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Do sublime à leveza Denilson Lopes* RESUMO No intuito de contribuir para uma estética da comunicação, procura- mos desenvolver a atualidade da categoria do sublime no contexto contem- porâneo, associando-a ao banal, ao cotidiano e a uma postura ética susten- tada pela leveza. ABSTRACT 87 In lhe search of conlribulirig to an aeslhelics of comvnunicaliOn, we Iry to develop lhe ciclualíly of lhe calegory of sublime iii conlemporary limes, connecling ii to lhe ordínary, to everyday life and to ali elhic atitude based upon liglhness. Denilson Lopes Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Bras ilia. autor de Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (RJ, Sette Letras, 1999) e O Homem que amava Rapazes e Outros Ensaias (Ri, Aeroplano, 2002), pesquisador do CNPq. CONTRACAMPO EDIÇÃO ESPECIAL / NÚMERO DUPLO

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  • Do sublime levezaDenilson Lopes*

    RESUMONo intuito de contribuir para uma esttica da comunicao, procura-

    mos desenvolver a atualidade da categoria do sublime no contexto contem-porneo, associando-a ao banal, ao cotidiano e a uma postura tica susten-

    tada pela leveza.

    ABSTRACT 87

    In lhe search of conlribulirig to an aeslhelics of comvnunicaliOn, we Iryto develop lhe ciclually of lhe calegory of sublime iii conlemporary limes,connecling ii to lhe ordnary, to everyday life and to ali elhic atitude basedupon liglhness.

    Denilson Lopes Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade de Bras ilia.autor de Ns os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (RJ, Sette Letras, 1999) e O Homem que amavaRapazes e Outros Ensaias (Ri, Aeroplano, 2002), pesquisador do CNPq.

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  • Que destino teria a beleza hoje em dia? Seria o de Gustav vonAschembach em "Morte em Veneza"? Quanto mais ele procura a beleza, maisse aproxima da morte. Seria esta impossibilidade o destino do esteta hoje emdia? Ou seria antes, o puro prazer de voyeur perplex, imobilizado como nopoema "Sob o Duplo Incndio" de Carlito Aze vedo? Penso aindaem "BelezaAmericana", o filme de Sam Mendes. Lester, o protagonista, ao se encantarpor Angela, amiga de sua filha Jane, larga seu emprego, comea a fazermusculao, procura recuperar sua juventude. Ainda que esta cena seja tratadapelo diretor como ridcula, pattica, a partir desse momento que o protagonistase modifica. No mesmo filme, o jovem Ricky quem mais parece traduzir apossibilidade transformadora da beleza na vida cotidiana. Ele filma o que orodeia, buscando no s ser voyeur, mas estar no mundo. Ao relatar a Jane oque de mais belo tinha filmado, um saco que por 15 minutos volteava suafrente, ele se aproxima como nunca at ento de outra pessoa. pela belezaque acontece esta possibilidade, por breve que seja, de estar n mundo,trata-se mais de uma intensidade do que de uma elevao (LYOTARD, J.F.:1988,111).

    Falar da beleza no apenas um discurso intil, me coloca, ao mesmotempo, no mundo novamente reencantado (BAUMAN, Z.: 1997, 42) e naminha prpria solido, ao "reunir/cada fragmento nosso, perdido,/de dor e dedelicadeza" (Carlito Azevedo, "Na Gvea"). Ou seria este desejo, isto tudoiluso? A beleza e nada mais sigo.

    88 Esta busca da beleza passa primeiro pelo elogio, pelo retorno do sublimeseja como programa, seja como provocao. Me vejo inapelavelmente impelidoa recuperar a esttica, no mais colonizada pela economia, pela poltica. Estariamesmo todo sentimento de encantamento e fascnio diante do mundo, daspessoas reduzido a mero olhar de consumidor, marcado por, padrespublicitrios, que encobrem a realidade? necessrio mesmo uma viagem deredescoberta, de reaprendizado, sem medo da beleza uma vez mais, semconfundir esttica com esteticismo, sales de beleza ou academias demusculao, uma viagem como a que o poeta Basho fez em "Trilha Estreita aoConfim" apenas para contemplar a lua cheia nascendo sobre as montanhasdo santurio de Kasima.

    Mas o que fazer quando nosso cotidiano se transformou emexperincia miditica, audiovisual? Acelerar, ir mais rpido, ser mais veloz,aderir ao simulacro ou estabelecer pausas, silncios, recolhimento? Optoagora pelo sublime. O sublime no s como uma experincia, bastanterecorrente dentro da histria da filosofia, mas sobretudo uma categoria dearticulao das obras contemporneas.

    Meu objetivo o de problematizar o tema do sublime comopossibilidade da experincia esttica. Sem me alongar, parto de uma primeirae precria definio do sublime. O sublime seria a experincia entre horror e

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  • prazer, experincia de fascnio diante de uma paisagem, uma pessoa ou umaobra de arte, como nos lembra Nelson Brissac Peixoto (1997, 30 1/2), "oimpensvel, o indiscernvel", "evidncia de algo que no podemos ver nemdefinir mas que nos arrebata", "desejo indeterminado e imenso", "o inomevel,i nenarrve 1".

    Para alm de nos determos na trajetria desta categoria' a partir dadiscusso no mundo latino (Longino, Ceclio, Plotino), nos sculos XVIII eXIX, sobretudo na filosofia alem (Kant), no Romantismo, e mais recentementesua retomada, entre outros, por Lyotard, s ressalto o que interessa paradiscutir sua atualidade hoje em dia. Separa Longino (1996, IS), o sublime "oeco da grandeza da alma". Esta aproximao do sublime com o grandiosocontinua para alm do carter pico presente em Longino, at em Kant (1995,93), ao remeter ao absolutamente grande, ou nos romnticos, ao fascnio peloindefinido, mas j em Burke (s.d.,78 e 84), h simultaneamente a associaodo sublime com a infinitude, a magnificncia, mas tambm se abre uma outratradio, bastante fecunda na modernidade, ao associar o sublime com oextremamente pequeno, possvel de ser identificado posteriormente, porexemplo, na memria involuntria de Proust. medida que cada vez mais ograndioso, o monumental pode ser associado arte dos vencedores, deimprios autoritrios, do nazismo ao stalinismo aos picos hollywoodianos, justamente no cotidiano, no detalhe, no incidente, no menor que residir oespao da resistncia, da diferena.

    Uma primeira aproximao seria possvel entre o sublime e o sagrado. 89Tanto o xtase mstico quanto o sublime so marcados por uma suspenso euma dificuldade em nomear o vivenciado, experincias que podem ser vistascomo anlogas ao orgasmo 2 e prpria busca da arte moderna em representaro irrepresentvel, em transgredir os limites, transitar entre o rudo e o silncio,explorar o fora da tela, das galerias, o fora do palco.

    Mas apesar do sublime ser fruto da passagem de unia sociedadecentrada em Deus e na religio como aparato institucional para uma sociedadelaica, h uma perda do privilgio do encantamento diante dos santos e deusesara que o mundo material possa tambm ser fonte desta experincia. O

    sublime, afastado de um dimenso metafisica, dualista, no implica a negaodo mundo, do corpo e dos sentidos em favor do esprito. Sem dvida, se tratade uma suspenso, mas se no podemos viver em constante encantamento efascnio, aprendemos algo desta suspenso? O que nos resta depois ciogozo, a no ser talvez lembrar o sentido? Ou ainda, a experincia do sublimepoderia ser imemorial em meio a transitoriedade de tudo? Sua prpria foraestaria no em uma transcendncia, mas num mergulho mesmo no mundo dascoisas, no aqui e no agora (LYOTAR.D, J.F.: 1988, 104).

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  • Mas longe de localizar o sublime apenas numa tradio canonizadorado moderno, conservadora, nostlgica de sentidos em meio rapidez dasimagens e mscaras, como talvez seja o caso de Lyotard ao eleger o pintorabstrato Barnett Newman quando resgata o sublime em busca de uma "estticadesnaturada, portanto negativa" (1993, 69), mais prxima alta modernidade doque diante da condio ps-moderna que outrora defendia, acredito e apostonuma linhagem do sublime, em tom menor, no cotidiano, em personagenscomuns, presente na poesia de Manuel Bandeira e na crnicas de RubemBraga, como bem a mapeou Davi Arrigucci (1990, 1987), e se desdobra, numdesejo de revalorizao da narrativa como forma de se aproximar do pblico, dese aproximar do mundo contemporneo, seja no cinema, seja na literatura, deKiarostami, Wong Kar Wai, Kieslowski a Mike Leigh, Hal I-Iartley, do ltimoAlmodvar a Terence Davies, em Kazuo Ishiguro, David Leavitt e MichaelCunninghan, entre ns, em Walter Salles e Eduardo Coutinho, Adriana Lisboa eRubens Figueiredo. Trata-se da possibilidade de uma experincia de beleza queemerge de um cotidiano povoado de clichs, implica repensar o banal. Possibilidadeesta que me interessa mais.

    O sublime no banal no se confunde com uma busca de uma autenticidadeperdida no mundo da reprodutibilidade tcnica e eletrnica da imagem, da aurabenjaminiana, aproxima-se do que talo Moriconi (1998) chamou dedessublimao, ao incorporar o corporal, mas talvez por no compartilhar o mesmosolo cultural de onde suas reflexes parecem emergir, marcadas pela contracultura,

    90 pelo desbunde e pela poesia marginal, me distancio de qualquer possibilidadeiconoclstica, de virulncia trransgressora, mesmo que pardica. O sublime nobanal estabelece mais umjogo de tenses entre a contemplao e o olhar distrado,a rapidez e a lentido e prefere apostar mais na sutileza, na delicadeza, na leveza,nas palavras que no canso de repetir de Ana Chiara (1999), "sem muito desespero,que intil, sem pieguice, que meio de mau gosto, sem cinismo, porque j bastaa desrazo, mas com suave ironia para poder suportar o peso".

    Este sublime se encontra traduzido exemplarmente no ltimo filmede Rafael Frana, "Prelude to Announced Death", concludo pouco antes desua morte. Abraos e toques se sucedem entre dois homens de quem novemos os rostos. Ou do que me lembro. Nomes atravessam a tela. No umalista de pessoas, mas sucesso de lembranas. Na ansiedade do encontro eda despedida anunciada no ttulo, no h mais tempo para memriasdetalhadas, falas longas, elaboradas, s flashes de nomes e gestos. Nadapara ser dito ou falado a no ser tocar. As pessoas restam em nomes. Antesde serem perdidos, esquecidos. No se trata de saciar um ltimo desejo. Noh tanto frenesi. No h sexo, orgasmo. Apenas a superficie da pele se apresentasimplesmente, como se pudesse reter pela delicadeza, dizer.

    Seria o sublime, portanto, um enobrecimento do banal, dar nfase,foco ao que no tem? Sem dvida, o sublime se situa no quadro em que a arte

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  • foi se tornando cada vez mais um conceito ampliado e complexo, em que abeleza se afastou de objetos especficos. Tudo pode ser belo, mesmo umcadver no famoso poema de Baudelaire. Qualquer coisa pode ser arte, comonos impactou Duchamp. Todo mundo pode ser artista, como reafirmaram ospunks. Mas hoje, no se trata tanto de uma militncia virulenta, mas de produzirsentidos precrios, recolher cacos, vestgios, habitar runas. No esperar arevelao, a epifania, a iluminao, nem idealizar o simples, o cotidiano, mascertamente desmistificar o grandioso, o momumental. Nesta forma, o sublimeno se apresentaria como, em crticas originrias dos estudos culturais,"espao da reconciliao burguesa", que implica a volta esttica comoprodutora de hierarquias e distines (DELFINO, S. 104), nem como "opostoao sentimento de solidariedade social" (l-IEBD1GE, D.: 1998, 141), por "atomizara sociedade ao confrontar cada indivduo com a perspectiva de sua prpriadestruio iminente e solitria" (idem, 137)

    O sublime seria uma experincia aristocrtica? Seria mais umaexperincia daqueles que tm tempo. Seria o tempo Uni de classe?Mas tambm os que tm muito dinheiro esto muitas vezes interessados emgastar sem tempo em terem mais ou manter o que tm. O sublime certamenteimplica uma outra relao com o mundo no marcado exclusivamente pelotrabalho e pela produo. Como produzir imagens e narrativas que aindatenham fora diante do excesso informacional? possvel falar em um "sublimetecnolgico", no apenas como "objeto de uma produo controlada e de umconsumo socializado" (COSTA, M.: 1995, 49), como se as novas tecnologias 91por si instaurasssem um nova situao material (idem, 37), mas no momentoem que os meios de comunicao de massa no so elementos externos, socotidiano, memria e afeto, como no romance "Onde Andar Dulce Veiga?"de Caio Fernando Abreu, mergulhamos numa atmosfera em que o sujeitohumanista se dissolve, seu excesso se esvazia.

    H mais de 20 anos, Roland Barthes falava da solido do discursoamoroso em uma sociedade centrada cada vez na sexualidade. Talvez a estticatenha se tornado uma outra solido. Todos falam de cultura, mercado. Sim, claro, isto ajuda a compreender mas no esgota o encantamento, a perdiodesta experincia: o sublime. Falar do sublime no para ter saudade de algoque ns perdemos, mas algo que podemos encontrar quando menosesperamos, sobretudo quando no esperamos mais nada. Nada de maisgrandioso, transcendental, mas menor, banal, cotidiano, concreto, material. Osublime uma alternativa tanto ao discurso fatigado das transgresses tardo-modernas que artistas perfomticos, cineastas experimentais insistem emressuscitar quanto diante de um mundo povoado de imagens, clichs einformaes, no para recus-lo, mas de dentro dele afirmar uma adeso aomundo. Como nos provoca Nelson Brssac Peixoto: "o destino das imagensno est mais sendo jogado no experimentalismo da vanguarda nem no

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  • engajamento ideolgico, discursos completamente integrados no sistema deproduo de clichs. O futuro das imagens est na produo do sublime"(PEIXOTO, N. B.: 1997, 318). O sublime miditico, tecnolgico, o sublime pop.O sublime no como fuga do mundo, escapismo, mas afirmao dapossibilidade do encontro, da presena.

    O sublime se constitui a base de urna educao dos sentidos a partirdo precrio, do fugaz, do contingente, de tudo que evanesce rpido, mas quebrilha inesperada e sutilmente. Um tesouro para ser guardado.

    O sublime faz da arte urna ambincia, uma paisagem onde se podehabitar e caminhar lentamente como se houvesse o tempo todo do mundo, a volta ao tomo de um lago que bem pode ser urna vida, retorno ao mar, aoindefinido, ao inumano. Se for engano, iluso, que seja ento. Talvez todoeste esforo tenha sido em vo. Por que buscar renomear, torcer urna palavracom sentidos to arraigados? Por que no falar em outra palavra: leveza?

    O sublime aqui se traduz num posicionamento tico e esttico diantedo mundo frente ao populismo miditico sem ignorar os meios de comunicaomas pens-los em sua diversidade. Pensar os frgeis limites entre o sublime eo banal implica recolocar a atualidade ou no de uma esttica hoje em dia. Emcontraponto a um discurso da negao e de transgresso, reduzido hoje auma estratgia de marketing, defendo uma gentil subverso. Tambm emcontraponto a uma esttica da violncia, ao fascnio pelo grotesco e peloabjeto, o sublime se traduz em leveza e delicadeza . No consigo deixar de

    92 pensar no primeiro princpio da esttica de Nietzsche (1999, 11): "O que bom leve, tudo divino se move com ps delicados".

    Como falar de leveza hoje em dia? Perder peso seria uma adeso velocidade ou possibilidade de pausa? Parto da idia simples de que a levezaestabelece um dilogo constante com o peso, para que saibamos tanto voarcomo cair, tanto mover como repousar (ver BACHELARD, G.: 2001. 22), e paraalm de avaliaes subjetivas, de gosto, ela se apresentaria mais como umdestino, uma procura, do que um conceito rigoroso. A partir de algumasimagens, podemos contar estrias e impresses que envolvem sua defesa,sem nunca aprision-la. Defini-Ia seria como querer pegar gua com as mos.O melhor sempre escorre. Talvez um mtodo, um caminho melhor, como noslembra talo Calvino, seria no olh-la de frente, sem esquecer de que h umapresena indelvel em tudo que se possa falar sobre a leveza.

    Me vejo de repente, sempre procura da leveza, primeiro namelancolia, "a tristeza que se tomou leve" (CALV1NO, 1.: 1997, 32), agora, oque acabo de chamar corno sublime no banal, um sublime em tom menor, ummergulho no esquecimento, memria evanescente, recusa do ressentimento,renascer no devaneio que o sonho tomado leve. Diferente do sublime quepossui uma espessura filosfica, a leveza ainda no tem. Talvez por issomesmo, podemos entend-la mas como uma categoria que emerge sobretudo

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  • dos discursos poticos, mesmo quando so de pensadores como Nietzsche,Bachelard e Serres.

    O mrito de Calvino ao colocar a leveza como o primeiro valor a serpreservado no nosso milnio se traduz numa lio de humildade e degenerosidade, para s levarmos o essencial, o que pudermos carregar, e oresto deixarmos de lado (CALVINO, 1.: 1997, 41). Na sua mais bela palestra,Calvino defende a leveza, de forma bastante concreta, que implica mesmoprocedimentos formais, como um despojamento da linguagem (talvez contratoda uma literatura barroquizante, de excessos), o uso de uma narrao sutilou de uma descrio de alto poder de abstrao e busca de uma imagemfigurativa que se transforme num emblema (Idem, 29/30).

    Ao considerar a leveza de forma positiva, Calvino j se diferencia detoda arte que confunde peso com importncia, densidade com sisudez. Calvinotem at um certo pudor ao afastar a leveza do pensamento, "a vivacidade camobilidade da inteligncia" (idem, 19) da mera leviandade. superficialidade (idem,22), como depois, em outra palestra, ter em elogiar a rapidez, definida pelaagilidade, desenvoltura, mobilidade, sem negar os prazeres do retardamento(idem, 59), nem se deixar confundir com mera vertigem miditica que reduz tLidoe homogeneiza tudo (idem, 58). O mais importante que radicaliza asconseqncias de tirar o peso da coisas, lugares e personagens como estratgiapara resgatar a narrativa de todos aqueles que a vem morta, sem sentido.

    Mas para alm de questes formais, a leveza representa um estardiferenciado no mundo. Por mais que haja um drama da leveza como nos 93lembra ao falar de Milan Kundera sobre uma leveza que perdoa tudo, mesmoas maiores atrocidades histricas sob o vu da nostalgia (KUNDERA, M.:1985, 10), sobre a insustentvel leveza do ser no protagonista de seu romancemais conhecido, que acaba por se transformar num "inelutvel peso do viver"(CALVINO, 1.: 1997, 19), h uma alegria ao resgatara narrativa como capaz de-lidar com o mundo que nos escapa entre os dedos, diante de ns. Trata-se debuscar uma nova aventura to antiga como as lendas e mitos, to nova comoo mundo da informao, uni mistrio que emerge mesmo da um mundotransparente e claro. Existe um desgnio solar neste resgate, um fascniodiante do mundo tal qual ele , por mais maravilhosas, fantasiosas, incomunsque sejam algumas das fices de Calvino. Ou mesmo em resgatar a histria"to leve quanto a vida do indivduo, insustentavelmente leve, leve comouma pluma, como unia poeira que voa, como unia coisa que vai desapareceramanh (KUN DERA, M.: 1985,224).

    A leveza de Calvino uma fora menor, para brincar com o livro AFora Maior de Clment Rosset, uma prima modesta da alegria nietzscheana,mais discreta, menos trgica, menos marcada pelo discurso da potncia emais pelo da sutileza. Se o eterno retorno evoca uma dimenso trgica, aleveza de algo que no volta resulta cm colher insignificncias, levar abrincadeira a srio, sem temer o sentimentalismo, por sabermos que "antes de

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  • sermos esquecidos, seremos transformados em kitsch. O kitsch a estaointermediria entre o sere o esquecimento" (KUNDER, M.: 1985, 279). Comona ascenso final dos protagonistas em fuga de "Paraso" de Tom Tykwer(2002), a partir de roteiro de Kieslowski, como um belo exemplo de alegriaerea, que sobretudo a liberdade (BACHELARD, G.: 2001, 136). Tantosmomentos, encontros. Tantas fugas, pausas. Estes e os que ho de vir. Agorae aqui, suspenso no ar transparente. Apenas uma luz emerge pura, como noincio dos tempos. O dia avana. Nada a desejar a no ser o mover imvel nohelicptero. Todos os anos passados e por vir se elevam. No evanescem, seconcentram. Todas as horas, todos os sentimentos, amor e desamor. "Atravsde nossos coraes, que conservamos abertos,/passa o deus, asas nos ps(RILKE, R. apud BACHELARD, G.: 2001, 34). A alegria area tambm por servista como a superao do medo do vo, uma libertao do passado, comono belo trabalho, "A Arte de Subir em Telhados" da Armazm Companhia deTeatro. Para um terrestre tudo se dispersa e se perde ao deixar a terra, para umareo tudo se rene, tudo se enriquece ao subir (BACHELARD, G.: 2001,50).

    A leveza est mais prxima do prazer barthesiano (BARTHES, R.:1999, 7) que se desloca sem cessar, para no se acomodar, reificar, que aoinvs de enfrentar, como Perseu diante da Medusa (CALVINO, 1.: 1997, 16/7),muda de posio mas no deixa de olhar a monstruosidade da realidade. Aoinvs da simples fuga, a leveza mais um mergulho no mundo. Frente a umaarte do estardalhao e do escndalo, na mdia, nas polmicas, a discrio

    94 como prtica, traduzida de forma exemplar em "Nelson Freire" de Joo MoreiraSalIes (2003). O silncio e a cegueira aparecem no como negao do mundomas forma de ouvir melhor, ver melhor. "No quero fazer guerra ao que feio.No quero acusar, no quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minhanica negao seja desviar o olhar! E, tudo somado em suma: quero ser,algum dia, apenas algum que diz Sim!" (NIETZSCHE, F. 2002, 188). Umaposio discreta, no do cnico ou ctico distante, mas de um companheirode jornada, que no vai nem na frente, nem atrs, apenas ao lado, solidrio.

    At onde pode levar a leveza? Como saber se ela no acabou. Ainda.E por todos os dias e horas que viro, no se deixar abater antes do tempo.Ter ainda a curiosidade da criana, do viajante, do anjo, estes mensageiros daleveza no nosso mundo. Sem saber do que vir, mas buscar a fora do presente,das coisas do mundo. Por mais que tudo tenha passado rpido demais foieste o momento e no outro. H uma salvao pelas fragilidades eprecariedades, no por verdades acabadas, sistemas fechados, pesados. Pormais que o mundo nos pese, ainda resta uma brecha, nem que seja para rirmosde ns mesmos, de onde estamos, at onde camos. E neste riso, num gestotolo, num ato gratuito, voa algo que no se pode prender.

    Mas afirmar a leveza no seria afirmar o mundo da rapidez, dainformao e da ausncia da memria? A leveza apenas diria do mundo como

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  • ele e cada vez mais ? Sem amarras, soltos e ss, mariposas esvoaandobatendo umas contra as outras e contra a luz at que no haja mais luz?Talvez, mas pensaria numa outra imagem, da mariposa que a cada batida deixapartes de seu corpo at no ser mais que luz, incndio e cinzas. Quem haveriade dizer que seria de todo em vo, se houve tanta violncia, mas tanta beleza,no caminho, at o fim? Ns que como Caivino, somos melanclicos em buscada alegria, saturninos que desejamos ser mercuriais (CALVINO, 1.: 1997, 65),poderamos pedir modestamente, todos os dias, "mais leveza", como umapromessa e prece, presena e utopia.

    Haveria uma leveza na rapidez, uma leveza da dissoluo, em que oprprio movimento rarefaz qualquer possibilidade de contato, ou pelo menosreduz tudo ao movimento. Do Futurismo a filmes como "Corra, Lola, Corra"de Tom Tykwer (1999) muito haveria para se dizer. Talvez a simples celebraoda velocidade como imprio da mquina seja dificil de se sustentar hoje emdia, mas h o fascnio, o xtase mesmo da diluio, no ritmo mesmo aceleradode qualquer festa, dana, celebrao, como na casa noturna, ouvindogradualmente a intensidade da msica at entrar, em "Millenium Mambo" deHou Hsiao Hsien (2001). Esta leveza na rapidez pode tambm se radicaliza naleveza da viagem, no se deixar ser estrangeiro, sem razes, ser outroconstantemente at se perder, como em tantos road movies, como "OPassageiro" de Antonioni (1973). Para alm da melancolia, a alegria estrangeira,usada por Julia Kristeva (1994) em outro contexto, que faz cio prprio exlio,desterramento, uma espcie de encontro, um pertencimento areo, uma casa 95mvel, mais gregria do que geogrfica.

    Se Calvino preferia a leveza do pssaro leveza da pluma, preferindoa preciso e a determinao em detrimento do vago e do aleatrio (CALVINO,1.: 1997, 28), poderamos pensar mais as duas levezas como complementares.A leveza do pssaro como uma leveza da ao, da vontade afirmada, danarrativa precisa, do trajeto estabelecido, que v de uma certa distncia,transformando a paisagem em mapa, enquanto a leveza da pluma no ar, daespuma no mar a leveza da deriva, mais incerta, mais cheia de surpresas emarcada pelo acaso, no seu prprio caminho, leveza que aceita a realidade deperto, sem restries e ainda sim se alegra, to presente nas manifestaesque incorporam o acaso, o momentneo, o fugaz.. Mas no s.

    Esta segunda leveza decorre mesmo cia pausa, do silncio. H muitorudo, desejo de comunicao travestido de excesso de informao. A levezano cotidiano, do pequeno gesto, das pequenas coisas. A leveza que aguardae guarda o mundo na sua impureza. "Guardar uma coisa no escond-la outranc-la./(...) Guardar uma coisa olh-la, fit-la, mir-la por/admir-la, isto ,ilumin-la ou ser por ela iluminado./(...) Por isto melhor se guarda o vo de unipssaro/Do que um pssaro sem vos" (CICERO, A.: 1996, II). Leveza presentemesmo em meio ao maior descontrole. Em meio ao delrio, do mundo, caminhar

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  • como beira de um lago plcido. No indiferena, mais uma inocncia, umdestino ou uma escolha, urna conquista quando nada mais esperamos, quandoj sofremos o peso da existncia. Na serenidade heideggeriana, ao deixarmosser atravessados pelo mundo sem que nos dissolvamos ou na meditao zenbudista que intensifica o estar no mundo, imprimimos uma direo discreta,como numa tempestade em alto mar, em que se debater em demasia, fazermais, pode apenas antecipar o naufrgio. Saber flutuar, se posicionar em meio deriva, uma meta. Insistir urna vez mais diante da seduo do peso, doxtase do naufrgio. Levantar os olhos quando toda a realidade parece ser ofundo, a queda. Esquecer para poder se deslocar, se desvencilhar do pesodas mgoa, ressentimentos, do passado, da perda como em "Doce Amanh"de Atom Egoyan (1999). A criana o pai do homem sereno, um reaprender,quando podamos nos afundar e ousamos voar, como um Anel liberto doPrspero, parte dele mesmo que se liberta.

    A leveza o antdoto da melancolia. Frente a dor suave, do passadoque no passa, a modesta alegria simplesmente por viver, no por ter ganhoalgo. No resistir ao apequenenamento das coisas e pessoas. O retratoembaado. A gua saindo pelo ralo. A poa onde antes era um mar. Ummomento onde antes era toda a vida, o que importava. A leveza da deriva, aliberdade frente ao peso da orfandade. Vestgios de desejos tardiamentepercebidos. Encanto ao conseguir lembrar feliz as perdas. Suave delicadezade um ocaso. "Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existir

    96 ainda alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano o ltimoestgio da histria da beleza" (KUNDERA, M.: 1985, 107). Assim, se faz umaltima imagem da leveza, ao ser associada a urna filosofia do apagamento(BACHELARD, G.: 2001, 171), a um retornar. "O mundo belo antes de serverdadeiro. O mundo admirado antes de ser verificado" (idem, 169), mundode "extrema solido em que a matria se dissolve, se perde" (idem, 171)

    A felicidade fcil nada prova a no ser a generosidade da vida paraquem a recebe. Ser feliz em meio a tormentas o desafio e o aprendizado.Quando nada ou pouco satisfaz, retirar a fora da dor. Sorrir diante da luz quecega. Cantar quando o tapa humilha. Caminhar delicadamente diante dasvaias. Diante do abismo resistir ao mergulho na loucura, no suicdio, no teroda morte. Caminhar diante do peso das coisas, com a leveza na alma.

    BibliografiaAGEL, Henri. El Ciney lo Sagrado. Madri, Rialp, 1960.___________ O Cinema tem Alma? Belo Horizonte, Itatiaia, 1963.ARRIGUCCI, Davi. "Ensaio sobre 'Ma' (Do Sublime Oculto)" in: Humildade,Paixo e Morte. A Poesia de Manuel Bandeira. So Paulo, Companhia dasLetras, 1990.

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    NotasPara uma discusso mais filosfica entre ns, ver, por exemplo Rodrigo

    Dantas (1998)2 Sendo comum o uso de metforas erticas na literatura mstica e de metforassacras na literatura ertica.

    Palavras-chave1. Sublime2. Leveza3. Esttica4. BelezaS. Experincia

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