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ISSN 1981-9021 - Geo UERJ - Ano 10, v.2, n.18, 2º semestre de 2008. P. 62-86 www.geouerj.uerj.br/ojs A HISTORICIDADE DE UM CONCEITO: OS DIVERSOS USOS DA PAISAGEM AO LONGO DO TEMPO NA CIÊNCIA GEOGRÁFICA THE HISTORICAL CHARACTER OF A CONCEPT: THE VARIOUS USES OF LANDSCAPE THROUGH DECADES IN GEOGRAPHICAL SCIENCE Letícia Giannella Mestranda em Geografia – PUC-Rio [email protected] Resumo O artigo pretende trazer à discussão uma pequena abordagem sobre as diversas conceituações de paisagem ao longo do tempo. A paisagem é um conceito ainda indefinido e assim continuará o sendo, já que os conceitos passam continuamente por sucessivas transformações e devemos, em vez de buscar uma definição pronta, estar abertos para identificar aproximações que tenham maior relação com nosso objeto de estudo. Assim, o artigo passa pela idéia da paisagem em momentos históricos marcantes: o paradigma holístico da pré-modernidade; a fragmentação dos saberes da Modernidade; e o paradigma complexo da pós-modernidade, que talvez signifique uma espécie de retorno ao holismo medieval, à medida em que trás à tona a íntima relação da paisagem com a natureza e a cultura. Palavras-chave: paisagem, história dos conceitos, relação homem-meio, paradigmas da ciência, Modernidade. Abstract The article aims to bring a small approach to the discussion about the various conceptualizations of landscape through decades. The landscape is a concept still undefined and will continue to be, because the concepts are continuously suffering successive transformations, and we must, instead of look for a ready definition, be open to identify approaches that have greater relationship with our object of study. Thus, the article goes through the idea of the landscape in

Diversos Usos Da Paisagem

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Paisagem

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  • ISSN 1981-9021 - Geo UERJ - Ano 10, v.2, n.18, 2 semestre de 2008. P. 62-86 www.geouerj.uerj.br/ojs

    A HISTORICIDADE DE UM CONCEITO: OS DIVERSOS USOS DA

    PAISAGEM AO LONGO DO TEMPO NA CINCIA GEOGRFICA

    THE HISTORICAL CHARACTER OF A CONCEPT: THE VARIOUS USES OF

    LANDSCAPE THROUGH DECADES IN GEOGRAPHICAL SCIENCE

    Letcia Giannella Mestranda em Geografia PUC-Rio

    [email protected]

    Resumo

    O artigo pretende trazer discusso uma pequena abordagem sobre as

    diversas conceituaes de paisagem ao longo do tempo. A paisagem um

    conceito ainda indefinido e assim continuar o sendo, j que os conceitos

    passam continuamente por sucessivas transformaes e devemos, em vez de

    buscar uma definio pronta, estar abertos para identificar aproximaes que

    tenham maior relao com nosso objeto de estudo. Assim, o artigo passa pela

    idia da paisagem em momentos histricos marcantes: o paradigma holstico

    da pr-modernidade; a fragmentao dos saberes da Modernidade; e o

    paradigma complexo da ps-modernidade, que talvez signifique uma espcie

    de retorno ao holismo medieval, medida em que trs tona a ntima relao

    da paisagem com a natureza e a cultura.

    Palavras-chave : paisagem, histria dos conceitos, relao homem-meio,

    paradigmas da cincia, Modernidade.

    Abstract

    The article aims to bring a small approach to the discussion about the various

    conceptualizations of landscape through decades. The landscape is a concept

    still undefined and will continue to be, because the concepts are continuously

    suffering successive transformations, and we must, instead of look for a ready

    definition, be open to identify approaches that have greater relationship with our

    object of study. Thus, the article goes through the idea of the landscape in

  • ISSN 1981-9021 - Geo UERJ - Ano 10, v.2, n.18, 2 semestre de 2008. P. 62-86 www.geouerj.uerj.br/ojs

    historical landmark: the holistic paradigm of pre-modernity, the fragmentation of

    knowledge of Modernity, and the paradigm of complex of post-modernity, which

    may mean some sort of return to the medieval holism, as it brings back to the

    surface the intimate relationship of the landscape with nature and culture.

    Key-words : landscape, history of concepts, relation man-environment, science

    paradigms, Modernity.

    Introduo

    O mundo em que vivemos vem continuamente passando por sucessivas

    transformaes das mais diversas naturezas. Estas, por sua vez, esto

    permanentemente desconstruindo antigos saberes e construindo novos

    paradigmas. O movimento da cincia ao longo do espao-tempo

    profundamente influenciado por essas transformaes.

    Deste modo, os conceitos, que so a base do pensamento cientfico,

    possuem histrias marcadas pelos contextos sociais criados por cada uma

    dessas transformaes. Com o pensamento geogrfico no diferente. Os

    principais conceitos que o embasam podem ser definidos de acordo com

    variados autores que realizaram e/ou tm realizado suas pesquisas e estudos

    em diversos momentos histrico-espaciais, com caractersticas prprias.

    Um desses conceitos a paisagem. Este artigo trata dos diversos

    papis representados pela paisagem na construo do pensamento geogrfico,

    a partir de diferentes contextos. O que se procura com esta abordagem

    analisar a relao entre paisagem e geografia, de modo que possamos

    compreender melhor os diferentes cenrios que levaram a diferentes

    concepes da prpria cincia geogrfica.

    Cabe a cada um de ns analisarmos essas concepes e construirmos

    nossos prprios pensamentos luz dos autores revisitados, de acordo com os

    objetivos que pretendemos alcanar na utilizao da idia de paisagem.

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    atravs principalmente da transio da Idade Mdia para a

    modernidade, e da modernidade para a chamada ps ou hipermodernidade,

    que podemos entender a paisagem para alm da histria do conceito, como

    afirma Edir Augusto Dias Pereira em sua resenha sobre a obra do filsofo

    Jean-marc Bess (2006). Pereira ainda destaca que:

    a paisagem descentra, desloca-nos do centro que

    ocupamos no espao, porque na paisagem no se sabe

    propriamente onde se situar, no se sabe onde se

    colocar, no se sabe onde se est. Para ele1 a paisagem

    simplesmente e essencialmente invisvel, o

    inobjetivvel e o irrepresentvel, no pode ser conhecida

    nem habitada (PEREIRA, 2006, p. 147).

    Alm disso, ressaltamos que nem sempre h apenas um caminho a ser

    seguido, ou seja, no devemos nos preocupar em escolher uma das idias

    apresentadas e segui-la at o fim como base conceitual de qualquer trabalho

    que venha a ser desenvolvido. Devemos sim estar abertos para procurar

    entender profundamente cada uma delas, a fim de que possamos identificar

    aquelas com as quais nosso objeto de estudo tenha maiores afinidades,

    imbricando-as em uma nova abordagem sobre o assunto.

    Neste artigo, abordaremos desde as primeiras conceituaes

    conhecidas do termo paisagem at as tendncias mais atuais, passando pelas

    transies entre os perodos medieval e moderno, e moderno e ps-moderno.

    A paisagem pr-moderna

    A representao e a conceituao das paisagens foram alteradas

    sucessivamente na histria. Melo (2001, p. 29) afirma que o conceito de

    paisagem um dos mais antigos da geografia, a ponto de, nas abordagens

    1 Aqui o autor refere-se ao fenomenlogo Erwin Strauss.

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    mais remotas, os gegrafos afirmarem ser a geografia a cincia das

    paisagens.

    A Antiguidade Clssica considerava a geografia como o estudo das

    relaes sistemticas que descrevem a paisagem, e que, orientadas por esta

    (a paisagem), se localizam e se sintetizam para formar o fenmeno regional, de

    Estrabo (63 a.C.-63 d.C.). Ainda da Antiguidade vem o discurso de um todo

    planetrio que se expressa como uma construo matemtica e pronta para

    versar-se em linguagem cartogrfica, de Ptolomeu (MOREIRA, 2006, p. 14).

    J no Ocidente medieval, a viso de mundo predominante na Europa era

    orgnica. As pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas, e

    vivenciavam a natureza em termos de relaes orgnicas, caracterizadas pela

    interdependncia dos fenmenos espirituais e materiais e pela subordinao

    das necessidades individuais s da comunidade. A natureza da cincia

    medieval baseava-se, portanto, na razo e na f, e sua principal finalidade era

    compreender o significado das coisas e no exercer a predio ou o controle

    da histria. Deste modo, o carter mais racional e matemtico da tradio

    aristotlica deu lugar a um carter mais baseado na espiritualidade. Contudo,

    no foram encontradas referncias utilizao especfica do termo paisagem

    neste perodo.

    Paisagem e Modernidade

    Primeiramente, devemos entender o que a modernidade. Giddens

    (1991), como uma primeira aproximao, afirma que a modernidade refere-se

    a estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a

    partir do sculo XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais

    em sua influncia. Ainda segundo o autor:

    Os modos de vida produzidos pela modernidade nos

    desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem

    social, de uma maneira que no tem precedentes. Tanto

    em sua extensionalidade quanto em sua

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    intencionalidade, as transformaes envolvidas na

    modernidade so mais profundas que a maioria dos tipos

    de mudana caractersticos dos perodos precedentes

    (GIDDENS, 1991, p. 14).

    De acordo com Paul Claval (2004, p. 14), a origem do termo paisagem

    remonta ao sculo XV crise do perodo medieval nos Pases Baixos, sob a

    forma de landskip. Neste caso, a paisagem aplicava-se aos quadros que

    apresentam um pedao da natureza, onde os personagens tm um papel

    apenas secundrio (idia de janela). Claval afirma que o alemo forjaria a

    partir de ento o termo landschaft, e o ingls, landscape, para traduzir o termo

    holands. O italiano transcreveria a idia de extenso de pays (regio, ptria,

    lugar de nascena), que vem da raiz land, criando paesaggio, de onde deriva o

    termo francs.

    Holzer (1999, p. 152) diz que a palavra alem mais antiga, medieval e

    seu contedo mais abrangente e complexo que o das lnguas latinas, onde o

    termo renascentista, limitado, em sua origem, s artes plsticas. Contudo,

    logo a geografia francesa apropriou-se da palavra paysage, destituindo-a de

    seu sentido renascentista e restituindo-a o sentido mais amplo de seu correlato

    alemo.

    Bess (2006) refora essa idia afirmando que antes de adquirir uma

    significao puramente esttica, ligada ao desenvolvimento especfico de um

    gnero de pintura a partir dos sculos XVII e XVIII, a palavra paisagem possui

    uma significao que se pode dizer territorial e geogrfica, o que condiz com a

    idia de paysage.

    Neste sentido, desaparece a idia de enquadramento, ou seja, o

    destaque se transfere da perspectiva e do enquadramento observados para a

    parte do pays do qual se discerne a fisionomia (CLAVAL, 2004, p. 15).

    A partir do sculo XVII, o termo paisagem passou a adquirir uma

    significao puramente esttica, ligada a um gnero especfico de pintura.

    Todavia, para o autor, a pintura busca reproduzir objetivamente um fragmento

    da natureza, mas o ponto de observao, o ngulo e o enquadramento da vista

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    resultam de uma escolha (p. 15). Existiria assim tambm uma dimenso

    subjetiva da paisagem.

    Luchiari (2001, p. 14) declara que at o sculo XVIII o termo paisagem

    era sinnimo de pintura, ou seja, foi na mediao com a arte que o stio o

    lugar adquiriu o estatuto de paisagem.

    Para Bess (2006, p. 62), a paisagem como noo esttica assume a

    desarticulao moderna das diferentes funes da razo (conhecimento,

    julgamento moral, julgamento esttico). Assim, toda tentativa de reconciliar a

    esttica com os outros setores do pensamento humano denunciada como

    arcaica, ou mesmo reacionria, pois estar-se-ia retornando ao perodo

    medieval. No entanto, o mesmo autor afirma que, desde o sculo XVII, esta

    ruptura (esttica versus outros setores do pensamento) tem sido contestada e

    nunca se imps sem dificuldade. A origem dessa resistncia est justamente

    na relao da geografia com a pintura, que existiu desde antes do sculo XVI.

    Na frmula clssica da paisagem esttica a partir do sculo XVII na

    histria da pintura, a paisagem definida como a extenso de um territrio que

    se descortina num s olhar de um ponto de vista elevado. Assim, a paisagem

    passou a ser tida como um espao objetivo da existncia, mais do que como

    vista abarcada por um sujeito (Bess, 2006, p. 21).

    No que diz respeito ao surgimento da geografia moderna, Tatham,

    citado por Moreira (2006, p. 13), afirma que este se deu na segunda metade do

    sculo XVIII, alimentado na filosofia do Iluminismo e do Romantismo Alemo. O

    desenvolvimento do sistema newtoniano para o qual a funo da cincia era

    descobrir leis universais e enunci-las de forma precisa e racional tambm foi

    um dos grandes responsveis por essa modernizao da geografia. Becker e

    Gomes (1993, p. 150) afirmam que em relao concepo dominante no

    pensamento medieval de uma natureza oculta e insondvel, o sistema

    newtoniano foi o grande modelo de ruptura. A natureza se transforma em um

    sistema de leis matemticas estabelecidas por um Deus racional.

    Moreira (2006, p. 13) separa a geografia moderna em trs fases

    diferenciadas por seus respectivos paradigmas: o paradigma holista da baixa

    modernidade; o paradigma fragmentrio da modernidade industrial e o

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    paradigma holista da hipermodernidade. Neste artigo, trabalharemos com a

    diviso entre a modernidade considerando os perodos da baixa

    modernidade e da modernidade industrial e a hipermodernidade como

    tendncia atual.

    Luchiari (2001, p. 14) diz que a paisagem, na chamada baixa

    modernidade, no possua um sentido de unidade. Entende-se por baixa

    modernidade (para a geografia moderna) o perodo do Iluminismo e do

    Romantismo Alemo de acordo com Moreira (2006, p. 13) ambos

    marcados pela presena do idealismo filosfico. Havia na baixa modernidade

    uma aproximao do homem com o mundo natural que tornava cada vez mais

    evidente o carter ornamental da natureza e sua valorizao esttica como

    smbolo distintivo de posio social (LUCHIARI, op. cit.).

    O gegrafo J. R. Forster e o filosofo Immanuel Kant so considerados

    por Moreira (2006, p. 14) como os pontos de convergncia do Iluminismo na

    geografia, antecedidos pelos gegrafos da primeira metade do sculo XVIII.

    Para Forster, a descrio das paisagens tem a tarefa de evidenciar as

    relaes atuantes entre os fenmenos e esclarecer sua natureza. A descrio

    culmina na explicao das relaes, com ateno particular s relaes do

    homem com o meio (MOREIRA, 2006, p. 16). Forster toma por abordagem o

    estudo da superfcie terrestre atravs do recorte das paisagens, enfatizando a

    cincia geogrfica como uma cincia corogrfica.

    O filsofo Immanuel Kant (1724-1804) estabelecer as bases

    epistemolgicas da geografia moderna que ficaram faltando ao trabalho

    empirista de sistematizao terico-metodolgica desenvolvido por Forster.

    Para Kant, a geografia est relacionada percepo espacial dos fenmenos,

    e por isso o filsofo a classifica como uma cincia da natureza. Contudo,

    entende-se por natureza, nos tempos de Kant, todo o mundo da percepo

    sensvel, o mundo objetivo das coisas que nos rodeiam (Moreira, 2006, p. 17).

    Segundo Gandy (2004, p. 81), na tradio romntica que surge a partir

    do final do sculo XVIII, a apreenso visual da natureza est estreitamente

    ligada ao sentimento esttico do sublime.

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    Karl Ritter (1779-1858) forma com Alexander von Humboldt (1769-1859)

    o perodo cientfico para o qual o perodo de Forster e Kant lana os primeiros

    alicerces. Ritter reafirma a corologia e aperfeioa o mtodo comparativo.

    Humboldt parte do mesmo princpio e mtodo de Ritter, porm:

    Se para Ritter o objeto de estudo da geografia a

    superfcie terrestre vista a partir das individualidades

    regionais, para Humboldt a globalidade do planeta,

    vista a partir da interao entre a esfera inorgnica,

    orgnica e humana holisticamente realizada pela ao

    intermediadora da esfera orgnica (MOREIRA, 2006, p.

    21).

    Podemos notar que tanto Ritter quanto Humboldt so holistas em suas

    concepes sobre a geografia. Ritter vai do todo s partes e Humboldt vai do

    recorte ao todo, ambos utilizando o mtodo comparativo e o princpio da

    corologia. O fundo holista comum que ambos captam do pensamento

    iluminista a idia da natureza como uma essncia interior de todas as coisas,

    que vem de Kant (MOREIRA, 2006, p. 22). Todavia, ao mesmo tempo em que

    os dois fundadores da geografia moderna se aproximam, tambm h um

    distanciamento. Para Ritter, de acordo com Tatham, citado por Moreira (op.

    cit), a geografia centralizava-se no homem; seu objetivo era o estudo da terra,

    do ponto de vista antropocntrico; procurar relacionar o homem com a

    natureza, e ver a conexo entre o homem e a sua histria e o solo onde viveu.

    J para Humboldt, a geografia centra-se tambm no homem, mas este se

    compreende no interacionismo das esferas com primado no papel mediador do

    orgnico (MOREIRA, 2006, p. 23).

    A partir da segunda metade do sculo XVIII, estabelece-se a

    preocupao descritiva entre os gegrafos. Seria preciso traduzir a fisionomia.

    De acordo com Claval (2004, p. 16), Humboldt afirmava que existe uma

    fisionomia natural que pertence exclusivamente a cada uma das regies da

    Terra.

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    No sculo XIX, os gegrafos esto atentos diversidade das paisagens.

    A obra A face da Terra, do gelogo Eduard Suess, causou impacto

    considervel na utilizao da paisagem: [...] ao explicar a superfcie da Terra

    falando de face, e no de superfcie, ele faz da Terra uma entidade da qual

    possvel perceber a fisionomia (CLAVAL, 2004, p. 20). Ainda, a paisagem

    deixa de ser um quadro sem vida, sendo feita de ambientes, concebida em

    termos de interface.

    Ainda segundo Claval (2004, p. 21), idia da paisagem como interface,

    suporte da biosfera, logo se acrescenta uma outra: por que no ver na

    paisagem a interface entre os homens e a natureza?

    Com base nisto, podemos concluir que a idia de que Humboldt seria

    um gegrafo fsico e Ritter um gegrafo humano equivocada, pois ambos se

    utilizam do holismo prevalecente no Iluminismo e no Romantismo. Para

    ambos, no se pensa em homem e natureza em dissociado (MOREIRA, 2006,

    p. 24). Gandy (2004, p. 75) reitera esta compreenso, afirmando que

    gegrafos como Humboldt e Ritter concebiam a paisagem como a interao da

    natureza (fsica) e da cultura.

    Para Becker e Gomes (1993, p. 148), a geografia chamada universitria,

    seja com Humboldt, Ritter, Buffon ou Kant, institucionalizou-se atravs de um

    discurso que tinha como referncia central a questo da relao homem-meio.

    Holzer (1999, p. 157) afirma que estes gegrafos pioneiros associaram

    a paisagem a pores do espao relativamente amplas, que se destacavam

    visualmente por possurem caractersticas fsicas e culturais suficientemente

    homogneas para assumirem uma individualidade.

    Ruy Moreira considera a modernidade industrial como o perodo

    dominado pela filosofia positivista:

    A essncia do pensamento positivista a reduo dos

    fenmenos a um contedo fsico e a um encadeamento,

    que faz as cincias interagirem ao redor desse contedo

    fsico ao passo que as fragmenta por seus

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    conhecimentos em diferentes campos de objetos e

    mtodos especficos (MOREIRA, 2006, p. 13).

    Na segunda metade do sculo XIX, aps a morte de Humboldt e Ritter,

    inicia-se uma nova fase de referncias filosficas no mundo da cincia,

    indicativas da emergncia do positivismo, inaugurando, em todos os campos

    da cincia, uma extrema fragmentao do conhecimento (MOREIRA, 2006, p.

    24). Esta ruptura faz parte, para o autor, da transio entre a baixa

    modernidade e a chamada modernidade industrial.

    Quando a Providncia, no perodo moderno, deixou de significar, no

    plano cientfico, a cauo da finalidade explicativa, foi preciso substitu-la por

    uma causalidade intrnseca natureza que, atravs de um procedimento

    estritamente racional, deveria indicar a cadeia explicativa necessria aos

    fenmenos (BECKER E GOMES, 1993, p. 150). Este o princpio da cincia

    positivista.

    Segundo Moreira (2006), primeiramente criam-se as chamadas

    geografias sistemticas, a partir da quebra do real em diferentes pedaos. O

    primeiro passo , assim, a definio da esfera de estudo. Nesta repartio, a

    geografia toma por seu campo a esfera das coisas inorgnicas. O segundo

    passo fragmentar esta esfera em diversos setores de geografia

    especializada. O autor afirma:

    Em verdade, estamos em presena de uma radical

    mudana no conceito da natureza. A natureza holista

    dos iluministas e romnticos v seu contedo reduzido

    ao de uma natureza inorgnica, tornando-se uma coisa

    fsica. [...] e a esfera humana simplesmente

    abandonada. Uma mudana no conceito de homem

    ento se d em paralelo, excludo da natureza. [...]

    Depois, abandona-se o carter espacial da geografia

    estabelecido desde Kant. E, por fim, o mtodo

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    comparativo formulado por Ritter (MOREIRA, 2006, p.

    25).

    No entanto, logo cedo se manifesta uma reao contra essa

    naturalizao mecanicista e fragmentria da viso de mundo positivista. Na

    geografia, de um lado, a reao manifestar-se- na continuidade do processo

    fragmentador, com base na emergncia da biologia de corte darwinista, porm

    inspirado num naturalismo no mais mecanicista e sim organicista, e cujo

    resultado ser o nascimento das geografias setorial-sistemticas agora no

    campo dos estudos do homem; por outro lado, na frente neokantiana, a reao

    manifestar-se- num movimento de retorno a Ritter, trazendo de volta

    geografia seu carter de cunho unitrio e corolgico, expresso no nascimento

    da geografia fsica e da geografia humana e, sobretudo, da geografia regional

    como campos unitrios das respectivas abordagens (MOREIRA, 2006, p. 28).

    O autor apresenta Ratzel, La Blache e Hetner, alm de Reclus, como os

    pensadores mais emblemticos desse momento paradigmtico da geografia

    (p. 30). Paul Claval (2004, p. 21) afirma que Ratzel delimita o campo da

    antropogeografia, ou geografia humana, na qual se estudariam as relaes

    entre os homens e os ambientes onde eles vivem. Os gegrafos desta linha se

    interrogam sobre a influncia que o meio exerce sobre os indivduos e grupos,

    e procuram medir as transformaes que a atividade humana desencadeia no

    meio ambiente. A geografia humana assim concebida se colocaria na

    interface entre natureza e fatos sociais, o que situa como ameaa a distino

    entre um domnio fsico e um domnio humano no estudo das distribuies

    terrestres.

    Com Vidal de La Blache, altamente influenciado pela filosofia do

    positivismo, tem incio a fase da geografia que ir difundir-se no sculo XX.

    Segundo Moreira (2006, p. 36), pode-se falar em trs La Blaches,

    principalmente dois. O primeiro consolida a geografia regional e nele que se

    materializa o conceito lablacheano de regio. O segundo considerado o

    fundador da geografia da civilizao. Neste h um ponto comum com Ratzel,

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    uma vez que ambos falam da mesma coisa: o destino do homem numa

    civilizao industrial:

    a geografia da civilizao [...] o ltimo rebento da

    reao anti-fragmentria dentro do prprio paradigma da

    cincia fragmentria. Uma alternativa que ento se

    oferece a aglutinaes do tipo geografia fsica, geografia

    humana e geografia regional, que seguiam sendo uma

    reiterao ao conhecimento fragmentrio e fracionrio da

    realidade (MOREIRA, 2006, p. 36).

    Para La Blache, a paisagem um produto objetivo do qual a percepo

    humana s capta, de incio, o aspecto exterior. A paisagem o efeito e a

    expresso evolutiva de um sistema de causas tambm evolutivas: Trata-se de

    levar em conta toda vez a caracterstica do territrio considerado. Fisionomia e

    caracterstica no so representaes subjetivas, mas sim realidades

    objetivas(MOREIRA, 2006, p. 34). sobre o plano das aparncias que

    preciso se situar para apreender toda a densidade epistemolgica e ontolgica

    da paisagem. Jean Brunhes, colega e discpulo de Vidal de La Blache, afirmava

    que em todos os lugares o homem inscreve sua passagem por impresses

    que so objetos de nossos prprios estudos. Assim, o fato geogrfico

    considerado como uma inscrio e os objetos do olhar geogrfico seriam os

    traos e impresses.

    De acordo com Bess, as conseqncias epistemolgicas

    desencadeadas pelo conceito de fisionomia so considerveis:

    Falar da paisagem em termos de fisionomia significa que

    se atribui paisagem uma densidade ontolgica prpria.

    Se ela possui uma fisionomia preciso compreend-la

    como uma totalidade expressiva, animada por um

    esprito interno, do qual se pode extrair o sentido. Tudo

    se passa como se houvesse um esprito do lugar, do

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    qual a aparncia exterior do territrio visado seria a

    expresso. [...]. Nesta perspectiva, a geografia parece se

    definir inicialmente como uma arte da percepo visual

    (BESS, 2006, p. 72).

    Porm, o autor nos diz que a paisagem uma construo cultural, ou

    seja, uma imagem mental, verbal, inscrita sobre uma tela ou realizada sobre o

    territrio. Em cada caso, segundo o autor, o territrio afetado por qualidades

    paisagsticas particulares, prprias ao interesse daquele que o considera (p.

    61).

    Ainda assim, essa extrema fragmentao das cincias, o dualismo

    homem/matria e a estetizao das paisagens predominaram praticamente

    todo o debate intelectual sobre o tema desde a emergncia do positivismo at

    o fim da chamada modernidade industrial.

    A ps-Modernidade ou Ultramodernidade: o paradi gma da

    complexidade

    O chamado paradigma da complexidade, que vem se desenhando nos

    ltimos 30 anos, promove uma verdadeira revoluo cientfica e tem como

    concorrente o paradigma da simplificao (SOUZA, 1997, p. 46). Este, de

    acordo com Edgar Morin, citado por Souza (op. cit.), compreende a cincia

    clssica e opera por reduo (do complexo ao simples, do molar ao

    elementar), rejeio (da eventualidade, da desordem, do singular, do individual)

    e disjuno (entre os objetos e o seu ambiente, entre sujeito e objeto).

    Segundo Souza:

    O paradigma da complexidade romperia com os

    raciocnios lineares e reducionistas, incorporando um

    enfoque que busca interaes complexas [...], alm de

    admitir que no apenas a necessidade (determinidade),

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    mas igualmente o acaso (a contingncia, o inesperado)

    so definidores do mundo real (SOUZA, 1997, p. 47).

    Moreira (2006, p. 39) afirma que a crise do paradigma fragmentrio se

    evidencia no correr dos anos 1960-70.

    As maneiras de ler as paisagens colocadas em pauta pelos gegrafos

    entre o final do sculo XIX e o incio da dcada de 1970 revelaram-se muito

    fecundas. Fizeram com que se tomasse conscincia das relaes ntimas que

    unem os aspectos fsicos, os componentes biolgicos e as realidades nos

    ambientes sociais que os homens constituram. As atitudes se modificaram a

    partir da dcada de 70. O impacto das filosofias fenomenolgicas influenciou-

    as significativamente: o mundo que o indivduo percebe jamais objetivamente

    dado. O registro geogrfico deixa de considerar que os homens so

    independentes do meio onde se encontram: eles s podem existir nos meios

    geogrficos com os quais mantm relaes mais complexas do que at ento

    se pensava. O que a mudana filosfica e epistemolgica acarreta no Ocidente

    uma rejeio do dualismo homem/matria. A nova concepo que os

    gegrafos tm da paisagem os leva a se interessarem pelas motivaes

    daqueles que as desenharam ou organizaram (CLAVAL, 2004, p. 51).

    A fenomenologia definida, segundo Moreira (2006, p. 41), como a

    filosofia das essncias, e sua origem Edmund Husserl. Preocupa Husserl

    recuperar os fenmenos da cincia rigorosa, deturpada pelo positivismo e pela

    sua concepo de rigor matemtico. A fenomenologia de Husserl chega

    geografia atravs da percepo ambiental (geografia da percepo), da

    geografia humanista e da geografia cultural. Entre os anos 1980 e 1990, estas

    formas da geografia tm um crescimento em todo o mundo (MOREIRA, 2006,

    p. 42).

    Por fim, o pensamento quntico funda no mundo da cincia um olhar

    no-fragmentrio do todo um holismo ambiental, segundo Moreira (2006, p.

    43) e, assim, tende a ser um novo paradigma. Ainda de acordo com o autor,

    sua chegada geografia tem sido lenta, talvez dado impregnao ainda

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    fortemente positivista e kantiana da noo de natureza a natureza como

    coisa fsica , que predomina na geografia como um todo:

    Aos poucos vai surgindo aqui e ali um sentido de resgate

    da viso holista, abandonada pela emergncia da

    fragmentaridade positivista, mas sob uma forma plural e

    diferenciada de entendimento, numa situao distinta

    daquela da geografia dos sculos XVIII-XIX.

    A resignificao da paisagem: o retorno ao holismo?

    No quadro atual de transformaes vividas pelas cincias e pela

    geografia em particular, a anlise da organizao espacial tem se dado, cada

    vez mais, por meio de uma prtica interdisciplinar, despertando novo interesse

    no estudo das relaes entre natureza, cultura, sociedade e meio ambiente

    (FREITAS, 2005). Este tema encontra, segundo a autora, dois novos caminhos

    que interessam de perto geografia. O primeiro a histria ambiental,

    disciplina recente que considera a natureza um agente na histria do homem; e

    o segundo caminho o proposto pela geografia cultural, apoiado na cultura

    vista como a resposta humana ao que a natureza nos oferece como base

    fsica.

    Natureza e Paisagem

    A natureza, antes do perodo da tcnica, era uma natureza mgica,

    mtica, das trevas. Sobreviver era sobreviver natureza e suas intempries.

    Aps vrios sculos, a tecnificao do planeta possibilitou o controle de muitos

    processos que, antes, eram somente naturais, mas no eliminou a

    preocupao com a problemtica da base territorial da sociedade. Em cada

    poca, o imaginrio coletivo define a concepo social de natureza e a traduz,

    transformando-a em cultura (LUCHIARI, 2001, p. 10).

    Um dos principais tericos da histria ambiental, David Worster, em sua

    obra Para fazer histria ambiental, de 1991, inclui a natureza como objeto, mas

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    tambm como resultante de processos engendrados pelo homem e pela

    evoluo natural da rea, a paisagem (FREITAS, 2005). Shama (1996), citado

    por Freitas, afirma: antes de poder ser um repouso para os sentidos, a

    paisagem obra da mente [...]. Compe-se tanto de camadas de lembranas

    quanto de extratos de rocha.

    O modo como hoje concebemos a natureza tem sua origem mais remota

    na revoluo introduzida por Coprnico (1473-1543), no entendimento do

    sistema solar via teoria heliocntrica. O mundo dicotomicamente diferenciado

    (esfera de Deus, de um lado, e esfera humana, de outro), vai se tornando um

    s do ponto de vista da estrutura e do funcionamento em escala universal.

    Descartes (1596-1650) funda ento a compreenso do comportamento dos

    fenmenos na geometrizao do mundo. A natureza deixa de ser a morada de

    Deus para ser tudo que se expresse por um contedo fsico-matemtico

    (MOREIRA, 2006, p. 56).

    Este mundo, todavia, ainda dicotmico. Descartes distingue res

    extensa (mundo das coisas) e res cogitans (mundo das idias). Galileu Galilei

    distingue a natureza, mundo daquilo que mensurvel e quantitativo, da no-

    natureza, daquilo que no tem existncia objetiva (MOREIRA, op. cit.). A

    natureza ainda est ligada a Deus, j que funciona com regularidade mecnica.

    Com o advento da cincia moderna positivista, a natureza passa a ser

    um campo de foras racionais e lgicas, separando-se rigidamente o natural do

    no-natural. O mundo natural da concepo medieval d lugar a uma natureza

    fechada em si mesma, externalizada a tudo que no fsico-matemtico e

    preditivo. Nasce a base da dicotomia homem-meio caracterstica do

    pensamento moderno.

    Se o cartesianismo reduzira a natureza s leis invariveis da fsica e da

    matemtica, o positivismo mantm a referncia nesse paradigma, mas a fim de

    incluir o homem na sua abrangncia por meio da fsica social (sociologia).

    Provando em seu livro de 1859, A origem das espcies, que o homem se

    origina da evoluo natural, Darwim fere o paradigma fsico da natureza e

    lana as bases de uma nova forma de entender a natureza e o homem.

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    Luchiari (2001, p. 16) apresenta a idia de que, no perodo

    contemporneo, vem-se debatendo o conceito da morte da paisagem, o que

    poderia se referir pintura do final do sculo XX e tambm transformao

    das paisagens naturais, principalmente aps a Segunda Guerra Mundial. A

    primeira idia que nos viria mente no que diz respeito morte da paisagem

    estaria, segundo a autora, relacionada destruio das paisagens tradicionais

    pela sociedade contempornea. O lado mais visvel das transformaes da

    superfcie da Terra induzidas pela ao do homem ocorre na apreenso das

    paisagens. Deste modo, a morte da paisagem seria um erro:

    A paisagem ao mesmo tempo ancorada no solo,

    modelada pelas transformaes naturais e pelo trabalho

    do homem e, acima de tudo, objeto de um sistema de

    valores construdo historicamente e apreendido

    diferentemente no tempo e no espao, pela percepo

    humana.

    Ainda segundo Luchiari (2001, p. 19), a preocupao com o fim das

    paisagens um pressuposto do discurso ambientalista, que toma a paisagem

    como um ambiente natural, dando-lhe certa autonomia em relao s prticas

    sociais com as quais se relacionaria. Por outro lado, esta valorizao esttica

    da natureza acaba por desmistificar esse discurso naturalizante, ou seja, o

    novo olhar que transformou a natureza em meio ambiente vem produzindo

    tambm uma nova organizao territorial e simblica. A autora declara: a

    paisagem contempornea uma concepo hbrida, carregada de natureza e

    cultura, de processos naturais e sociais; a paisagem no se esgota, no

    morre.

    Moreira (2006, p. 73) afirma que o novo paradigma da natureza a

    considera como ao mesmo tempo o orgnico e o inorgnico, o fragmentrio e

    o unitrio, o mecnico e o vivo. a unidade da diversidade e a diversidade da

    unidade; numa relao cclica de reproduo em espiral. Ainda segundo o

    autor:

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    Cabe geografia mostrar que a diversidade da natureza

    se ressintetiza nos lugares da superfcie da terra,

    adquirindo em funo do recorte de espao o seu modo

    concreto de organizao (um detalhe de localizao

    interfere no todo do circuito da produo/reproduo da

    vida). E que a superfcie terrestre ser-estar do homem,

    uma teoria percebida de longa data pelos clssicos e

    reafirmada no sculo XIX por Humboldt e Ritter (p. 44).

    Para reforar essas abordagens, podemos estudar o caso das

    populaes tradicionais em Unidades de Conservao. Diegues (1993, p. 219)

    afirma que o aumento do nmero das unidades de conservao (UCs) tem

    sido devido rpida devastao / perda da biodiversidade; ao surgimento dos

    fundos internacionais para a conservao da natureza; e possibilidade de

    gerao de renda atravs do turismo. Para algumas pessoas, as UCs so

    apenas um fim em si mesmas, ou seja, existe a dicotomia natureza/

    humanidade, fazendo que um s possa existir em seu estado pleno sem a

    presena do outro. J para outros, o mundo natural j no existe, e h a

    necessidade urgente de se redefinir as relaes homem-natureza, porm sem

    exclu-las.

    A viso ecocentrista no se d conta de que existem formas sociais

    distintas das sociedades urbano-industriais e que podem ser denominadas pr-

    capitalistas. Estudos recentes, de acordo com Diegues (1993, p. 221), revelam

    que a manuteno e mesmo o aumento da diversidade biolgica nas florestas

    tropicais est relacionada intimamente com as prticas tradicionais da

    agricultura itinerante dos povos primitivos, o que torna necessrio o repensar

    do conceito de florestas naturais e sua modalidade de preservao que

    probe a agricultura itinerante. necessrio, portanto, partir de uma estratgia

    de soluo e conflitos para uma mais positiva: aquela que v nas populaes

    tradicionais suas aliadas na conservao da natureza.

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    A superespecializao da cincia ocidental fez com que os aspectos

    scioambientais das relaes entre amerndios e ecossistemas amaznicos,

    por exemplo, fossem obscurecidos. A ponte entre as cincias naturais e sociais

    requer o surgimento de categorias cognitivas dos indgenas usando mtodos

    que privilegiam os conceitos nativos. Os cientistas resistem perda de controle

    do paradigma questionado e tm receio de perder a linha de base da

    realidade que controla significados (POSEY, 1998).

    As caractersticas antropognicas das paisagens esto se tornando

    evidentes, se perdendo a idia de que as sociedades humanas podem

    somente destruir a natureza, e que recursos tradicionais so selvagens

    (POSEY, op. cit.).

    Segundo Harvey (1996), citado por Oliveira (2007, p. 12), as sociedades

    humanas no so simples objetos das leis da natureza, so sujeitos que a

    transformam e a incorporam nas suas relaes.

    A representao muitas vezes ofusca a viso profunda que est por trs.

    A prpria representao da natureza uma apropriao dela. Toda paisagem

    humanizada.

    Cultura e Paisagem

    Berque (1998, p. 84), entende a geografia cultural como o estudo do

    sentido (global e unitrio) que uma sociedade d sua relao com o espao e

    com a natureza, relao que a paisagem exprime concretamente. A paisagem

    para o autor uma marca, j que expressa uma civilizao, mas tambm

    matriz, j que participa dos esquemas de percepo, concepo e ao que

    canalizam a relao de uma sociedade com o espao e a natureza e, portanto,

    a paisagem.

    Como marca, o ponto de partida continua sendo a descrio da

    paisagem, mas a explicao ultrapassa o campo do percebido, seja por

    abstrao, seja por mudana de escala no espao ou no tempo. A

    conseqncia o distanciamento do objeto inicial da proposta: a paisagem

    como dado sensvel (BERQUE, 1998, p. 85).

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    Milton Santos (1997, p. 83), em sua conhecida definio de paisagem, a

    toma como o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as

    heranas que representam as sucessivas relaes entre homem e natureza.

    Contudo, essa definio, para muitos autores, limitada, j que do ponto de

    vista da geografia cultural, no suficiente explicar o que produziu a paisagem

    enquanto objeto. Por um lado, a paisagem vista por um olhar, apreendida por

    uma conscincia, valorizada por uma experincia, julgada por uma esttica e

    uma moral, gerada por uma poltica, etc. e, por outro lado, ela matriz, ou seja,

    determina esse olhar, essa conscincia, essa experincia, essa esttica e essa

    moral, essa poltica, etc. (BERQUE, 1998, p. 86).

    No incio do sculo XX, a paisagem foi um dos primeiros temas a ser em

    abordados numa perspectiva cultural pelos gegrafos alemes, sendo

    posteriormente incorporado pela geografia cultural, nos anos 20, por meio do

    gegrafo norte-americano Carl Sauer (MELO, 2001, p. 30). A obra de Sauer

    originou uma escola de geografia da paisagem, focalizando o papel do homem

    transformando a face da Terra. A geografia cultural nesta tradio, segundo

    Cosgrove (1998, p. 100), concentrou-se nas formas visveis da paisagem, onde

    a cultura parecia funcionar atravs das pessoas para alcanar fins dos quais

    elas estavam vagamente cientes. Os crticos chamaram isto de determinismo

    cultural.

    Holzer (1999, p. 153) diz que, para Sauer, a paisagem seria a unio das

    qualidades fsicas da rea significativas para o homem e das formas como esta

    rea utilizada. Deste modo, a individualidade da paisagem s seria conhecida

    quando comparada com outras paisagens.

    O autor em uma anlise crtica do determinismo cultural cita Dardel,

    para quem a paisagem no se referia, em essncia, ao que era visto. Ela

    representava a [...] insero do homem no mundo [...], a manifestao de seu

    ser para com os outros, base de seu ser social (p. 159).

    Cosgrove (1998, p. 98) considera a paisagem como uma maneira de

    ver, uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em uma cena,

    em uma unidade visual. Ainda segundo o autor:

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    A paisagem est intimamente ligada a uma nova

    maneira de ver o mundo como uma criao

    racionalmente ordenada, designada e harmoniosa, cuja

    estrutura e mecanismo so acessveis mente humana,

    assim como ao olho, e agem como guias para os seres

    humanos em suas aes de alterar e aperfeioar o meio

    ambiente.

    O autor considera que a cultura no algo que funciona atravs dos

    seres humanos; pelo contrrio, tem que ser constantemente reproduzida por

    eles em suas aes. Para Cosgrove, todas as paisagens so simblicas e

    revelar os significados na paisagem cultural exige a habilidade imaginativa de

    entrar no mundo dos outros de maneira auto-consciente e, ento, re-presentar

    essa paisagem num nvel no qual seus significados possam ser expostos e

    refletidos.

    Paul Claval (2004, p. 40) afirma que os gegrafos so sensveis

    dimenso cultural das paisagens, observando os marcos e os sinais visveis

    sobre os terrenos. Contudo, o autor ressalta que a presena de marcos conduz

    muitas vezes a interpretaes simplistas. As abordagens funcionais vo mais

    longe e permitem entrar mais profundamente na intimidade dos fatos sociais e

    na sua traduo espacial.

    Holzer (1999, p. 161), no que diz respeito sua idia de uma geografia

    cultural, revisita Raffestin e Reymond (1980):

    Para os autores, a paisagem um depsito de histria,

    um produto da prtica entre indivduos e da realidade

    material com a qual nos confrontamos. Para se fazer uma

    geografia da paisagem seria preciso situar-se o nvel

    perceptivo a ser abordado, constitudo da experincia

    cognitiva da paisagem a ser estudada a partir da

    intencionalidade; e de nossos constructos, j que o real

    objetivo no existe para alm deles.

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    Um requisito para a significao das paisagens simblicas a leitura

    detalhada do texto, para os gegrafos a prpria paisagem em todas as suas

    expresses. Os dois principais caminhos para isto, segundo Cosgrove (1998, p.

    109), so o trabalho de campo e a elaborao e interpretao de mapas. Ao

    mesmo tempo, os gegrafos devem buscar uma distncia crtica, ou seja,

    uma busca desinteressada de evidncia. Estas evidncias podem ser

    materiais, no campo e outras fontes documentais e cartogrficas, orais, de

    arquivo e outras. Podemos encontrar a evidncia nos prprios produtos

    culturais. A linguagem tambm crucial.

    O autor tambm ressalta que preciso prestar ateno s paisagens

    dominantes e s paisagens alternativas. Em termos de paisagens existentes,

    naturalmente somos inclinados a ver a expresso mais clara da cultura

    dominante no centro geogrfico do poder (1998, p. 113). O poder da

    hegemonia mantido e reproduzido por sua capacidade de projetar e

    comunicar, por quaisquer meios disponveis e atravs de todos os outros nveis

    e divises sociais, uma imagem do mundo consoante com sua prpria

    experincia e ter essa imagem aceita como reflexo verdadeiro da realidade de

    qualquer um. Por sua vez, as culturas alternativas so menos visveis na

    paisagem do que as dominantes, apesar de que, com uma mudana na escala

    de observao, pode parecer dominante uma cultura subordinada ou

    alternativa. Cosgrove divide as culturas alternativas em residuais, emergentes

    e excludas.

    Ainda segundo o autor, as paisagens tomadas como verdadeiras de

    nossas vidas cotidianas esto cheias de significados e grande parte da

    geografia est em decodific-las.

    Claval (2004, p. 71) conclui:

    O que se procura compreender so as relaes

    complexas que se estabelecem entre os indivduos e os

    grupos, o ambiente que eles transformam, as identidades

    que ali nascem ou se desenvolvem. Este um dos

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    caminhos reais para compreender o mundo. O perigo,

    talvez, esperar muito dele.

    Consideraes finais

    Atravs desta breve passagem podemos entender que os conceitos so

    sempre dinmicos e esto em constante mutao. Contudo, devemos

    compreender que esse dinamismo est diretamente relacionado idia de

    movimento, e este movimento deve ser sempre lembrado como uma espiral, e

    no como ciclos que se fecham sobre seu prprio ponto inicial de partida.

    No contexto atual onde a incerteza predomina e onde no podemos

    buscar respostas prontas, o que entendemos por paisagem deve considerar as

    relaes entre os indivduos, os grupos e o ambiente que eles transformam,

    como j disse Paul Claval na passagem acima. Contudo, devemos entender

    tambm o ambiente em uma relao dialtica capaz de transformar

    continuamente nossas intencionalidades.

    A paisagem deve ser tomada de modo holstico, o que nos mostra a

    espiral retornando aos acadmicos do sculo XIX. Porm, a espiral tambm

    retrata que os ciclos nunca se fecham e nem retornam exatamente ao mesmo

    ponto. Nos caminhos que vo continuamente delineando os conceitos, h o

    ganho de bagagens que nunca so completamente apagadas, e estas

    influenciam o modo com o qual nos apropriamos de antigas idias e

    concepes de mundo.

    Ressaltamos que so diversas as concepes de paisagem nos

    diversos momentos da histria apesar das tendncias gerais e inclusive nos

    tempos atuais, os pensamentos dos diversos intelectuais que a estudam

    podem divergir. Esta divergncia no deve ser tomada como um empecilho ou

    um elemento de confuso, mas sim deve ser considerada como parte do

    processo de construo que est se realizando no presente.

    Referncias bibliogrficas

  • ISSN 1981-9021 - Geo UERJ - Ano 10, v.2, n.18, 2 semestre de 2008. P. 62-86 www.geouerj.uerj.br/ojs

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    Artigo encaminhado para publicao em outubro de 2008. Artigo aceito para publicao em dezembro de 2008. ISSN 1981-9021 - Geo UERJ - Ano 10, v.2, n.18, 2 semestre de 2008. WWW.geouerj.uerj.br/ojs