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    Doc On-line www.doc.ubi.ptRevista Digital de Cinema DocumentrioRevista Digital de Cine DocumentalDigital Magazine on Documentary CinemaRevue lectronique du Cinma Documentaire

    Filmes caseiros e filmes para a internetPelculas caseras y pelculas para la webHome movies and movies for the internetFilms damateurs et films pour linternet

    n.05 (12. 2008)

    Le Repas de Bb(1895), de Louis et Auguste Lumire

    EditoresMarcius Freire (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)Manuela Penafria (Universidade da Beira Interior, Portugal)

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    CONSELHO EDITORIAL:Anabela Gradim (Universidade da Beira Interior, Portugal)Annie Comolli (cole Pratique des Hautes tudes, Frana)Antnio Fidalgo (Universidade da Beira Interior, Portugal)Bienvenido Len Anguiano (Universidad de Navarra, Espanha)Carlos Fontes (Worcester State College, EUA)Catherine Benamou (University of Michigan, EUA)Claudine de France (Centre National de la Recherche Scientifique-CNRS, Frana)Frederico Lopes (Universidade da Beira Interior, Portugal)Gordon D. Henry (Michigan State University, EUA)Henri Arraes Gervaiseau (Universidade de So Paulo, Brasil)Jos da Silva Ribeiro (Universidade Aberta, Portugal)Joo Luiz Vieira (Universidade Federal Fluminense, Brasil)Joo Mrio Grilo (Universidade Nova de Lisboa, Portugal)Julio Montero (Universidad Complutense de Madrid, Espanha)Luiz Antonio Coelho (Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil)Margarita Ledo Andin (Universidad de Santiago de Compostela, Espanha)Michel Marie (Universit de la Sorbonne Nouvelle - Paris III, Frana)Miguel Serpa Pereira (Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil)Patrick Russell LeBeau (Michigan State University, EUA)Paula Mota Santos (Universidade Fernando Pessoa, Portugal)Paulo Serra (Universidade da Beira Interior, Portugal)Philippe Lourdou (Universit Paris X - Nanterre, Frana)Robert Stam (New York University, EUA)

    Rosana de Lima Soares (Universidade de So Paulo, Brasil)Tito Cardoso e Cunha (Universidade da Beira Interior, Portugal)

    c Doc On-line www.doc.ubi.ptRevista Digital de Cinema Documentrio |Revista Digital de Cine Documental | Digital Magazine on Documentary Cinema |Revue lectronique du Cinma Documentaire

    Universidade da Beira Interior, Universidade Estadual de CampinasDezembro 2008ISSN: 1646-477XPeriodicidade semestral > Periodicidad semestral > Semestral periodicity >

    Priodicit semestrielle

    Contacto dos Editores:[email protected]@gmail.com

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    ndice

    EDITORIALEditorial | Editors note | ditorial 1

    Filmes caseiros e filmes para a internetporMarcius Freire, Manuela Penafria 2

    ARTIGOSArtculos | Articles | Articles 3

    Cinema 2.0: o cinema domstico na era da internetporLus Nogueira 4

    Narrativas imagticas na Web: leituras e construes hipertextuais

    porLuisa Paraguai 24

    Arquivos ntimos na tela: os filmes de famlia no documentrio PersonporPatrcia Furtado Mendes Machado 36

    O Cinema do Umbigo: Primeiras reflexes sobre uma certa tendncia de ci-nema caseiro no cinema portugusporPaulo M. F. Cunha 50

    ANLISE E CRTICA DE FILMESAnlisis y crtica de pelculas | Analysis and film re-view | Analyse et critique de films 63

    A capacidade de representar-se no mundo contemporneo e a idia de cons-truo da humanidade: utopias crepitantes no pensamento de Milton San-tosporIralene S. Arajo 64

    Circunstncias Especiais

    porMarcelo Ddimo 70

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    NDICE NDICE

    Acto de VeroporPaulo M. F. Cunha 73

    LEITURASLecturas | Readings | Comptes Rendus 79

    Mas afinal... Ainda uma ontologia do documentrio?porFrancisco Elinaldo Teixeira 80

    DISSERTAES E TESES

    Tesis | Theses | Thses 85Caminha, Meirelles e Mauro: narrativas do (re) descobrimento do Brasil; de-

    cifrando as imagens do parasoporCarolina Cavalcanti Bezerra 86

    Filme e memria: devires das imagens de arquivoporMichael Abrantes Kerr 87

    Salles do real: relaes entre sujeitos e contextos nos documentrios deWalter SallesporLuciana Modenese 88

    Ns que aqui estamos por vs esperamos: discurso, rememorao e esque-cimentoporJanaina da Costa Sabino 89

    ENTREVISTAEntrevista | Interviews | Entretiens 91

    GPS Film Nine Lives: experimenting with new forms of narrative and movingpictures, An interview with Scott HesselsporKarla Schuch Brunet; Marilei Fiorelli 92

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    EDITORIAL

    Editorial | Editors note | ditorial

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    Filmes caseiros e filmes para a internet

    Marcius Freire, Manuela Penafria

    NA presente edio da DOC On-line so disponibilizados quatro ar-tigos: Lus Nogueira em Cinema 2.0: o cinema domstico na erada internet ensaia aproximaes ao que designa de cinema 2.0, um

    cinema enraizado na entrada das tecnologias cinematogrficas na es-fera privada e na utilizao da internet. Narrativas imagticas na Web:leituras e construes hipertextuais o ttulo do artigo da autoria deLuisa Paraguai no qual - a partir de dois estudos de caso - estabeleceuma relao directa entre a natureza tcnica da Web e as suas possi-bilidades de construes sociais e prticas culturais. Patrcia FurtadoMendes Machado em Arquivos ntimos na tela: os filmes de famlia nodocumentrio Person analisa a utilizao dos filmes caseiros, que per-tenciam aos arquivos ntimos da famlia do cineasta brasileiro Luis Sr-gio Person, no documentrio Person, realizado por Marina Person, suafilha. Paulo M. F. Cunha em O Cinema do Umbigo: Primeiras reflexessobre uma certa tendncia de cinema caseiro no cinema portugus temcomo objecto de reflexo filmes dos cineastas portugueses Joo CsarMonteiro, Antnio Reis/Margarida Martins Cardoso e Pedro Costa nosquais encontra uma tendncia para um cinema pessoal, confessional,contemplativo, ritualizado, esteticamente intransigente e rodado em es-paos privados e caros aos seus cineastas. A respeito das restantesseces da DOC On-line em Anlise e Crtica de Filmes editamos trstextos de Iralene S. Arajo, Marcelo Ddimo e Paulo M. F Cunha; Fran-cisco Elinaldo Teixeira escreve para a seco Leiturasa respeito do livroMas afinal... o que mesmo documentrio?, de Ferno Pessoa Ramos.

    Nas Dissertaes e Teses apresentamos informao sobre trabalhoscientficos recentes. Finalmente, Karla Schuch Brunet e Marilei Fiorellitrazem-nos uma entrevista a Scott Hessels, artista multifacetado, comquem discutem a produo, realizao e distribuio do seu filme GPSintitulado Nine Lives.

    Doc On-line, n.05, Dezembro 2008, www.doc.ubi.pt, pp. 2-2.

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    ARTIGOS

    Artculos | Articles | Articles

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    Cinema 2.0: o cinema domstico na era dainternet

    Lus NogueiraUniversidade da Beira Interior

    [email protected]

    Resumo: O cinema tem-se ocupado de vrios espaos ao longo da sua

    histria: do espao flmico propriamente dito, mas tambm do espao men-tal; do espao real, mas tambm do espao ausente. Todos estes espaosesto, de uma ou de outra forma, ligados ao imaginrio e tcnica cinema-togrficos. Antes de mais, h-de interessar-nos, ento, o espao domsticocomo lugar de um tipo de imaginrio especfico e compreender a sua gneseenquanto tal. Mas a ideia de domesticao remete igualmente para a relaodo sujeito com a tcnica: a entrada das tecnologias cinematogrficas na esferaprivada outro dos assuntos que nos interessa aqui tratar. Por fim, verificamosque as dimenses artsticas e conceptuais do que designamos como cinemadomstico se encontram numa permanente tenso e mutao: so zonas delimiar que no cessam de se contaminar e reconfigurar. essa dinmica, em

    muito propiciada e justificada pelo surgimento da Internet, que nos interessa,tambm, analisar.

    Palavras-chave: cinema domstico, tecnologia, internet.

    Resumen: El cine se ha ocupado de varios espacios a lo largo de su histo-ria: del espacio cinematogrfico, propiamente dicho, pero tambin del espaciomental; del espacio real, pero tambin del espacio ausente. Todos estos es-pacios se encuentran, de una o otra forma, ligados al imaginario y a la tcnicacinematogrfica. Nos interesa , ante todo, el espacio domstico como un lugarde un tipo de imaginario especfico, para comprender sus orgenes como tal.Pero la idea de domsticacin tambin se refiere a la relacin del sujeto con

    la tcnica. Por eso, la irrupcin de la tecnologa en el mbito privado es otra delas cuestiones que tratamos. Por ltimo, comprobamos que las dimensionesartsticas y conceptuales de lo que denominamos como cine casero estn enuna permanente tensin y cambio: son zonas de umbral en constante contami-nacin e reconfiguracin. Esta dinmica, en gran parte propiciada y justificadapor la aparicin de Internet, es objeto tambin de nuestro anlisis.

    Palabras clave: cine casero, tecnologa, internet.

    Doc On-line, n.05, Dezembro 2008, www.doc.ubi.pt, pp. 4-23.

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    Cinema 2.0 5

    Abstract: Cinema has contemplated several spaces throughout its history:filmic space, but also mental space, real space, and the absent space. All thesespaces are in one way or another linked to the imagination and cinematographictechnique. First, I am interested in the domestic space as a place of a specifictype of imagery and then in understanding its origins as such. But the ideaof domestication refers to the relation of the subject with the technique: theentry of film technology in the private sphere is another issue that interests us.Finally, I will note that the artistic and conceptual dimensions of what we knowas home cinema are in permanent tension and changing as areas of thresholdthat continue to contaminate and reconfigure each other. That dynamics, much

    favored and justified by the emergence of the Internet, I am also interested inanalysing.

    Keywords: home cinema, tecnhology, internet.

    Rsum: Tout au long de son histoire, le cinma a occup plusieurs espa-ces: lespace filmique proprement dit, de mme que lespace mental et lespacerel, mais galement lespace absent. Tous ces espaces sont, dune manireou dune autre, lis limaginaire et la technique cinmatographiques. Mais,au-del, on doit, tout dabord sintresser lespace domestique en tant quelieu dun type spcifique dimaginaire, puis chercher en comprendre les origi-nes en tant que tel. Par ailleurs, lide de la domestication renvoie galement

    la relation quentretient le sujet la technique : lentre de la technologie ci-nmatographique dans la sphre prive est une autre des questions quil nousimporte de traiter ici. Enfin, nous observons que les dimensions artistiques etconceptuelles connues sous le nom de home cinma sont dans un tat de ten-sion et dvolution permanentes : ce sont des zones de seuil, qui continuent desinfluencer et de se reconfigurer lune lautre. Nous examinerons galementcette dynamique, en grande partie favorise et lgitime par lmergence delInternet.

    Mots-cls: home cinma, technologie, internet.

    Introduo

    ANtes de iniciarmos a nossa reflexo, devemos enunciar duas inqui-etaes que nos ho-de acompanhar em surdina ao longo da re-flexo e que suscitam desde logo duas consideraes prvias: em pri-

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    6 Lus Nogueira

    meiro lugar, verificamos que o tipo de produo associada aos homemovies, ou filme domstico, se quisermos, convive frequentemente comuma srie de valores estticos e ticos que lhe so ora oponveis (aautoria, o profissionalismo) ora cmplices (a confessionalidade, a bio-grafia) e tal haver de assinalar com extrema evidncia a volatilidadedeste conceito e da sua caracterizao; em segundo lugar, e de al-gum modo decorrente do anteriormente dito, verificamos que a ideiade um cinema domstico poder assumir uma abrangncia conceptualimensa, correndo-se, por isso, o risco de alguma indistino circuns-

    tancial por exemplo: podero os home movies e a Internet ser com-patveis? A estas duas inquietaes procuramos (tambm) responderao longo do presente estudo, apesar de no serem nem a taxinomianem a categorizao as nossas preocupaes prioritrias. Assim, seno se revelar possvel a sua total clarificao, pelo menos esperamosprovidenciar algumas pistas que ajudem a ilustrar tais problemticas.

    O domstico como imaginrio

    Na primeira sesso cinematogrfica apresentada pelos irmos Lumire

    em 1895, um dos filmes mostrados no poderia ser mais emblemticoda questo que aqui nos ocupa: o cinema domstico. Trata-se da curta-metragem Le repas du beb e nela vemos nada mais do que um casala alimentar o seu infante. Este episdio, absolutamente prosaico, ha-veria de ser repetido vezes sem conta, com pequenas variaes, nosfilmes caseiros que o futuro se encarregaria de produzir. A presenadeste filme na sesso pblica inaugural do cinematgrafo no deixa deter, portanto, um elevado valor simblico, ainda que de algum modoacessrio: a infncia era um dos temas da infncia do cinema. Esteefeito de espelho to mais interessante quanto remete para a questo

    que nos h-de ocupar de seguida: como se constituiu o domstico en-quanto tema artstico e, para o que aqui nos interessa, cinematogrfico,ou seja, como ocorreu o nascimento deste imaginrio?

    Se certo que o cinematgrafo parecia trazer no seu cdigo gen-tico, desde o incio, as premissas de um imaginrio domstico, familiar,convivial, a verdade que no mundo das artes e na histria das repre-sentaes visuais, este lado quotidiano da existncia esteve longe de

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    Cinema 2.0 7

    ser, desde sempre, um tema recorrente. Da que nos parea interes-sante efectuar aqui uma espcie de flashback. No faremos uma ar-queologia, mas apenas uma retrospectiva do processo de constituiodo quotidiano em tema artstico. Fazendo um priplo pela histria dapintura ocidental, interessa-nos, antes de mais, compreender quando que o domstico se instaurou como campo de investigao temticae estilstica. Para tal, o mais longnquo que remontamos pinturamedieval.

    Sendo certo que a poca medieval teve os seus livros de horas e

    brevirios, as suas bblias e demais manuscritos para uso domstico, averdade que o seu uso era francamente limitado s classes clericaisou aristocrticas para o povo, os ritos e a instruo estavam maiorita-riamente reservados s cerimnias (essencialmente religiosas) ou aosmonumentos pblicos (que, com as suas gravuras, vitrais, relevos e es-ttuas cumprem a funo de meios educacionais). E os temas estavamigualmente longe de ser prosaicos: episdios da vida de Cristo, dosevangelhos ou do velho testamento eram os temas fulcrais. Os even-tos ou as vivncias domsticas estavam longe de se constituir comoassunto urgente ou pertinente.

    Com a Renascena estes temas no haveriam de desaparecer ime-diatamente das preocupaes de artistas e comanditrios. A anuncia-o e a crucificao, o gnesis e o juzo final, so apenas alguns exem-plos da constante revisitao temtica que ocuparia os sculos XVI eXVII. A estes temas haveriam de juntar-se um novo conjunto de assun-tos, decorrentes da reapreciao e revalorizao dos ideais e do ima-ginrio clssico da antiguidade: episdios e figuras mitolgicas greco-romanas tornavam-se fulcrais num outro filo que se vinha juntar tra-dio iconogrfica crist.

    Seria com os movimentos reformistas do incio do sculo XVI queuma outra realidade se imporia. A recusa das imagens de devoo ou-

    torgada por Lutero haveria de originar uma terceira via iconogrfica, aqual, em grande medida, parece-nos, seria altamente responsvel pelaconstituio do domstico como imaginrio, sobretudo nos pases nr-dicos. Cenas domsticas das mais prosaicas passam a fazer parte,sobretudo a partir do sculo XVII, com extrema regularidade das tem-ticas representadas, dando origem a novos ou renovados gneros, a

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    natureza-morta e o retrato, que convivem com os motivos clssicos: aspinturas religiosas, os nus, as mitologias pags.

    Se certo que a realizao de pintura religiosa e evocativa no ces-saria at bem dentro do sculo XIX, a verdade que artistas comoVermeer ou mesmo Rembrandt, com as suas cenas de interiores, se re-velam ptimos exemplos desse realismo domstico que a nvel temticoe estilstico parece antecipar em dois sculos os movimentos realistaspropriamente ditos. Levaria, portanto, um tempo significativo at o pro-saico e o domstico e porque no diz-lo, o secular entrarem defini-

    tivamente no imaginrio ocidental, e haveria de se passar pelo barroco,o classicismo, o romantismo ou o simbolismo. Mas quando o cinemasurge j o quotidiano um motivo pleno de interesse e curiosidade ar-tstica e tcnica.

    Neste percurso, o cinema talvez no deva enjeitar o contributo dasua tecnologia matriz, a fotografia. A fotografia haveria de ser, comobem o sabemos, a responsvel pela redefinio do espectro de inte-resses do olhar ocidental: extremamente prxima do real, ao ponto deum decalque mimtico e indicial se tornar a sua caracterstica distintiva,desde cedo ela se interessou pelo material, pelo prximo, pelo instan-tneo requintes simblicos e evocaes msticas no lhe pareceraminteressar em demasia. O olhar sofre ento nova metamorfose, preci-samente quando se ocupa tanto da viso (como passa a acontecer napintura) como com o visto (acontece na fotografia, e depois no cinema).

    Desde cedo a fotografia se interessa ento pelo que est prximo,pelo que est presente: retratos e janelas, jardins e naturezas-mortasho-de estar entre as suas temticas mais dilectas. Relembremos aprimeira fotografia, de Niepce, uma fotografia feita em casa ainda queapontando para a paisagem atravs da janela. Ou pensemos nas fotosde campanha de Roger Fenton descobrir o mundo e regist-lo, sim,mas na sua materialidade a preocupao. Ou na insistncia voyeurista

    de Erich Salomon. O que se pretende? Antes de mais, registar a prosado mundo, seja ele o mundo domstico seja o mundo planetrio.

    Ironicamente, agora que a pintura e a fotografia tinham preparadoo cinema para um natural convvio com a realidade domstica, eis queeste a despreza crescentemente e assume o seu sonho de espect-culo total para um novo sculo. A lgica industrial e comercial acabariapor se impor. Arte exigente, quer tcnica quer, sobretudo, financeira-

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    Cinema 2.0 9

    mente, o cinema tornar-se-ia uma forma de expresso para as massas mas, curiosamente, no de massas: o lado artesanal (salvo algumasexcepes como aquelas que o cinema experimental ou o cinema deanimao haveriam de assinalar) revelar-se-ia diminuto nas cinco dca-das seguintes. Desde os anos 1920 at dcada de 1950, o cinemadomstico tem uma existncia meramente residual. O espanto cinema-togrfico que os primeiros filmes pareciam oferecer como atraco ha-veria de se desdobrar ao longo do tempo, com o inerente acrscimo decustos: o som, a cor, os ecrs largos seriam alguns dos momentos ful-

    crais desta metamorfose imparvel que, constantemente, relegava umcinema mais prosaico para as margens ocupadas pelo experimental,pela animao ou pelo documentrio.

    Retomemos ento esta retrospectiva do imaginrio domstico nanova etapa que se revelaria decisiva: finais da dcada de 1950, incioda dcada de 1960. O que acontece ento? Tudo o que de moderni-dade o imaginrio cinematogrfico parece prometer. As dcadas ante-riores tinham sido predominantemente classicistas e cannicas. Tudono cinema parecia profundamente calculado: as histrias, os actores,os valores de produo, os gneros, as audincias. Tudo parecia ob-

    jecto de incansvel clculo e controlo. De todos os smbolos desta l-gica produtiva e criativa, o estdio o exemplo mximo: local confinadoonde se criam e recriam universos de total alteridade. Excluindo mo-mentos como o neo-realismo ou certos ensaios documentais, o mundocinematogrfico privilegia, de um ponto de vista produtivo, a fico emestdio. Algumas mudanas tcnicas se afigurariam fundamentais nosanos 1950 e 1960. Em primeiro lugar, o surgimento de novas cmaras,mais leves e portteis, capazes de penetrar em qualquer espao com amxima discrio. Em segundo lugar, o surgimento da televiso, formade comunicao que deliberadamente coloca o espao de convivnciadomstico como alvo da sua aco. Esta intruso no espao domstico

    haveria de ter consequncias enormes, como veremos mais adiante.Estas cmaras mais leves dariam origem a uma realidade cinemato-

    grfica nova que assumiria diversas formas: o cinema-verit, a nouvellevague, o free cinema, o direct cinema, o underground cinema. A unir to-dos estes movimentos ou tendncias, uma caracterstica comum: umaproximidade realidade que se faz antes de mais com a aceitao designificativos dados novos: a aceitao do acaso, da urgncia e da au-

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    tenticidade como valores criativos. As cmaras mais leves permitemtratar o mundo como uma extenso da casa e tal haveria de se tornaruma estratgia discursiva que as dcadas seguintes iriam vincar cadavez mais, como denotam quer a vaga crescente de documentrios quera constncia da reportagem e do directo televisivos.

    A diminuio dos custos de produo (devido a equipas mais pe-quenas e menos equipamentos) tornar-se-ia, assim, um dos aspectosfundamentais para a diversificao das obras e para a ecloso e disse-minao de um cinema domstico a nvel, podemos diz-lo, planetrio.

    Ao ponto de, j em dcadas recentes entre os anos 1980 e 2000 as produes low-budget entrarem no prprio terreno do mainstreamcinematogrfico. Alguns filmes que chegaram ao circuito comercial soexemplo daquilo que alguns designam por cinema guerrilla, filmes debaixo oramento com ideias fortes ou inusitadas: das produes iniciaisde Spike Lee ao fenmeno crtico El Mariacchi (1992), de Robert Rodri-guez passando pelo estrondo meditico de Blair Witch Project (1999),de Daniel Myrick e Eduardo Snchez, (que, de algum modo, parecemter precursores nos filmes de srie B ou Z que constituem uma espciede histria alternativa do cinema).

    Mas o momento de viragem fundamental no que respeita ao cinemadomstico seria a introduo de uma nova tecnologia audiovisual: nosanos de 1970 e 1980, o vdeo haveria de refazer toda a concepo deproduto ou de obra audiovisual, seja de um ponto de vista industrialseja artstico. Agora tudo seria diferente: a captao de imagens e asua reproduo, a edio e definio, a manipulao e os custos. Maisfcil, mais rpido, mais intuitivo, mais manusevel, mais barato, mesmoquando os termos de comparao so os formatos menos nobres dapelcula, como o 16 ou o 8 mm. A utilizao do vdeo haveria de assu-mir diversas formas, sendo que o cinema mainstreamseria aquele que,sobretudo por razes de qualidade tcnica da imagem, mais resistiria

    sua adopo em termos de produo (que no em termos de difuso,como se comprova pelo home vdeo).

    Se a indstria cinematogrfica se colocou fora deste novo contextotcnico, a verdade que a indstria televisiva haveria de abusar destenovo recurso. Mas no seria apenas a que o vdeo teria uma vida longae rica: ao nvel do documentrio surge uma nova vaga de document-rios feitos na primeira pessoa; as cmaras de vdeovigilncia tornam-

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    Cinema 2.0 11

    se uma imagem de marca do novo regime do olhar e das escopias; avdeo-arte haveria de se tornar uma das pontes fundamentais entre omundo das imagens e o mundo da arte enquanto instituio, muitas ve-zes com obras num registo que alia o conceptual (em termos criativos)ao domstico (em termos produtivos); as handycamshaveriam de per-mitir a proliferao infindvel de filmes caseiros, capazes de preenchera programao de redes televisivas.

    Com o vdeo a disseminao de produtos audiovisuais caseiros pa-recia j insuportvel. Mas este no seria o ltimo passo na constituio

    do imaginrio domstico como o conhecemos actualmente. No final dosculo XX, a Internet haveria de se tornar um local privilegiado de exis-tncia do filme domstico. As tecnologias digitais constituram o passomais recente num processo de democratizao da criao audiovisual:custos extremamente baixos deram origem a uma proliferao de utili-zadores; a ubiquidade da tecnologia digital haveria de dar origem igual-mente a uma proliferao de suportes, dos quais o mais significativoser o telemvel.

    Miniaturizadas e extremamente portteis, as cmaras esto con-nosco em todo o lado. O filme domstico no se restringe agora aoespao domstico. O lar agora onde o homem estiver. O registo darealidade est distncia de um click. Qualquer episdio, mais curi-oso ou mais andino, mais pico ou mais irrelevante, pode ser captadoou encenado, qualquer memria pode ser guardada, qualquer anedotapode ser registada. Dos telemveis s webcams, do youtubes demaisredes sociais, o mundo cada vez mais apressado e apertado cadavez mais pequeno, cada vez mais uma casa.

    Esta resenha histrica da constituio do domstico como imagin-rio no pretendendo ser exaustiva, talvez nos d algumas pistas de lei-tura muito genricas, certamente sobre uma realidade (a da prolife-rao contnua e avassaladora de filmes domsticos, dos mais variados

    gneros) que nos parece circundar e, por vezes, submergir.

    A domesticao da tcnica

    No captulo anterior procurmos perceber de que modo o domsticose constituiu em tema e passou a integrar a cultura cinematogrfica.

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    Agora, interessa-nos ver de que modo esse mesmo espao domsticose parece constituir em oficina ou laboratrio e, sobretudo, de que modoassistimos a uma espcie de domesticao da tcnica. Esta ideia do larcomo oficina no exactamente nova. Ela remete para as formas deaprendizagem e de produo pr-industriais. O local de trabalho era,ento, interior ou contguo ao espao habitacional. Viver, aprender efazer decorriam em espaos adstritos ou coincidentes. A homogenei-zao dos processos produtivos e a seriao das quantidades, prpriosda industrializao, haveriam de deslocar os operrios para linhas de

    montagem cada vez mais precisas e afastadas do lar.A mecanizao assenta na ordem, no programa e o cinema temum fundo mecnico na sua ontologia. Desde muito cedo que o cinemase tornou uma arte de grandes exigncias e constrangimentos: exign-cias que obrigaram a uma grande especializao (e as tarefas das equi-pas tcnicas e artsticas isso mesmo comprovam); exigncias finan-ceiras (uma vez que as grandes produes implicam enormes encar-gos com equipamentos, com actores, com marketing, etc.); exignciasdiscursivas (escala de planos, tipos de montagem, entre outros aspec-tos). Para o cidado comum, as condies de produo parecem estarconstantemente vedadas, porque estas exigncias significam constran-gimentos. Sem saber e sem poder o seu estado mais comum.

    A longa e difcil aprendizagem exigida pelos ofcios do cinema ha-veriam de mudar de alguma forma ao longo do tempo e de formanitidamente mais vincada nas ltimas dcadas. E talvez as mudanasdevam ser vistas tanto do lugar do mestre como do lugar do discpulo.Os mais recentes desenvolvimentos nas tecnologias digitais tm ofere-cido as solues mais variadas aos diversos problemas com que umcriador se confronta. O conceito de user-friendly a esse ttulo para-digmtico. Uma nova literacia criativa parece ter-se vindo a disseminarao longo dos ltimos tempos. Se o vdeo oferecia j uma certa autono-

    mia nas condies de recepo e visionamento de uma obra (avanar,retroceder, pausar tudo opes que o visionamento clssico em salano permitia), o certo que o software digital, e a manipulao da in-formao que este permite, veio acrescentar uma amplitude muito maisvasta e extensa de operaes possveis: editar, apagar, sobrepor, colar,distorcer, fundir. Basta atentarmos nos programas de efeitos especiaispara notarmos como as opes so imensas, comportando as mais so-

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    fisticadas ao lado das mais imediatas funes. Onde antes se exigiamconhecimentos adquiridos ao longo de anos e equipamentos com capa-cidades extraordinrias, hoje podemos aceder a esse saber atravs deum simples tutorial e com um computador porttil.

    E onde antes a lgica de produo implicava grandes investimentose a mobilizao de enormes recursos, hoje nada h de muito incmodona estratgia low-budget e na esttica low-fi. Todos podem fazer o seufilme. Todos podem concretizar as suas ideias desde que devida-mente dimensionadas. Que falte mais a esttica que a tcnica, as men-

    tes do que as mquinas, eis o que as academias podem e devem fazervaler. Num regime de produo e criao onde tudo parece to prximoe to acessvel, onde o imaginrio domstico parece totalmente om-nipresente, as academias podem e devem cumprir as suas tarefas desempre, talvez com mais propriedade do que nunca: questionar, pro-vocar, experimentar. Em todos os casos, deslocar os seus alunos paral do quotidiano e do bvio. A excelncia, a existir um trajecto que aela conduza, ser certamente um percurso rduo e longnquo masfacilitado pela viabilidade crescente do auto-didactismo.

    Com isto queremos dizer que o domstico poder ou no ser o lugarltimo da aspirao artstica. A criao ocorre em diversos registos eem diversas escalas. H quem dentro de si ou sua volta descubra umexcedente de criatividade. E h quem precise de sonhar o impossvele o inalcanvel para se medir com o mundo. H quem possa ofere-cer filigrana no ecr-miniatura de um computador. H quem descubraa sua esttica riscando a pelcula. E h quem no dispense o falsotrompe loeil do widescreenou do cinema 3D. H novos media e novasliteracias, convivendo com valores de produo ancestrais e tecnologiade ponta apenas acessvel aos especialistas. A domesticao da tc-nica ocorre, portanto, em diversos nveis. A estratgia quase diramospunk do do-it-yourself apenas uma delas. Nos tempos em curso

    parece que cada um pode fazer tudo. Mas tal , de um determinadongulo, uma iluso. Existe um limiar para alm do qual apenas unspoucos conseguem a prevalncia artstica. Sempre foi, sempre ser as-sim. Contudo, uma constatao parece-nos inegvel: a igualdade deoportunidades mais real do que nunca.

    Oportunidade e ubiquidade parecem mesmo, em certas circuns-tncias, coincidir. O telemvel permite uma quase omnividncia: que

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    os microincidentes se transformem em micronarrativas; que o instantese possa transformar em memria; que o indivduo se transforme emcone; que a casualidade se transforme em vivncia. A handycam per-mite a portabilidade universal: onde o sujeito se encontra, encontra-se uma possibilidade de escrita da realidade, um olhar inaugural. Awebcam parece prometer uma telepresena constante, como se a ima-gem domstica se predispusesse antes de mais universalidade jno uma audincia de sero familiar, mas uma comunidade planetria.Mesmo que no esteja um cineasta em cada cidado nem uma narra-

    tiva em cada acontecimento, o sujeito moderno parece fazer de todo oespao e de todo o tempo uma possibilidade criativa.Todo este processo de domesticao da tcnica que o cinema pa-

    rece viver ciclicamente acabar por conduzir a uma consequncia: a in-formalidade crescente e sempre renovada das imagens. Uma imagemde simpatia, mais do que de competncia. Uma imagem mais de afec-tos do que de tcnica. Uma imagem que responda a duas necessidadesessenciais da humanidade: a escopofilia e o exibicionismo. A necessi-dade de ver e ser visto. Uma necessidade tanto das favelas como dasvedetas. Aquilo que se chama terceiro cinema ou cinema perifrico uma prova disso. Como o so os filmes semi-pornogrficos de PamelaAnderson ou Paris Hilton. Que esta informalidade ande lado a lado comuma simplicidade narrativa ou conceptual e com uma ingenuidade ar-tstica e tcnica notrias apenas nos poder levar a uma especulao:que o ensino formal e o ensino tutorial ho-de entrar em novas relaese originar novas modalidades.

    Esta proliferao da informalidade, e at da ingenuidade, leva-nos acolocar vrias questes: estaremos perante uma crise dos intermedi-rios, uma crise cultural de selectividade? Que falta nos fazem a crticae a anlise cinematogrfica, ou seja, uma cultura de cinefilia? A espes-sura e a densidade conceptual e terica que atravessou toda a histria

    das artes e da cultura no ocidente e necessariamente tambm do ci-nema poder ser dispensada? Est em vias de ser substituda por umanova lgica de saberes e de valoraes onde o imediato e o casual,o anedtico e o espontneo substituam o erudito e o metafsico, o di-vino e o sublime? E tratar-se- realmente de uma crise ou apenas deuma mutao? Estas so algumas das inquietaes que se abrem nocorao da paisagem cinematogrfica e meditica contempornea. In-

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    quietaes que podemos sempre desdobrar: ser possvel domesticarestes saberes (tcnicos, artsticos, culturais, acadmicos)? Estar o li-miar que distingue o amador do profissional em diluio crescente? Noexiste um cinema domstico que se tem vindo a impor como um cinemade elevada qualidade, produzido revelia dos grandes estdios, plenode engenho e visionarismo? E, contudo, no estaro estes criadorescondenados a integrar os meios de produo abastados e profissionais?

    A verdade, porm, que, em circunstncias muito especficas, ourgente ou o inslito acabaro por ser determinantes na nossa rela-

    o com o mundo. Dois exemplos: o filme Zapruder, seguramente omais reconhecido e mais referido filme domstico (feito fora do espaodomstico, mas imbudo do seu esprito e meios de produo) e o es-pancamento de Rodney King. So dois exemplos dessa tendncia paraa omnividncia domstica que referimos anteriormente, cada vez maisacentuada, cada vez mais imersiva. No so filmes com qualidade tc-nica imaculada bem longe disso. So filmes da urgncia, do momento,do documento. Como o so os inmeros filmes de jovens alunos alu-sivos aos mais diversos casos de violncia escolar que tm ocorridorecentemente, exemplos, tambm eles, de uma indistino entre o p-blico e o privado que no tem cessado de se intensificar.

    Pode ser grande a tentao para ver nesta domesticao da tc-nica uma dominante incontestvel. Mas a tentao acabar por revelar-se equvoca se no atendermos a um movimento de sentido contrrio,como se duas tendncias se desenrolassem paralelamente, mas cujaconvergncia se afigura improvvel: que a esta domesticao da tc-nica que, em diversas etapas, a histria do cinema conheceu, respondeuma outra evidncia, a da crescente sofisticao da tcnica. Podemospor isso dizer que se um determinado meio tende a simplificar-se e avulgarizar-se, ficando acessvel a todos em algum momento (indo-seda estranheza e dificuldade iniciais ao automatismo quase inconsciente

    no uso de uma tcnica), esse mesmo meio h-de, em sentido diverso,provocar uma busca incessante de novas possibilidades, aperfeioandoou mesmo substituindo o dispositivo. Se a histria de todas as tcni-cas parece demonstrar uma propenso inegvel para a domesticao,a verdade que a quimera da sofisticao decorre simultaneamente.Assim na histria de uma tecnologia, assim na histria das tcni-cas. Por cada passo de aproximao tcnica dado pelo cidado, a

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    tcnica d uma corrida de afastamento em relao quele. Trata-se,portanto, de dois vectores de sentido divergente: o do amadorismo e odo profissionalismo. Por um lado, a partilha; por outro, a exclusividade.De um modo, a familiaridade da prtese; de outro, a intangibilidade doespecialista.

    Outro aspecto que merece ser notado em relao referida do-mesticao da tcnica que esta parece ser acompanhada por umaprofuso de gneros e formatos. Se a informalidade parece ser umadominante esttica destas produes, possvel, para alm dela ou re-

    lacionada com ela, encontrar alguns gneros que aparentam algumanovidade ou, pelo menos, alguma reconfigurao, e mesmo alguma es-tabilidade. Um exemplo dessa reconfigurao so os filmes de escolaque podemos encontrar na rede. No se tratando de filmes domsticospropriamente ditos, acabam por quase reivindicar a pertena a esta ca-tegoria, uma vez que se colocam naquele limiar j antes referido entre oamadorismo e o profissionalismo, ou seja, entre uma aprendizagem do-mstica e uma aprendizagem acadmica. E tomam por isso um estatutoparadigmtico da tenso entre domesticao e sofisticao.

    Em certo sentido prximos do filme de escola, pelo lado pedaggicoque exibem, encontramos os filmes de fs. Ainda que num outro nvel,poderamos aqui falar de um realizador que outra coisa no faz do quefilmes de fs Quentin Tarantino , mas sobretudo no mbito daspardias e das homenagens mais ou menos informais que este gneromerc destaque, com o universo de Star Warsa ser um verdadeiro ma-nancial de obras. Paradoxalmente, uma curta-metragem merece des-taque neste mbito pelo seu elevado profissionalismo, George Lugas inLove (1999), de Joe Nussbaum. So filmes de paixes, de dedicaoou de homenagem dos discpulos aos mestres que lhes ofereceram no-vas ideias e novos universos. Em muitos casos, como acontece com acurta-metragem referida, servem para comprovar que se consegue ri-

    valizar com os inspiradores sucumbindo, igualando ou ultrapassandoestes.

    Esta tendncia para a recriao prpria do filme de fs encontra nosmash-upse nos crossovers, cada vez mais frequentes e diversos, umamanifestao paradigmtica. Podemos mesmo dizer que eles so umamanifestao contempornea de uma estratgia criativa que, no sendonova, parece ter-se transformado de um acto de alguma revelia esttica

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    no ps-modernismo numa actividade criativa vulgar na actualidade: aintertextualidade. Qualquer anlise dos filmes domsticos na contem-poraneidade nos demonstra que o mash-upe o crossover se assumemcomo uma das formas principais de manifestao criativa. Exemplosdisso so curtas-metragens onde se misturam personagens de diferen-tes universos narrativos (Terminator vs Predator, por exemplo). Ou amistura de msicas e imagens heterogneas como acontece em certosvideoclipsamadores, outro dos gneros que tem conhecido uma grandediversificao nos ltimos tempos.

    Um inventrio dos subgneros do filme domstico permitir-nos-iaainda referir outras modalidades: do micro-movie(filmes casuais de pe-quenos incidentes e para rpido visionamento) webserie (sries cri-adas exclusivamente para a Internet), dos best of e dos digests queinundam o youtube (onde cabem as melhores sequncias e excertosde filmes, de notcias, de videojogos) aos how to make (onde se en-sina numa lgica tutorial e de do-it-yourself a fazer algo) passando pe-los filmes-denncia que procuram funcionar como manifestos a favor deuma determinada causa. Esta pluralidade e heterogeneidade de forma-tos, gneros e materiais apresenta ramificaes que chegam ao mesmoaos videojogos a lgica de produo domstica materializa-se em doisgneros bastante peculiares: por um lado, nos mods, isto , em vide-ojogos que se servem do motor de um outro jogo para criar um novouniverso modificando o anterior; por outro, e para o que aqui nos in-teressa mais relevante, nos designados machinima, isto , pequenosfilmes de animao criados recorrendo tecnologia de um determinadovideojogo, usando as suas personagens e cenrios.

    Os limiares do domstico

    Como referimos anteriormente e como pudemos constatar pela descri-o de gneros efectuada, a ideia de um cinema domstico est longede corresponder a uma realidade perfeitamente circunscrita e reconhe-cvel. Por todo o lado encontramos um limiar onde o filme domsticose confunde com outros tipos de filme ou se lhes ope. Uma dessaszonas de interseco pode ser identificada atravs das categorias deamador e de profissional (as quais podemos fazer corresponder gene-

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    ricamente a dois conceitos formais: o prosaico e o espectacular). As-sim, parece-nos que onde, devido domesticao da tcnica, o ama-dor tende a multiplicar-se em termos de quantidade, com um acessocrescente quela por parte do sujeito, o profissional mais no faz doque visar a cada vez maior qualidade das suas propostas criativas etcnicas. Daqui tm resultado duas questes frequentemente reitera-das: por um lado, a suspeita de que uma presumida democratizaoconstante e crescente das condies e meios de produo poder nopassar de uma iluso; por outro, o perigo por muitos advogado de uma

    mediocridade decorrente do amadorismo, causa e consequncia de umplebesmo crescente e, para muitos, indesejvel. Que esta iluso e esteperigo tenham um fundo de veracidade inegvel; que eles nos obri-guem, contudo, a rever muitas das assumpes mais arreigadas sobreas prticas criativas o que no pode deixar de ser visto, igualmente,como um triunfo.

    Uma outra fronteira que se torna cada vez mais difcil de estabelecerno que respeita ao home movie tem a ver com a distino entre pblicoe privado. Se na sua origem o home movieparece resultar no apenasde uma produo caseira, mas destinar-se igualmente a uma difuso eexibio domstica (os seres em famlia na sala de estar), a verdade que dois momentos na histria dos mdia com ntidas influncias nahistria do cinema transformaram esta realidade de uma forma com-pleta: por um lado, o surgimento da televiso e, por outro, o surgimentoda Internet. Trata-se de meios que, podemos diz-lo, retiraram o filmedomstico do seu espao natural e o disseminaram a uma escala glo-bal. Esta diluio de fronteiras entre o pblico e o privado correspondea uma tendncia corrente nas ltimas dcadas e pode ser constatadanas mais diversas instncias: na proliferao de blogs e outras formasde expresso pessoal; na reality TV que, em muitos casos, invadiu olar dos cidados, nos dirios difundidos pela Internet; nos filmes casei-

    ros de celebridades, artistas e polticos, umas vezes autorizados, outrasclandestinos. Esta tendncia mais no faz do que concretizar aquilo quese designa por Internet 2.0, ou seja, contedos produzidos pelos pr-prios utilizadores da Internet da que possamos falar, de algum modo,de um cinema 2.0, em que a produo privada se destina a uma difusopblica.

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    Um caso paradigmtico desta extenso tendencialmente universalda existncia do filme domstico a srie de episdios Where the hellis Matt?. Neste caso podemos falar de uma nova e paradoxal catego-ria de filme: o domstico universal. Em que consiste esta srie? Emnada mais do que o registo do priplo de Matt, um norte-americano de32 anos, pelo mundo inteiro, danando nos mais diversos locais umasimples e despretensiosa coreografia, sendo depois feitos micro-filmescolocados na Internet. O sucesso destes incuos, mas divertidos, filmes imenso. E pode conduzir-nos seguinte questo: ser na actualidade

    a rede universal o lugar ltimo e fatal dos filmes domsticos? Ser aInternet a nova casa do cinema?Assim, se temos falado dos filmes domsticos sobretudo do ponto

    de vista da produo, no queremos deixar de referir igualmente o factode que, tambm no que respeita ao visionamento, algo como a domes-ticao da tcnica tem sido igualmente notado. Basta pensarmos que aauto-programao uma tendncia constante; que a lgica arquivsticatem sido refeita por tecnologias como o P2P e os torrents; que a uto-pia de um acesso em total equidade e disponibilidade se tem alimentadocada vez mais vorazmente; que a ideia de partilha universal tem sido re-corrente. Depois da grelha televisiva (mas convivendo com esta) surgeo on-demand, em que a programao se torna flexvel e personalizada,feita de solicitaes especficas, a pedido, em que a ideia de rede (feitade cumplicidades) vem substituir a ideia de centro (feita de hierarquias).Estaremos perante uma nova comunidade de partilha, uma nova cinefi-lia que vem substituir os cineclubes como espao privilegiado de acessos margens cinematogrficas, que vem substituir a crtica especializadacomo instncias certificada do juzo esttico? Esta nova cinefilia nocorresponde a um paradigma crtico que refaz tambm aqui as frontei-ras entre privado e pblico, amador e profissional? No estaremos asubstituir os princpios nucleares e duradouros do cnone pela lgica

    de disperso e efemeridade dos tops e das listas? No estamos emmuitos casos a sobrepor as escolhas do pblico, assente em indces depopularidade, aos juzos da crtica, assentes em argumentao e con-textualizao? Poderemos ento falar da impossibilidade de um cnoneou devemos falar de um cnone liberal, exerccio de cidadania?

    Mas esta lgica de diluio de fronteiras tem-se verificado igual-mente ao nvel da esttica e da morfologia das obras cinematogrficas.

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    Parece-nos extremamente revelador a esse respeito a contaminaoque os filmes de fico mainstreamtm sofrido. Podemos mesmo dizerque depois de todas as questes envolvendo a problemtica da indis-tino entre documentrio e fico, a lgica do pastiche que se temverificado em inmeras produes entre mainstream e home movie setorna uma questo de grande interesse. Assim, podemos verificar queinmeros filmes de fico tm sido feitos recentemente maneira deoucomo se se tratasse de um filme domstico. E esta contaminao tem-se verificado o que ainda mais significativo muitas vezes no interior

    dos prprios gneros cinematogrficos clssicos. Exemplo disso so oclebre e fenomenal Blair Witch Project (1999), de Daniel Myrick e Edu-ardo Snchez, que aproveitou para refazer algumas premissas do filmede terror atravs de um acrescento de veracidade, Cloverfield (2008),de Matt Reeves que usa a esttica do filme amador para nos dar umaparbola sobre o terrorismo de massas em registo de alegoria fants-tica; Redacted (2007), de Brian De Palma, um filme narrado em formade dirio que reconfigura a dimenso estilstica do filme de guerra.

    Esta lgica do pasticheno deve ser, porm, tomada como recente.Os seus antecessores podem ser localizados, pelo menos, em mocku-mentaries como This is Spinal Tap2 (2005), de Johnny Depth ou Can-nibal Holocaust (1980), de Ruggero Deodato, ou, num registo mais un-derground, nos pais do cinema independente como John Cassavetes eJonas Mekas, que no apenas trouxeram a temtica do conflito ou daexistncia domstica para o centro da sua obra, como o fizeram recor-rendo a solues formais inevitavelmente ligadas ao home movie, comoa cmara mo. As solues formais que o cinema mainstream temem muitos casos tomado do home movie (e o inverso tambm ocorre:muitos home movies pretendem demonstrar um esmero tcnico e umasofisticao esttica capazes de rivalizar com os filmes profissionais)podem ser sintetizadas em dois factos estticos que nos parecem de

    grande relevncia: por um lado, toda uma retrica do gro que deu aohome movie, tanto na sua era do 8 mm como na era do vdeo, uma apa-rncia e uma textura especficas, em muitos casos prximo da estticadocumental; por outro lado, na actualidade, no deixaria de ser interes-sante efectuar uma espcie de semitica do pixel, j que este acabapor ser o elemento que assinala melhor o amadorismo (deliberado ou

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    ou Godard ou de pensadores como Brecht. Esta conscincia do meiopode ser igualmente identificada, porm, no mbito dos home movies:nos mash-ups, nas pardias dos filmes de fs, nas sequncias esco-lhidas de obras clssicas do cinema podemos ento questionar seo espectador comum no ganhou ele igualmente uma conscincia domeio que lhe inibe qualquer ingenuidade. A ser assim, esta perda daingenuidade teria como uma das consequncia que o auto-retrato dei-xaria de ser, muitas vezes, um gesto de autenticidade para se revelaruma voluntria auto-estetizao.

    Esta ingenuidade estaria em risco tambm na experincia cinemato-grfica a um outra nvel. Como referimos anteriormente, tambm o localde percepo das imagens se modificou e ganhou um novo estatuto. Sealguma aura existia ligada sala de cinema, lugar de culto e refgio ima-ginrio, onde o ecr se impe no apenas pela sua dimenso mas igual-mente pela sua luminosidade exclusiva, ela parece desvanecer-se cadavez mais. Este ecr-altar e esta sala-templo viram-se, de algum modo,substitudos e mesmo profanados pelos ecrs reduzidos da televiso,do computador, da consola ou do telemvel, lugares de uma informali-dade espectatorial em que o sujeito se abstm de um ritual que marcougeraes de espectadores e do qual os movie-theatres para centenasde espectadores seria a mais perfeita e gloriosa manifestao. Certa-mente no se assiste a uma indiferena de todos os ecrs e de todos oslugares mas, perante a depauperao da experincia espectatorial, oritual e a epifania, apenas podero ser restaurados, parece-nos, pelarealidade virtual prometida e constantemente adiada.

    Estas alteraes ao nvel da exibio cinematogrfica encontram pa-ralelo ao nvel da produo: ao lado do estdio gigantesco, local de to-das as quimeras e universos, lugar de todo o controlo tcnico, contandoinmeros meios e albergando equipas extremamente alargadas, encon-tramos o quarto, local de um labor pessoal, de uma produo solitria,

    onde o lado confessional da ocorrncia quotidiana registada em diriopode conviver com os truques e as iluses do green screene dos maisdiversos efeitos especiais. Assim, onde at o mais humilde filme de s-rie B exibia a ambio de uma competncia tcnica inquestionada e nosseus falhanos denotava o esforo de um profissionalismo irrecusvel,o filme domstico atreve-se, cada vez mais, a exibir os sinais da suaorigem plebeia ou burguesa, fazendo gudio desta ontologia mesmo

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    quando procura rivalizar com as mais sofisticadas produes. Podemosento dizer que se num caso a competncia e a exigncia so os va-lores fulcrais de um profissionalismo sempre em busca de um espantomegalmano e quase miraculoso (o blockbuster e os seus dispendiososefeitos especiais so disso o melhor exemplo), no outro encontramos aurgncia e mesmo a negligncia como princpios determinantes (nuncaperder a peripcia imprevista, mesmo sacrificando a inteligibilidade dainformao, cuja imperfeio e amadorismo se tornam aceites e justifi-cados).

    Concluso

    Temos assim, em jeito de concluso que duas escalas parecem desdeh muito conviver na histria do cinema: por um lado, a superproduo,cheia de vedetas, de cenrios faustosos ou de extravagantes efeitosespeciais, capaz de aspirar ao pico absoluto, de que os diversos for-matos de widescreene as tecnologias de som surround so um ptimoexemplo; por outro, o home movie, o filme-registo de uma experin-cia pessoal, pleno de subjectividade mesmo na sua insignificncia, ora

    feito de peripcias e anedotas ora feito de episdios inconsequentes,de que os filmes de telemvel e os ecrs mnimos so a mais exemplarconcretizao. De um lado, a vida de personagens fictcias ou o desem-penho de estrelas consagradas, um Olimpo de lustros e luxos, do outroa vida de familiares, amigos e vizinhos, celebraes da cumplicidade,perdulrios da incompetncia tcnica. Que estas duas escala acabempor se reflectir e problematizar mutuamente na (in)distino crescentequer dos espaos de produo quer de exibio, quer da competnciatcnica quer da inventividade esttica, eis o que torna a criao cine-matogrfica contempornea uma realidade de mutaes constantes e

    provocaes irrecusveis.

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    Narrativas imagticas na Web: leituras econstrues hipertextuais

    Luisa ParaguaiUniversidade de Sorocaba, UNISO

    [email protected]

    Resumo: O texto procura apontar uma relao direta entre a natureza tc-

    nica da Web e suas possibilidades de construes sociais e prticas culturaisatravs da anlise de dois produtos mediticos. Story of Stuff e HBO Voyeurso apresentados na medida em que se constroem pela leitura dos usurios,seja ela formal ou simblica, e constituem-se como experincias de narrativasmltiplas.

    Palavras-chave: hipertexto, ambiente colaborativo, narrativas mltiplas.

    Resumen: El texto busca avanzar la existencia de una relacin directaentre la naturaleza tcnica de la web y sus posibilidades de construccionessociales y prcticas culturales, a travs del anlisis de dos productos medi-ticos. Story of Stuff (Historia de las cosas) y HBO Voyeur, en la medida

    en que se construyen mediante la lectura de los usuarios -ya sea formal osimblicamente- se presentan como experiencias de narrativas mltiples.

    Palabras clave: hipertexto, entorno colaborativo, narrativas mltiples.

    Abstract: The text is concerned with the direct relation between the tech-nical nature of the Web and its possibilities of social constructions and culturalpractical through the analyses of two media products. Story of Stuff and HBOVoyeur are presented as experiences of multiple narratives that can only getactual by the users formal or symbolic readings.

    Keywords: hypertext, collaborative environment, multiple narratives.

    Rsum: Le texte sefforce de dgager, partir de lanalyse de deux pro-ductions, Story of Stuff et HBO Voyeur, une relation directe entre la naturetechnique de lInternet et ses possibilits dans la construction des pratiquessociales et culturelles. Ici, ces productions sont prsentes comme le rsul-tat dune construction des utilisateurs, quils soient formels ou symboliques, etsont le lieu o lon exprimente lentremlement de plusieurs rcits.

    Doc On-line, n.05, Dezembro 2008, www.doc.ubi.pt, pp. 24-35.

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    Mots-cls: hypertext, environnement collaboratif, multiples rcits.

    Introduo

    OHomem contemporneo envolve-se diariamente, e cada vez mais,com os sistemas de telecomunicao em diversas esferas, pes-soal, de trabalho, entretenimento, reconfigurando os limites de atua-o e multiplicando as suas possibilidades de participao. As pessoaspassam a valer-se de tecnologias que podem formalizar e, no apenasrepresentar, uma pluralidade de projetos, aes, comportamentos, emcontextos de cooperao, associao e negociao majoritariamente.Estes so, em ltima instncia, os elementos estruturantes e diferenci-adores da Web em relao as mdias da cultura de massa.

    Pensar a produo de imagens em movimento neste contexto nonos parece diferente, uma vez que, as cmeras digitais e at os celula-res colocam o cotidiano em foco e potencializam as produes e suasrespectivas publicaes. Multiplicam-se os ambientes em rede que se

    constroem pela colaborao, seja ela explcita ou no, oriunda da inser-o ativa de contedos por parte dos usurios como o youtube, flickr.Estes so convidados, insistentemente, a postar, blogar, contribuir, en-viar, e alimentar os bancos de dados; assim, percebe-se uma prolifera-o de ambientes que s se constituem em funo destes movimentosde compartilhamento. Compreender as aes colaborativas envolvidasno significa em momento algum ignorar os problemas, mas antes pon-derar sobre as possibilidades de criao e manifestao coletiva que ocontexto em rede potencializa.

    O texto, inicialmente, pontua a topologia da Web e suas caracters-

    ticas conceituais em torno da condio hipertextual e distribuda comodeterminantes do processo de produo, veiculao e acesso s infor-maes pelos usurios. Em seguida, em consonncia com esta abor-dagem, apresenta-se uma especfica forma de produo imagtica naWeb atravs de dois trabalhos, Story of Stuff e HBO Voyeur, que ao sevalerem formal e metaforicamente da natureza rizomtica do meio tra-zem questionamentos e apontam para a possibilidade de outras narrati-

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    vas e processos cognitivos. O texto procura apontar uma relao diretaentre a natureza tcnica da Web e suas possibilidades de construessociais e prticas culturais atravs da anlise de produtos mediticos.

    Contexto hipertextual e colaborativo da Web

    A topologia da Web organiza-se espacialmente de forma distribuda, oque significa compreender que cada n/ponto conecta-se a outro semqualquer hierarquia e emissores centrais; uma condio que dificulta ocontrole e termina por gerar transformaes nas possibilidades de atu-ao/ao dos usurios. Como afirma Benklet (apud Pretto e Silveira,2008, p.32) a arquitetura unidirecional dos fluxos de informao dosmass media alterada para uma arquitetura distribuda, com conexesmultidirecionais entre todos os ns, formando um ambiente de elevadainteratividade e de mltiplos informantes interconectados. As pessoaspassam ento a gravitar em outro espao de significao, de trocas con-comitantes, complexificando relaes diante da possibilidade de organi-zao, cooperao e construo em rede. A estrutura tcnica protocolaaes e escolhas, requisita ateno e demanda uma participao mais

    ativa; o participante passa a elaborar experincias - vrias trajetrias,significados e portanto, realidades. Como afirma Ugarte (2007, p.28)que a chave para poder explicar a grande maioria dos novos fenme-nos sociais e polticos que enfrentamos consiste em entender a dife-rena entre um mundo no qual a informao distribui-se em uma rededescentralizada e outro no qual acontece em uma rede distribuda.

    Para exemplificar cita-se o ambiente wiki, onde todo e qualquer usu-rio tem a possibilidade de pronunciar-se sobre algo, modificar, acrescen-tar, retirar, conectar com outros documentos, reformatar, corrigir e tradu-zir; escrever deixa de ser assim um ato solitrio para tornar-se pblico

    e coletivo. Balbino (2007) afirma que para compreender a wikipedia necessrio entender o conhecimento como fenmeno social coletivoe no como posse e propriedade de uma elite. Outra caractersticainusitada a fiscalizao do contedo postado ser realizada pelos pr-prios usurios, que passam a atualizar, apagar, incluir caso se constateo equvoco ou desinformao. Um processo quase democrtico quepermite compreender a Web como um ambiente que comporta vrios

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    (sub)sistemas sociais e que dotado de sua prpria dinmica de funci-onamento no pode ser entendido apenas como suporte tecnolgico eelemento de mediao. (Palcios, 2006, p. 240) Para Wood (2006) nawikipedia, um texto um contedo vivo, em processo de contnuo aper-feioamento e depurao por voluntrios. Tal princpio reflete a naturezadinmica, ou voltil, do conhecimento.

    A impossibilidade de conhecer e dominar o resultado final, na me-dida em que os imprevistos e rudos so incorporados, vem priorizaro processo de veiculao das informaes como um processo aberto,

    incompleto, como diz Machado (1988, p.91) ...eventos em estado deconstituio. Sem uma forma acabada ou devidamente editada, o v-deo potencializa a leitura, media o olhar, o comportamento e as expec-tativas das pessoas, enfatizando a efemeridade dos eventos e a suapossibilidade de transmiti-los.

    Entendendo-se como elemento estruturante da Web a base digital,percebe-se a emergncia de constantes processos de recombinao,que transgridem as tecnologias e os contedos em qualquer tendn-cia de permanecerem estveis. Como afirma Jenkins (2008, p.31) di-versas foras, contudo, comearam a derrubar os muros que separamesses diferentes meios de comunicao. Novas tecnologias miditicaspermitiram que o mesmo contedo flusse por vrios canais diferentese assumisse formas distintas no ponto de recepo.

    Narrativas imagticas e Hipertextualidade

    No contexto digital, a construo da narrativa apresenta-se mais com-plexa, na medida em que as leituras resvalam do campo simblico paraa materialidade da navegao; os participantes contribuem, incluemaes s estrias na medida em que percorrem. A experimentao em

    rede transfigura, e pode, de certa maneira, estender a especificidade dovdeo, que passa a compor simultaneamente narrativas linear e hiper-textual, dependentes das escolhas dos usurios. Para Plaza e Tavares(1998, p.229) A partir desta tendncia de interao possibilitada pelomeio, abrem-se novos horizontes nos quais a troca, o contato e a comu-nicao em tempo real com outros sistemas culturais norteiam o ato decriar de forma compartilhada.

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    A informao imagtica organiza-se em um conjunto pr-estabelecidode escolhas, possveis caminhos, mas que a partir da conexo em redeamplia-se de forma indefinida. O hipervideo ou video-hyperlinking in-teressante e instigante como experincia da narrativa, na medida emque ao desmontar a linearidade investe no leitor e em suas escolhas,no apenas metaforicamente. Cordova (apud Bertocchi, 2007) afirmaque o hipervdeo apresenta-se como uma explorao da mistura daTV com a Internet, algo que, segundo ela, antecipa a TV Digital. Hmuito para pesquisar na medida em que a convergncia refaz limites e

    expande campos de saberes.Saawhney et alli (1996), a partir do desenvolvimento do trabalhohypercafe, descrevem como propriedades estticas e narrativas do hi-pervdeo os links temporais (cenas diferentes so resgatadas em mo-mentos especficos), links espao-temporais (um especfico objeto oupersonagem traz outro vdeo em um dado momento), oportunidades delinks temporais (cenas de vdeo rodam durante determinado intervalode tempo em pontos especficos do vdeo), oportunidades de links es-paciais (locao espacial dinmica que pode trazer outros vdeos). Osautores deixam claro como a possibilidade de inter-relao entre pontosvem modificar o processo tanto de produo, necessidade de estrutura-o, quanto na leitura do resultado imagtico.

    O hipertexto ou hipervdeo apresenta uma estrutura que organizapotencialmente todas as configuraes possveis, a distribuio dos ns

    links, a serem visitados. O usurio deste contexto realiza seus per-cursos, escolhe seu ritmo, suas direes de ir e vir e estabelece suasreferncias e significados prprios. Na medida em que o contedo lido pelos participantes, as imagens dividem-se sucessivamente entreestados no formalizados e atualizados, fazendo de cada leitura umacontecimento singular e nico. Esta forma de estrutura caracteriza-sepela polissemia, estendendo-se em vrias direes de significado simul-

    taneamente, formaliza o que pode ser chamado de hipermdia. Comoafirma Machado (1997, p.148) Um documento hipermeditico no ex-prime jamais um conceito, no sentido de uma verdade dada atravs deuma linha de raciocnio; ele se abre para a experincia plena do pensa-mento e da imaginao, como um processo vivo que se modifica semcessar, que se adapta em funo do contexto, que enfim joga com osdados disponveis.

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    Os trabalhos apresentados a seguir foram escolhidos para refle-xo sobre as possibilidades tcnicas, que ao organizarem outras for-mas operativas e cognitivas so importantes para repensarmos o mododo fazer; pretende-se assim, prop-los no como modelos mas exerc-cios operativos da linguagem, na medida em que trabalham a hipertex-tualidade como fundamento estruturante da narrativa imagtica e con-seqente leitura.

    HBO VoyeurO projeto HBO Voyeur [www.bigspaceship.com/archive/hbovoyeur/] foidesenvolvido pelo BBDO, New York, para uma campanha em 2007, eapresenta-se como uma experincia videogrfica que resgata, atravsdas vrias janelas, o voyeurismo j explicitado em outras produes ci-nematogrficas; oito ficcionais apartamentos, situados na esquina daRua Broome com Rua Ludlow em Nova Iorque, apresentam persona-gens e histrias encontradas em plataformas de colaborao na Web(figura1 e figura2).

    Vale a pena salientar que, nesta reflexo o importante a simulta-

    neidade dos fatos e ocorrncias, e a pluralidade de leituras que trans-bordam da proposta apresentada. As escolhas so feitas pelo leitor/vedor,que vagueia o olhar pelos andares e apartamentos, realizando suas op-es para acompanhar o desenrolar dos fatos no tempo, ora detendo-seem um, ora focando em outro. No possvel acompanh-lo como umtodo, e nessa tentativa frustrada de abarc-lo na sua quase infinitude,resvala-se na prpria condio das relaes humanas. A dificuldade eml-lo enquanto unidade evoca tambm a dimenso da Web, que torna-se acessvel somente nas atualizaes de cada percurso realizado, emcada link escolhido. O todo na Web acontece somente em potncia

    apenas virtualmente estabelece-se como tal.Resgata-se a metfora das janelas que, na mdia televisiva, implica

    em uma atitude de cmoda do olhar atravs, sem a possibilidade de in-terferncia no que se apresenta. Na relao usurio/computador, ganhauma dimenso especfica, uma vez que os sistemas operacionais e apli-cativos operam mais eficientemente e de forma simultnea ao valerem-se das mesmas. A prpria navegao na Web vale-se de um constante

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    Figura 1: Plano frontal apresentando as oito histrias simultneas.Fonte: www.rmgdigitalnews.com/uploaded_images/hbo1-739400.png

    abrir e fechar de janelas a partir dos links que atualizam os contedos.Conforme Turkle (1995, p.13) muitos navegadores da Web consideramo mundo real como apenas mais uma janela, e nem sempre a me-lhor, ... e passam a construir suas relaes pessoais, profissionais ede entretenimento sem muito esforo, entre lugares virtuais e reais,deparando-se com telepresenas e corpos fsicos, simultaneamente.Estas situaes so incorporadas pelo usurio na medida em que na-vega, acessa e estabelece contatos, tanto de maneira sincrnica comoem tempo no linear, de forma contnua como assincrnica, nos mais

    diversos contextos sociais da Web, como blog, orkut, facebook, tweeter,entre outros.

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    Figura 2: Detalhe de dois apartamentos.Fonte: www.rmgdigitalnews.com/uploaded_images/hbo1-739400.png

    Story of Stuff

    O vdeo Story of Stuff1 [www.storyofstuff.com/] apresenta uma viso cr-

    tica sobre a sociedade contempornea ao levantar questes ambientaise sociais no ciclo de vida de qualquer bem de consumo. O documentrioest dividido em cinco captulos, nomeados como extrao, produo,distribuio, consumo e descarte, e compe elementos grficos e ima-gens capturadas; uma narrativa formal mltipla construda, pois incor-porado seqncia linear das imagens existem elementos clicveis quepermitem o acesso a contedos diversos, como outros vdeos e textos. possvel acess-lo em um websiteque permite tambm outras formasde leituras complementares, dentro e fora da prpria estrutura videogr-fica, apontando assim uma hibridao entre meios e linguagens.

    Na prtica, como mostram as figuras 3 e 4, os links interrompem afala do narrador e a animao dos elementos grficos para apresentaroutros contedos e acessos externos; o retorno ao contedo principaldemanda uma outra atitude e a confuso parece por vezes instaurada

    1 O projeto financiado pela Tides Foundation que defende a produo e o con-sumo sustentvel. Foi executado por uma equipe de 20 pessoas, da empresa FreeRange Studios, e j ganhou um prmio nos EUA, da South By Southwest (SXSW)Interactive Conference, como melhor website educacional.

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    Figura 3: No vdeo, cada elemento grfico apresenta-se como link.Fonte: www.storyofstuff.com/

    na tentativa de compreenso do todo. A construo por captulos facilitaesta navegao, mas permite tambm uma leitura linear. Nos textosescritos, o retorno de um link recupera em grande parte o contedoprincipal, o que vem facilitar a recontextualizao da temtica abordada.

    A sobreposio de janelas reconstri a interface grfica que passa aoperar diferentemente a cada atualizao dos linksescolhidos. A leituradeixa definitivamente de operar na linearidade do espao/tempo paravaler-se de nossa capacidade de operar entre diferentes nveis de aten-o; todas as informaes potencialmente disponveis onde as escolhasatualizam partes deste todo.

    Consideraes finais

    Ao refletir sobre o contexto da Web e suas especificidades para apontaras formas de produo com a imagem no meio digital, cita-se Gitelman(apud Jenkins, 2008, p.40) quando afirma que um modelo de mdiatrabalha em dois nveis: no primeiro, um meio uma tecnologia que

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    Figura 4: Cada linkalimenta outro percurso externo a prpria estruturavideogrfica.Fonte: www.storyofstuff.com/

    permite a comunicao; no segundo, um meio um conjunto de pro-tocolos associados ou prticas sociais e culturais que cresceram emtorno dessa tecnologia. Os protocolos de criao da rede ao garan-tirem um ambiente colaborativo, recorrentes processos de trocas, pro-movem formas culturais que passam a conviver e contaminar outrasestruturas centralizadas e descentralizadas de produo e veiculaode contedo.

    As possibilidades de narrativas videogrficas apontam assim, mo-dos diferenciados de expresso e de experincia de leitura dos usu-rios. A imagem em movimento ganha outra dimenso, alm do carterde representao, apresenta-se como superfcie, capaz de incorporarfunes e permitir aes. A presena do tempo tambm organiza asestruturas da narrativa, deixa de ter apenas o carter da prpria ocor-rncia, do acontecimento, para vincular operaes e conectar instnciasflmicas, mesmo que no clicveis.

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    Os trabalhos apresentados, diferenciam-se na incorporao dos pro-tocolos da rede, mas ambos resgatam e apontam para a mesma formaoperativa e cognitiva, onde os usurios escolhem e recombinam, refazem-se durante o processo da leitura.

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    Arquivos ntimos na tela: os filmes de famlia nodocumentrio Person

    Patrcia Furtado Mendes MachadoMestranda em Comunicao Social, PUC-RJ

    [email protected]

    Resumo: A nossa proposta analisar as maneiras como so usados os

    filmes caseiros, que pertenciam aos arquivos ntimos da famlia do cineastabrasileiro Luis Srgio Person, no documentrio realizado por sua filha, MarinaPerson. Nesse caso, a busca pela memria e a exposio da intimidade iriamalm da produo de uma biografia: seriam a possibilidade de reconfiguraoda subjetividade da diretora na e pela imagem.

    Palavras-chave: filmes de famlia, documentrio, intimidade, memria, sub-jetividade.

    Resumen: Nuestra propuesta es analizar las distintas maneras en que sonutilizadas las pelculas domsticas de los ficheros privados de la familia delcineasta brasileo Luis Srgio Person, en el documental realizado por su hija,

    Marina Person. En este caso, la bsqueda por la memoria y una exposicinde la intimidad iran ms all de la produccin de una biografia: serian unaposibilidad de reconfiguracin de la subjetividad de la directora en y por laimagen.

    Palabras clave: pelculas domsticas, documental, intimidad, memoria,subjetividad.

    Abstract: The purpose of this paper is to analyze how domestic movies,which belong to the private archive of the film maker Luis Sergio Person familys,are used in the documentary directed by his daughter, Marina Person. In thiscase, the search for the memory and the exhibition of the intimacy would go

    over the production of a biography: would be the possibility of changing thesubjectivity that appears and is produced for images.

    Keywords: domestic movies, documentary, intimacy, memory, subjectivity.

    Rsum: Notre proposition est dtanalyser comment sont utiliss les filmsde famille, qui appartenaient aux archives personnelles de la famille du rali-sateur brsilien Luis Srgio Person, dans le documentaire ralis par sa fille,Marina Person. Dans ce cas, la recherche de la mmoire et lexposition de

    Doc On-line, n.05, Dezembro 2008, www.doc.ubi.pt, pp. 36-49.

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    lintimit iraient au-del de la production dune biographie: elle serait la possibi-lit de la reconfiguration de la subjectivit de la ralisatrice dans et par ltimage.

    Mots-cls: Filmes de famille, documentaire, intimit, mmoire, subjectivit.

    Introduo

    REgistrar o presente atravs de imagens em movimento, que so

    guardadas como lembranas de acontecimentos felizes do cotidi-ano; essa seria a inteno primeira dos filmes de famlia, material quefica disposio para que cada integrante de um pequeno grupo, queviveu aqueles momentos ou conhece quem aparece na tela, se rena,relembre e compartilhe o passado.

    Como bem nos lembra Odin, no h nada que se parea mais comum filme de famlia do que outro filme de famlia (Odin,1995, p.160) namedida em que reiteram uma imagem positiva ao privilegiar passeios,festas e, principalmente, as primeiras artimanhas de bebs e crianas.Dessa forma, estariam, antes de tudo, selecionando momentos, recor-

    tando cenas no ato de filmar e, assim, afirmando a famlia como espaode felicidade.O que nos chama a ateno que, se at pouco tempo, esses filmes

    caseiros eram feitos para serem exibidos em espaos fechados, paraum pblico restrito, agora so expostos nas telas de TV, do computador(internet) e do cinema. Cabe, ento, a pergunta: porque registros quese referiam a momentos to particulares ganham fora e sentido quandose tornam pblicos?

    tambm Odin que reconhece um movimento atual em que essesfilmes, na medida em que chamam a ateno por produzirem um efeito

    de autenticidade, j so feitos com o intuito de serem exibidos, e adverteque, quando aparecem na TV, essas produes deixam de ser familia-res porque sofrem uma srie de manipulaes, como cortes, rudos emsicas.

    Este processo estaria inscrevendo um duplo movimento na socie-dade contempornea: o de privatizao do espao pblico e publici-zao do espao privado. Trata-se de um fenmeno de exposio daintimidade que contribui para a reconfigurao dessas duas esferas a

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    partir da busca da visibilidade, do olhar do outro e, em um determinadolimite, pelo reconhecimento de si. Acreditamos que esse movimento,que comea com a televiso e se expande com os vdeos e dirios nti-mos publicados na internet,1 de certa forma se reflete nas narrativas docinema documental.

    Contudo, apostamos em outras maneiras de usar a vida privada,que vo alm da espetacularizao do eu(Sibilia, 2006) promovida pelalgica miditica. como se o documentrio se apropriasse da visibili-dade para produzir um deslocamento: fazer das imagens no s lugar

    de um exposio narcisista mas, atravs delas, fundar o presente natela a partir da busca do passado, das memrias e a partir da produzirexperincias pessoais, elaborar perdas e, nesse trajeto, produzir subje-tividades.

    Nesse ponto, filmes que expem a intimidade dos diretores e ima-gens de famlia, como os brasileiros Person (2007), de Marina Per-son, Histrias Cruzadas (2008), de Alice de Andrade, 33(2003), KikoGoiffman, Um Passaporte Hngaro(2002), de Sandra Kogut e Santiago(2007), de Joo Salles vo alm de, por exemplo, programas de realityshows que se limitam em criar modelos de sujeitos que so copiados,que se tornam esteretipos e so resultado de jogos de rivalidade e dedisputa do prmio em questo, como bem ressalta Ivana Bentes (2006).

    Esses programas costumam colocar o espectador no lugar do juiz,que julga as confisses e a intimidade exposta na tela. Apesar das simi-laridades, como falar de si e exibir a vida ntima, acreditamos que algunsdocumentrios, ou algumas cenas desses filmes, conseguem escapardesse modelo e deslocar, nesse sentido, o espectador do seu lugar. apartir desses deslocamentos que propomos repensar nessa reconfigu-rao do mbito privado e na ressignificao2 de imagens de arquivo,em especial dos filmes de famlia, quando so usadas no cinema. Paratanto, analisaremos determinados fluxos de imagens e sons, principal-

    1Ver Paula Sibila, A intimidade escancarada na Rede: blogs e webcams subver-tem a oposio pblico/e privado in INTERCOM- Sociedade Brasileira de EstudosInterdisciplinares da Comunicao. CD XXVI Congresso Brasileiro de Cincias daComunicao BH/ MG Set 2006

    2Para Bernardet (2000) ressignificar as imagens usar outra vez seus fragmentosao inseri-los em determinado texto visual e sonoro. Ver Jean-Claude Bernardet, Asubjetividade e as imagens alheias: ressignificao in G. Bartucci(Org), Psicanlise,cinema e estticas de subjetivao, S.Paulo: Imago, 2000.

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    mente a incluso dos filmes de famlia como matria-prima para a reali-zao do filme Person(2007), de Marina Person.

    Arquivos ntimos na tela

    Ao contrrio de certa tradio do documentrio brasileiro, que privilegiao interesse sobre o outro de classe,3 Person (2007) se volta para oprprio realizador: para a sua famlia, suas memrias, sua experinciapessoal, sua intimidade. A busca de Marina pelo pai, o cineasta LuisSrgio Person,4 que morreu quando ela tinha seis anos de idade, feitaatravs de fotos, filmes em super-8, aparies na TV, relatos de amigose familiares, alm de trechos de seus filmes.5

    J na primeira cena, a diretora privilegia imagens caseiras paraapresentar uma espcie de biografia de Person. No aniversrio da irm,em que crianas cantam parabns ao redor do bolo, adultos vestemchapus de papel e o pai abraa carinhosamente as duas filhas peque-nas, com um sorriso largo nos lbios. O homem pblico mostrado emsua intimidade, em um espao que, a princpio, no ajudaria a reconsti-tuir a sua imagem de cineasta.

    Mesmo que muito particulares, esses arquivos de imagens e lem-branas de uma famlia so material fundamental para a constituiodo filme. O curioso que a parte mostrada daquela vida privada nose apresenta como algo inusitado ou que pudesse despertar a atenona medida em que so momentos banais. Apesar da trivialidade, dasimplicidade de um cotidiano familiar, essas imagens so selecionadaspara serem reveladas ao pblico. Podemos pensar, em um primeiromomento, que justamente pelo aspecto de normalidade que elas ofe-

    3Produzir imagens e falar do outro foi um trao marcante no documentrio mo-derno brasileiro, principalmente a partir dos anos 60, quando eram abordados de forma

    predominante os problemas e experincias de classes populares rurais e urbanas. VerConsuelo Lins; Cludia Mesquita, Filmar o real - sobre o documentrio brasileirocontemporneo Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008

    4Cineasta da dcada de 60 que, na contramo dos movimentos cinematogrficosbrasileiros da poca, que voltavam o olhar para o outro de classe, retrata em seusfilmes o perodo da ditadura militar a partir das contradies da classe mdia urbana.

    5Refiro-me a So Paulo S.A. (1965), O Caso dos Irmos Naves (1967) e CassyJones - O Magnfico Sedutor(1972)

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    recem a possibilidade de se inscreverem na memria dos espectadores,que encontram ressonncias entre aqueles momentos e os vividos nasprprias vidas.

    Seria ento a intimidade um conceito importante para considerar-mos essa aproximao entre imagens e pblico e, nesse sentido, o in-teresse pelo que do mbito do privado? Antes de tudo, devemos en-tender em que contexto surge a noo de vida privada, delimitada emseu prprio espao, com suas caractersticas peculiares. Nesse caso, preciso recuar ao estilo de vida burgus do incio da modernidade.

    quando o indivduo se volta para a casa e ganha um espao prprio,distante dos olhares alheios (Perrot, 1991).Nesse contexto, a casa se configura como uma espcie de refgio

    para a famlia burguesa.6 O territrio livre das exigncias e ameaasexternas como uma fortaleza que esconde segredos e se transformano lugar da autenticidade e dos conflitos. As subjetividades, agora vol-tadas para o interior, para a busca de uma verdade que se mantinhaescondida, do conta do incio de um individualismo.

    Segundo Perrot (1991), os embates entre as necessidades de umsujeito que cada vez mais se volta para si com a fora dos interes-ses pblicos teriam provocado dentro dos muros da vida privada gritose sussurros, portas que rangem, gavetas trancadas, cartas roubadas,gestos flagrados, confidncias e segredinhos, olhares desviados ou in-terceptados, o dito e o no dito. (Perrot, 1991, p.263)

    So aes e objetos que, ao mesmo tempo em que ressaltam aimportncia do sigilo, de manter escondido o que ntimo, revelam ointeresse pelo proibido, a curiosidade alheia. Nessa tenso entre o in-terior e o exterior, o visvel e o obscuro, o transparente e o opaco, possvel entender porque tornar segredo pode ser justamente uma ma-neira de falar dele. sobre o que alerta Foucault (1988) ao demonstrara multiplicidade de discursos que surgem a partir da represso ao sexo

    na Modernidade.76A importncia da casa como configurao desse novo espao de intimidade

    ressaltada com mais detalhes em Michelle Perrot (Org), Histria da vida privada 4:da Revoluo Francesa Primeira Guerra, So Paulo: Companhia das Letras, 1991.

    7Ver Michel Foucault Histria da sexualidade I: a vontade de saber, Rio de Ja-neiro: Edies Graal, 1988.

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    Apesar do vocabulrio autorizado e do controle das enunciaes,Foucault revela como os discursos sobre o sexo passam a ser incitados,principalmente em instituies como a Igreja, que estimulou s confis-ses. Explicao da qual parte Deleuze para concluir que o segredo sexiste para ser trado, para trair-se a si mesmo (Deleuze, 2006, p. 63).

    A partir desse entendimento, fica mais claro que a intensa produode diversos tipos de arquivos privados revela processos contraditrios.Ao mesmo tempo em que despertam a ateno, as correspondnciasde famlia, os retratos e os dirios ntimos procuram afastar olhares e

    ressaltam a necessidade de se proteger contra a intromisso em uni-versos cada vez mais particulares: o temor da violao do eu e seusegredo engendra o fantstico desejo de decifrar a personalidade quese oculta e de intrometer-se na intimidade dos outros (Perrot, 2001, p.435).

    Se para o eu moderno, voltado para uma interioridade estvel, paraa busca de uma verdade que se mantinha escondida, a questo erapreservar o ntimo, possvel sinalizar uma mudana desse cenrio nomomento atual, quando essa intimidade exposta por iniciativa dos pr-prios indivduos. Quando faz uso de filmes de famlia, Person amplia oespao de visibilidade do que antes se mantinha restrito privacidade.Ao longo do documentrio, 4 gravaes realizadas em espaos muitoparticulares para quem aparece nas imagens, como a casa de campo ea casa de praia da famlia, nos instigam a refletir sobre essa reconfigu-rao do mbito privado.

    Apesar do uso da cmera super-8, no podemos dizer que as ima-gens produzidas sejam profissionais. Pelo contrrio, elas se asseme-lham s caractersticas prprias de qualquer filme caseiro. Sem o auxi-lio do trip, so muitas vezes tremidas ou mal enquadradas, a cmerase movimenta com velocidade, buscando ngulos dos rostos e corposinfantis que correm, se agitam e at estranham o equipamento. No

    entanto, exatamente por essa falta de qualidade tcnica, solicitam o es-pectador, que encontra nas brechas deixadas pelos filmes caminho paraa produo de afetos (Odin, 1995).

    O que interessa no a qualidade do material, mas o que e como mostrado. Parece que o aspecto tcnico no importa na medida em queo cineasta faz uso do seu ofcio durante o lazer para produzir registrosque no sero exibidos de forma profissional, a priori. Embora Person

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    filme, ele tambm aparece. De forma generosa, oferece a cmera paraum amador, talvez a prpria esposa. Parece que, ao reconhecer o va-lor e unicidade daqueles momentos, faz questo tanto de registr-losquanto de fazer parte dos registros, para que nem ele e nem os mo-mentos sejam esquecidos. So maneiras de usar o objeto do trabalhoem um universo particular, e dar para o equipamento um novo propsito:o de produzir um arquivo de famlia.

    Quando trechos desse arquivo so usados no documentrio, essaintimidade exposta para um grande pblico que consolida a imagem

    do cineasta no s por seus feitos pblicos, mas a partir do relaciona-mento dele com a famlia. claro que sua subjetividade no se resumeao que se passa na frente das cmeras, pelo que selecionado pelafilha como matria-prima do filme. Contudo, no podemos desqualificaresses fragmentos que registram acontecimentos do passado. Pelo con-trrio, melhor ainda seria pensar no uso que Marina faz desses filmescaseiros.

    Alm da busca

    Apesar de no fugir de uma narrativa linear, e de realizar um discursocoerente, mesmo tendo como matria-prima tantos fragmentos (filmes,fotos, depoimentos, encontros, memrias), Person produz fluxos inde-terminados e abertos que se do em momentos especficos, porm in-tensos. Como na cena em que Marina fala de si, em tom confessional:no me sinto mal porque ele morreu, me sinto bem em ser filha dele,mesmo que eu no possa conviver com ele.

    Quando a diretora revela sentimentos to ntimos para os espec-tadores, produz um discurso sobre si, sobre questes muito pessoais.Nesse momento, torna pblico algo da ordem do privado para se cons-

    tituir a partir da revelao, na e pela imagem, e vai alm: aproveita oinstante da filmagem para trazer tona o que talvez no fosse dado seno em conseqncia da cmera. tambm o equipamento que tornapossvel reunir, de uma s vez, fragmentos de memrias, de documen-tos e de imagens que estavam guardados. No entanto, esses objetos,imagens e falas s ganham sentido, um novo e nico sentido, quandorevelados no ato de filmar.

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    Arquivos ntimos na tela ... 43

    A presena da cmera, nesse caso, faz parte e ajuda a construira realidade. No entanto, no podemos atribuir valor negativo a esseprocesso. Pelo contrrio, se levarmos em conta que, como afirma Ja-guaribe (2007), a realidade j em si uma construo social, a cmerapode ajudar a produzir acontecimentos que se do por sua causa e quepodem ser nicos e interessantes justamente por isso.

    A partir da, podemos dizer que o mais interessante no document-rio no o carter biogrfico