2
Do Amor Entrópico Estava a andar pela rua, era larga e sem dono. Eu queria me divertir, aproveitar árvores sem vigia e roubar umas frutas — goiabas e mangas. Lembro- me quando o senhor José me expulsou do quintal dele! Pensei, por um par de segundos, que ele soltaria o cão para me abocanhar. E eu só queria uma ou outra fruta, nada mais. Felizmente ele tinha apenas um jornal em mãos, uma xícara de café e muitas — muitas — palavras na boca. E que palavras ele tinha! Era um calor outonal, de folhas e vento a caírem e despencarem. Não era comum ventar tanto, nem mesmo nessa época do ano. Eu arriscaria em aposta, mesmo custando meus centavos do bolso, que essa rua era especial e só ela conseguia produzir tanto vento. Na minha casa o vento só dava as caras com a chuva, no calor era uma miséria de quente. As folhas das árvores não se aguentavam no chão e levantavam voo. Tais folhas mesclavam-se em chão acidentado de pedras redondas e paredes brancas com azulejos portugueses — tudo laranja, cinza, branco e azul. Eu correria e chutaria algumas, se não estivesse com calor. Mamãe me disse para voltar cedo. Estávamos de ir à festa de Laura — minha amiga de escola. Sento ao lado dela, dividimos os lápis de cor, giz e tudo mais. Já dividimos chiclete até, mas era grande. Diziam, lá na sala, que eu sentia amores por ela. Eu nem sei o que é amor, quando aparece e por que, ou por quem, aparece. Perguntei à mamãe sobre amores e ela dizia: uma hora aparece, não se preocupe. Não me preocupei, eu queria ir à festa. Aquela rua tinha cheiro de amoras. O vento trazia frescor da fruta e deixava qualquer um contente por estar ali. Um vento mais forte soprou e me carregou, junto do aroma e outras folhas mais, até uma viela. Era estranho, o vento não era forte, ele mais me guiava do que obrigava. E até me lembrei que por lá eu chegaria mais cedo em casa. Quero muito ir à festa de Laura. O vento parou de soprar e minhas pernas de balançar. Algo estava refletindo a luz do sol de forma arroxeada. Havia folhas alaranjadas, pedras cinzas e essa luz roxa. Minha cabeça tombou para frente, de encontro ao chão, e a vista clareou. Tudo rápido, num lampejo. Nós, mais jovens, descrevemos tudo com muita cor. No que olho para frente, de pronto uma árvore cresce, subitamente, à minha frente! A entropia brincou e fez pouco-caso da minha razão. Não, não era calor, ilusão.

Do Amor Entrópico

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Conto - Bruno Chagas

Citation preview

Page 1: Do Amor Entrópico

Do Amor Entrópico

Estava a andar pela rua, era larga e sem dono. Eu queria me divertir,aproveitar árvores sem vigia e roubar umas frutas — goiabas e mangas. Lembro-me quando o senhor José me expulsou do quintal dele! Pensei, por um par desegundos, que ele soltaria o cão para me abocanhar. E eu só queria uma ou outrafruta, nada mais. Felizmente ele tinha apenas um jornal em mãos, uma xícara decafé e muitas — muitas — palavras na boca. E que palavras ele tinha!

Era um calor outonal, de folhas e vento a caírem e despencarem. Não eracomum ventar tanto, nem mesmo nessa época do ano. Eu arriscaria em aposta,mesmo custando meus centavos do bolso, que essa rua era especial e só elaconseguia produzir tanto vento. Na minha casa o vento só dava as caras com achuva, no calor era uma miséria de quente. As folhas das árvores não seaguentavam no chão e levantavam voo. Tais folhas mesclavam-se em chãoacidentado de pedras redondas e paredes brancas com azulejos portugueses —tudo laranja, cinza, branco e azul. Eu correria e chutaria algumas, se não estivessecom calor.

Mamãe me disse para voltar cedo. Estávamos de ir à festa de Laura —minha amiga de escola. Sento ao lado dela, dividimos os lápis de cor, giz e tudomais. Já dividimos chiclete até, mas era grande. Diziam, lá na sala, que eu sentiaamores por ela. Eu nem sei o que é amor, quando aparece e por que, ou porquem, aparece. Perguntei à mamãe sobre amores e ela dizia: uma hora aparece,não se preocupe. Não me preocupei, eu queria ir à festa.

Aquela rua tinha cheiro de amoras. O vento trazia frescor da fruta e deixavaqualquer um contente por estar ali. Um vento mais forte soprou e me carregou,junto do aroma e outras folhas mais, até uma viela. Era estranho, o vento não eraforte, ele mais me guiava do que obrigava. E até me lembrei que por lá euchegaria mais cedo em casa. Quero muito ir à festa de Laura.

O vento parou de soprar e minhas pernas de balançar. Algo estavarefletindo a luz do sol de forma arroxeada. Havia folhas alaranjadas, pedras cinzase essa luz roxa. Minha cabeça tombou para frente, de encontro ao chão, e a vistaclareou. Tudo rápido, num lampejo. Nós, mais jovens, descrevemos tudo commuita cor. No que olho para frente, de pronto uma árvore cresce, subitamente, àminha frente! A entropia brincou e fez pouco-caso da minha razão. Não, não eracalor, ilusão.

Page 2: Do Amor Entrópico

Uma árvore comum, não tinha nada em especial. Em contos fantásticos elateria algo de especial, de mais cor, de mais cheiro. Não, era grande, massimplesmente uma árvore. De altura quatro vezes o meu tamanho, acredito.Como que uma árvore, que levaria anos e outros mais para nascer, foi aparecerassim? O chão tinha pedras, muitas pedras. Tudo me parecia impossível, era umdia quente. Chuva caindo, muita terra, e um tanto mágica: assim eu acreditaria.

Dez, vinte, não sei quantos minutos. A árvore depois desapareceu. Ela semostrou para mim, apenas para mim. Ah!, a vida nasce no inoportuno, pensei efui-me embora. O amor deve ser assim — espero muitíssimo. Já espero porencontrar Laura.