APPs da cidade compõem o chamado Sistema Municipal de Áreas Verdes e de Lazer, que tem entre os seus objetivos os seguintes: assegurar usos do solo compatíveis com a preservação e proteção ambiental; ampliar os espaços de lazer ativo e contemplativo, criando parques lineares ao longo dos cursos d’água não urbanizados; aumentar e articular os espaços de uso coletivo (Lei municipal n. 8.655/2008, artigos 57, II, 58, V e VII). De acordo com os artigos 64 e 65 do Plano Diretor de 2008, em vigor, a rede hídrica que entrecorta o território municipal (lagos, rios e igarapés) deve ser margeada por corredores ecológicos, os quais têm entre as suas finalidades proteger as APPs e promover a recuperação de áreas degradadas.
ambiental estadual, hoje denominado Secretaria de Estado de Meio Ambiente e
Sustentabilidade, a quem incumbia as competências para licenciar e fiscalizar.
8- Intervenção urbana para que e para quem?
De acordo com o Projeto Básico Ambiental do empreendimento que integrou o
processo de licenciamento ambiental, o qual foi modificado diversas vezes durante o
processo de implantação da obra, a intervenção urbana visava abrir uma “janela” para o
Rio Guamá, espaço público de circulação e lazer que propiciaria a geração de emprego
e renda na área de influência direta do projeto, além de promover melhoria nas
condições de saneamento e habitação da população residente na área (Pará, 2006a). A
proposta surgiu no contexto de outras ações promovidas tanto pelo Poder Público
municipal quanto estadual desde a década de 1990, para reconfiguração paisagística das
orlas de Belém.
As Fotografias 1, 2, 3 e 4, a seguir expostas, demonstram as principais etapas do
processo de implantação da obra pública na orla do Portal da Amazônia. Por meio das
imagens se pode notar que a paisagem da orla do Portal da Amazônia sofreu
significativa alteração após o término da intervenção urbana. Onde antes existiam
precárias residências erguidas sob palafitas (Fotografias 1 e 2)5 foi realizado
aterramento hidráulico de partes alagadiças. Fez-se também arruamento, calçamento,
instalação de equipamentos urbanísticos e de elementos ornamentais (Fotografias 3 e 4)
que, de fato, favoreceram a contemplação do Rio Guamá, o passeio público, o turismo,
a circulação de veículos e a realização de atividades comerciais na orla e no seu entorno.
Fotografia 1- A orla antes da intervenção urbana
Fotografia 2- A obra durante a etapa de aterramento hidráulico do Rio Guamá
5 Muitas ocupações privadas verificadas nos espaços de orla e que hoje se revelam incompatíveis com a legislação ambiental vigente foram favorecidas por omissão legislativa pretérita ou por normas permissíveis atualmente revogadas, que foram editadas em outro contexto histórico, social, político, jurídico e econômico da cidade. Na paisagem de Belém, principalmente nas suas orlas continentais, estão impressas as marcas das lógicas de desenvolvimento urbano anteriores às premissas contemporâneas da cidade justa, democrática e sustentável. Incumbe ao Poder Público municipal a competência para conciliar em tais dinâmicos espaços um emaranhado de leis (federais, estaduais e municipais) e interesses conflitantes que, apesar disso, devem convergir para um propósito comum.
Fonte: Pojo, 2016. Fonte: Pojo, 2016.
Fotografia 3- Vista aérea da orla após a conclusão da obra
Fotografia 4- Equipamentos urbanísticos e aspecto paisagístico da orla após a obra
Fonte: ORM, 2013. Fonte: Autora, 2016.
O que as fotografias não revelam é a segregação espacial, a injustiça social e a
violação do direito à participação popular na gestão democrática da cidade
experimentados, em especial, pelas pessoas remanejadas involuntariamente da orla, as
quais foram privadas do acesso ao bem comum urbano6 para que a obra pudesse ser
executada em nome do interesse público. A urbanização do espaço serviu como
contrapartida do Poder Público municipal a investimentos externos recebidos para
realização de macrodrenagem e saneamento da bacia hidrográfica da Estrada Nova,
onde se situa a orla do Portal da Amazônia.
Não obstante tenha obtido licenças ambientais7 e contado com a realização de
Estudo de Impacto Ambiental8, as indefinições técnicas sobre o projeto indicam que não
6 O artigo 107 do Plano Diretor dispõe que são insuscetíveis de regularização urbanística e fundiária as ocupações localizadas em bens públicos de interesse coletivo, precisamente nos leitos e margem de cursos d’água e igarapés, ressalvado excepcionalmente o disposto em normas que permitem a regularização fundiária sustentável de assentamentos humanos em Áreas de Preservação Permanente.7 Processos de licenciamento ambiental n. 215083/2006 (Licença Prévia), n. 382022/2006 (Licença de Instalação) e n. 275333/2007 (renovação da Licença de Instalação e Licença de Operação).8 A legalidade da licença ambiental concedida e a legalidade da contratação da construtora estão sub judice por força da ação civil pública n. 001003581.2006.4.01.3900, proposta pelo Ministério Público Federal, em trâmite na 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Pará. A sentença declarou a nulidade da Licença Prévia e do contrato administrativo, mas os seus efeitos estão suspensos, aguardando julgamento definitivo dos recursos interpostos pelos requeridos.
houve transparência da informação e consideração do interesse comum nas tomadas de
decisões sobre a intervenção urbana, na medida em que demandas e críticas populares
importantes, sobretudo por acesso à moradia, apresentadas durante e após audiência
pública, não foram adicionadas ao projeto original ou o foram de maneira insatisfatória,
como se pode abstrair de trechos abaixo colacionados do Parecer Técnico n.
13844/GEINFRA/CLA/DILAP/2010, integrante dos autos do processo de
licenciamento ambiental:“Sobre as ações de divulgação dirigida vinculada ao processo de reassentamento e as de atendimento a consultas e reclamações que estariam nitidamente imbrincadas, percebe-se insuficiência e/ou ineficácia das mesmas, uma vez que existe grande desconhecimento da população sobre as ações de remanejamento e de reassentamento, fato que foi possível perceber em vistoria (realizada em julho de 2007), nos comentários expostos em reuniões públicas ocorridas e também nas próprias reportagens veiculadas nos meios de comunicação. Assim, torna-se necessário ajustar os canais de comunicação e de relacionamento entre o empreendimento e os constitutivos sociais para que ocorra uma real e concreta efetividade destas ações de esclarecimentos. Nesse sentido, ressalta-se que as ações de comunicação social devem, entre outros, regerem os anseios e as expectativas das populações direta ou indiretamente atingidas, mapeando todas as partes interessadas e as possíveis alterações nos diagnósticos socioeconômicos obtidos na região. Com relação às ações de ‘atendimento a consultas e reclamações’, foi informado que, em decorrência das alterações ocorridas no Programa de Reassentamento, tiveram suas implementações adiadas. Também estaria sendo definido o local para implantação do ‘Plano Social’ que iria funcionar com equipe especialmente contratada pela SEHAB, para esclarecimentos sobre o andamento das ações. Ademais, foi apresentado um cronograma de reuniões participativas comunitárias a serem realizadas com a população afetada e com os proprietários de atividades econômicas. [...]No dia 29 de julho de 2008, contando com 75 participantes, ocorreu assembleia com moradores das 77 (setenta e sete) residências que integram a primeira etapa de imóveis a serem remanejados inicialmente do setor B (Vilas Elaine, Santos, Palmito, Santa Rita, Passarinho e Valério), em que técnicas do departamento Social da SEHAB responderam as dúvidas dos moradores e prestaram mais esclarecimentos sobre o remanejamento. Foram abordados alguns problemas gerados em decorrência das informações incertas deflagradas na comunidade, o plano de reassentamento e seus critérios e a manifestação dos moradores em relação aos aspectos ‘dificultadores’ das negociações entre a prefeitura e comunidade.[...]Diferentemente de outros projetos desta natureza que habitualmente incorporam entre suas ações de mitigação ambiental programas de educação ambiental, o estudo ambiental (EIA) atrelou o referido programa somente para a fase de operação, o que é questionado nesse parecer técnico. Por outro lado, o estudo destacava no âmbito do programa de comunicação social campanhas de educação que, de maneira insipiente, cumprem de alguma forma o papel da educação ambiental, todavia com menor dimensionamento, tornando-se assim imprescindível a urgente aplicação do programa (com equipe, metas, cronograma, investimento etc.) para estas intenções” (Pará, 2007: 124-125).
Além das questões pontuadas no citado parecer, o Estudo de Impacto Ambiental
limitou a análise às relações estabelecidas na margem continental do Rio Guamá,
desprezando questões urbanas e intra-urbanas relevantes, como o transporte fluvial de
cargas e passageiros e as relações socioeconômicas e culturais estabelecidas na orla do
Portal da Amazônia com ilhas, feiras, portos e mercados da cidade.
A preocupação do Poder Público municipal estava centrada na engenharia da
obra e não na melhoria das condições de vida da população diretamente afetada pelo
empreendimento. Com efeito, em vez de assegurar a realização de direitos
fundamentais, a intervenção urbana acabou produzindo segregação socioespacial,
mudanças materiais, rompimento da rede de relações de vizinhança e de vínculos
afetivos mantidos com o lugar de moradia e trabalho, além de descaracterização de
modos de vida tradicionais e de prejuízo a relações simbólicas estabelecidas com o rio.
9- A margem do rio à margem do direito à gestão democrática do bem comum
urbano
Na fase inicial da intervenção urbana, dificuldades para acesso à informação,
diálogo e participação de múltiplos atores sociais geraram tensões e conflitos nas
relações entre agentes públicos municipais e ocupantes da orla do Portal da Amazônia.
O principal motivo era um descontentamento popular com a forma centralizada e
coercitiva como o processo estava sendo conduzido. Outras insatisfações estavam
relacionadas aos valores oferecidos pelo Poder Público para a indenização de
benfeitorias e o pagamento das despesas necessárias aos remanejamentos, como o
pagamento de auxílio moradia.
Ao comentar o que aconteceu com as famílias que residiam na orla, o
Entrevistado 12 da pesquisa, líder comunitário e associado da Associação de
Trabalhadores Informais do Portal da Amazônia, explicou:
“Até hoje elas não voltaram. Estão morando de aluguel, porque recebem um auxílio moradia no valor de R$500,00, que é o contrato assinado. Muitas famílias têm esse contrato assinado, onde diz que elas tinham o prazo de um ano para voltar para suas casas. Recebiam o auxílio moradia que era para pagar as casas onde elas iam morar. Só que em uma das cláusulas diz que se não entregar, se não aprontar os apartamentos em um ano, ia se prorrogar até que ficasse pronto. Mas aí não existe uma data. Foi o grande erro dessas famílias [...]. Eles não tinham nenhum tipo de projeto para as famílias. Em nenhum momento disseram que moram famílias lá, não se preocuparam [...]. Claro, uma orla dessa é muito bonita e ninguém ia ficar a favor das famílias. Mas as famílias também são seres humanos e precisavam ser recompensadas de alguma forma. Indenização em cima da maré, em cima da lama era
baixíssima. Foi aí que o Prefeito pediu que fosse feito um projeto habitacional. Não existia projeto para cá para as famílias. E aí ele fez um projeto em que foram contempladas 360 famílias que moram na área. Das 360, apenas cerca de 280 abraçaram o projeto dele assinando esse contrato que sairiam das suas casas para receber os apartamentos depois. As outras 80 resistiram”.
A fala do Entrevistado 12 indica que, na fase preliminar da obra, o Poder
Público municipal precisou celebrar um Termo de Acordo com os ocupantes da orla
para convencê-los a deixar a área. Uma cláusula teria garantido aos moradores o direito
de serem reassentados na mesma área de onde seriam remanejados quando fosse
concluída a obra, o que de fato não ocorreu, prejudicando a formação de vínculos de
confiança mútua e de cooperação espontânea entre os atores sociais envolvidos no
processo.
A condição assecuratória do Termo de Acordo facilitou e agilizou a aceitação do
remanejamento involuntário e evitou um maior desgaste dos agentes municipais com
ocupantes e lideranças comunitárias, que tinham diferentes opiniões e visões político-
partidárias. Nesse sentido, considerando os pressupostos da Gestão Social, não se pode
afirmar que houve compartilhamento da autoridade decisória, já que não se fazem
presentes indícios de intelegibilidade da informação, intersubjetividade no processo
deliberativo, tampouco formação de consenso por meio do diálogo.
A intervenção urbana foi assinalada pela retórica da participação, palavra que
constou em diversos documentos e pronunciamentos oficiais. Entretanto, registros feitos
na ata da audiência pública, os pareceres técnicos trasladados aos autos do processo de
licenciamento ambiental, o conteúdo da ação civil pública proposta pelo Ministério
Público Federal e os depoimentos dos entrevistados da pesquisa revelaram que, na
realidade, não houve um processo de construção participativa do interesse coletivo para
a gestão do bem comum urbano.
Mesmo que o projeto tenha contado formalmente com a criação de um Conselho
Gestor e de uma Comissão de Acompanhamento de Obra, o teor do supracitado Parecer
Técnico n. 13844/GEINFRA/CLA/DILAP/2010 (Pará, 2007: 124-125) deixa claro que
não houve efetiva abertura para o compartilhamento de responsabilidades entre
coletividade e Poder Público municipal. A rigor, não houve debate na esfera pública
para construção dialógica do interesse coletivo e gestão compartilhada do bem comum
urbano.
A consulta popular em audiência pública não teve caráter deliberativo sobre a
(im)possibilidade de continuidade ou alteração do projeto, servindo apenas como
elemento formal constitutivo do processo de licenciamento ambiental. Esses fatores
levaram o Entrevistado 5, líder comunitário e Diretor Geral da Associação de
Moradores de Terrenos de Marinha do Estado do Pará, a afirmar que “[...] tudo é
decidido por lá, não é consultado nada aqui”.
O convencimento forçado da população sobre as propagadas vantagens do
projeto está presente na fala do Entrevistado 15, Presidente da Associação de
Vendedores da Orla do Portal da Amazônia: “[...] A comunidade não tinha como barrar
o projeto. Ele é um bem coletivo que vai trazer benefício para toda a coletividade”. A
conformação com a realidade que sobressai do depoimento do Entrevistado 15 indica
que a população residente na orla não se sentia empoderada e corresponsável pelo
futuro da cidade e sim subordinada à lógica excludente da gestão do bem comum
urbano. Logo, não há indícios de que participação democrática tenha sido efetivamente
promovida e internalizada pela gestão pública, tampouco que a experiência tenha
proporcionado inovação cívica.
Na contramão dos fundamentos da Gestão Social, o projeto levou a uma
agudização do quadro já existente de exclusão social, evidenciando que o planejamento
do desenvolvimento urbano apartado da concepção de cidade justa, democrática e
sustentável produziu muito mais condições favoráveis à espoliação do bem comum
urbano do que à realização do bem-estar social e da dignidade humana.
A rigor, os processos de planejamento, implantação e monitoramento da
intervenção urbana não propiciaram um adensamento democrático, pois limitaram-se à
esfera da participação formal para “cumprimento” de exigências burocráticas. O
planejamento da intervenção urbana ocorreu sob as bases da gestão tecnocrática
(centralizada), violando o direito dos habitantes da cidade à participação no processo de
tomada de decisão sobre o desenvolvimento urbano.
Conclui-se que a orla do Portal da Amazônia espelha as contradições de um
processo de domínio social e apropriação do bem comum urbano, no qual foram
dispostos equipamentos urbanísticos e promovidas mudanças concebidas e decididas
por técnicos e agentes estatais, à revelia do pleno exercício da cidadania política.
10- Considerações Finais
A pesquisa conceitual sobre cidade justa, democrática e sustentável revelou que
o significado vem se dinamizando ao longo do tempo, tendo sido incorporado pelo
Brasil no seu ordenamento jurídico, materialmente por meio da Constituição da
República de 1988 e formalmente por intermédio da Lei n. 10.257/2011 (Estatuto da
Cidade).
A aproximação entre as concepções de cidade justa, democrática e sustentável e
os constructos extraídos da Gestão de Bens Comuns e da Gestão Social favoreceu a
compreensão de como se pode operacionalizar os objetivos e as diretrizes investigados,
derivados dos marcos regulatórios brasileiros. Constatou-se que participação e
cooperação constituem pontos de ligação entre os campos do conhecimento
aproximados, demonstrando a possibilidade de aplicação Gestão Social para gestão de
bens comuns urbanos, em bases democráticas e sustentáveis.
O estudo de caso único revelou que nenhum critério utilizado para avaliação dos
elementos participação e cooperação na gestão da unidade de análise manifestou
proximidade com os modelos teóricos confrontados, considerando-se as três fases da
intervenção urbana promovida pelo Poder Público municipal na orla do Portal da
Amazônia (concepção, implantação e monitoramento), em Belém, Pará, Brasil.
Dados primários e secundários levantados por múltiplas fontes de evidências
(documentais e entrevistas semiestruturadas) apontaram apenas pontos de afastamento e
iniciativa insuficiente na gestão do espaço urbano de uso comum, demonstrando que o
modelo de desenvolvimento urbano adotado pelo Brasil, consubstanciado na concepção
de cidade justa, democrática e sustentável, permanece sendo uma norma-objetivo ainda
não concretizada na realidade da capital paraense.
Novas frentes de expansão da cidade de Belém, impulsionadas sobretudo por
agentes estatais e econômicos, colocam em risco o acesso a bens comuns urbanos pela
apropriação privada e pela aplicação de modelos de planejamento e gestão de cidades
descomprometidos com a realização da dignidade humana e com pressupostos
democráticos. Urge, pois, como necessário que os desafios políticos do
desenvolvimento sustentável e da democracia deliberativa sejam assumidos por todos os
atores sociais, com liberdade e igualdade de condições para participar e cooperar, em
direção à efetivação de direitos humanos e à proteção do meio ambiente.
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