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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Dissertação de Mestrado
Reminiscências Op. 78 de Marlos Nobre: Um
Estudo Técnico e Interpretativo
João Raone Tavares da Silva
Salvador
2007
id125015984 pdfMachine by Broadgun Software - a great PDF writer! - a great PDF creator! - http://www.pdfmachine.com http://www.broadgun.com
João Raone Tavares da Silva
Reminiscências Op. 78 de Marlos Nobre: Um
Estudo Técnico e Interpretativo
Dissertação apresentada ao curso de mestrado da Escola de Música da
Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em execução Musical. Área de concentração: Violão. Orientador: Prof. Dr. Mário Ulloa.
Salvador
Universidade Federal da Bahia - UFBA 2007
DEDICATÓRIA
À Caroline Costa Fontes da Silva
AGRADECIMENTOS
À minha esposa Caroline, que tanto colaborou em todas as etapas da minha
pesquisa e sempre foi a minha principal inspiração.
Ao compositor Marlos Nobre por sua atenção e por todas as preciosas
informações e materiais que gentilmente me concedeu.
A Mario Ulloa pela inestimável orientação e por tudo que me ensinou ao
longo dos anos.
Aos professores, funcionários e colegas do Mestrado em Música da UFBA.
À minha família, especialmente aos meus pais Inaldo e Zuleide por terem me
proporcionado todos os meios necessários ao meu crescimento pessoal e profissional.
À família de minha esposa, em especial Nair e Júlia pelo indispensável apoio
e incentivo.
À Ana Paula pelo seu precioso tempo dispensado à revisão desta dissertação.
A Jorge Santos e a todos os amigos pelos pertinentes comentários e demais
contribuições.
Aos meus alunos pela compreensão quando das minhas ausências
necessárias à conclusão deste trabalho.
Ao Programa de Bolsas FAPESB/CAPES pelo apoio financeiro.
RESUMO
Estudo técnico e interpretativo da peça Reminiscências Op. 78 para violão
solo de Marlos Nobre (1939). Embasado em questões estilísticas, o trabalho propõe
sugestões técnico-instrumentais para minimizar as dificuldades específicas presentes na
peça, sejam elas técnicas ou interpretativas. Informações sobre o compositor, sua obra
para violão e sobre os gêneros da música popular urbana brasileira que serviram de base
para a peça (choro, seresta e frevo), foram incluídas para contextualizá-la e fornecer
dados que poderão ser úteis para novas interpretações desta composição e de outras do
mesmo compositor. A produção de uma nova edição de Reminiscências Op. 78 �
incluindo algumas correções, novas digitações, além de símbolos representando
procedimentos técnico-instrumentais � é o resultado concreto das questões levantadas
neste trabalho acerca da interpretação, e visa facilitar o acesso e a compreensão da peça
aos instrumentistas que desejarem executá-la.
Palavras-chaves: Interpretação Musical; Marlos Nobre; Música Brasileira; Violão.
ABSTRACT
This dissertation is a technical and interpretative study of Reminiscências
Op. 78 for solo guitar by Marlos Nobre (1939). Based on stylistics aspects, the
dissertation proposes technical and instrumental suggestions to minimize the specific
difficulties � interpretative or technical - present in the piece. Information about the
composer, his works for guitar and the sorts of popular urban Brazilian music (choro,
seresta and frevo), which had served as the basis for the piece, has been included to
contextualize it and to supply information that could be useful for new interpretations of
this composition and others of Marlos Nobre. The production of a new edition of
Reminiscências Op. 78 - including some corrections, new fingering and symbols
representing the technical-instrumental procedures - is the concrete result of some
questions raised in this dissertation concerning the interpretation. The aim of this new
edition would be to facilitate the understanding of the piece to the guitarists that desire
to study or to perform it.
Keywords: Interpretation; Marlos Nobre; Brazilian Music; Guitar.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1...............................................................................................74
Tabela 2...............................................................................................87
Tabela 3...............................................................................................92
Tabela 4...............................................................................................95
Tabela 5...............................................................................................102
Tabela 6...............................................................................................117
Tabela 7...............................................................................................127
LISTA DE EXEMPLOS
Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4 ..................................... 28
Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos Nobre), comp.1................... 30
Exemplo 3: Prólogo (Marlos Nobre), comp.1-2............................................. 32
Exemplo 4: Toccata (Marlos Nobre), comp.1-3............................................. 32
Exemplo 5: Tango Op.67 (Marlos Nobre), comp. 55-57................................ 34
Exemplo 6: Tango Op.61 (Marlos Nobre), comp. 53-55................................ 34
Exemplo 7: Rememórias: I Embolada (Marlos Nobre), comp.1-5 ................. 36
Exemplo 8: 2º Ciclo Nordestino: Sêca IV (Marlos Nobre), comp.1-6 ............ 38
Exemplo 9: Yanomâni (Marlos Nobre), comp. 86-90.................................... 45
Exemplo 10: Desafio XXXIII (Marlos Nobre), comp.1-6.............................. 47
Exemplo 11a: Frevo (piano), comp.1 ............................................................ 72
Exemplo 11b: Frevo (violão), comp.1 ........................................................... 72
Exemplo 12a: Frevo (piano), comp.17 .......................................................... 72
Exemplo 12b: Frevo (violão), comp.17 ......................................................... 72
Exemplo 13a: Frevo (piano), comp.13-14..................................................... 73
Exemplo 13b: Frevo (violão), comp.13-14.................................................... 73
Exemplo 14a: Frevo (piano), comp.10 .......................................................... 73
Exemplo 14b: Frevo (violão), comp.10......................................................... 73
Exemplo 15a: Frevo (piano), comp.28-30..................................................... 73
Exemplo 15b: Frevo (violão), comp.28-30.................................................... 73
Exemplo 16: Células rítmicas usadas no gênero choro .................................. 88
Exemplo 17: Choro (Marlos Nobre), comp. 29 ............................................. 89
Exemplo 18a: Dengoso (João Pernambuco), comp. 1-5................................. 89
Exemplo 18b: Choro (Marlos Nobre), comp. 1-5 .......................................... 89
Exemplo 18c: Odeon (Ernesto Nazareth), comp. 1-5..................................... 89
Exemplo 19: Choro (Marlos Nobre), comp. 17-20 ........................................ 91
Exemplo20: Esquema resumindo a harmonia de Choro, comp.2-5 ................ 92
Exemplo21: Esquema resumindo a harmonia de Choro, comp.16-31 ............ 93
Exemplo 22: Choro, comp. 34-36 ................................................................. 93
Exemplo 23: Ritmo do pandeiro no choro ..................................................... 93
Exemplo 24a: Motivo inicial da seção A ....................................................... 94
Exemplo 24b: Motivo inicial da seção B ....................................................... 94
Exemplo 25a: Sarambeque, comp. 1-5 ......................................................... 94
Exemplo 25b: Choro (Marlos Nobre), comp. 41-43 ...................................... 94
Exemplo 26a: Choro, (Marlos Nobre), comp.15-18 ...................................... 95
Exemplo 26b: Choro, (Marlos Nobre), comp.53-56 ...................................... 95
Exemplo 27: Esquema resumindo a harmonia de Choro, comp.55-71 ........... 96
Exemplo 28a: Dengoso (João Pernambuco), comp. 13-18............................. 96
Exemplo 28b: Choro (Marlos Nobre), comp. 75-80 ...................................... 97
Exemplo 29: Choro, comp. 113-120 ............................................................. 98
Exemplo 30a: Seresta (Marlos Nobre), comp. 6 ............................................ 103
Exemplo 30b: Seresta (Marlos Nobre), comp. 24.......................................... 103
Exemplo 30c: Seresta (Marlos Nobre), comp. 74 .......................................... 103
Exemplo 31: Seresta, comp. 23-26................................................................ 104
Exemplo 32: Seresta, comp. 4-7.................................................................... 104
Exemplo 33: Seresta, comp. 41-44................................................................ 105
Exemplo 34: Seresta, comp. 57-60................................................................ 106
Exemplo 35a: Seresta, comp. 2-3.................................................................. 107
Exemplo 35b: Seresta, comp. 19-20.............................................................. 107
Exemplo 35c: Seresta, comp. 37-38 .............................................................. 107
Exemplo 36a: Frevo, comp. 17-20 (transposição, ornamentação e inversão) . 117
Exemplo 36b: Frevo, comp. 45-46 (fragmentação e variação rítmica) ........... 117
Exemplo 36c: Frevo, comp. 33-37 (transformação do tema) ......................... 118
Exemplo 37a: Frevo, comp. 1-11 .................................................................. 118
Exemplo 37b: Frevo, comp. 101-104 ............................................................ 118
Exemplo 37c: Frevo, comp. 96 ..................................................................... 118
Exemplo 38: Frevo, comp. 105-108 .............................................................. 119
Exemplo 39a: Frevo (acorde final), comp. 125-126 ...................................... 119
Exemplo 39b: Frevo (cromatismo), comp. 74-75 .......................................... 120
Exemplo 39c: Frevo (oitavas), comp. 99....................................................... 120
Exemplo 40a: Choro, comp.75 - Henry Lemoine .......................................... 128
Exemplo 40b: Choro, comp.75 - Sugestão do Autor...................................... 129
Exemplo 40c: Seresta, comp.15 - Henry Lemoine......................................... 129
Exemplo 40d: Seresta, comp.15 - Sugestão do Autor .................................... 129
Exemplo 41: Choro, comp.12-14 .................................................................. 130
Exemplo 42: Choro, comp.35-36 .................................................................. 131
Exemplo 43: Frevo, comp.29-30................................................................... 132
Exemplo 44: Frevo, comp.12........................................................................ 132
Exemplo 45: Frevo, comp. 36 ....................................................................... 132
Exemplo 46: Choro, comp.25 ....................................................................... 133
Exemplo 47: Seresta, comp.12...................................................................... 133
Exemplo 48: Choro, comp.1 ......................................................................... 135
Exemplo 49: Choro, comp.19-20 .................................................................. 136
Exemplo 50: Frevo, comp.33-34................................................................... 136
Exemplo 51a: Transcrição mais antiga da síncope brasileira (�dica�) ............ 139
Exemplo 51b: Execução da célula rítmica do choro ...................................... 140
Exemplo 52: Choro, comp.5-6 ...................................................................... 141
Exemplo 53a: Odeon, comp.1-2.................................................................... 141
Exemplo 53b: Odeon, comp.1-2.................................................................... 142
Exemplo 54a: Choro, comp. 1-5 ................................................................... 142
Exemplo 54b: Choro, comp. 1-5 ................................................................... 142
Exemplo 55a: Seresta, comp. 55-56 .............................................................. 145
Exemplo 55b: Seresta, comp. 55-56: reescrito reforçando a polifonia ........... 145
Exemplo 56: Frevo, comp. 1-12.................................................................... 146
ÍNDICE
Introdução ..........................................................................................................................1
Capítulo 1: O Compositor Marlos Nobre .........................................................................4
1.1 - Formação...................................................................................................8
1.2 - Estética e Fases Composicionais de Marlos Nobre .....................................14
Capítulo 2: A Obra para Violão de Marlos Nobre ...........................................................22
2.1 - Obra para violão solo .................................................................................26
2.2 - Obra para duo de violões ...........................................................................37
2.3 - Obra para conjunto de violões....................................................................39
2.4 - Obra para violão e voz ...............................................................................40
2.5 - Obra para violão e coro..............................................................................43
2.6 - Obra para violão e orquestra ......................................................................45
2.7 - Obra para formações diversas incluindo o violão .......................................46
2.8 � Conclusão .................................................................................................48
Capítulo 3: Reminiscências Op. 78 ....................................................................................50
3.1 - Sobre os Critérios para a Elaboração da Edição Presente neste
Trabalho. ...........................................................................................................55
3.2 - Procedimentos ...........................................................................................57
3.3 - Diferenças entre Manuscrito de Marlos Nobre e a Edição da Henry
Lemoine ............................................................................................................59
3.3.1 � Primeiro Movimento: �Choro� ......................................................60
3.3.2 � Segundo Movimento: �Seresta�.....................................................64
3.3.3 � Terceiro Movimento: �Frevo� .......................................................68
3.4 � Informações Extraídas do �Frevo� para piano ...........................................71
Capítulo 4: Análise de Reminiscências Op. 78...................................................................79
4.1 - O Gênero Choro ........................................................................................80
4.2 - Análise do Primeiro Movimento � �Choro� ...............................................87
4.3 - O Gênero Seresta .......................................................................................99
4.4 - Análise do Segundo Movimento � �Seresta� ..............................................101
4.5 � O Gênero Frevo ........................................................................................108
4.6 - Análise do Terceiro Movimento � �Frevo� ................................................115
4.7 � Conclusão .................................................................................................120
Capítulo 5: Técnica e Interpretação em Reminiscências Op. 78 ......................................122
5.1 - Os Orientadores Técnicos ..........................................................................125
5.2 - Critérios e exemplos do uso da digitação e dos orientadores técnicos
em Reminiscências Op. 78.................................................................................128
5.3 - Elementos da interpretação ........................................................................133
5.3.1 � Articulação....................................................................................133
5.3.2 � Agógica e Tempo ..........................................................................138
5.3.4 � Dinâmica ......................................................................................143
5.4 � Conclusão .................................................................................................146
Conclusão Geral.................................................................................................................147
Referências Bibliográficas .................................................................................................149
Anexos I: Entrevistas a Marlos Nobre .................................................................................154
Anexo II: Manuscrito de Reminiscências Op. 78 ................................................................. 163
Anexo III: Edição de Reminiscências Op. 78 ...................................................................... 181
1
INTRODUÇÃO
A partir da década de 70, com o advento de uma escola brasileira de violão
já em formação e expansão, e com o surgimento de violonistas brasileiros despontando
no cenário internacional como Carlos Barbosa Lima, Turíbio Santos e os irmãos Abreu,
a composição para o violão no Brasil ganha um novo impulso. A partir daí, há uma
contribuição mais substanciosa de importantes compositores brasileiros como Francisco
Mignone (1897-1986), com seus Doze Estudos, Doze Valsas, Concerto para Violão,
etc.; César Guerra-Peixe (1914-1993), com Sonata, Lúdicas e Prelúdios e outros; Edino
Krieger (1928), com a Ritmata, Romanceiro e Concerto para Dois Violões, etc.,
Radamés Gnattali (1906-1988), com os Concertos, Brasiliana 13, Estudos, Dança
Brasileira, etc.; além de importantes contribuições de Almeida Prado (1943), Ricardo
Tacuchian (1939), Ronaldo Miranda (1941), Theodoro Nogueira (1913-2002), Roberto
Victório (1959), Alexandre Eisenberg (1966), entre outros.
Nesse contexto, surge também o compositor pernambucano Marlos Nobre,
que, a partir de 1974, começa a produzir uma numerosa obra para violão, instrumento
que, embora não o tocasse, despertou o seu interesse desde a infância, principalmente
através de seu pai que era um violonista amador. Suas composições para o instrumento
são marcadas pela busca constante de uma linguagem pessoal e audaciosa, tornando
cada uma de suas peças um desafio para seus intérpretes.
O conjunto de sua obra tem uma considerável importância dentro do
repertório brasileiro para violão, não havendo, contudo, até o momento, estudos
aprofundados a respeito de suas composições para esse instrumento. É nesse sentido, e
com o intuito de facilitar o acesso da obra para violão de Nobre a um maior número de
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2
violonistas, que resolvemos elaborar este trabalho sobre Reminiscências Op. 78, uma
das suas mais importantes composições para violão solo.
Reminiscências Op. 78, assim como diversas outras peças de Marlos Nobre,
é marcada por uma forte interação entre elementos da música popular brasileira e da
música contemporânea, fenômeno que gera implicações importantes para as decisões
interpretativas. Já do ponto de vista da execução em si, a peça apresenta diversas
demandas que exigem do executante diversas soluções técnicas para superá-las.
No intuito de vencer tais dificuldades, esse trabalho enfoca exatamente esses
dois aspectos � técnicos e interpretativos � com a finalidade de se chegar, o mais
próximo possível, a uma interpretação que expresse as características peculiares dos
músicos populares ao executarem os gêneros � choro, seresta e frevo � que originaram
cada movimento da peça estudada.
Para se chegar a esse desejado resultado, a digitação é, sem dúvida, de
fundamental importância. Por essa razão, além de levantar dados que contribuam para
contextualizar e fundamentar a execução da peça, realizamos uma nova edição de
Reminiscências Op. 78, com propostas de digitações mais adequadas ao alcance da
referida escolha interpretativa.
A fim de atingir os objetivos propostos, o presente trabalho está estruturado
da seguinte forma:
Capítulo 1 � Contém um estudo sobre a trajetória e o estilo composicional
de Marlos Nobre, no qual é evidenciado o pensamento estético do compositor, bem
como as características de suas diferentes fases.
Capítulo 2 � É feito um levantamento acerca da produção para violão de
Marlos Nobre. Além disso, são apontadas as características de sua escrita para violão e
suas perspectivas acerca do instrumento.
3
Capítulo 3 � São levantadas informações a respeito de Reminiscências Op.
78. Neste capítulo também é feita uma comparação entre a versão editada pela Henry
Lemoine, o manuscrito e a versão de �Frevo� para piano do próprio, e então justificadas
as escolhas da nossa nova edição da peça.
Capítulo 4 � Contém uma análise musical de Reminiscências Op. 78 na
qual são evidenciados os elementos particulares dos gêneros da música popular
brasileira e da música contemporânea, próprios da linguagem composicional de Marlos
Nobre. Precedendo à análise de cada movimento, é feito um estudo que contextualiza
cada gênero que serviu de inspiração para a peça.
Capítulo 5 � Trata da interpretação de Reminiscências Op. 78 e justifica as
escolhas da digitação e soluções técnicas apresentadas na edição.
No final do trabalho, estão anexadas as entrevistas realizadas com o
compositor, que serviram como fontes ímpares de pesquisa, e a nova Edição de
Reminiscências Op. 78.
4
CAPÍTULO 1
O Compositor Marlos Nobre
O compositor, pianista e regente Marlos Nobre (1939) pode ser considerado
como um dos grandes expoentes da música brasileira da segunda metade do século XX,
e um dos compositores brasileiros mais reconhecidos no cenário internacional. Os
depoimentos de diversos musicólogos e críticos do Brasil e do exterior atestam a
importância desse compositor no cenário musical. Na opinião do musicólogo David
Appleby, �Marlos Nobre é inquestionavelmente o mais notável compositor
contemporâneo brasileiro. Suas obras representam não só um artesanato do mais alto
nível, mas são produtos de um compositor altamente original e criativo�1. Segundo
Vasco Mariz, Nobre �é, de longe, o compositor brasileiro contemporâneo mais
premiado, mais gravado, mais editado�2. O compositor e crítico Amaral Vieira deu o
seguinte depoimento a respeito de Marlos Nobre:
Este brilhante músico brasileiro vem se dedicando ininterruptamente há mais de 40 anos à arte da composição e é
considerado por muitos como o legítimo sucessor de Heitor
Villa-Lobos no contexto da História da Música Brasileira. Pelo
notável conjunto de seu trabalho e infatigável dedicação à arte
da Música, Marlos Nobre ocupa um lugar de destaque no
cenário da música contemporânea.3
Atualmente, este compositor conta com um catálogo com mais de 240
peças, organizadas em 102 números de Opus, para as mais diversas formações
instrumentais. Sua obra inclui peças para grande orquestra, coro e orquestra,
1 "Marlos Nobre is unquestionably Brazil´s foremost contemporary composer. His works represent not
only craftsmanship of the highest level but are the product of a highly original creative composer. " David Appleby in �Marlos Nobre: Homepage Oficial�, disponível em <http://marlosnobre.sites.uol.com.br/index1_i.html>. Acesso em: 08 de abril de 2006. 2 Vasco Mariz, História Brasileira da Musica, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p. 372. 3 Amaral Vieira in �Marlos Nobre: Homepage Oficial�, disponível em <http://marlosnobre.sites.uol.com.br/index1_i.html>. Acesso em: 08 de abril de 2006.
5
instrumento solista e orquestra, coro a capella, além de uma substanciosa contribuição
para o campo da música de câmara, escrevendo peças para as mais diversas formações,
tanto as tradicionais quanto outras menos convencionais. Compôs também obras para
instrumentos solo como piano, violão, percussão, viola, flauta, oboé e cello.
Grande parte de sua obra foi escrita com finalidades específicas, seja para
concurso, a pedido de um intérprete, seja para atender a encomendas de instituições
como Companhia Brasileira de Ballet do Rio de Janeiro (1968), Instituto Goethe de
Munique (Alemanha - 1972), Orquestra Sinfônica Brasileira (1973), Guitar Society de
Toronto (Canadá - 1977), Festival de Música de Maracaibo (Venezuela - 1977),
Universidade de Indiana (EUA - 1981), Bicentenário de Simón Bolívar (Venezuela -
1982), Serviço de Radiodifusão Educativa do Brasil (1987), Orquestra de Câmara de
Neuchâtel (Suíça - 1989), Festival Internacional de Música de Bolzano (Itália - 1989),
Ministério de Cultura da Espanha � para o 5º Aniversário do Descobrimento da
América (Espanha - 1992), GHA Records (Bélgica - 1995), Fundação Carlos Gomes do
Pará (Brasil - 1999), Universidade Livre de Música de São Paulo (Brasil - 1999),
Fundação Apollon de Bremen, (Alemanha - 2000 e 2001).
O nome de Marlos Nobre começou a se firmar no cenário musical brasileiro
após uma sucessão de premiações, a partir de 1959, período em que, com apenas 20
anos, ganhou menção honrosa no I Concurso Música e Músicos do Brasil da Rádio
MEC, com o Concertino Op. 1. Em seguida, no mesmo ano, recebeu o primeiro prêmio
no Concurso da Sociedade Cultural Germano-Brasileiro do Recife, com a obra
Nazarethiana Op. 2 para piano solo. Logo no ano seguinte, ganha o segundo prêmio no
Concurso Nacional de Composição da Comissão Estadual de Música de São Paulo, com
o I Ciclo Nordestino Op. 5 para piano solo e, com o Trio Op. 4, conquistou o primeiro
6
prêmio do II Concurso Música e Músicos do Brasil da Rádio MEC, que lhe valeu a
seguinte crítica do Diário de Notícias do Rio de Janeiro:
Marlos Nobre surge na cena musical brasileira como uma estrela de intensa luminosidade a quem Villa-Lobos parece ter entregado o cetro da criação musical brasileira.
4
Essa crítica foi apenas o primeiro testemunho escrito da comparação entre
Marlos Nobre e Heitor Villa-Lobos, que seria recorrente durante muitos anos, assim
como aqueles foram apenas os primeiros prêmios de uma série de outros que já somam
mais de 40 premiações nacionais e internacionais de composição, tais como:
Broadcasting Music Inc. Award, Nova York, EUA (1961);
Concurso Internacional "Jeunesses Musicales", Rio de Janeiro, Brasil (1962);
Concurso "Ernesto Nazareth" da Academia Brasileira de Música, Rio de Janeiro,
Brasil (1963);
Concurso Nacional de Composição da Escola de Música da UFRJ, Rio de
Janeiro, Brasil (1963);
Prêmio Torcuato Di Tella, Buenos Aires, Argentina (1963);
Prêmio Cidade de Santos, São Paulo, Brasil (1966);
Prêmio do "Jornal do Brasil", Brasil (1966);
Prêmio "Golfinho de Ouro" do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro,
Brasil (1970);
Prêmio "Personalidade Global da Música", Brasil (1973);
Prêmio UNESCO, Paris, França (1974);
Prêmio Trimalca/UNESCO, Bogotá, Colômbia (1979).
Recentemente, em dezembro 2005, o compositor recebeu o VI Prêmio
Ibero-americano �Tomás Luis de Victoria�, na Espanha. Essa é tida como uma das
maiores premiações da música erudita e, pela primeira vez na história, houve
unanimidade na escolha de contemplado.
4 Marco Tomás, Marlos Nobre: El Sonido del Realismo Mágico. Madrid: Fundación Autor, 2006. p.29.
7
Nobre também recebeu condecorações e títulos importantes como a
Medalha de Ouro de Mérito Cultural (Pernambuco, 1978), Grande Oficial da Ordem do
Mérito (Brasília, 1988), Oficial da Ordem do Rio Branco (Itamaraty, 1989), Oficial da
�Ordre des Arts et des Lettres� (França). Além desses, recebeu os títulos �Cecil and Ida
Green Honors Professor�, da Texas Christian University (EUA, 2000) e �Thomas Hart
Benton Medallion�, da Universidade de Indiana (EUA, 2000).
Diversas vezes, participou de júris em concursos e festivais de música em
todo o mundo como, tais como: Reine Marie-José Prize, Genebra, Suíça (1978);
Festivais Internacionais de Música Contemporânea da SIMC (New York 1976 de
Montreal 1983); Prêmio ANCONA, Itália (1981 e 1983); Concurso Internacional de
Violão, da Radio France, Paris (1979 e 1980); Prêmio Simon Bolívar, Caracas,
Venezuela (1982); Tribuna Internacional do Filme-Música, Alemanha (1980); Concurso
Internacional de Piano de Santander, Espanha (1987); Arthur Rubinstein Piano Máster
Competition, Israel (1989); Prêmios Nacionais de Música de Colcultura, Bogotá,
Colômbia (1996); Prêmio "Cidade de Alessandria", Itália (1997 e 1999); membro de
Honra do Concurso de contrabaixo "Werther Benzi", Itália (1997).
Foi Professor-Visitante nas universidades americanas de Indiana (1981),
Yale (1992), Arizona (1997), Oklahoma (1997), Geórgia (1999) e na Texas Christian
University (1999). Foi também compositor-residente na Brahms-Haus de Baden-Baden
(1980/1981), em Berlim (1982-1983), a convite do DAAD, e em Nova York
(1985/1986), com a bolsa Guggengeim Fellowship.
Como pianista e regente, atuou principalmente na divulgação de sua própria
música, apresentando-se com orquestras como: Orchestre de la Suisse Romande
(Suíça), Orchestre Philharmonique de Radio France (França); Collegium Academicum
de Genebra (Suíça); Orquesta Filarmónica del Teatro Colón de Buenos Aires
8
(Argentina); Orquesta Filarmónica de Niza (França); Orquesta Sinfónica de SODRE de
Montevideo (Uruguai); St. John´s Smith Square Orchestra (Inglaterra); Royal
Philharmonic Orchestra (Inglaterra), além das orquestras nacionais de Portugal,
Espanha, México, Caracas, Peru, Guatemala e inúmeras orquestras brasileiras.
Nobre exerceu diversos cargos importantes de direção ou presidência em
instituições como o Instituto Nacional de Música da FUNARTE (1976-1979), Conselho
Internacional de Música da UNESCO (1986-1987), Academia Brasileira de Música
(1985-1993). Foi também membro do Comitê Executivo do CIM/UNESCO (1980-
1989).
Atualmente, o compositor continua em plena atividade e ocupa a cadeira
número 1 da Academia Brasileira de Música, a mesma cadeira que pertenceu a Heitor
Villa-Lobos.
1.1 - Formação
A música de Marlos Nobre reflete muito da diversidade de sua própria
formação. Ele cresceu num ambiente musical bastante rico e diversificado no qual pôde
ter contato com diversas manifestações musicais, as quais acabaram por constituir uma
espécie de tripé que sustentaria sua produção musical posterior: a música brasileira, a
música européia do passado e a música de vanguarda.
A música popular e folclórica brasileira entrou na vida do compositor muito
cedo devido a uma série de razões conjunturais extremamente favoráveis para o seu
desenvolvimento artístico. Sem dúvida, uma dessas razões foi o fato de Marlos Nobre
ter nascido e vivido em Recife que, àquela época, era considerado um dos centros
econômicos e culturais mais importantes do país. Foi nessa cidade que Nobre pôde
9
manter contato direto com várias manifestações folclóricas, conforme atesta seu próprio
depoimento:
Eu nasci e vivi, até meus 12 anos de idade, na Rua de São João,
bairro de São José, em Recife, onde passavam obrigatoriamente
todas as sociedades de música no Carnaval de Recife, pois no
fim da rua, perto do Gasômetro, estava o Coreto onde os juízes
davam as notas dos vencedores do Carnaval. Assim, desde pequeno tive o contato direto, vivo, vital, com os Frevos das mais diversas e tradicionais sociedades de Frevo de Pernambuco, os Caboclinhos, os Maracatus. Foi importante e formidável impressão e uma formação musical que me alimentou o subconsciente musical para sempre. Algo que tornou-se parte de meu espírito, do meu sangue, da minha
estrutura musical mais profunda5. Somado a isso, o fato de o compositor ser filho de um violonista amador o
levou a freqüentar os saraus dominicais, na companhia de seu pai, onde vários músicos
se encontravam e tocavam os mais diversos gêneros de música popular em voga naquela
época como valsas, choros, maxixes, schottishes, polcas, frevos e baiões.
Por outro lado, desde muito cedo, Nobre também teve uma rígida formação
musical acadêmica � dentro dos moldes europeus � começando a estudar piano aos 4
anos com sua prima Nysia Nobre, que o introduziu ao piano e aos fundamentos da
teoria musical. Nysia era uma professora profissional de piano muito respeitada na
cidade do Recife de então. Esses estudos iniciais foram, posteriormente, aprofundados
em dois centros musicais de grande importância em Pernambuco: o Conservatório
Pernambucano de Música e o Instituto Ernani Braga.
O estudo nesses centros possibilitou ao compositor ter um contato mais
aprofundado com a música dos mais importantes compositores europeus como Bach,
Mozart, Beethoven e Schumann, além do aprendizado formal de teoria musical e
solfejo. A formalidade e conservadorismo de ensino nestes centros não impediram que
Nobre desenvolvesse, ainda muito cedo, as habilidades de improvisação e composição,
5 Vasco Mariz, Três Musicólogos Brasileiros: Mário de Andrade, Renato Almeida e Luiz Heitor Correa
de Azevedo, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A., 1983, p. 82.
10
pois, como não tinha muita paciência para a repetição exaustiva de exercícios, ele
próprio criava exercícios através da improvisação6.
Foi também por esse período que o compositor começou a se deparar com
uma idéia, quase que dogmática, disseminada na época: a separação a entre a música
erudita e a música popular, que ele não entendia, mas que, posteriormente, seria objeto
de profunda reflexão e teria um papel central em sua estética. Ainda jovem, tinha o
costume de repetir melodias que ouvia na rua ou improvisar temas populares ao piano, a
contragosto de sua mãe que também era pianista. Mais tarde, aconteceria a mesma
coisa, enquanto estudava no Conservatório Pernambucano de Música, quando foi
duramente advertido pelo diretor da escola que lhe disse: �Aqui é lugar de música séria,
você não pode tocar essa música de rua�7.
Esse impasse permaneceu na vida do compositor até ele ouvir A Prole do
Bebê de Heitor Villa-Lobos, que é uma série de peças para piano baseada em temas
populares infantis. A partir de 1950, Nobre passou a pesquisar a música daquele
compositor, com o intuito de entender aquela separação entre música popular e erudita
que lhe fora imposta. Foi durante essas pesquisas que ele entrou em contato com a
música para piano de Ernesto Nazareth (1863-1934) que combinava diversos estilos,
inclusive, uma forte influência da música de Chopin e da música popular brasileira.
Nazareth acabou por se tornar a principal influência de Nobre em suas primeiras
composições.
Outro fator importante na definição estética de Nobre foi o contato, desde
cedo, quando tinha apenas 13 anos, com as idéias de Mário de Andrade. O compositor
deu o seguinte depoimento lembrando a influência desse pensador em sua formação:
6 Ver Raimundo Magalhães, 16 Variações sobre um tema de Frutuoso Vianna, Opus 8, de Marlos Nobre:
um estudo crítico das características, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 1994, p.16. 7 Apud Bernardo Scarambone, The Piano Works of Marlos Nobre, Tese de Doutorado, Universidade de Houston, 2006, p. 7.
11
Na minha formação musical, Mário de Andrade representou um
momento decisivo e uma influência profunda. Hoje com o
distanciamento daqueles dias em que tive o primeiro contato com os escritos de Mário de Andrade, vejo ainda mais
claramente o alcance desta influência positiva. (...) Lendo Mário de Andrade, eu me dei conta, deslumbrado da
existência da �música brasileira�, isto é não havia em princípio a
separação da música popular e da clássica ou tradicional, mas sim, cabia aos compositores amalgamá-las em um todo resultante. Quer dizer, pra mim era a solução de um problema
que me angustiava.8 Igualmente importante para a formação musical de Nobre foi o contato que
ele teve com o padre jesuíta Jaime Diniz (1924-1989), um importante pesquisador da
música brasileira, responsável pela direção do Departamento de Teoria do Instituto
Ernani Braga, onde Nobre estudou desde 1954.
Nessa época, Nobre pôde aprender o contraponto sob uma perspectiva
histórica, desde Palestrina até a música do século XX, sob a orientação do Padre Diniz,
que o aconselhava dizendo: �Não perca muito tempo estudando harmonia, pois
harmonia é o resultado das vozes horizontais. Trabalhe o contraponto puro, pois
somente com a polifonia você conseguirá dominar as forças da música�. Segundo
Nobre, �esses estudos deram-me imensa flexibilidade em escrever música polifônica e
politonal, e eu sempre serei muito grato por eles�9. O padre foi um dos incentivadores
para que Nobre escrevesse música e, inclusive, permitiu que ele ouvisse o resultado de
algumas de suas composições com o coro da Igreja Matriz de São José, que dirigia.
Outro contato extremamente salutar para a formação cultural e intelectual de
Nobre foi com José Ignácio, um violinista da Orquestra Sinfônica de Recife que possuía
um vasto acervo de música contemporânea. Com ele, Nobre pôde ter acesso às mais
recentes produções musicais de então, e adquirir um conhecimento incomum para um
estudante brasileiro naquela época. Ignácio, além de conhecer e trocar correspondências
8 Vasco Mariz, Op.Cit. pp. 82-83. 9 �These studies gave me immense flexibility in writing polyphonic and polytonal music, and I�ve always
been very grateful for them�. Marlos Nobre Apud Bernardo Scarambone, Op.Cit. p.10.
12
com alguns dos mais destacados compositores europeus, recebia diversas partituras e
gravações de novas obras diretamente desses compositores. Nobre freqüentou
assiduamente os encontros semanais que José Ignácio organizava para a discussão das
novas tendências musicais da época, além de poder ouvir e estudar peças de
compositores como Stravinsky, Messiaen, Bartók, Prokofiev, Webern, Berg,
Schoenberg e até as primeiras peças de Stockhausen.
Nobre concluiu seus estudos no Conservatório Pernambucano de Música e
no instituto Ernani Braga em 1956 e 1958, respectivamente. De toda essa época de
formação, entretanto, a única peça que ele preservou em seu catálogo foi o seu
Concertino Op. 1 para piano, composto quando ele tinha 19 anos. O restante das peças,
que incluíam até missas e sinfonias completas, foram destruídas pelo compositor.
A partir desse momento, uma série de conquistas fez com que Nobre se
empenhasse cada vez mais na composição e vencesse diversas premiações que, além da
projeção, proporcionaram a ele entrar em contato com duas figuras centrais da música
brasileira de então, os compositores Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) e Hans
Joaquin Koellreutter (1915-2005), que também tiveram um importante papel na
formação de Nobre. Esses compositores representavam duas correntes opostas que
dominaram a cena musical brasileira da década de 50: o primeiro defendia uma estética
nacionalista, enquanto o segundo pregava o uso de técnicas de vanguarda e uma música
mais universalista. O conflito deflagrado entre esses dois compositores culminou, em
1950, com a Carta Aberta aos Músicos do Brasil na qual Guarnieri criticava
publicamente a corrente difundida por Kollreutter. Foi uma época de intensos debates
públicos que acabaram por dividir os compositores brasileiros entre os nacionalistas e
universalistas durante os vários anos que se seguiram.
13
O contato de Nobre com Koellreutter deu-se após a sua vitória no Concurso
da Sociedade Cultural Germano-Brasileira, que lhe valeu a oportunidade de realizar um
curso de um mês com o famoso compositor alemão num festival de música na cidade de
Teresópolis. Koellreutter introduziu várias novas correntes da música européia no
Brasil, inclusive os conceitos de música serial e dodecafônica. Foi uma figura decisiva
nos rumos que tomaram a composição no país, além de ter sido professor e guia
intelectual de muitos dos compositores brasileiros como César Guerra-Peixe (1914-
1993), Eunice Catunda (1915-1978), Cláudio Santoro (1919-1989), Esther Scliar (1926-
1978), Olivier Toni (1926), Edino Krieger (1928), entre outros.
Koellreutter foi muito aclamado por trazer novos conhecimentos oriundos
da vanguarda européia para o Brasil, mas, por outro lado, costumava impor tais
processos aos jovens compositores. Ademais, ele era contra o nacionalismo musical e
chegou a dizer a Nobre: �Você é um compositor dodecafônico nato, esqueça estes
�sambinhas� da música brasileira�10.
Um ano após o contato com Koellreutter, Nobre ganhou uma bolsa que lhe
proporcionou estudar em São Paulo com Camargo Guarnieri, que representava uma
linha estética oposta a de Koellreutter. Seu novo professor era contra as recentes
técnicas de criação, como o serialismo, e acreditava que o compositor deveria guardar
uma identidade brasileira através do estudo e do uso do folclore do país. No entanto,
Nobre considerava nacionalismo de Guarnieri demasiadamente artificial e acadêmico.
Além do mais, a personalidade impositiva de seu professor o fez abandonar seus
estudos e ir para o Rio de Janeiro continuar sua carreira.
A estreiteza e rigidez do pensamento de Koellreutter e Guarnieri
impulsionaram Nobre a seguir o seu próprio caminho, mantendo-se com uma estética
10 Marlos Nobre Apud Bernardo Scarombone, Op. Cit. p. 13.
14
independente, sem se associar a nenhum dos dois seguimentos. Não abandonou,
contudo, suas experiências rítmicas com a música brasileira oriundas de sua formação,
nem tampouco desprezou as descobertas que as novas técnicas traziam. A esse respeito,
disse o compositor: �ora, desta dualidade é que eu tirei meu próprio caminho, segui em
frente, portanto, tirando dos dois aquilo que me era útil e descartando o inútil, ou seja,
os preconceitos estéticos�11.
Muitas questões estéticas para as quais Nobre buscava respostas puderam
ser amadurecidas, a partir de 1964, após ganhar uma bolsa da fundação Rockerfeller
para estudar no Instituto Torcuato di Tella em Buenos Aires onde estudou com Alberto
Ginastera (1916-1983), Aaron Copland (1900-1990), Luigi Dallapiccola (1904-1975),
Olivier Messiaen (1908-1992), Ricardo Malipiero (1914) e Bruno Maderna (1920-
1973).
Nobre considera Ginastera como o seu principal professor de composição:
As idéias de Ginastera muito se identificavam com as minhas,
ele achava que o compositor não podia abdicar das suas
tradições só porque queria ser moderno... Não fazia nenhum sentido imitar Boulez ou Stockhausen só pra ser serialista... era
ridículo esquecer que era brasileiro e também ignorar o que
estava acontecendo no mundo(...) em Ginastera encontrei um professor que me completava.12
Ginastera tinha um pensamento estético a respeito da música nacional
semelhante às idéias de Mário de Andrade que influenciaram Nobre. Tanto Ginastera,
com seu conceito de �nacionalismo subjetivo�, quanto Andrade, com o �nacionalismo
inconsciente�, acreditavam que o uso dos elementos musicais nacionalistas deveriam ser
usados pelos compositores de forma natural e espontânea, não intencional e consciente.
11 Marlos Nobre Apud Bernardo Scarambone, Op.Cit. p.16. 12 Marlos Nobre Apud Vanessa Rodrigues da Cunha, �A Influência da Música Folclórica e Popular em
Três Obras para Piano de Marlos Nobre: um Estudo Comparativo das Constâncias Técnicas e Estéticas na
Formação de um Estilo�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997, p.6.
15
Durante os dois anos de estudos no Instituto Torcuato Di Tella, Nobre
absorveu diferentes ensinamentos de cada um dos professores com quem teve contato:
de Messiaen, a importância do ritmo; de Dallapiccola, a relação entre texto e música;
com Malipiero e Ginastera, desenvolveu as técnicas dodecafônicas e seriais. Segundo
Nobre, o período que ele passou, em Buenos Aires, entre 1964 e 1965, foi decisivo para
a sua carreira internacional.
Ao retornar ao Brasil em 1965, Nobre já era um compositor com uma forte
personalidade e domínio técnico, já tendo escrito peças do vulto de Divertimento Op. 14
para piano e orquestra, Variações Rítmicas Op.15, para piano e percussão e
Ukrinmakrinkrin Op. 17, para voz, sopros e piano. Nos anos que se seguiram continuou
a desenvolver uma intensa carreira como compositor, tendo suas obras tocadas em
diversos países e o seu trabalho cada vez mais reconhecido.
1.2 - Estética e Fases Composicionais de Marlos Nobre
Marlos Nobre, durante sua trajetória, mostrou-se um compositor preocupado
com a criação de uma linguagem própria, sem rechaçar as músicas do passado, mas
aberto às novas tendências da música contemporânea. Nessa busca por uma expressão
própria, o compositor explorou diversas tendências e técnicas, porém, apesar do
complexo de estilos utilizados, a música de Nobre possui características que guardam
uma forte identidade nacional, especialmente em relação à música nordestina, com a
qual ele teve contato direto durante sua formação. Segundo ele,
o compositor é uma esponja que absorve, durante as diferentes
etapas de sua vida e do seu processo criador, as mais variadas influências. Nenhum compositor repetirá jamais as mesmas experiências auditivas de outros, daí resultando a formação de
um estilo pessoal e peculiar em cada verdadeiro criador. Minha música é, assim, o resultado do meu subconsciente, que
16
armazenou e absorveu as mais variadas influências,
selecionando-as e filtrando-as.13
A despeito do uso de elementos nacionais em sua música, Nobre não segue
os preceitos do nacionalismo, aliás, ele sempre se manteve no cenário nacional como
uma figura independente não se filiando a nenhuma corrente. Ao contrário do que
pregavam os compositores de orientação nacionalista, ele nunca estudou formalmente o
folclore. Em geral, o uso dos elementos da música nacional em suas composições é feito
de forma inconsciente ou natural, sem a intenção de �soar brasileiro�. Por essa razão, o
compositor diz que faz música �nacional� e não �nacionalista�.
A postura estética de Nobre é a de buscar um equilíbrio entre o uso das mais
diversas técnicas composicionais e de elementos nacionais, sempre em favor da
expressão. Assim, busca evitar um nacionalismo exaltado e unilateral, ou o
artificialismo de muitos compositores contemporâneos que partem de princípios
teóricos para fazer música. Nobre usa, em sua obra, um complexo de técnicas, estéticas
e impressões sonoras que são habilmente combinadas, mas normalmente com liberdade,
objetivando a comunicabilidade de idéias e emoções, conforme atesta a seguinte
declaração do compositor:
Não sinto a necessidade de me auto-definir esteticamente. Os compositores de hoje, sobretudo os mais jovens, sentem desesperada necessidade de se auto-definirem, se auto-catalogarem. Assim as definições de pós-serialista, minimalistas, maximalistas, microtonalistas, os adeptos da música �espectral�, da composição �instantânea�, da música
�acusmática�, o poli-estilismo, a nova-complexidade, a nova-simplicidade, o neo-expressionismo, o neo-Romantismo e até o
neo-neo-Classicismo! Sempre tive a sensação de frustração intelectual e um
sentimento de fraude estética frente a este emaranhado de auto-definições que são apenas noções genéricas mais do que
verdadeiras tendências estéticas do nosso tempo. (...)
13 Marlos Nobre, �Minhas convicções musicais� in Home Page Oficial de Marlos Nobre, disponível em
<http://marlosnobre.sites.uol.com.br>.
17
Minha Linguagem é �impura� mas a prefiro assim, e viva, com as contradições próprias da nossa existência, do que �pura� e
morta. Só escrevo aquilo que penso valer a pena de transmitir, e se esta transmissão possuir alguma energia real e uma verdadeira
emoção, que torne melhor a vida de quem por acaso entrar em
contato com ela. Minha estética seria comunicar esta energia.
14 Entre as linguagens musicais tradicionais e de vanguarda que Nobre
conheceu e estudou � desde a música dos antigos mestres até as mais recentes
tendências � ele elege e usa aquelas que são mais apropriadas para sua obra. O
compositor espanhol Tomás Marco (1942) � autor do primeiro livro que trata da figura
e música de Nobre em profundidade � vê essa atitude não exatamente como um
�ecletismo�, mas o reflexo de um processo muito elaborado e pessoal de �síntese�15.
Outra característica marcante desse compositor é o fato de ele acreditar que
uma obra deve chegar a suas metas pelos meios mais simples, renunciando a qualquer
complicação gratuita. Com essa perspectiva, a maioria das composições de Nobre são
produzidas a partir motivos aparentemente despretensiosos, mesmo aquelas de maior
complexidade.
Por essa razão, a repetição e a variação têm uma importância fundamental
em toda a sua obra. Muitas vezes, a partir do desenvolvimento de um único motivo,
Nobre é capaz de criar uma peça inteira ou, por vezes, mais de uma, como se uma única
não fosse suficiente para explorar as possibilidades expressivas de um tema. A partir do
motivo inicial de Homenagem a Villa-Lobos, por exemplo, compôs a Sonata Breve para
piano solo, o terceiro movimento do Concerto Op. 82, além das mais de trinta peças da
série Desafios Op. 31, cada uma para uma formação instrumental diferente. Apesar do
14 Marlos Nobre Apud Maria Luiza Corker-Nobre, �Aspectos Técnicos e Estéticos de Sonâncias III de
Marlos Nobre: uma Introdução à Problemática da Intuição Versus Cerebralismo�, Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995, p. 45. 15 Tomás Marco, Marlos Nobre: El Sonido del Realismo Mágico, Madrid: Fundación Autor, 2006, p. 145.
18
uso do mesmo material temático, cada uma dessas peças revela características
peculiares que as tornam independentes umas das outras.
O processo composicional de Nobre começa a partir de uma idéia musical
que, segundo ele, brota de seu subconsciente, inicialmente de forma espontânea, errática
ou ainda selvagem. Posteriormente, se inicia o processo da composição em si, que seria
o de ordenar e organizar, de forma coerente, esses impulsos primários. A forma de cada
peça seria, portanto, uma conseqüência do desenvolvimento de cada uma das idéias.
Por fim, a seguinte declaração do compositor resume o processo
composicional e seu pensamento a respeito de suas próprias convicções musicais:
A busca do compositor de realizar uma verdadeira obra de arte deve basear-se no perfeito equilíbrio entre espontaneidade e
trabalho intelectual, entre intuição e lógica consciente; entre
fluência e arquitetura formal; entre repouso e dinamismo; entre a
perfeita junção das partes e suas feições individuais; entre
continuidade e audácia; entre economia e riqueza de detalhes;
entre concentração e extrapolação máxima das possibilidades
das idéias; entre maestria do �métier� e inovação técnica, entre
contínua experimentação sem perder jamais a lógica do discurso
sonoro.16
Cronologicamente, a produção de Nobre costuma ser dividida em cinco
fases com diferentes características. No entanto, o próprio compositor adverte que
em meio de uma seqüência bastante lógica de obras compostas
dentro de uma linha evolutiva, aparecem de repente obras que, em aparência, nada têm que ver com as anteriores. Pertencem a
momentos precedentes, algo assim como frutos tardios de uma coisa interrompida.17
A primeira fase, que vai de 1959 até 1963, inclui as peças compostas desde
Concertino Op. 1 até o Divertimento Op. 14. Essa fase representa a formação da
16 Marlos Nobre, �Minhas convicções musicais� in Home Page Oficial de Marlos Nobre, disponível em
<http://marlosnobre.sites.uol.com.br>. 17 �en medio a una secuencia bastante lógica de obras compuestas dentro de una línea evolutiva, aparecen
de repente obras que, en apariencia, nada tienen que ver con las anteriores. Pertencen a momentos precedentes, algo como frutos tardíos de una cosecha interrumpida. Marlos Nobre, apud André Pardo
Valdés, �Nueve Perguntas a Marlos Nobre� in Revista Musical Chilena, XXXIII No. 148 (1979), p. 40.
19
personalidade musical de Nobre e é marcada pela influência de Villa-Lobos e,
especialmente, de Nazareth. Esse fenômeno torna-se evidente especialmente no
Concertino Op. 1, Nazarethiana Op. 2 e no Trio Op. 4.
Outro traço característico dessa fase é a presença mais direta de elementos
provenientes da música popular e folclórica vivenciada pelo compositor durante sua
formação, como pode ser observado no I Ciclo Nordestino Op. 5 para piano solo e nas
canções para voz e piano.
As suas primeiras peças se inserem ainda dentro de um sistema tonal, mas
com expansões e, posteriormente, com inclusão de elementos politonais, atonais e
seriais. Diz o compositor que:
À medida que meu campo de informação musical � estética e
tecnicamente � foi se ampliando, mediante a incorporação de
novos elementos, estes foram submergindo em meu subconsciente, e ali permaneceram expandindo-se, movendo-se até tomar corpo em novas idéias, uma confusão geral, estalando
aqui e ali em obras, segundo as circunstâncias.18
A segunda fase é marcada pelo início dos estudos em Buenos Aires, em
1963, e abrange as composições feitas até o ano de 1968. As obras desta fase mostram
uma predominância do uso de técnicas seriais e dodecafônicas, mas nunca de forma
estrita. Apesar da utilização dessas técnicas de forma mais ostensiva em sua obra, a
presença rítmica da música brasileira não foi abandonada nessa fase. Inclusive, a
percussão foi usada em diversas obras importantes desse período, como em Variações
Rítmicas Op. 15 para piano e percussão, e Rhythemetron Op. 27 para conjunto de
percussão.
18 � a medida que mi campo de información musical � estética y técnicamente � fue ampliando, mediante la incorporación musical de nuevos elementos, éstos fueron sumergiéndose en mi subconsciente, y allí
permanecieron expandiéndose, movindose hasta tomar cuerpo en nuevas ideas estallando aquí y allá en
obras, según las circunstancias� Marlos Nobre, apud André Pardo Valdés, Op. Cit. p. 41.
20
A peça mais importante dessa fase é a cantata, inspirada na temática
indígena, Ukrimakrinkrin Op. 17 para soprano, sopros e piano. Nessa cantata, que foi
dedicada a Alberto Ginastera, o compositor faz uso de técnicas dodecafônicas, seriais e
aleatórias. Segundo Scarambone �a maioria das composições de Nobre deste período
exibem rebeldia e características violentas. Nobre queria romper com os maneirismos
encontrados enquanto estudava no Brasil�19.
A terceira fase é marcada pela integração dos processos das fases anteriores,
portanto um equilíbrio entre o período de formação e o período de maior
experimentalismo. Esta fase situada entre Concerto Breve Op. 33, de 1969 e
Homenagem a Villa-Lobos Op. 46 de 1977. Segundo Vasco Mariz, nessa época a
música de Nobre �demonstra uma integração dos processos politonais e já notável a
evolução de maturidade para um compositor entre os 30 e 40 anos de idade�20. As
principais obras dessa fase são Concerto Breve Op. 33, Ludus Instrumentalis Op. 34,
Mosaico Op. 36, O Canto Multiplicado Op. 38 e In Memoriam Op. 39.
A quarta fase vai de 1980 até 1989, incluindo as peças desde Yanomâni Op.
47 até o Concerto para Trompete Op. 74. Este período é marcado por uma liberdade dos
padrões rítmicos do nordeste e, no plano harmônico, a linguagem se torna mais densa e
compacta, entretanto sem desprezar completamente os elementos tonais. A estrutura
formal exclui a utilização dos esquemas clássicos, mas mantém um contínuo
desenvolvimento das idéias e conserva uma forte lógica interna.
As principais peças desta fase foram Yanomâni Op. 47, Sonâncias II Op. 48,
Sonâncias III Op. 49, Concerto para Cordas II Op. 53 e Cantata do Chimborozo Op. 56
e Tango Op. 61.
19 �The majority of Nobre�s compositions from this period exhibit rebellious and violent characteristics�. Bernardo Scarambone, Op.Cit. p. 29. 20 Vasco Mariz, Op. Cit. p.373.
21
A última fase do compositor vai desde Concertante do Imaginário Op. 74
de 1989 até os dias de hoje. O compositor delineia as características deste período pela
�franca adoção de estruturas tonais, com a utilização de formas mais amplas, uma maior
presença melódica e uma mistura constante entre elementos tradicionais e
contemporâneos, fundidos e sintetizados em minha própria linguagem�21.
Além do Op. 74, outras peças importantes são Xingu Op. 75, Columbus Op.
77, Reminiscências Op. 78, Amazônia Ignota Op.95, Concerto Duplo Op. 82 e
Kabbalah Op.96.
Hoje, o compositor, aos 68 anos, continua em plena atividade e diz que sua
música atual é �cada vez mais um reflexo profundo�22 de si mesmo. Ele compõe sem
necessariamente se preocupar com estética ou técnica, simplesmente deixa fluir
naturalmente sua escrita.
21 Marlos Nobre Apud Ingrid Barancoski, �The Interaction of Brazilian National Identity and
Contemporary Musical Language: the Stylistic Development in Selected Piano Works by Marlos Nobre�, Tese de Doutorado, Universidade do Arizona, 1997, p. 56. 22 Bernardo Scarambone, Op.Cit. p. 141.
22
CAPÍTULO 2
A Obra para Violão de Marlos Nobre
Apesar de não ser violonista, Marlos Nobre tem dedicado diversas peças
importantes para o violão. O primeiro contato do compositor com esse instrumento deu-
se já na sua infância, através de seu pai, um violonista amador. Talvez, dessa ligação
afetiva com o violão tenha resultado o grande interesse de Marlos Nobre pelo
instrumento. Numa entrevista à revista inglesa Classical Guitar, o compositor recorda
com carinho a sua admiração pelo pai e sua relação com o violão:
Tarde da noite, depois de um dia cansativo de trabalho, ele [o pai do compositor] costumava pegar seu violão e tocar durante
horas. Minha mãe me disse que, desde que eu tinha três anos de
idade, eu fui atraído pela música dele. Me lembro claramente
que, desde minha mais tenra infância, eu escutava encantado o
meu pai tocar, entre outras coisas, a Adelita de Tárrega. Ele
adorava ouvir as gravações de Segovia comigo ao lado. Ele ouvia aqueles discos dia após dia.
23
Num outro trecho da entrevista24, o compositor lembra-se de quando ia
acompanhando o pai em saraus dominicais onde se tocava os mais diversos gêneros em
voga na época, tais como valsas, choros, maxixes, schottishes, polcas, frevos e baiões.
Nesses encontros, podiam-se ver vários violonistas tocando solo, em duo, trio, quarteto
e até em grupos com mais de quinze violões. Nobre lembra, ainda, que o pai dele lhe
chamava a atenção para a técnica da mão direita dos melhores executantes, mostrando
como diversas vozes podiam soar simultaneamente. Esse fato ficou marcado na
23 �Late at night, after a tiring day at the accounts, he used to take his guitar and play it for hours. My
mother told me that since I was three years old I had been attracted to his music. I remember clearly that since early childhood I listened, delighted, to my father playing, among other things, Tárrega´s Adelita.
He loved to listen to Segovia recordings, with me nearby. We listened to those records day after day.� Colin Cooper, �Marlos Nobre: Speaking Internationally� in Classical Guitar Volume 12 No. 3
(Novembro, 1993) p. 11. 24 Ibidem pp. 11-12.
23
lembrança do compositor e o influenciou em muitas de suas peças posteriores, como
poderemos constatar mais adiante.
A relação afetiva, feita por Marlos Nobre, entre seu pai e o violão fica
evidente na peça orquestral In Memoriam Op. 39,25 escrita em homenagem ao pai.
Nessa peça, o compositor usa as seis primeiras notas (Mi, Ré#, Si, Ré, Dó, Fá#) da valsa
Adelita de Francisco Tárrega (1854-1909) que, conforme relato, Nobre ouvira o pai
tocá-la diversas vezes. Em In Memoriam, Nobre usa o violão em meio à massa
orquestral, tocando um arpejo em cordas soltas, num dos trechos mais dramáticos da
música, fazendo clara referência às lembranças de sua infância.
De fato, o compositor vem escrevendo uma obra para violão bastante
extensa e de grande valor artístico. Vale ressaltar que é incomum compositores não
violonistas dedicarem um número tão grande e variado de peças para o violão como
Nobre fez, pois, em geral, eles compõem apenas uma ou duas peças sob encomenda, ou
através de um trabalho conjunto entre determinado compositor e um intérprete
específico.
Aliás, a prática de compositores não violonistas escreverem para o violão é
bastante recente. Segundo Norton Dudeque, em seu livro História do Violão, somente
em 1920, com Homaje Pour le Tombeau de Claude Debussy de Manuel de Falla (1876-
1946), se inicia �a produção de um repertório para o violão de alta qualidade musical,
geralmente composto por compositores não violonistas�26. Segundo Mario Ulloa:
A partir daí, a literatura violonística começou a beneficiar-se com os desafios propostos por essa categoria de compositores. Muitas restrições técnicas da época estão hoje superadas, em
parte, graças às exigências e imaginação sonora desses
compositores e ao empenho dos intérpretes em resolver esses
requerimentos.27
25 In Memorian Op. 39 foi composta em 1973 e revisada em 1976. 26 Norton Dudeque, História do Violão, Curitiba: Editora da UFPA, 1994, p. 85. 27 Mario Ulloa, �Recursos Técnicos, Sonoridades e Grafias do Violão para Compositores Não
Violonistas�, Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, 2001, p. 1.
24
Tradicionalmente, o repertório para violão divergia do composto para os
outros instrumentos, pois se limitavam às peças dos próprios violonistas que nem
sempre eram grandes compositores. Essa situação havia criado um isolamento do
instrumento que acabou por perder a possibilidade de compositores da estirpe de Claude
Debussy, Maurice Ravel, Bela Bartok, entre outros, escreverem para o instrumento.
Entretanto, a partir das transformações desse cenário, foi-se desenvolvendo uma maior
interação, entre intérpretes e compositores não violonistas, que resultou algumas das
mais importantes peças do repertório para violão, a exemplo de Variações sobre a Folia
de Espanha (Manuel Ponce), Noturnal Op. 70 (Benjamin Britten), Sonata Op. 47
(Alberto Ginastera), Sequenza XI (Luciano Berio).
Marlos Nobre tem plena consciência da importância desse envolvimento e,
segundo ele, os violonistas não são, necessariamente, os melhores compositores para o
instrumento, pois o compositor violonista normalmente trabalha baseado em elementos
que já são padrões no instrumento, além de se limitar a tudo aquilo que é �violonístico�,
caindo, dessa forma, em clichê ou ficando deficiente de imaginação musical. Afirma,
contudo, que existem raras exceções, citando como exemplo o caso do violonista e
compositor cubano Leo Brouwer (1939)28.
Nobre admite a dificuldade de escrever bem para o violão, mas diz:
�Desenvolvi, com o tempo, um tal conhecimento dele que escrevo diretamente para o
papel pensando no instrumento�29. Em um depoimento dado em um fórum de discussão
na internet, ele explica o seu processo de escrita para violão da seguinte forma:
Fico com o instrumento ao lado para compor para ele, e simplesmente o coloco na minha mente como meta. Exploro as possibilidades, às vezes, diretamente no instrumento, mas a
28Colin Cooper, �Marlos Nobre: Op. Cit. p. 12. 29 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 37, 25 de outubro de 2003, acessado em 15 de janeiro de 2006.
25
seqüência, a fluência é fruto de outra lógica, a composição
real.30 O pensamento de Nobre, a respeito da postura do compositor ao escrever
para o violão, é consoante com o pensamento de um de seus professores, o compositor
argentino Aberto Ginastera, que acreditava que o compositor deveria escrever grandes
peças para o violão e não se limitar apenas a pequenas peças características. Nobre diz:
O compositor não violonista normalmente tem medo de
escrever livremente para o violão, porque ele não é um
especialista. No entanto, é possível que este sentimento
negativo tenha uma influência negativa em sua mente e ponha
um fim em sua inspiração e imaginação. Ao mesmo tempo,
entretanto, o compositor tem que liberar sua imaginação
enquanto respeita as limitações e possibilidades do violão. Mas
isto não é sempre verdadeiro para qualquer outro
instrumento?31
Acrescenta ainda que �o compositor deve procurar sempre ter audácia e
impertinência quando for escrever para violão�32, isto é, através do desprendimento do
compositor às peculiaridades do violão, juntamente com sua ousadia, haveria maior
liberdade para compor, evitando assim limitações à atividade criativa do autor. Além
disso, deve procurar manter sua independência na busca de novas soluções, novas
possibilidades e criar novas idéias para o instrumento.
Observa o violonista Fábio Zanon que, como resultado da audácia de Nobre,
sua obra para violão, que ao todo cobre 30 anos de produção artística, atesta
sua imaginação poderosa e o coloca como um verdadeiro
herdeiro de Villa-Lobos, em sua escrita detalhada, robusta realização instrumental e perfeito equilíbrio entre a cor local e
30 Ibidem. 31�The non-guitarist composer is normally afraid to write freely for the guitar, because He is not a
specialist. Thus it is possibly that this negative feeling will have a negative influence in his mind and so put an end to his inspiration and imagination. At the same time, however, the composer must liberate his ideas while respecting the limitations and possibilities of the guitar. But is this not always true for any other instrument?� Colin Cooper, �Marlos Nobre: Op. Cit., p. 12. 32 �The composer must always have audacity and impertinence regarding the guitar� Ibidem, p.12.
26
as necessidades de um argumento formal de maiores proporções.
33
A obra para violão de Marlos Nobre abarca quase todos os seus períodos
composicionais. Ao todo, são 43 peças que utilizam o violão, as quais podem ser
classificadas em:
a) Violão solo;
b) Duo de violões;
c) Conjunto de violões;
d) Violão e voz;
e) Violão e coro;
f) Violão e orquestra;
g) Formações diversas incluindo o violão.
2.1 - Obra para violão solo
A primeira peça original para violão solo foi Momentos I Op. 41 No. 1,
composta em 1974, portanto, pertencente ao terceiro período criativo do compositor.
Essa peça foi feita sob encomenda do Ministério de Assuntos Exteriores do Brasil e foi
dedicada ao violonista Turíbio Santos (1943) que a estreou no mesmo ano na Queen
Elizabeth Hall de Londres. Santos, naquela época, era um dos mais destacados
violonistas brasileiros e já vinha incentivando Nobre a compor para o instrumento.
Apesar de ser a sua primeira peça escrita para violão solo, o compositor já
demonstra uma refinada concepção instrumental, indicando, ao mesmo tempo, grande
inventividade e domínio dos recursos do violão, explorando alguns efeitos sonoros
33 Fábio Zanon, �O Violão no Brasil depois de Villa-Lobos�, artigo disponível em:
<http://vcfz.blogspot.com/2006/05/o-violo-no-brasil-depois-de-villa.html>, acesso em: 01 de maio de 2006.
27
interessantes como: pizzicato alla Bartók; mudança da afinação de uma corda do violão
durante a execução; uso de sons em harmônicos naturais e artificiais; uso de rasgueados;
exploração da ressonância natural do instrumento; uso do acordes explorando cordas
soltas, entre outros.
Nessa peça, o compositor elabora uma intrincada organização interna,
inclusive fazendo um uso livre da técnica serial, apesar de sugerir uma música
espontânea. Nesse senso, Paulo de Tarso Salles comenta sobre Momentos I:
Sob a aparente �casualidade� de sons de berimbau, timbres
�estranhos�, desafinações, afinações, o aparente caráter
improvisatório (talvez decorrente de sua recusa a qualquer elemento polifônico) e o próprio título evocativo (�momentos�
soa demasiado íntimo e desvinculado de qualquer forma
tradicional), o compositor tece discretamente uma teia de elementos da linguagem musical �pura�, que alimenta-se dialeticamente dos ornamentos que nervosamente se agitam em sua superfície
34.
Apesar de as quatro primeiras peças da série Momentos terem sido escritas
em um espaço de seis anos, elas foram concebidas como uma unidade e, mesmo tendo
cada uma das peças uma personalidade individual e freqüentemente serem tocadas
como peças separadas, o compositor afirma que só quando tocadas em conjunto a obra
será completamente entendida. Neste sentido, afirma o compositor que �existe um
conceito de unidade, de coerência musical e continuidade em diferentes elementos
dessas peças que apenas podem ser percebidas como um todo�35.
A segunda peça do ciclo, Momentos II Op. 41 No. 2, é de 1975 e também foi
dedicada a Turíbio Santos que a estreou na Sala Gaveau de Paris em 1978. O caráter
aparentemente improvisatório, referido em Momentos I, também pode ser observado
naquela peça, assim como em todas as outras do ciclo. A indicação Con fuoco no início
34 Paulo de Tarso Salles, �Momentos I (1974) para Violão de Marlos Nobre: Síntese e Contraste� in
PerMusi Volume 7 (2003), p. 50. 35 �There exist a concept of unity, of musical coherence and continuity in the different elements of those
pieces that can only be perceived as a whole�. Colin Cooper, Op. Cit., p. 12.
28
da partitura já dá uma idéia do seu caráter vigoroso que é entrecortado por trechos em
andamento lento. A escala cromática é utilizada em toda a peça de forma ostensiva
numa espécie de motto-continuo, gerando uma grande tensão.
Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4:
Já Momentos III Op. 41 No. 3 para violão solo, foi composta em 1976
atendendo à encomenda da The Guitar Society of Toronto e também estreada por
Turíbio Santos � a quem está dedicada � em Toronto, no MacMillan Theatre, no ano de
1978. Essa peça tem um caráter lírico e pode-se dizer que há nela certa lembrança da
música seresteira feita no Brasil, a qual Nobre pôde ouvir com freqüência quando era
jovem. Assim como em outras peças dessa fase composicional, a referência folclórica
ou à música popular brasileira não é feita de forma direta, mas sugerida, de forma
implícita, sendo, muitas vezes, feitas até inconscientemente.
Momentos IV Op. 54 só foi escrita em 1982 e estreada no ano seguinte, mais
uma vez por Turíbio Santos no Odeon Theatre de Ottawa, Canadá. Essa peça é definida
pelo compositor como �um tipo de �toccata� ou �rondó-toccata� desenvolvendo uma
única idéia obsessiva�36. O ritmo que sugere o jongo, pela alternância entre o compasso
36 �a kind of �toccata� or �rondó-toccata�, developing a single obsessive idea�. Colin Cooper, Op. Cit., p. 12.
29
6/8 e 3/4, é recorrente em diversos momentos da peça. Também constante é o uso da
sexta corda solta do violão, que está presente em praticamente todos os compassos da
música.
Assim, em Momentos I-IV, pode-se observar um arcabouço de uma sonata
para violão: O primeiro movimento (Momentos I), de caráter solene e introdutório,
apresenta uma estrutura formal semelhante à sonata clássica37; o segundo movimento
(Momentos II), uma espécie de scherzo; o terceiro (Momentos III), lento e mais lírico; e,
o quarto movimento (Momentos IV), uma espécie de rondó.
A série Momentos para violão solo foi planejada inicialmente para ser em 12
números, divididas em três grupos de quatro peças cada. Até o momento, só foi
publicado o primeiro grupo, Momentos I-IV, editados pela Max Eschig, em Paris. O
restante da série está em processo de revisão e deverá ser publicado em breve. Aliás, é
um procedimento comum no processo composicional de Nobre: conceber a peça num
determinado momento e só posteriormente escrevê-la e revisá-la.
Existe uma gravação de Momentos I Op. 41 No. 1 com Turíbio Santos ao
violão e outra gravação, pela EMI, do ciclo Momentos I-IV por Sérgio e Odair Assad
num LP intitulado Yanomami, apenas com músicas de Marlos Nobre.
Outra peça central da obra violonística de Nobre é a Homenagem a Villa-
Lobos Op. 46, composta em 1977, dedicada ao violonista Dagoberto Linhares que a
estreou no ano seguinte no Alice Tuly Hall, Lincoln Center, em Nova York. Essa
composição foi ainda peça obrigatória em um dos maiores concursos de violão da
época, o XXI International Guitar Competition da Rádio France de Paris, em 1979.
37 No artigo Momentos I para Violão de Marlos Nobre: Síntese e Contraste, Paulo Salles, demonstra com detalhes como estaria estruturada a sonata-forma clássica em Momentos I. Segundo o autor �esta atitude,
algo neoclássica, não só condiz com a formação do compositor, como resulta em maior clareza formal,
contraposta à inebriante variação tímbrica�.
30
Como o título evidencia, trata-se de uma homenagem ao compositor
brasileiro Heitor Villa-Lobos, na qual o tema do Prelúdio No. 4 para violão solo, desse
compositor, aparece transformado, sendo o germe inicial para o desenvolvimento da
peça. Segundo Nobre, �A �Homenagem� seria assim uma espécie de eco amplificado do
motivo citado, o qual é, por sua vez, encontrado em certas regiões da Amazônia
brasileira, segundo declarações do próprio Villa-Lobos�38.
Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos Nobre), comp.1:
O citado motivo, que foi base para a composição dessa homenagem,
também será usado, de forma bastante diversa, em outras peças posteriores, num
processo já explicado no capítulo precedente.
A peça está estruturada em três seções: a primeira assemelha-se a uma
cadenza desenvolvendo e ampliando o referido motivo, por meio de transformações
temáticas.
Na seção central da peça, é desenvolvido o tema sobre o nome BACH (Sib,
Lá, Dó e Si) � fazendo uma clara referência à influência de Bach na obra de Villa-
Lobos. Esse motivo também já fora utilizado anteriormente por Nobre, nas peças para
orquestra Biosfera Op. 35 e Convergências Op. 29, Trio Op. 4, entre outros.
38 Marlos Nobre, Joaquim Freire � Texto do Encarte do CD LC44601, Léman Classics, 1993.
31
Na terceira parte, a cadenza inicial é retomada, mas, desta vez, de forma
invertida. Segundo Nobre, �o caráter da peça alterna doçura e violência, dois aspectos
tão intrínsecos da alma e da expressividade brasileira�39.
A Homenagem a Villa-Lobos Op. 46 foi gravada duas vezes, a primeira,
pelo violonista uruguaio Oscar Cáceres, e a segunda, pelo brasileiro radicado na Suíça,
Joaquim Freire em 1994, pela gravadora Léman Classics. A peça foi, inicialmente,
editada pela Tonos Edition Darmstadt, com a qual o compositor cancelou todos seus
contratos a partir de 1997, sendo atualmente editada pela "Marlos Nobre Edition" do
próprio compositor, editora do conjunto total de suas obras.
Durante os anos 80, ocorreu um significativo aumento do interesse do
compositor pelo violão, compondo, naquela década, um total de 19 peças originais ou
adaptações para violão solo ou formações diversas incluindo o violão. Talvez isto se
deva ao fato de Nobre ter, nessa época, participado como júri em prestigiosos concursos
internacionais de violão como o XXI e XXII Concurso Internacional de Violão da
Rádio France, e por entrar em contato com vários violonistas importantes como Sérgio e
Odair Assad, Marcelo Kayath, Roberto Assuel, Gondon Crosskey, que acabaram
incentivando o compositor a aumentar sua produção violonística.
Já no começo da década de 80, ele escreveu peças importantes que incluem
o violão tais como Yanomâni Op. 47 (para coro misto, tenor e violão), Sonâncias II Op.
48 (flauta, violão, piano e percussão) e o Concerto Op. 51 (violão e orquestra) que serão
comentados mais tarde. Em 1982, realizou uma adaptação para violão solo da premiada
peça, original para piano, do ano de 1960, o 1° Ciclo Nordestino Op. 5. Essa adaptação
é bastante fiel ao original para piano e está catalogada com o número de Opus 5c. A
39 Marlos Nobre, Joaquim Freire � Texto do Encarte do CD LC44601, Léman Classics, 1993.
32
peça foi dedicada a Turíbio Santos, mas a primeira audição só ocorreu em 1991, no
Bolívar Hall em Londres, com Marcus Llerena ao violão.
Ainda em 1982, o compositor fez uma transcrição dos seus três primeiros
Ciclos Nordestinos, mas dessa vez para duo de violões. Além dessa transcrição, no
mesmo ano, concluiu o primeiro ciclo da série Momentos, escrevendo o Momentos IV
Op.54, e iniciou o próximo ciclo, com Momentos V Op. 55. Em 1984, compôs
Momentos VI Op. 62 e Momentos VII Op. 63, mas que permanecem não publicadas, e
ainda aguardam revisão e estréia40.
Também em 1984, Nobre compõe Prólogo e Toccata Op. 65 que foi
gravada41 e tocada com muito sucesso por Marcelo Kayath, violonista carioca a quem a
peça está dedicada. Essa peça � que foi estreada pelo próprio Kayath em 1985, no
Purcell Room de Londres � apresenta uma impressionante concisão de escrita, sendo
baseada no seguinte motivo cromático ascendente:
Exemplo 3: Prólogo (Marlos Nobre), comp.1-2:
Exemplo 4: Toccata (Marlos Nobre), comp.1-3:
40 �Marlos Nobre: Homepage Oficial�, disponível em
<http://marlosnobre.sites.uol.com.br/index1_i.html>, acesso em: 08 de abril de 2006. 41
A peça foi gravada pela Hyperion no CD Debut (1985) e foi editado pela Max Eschig, com digitações
de Marcelo Kayath.
33
Segundo Fábio Zanon, �a partir desse núcleo, ele monta um edifício
semelhante a uma colméia, explorando o material com expressividade no �Prólogo� e
virtuosismo na �Toccata��42. Tanto Prólogo e Toccata Op. 65 quanto Homenagem a
Villa-Lobos Op. 46 são exemplos da concisão de escrita característica da música de
Marlos Nobre. A partir do desenvolvimento de uma pequena idéia, o compositor
constrói toda a peça, ou até, como no caso do motivo inicial da Homenagem a Villa-
Lobos Op. 46, mais de uma peça, todas com características e tratamento bem diversos.
Outra importante peça de Nobre dessa década é a Entrada e Tango Op. 67,
de 1985, que foi dedicada ao importante violonista argentino Roberto Aussel, que
posteriormente foi o responsável pela publicação desta e de outras peças para violão de
Marlos Nobre. Apesar de ter sido editada em 1993, por Aussel pela editora Henry
Lemoine, não há, até o momento, registro oficial de que a peça tenha sido estreada.
A exemplo da série Desafios Op. 31, Prólogo e Toccata Op. 65, Lamento e
Toccata Op. 99, Sonante I Op. 80, entre outras, em Entrada e Tango Op. 67, o
compositor usa um padrão formal bastante comum em sua obra: uma abertura solene
seguida de um movimento virtuosístico.
Entrada e Tango Op. 67 para violão evocava o mesmo espírito da peça para
piano, o Tango Op.61, composto um ano antes. Segundo Scarombone, Nobre �compôs
seu enérgico Tango [Op.61] com intenções satíricas de exagerar as características do
tango argentino�43.
Da mesma forma, o Tango para violão é uma evocação de como Nobre vê o
gênero tango e a sua impressão deixada na época em que viveu em Buenos Aires. Para o
compositor, o contato com o movimento musical �Novo Tango� teve grande
42 Fábio Zanon, �A Arte do Violão�. Roteiro do programa de rádio transmitido pela Cultura FM,
disponível em: <http://aadv.home.comcast.net/>. Acesso em: 01 de maio de 2006. 43 �Nobre composed his energic Tango with satirical intentions os exaggerating the characteristics of the Argentinean tango�. Bernardo Scarambone, �The Piano Works of Marlos Nobre�, Tese de Doutorado,Universidade de Huston, 2006, p. 37.
34
importância na época em que estudava no Instituto Torcuato Di Tella, pois servia para
contrabalancear os efeitos das técnicas aprendidas no Instituto:
Ao lado do serialismo integral, quase obrigatório então, a convivência com o tango de Piazzolla era extremamente salutar
e até renovadora.44
O Tango Op. 67, para violão, e o Tango Op. 61, para piano, em diversos
momentos, apresentam semelhanças temáticas como pode ser verificado abaixo:
Exemplo 5: Tango Op.67 (Marlos Nobre), comp. 55-57:
Exemplo 6: Tango Op.61 (Marlos Nobre), comp. 53-55:
Em 1991, Nobre inaugura uma nova fase em sua obra para violão solo,
escrevendo peças com características que ficaram conhecidas como a sua quinta fase
composicional. Durante essa fase, Nobre explora principalmente as grandes formas e
combina elementos tradicionais e contemporâneos, mostrando-se um compositor
maduro e sem medo do que a crítica acharia de sua obra. É nesse ano de 1991, que
44 Marlos Nobre, Apud Vanessa Rodrigues da Cunha, �A Influência da Música Folclórica e Popular em
Três Obras para Piano de Marlos Nobre: um Estudo Comparativo das Constâncias Técnicas e Estéticas na Formação de um Estilo�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997, p. 46.
35
escreve uma de suas peças para violão solo de maior sucesso: a suíte Reminiscências
Op. 78 que será analisada com mais detalhes no próximo capítulo.
Um depoimento do próprio compositor, comentando o seu Concerto Duplo
Op. 82, é bastante significativo para compreender sua nova postura nesta fase, que é
bastante consoante com o pensamento pós-modernista da música de hoje:
Acima de tudo eu não estava com medo de escrever uma música
que fosse emocional e comunicativa. Eu acredito que o compositor em nossos dias não deva ser nem de vanguarda nem reacionário. Ele tem que ser eclético, mas sempre com voz
própria. Minha música é enraizada na grande tradição da Europa
e da América Latina, sem � acredito � ser acadêmico, mas estou
sempre explorando novos mundos e tentando conquistá-los.45
Em 1993, Nobre compõe Relembrando Op. 78a, uma peça curta, dedicada a
Colin Cooper, crítico e editor da Classical Guitar, revista inglesa especializada em
violão. Essa peça é baseada em sua composição anterior, Reminiscências Op. 78, e
ainda se encontra inédita.
Dentro da mesma concepção estética, está a peça Rememórias Op. 79,
dedicada à violonista alemã Susanne Mebes, mas que foi escrita em memória de
Michele Pittaluga (1918-1995), que foi o fundador do Concorso Internazionale di
Chitarra Classica �Città di Alessandria�, do qual Marlos Nobre foi membro do júri por
duas vezes. A peça segue o mesmo espírito de Reminiscências Op. 78, na evocação das
lembranças da infância do compositor.
Rememórias Op. 79, no entanto, utiliza uma linguagem um pouco mais
simples, inserindo algumas citações diretas de elementos do folclore nordestino e, por
vezes, recorrendo à intertextualidade. O primeiro movimento, �Embolada�, faz uma
45 �Above all I was not afraid to write music that is emotional and communicative. I think the composer in our day should be neither avant-garde nor reactionary. He may be an eclectic, but he also has to have his own voice. My music is rooted in the great tradition of Europe and Latin America, without � I think � being academic, but I am always exploring new worlds and trying to conquer them�. Colin Cooper, �Marlos Nobre´s Concerto Duplo� in Classical Guitar Volume 17, No. 9 (Maio 1999), p. 32.
36
citação do �Prelúdio� da Suíte BWV 996 de J. S. Bach, que, apesar de escrita para
alaúde, é mais tocada hoje em dia no violão. A referida citação, entretanto, não foi,
segundo o compositor, feita de forma deliberada. Diz o compositor que só �um dia
depois de escrevê-la, soube que era tal Suíte de Bach. Portanto, é um caso típico de
�rememória� de algo ouvido antes, mas surgido em estado meio nebuloso�46.
Sob o ritmo característico da embolada, feito na sexta corda solta, o
compositor usa fragmentos e transformações melódicas do conhecido �Prelúdio� de
Bach e assim é desenvolvido durante todo o movimento.
Exemplo 7: Rememórias: I Embolada (Marlos Nobre), comp.1-5:
O segundo movimento da suíte, �Cantilena�, assemelha-se, conforme
Eberhard Glätzle47, a uma Incelência. Esse termo é definido como um canto cerimonial
entoado coletivamente nos velórios junto aos pés dos mortos. É caracterizado pela
presença da palavra �Incelência� repetida até 12 vezes durante o canto. Embora não
tenhamos nenhuma referência que ratifique a intenção do compositor em escrever uma
música que lembrasse esse gênero, sabe-se que �Cantilena� usa a melodia folclórica
�Muié de Lampião� que Nobre já usara na peça para coro Cancioneiro de Lampião Op.
53. De fato, observa-se o uso constante do modo lídio � tão característico da música de
lamento do interior do Nordeste � e o tema é freqüentemente repetido (11 vezes),
porém, não acreditamos haver qualquer referência aos cantos fúnebres nordestinos.
46 Entrevista nº 3 (Realizada em 09/07/07). 47Eberhard Glätzle, Fábio Shiro Monteiro � Recital Brasileiro � Texto do Encarte do CD RBM 463022, RBM, 2000.
37
Em �Caboclinhos�, terceiro movimento da suíte, um ostinato rítmico, com
as notas Ré da quarta e sexta cordas, é repetido e variado, enquanto as melodias, usando
principalmente os modos lídio e mixolídio, são desenvolvidas. A música é feita de
colagens de melodias genuinamente nordestinas, inclusive fazendo uma citação de
Juazeiro de Luiz Gonzaga.
Em 2004, Nobre escreve Momentos VII Op. 102 e Momentos IX Op. 103,
seguidos dos Momentos X-XII Op. 104-106, compostos em 2005, concluindo, dessa
forma, o ciclo Momentos para violão solo iniciados em 197448.
2.2 - Obra para duo de violões
As primeiras peças de Marlos Nobre escritas para dois violões foram as
transcrições dos três primeiros Ciclos Nordestinos originais para piano. Essas
transcrições foram feitas em 1982, a pedido de Sérgio e Odair Assad, que as estrearam
no mesmo ano no Grand Amphithéâtre de la Sorbonne, em Paris. Essa transcrição para
duo foi publicada pela editora Irmãos Vitale e já possui quatro gravações.
Os três Ciclos Nordestinos são importantes peças para o repertório brasileiro
de duo de violões, pois, segundo Fábio Zanon, �são verdadeiros cartões postais de uma
rica tradição folclórica nordestina que o crescimento e a modernidade vêm
gradualmente apagando� 49.
Por outro lado, observa-se também uma intenção didática nos Ciclos.
Scarambone chega a sugerir que �um paralelo ligando os Ciclos Nordestinos de Nobre
com os Microcosmos de Bartók não seria mera coincidência, uma vez que Nobre tem o
compositor húngaro como uma de suas principais influências e grande fonte de
48 No entanto, as peças ainda não foram publicadas e ainda aguardam a revisão do compositor. 49 Fábio Zanon, �A Arte do Violão�. Roteiro do programa de rádio transmitido pela Cultura FM,
disponível em: <http://aadv.home.comcast.net/>. Acesso em: 01 de maio de 2006.
38
inspiração�50. Assim como o Microcosmos de Bartók, a intenção inicial dos Ciclos
Nordestinos era didática: introduzir os jovens pianistas na rica tradição da música
nordestina e, ao mesmo tempo, iniciá-los nas técnicas da música moderna, além da já
referida intenção documental de preservar esses temas e características de uma possível
extinção.
A cada ciclo, formado por cinco movimentos, a complexidade vai
aumentando, reforçando a sua função didática. O 1° Ciclo Nordestino Op. 5b, cujo
original para piano data de 1960, é formado pelos movimentos �Samba Matuto�,
�Cantiga�, �É Lamp�, �Gavião� e �Martelo�. O 2° Ciclo Nordestino Op. 13b, do
original de 1963, formado por �Batuque�, �Praiana�, �Carretilha�, �Seca�,
�Xenhenhém�. Por fim, o 3° Ciclo Nordestino Op. 22, transcrito do original de 1966, é
composto por �Capoeira�, �Côco I�, �Cantiga de Cego�, �Côco II� e �Candomblé�.
Exemplo 8: 2º Ciclo Nordestino: Sêca IV (Marlos Nobre), comp.1-6:
As peças seguintes para duo de violões foram as Três Danças Brasileiras
Op. 57 de 1983, dedicadas ao violonista inglês Gordon Crosskey. Os movimentos são:
�I- Roda�, �II- Embolada� e �III- Maracatu�. A peça foi editada pela Boosey &
Hawkes, fazendo parte de um álbum intitulado �Two Centuries of Guitar Music�.
50 �a parallel linking Nobre´s Ciclos Nordestinos to Bartók´s microcosmos would not be a mere coincidence, once Nobre regard the Hungarian composer as one of his main influences and great source of inspiration.�, Bernardo Scarambone, The Piano Works of Marlos Nobre, Tese de Doutorado, Universidade de Houston, 2006, p. 55.
39
Em 1989, com revisão em 2004, Marlos Nobre escreve outra peça para o
Duo Assad, a Sonatina Op. 76, em um único movimento. Em 2004, compõe ainda
Lamento e Toccata Op. 99 para dois violões, sob encomenda do selo suíço Leman
Records, dedicado ao duo formado pelo violonista brasileiro Joaquim Freire e sua
esposa, a violonista alemã Susanne Mebes, ambos radicados na Suíça. Essas peças ainda
aguardam a estréia.
Nesse meio tempo, em 2003, Nobre realizou uma versão da importante série
Desafios para dois violões, que ainda se encontra inédita. Além dessa, escreveu mais
outras 51 versões, até o momento, para as mais diversas formações, todas com o mesmo
número de opus, embora acrescentados de um número indicativo da ordem para cada
versão. A versão para duo de violão é o Desafio XXII Op. 31/22. Toda série Desafios é
sempre baseada no mesmo material e tem dois movimentos � �Cadenza� e �Desafio� �
que acabam ganhando novos coloridos, dependendo da instrumentação utilizada.
2.3 - Obra para conjunto de violões
Nobre escreveu ainda duas peças para conjunto de violões que permanecem
inéditas até hoje. Trata-se de Desafio XXIV Op. 31/ 24, versão da citada série, composta
em 2000, e Fandango Op. 69, escrito em 1989, cujos movimentos representam cada um
dos quatro elementos da matéria, na concepção filosófica pré-socrática, conforme
evidenciam seus títulos: �Dança Ritual do Ar�, �Dança Ritual da Água�, �Dança Ritual
do Fogo� e �Dança Ritual da Terra�.
40
2.4 - Obra para violão e voz
A música vocal representa um dos pilares fundamentais da obra de Marlos
Nobre, tendo produzido peças de grande valor para esse gênero no Brasil, como a
cantata Ukrinmakrinkrin Op. 17, O Canto Multiplicado Op. 38 ou Yanomâni Op. 47,
estas com um caráter mais experimental � utilizando a voz quase como um instrumento.
Numa linha mais conservadora, também realizou uma substanciosa contribuição, no
gênero das canções nacionalistas, seguindo uma tradição deixada por compositores
como Lorenzo Fernandez (1897-1948), Francisco Mignone (1897-1986), Camargo
Guarnieri (1907-1993), entre outros.
É digno de nota, o fato de Nobre escrever tantas peças com uma linguagem
mais tradicional, repleta de referências nacionais � mas com uma forte dose de
características pessoais � nos remetendo a toda uma herança da música vocal brasileira
desde a colonização, passando pelas modinhas, até os diversos gêneros cantados da
música popular brasileira.
As peças para violão e voz são, em sua maioria, transcrições feitas no ano
de 1998, a partir dos originais para piano e voz. Por esse motivo, serão analisadas na
ordem cronológica das versões originais e não das transcrições para violão.
O interesse pela composição de música vocal veio desde cedo, pois em
1961, aos 22 anos, Nobre compôs as Três Trovas Op. 6 para soprano e piano, que
ganhou menção honrosa no mesmo ano, no concurso �A canção brasileira� da Rádio
MEC. A versão para soprano e violão foi feita em 1998, sob número de opus 6a. A peça
é formada por três canções intituladas �Lundú�, �Modinha� e �Final�, que foram
escritas sobre o texto de Adelmar Tavares (1888-1963). A versão para violão e voz foi
estreada pelo tenor Reginaldo Pinheiro e pelo violonista Fábio Shiro Monteiro no
Musikwekstatt Schülermühle, em 1998. Os mesmos intérpretes também gravaram a
41
peça pelo selo alemão AUREA VOZ. Existe também uma versão para voz e orquestra da
mesma peça.
No ano seguinte, 1962, compôs mais duas séries de três canções, originais
para voz e piano, que também foram transcritas para violão e voz no ano de 1998: as
Três Canções Op. 951
e Poemas da Negra Op. 10. Das Três Canções Op. 9, a primeira
peça, �Maracatu�, tem texto de Ascenço Ferreira (1895-1965), enquanto que as outras
duas, �Teu Nome� e �Boca de Forno�, levam texto de Manuel Bandeira (1886-1968).
Já os Poemas da Negra Op. 10 foram dedicados a Camargo Guarnieri52 e
todos eles escritos sobre textos de Mário de Andrade (1893-1945). Os movimentos são:
�Você é tão suave�, �Quando� e �Lembrança Boa�. As transcrições para violão e voz de
Três Canções Op. 9 e Poemas da Negra Op. 10 ainda permanecem inéditas. Assim
como Três Trovas Op. 6, também foram realizadas transcrições para voz e orquestra dos
Opus 9 e 10 .
Nobre compôs em 1965 e 1966, respectivamente, Praianas Op. 18 e
Beiramar Op. 21 que, segundo Vasco Mariz, são �uma jóia da canção praieira, com
ambientação digna do melhor Dorival Caymmi�. Estas canções, em estilos tão
tradicionais, foram compostas, surpreendentemente, logo após o estudo do compositor
no Instituto Torcuato Di Tella em Buenos Aires, e sucedem à experimental
Ukrinmakrinkrin Op. 17. Segundo Nobre:
Depois de uma obra tão experimental como Ukrinmakrinkrin era como se minha mente desejasse um repouso, um retorno (...). Não tenho preconceitos de parecer vanguarda ou retaguarda,
para mim isso não existe. Somente existe o impulso forte e
essencial da criação.53
51 Essa peça foi premiada no concurso �A Canção Brasileira da Rádio MEC�. 52 Marlos Nobre era aluno de Guarnieri na época em que compôs estas peças. 53 Entrevista nº 3 (Realizada em 09/07/07).
42
Praianas Op. 18 está dividida em três movimentos (�Canoeiro�, �O Mar� e
�Janaína�) com texto do próprio compositor. A versão para voz e violão foi feita em
1998, e estreadas no mesmo ano por Reginaldo Pinheiro (tenor) e Fábio Shiro Monteiro
(violão) no Musikwekstatt Schülermühle, na Alemanha. Já Beiramar Op. 21, tem o texto
escrito por Marlos Nobre, mas retirado do folclore da Bahia. A versão para voz e violão,
também feita em 1998, ainda permanece inédita. Seus movimentos são: �Estrela do
Mar�, �Iemanjá ôtô� e �Ogum de lé�.
Outra canção original para piano e voz, composta em 1966, que recebeu
uma transcrição para violão e voz em 1998, foi Dengues da Mulata Desinteressada Op.
20, com texto de Ribeiro Couto (1898-1963), poeta e diplomata brasileiro. Esta
despretensiosa canção ganhou o primeiro prêmio no Concurso Cidade de Santos no
mesmo ano da composição54.
Duas peças concebidas originalmente para serem tocadas no violão � ao
contrário de todas as outras canções que primeiramente eram compostas em suas
versões para piano � são também as primeiras peças do compositor a ter o violão em sua
formação: Modinha Op. 23 para canto, flauta e violão de 1966 que, em 1998, teve
também uma versão apenas para violão e voz55, e Dia de Graça Op. 32
56 para voz e
violão, composta em 1968.
Modinha Op. 23 tem o texto do poeta brasileiro Marcos Konder Reis (1922)
e sua estréia (da versão com flauta) deu-se em 1966 no Gaslight Club, no Rio de
Janeiro, com Isabela Saraceni (voz), Luis Eduardo (flauta) e Murilo Alencar (violão). Já
a versão para voz e violão, sem a flauta, ainda não foi tocada.
54 A peça foi estrada no dia 10 de Julho de 1998 no Musikwerkstatt Schülermüle (Alemanha) por
Reginaldo Pinheiro (tenor) e Fabio Shiro Monteiro (violão). A peça também foi gravada pelo mesmo duo. 55 A versão para voz e violão é a de Op. 23c, escrita em 1988. Além dessa versão, há ainda mais duas
outras, para voz e orquestra e outra para voz e piano. 56 Nobre escreveu também versões da mesma peça para voz e piano, e outra para voz e orquestra.
43
A canção Dia de Graça Op. 32 foi gravada57 por Maria Bethânia (voz) e
Jards Macalé (violão) em 1968, e foi composta para o filme de Glauber Rocha Antonio
das Mortes. O texto usado na canção é de autoria do próprio cineasta.
Ainda para violão e voz, existe uma versão da série Desafios. Ao revés das
outras peças da série, que são instrumentais, Desafio XVIII Op. 31/18a (Amazônia II) 58
é cantada. O texto usado na peça é de Marlos Nobre e foi escrito sobre nomes de
pássaros da selva. Essa versão foi feita em 1994 para o Duo de Pádua, formado por
Mônica de Pádua (soprano) e Fernando de Pádua (violão), que estrearam a peça no
mesmo ano no Weil Recital Hall do Carnegie Hall de Nova York.
A exemplo da série Desafios, em 2002, Nobre começa a compor uma nova
série que atualmente já conta com 16 versões: a série Poemas. A versão para voz e
violão é o Poema V (Raio de Luz) Op. 94 No. 5a, escrita em 2002 com texto do próprio
compositor. Essa é, até o momento, a última peça do compositor para esta formação.
2.5 - Obra para violão e coro
No ano de 1980, depois de dois anos sem compor � o que, nas palavras do
compositor, seria �uma pausa para respirar, olhar para trás e depois recomeçar�, �
Nobre escreveu duas de suas peças mais importantes, Sonâncias III Op.48 para dois
pianos e dois percussionistas, e Yanomâni Op. 47 para coro misto, tenor e violão. Esta
última é ainda uma das mais importantes e bem sucedidas obras sobre a temática
indígena escrita no Brasil.
Yanomâni foi uma encomenda do Choeur des XVIème de Friburgo (Suíça),
que a estreou na Igreja Reformada de Friburgo, em 1981, sob a regência de Jean-
Jacques Martin, com Olivier Rumpf (tenor) e Dagoberto Linhares (violão). O texto foi
57 Estúdio MAPA no Rio de Janeiro. 58 Assim como Amazônia I para voz e orquestra de cordas.
44
escrito por Marlos Nobre utilizando sons anomatopéicos e trechos em português, e
representa o ritual dos índios após a morte de um cacique.
Nobre conta que:
Os Yanomames são o último grande povo indígena do Brasil,
sobrevivente à civilização. Eu estive com eles e a coisa que mais
me impressionou foi um ritual depois do assassinato de um grande chefe dos Yanomami, por colonos brancos. O ritual é
impressionante porque a morte para o indígena significa a perda
da cultura, mas o morto deve reintegrar-se a seu povo através
desse ritual (...). Não houve intenção documental. A obra é
construída com uma linguagem atual e contemporânea, utiliza uma escrita aleatória controlada. O sistema é o mais livre
possível, mas está estruturado serialmente, porque atualmente
trabalho com a série; uso a politonalidade, a multitonalidade e,
sobretudo, enfrento a questão rítmica (...). É portanto uma forma ditada pela idéia emotiva.
59
O resultado disso é uma música preocupada mais em expressar esse
conteúdo simbólico do que qualquer idéia etnográfica. Paulo de Tarso Salles diz que
formas canônicas, escalas modais, pentatônicas, glissandos,
clusters, são elementos mesclados pelo compositor sem nenhuma hierarquia a não ser sua adequação ao conteúdo
expressivo. Consideramos assim que Marlos Nobre tenha atingido em Yanomami uma expressão significativa para uma
música nacional, porém sem as limitações da orientação
nacionalista nem de um modernismo ortodoxo.60 O violão utiliza, nesta peça, uma scordatura incomum (Ré, Sol#, Dó#, Fá#,
Si e Mi) e segundo Quadrio �é usado ora como apoio percussivo, ora criando atmosferas
de delicadas sonoridades� 61.
O exemplo seguinte mostra um trecho da peça no qual sons onomatopéicos,
que lembram fonemas indígenas, são combinados com palavras da língua portuguesa,
simbolizando um ataque dos colonizadores brancos à tribo.
59 Apud. Paulo de Tarso Salles, Abertura e Impasses: O Pós-modernismo na Música e seus Reflexos no
Brasil � 1970-1980, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 197. 60
Ibidem. p. 202. 61 Apud. Paulo de Tarso Salles, p. 199.
45
Exemplo 9: Yanomâni (Marlos Nobre), comp. 86-90:
2.6 - Obra para violão e orquestra
Em 1980, Nobre escreve o Concerto Op.51 para Violão e Orquestra, em três
movimentos (�I-Dramático e tenso�, �II-Etéreo� e �III-Fantasmagórico�), sob
encomenda da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, que acabou por não tocá-la, pois foi
constatado que o violonista não estava bem preparado para executar a peça. O Concerto
está sendo revisto pelo compositor que já está preparando a sua estréia.
A outra obra do gênero que tem o violão como solista é o Concerto Op. 82
para dois violões, orquestra de cordas, tímpanos e percussão, composta em 1995 sob
encomenda da GHA Records S.C. de Bruxelas. Essa peça teve uma boa acolhida por
parte da crítica e do público, e teve sua estréia em 1998, no Teatro São Pedro, em São
Paulo, com o Duo Assad62 e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob
62 O Concerto também foi dedicado ao Duo Assad.
46
regência de John Nechling. Posteriormente, os mesmos intérpretes fizeram uma turnê
pelos Estados Unidos tocando esse concerto.
O Concerto Op. 82, com cerca de trinta minutos de duração, está dividido
em quatro movimentos. O primeiro movimento, �Concerto Grosso�, se insere dentro da
tradição dos concertos barrocos, e os violões têm mais um papel de baixo contínuo do
que propriamente de solistas, ainda que tenham trechos muitas vezes virtuosísticos e
contenha uma cadenza ao estilo dos concertos do século XIX. O segundo movimento,
�Cadenza-Toccata Concertante�, é uma espécie de reinterpretação estendida da
Homenagem a Villa-Lobos Op.46. No terceiro movimento, �Aria-Scherzo-Aria�, paira
uma certa reminiscência do segundo movimento do Concierto de Aranjuez, de Joaquín
Rodrigo (1902-1999), embora a intenção tenha sido recriar o espírito de uma ária
barroca, pois o solo do violoncelo seria uma homenagem a Luigi Bocherini (1743-
1805). O concerto termina num brilhante e virtuosístico movimento intitulado �Presto
com Fuoco Alucinante�. O compositor espanhol Tomás Marco (1942), considera esse
um dos melhores concertos já escritos para dois violões63.
Em Concerto Op. 82 observam-se dois exemplos da �recontextualização
musical� típica de Nobre. Além do segundo movimento que usa o tema da Homenagem
a Villa-Lobos, o primeiro movimento desse concerto é uma releitura do primeiro
movimento do Concertante do Imaginário Op.74, de 1989, para piano e cordas.
2.7 - Obra para formações diversas incluindo o violão
Nobre escreveu várias peças de câmara com formações diversas, incluindo o
violão. Entretanto, ele acredita que o violão, como instrumento camerístico, ainda não
teve suas possibilidades timbrísticas totalmente entendidas pelos compositores
63 Tomás Marco, Marlos Nobre: El Sonido del Realismo Mágico. p. 93.
47
contemporâneos64. Na série Desafios, além das já comentadas peças Desafio XVIII Op.
31/18a (Amazônia II) (1994), para voz e violão, e Desafio XXII Op. 31/22 (2003), para
dois violões, o compositor escreveu ainda mais seis peças para a série, incluindo o
violão em sua formação, buscando em cada uma delas diferentes expressões e
possibilidades tímbricas decorrentes de cada formação. São elas:
Desafio XX Op. 31/19 para violino, violão e violoncelo (1984);
Desafio XX Op. 31/20 para flauta, violão e violoncelo (1984);
Desafio XXI Op. 31/21 para violão e harpa (1992);
Desafio XXIII Op. 31/23 para dois violões e orquestra de cordas (2004).
Desafio XXIII Op. 31/23a para violão e piano (1992);
Desafio XXXIII Op. 31/ 33 para flauta e violão (1997).
Exemplo 10: Desafio XXXIII (Marlos Nobre), comp. 1-6:
Ademais, escreveu ainda duas peças incluindo violão e percussão em sua
formação. Em 1980, compôs Sonâncias II Op. 48, para a incomum formação flauta,
violão, piano e percussão, seguindo o mesmo espírito de Sonâncias I Op. 37 (1972),
64 Colin Cooper, �Marlos Nobre: Speaking Internationally� in Classical Guitar Volume 12 No. 3
(Novembro, 1993) p. 12.
48
para piano e percussão e Sonâncias III Op.49 (1980) para dois pianos e dois
percussionistas. Em 1989, escreveu o ainda inédito Duo Op. 71 para violão e percussão.
Nessa peça, o percussionista usa a marimba, xilofone e vibrafone.
Os instrumentos de percussão sempre tiveram um papel importantíssimo na
obra de Marlos Nobre, uma vez que dois dos principais elementos nos quais esse
compositor baseia sua técnica são o ritmo e o timbre. Além do Duo Op. 71 e de
Sonâncias II Op. 48, nos quais o violão também é utilizado, Nobre usou a percussão em
importantes peças suas como Variações Rítmicas Op. 15, Canticum Instrumentale Op.
25, Rhythmetron Op. 27, Sonâncias I e III, Sonante I e II, Concerto para Percussão e
Orquestra Op.89, entre outras.
2.8 - Conclusão
A partir desse levantamento sobre o violão na obra de Marlos Nobre, é
possível observar a importância que esse instrumento sempre teve para o compositor.
Sua obra chama a atenção não só pela extensão, mas também pela variedade de técnicas,
procedimentos, estilos, formações instrumentais e recursos tímbricos utilizados. Como
já foi comentado acima, existem exemplos de praticamente todas as fases
composicionais de Nobre em sua obra violonística. No Brasil, a sua produção para
violão, possivelmente, só encontra paralelos nas obras de Heitor Villa-Lobos, Francisco
Mignone e Radamés Gnattali.
Nobre diz que um de seus principais objetivos é criar uma nova linguagem
para o violão, fugindo aos clichês usuais dos compositores violonistas e criando peças
mais ambiciosas65. O compositor acredita que o violão tem um papel que está se
65 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 37, 25 de outubro de 2003, acessado 8 de abril de 2006.
49
tornando cada vez mais importante na música contemporânea66, daí seu grande esforço
para criar uma vasta obra para o instrumento.
66 Colin Cooper, �Marlos Nobre: Speaking Internationally� in Classical Guitar Volume 12 No. 3
(Novembro, 1993) p. 14.
50
CAPÍTULO 3
Reminiscências Op. 78
Reminiscências Op. 78 é uma das mais importantes peças para violão solo
do compositor Marlos Nobre. Foi composta entre novembro de 1990 e maio de 1991,
portanto pertencente à sua quinta fase composicional, mais recente e madura. Em
Reminiscências Op. 78, assim como acontece em outras peças desta fase, fica muito
evidente a interação entre elementos característicos da música contemporânea e outros
mais tradicionais da música tonal.
A peça está dividida em três movimentos que levam o nome dos
respectivos gêneros da música popular urbana brasileira que os inspiraram, formando
uma suíte com alguns dos ritmos que povoaram a infância do compositor. Os
movimentos são: �I - Choro�, �II - Seresta� e �III - Frevo�. Estes movimentos foram
dedicados respectivamente aos violonistas cariocas Marcus Llerena e Marcelo Kayath e
ao pernambucano, radicado na Suíça, Joaquim Freire. Estes três violonistas alcançaram
reconhecimento tanto no Brasil como no exterior e foram grandes divulgadores da obra
para violão de Nobre.
A motivação para o compositor começar a escrever a peça partiu de um
pedido do violonista Marcelo Kayath, que lhe solicitou ao compositor uma peça inédita,
para ser incluída em um CD, contendo as peças prediletas do violonista. Nobre
prontamente aceitou o desafio de compor uma peça �favorita� que, como expusemos,
nem existia ainda. A peça em questão era a �Seresta� que nasceu como uma
�Homenagem a João Pernambuco�. Em 1993, foi feita a sua gravação no CD intitulado
Guitar Favourites. Sobre a �Seresta�, Nobre diz que:
51
há lembranças minhas claras do estilo em geral de João
Pernambuco, por exemplo, os baixos descendentes, algumas suspensões harmônicas características, o estilo seresteiro, que,
aliás, são, o estilo muito genérico dos �chorões� tanto de Pernambuco quanto do Rio de Janeiro que eu de certa maneira, procurei homenagear nesta minha �Seresta�.
67
João Pernambuco (João Teixeira Guimarães) (1883-1947), a quem Nobre
se remete nesta peça, foi um importante nome para o choro e para o violão brasileiro.
Ele deixou peças que viraram clássicos da música popular brasileira, tais como Caboca
di Caxangá e Luar do Sertão, ambas em parceria com Catulo da Paixão Cearense
(1863-1946). Apesar de não saber escrever música (nem mesmo era alfabetizado),
muitas de suas peças para violão solo, como Sons de Carrilhões, Dengoso, Pó de Mico,
entre outras, são tocadas por violonistas de todo o mundo e fazem parte do aprendizado
da maioria dos violonistas brasileiros.
Durante a sua infância, Nobre ouvia constantemente a música de João
Pernambuco, afinal esta era tocada nos encontros de violonistas freqüentados pelo
jovem em companhia de seu pai. Assim, ao recordar aquele momento de sua vida, o
compositor abandonou parcialmente a idéia de fazer uma �Homenagem a João
Pernambuco�, e escreveu, então, dois outros movimentos, fazendo da peça uma
lembrança daqueles encontros. Após isso, o compositor renomeou a peça, dando-lhe o
título com o qual ela é conhecida hoje: Reminiscências. No encarte do CD de Joaquim
Freire, Nobre comenta, da seguinte forma, a sua inspiração para escrever a peça:
As Reminiscências resultam da forte recordação emocional das
reuniões, a que assisti em minha infância em Recife, na qual
participavam meu pai e um grupo de violonistas amadores e profissionais da cidade, todos eles absolutamente obcecados pelo violão. As reuniões repetiam-se aos domingos à tarde, e
nelas o que mais me seduzia era um violonista magro, simples, moreno, de dedos esquálidos, chamado Amarildo. Um boêmio
inveterado, tímido, silencioso e humilde, transformava-se em
67 Entrevista nº 1 (realizada no dia 09/04/07).
52
um virtuoso endiabrado, no calor das reuniões, e emudecia a
todos demonstrando uma técnica absolutamente assombrosa. A fascinação que sua execução exerceu sobre mim, foi o
verdadeiro despertar do meu interesse pelo violão, guiado pelo meu pai, um violonista amador. Amarildo costumava improvisar choros, valsas, frevos, serestas, polkas e outras formas, com temas dados na hora, pelos presentes. Assim, ao compor Reminiscências, em 1991, as peças foram
escritas quase que em um estado de �transe emocional� puro.
Não pude me furtar ao envolvimento emocional daquele
ambiente efervescente e criativo, das reuniões dos chorões de
Recife nos idos de 1945-1950.68
Dessa forma, Reminiscências passa a representar, não só a visão do
compositor acerca da música de João Pernambuco, mas evoca todo um ambiente
musical onde eram tocados os mais diversos gêneros brasileiros e no qual o violão tinha
um papel fundamental. Outro dado importante é a referência à figura de Amarildo, um
violonista virtuose da época, que tinha uma forma bem peculiar de tocar, valorizando a
polifonia. Nobre recorda que seu pai lhe chamava a atenção para este fato em particular
e isto acabou ficando marcado na memória do compositor, que costuma explorar muito
a polifonia em sua obra para violão, e não poderia ser diferente no caso de
Reminiscências.
Além disso, o compositor tenta, nessa peça, cristalizar vários aspectos do
estilo e da forma característica de execução do violão no Brasil, representados pelos
gêneros: choro, seresta e frevo. Segundo as palavras do compositor, a peça representa
uma �homenagem minha a este estilo profundamente brasileiro de fazer soar o
violão�69.
Certamente, grande parte dos referidos elementos estilísticos da música
brasileira presentes em Reminiscências também podem ser encontrados na música de
68 Marlos Nobre, Joaquim Freire � Texto do Encarte do CD LC44601, Léman Classics, 1993. 69 Entrevista nº 1 (realizada no dia 09/04/07).
53
João Pernambuco, assim como em muitas peças de tantos outros �chorões�70 do Brasil.
Da mesma forma, também se pode observar nesta peça a influência de Ernesto
Nazareth71 (1863-1934), cuja obra para piano teve grande importância na formação
musical de Nobre, e que não deixa de ser lembrado também em Reminiscências72
.
Assim, segundo o compositor, esta peça é �uma tripla homenagem a João Pernambuco,
Ernesto Nazareth e aos �chorões� do Rio de Janeiro e Pernambuco�, além da referência
ao �estilo profundamente brasileiro de fazer soar o violão� 73.
A primeira audição mundial de Reminiscências Op. 78 aconteceu em
setembro de 1991, em Londres, pelo violonista Lawrence Tender74. Desde então, a
crítica e os violonistas são consoantes em afirmar sobre a importância e as dificuldades
de execução da peça. Para o violonista Moacyr Teixeira Neto, em seu livro Música
Contemporânea para Violão, �a suíte Reminiscências talvez seja uma das obras [para
violão] mais ambiciosas do compositor e é também uma de execução mais difícil,
constituindo-se um desafio ao intérprete�75. Diz ainda, Teixeira Neto, �tratar-se de uma
das mais comentadas obras da atualidade�76. Marcus Llerena, em entrevista ao periódico
Apolon Musagete, reafirma a importância da peça da seguinte forma:
Trata-se de uma das melhores obras, para violão, escrita por
brasileiro nos últimos anos. Foi escolhida como �Peça de
confronto� de um dos mais importantes concursos de violão da
França e tenho certeza que o violonista que não for brasileiro terá
muita dificuldade na interpretação do frevo. 77
70 Chorão é o termo comumente usado para o músico que toca o choro. 71 O compositor e pianista Ernesto Nazareth é considerado popular por alguns musicólogos e erudito por
outros. Ele escreveu mai de 200 peças para piano, entre valsas e tangos brasileiros, que imitavam a forma com que os conjuntos de choro tocavam. 72 Entrevista nº 1 (realizada no dia 09/04/07). 73 Ibidem. 74 Ver Tomás Marco, Marlos Nobre. El Sonido del Realismo Mágico. p. 190. 75 Moacyr Garcia Texeira Neto, Música Contemporânea Brasileira para Violão, Vitória: Gráfica e
Editora A1, sd, p. 41. 76 Ibidem, p. 63. 77 Marcus Llerena Apud Moacyr Garcia Texeira Neto, Música Contemporânea Brasileira para Violão. p. 63.
54
As dificuldades de execução, referidas acima por Teixeira Neto, são
intrínsecas à própria intenção da peça, pois fazem alusão ao citado �virtuosismo
endiabrado� de Amarildo que a peça pretende evocar. Por outro lado, como lembra
Llerena, há ainda as dificuldades de interpretação ligadas às características de execução
dos gêneros da música brasileira que serviram de fonte para as peças. Mesmo sendo a
escrita de Marlos Nobre, normalmente, muito detalhista, um estudo mais profundo das
formas de execução e �pronúncia� da música popular brasileira são indispensáveis para
uma execução coerente da peça. Este assunto também será tratado mais profundamente
nos próximos capítulos.
A despeito da dificuldade de execução de Reminiscências Op. 78, esta peça
tornou-se a composição para violão solo mais tocada e mais gravada deste compositor.
Até o momento, a peça já foi gravada cinco vezes. As primeiras gravações foram feitas
pelos violonistas Marcus Llerena e Joaquim Freire � a quem estão dedicados,
respectivamente, os movimentos �Choro� e �Frevo� � mais ou menos na mesma época,
no ano de 1993, o primeiro pelo selo Velas, e o segundo pela Léman Classics78. A estas
gravações, seguiram-se as de Kurt Schneeweiss e Fábio Shiro Monteiro. Mais
recentemente, em 2006, o jovem violonista gaúcho, Thiago Colombo de Freitas, fez
mais uma gravação da peça, em um CD independente intitulado �Reminiscências�.
Atestando a importância da peça, Reminiscências Op. 78 foi escolhida como
peça de confronto no Concours International d�Exécution Musicale de Genève (CIEM)
no ano de 1995, no qual o violonista búlgaro George Vassilev obteve o primeiro
prêmio. Posteriormente, em 2000, esse violonista gravou um CD com Yanomâni de
Nobre.
78 Apesar de Marcus Llerena ter sido o primeiro a gravar a peça, em abril de 1993, a gravação de Joaquim Freire, pelo selo suíço Léman Classics, foi a primeira a ser lançada.
55
Em 1994, Reminiscências Op. 78 foi publicada pela editora francesa
Editions Henry Lemoine, tendo como responsável pela edição o violonista argentino
Roberto Aussel que já editara no ano anterior Entrada e Tango Op. 67. Em 1998, a
mesma editora publicou também Rememórias Op. 79.
Apesar de ter sido publicada dentro da �Collection Roberto Aussel�, as
digitações que aparecem na edição de Reminiscências Op. 78 foram colocadas pelo
próprio compositor, levando em consideração o próprio conhecimento adquirido sobre o
violão, e tendo como base as digitações de Marcelo Kayath e Marcus Llerena.
3.1 - Sobre os Critérios para a Elaboração da Edição Presente neste
Trabalho.
A edição de Reminiscências Op. 78, parte integrante deste trabalho, é o
reflexo das conclusões sobre as questões nele levantadas. Em geral, a edição, assim
como a interpretação musical, resulta de estudos sobre os vários aspectos que compõem
uma peça e o seu entorno. Portanto, de certa forma, todos os dados e questionamentos
levantados nesta pesquisa, convergem para a realização da referida edição e, também,
para as informações sobre a interpretação musical de Reminiscências Op. 78 presentes
no corpo do texto.
Sobre ato de editar, James Grier, no livro The Critical Editing of Music,
afirma que editar
consiste em uma série de escolhas críticas e instruídas; em
resumo, um ato de interpretação. Editar, além do mais, consiste
na interação entre a autoridade do editor e a autoridade do
compositor. (...) Editar, conseqüentemente, consiste em um
equilíbrio entre essas duas autoridades. Além do mais, o balanço
preciso, presente em cada edição em particular, é produto direto
do compromisso crítico do editor com a peça editada e suas
fontes.79 79 �Editing, therefore, consists of series of choices, educated, critically informed choices; in short, the act
of interpretation. Editing, moreover, consist of the interaction between the authority of the composer and the authority of the editor.(�) Editing, therefore, comprise a balance between these two authorities.
Moreover, the exact balance present in any particular edition is the direct product of the editor�s critical
56
As escolhas feitas aqui durante todo o processo de editoração de
Reminiscências Op. 78 levaram em conta as intenções originais do compositor, mas, por
outro lado, não deixam de refletir a interpretação das fontes usadas pelo editor, num
processo semelhante àquele do executante ao interpretar alguma peça. Nesse sentido,
James Grier, chama a atenção para o fato de que, tanto o executante, quanto o editor, a
partir do mesmo estímulo (a notação), respondem com base em critérios de
conhecimento e gosto estético. A diferença entre eles estaria apenas no resultado final
que, para o executante, é o som e, para o editor, a página impressa.
Em nossa edição, incluímos novas digitações tendo em vista a sua
importância no resultado final da execução de uma peça, estreitando, ainda mais, o
vínculo existente entre edição e interpretação musical. Por isso, mesmo não sendo nossa
intenção, pode-se até afirmar que se trata de uma edição interpretativa80 de
Reminiscências Op. 78, devido ao fato de muitas escolhas de digitação, presentes na
edição, terem sido resultado também das escolhas de interpretação musical dadas pelo
editor, tal como será demonstrado adiante.
As inserções de novas digitações, entretanto, não constituem desrespeito às
intenções originais do compositor, mas, ao contrário, quaisquer modificações nas
digitações foram orientadas por criteriosas escolhas com o intuito de reforçar aquilo que
o editor julgou ser intenção do compositor que, não sendo violonista, podia desconhecer
certos detalhes muito particulares e especializados da técnica do instrumento. Aliás, é
importante destacar que Marlos Nobre, mesmo sendo ele um pianista de grande
capacidade, nunca coloca os dedilhados em suas próprias peças para piano, deixando-os
engagement with the piece edited and its sources.�, James Grier, Critical Editing of Music, Nova York, Press Sydicate of the University of Cambridge, 1996, pp. 2-3. 80 Edição interpretativa pode ser conceituada como aquela que contribui com informações sobre o modo de interpretar a peça editada.
57
a critério de seus intérpretes. Apesar disso, no caso de suas peças para violão, as
digitações foram colocadas a pedido das editoras, por questões comerciais, a fim de
facilitar o acesso destas publicações aos estudantes81.
Considerando a edição de uma partitura um ato de interpretação da mesma,
o objetivo aqui não é, em hipótese alguma, o de se fazer uma edição definitiva de
Reminiscências Op. 78, mas apenas o de demonstrar e explicar uma possível
interpretação da peça, na ótica do editor. A fim de reforçar a convicção de que não
existe uma interpretação ideal ou definitiva, e sim uma infinidade de formas que ela
pode assumir conforme as escolhas pessoais e circunstanciais de cada intérprete,
transcrevemos abaixo uma citação de Luigi Pareyson sobre o tema:
A primeira coisa que salta à vista no fenômeno da interpretação
é a sua infinidade: a interpretação é infinita quanto ao seu número e ao seu processo. Por um lado, não há interpretação
definitiva, nem processo de interpretação que, alguma vez, possa
dizer-se verdadeiramente acabado: a série das revelações não
está nunca fechada, e toda proposta de interpretação é passível
de revisão, integração, aprofundamento, e há sempre alguma
nova circunstância que a desmente, limita, ou corrige: cada vez
que se relê uma obra, o processo de interpretação que se
mantinha fechado reabre-se, e tudo é recolocado em questão;(...)
Por outro lado, as interpretações são muitas, tantas quantas as
pessoas que se aproximem de uma determinada obra, e até mais,
se pensarmos nas mudanças a que, no curso de sua vida, uma
mesma pessoa é levada, sob o estímulo de novas circunstâncias
e de novos pontos de vista: não é sem razão que, quando se fala
de matéria interpretável, pensa-se logo no dito tot capita tot
sententiae, já que a interpretação é, geralmente, qualificada pelo
possessivo, �minha, tua, sua interpretação�, sempre
personalíssima, por isso múltipla, ou melhor, infinita.82
3.2 � Procedimentos
Para elaborar a edição de Reminiscências Op. 78, apresentada no final da
dissertação, foram utilizados como fontes o manuscrito autógrafo de Marlos Nobre de
81 Entrevista nº 2 (realizada no dia 23/06/07). 82 Luigi Pareyson, Os Problemas da Estética, 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 165.
58
Reminiscências; a edição � da mesma peça � que foi publicada pela Editora Henry
Lemoine, em 1994; e a versão para piano de �Frevo� publicada pela Editora Música
Nova, em 1985.
Para se chegar à versão aqui apresentada, foram feitas comparações entre as
diferentes fontes, além de consultas ao compositor, com a finalidade de esclarecer
dúvidas sobre as suas intenções originais. Todas as diferenças, encontradas entre o
manuscrito e a edição, serão apontadas e comentadas logo adiante.
Da versão para piano do �Frevo�, foi aproveitada a maior parte das
indicações de articulação e de caráter que não estão presentes nem no manuscrito, nem
na edição, da versão para violão. Mesmo sendo, o piano e o violão, instrumentos com
características técnicas e de produção sonora diferentes, acreditamos que as referidas
indicações de articulação e caráter, presentes na versão para piano, representam, no
mínimo, uma possibilidade mais detalhada de interpretação dada pelo próprio
compositor, fato este que, por si só, já justificaria a inclusão dos referidos detalhes,
mesmo que só como referência.
Entretanto, em entrevista realizada para este trabalho, o compositor informou
que, intencionalmente, não colocou na partitura para violão um detalhamento tão
acentuado quanto no �Frevo� para piano. Por outro lado, Nobre diz que, �também neste
caso, é essencial um conhecimento prévio de como se tocam os frevos pelas orquestras
típicas de frevo de Pernambuco�83. A despeito da fonte de informação, que são as
referidas indicações presentes no �Frevo� para piano, entendemos que o compositor
optou por dar mais liberdade de escolha para o intérprete, por isso incluímos também
uma versão do �Frevo� sem os acréscimos das indicações de articulação da versão para
piano.
83 Entrevista nº 1 (realizada no dia 09/04/07).
59
Acreditamos que, ao optar pela versão com inclusão das articulações, o
intérprete não precisa seguir todas as indicações que estão escritas; basta escolher,
dentre elas, as que lhe forem mais convenientes. O executante também terá a opção de
modificar as articulações ao seu gosto � desde que dentro do estilo � já que o próprio
compositor deu esta possibilidade ao não incluí-las na partitura para violão.
A digitação sugerida neste trabalho teve como base a que aparece na
partitura de Reminiscências Op.78 editada pela Henry Lemoine84, pois refletem muito a
intenção do compositor, uma vez que ele mesmo as inseriu e revisou. Contudo,
inúmeras modificações nas digitações foram feitas: em alguns momentos, no intuito de
facilitar a execução da peça; já em outras situações, o objetivo foi buscar uma maior
aproximação da sonoridade característica da música popular brasileira que inspirou a
composição da peça, utilizando, para isso, determinados recursos técnicos próprios do
instrumento.
As indicações de dedilhados da mão direita e dos procedimentos técnicos a
serem utilizados também foram inseridas na partitura, com a finalidade de facilitar o
aprendizado da peça por outros violonistas.
3.3 - Diferenças entre Manuscrito de Marlos Nobre e a Edição da
Henry Lemoine
A edição de Reminiscências Op. 78, feita pela editora francesa Henry
Lemoine em 1994, é, em geral, bastante fiel ao manuscrito do próprio compositor,
entretanto, há algumas diferenças que merecem destaque. Por outro lado, o manuscrito
autógrafo da peça também contém pequenas incorreções, além de só apresentar
digitação em um trecho do primeiro movimento.
84 No manuscrito só aparecem as digitações de um pequeno trecho do �Choro�.
60
A seguir, estão relacionadas e comentadas as diferenças encontradas entre as
duas versões, a fim de chegar a um consenso para uma nova edição da peça.
3.3.1 � Primeiro Movimento: �Choro�
Título Manuscrito � Não há indicação de dedicatória. Edição Henry Lemoine � Com a indicação �à
Marcus LLERENA�.
Segundo informação de Marlos Nobre em entrevista, a dedicatória ao
violonista Marcus Llerena não consta no manuscrito porque ela só foi feita depois que a
peça já estava pronta e que o compositor viu a execução de Reminiscências pelo
homenageado. Por essa razão também optamos por incluir a dedicatória.
Título Manuscrito � Apresenta o número de catalogação
�Op. 83�. Edição Henry Lemoine � Apresenta o número de
catalogação �Op. 78�.
A catalogação que aparece na edição Henry Lemoine é a correta.
Compasso 29 Manuscrito � A primeira semicolcheia do primeiro tempo deste compasso é separada das três outras
restantes. Edição Henry Lemoine � As quatro semicolcheias do primeiro tempo deste compasso estão
agrupadas.
Este tipo de separação do grupo de semicolcheias enfatiza a organização
formal da peça. Neste caso, significando que a frase conduz até o �Dó5� (primeira
61
semicolcheia do compasso), sendo o que se segue uma nova idéia. Optamos em deixar
tal como está no manuscrito.
Compassos 31 e 54 Manuscrito � Barras duplas separando estes compassos e o seguinte. Edição Henry Lemoine � Não há barra dupla.
Estas duas barras duplas presentes no manuscrito reforçam, mais uma vez, a
estrutura formal da peça, estabelecendo a separação entre as diferentes partes. No caso
específico do gênero choro, em geral, cada parte tem um caráter mais ou menos
diferenciado, assim como acontece no �Choro� de Marlos Nobre, reforçando a
importância de deixar mais clara as separações.
Compasso 75 Manuscrito � Indicação �Como uma recordação�. Edição Henry Lemoine � Indicação �Come uma
recordação�.
Esse erro, aparentemente insignificante, foi devido, provavelmente, à não
compreensão do editor da letra do manuscrito, revelando uma certa incoerência da
edição em utilizar indicações de tempo e caráter, ora escritos em português, ora em
italiano. Com o objetivo de padronizar a língua usada e tornar compreensíveis as
indicações aos instrumentistas de qualquer nacionalidade, optamos em traduzir as
indicações que estavam em português para o italiano, língua tradicionalmente usada
para essa finalidade.
A edição Lemoine também não é coerente com relação ao uso do indicativo
de pestana, pois, apenas entre os compassos 75 e 90, foi usado esse indicador como �C�
(do espanhol �Ceja�), enquanto no restante da peça, foi usado �B� (do françês �Barré�).
62
Em nossa edição, padronizamos a indicação da pestana com a utilização de �C� por ser
a mais comum.
Compasso 76
Manuscrito � Há uma portato na nota �Lá4� do
primeiro tempo da voz superior. Edição Henry Lemoine � Não há indicação de
portato na nota �Lá4� do primeiro tempo.
A omissão foi possivelmente uma incorreção da edição, pois é coerente com
toda a escrita desta seção.
Compasso 76 Manuscrito � A primeira semicolcheia do segundo tempo deste compasso é separada das três outras
restantes. Edição Henry Lemoine � As quatro semicolcheias do segundo tempo deste compasso estão
agrupadas.
A separação do grupo de semicolcheias que é feita no manuscrito, neste
caso, parece desnecessária, pois não esclarece a organização formal da peça. Ademais,
não é coerente com outros momentos da mesma peça, nos quais o mesmo trecho (ou
trechos semelhantes) está escrito sem a referida separação, como, por exemplo, no
compasso 84. Mantivemos tal como a edição.
Compasso 82 Manuscrito � Barra dupla separando este compasso e o próximo. Edição Henry Lemoine � Não há barra dupla.
A barra dupla que aparece no manuscrito, no compasso 82, não foi utilizada
em nossa edição, pois julgamos que estão subdividindo desnecessariamente uma secção
única.
63
Compasso 84 Manuscrito � Há uma portato na nota �Lá4� do
primeiro tempo da voz superior. Edição Henry Lemoine � Não há indicação de
portato na nota �Lá4� do primeiro tempo.
A omissão foi possivelmente uma incorreção da edição, pois é coerente com
toda a escrita desta seção.
Compasso 86
Edição Henry Lemoine � Falta a indicação de
quiáltera sobre o segundo tempo deste compasso.
O editor não colocou a indicação de quiáltera no segundo tempo do
compasso, embora pela escrita seja possível supor a sua existência. Preferimos incluir a
quiáltera para não deixar qualquer dúvida sobre a divisão rítmica do trecho.
Compasso 88 Manuscrito � Não há indicação portato em nenhuma nota do segundo tempo da voz inferior. Edição Henry Lemoine � Há indicação de portato apenas na segunda colcheia do segundo tempo da voz inferior..
No manuscrito, não aparece o portato nem na primeira, nem na segunda
colcheia do segundo tempo da voz inferior. Já na edição citada, foi colocada apenas o
portato da segunda colcheia. Ocorre que, comparando-se ao compasso 84, no qual
aparece uma figuração semelhante, conclui-se que deve ser colocado o portato nas duas
colcheias em questão.
Compasso 90 Manuscrito � Barra dupla separando este compasso e o próximo. Edição Henry Lemoine � Não há barra dupla.
64
Apesar de não delimitar uma seção, como as outras barras duplas deste
movimento, no compasso 90, a referida anotação está reforçando uma mudança de
andamento que ocorrerá nesse trecho da peça, por isso mantivemos em nossa edição.
Final da Peça
Manuscrito � Local e data da composição da
seguinte forma: �Rio de Janeiro, 04 de maio de
1991�. Edição Henry Lemoine � Não há informações
sobre o local e data da composição.
Decidimos incluir o local e data da composição como elementos de
contextualização necessários a uma melhor interpretação da peça.
3.3.2 � Segundo Movimento: �Seresta�
Título Manuscrito � Não há indicação de dedicatória.
Edição Henry Lemoine � Com a indicação �à
Marcelo KAYATH�.
Embora não conste no manuscrito, foi visto que quando Marlos Nobre
compôs sua �Seresta�, inicialmente como �Homenagem a João Pernambuco�, já havia a
dedicatória a Marcelo Kayath.
Título Manuscrito � Repete o título da peça:
�REMINISCÊNCIAS Para violão Opus 83 e, em
seguida, o título do movimento: �II. SERESTA�. Edição Henry Lemoine � Só apresenta o título do
movimento: �II. SERESTA�.
Assim como feito na edição Henry Lemoine, julgamos desnecessário repetir
o título da peça a cada novo movimento.
Compasso 4 Manuscrito � Fermata na nota �Lá� do primeiro
65
tempo. Edição Henry Lemoine � Não há indicação de
fermata.
A omissão desta fermata por parte do editor pode ter-se dado devido ao
tenuto que já está na partitura. Acreditamos, entretanto, que a colocação da fermata
neste ponto tem o objetivo de reforçar a necessidade de sustentar esta nota por um
tempo maior, razão pela qual optamos pela sua inclusão.
Compasso 11, 13,
17, 29, 31, 79, 81,
85
Manuscrito � Acordes arpejados. Edição Henry Lemoine � Não há indicação de
arpejos (acordes plaquê).
O editor omitiu todas as indicações de acordes arpejados que estão no
manuscrito deste movimento, embora tenha deixado as indicações de arpejos no
�Choro� e no �Frevo�. Facilmente, observa-se entre os violonistas populares, em
especial os seresteiros, o uso constante arpejos nos acordes. No caso dessa peça de
Marlos Nobre, que pretende evocar a forma peculiar com que os chorões tocavam o
violão, todos estes arpejos são pertinentes. Outrossim, são dados extras que expressam,
com mais detalhes, a vontade do compositor e, por isso, são indicações indispensáveis.
Compasso 15 Manuscrito � Não há indicação de a tempo.
Edição Henry Lemoine � Não há indicação de a
tempo.
Mesmo não havendo nenhuma indicação de a tempo no compasso 15, nem
do manuscrito nem da edição, seguindo a coerência de outros trechos similares a esse,
66
como, por exemplo, o compasso 11, a indicação a tempo deve ser inserida, corrigindo a
omissão.
Compasso 22, 40,
57
Manuscrito � Barra dupla separando este compasso e o próximo. Edição Henry Lemoine � Não há barra dupla.
Tal como aconteceu no �Choro�, o editor omitiu diversas barras duplas
presentes no manuscrito, que, a nosso ver, eram de grande importância para delimitar a
estrutura formal, tal como explicado anteriormente.
Compasso 23 Manuscrito � Indicação: �Calmo = 63�.
Edição Henry Lemoine � Indicação: �Calmo
(Tempo I)�, ou seja, = 72.
Segundo entrevista feita com o compositor, deve prevalecer a versão que
está indicando a colcheia = 72, tal como na edição.
Compasso 32 Manuscrito � Notas do primeiro tempo da voz inferior: Lá, Fá, Sol. Edição Henry Lemoine � Notas do primeiro tempo da voz inferior: Lá, Sol, Fá.
Apesar de serem os compassos 14, 32 e 82 praticamente idênticos,
diferenças como a que ocorre entre �Lá�-�Sol�-�Fá� (nos compassos 14 e 82) e �Lá�-
�Fá�-�Sol� (no compasso 32), presente no manuscrito, é bastante comum na escrita de
Marlos Nobre como forma de variação, já comentada no Capítulo 1 e 2. Inclusive, o
compositor, em entrevista, confirma a intenção de alterar a ordem das notas nesse
trecho, por isso deixamos igual ao manuscrito.
67
Compasso 67 Manuscrito � Não há a indicação �poco
pecipitato�. Edição Henry Lemoine � Indicação �poco
pecipitato�.
Provavelmente, uma falha do editor que repetiu a indicação poco
precipitato, que aparece no compasso setenta, no sistema logo abaixo do compasso
sessenta e sete. Inclusive, no citado compasso setenta, o editor grafou poco
precipitando, ao invés de poco precipitato, conforme o manuscrito.
Compasso 79 Manuscrito � Não há indicação de �ten.� no
�Sib3� do segundo tempo. Edição Henry Lemoine � Há indicação de �ten.�
no �Sib3� do segundo tempo.
A indicação de tenuto, presente apenas na edição, não é coerente, visto que,
em outros trechos iguais, não são colocados os tenutos, como ocorre com os compassos
11 e 29. Portanto não incluímos o �ten.� que está na edição Lemoine.
Compasso 83 Manuscrito � �Lá#3�. Edição Henry Lemoine � �Lá3�.
Segundo o compositor, trata-se de um �Lá3#�, da mesma forma que nos
compassos 15 e 33.
Final da Peça,
(no rodapé da
página).
Manuscrito � Local e data da composição da
seguinte forma: �Rio de Janeiro, 11 de outubro de
1990�. Edição Henry Lemoine � Não há informações
sobre o local e data da composição.
68
Decidimos incluir o local e data da composição pelas mesmas razões já
expostas ao tratar do primeiro movimento da peça.
3.3.3 � Terceiro Movimento: �Frevo�
Título Manuscrito � Não há indicação de dedicatória. Edição Henry Lemoine � Com a indicação �à
Joaquim Freire�.
Da mesma forma que sucedeu com Marcus Llerena, em relação ao �Choro�,
a dedicatória a Joaquim Freire, no �Frevo�, só ocorreu depois de concluída a peça.
Título Manuscrito � Repete o título da peça:
�REMINISCÊNCIAS Para violão Opus 83� e, em
seguida, o título do movimento: �III. FREVO�. Edição Henry Lemoine � Só apresenta o título do
movimento: �III. FREVO�.
Mais uma vez, tal como na �Seresta�, julgamos desnecessário repetir o
título da peça.
Compasso 26 Manuscrito � Nota �Mib3� na segunda colcheia da
voz superior. Edição Henry Lemoine � Nota �Réb3� na segunda
colcheia da voz superior.
No manuscrito não está muito claro se a nota da segunda colcheia da voz
superior é �Réb3� ou �Mib3�. Contudo, possivelmente, houve um equívoco do editor ao
69
escolher o �Réb3�, pois, confrontando com �Frevo� para piano, percebemos que se trata
mesmo de um �Mib�.
Compasso 27 Manuscrito e Edição Henry Lemoine � Notas �Fá#2�, �Ré2�, �Mi2� na voz inferior.
Provavelmente houve um equívoco do compositor ao passar para a partitura
o �Fá2� � que completaria a linha cromática descendente � acabou escrevendo o �Ré2�
que está na linha suplementar logo abaixo. O editor acabou repetindo o mesmo
equívoco. Tal incorreção pode ser ratificada ao se comparar com a versão para piano de
�Frevo�.
Compasso 49 Manuscrito � A primeira colcheia deste compasso é separada das três outras restantes. Edição Henry Lemoine � As quatro colcheias deste compasso estão agrupadas.
Assim como aconteceu nos casos anteriores, o editor preferiu não separar a
primeira semicolcheia do grupo restante, contrariando aquilo que está no manuscrito.
Mais uma vez, acreditamos na pertinência de tal separação no intuito de esclarecer a
independência entre os dois trechos.
Compasso 63 Manuscrito e Edição Henry Lemoine � Notas �Sib3�, �Lá2� e �Sol2� na voz inferior.
Provavelmente, a última nota desse compasso é �Sol#2�, se for mantida a
coerência com o compasso 57 e outros onde o mesmo motivo aparece.
70
Compasso 83 Edição Henry Lemoine � A indicação poco
cedendo é repetida desnecessariamente.
No manuscrito, o compositor repete a indicação poco cedendo para reforçar
a idéia devido a uma mudança de página que ocorre. Na edição Lemoine, não ocorre tal
mudança de página, fato esse que torna desnecessária e até confusa tal repetição.
Compasso 101 Manuscrito � Há um acento na terceira colcheia do
compasso. Edição Henry Lemoine � Não há acento na
terceira colcheia do compasso.
A omissão do acento pela edição foi, provavelmente, uma falha. Portanto
mantivemos o acento em nossa edição.
Compasso 112 Manuscrito e Edição Henry Lemoine � Na última
semicolcheia do segundo tempo deste compasso está escrito um �Mi4� onde deveria estar um
�Ré4�.
Levando em consideração o motivo inicial de �Frevo�, a nota em questão
seria mesmo um �Ré4�, e não um �Mi4� como aparece tanto no manuscrito quanto na
edição.
Final da Peça,
(no rodapé da
página).
Manuscrito � Local e data da composição da
seguinte forma: �Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1990�. Edição Henry Lemoine � Não há informações
sobre o local e data da composição.
71
Tal como já foi comentado no �Choro� e na �Seresta�, julgamos pertinente
manter as datas de composição que foram incluídas no manuscrito.
3.4 � Informações Extraídas do �Frevo� para Piano
O �Frevo�, último movimento do IV Ciclo Nordestino Op.43 para piano de
Marlos Nobre, teve os seus primeiros esboços em 1977, mas só foi completamente
revisto e publicado em 1985. Esse frevo fez grande sucesso e acabou ganhando certa
independência do restante do Ciclo Nordestino Op.43, pois, só em 2006, os outros
movimentos foram publicados. A peça foi dedicada ao escritor e musicólogo, Leonardo
Dantas (1945) que, além de ter sido um dos incentivadores de Nobre em Recife, foi um
importante estudioso do frevo.
Já �Frevo� para violão, foi escrita posteriormente, no ano de 1991, como
parte integrante da suíte Reminiscências Op. 78 para violão solo, também de Marlos
Nobre. Para este compositor, apesar de ambas usarem o mesmo material musical, ele
não considera a versão para violão como uma transcrição, mas �uma reutilização, em
um instrumento diferente, das mesmas idéias�85. Este é mais um exemplo de um
processo composicional recorrente na obra de Marlos Nobre � que já foi comentado nos
Capítulos 1 e 2 � e consiste em �revisitar� um mesmo material musical, mas optando
por soluções diferentes das tomadas anteriormente.
Segundo o compositor, uma das principais motivações para escrever o
�Frevo� para violão era o fato de não existir, até o momento, nenhum frevo autêntico
para o instrumento e, além disso,
o frevo, sendo uma dança típica do Carnaval de Recife, tocada
por grande conjunto de metais, clarinetas, e percussão, nas ruas
85 Entrevista nº 2 (realizada no dia 23/06/07).
72
de Recife, ao ser transportado para o violão, me levou a um exercício de imaginação que me foi extremamente excitante
artística e musicalmente falando86.
Nas versões para violão e piano a estrutura básica da peça é a mesma:
mesmo material temático, mesma organização formal, mesmo número de compassos.
Apesar disso, a diferença entre os caminhos tomados, em vários elementos da
composição, faz com que as duas peças tenham resultados sonoros e estéticos bastante
diversos.
Uma das primeiras coisas que chama atenção ao se comparar as duas peças
é a escolha dos registros das oitavas usados em cada versão. Não se trata de uma
simples adaptação à tessitura do violão. O compositor optou, em certos momentos, por
escrever, no �Frevo� do Op.78, em registro grave, o que, no �Frevo� do Op.43, está no
registro agudo e vice-versa.
Exemplo 11a: Frevo (piano), comp.1: Exemplo 11b: Frevo (violão), comp.1:
Exemplo 12a: Frevo (piano), comp.17: Exemplo 12b: Frevo (violão), comp.17:
Há momentos em que Nobre adapta a versão para violão para torná-la mais
idiomática para o instrumento, como no exemplo [13], mas, em outros momentos,
alguns padrões são modificados sem que haja relação com as particularidades do violão,
como é o caso do exemplo [14]:
86 Ibidem
73
Exemplo 13a: Frevo (piano), comp.:13-14 Exemplo 13b: Frevo (violão), comp.13-14:
Exemplo 14a: Frevo (piano), comp.10: Exemplo 14b: Frevo (violão), comp.10:
Há também momentos em que acordes ou trechos inteiros são adaptados, ou
até completamente modificados como é o caso dos compassos 28, 29 e 30:
Exemplo 15a: Frevo (piano), comp.28-30:
Exemplo 15b: Frevo (violão), comp.28-30:
Entretanto, para os objetivos desta pesquisa, não é tão importante quais são
as diferenças entre as duas versões da peça, nem as razões pelas quais o compositor fez
tais modificações. O que importa, realmente, são as informações de articulação que
74
estão presentes na primeira versão e que não estão no �Frevo� para violão, pois
influenciarão diretamente na interpretação da peça. Além das citadas informações, há,
ainda, na versão para piano, indicações de caráter que podem ser relevantes para o
executante.
A seguir, estão listadas as principais anotações que foram omitidas na
partitura para violão, mas que julgamos de grande utilidade para orientar o intérprete em
suas decisões, pois, além de reproduzir o estilo de execução das orquestras de frevo,
também refletem as possíveis intenções interpretativas do compositor.
Já que, entre as duas versões de �Frevo�, existem diferenças de oitavas e
troca de vozes (linhas que estavam na voz superior, podem aparecer na inferior e vice-
versa), optamos, no quadro onde são listadas as diferenças que incorporamos à nossa
edição de Reminiscências Op. 78, por fazer referência apenas à versão para violão.
Assim, ao nos referirmos à voz superior, significa a voz superior da versão para violão
(que pode ou não coincidir com a versão do piano). A altura das notas será feita
considerando o �Dó3� da primeira linha suplementar inferior da pauta, ou seja, sem
levar em conta que o violão é um instrumento transpositor.
Na tabela abaixo, serão descritos, a cada compasso, os dados incorporados
em nossa edição de �Frevo� da suíte Reminiscências Op. 78:
Tabela 1
Compasso �Frevo� para Piano
Início da
página Indicação �Vivo e Molto Rítmico�.
2 Indicação �Nervoso�. Staccatos na primeira e terceira colcheia da voz
superior deste compasso (�Fá3� e �Ré3�) e no baixo (�Ré2�).
3 Staccato na segunda, terceira e quarta colcheias deste compasso (�Si2�,
�Lá2� e �Sol2�).
4 Ligadura de expressão da segunda nota deste compasso até a primeira do
compasso seguinte. 5 Staccato nos baixos �Fá2� e �Ré2�. 6 Staccato na voz inferior �Ré2�.
75
7 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�Sol2� e �Lá2�)
e acento na quarta colcheia (�Sib2�). 8 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�Lá2� e �Sol2�).
9 Staccato ns segunda, terceira e quarta colcheia da voz superior deste compasso (�Mib3�, �Ré3� e �Dó3�).
10 Ligadura de expressão da primeira nota deste compasso até a primeira do
compasso seguinte da voz superior.
11 Staccato na primeira e segunda semicolcheia do primeiro tempo (�Sib2�
e �Lá2�) e na segunda semicolcheia do segundo tempo (�Lá2�). O
crescendo já começa neste compasso.
12 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia deste compasso (�Sib2�, �Lá2� e �Sol2�). Um �Láb2� soa junto com o �Lá2� da segunda
colcheia.
13 Indicação �scherzando� com um �decrescendo� até o compasso seguinte.
Todas as notas deste compasso estão em staccato. 14 Todas as notas deste compasso estão em staccato, exceto a última.
16 Ligadura de expressão da primeira nota deste compasso até a primeira do
compasso seguinte.
17 Staccato na última semicolcheia do primeiro tempo (�Ré4�) e na
segunda e quarta do segundo tempo (�Mi4� e �Ré4�).
18 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia da voz superior deste compasso (�Fá4�, �Mi4� e �Ré4�).
19 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sol3� e �Lá3�). 20 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Lá3� e �Sol3�).
21 Staccato na última semicolcheia do primeiro tempo (�Ré4�) e na
segunda e quarta do segundo tempo (�Mi4� e �Ré4�).
22 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia da voz superior deste compasso (�Fá4�, �Mi4� e �Ré4�).
23 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sol3� e �Lá3�). 24 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Lá4� e �Sol4�). 25 Indicação �marcato�.
27
Staccato na segunda e quarta semicolcheias do primeiro tempo (�Lá3� e
�Sol3�) e na segunda e quarta semicolcheias do segundo tempo (�Lá3� e
�Sol3�) da linha superior, com um ligado entre a última semicolcheia do
primeiro tempo e a primeira do segundo tempo. A segunda colcheia da linha inferior é um �Fá2� e não �Ré2�.
33 Indicação �deciso�.
36 Ligado entre as notas do primeiro tempo e outro entre as notas do segundo tempo.
40 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do compasso
seguinte.
41 Staccato na primeira nota do compasso. Ligado da penúltima
semicolcheia deste compasso até a primeira do compasso seguinte. 42 Staccato na primeira nota do compasso (�Lá4�). 47 Staccato na segunda e terceira colcheias da voz inferior (�Sol#2, �Lá2�).
49 Staccato na segunda, terceira e quarta nota da voz superior (�Dó3�,
�Ré3� e �Mib3�)
50 Indicação �impetuoso�. Ligado da primeira nota deste compasso até a
primeira do próximo.
76
51 Indicação �Rudo�. Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia da
voz superior (�Lá3�, �Sol3� e �Ré3�). SFZ na primeira e última colcheia
do compasso. 52 SFZ na última colcheia do compasso. 54 Indicação �furioso�.
56 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do compasso
seguinte.
57 Ligado entre a terceira e quarta colcheia da voz superior (�Ré3� e
�Fá3�). Staccato na última colcheia da voz superior (�Fá3�). 58 Ligado nas duas primeiras colcheias e staccato na terceira colcheia.
59 e 60
Apesar de ser este compasso completamente diferente da versão para
violão, para ser coerente com outros trechos anteriores, supõe-se que, no compasso 59, deve haver staccatos na segunda, terceira e quarta colcheia (�Sib2�, �Lá2� e �Sol#2�). Já o compasso 60 deve ter um ligado da
primeira nota deste compasso até a primeira nota do compasso seguinte.
61 e 62 Também seguindo a coerência dos compassos 57 e 58, acreditamos que
deve-se usar a mesma articulação dos referidos compassos.
63 Staccato na segunda, terceira e quarta colcheia da voz inferior (�Sib2�,
�Lá2� e �Sol2�). 64 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do seguinte. 65
Ligado da penúltima semicolcheia deste compasso até a primeira do
compasso seguinte.
66 Staccato na primeira colcheia deste compasso (�Fá2�). Indicação �molto
deciso�. Acentos na primeira nota do primeiro e segundo tempo (�Fá2�).
67 Indicação de �crescendo�. Staccato na segunda e terceira colcheia (�Sol2� e �Lá2�).
69
Indicação �crescendo�. Ligado da segunda colcheia do primeiro tempo
até a primeira nota do segundo tempo, e da segunda colcheia do segundo
tempo até a primeira nota do compasso seguinte. Staccato na primeira
nota do segundo tempo (�Fá2�).
71
Ligado da segunda colcheia do primeiro tempo até a primeira nota do
segundo tempo, e da segunda colcheia do segundo tempo até a primeira
nota do compasso seguinte. Staccato na primeira nota do segundo tempo (�Sib3�).
72 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sib3�, �Lá3� e �Sol3�).
73 Indicação �crescendo�. Staccato na segunda, terceira e quarta colcheia
do compasso superior (�Mib4�, �Ré4� e �Dó4�).
74 As notas da voz inferior são: �Dó3�, �Si2�, Sib2� e �Lá2�, todas com
staccato. Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira nota do
compasso seguinte.
75
As notas da voz inferior são: �Láb2�, �Sol2�, �Solb2� e �Fá2� todas com
staccato. Staccato na segunda semicolcheia do primeiro e segundo tempo (�Lá3�). Ligado da última semicolcheia do primeiro tempo até a
primeira nota do segundo tempo, e da última semicolcheia do segundo
tempo até a primeira nota do compasso seguinte.
76 A nota da primeira colcheia da voz inferior é �Mi2�. Indicação
�impetuoso�. Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia. 77 Indicação �grazioso�. Staccato em todas as notas. Indicação
77
�decrescendo� até o fim do compasso seguinte. 78 Staccato em todas as notas exceto a última colcheia. 79 Staccato na segunda, terceira e quarta colcheia da voz superior.
81 (continuação)
Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a primeira nota
do segundo tempo. Staccato na primeira colcheia do segundo tempo (�Lá3�).
82 Ligado da primeira semicolcheia até a terceira semicolcheia do primeiro tempo. Staccato na segunda colcheia do primeiro tempo e segunda colcheia do segundo tempo.
83 Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a primeira nota
do segundo tempo. Staccato na primeira colcheia do segundo tempo (�Si2�).
84 Ligado da primeira semicolcheia até a terceira semicolcheia do primeiro
tempo. Staccato na segunda colcheia do primeiro tempo e segunda colcheia do segundo tempo.
85 Ligado da terceira semicolcheia do segundo tempo até a primeira nota do
compasso seguinte.
86 Indicação �sherzando�. Ligado da terceira semicolcheia do primeiro
tempo até a segunda semicolcheia do segundo tempo. Staccato na
primeira nota do compasso.
87 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�Sol#2� e
�Lá2�). 88 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�La2� e �Sol2�).
89
Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a primeira nota
do segundo tempo. Ligado da terceira semicolcheia do segundo tempo até a primeira nota do compasso seguinte. Staccato na primeira colcheia do segundo tempo.
90 Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a segunda
semicolcheia do segundo tempo. Staccato na primeira nota do compasso.
91 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�Sol#2� e
�Lá2�).
92 Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a segunda
semicolcheia do segundo tempo.
93 Staccato na segunda, terceira e quarta nota da voz superior (�Mib3�,
�Ré3� e �Dó3�). 94 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do seguinte.
95
Staccato na primeira nota do primeiro e segundo tempo (�Sib2�). Ligado
da última semicolcheia do primeiro tempo até a primeira nota do
segundo tempo e da última semicolcheia do segundo tempo até a
primeira nota do compasso seguinte. 96 Staccato na segunda e terceira colcheia. 100 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do seguinte.
101 Ligado entre a terceira e quarta colcheia da voz superior (�Ré3� e
�Fá3�). Staccato na última colcheia da voz superior (�Fá3�). 102 Ligado nas duas primeiras colcheias e staccato na terceira colcheia. 103 Staccato na segunda colcheia do primeiro tempo. 104 Staccato na primeira e última colcheia do compasso. 107 Staccato na segunda e quarta nota da voz superior (�Sib3�). 109 Staccato na segunda semicolcheia do primeiro e segundo tempo. Ligado
78
da quarta semicolcheia do primeiro tempo até a segunda semicolcheia do
segundo tempo. Ligado da última semicolcheia deste compasso até a
primeira nota do compasso seguinte. 110 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia (�Fá2�, �Mi2� e �Ré2�) 111 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sol#3�, �Lá3�) 112 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Lá3� e �Sol3�) 115 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sol#3�, �Lá3�) 119 Staccato em todas as notas deste compasso. 120 Staccato em todas as notas deste compasso. 121 Staccato em todas as notas deste compasso. 122 Staccato em todas as notas deste compasso exceto a última.
Em nossa edição de Reminiscências op. 78 incluiremos duas versões da
partitura de �Frevo� para violão. Uma só com as indicações que o próprio compositor
escreveu em seu manuscrito e na edição da Henry Lemoine, e uma outra versão
incluindo todos os acréscimos listados acima, que foram extraídos do �Frevo� para
piano do IV Ciclo Nordestino, de Marlos Nobre.
79
CAPÍTULO 4
Análise de Reminiscências Op. 78
Ao se executar uma partitura, necessariamente, o intérprete tem que tomar
diversas decisões, ainda que de forma planejada ou impulsiva. Ao mesmo tempo em que
as limitações dos sinais de notação são um dado incontestável, há ainda o fato de um
texto musical, por si só, não alcançar a sua significação plena sem o contexto histórico,
geográfico e da tradição na qual está inserido.
Assim, dentro da multiplicidade de possibilidades de interpretação que uma
partitura pode oferecer, uma das metodologias mais usadas pelos intérpretes para
embasar suas escolhas tem sido a análise musical da peça. No entanto, Edward Cone
alerta que não se trata de tentar aproximar-se de algum ideal de interpretação perfeita,
mas que todas as interpretações válidas são o resultado da escolha de quais as relações
implícitas da peça devem ser enfatizadas87.
Para a análise de Reminiscências Op. 78, julgamos importante expor não só
a organização e estrutura interna da peça, mas também apontar os elementos
tradicionais da música brasileira que serviram de referência para a composição da peça,
bem como demonstrar as interações desses elementos com os que são próprios da
linguagem da música contemporânea utilizados por Nobre. A partir da identificação
desses dois últimos aspectos, que se encontram condensados nesta peça de Nobre,
certamente, o intérprete poderá ter mais ferramentas para decidir sobre a forma de
execução de cada trecho.
87 Edward Cone, Musical Form and Musical Performance, Nova York: W.W. Norton & Company, 1968, p. 34.
80
Ademais, a análise de cada movimento será precedida por uma
contextualização acerca do gênero da música brasileira que lhe serviu de base, além do
levantamento de dados históricos, sociais e estilísticos de cada gênero.
4.1 - O Gênero Choro
A origem do nome �Choro� é confusa e controversa. Para o folclorista Luiz
da Câmara Cascudo, a origem do nome vem de um baile rural dos escravos denominado
xolo que, por confusão com a parônima portuguesa �choro� (sinônimo de pranto),
passou a ser conhecido como xoro, até que, ao chegar à cidade, foi grafada
definitivamente como choro.
Para outros pesquisadores, no entanto, o termo resultaria da redução ou
abreviação88 do vocábulo choromeleiros, o qual denominava o agrupamento musical do
período colonial que executava charamelas. Nesse sentido, Ary Vasconcelos, que atribui
a formação da nova palavra a um processo de simplificação não apenas da língua, como
também da música.
Há, ainda, a corrente que atribui a formação do vocábulo choro à maneira
exageradamente sentimental e �chorosa� com que os músicos daquela época
abrasileiravam as danças vindas da Europa. Esta última suposição tem sido a mais
aceita, embora ainda haja muita divergência sobre a origem do nome. O estudioso do
choro Henrique Cazes, conclui esse assunto afirmando:
Um estudo mais profundo da palavra choro certamente apontaria ainda mais caminhos, pois choro pode significar pechincha ou aquela quantidade além da dose de qualquer
bebida alcoólica. Tudo isso poderia gerar teorias as mais
assombrosas, que não ajudariam em nada a compreensão do
processo artístico de desenvolvimento dessa musicalidade.89
88 Processo de formação de palavras que consiste na eliminação de um segmento da palavra, a fim de se
obter uma forma mais curta. Ex.: moto (motocicleta), gel (gelatina), cine (cinema)). 89 Henrique Cazes, Choro: Do Quintal ao Municipal, São Paulo: Editora 34, 2005, p.17.
81
Assim, como a maior parte dos gêneros da música popular urbana do Brasil,
o choro nasceu da transformação, e por que não da nacionalização, de danças de origem
européia que, com o tempo, acabou por adquirir características e feições próprias que
dificilmente permitiriam confundi-lo com os gêneros europeus do qual descende. Esse
mesmo fenômeno também pode ser observado em diversos países que sofreram
colonização européia. A partir da polka vinda da Boêmia, por exemplo, surgiram ritmos
tão diversos como o maxixe brasileiro, a beguine da Martinica, o dazón de Cuba e o
ragtime norte-americano.
O provável surgimento do que viria a ser o Choro ocorreu por meados do
século XIX, nos subúrbios do Rio de Janeiro. Nessa época, a palavra �Choro� ainda não
designava o gênero, mas os conjuntos instrumentais típicos e uma maneira particular de
se executar as danças européias de salão em voga na época, tais como a valsa, o
schottishe e, principalmente, a polca. Nesse sentido, o cavaquinhista Henrique Cazes,
em seu livro Choro: do Quintal ao Municipal informa que se tivesse que �apontar uma
data para o início da história do Choro, não hesitaria em dar o mês de julho de 1845,
quando a polca foi dançada pela primeira vez no Teatro São Pedro�90.
Uma série de fatores históricos e socais contribuíram para a formação do
choro como gênero musical no Rio de Janeiro de então. Após 1860, quando a
exportação de café garantia até a metade das divisas do país e o Brasil passava a
demonstrar os primeiros sinais de industrialização, diversos melhoramentos urbanos
começavam a surgir na Capital do Império. Instituições públicas como Correios e
Telégrafos, Alfândega, Casa da Moeda, Arsenal da Marinha, Estrada de Ferro Central
do Brasil, juntamente com empresas particulares da área de transportes públicos,
iluminação pública, indústria, entre outras, mudariam radicalmente o quadro social
90 Ibidem, p. 17.
82
herdado da colônia e do primeiro reinado, com o aparecimento da figura do operário
industrial e dos pequenos funcionários do serviço público91. Dessa nova classe média
começaram a surgir não só os músicos que faziam o Choro, mas também o público
consumidor dessa música.
Segundo José Ramos Tinhorão:
Enquanto os melhor situados na distribuição dos empregos
procuravam equiparar-se à pequena burguesia européia
freqüentando os espetáculos lorettes franceses do Alcazar
Lyrique da Rua da Vala, a camada mais ampla dos pequenos burocratas passava a cultivar a diversão familiar das reuniões e
bailes nas salas de visitas, ao som de tocadores de valsas, polcas, schottiches e mazurcas à base de flauta, violão e
cavaquinho.92
Uma das grandes fontes de informação sobre quem eram e quais as práticas
dos antigos tocadores do choro é o livro de Alexandre Gonçalves Pinto, intitulado O
Choro � Reminiscências dos Chorões Antigos, no qual o autor recorda e lista os
�chorões� da antiga capital da república entre os anos de 1870 e 1935.
Nesse livro, que é uma das mais importantes referências histórica acerca do
choro, há detalhes sobre a vida dos chorões, informações sobre as suas músicas e sobre
a ambiência na qual ocorriam os encontros de que participavam.
Confirmando a importância que a nova classe trabalhadora de funcionários
públicos tinha para o choro dessa época, no livro de Gonçalves Pinto, observa-se que,
dentre os cento e vinte oito músicos citados, cujas profissões estavam discriminadas,
cento e vinte e dois eram funcionários públicos. Dentro destes, cerca de um terço era
constituído de empregados dos Correios e Telégrafos.
No que diz respeito aos instrumentos usados por esses músicos, os mais
comuns eram a flauta, o cavaquinho e o violão. O quarto instrumento mais usado era o
oficlide, que depois caiu em desuso e foi substituído pelo saxofone devido a influência
91 Ver José Ramos Tinhorão, História Social da Música Popular Brasileira, São Paulo: Editora 34, 1998. 92 José Ramos Tinhorão, Op. Cit. p.195.
83
das jazz bands norte-americanas. Outros como o bandolim, por exemplo, também eram
utilizados, mas a flauta, o cavaquinho e o violão tornaram-se os instrumentos ícones do
Choro. Já o pandeiro, que posteriormente se tornou um instrumento quase indispensável
a um grupo de choro, só foi definitivamente introduzido por volta da década de vinte. À
essa formação instrumental para se tocar Choro, acabou-se dando o nome de �regional�.
Segundo Henrique Cazes:
O nome regional se originou de grupos como Turunas Pernambucanos, Voz do Sertão e mesmo Os Oito Batutas que,
na década de 1920, associavam a instrumentação de violões,
cavaquinho, percussão e algum solista a um caráter de música
regional.93
É interessante perceber que o referido instrumental típico do Choro é
comum em diversos países de colonização portuguesa. Da mesma forma, o caráter
sentimental e nostálgico que marcava o estilo dos primeiros executantes do choro, que
tocavam as danças de salão européias, também parece herdada da colonização
portuguesa94.
O processo de desenvolvimento do Choro, que se extende desde a
consolidação de um conjunto instrumental e de uma forma característica de tocar as
danças européias de salão, até o surgimento de um gênero brasileiro com fisionomia
própria, foi lento e gradual. Isso foi possível devido à influência de importantes músicos
que contribuíram para essa transformação durante várias etapas do choro, tais como
Joaquim Callado (1848-1880), Ernesto Nazareth (1863-1934), Chiquinha Gonzaga
(1847-1935), Anacleto de Medeiros (1866-1907), Pixinguinha (1897-1973), Zequinha
de Abreu (1880-1935), Luis Americano (1900-1960), Luperce Miranda (1904-1977),
Garoto (1915-1955), Jacob do Bandolim (1918-1969), Waldyr Azevedo (1923-1980),
Severino de Araújo (1917-2002), entre outros. 93 Henrique Cazes, Op.Cit. p.83. 94 Ver Henrique Cazes, Op.Cit.
84
Nos mais de cem anos de história do Choro, esse gênero passou por épocas
de maior ou menor popularidade e aceitação, mas segue sua trajetória como um dos
principais gêneros da música instrumental urbana brasileira, que continua se renovando
por novos intérpretes e compositores até hoje.
Na música erudita brasileira, o choro foi uma freqüente fonte de inspiração
de muitos compositores. Heitor Villa-Lobos, por exemplo, tem em sua série, Os Choros,
uma de suas mais marcantes obras, e que teve como fonte de inspiração o choro carioca,
sem copiá-lo, mas utilizando-o de forma bastante original. Outro importante compositor
da chamada música erudita nacional, o gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988), não só
foi influenciado pelo choro, como também foi responsável por diversas inovações que
acabaram se incorporando ao citado gênero.
Seria inútil tentar listar aqui todos os compositores que usaram, em obras
suas, traços característicos do Choro, pois é provável que esse tenha sido o gênero da
música popular urbana que mais influenciou os compositores de música instrumental
deste país. Quase todos os importantes nomes da música erudita brasileira, como
Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro, tiveram obras que de alguma
forma utilizaram elementos proveniente do choro.
São várias as características que distinguem o choro como um gênero, assim
como são variadas as formas como os compositores eruditos se utilizaram dos
elementos do choro para compor peças, com um maior ou menor grau de aproximação
do gênero original. Neste estudo, serão destacados apenas alguns aspectos importantes
do choro tradicional, os quais servirão como referência para a posterior análise do
�Choro� e também da �Seresta�� primeiro e segundo movimentos de Reminiscências
Op. 78 � de Marlos Nobre.
85
O compasso mais comum no choro é o 2/4. Assim como acontece no jazz,
cujos acentos fortes do compasso 4/4 estão no segundo e quarto tempo, na música
brasileira este acento está localizado, geralmente, no segundo tempo (samba, choro,
frevo etc). Também é muito comum o compasso 3/4 nos choros originados da valsa.
O caráter e o andamento dos choros podem variar muito, existindo choros
mais sentimentais e melancólicos como Carinhoso e Lamentos, de Pixinguinha, ou mais
rápidos e brejeiros como Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, e Brasileirinho,
de Waldir Azevedo. É importante salientar que, mesmo com o aparecimento do Choro
como um gênero com características próprias, o repertório dos �chorões�, e até o
próprio Choro, continuou incorporando elementos e composições de outros gêneros.
Com efeito, percebe-se que, além das já tradicionais polcas, quadrilhas, valsas, maxixe,
entre outros, passa a ser comum utilizar-se de gêneros como o frevo e o baião para
serem executados com a formação instrumental e elementos característicos do choro.
As figuras rítmicas mais comuns nos choros são: 1) Figura que tem sua
origem no maxixe, que, por sua vez, descende da habaneira: ; 2) Figura também
característica de outros ritmos brasileiros como o samba: .
A forma tradicional do choro é em três partes � A, B e C �, geralmente
havendo uma estrutura harmônica estabelecendo modulações para os tons vizinhos entre
as partes. O padrão de execução dessas partes é A-A-B-B-A-C-C-A. Entretanto, é
comum que essas repetições não sejam seguidas rigidamente, podendo ser encontrados
exemplos nos quais o próprio compositor executa a sua música com alterações nas
repetições. O Choro em duas partes � executado A-A-B-B-A � também é comum, não
sendo, portanto, aquela uma regra rígida, nem no que diz respeito à forma, nem às
modulações, especialmente nos choros mais modernos. O clarinetista e compositor de
choro K-Ximbinho declara sobre o choro em duas partes:
86
É menos enfadonho, porque três partes é o choro característico
brasileiro dos bandolins (...) isso ainda existe hoje, mas (...) desde que iniciaram a apresentação de chorinho, parece que,
talvez, obrigatoriamente, o choro tinha que apresentar três
seções. Hoje, eu acho que é desnecessário isso; em duas seções
você demonstra o conteúdo melódico de uma composição
popular como é o chorinho, e acho que na primeira seção a
melodia já fica explicitada, estabelecida, esclarecida (...). Isso é
uma maneira de pensar (...) não sei se estou fugindo da regra (...) se estou fugindo, eu volto!95
Harmonicamente, é freqüente o movimento linear, descendente ou
ascendente da linha do baixo, em intervalos diatônicos ou cromáticos. Os acordes
diminutos de passagem são muito freqüentes como forma de dar o movimento
cromático da linha do baixo. Os acordes são baseados nas tríades, mas, com freqüência,
estes aparecem com a sexta ou com a sétima acrescentada. Modulações bruscas, e o uso
constante de tonicalizações explorando, principalmente, o cromatismo, também são
características harmônicas freqüentes nos choros. Com a influência do jazz, diversos
choros mais modernos têm uma harmonia bem mais complexa, com mais notas
acrescentadas e modulações inesperadas.
No que diz respeito à utilização dos instrumentos, cada um tem uma função
específica dentro do conjunto. O solo � que freqüentemente é feito pela flauta, clarinete,
bandolim ou outro instrumento melódico � geralmente toca a melodia e, no caso de
haver mais de um solista, a melodia pode ser dividida entre eles, ou um faz um
contracanto, enquanto o outro executa a melodia principal. À função do cavaquinho é
dado o nome de �centro�, e ele faz o ritmo e a base harmônica. O violão (ou violões),
sendo com freqüência um deles com sete cordas, realiza, além das harmonias,
contracantos na região dos baixos, que são chamadas de �baixaria� ou �obrigações�. Ao
pandeiro e aos demais instrumentos de percussão, cabem a realização do ritmo.
Geralmente, ao se introduzir outros instrumentos na formação de um regional de choro, 95 K.Ximbinho Apud Elisa Alves Goritzki, �Manezinho da Flauta no Choro: uma Contribuição para o Estudo da Flauta Brasileira�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2002, p. 22.
87
os instrumentos acrescidos acabam tendo uma das funções acima. No caso do repertório
para instrumentos solos, como violão ou piano, o instrumento assume um pouco de cada
uma das funções.
4.2 - Análise do Primeiro Movimento � �Choro�
O �Choro�, primeiro movimento da Suíte Reminiscências Op.78, possui 120
compassos que estão estruturados num esquema formal semelhante ao usado pela
maioria dos choros tradicionais (ABACA). Contudo, há particularidades nesta peça de
Nobre, como a ausência de ritornelos entre as diferentes partes; outra diferença está na
seção A (também chamada de refrão) que, aqui, a cada reaparição, vai sofrendo
modificações, chegando à sua última aparição (A3) como uma síntese entre as partes A
(inicial) e B. É verdade que, nas execuções tradicionais dos choros, são feitas
modificações a cada repetição do refrão, entretanto, normalmente, estas modificações
não são escritas, e sim improvisadas. Além do mais, a estrutura básica costuma ser
sempre a mesma, inclusive com igual número de compassos, ao contrário do que
acontece no �Choro� de Nobre.
A organização formal do primeiro movimento do Op. 78 de Nobre pode ser
resumida conforme o seguinte quadro:
Tabela 2 Partes: A B A2 C A3
N. dos Compassos: 1-31 32-53 54-74 75-96 97-120 Andamento: Vivo Poco meno mosso Tempo I Adágio Tempo I
Na maioria dos choros tradicionais, cada seção é composta de 16
compassos. Embora isso não seja uma regra, é uma prática muito comum. No entanto,
esse tipo de formalismo limitador não é usual na obra de Nobre. Para ele, a forma é
derivada do desenvolvimento dos temas, e não o contrário. Segundo Vanessa da
88
Cunha96, �o esquema formal da obra de Marlos Nobre nunca é pré-estabelecido, a forma
em sua música é sempre uma conseqüência do desenvolvimento do material�, por isso a
não adoção daquele padrão de 16 compassos e a irregularidade que se observa entre o
número de compassos das seções A, A2 e A3, ou mesmo entre as outras partes desta
peça. Nobre, em outras composições, chegou a usar padrões formais consagrados como,
por exemplo, a forma sonata, mas sempre de forma livre e nunca como um molde pré-
estabelecido e rígido.
No plano rítmico da peça, Nobre se utiliza apenas das células rítmicas mais
comuns no choro, sobre o usual compasso 2/4, que só deixa de ser usado em um trecho
muito curto que não descaracteriza em nada a rítmica do choro. Segundo um
levantamento e classificação, feitos por Carlos Almada97, das células rítmicas usadas
nos choros, ele chega ao seguinte quadro, no qual as mesmas são divididas entre
principais (mais características) e as secundárias (de apoio), que são basicamente as
mesmas usadas por Nobre em todo o movimento:
Exemplo 16: Células rítmicas usadas no gênero choro:
Entretanto, Nobre faz uso de um recurso que, aliás, é freqüente em toda a
sua obra: o deslocamento dos padrões de acentos criando uma instabilidade e balanço,
que reforçam as síncopes comuns na música brasileira.
96 Vanessa Rodrigues da Cunha. �A Influência da Música Folclórica e Popular em Três Obras para Piano
de Marlos Nobre: um Estudo Comparativo das Constâncias Técnicas e Estéticas na Formação de um
Estilo�. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997, p. 50. 97 Carlos Almada, A Estrutura do Choro. Rio de Janeiro: Da Fonseca, 2006, pp.10-11.
89
Exemplo 17: Choro (Marlos Nobre), comp. 29:
Em Reminiscências Op. 78, mesmo se tratando de uma obra da fase mais
recente do compositor, classificada dentro de sua quinta fase composicional, a
influência de Ernesto Nazereth98 pode ser notada em certos padrões rítmicos e
melódicos, que, aliás, também estão presentes na obra de João Pernambuco e diversos
outros compositores do choro, que influenciaram essa composição de Nobre. Podemos
observar algumas semelhanças entre os seguintes exemplos de peças dos três
compositores:
Exemplo 18a: Dengoso (João Pernambuco), comp. 1-5:
Exemplo 18b: Choro (Marlos Nobre), comp. 1-5:
Exemplo 18c: Odeon (Ernesto Nazareth), comp. 1-5:
Já nos motivos iniciais das três peças podem ser observadas muitas
similaridades. Por um lado, Dengoso e �Choro� têm a mesma célula rítmica e o mesmo
98 Ernesto Nazareth foi a principal influência do compositor durante sua primeira fase que vai de 1959 até
1963.
90
contorno melódico. Por outro, em Odeon e �Choro�, observa-se o uso da cromatização
descendente para atingir a nota estrutural do compasso seguinte. No decorrer das três
peças, observa-se em comum o uso de uma linha de baixo descendente sobre as mesmas
células rítmicas, com algumas intervenções mais ativas em dados momentos. Há, ainda,
outras semelhanças como o compasso 2/4, o tipo de textura e o ritmo do
acompanhamento. Os elementos ora citados podem ser encontrados em diversos outros
choros, por isso, são meras ilustrações de como Nobre se utiliza do vocabulário do
choro para compor o primeiro movimento de Reminiscências Op. 78.
A partir do desenvolvimento do material temático presente no exemplo 1,
Nobre desenvolve toda a seção A com grande concisão, típica da escrita deste
compositor. São usados procedimentos de transformação temática como transposição,
fragmentação, extensão, figurações adicionadas ou subtraídas, inversão melódica,
cromatismos e variação das acentuações. Dessas transformações temáticas, resultam
frases de grande variedade e aparente espontaneidade. Segundo Maria Luiza Corker
Nobre, esposa do compositor, �o princípio do desenvolvimento e da variação orgânica
dos motivos e idéias iniciais de cada obra, seria cada vez mais [a partir de 1980] a
obsessão de Marlos Nobre�99. Numa análise mais minuciosa, poder-se-ia observar que
todos os motivos melódicos que aparecem no decorrer desta seção parecem derivar do
primeiro compasso, pois os contornos melódicos seguem o mesmo desenho, o desenho
melódico oposto, ou algum tipo de derivação deles: seja por variação, fragmentação ou
extensão.
A seção A deste movimento explora, principalmente, frases do baixo
evocando o estilo das �baixarias� do choro. Os baixos desenvolvem linhas, ricas em
cromatismos, sobre células rítmicas características, baseadas em motivos ascendentes
99 Maria Luiza Corker-Nobre,�Aspectos Técnicos e Estéticos de Sonâncias III de Marlos Nobre: uma
Introdução à Problemática da Intuição Versus Cerebralismo�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995, p.12.
91
ou descendentes que têm como objetivo uma nota �alvo�. Esta é, normalmente, uma
nota estrutural da harmonia usada, tal como fazem os violões de 7 cordas nas execuções
de samba e choro100. No entanto, o alto grau de modernidade alcançado por Nobre é
resultado da harmonia escolhida, bem como dos intervalos e desenhos melódicos
resultantes da criação das linhas do baixo, como se poderá observar adiante.
Na criação das linhas melódicas do baixo, o compositor usa melodias nas
quais os intervalos de segunda menor e maior são combinados de forma não usual e sem
uma regularidade aparente. Usa também mudanças de oitava, quebrando a linha
esperada e fazendo com que a melodia não tenha um aspecto que a identifique com a
música tonal:
Exemplo 19: Choro (Marlos Nobre), comp. 17-20:
Já a harmonia usada na seção A é predominantemente quartal, contrariando
a tradicional harmonia triádica típica dos choros, além do mais, Nobre explora de forma
muito incisiva e pessoal o uso do cromatismo, como pode ser observado no exemplo
[18b]. A tendência de cromatização de determinadas notas dos acordes e de passagens
do baixo, que encontramos nos choros tradicionais, é levada a extremo por Marlos
Nobre, num procedimento adotado, freqüentemente, em diversas outras peças do
compositor.
100 Ver Remo Tarazona Pellegrini, �Análise dos Acompanhamentos de Dino Sete Cordas em Samba e
Choro�, Dissertação de Mestrado, Universidade de Campinas, 2005.
92
A organização das frases nesta seção pode ser resumida no seguinte quadro:
Tabela 3
Apesar de não haver os usuais ritornelos nesta seção, Nobre parece, a partir
do compasso 15, reescrever toda a seção já tocada, porém de forma completamente
variada. Chega-se a esta conclusão porque a idéia de linha ascendente cromática da voz
superior, que parte do �Lá3� (no compasso 2) até chegar ao �Fá5� (no compasso 15), é
repetida a partir desse compasso (15). Ao mesmo tempo, o motivo inicial da peça é
reapresentado, e a nova linha ascendente é criada, desde o �Ré4�, no compasso 16, até
chegar novamente ao �Fá5�, no final dessa seção (compasso 31). O fato de Nobre, ao
re-expor esta seção em A2, só usar os compasso 15 a 31, corrobora com essa visão
analítica, como se comprovará mais adiante.
Exemplo 20: Esquema resumindo a harmonia e a melodia de Choro, comp. 2-15:
Seção Frases Compassos Dinâmicas
a 1-5 F
b 6-10 (f) A
c 10-15 MF
a 15-21 F
b 21-25 piú f A�
c 26-30 (piú f), ff
93
Exemplo 21: Esquema resumindo a harmonia e a melodia de Choro, comp. 16-31:
Já a parte B da peça, apesar de aparentar uma preocupação melódico-
contrapontística � por tratar-se de uma espécie de canon livre a duas vozes em oitava �
o resultado sonoro, devido ao uso constante dos intervalos de segunda, sétima e nona, é
mais textural e rítmico do que propriamente contrapontístico.
Ocorre, nesse trecho, uma espécie de parafonia livre entre as duas vozes,
onde a divisão rítmica, combinada aos intervalos muito dissonantes, obscurece qualquer
referência à harmonia ou contraponto, fazendo com que haja, nele, um efeito
percussivo. Assim, somado a tudo isso, a divisão rítmica toda em semicolcheias tocadas
em staccato, juntamente com o acento na última semicolcheia de cada tempo, faz com
que o efeito de todo esse trecho lembre o som de um pandeiro no acompanhamento do
choro.
Exemplo 22: Choro, comp. 34-36:
Exemplo 23: Ritmo do pandeiro no choro:
94
O motivo que gera toda esta seção é derivado daquele que inicia a peça,
apenas com o acréscimo de duas notas cromáticas e a substituição de uma colcheia
pontuada por três semicolcheias.
Exemplo 24a: Motivo inicial da seção A: Exemplo 24b: Motivo inicial da seção B:
O uso do motivo rítmico, no qual a colcheia pontuada é trocada por três
semicolcheias na mesma nota, é comum em diversos choros, pois dão um balanço
característico, como na peça Sarambeque de Ernesto Nazareth:
Exemplo 25a: Sarambeque, comp. 1-5:
Exemplo 25b: Choro (Marlos Nobre), comp. 41-43:
Marlos Nobre utiliza, durante toda seção B, o mesmo material temático que
é desenvolvido de forma semelhante ao descrito na seção A. Aqui, o compositor
também cria um acúmulo de tensão, partindo de um mp até chegar ao ff no final da
seção, como pode ser observado no quadro seguinte.
95
Estrutura formal da seção B:
Tabela 4 Frases Compassos Dinâmicas
A 32-37 mp, cresc.
B 38-44 mf, f
C 44-51 piú f, crec., ff
Ao voltar para a parte A, ao contrário do esperado, Nobre não repete a seção,
mas a reescreve, incluindo diversas variações e modificações de notas. Contrariando
ainda mais a expectativa, ele reescreve apenas a partir da segunda metade da seção A
inicial (do compasso 15 ao 31).
Exemplo 26a: Choro, (Marlos Nobre), comp.15-18:
Exemplo 26 b: Choro, (Marlos Nobre), comp.53-56:
Esse fato ratifica a idéia exposta anteriormente de que, no A inicial, ao invés
de usar o ritornelo, o compositor opta por reescrever variando, numa possível analogia
às variações feitas a cada repetição pelos executantes de choro. O seguinte exemplo
mostra a harmonia e o direcionamento melódico de A2 que, inclusive, é semelhante ao
da segunda metade de A1:
96
Exemplo 27: Esquema resumindo a harmonia e a melodia de Choro, comp.55-71:
A seção C da peça, que traz a indicação �Adagio (como uma recordação)�, é,
como em muitos choros, um trecho de maior contraste de caráter. Nesta parte, o
ambiente da peça se modifica completamente, mostrando o lado mais melodioso e
nostálgico do choro. Nobre modifica e re-harmoniza o tema de Dengoso de João
Pernambuco, recordando, talvez, a execução desta peça durante os encontros de
violonistas que Nobre freqüentou com o pai na década de quarenta.
Em entrevista, Nobre declarou que, apesar da homenagem a João
Pernambuco, não há citações diretas das peças desse compositor em Reminiscências Op.
78101. É possível que, assim como ocorreu em Rememórias Op. 79
102, Nobre tenha
escrito a melodia de Dengoso a partir uma lembrança remota, sem ter consciência da
citação.
Exemplo 28a: Dengoso (João Pernambuco), comp. 13-18:
101 Ver entrevista 1 (Realizada em 09/04/07). 102 Ver Capítulo 2.
97
Exemplo 28b: Choro (Marlos Nobre), comp. 75-80:
Em todo o trecho é utilizada uma harmonização tonal das frases, enriquecido
por um delicado contraponto, que, pela riqueza de informações, acaba criando a
impressão de se ouvir todo um conjunto de choro. Isso porque, além de uma melodia
cantabile, há linhas do baixo fazendo desenhos rítmicos e melódicos característicos,
além do uso de contramelodias e figurações lembrando os demais instrumentos
acompanhantes.
Toda a seção C é estruturada em frases regulares de 4 compassos cada.
Finalizando essa seção, Nobre cria uma suave atmosfera, com andamento ainda mais
lento, usando uma modificação de um motivo desta seção, mas desta vez utilizando
harmônicos, sobre a figuração do baixo semelhante à usada no final da seção A e A2.
Na última parte de �Choro�, o compositor usa um pedal na nota �Ré� grave
do violão em um ostinato rítmico, enquanto fragmentos melódicos das seções A e B vão
aparecendo com extensões cada vez maiores e com dinâmica crescente, partindo de um
pp misterioso até chegar num ff; finalizando com um acorde de sonoridade cheia,
aproveitando a afinação natural do instrumento.
Logo após, o compositor desenvolve um intenso stretto utilizando o motivo
inicial da peça, totalizando cinco entradas do referido motivo, que cria ainda maior
98
tensão que culminam em acordes rasgueados rapidíssimos. O efeito desses acordes
lembra muito a sonoridade do cavaquinho devido ao uso de notas no registro agudo do
violão e pelo uso daqueles rasgueados, lembrando o acompanhamento feito com palheta
pelo cavaquinho. A peça termina de forma súbita e violenta, após uma breve figuração e
um acorde final curto, usando as três cordas soltas mais graves do violão.
Exemplo 29: Choro, comp. 113-120:
É interessante notar que, em toda peça, a sonoridade de cada um dos
instrumentos ícones do choro (flauta, cavaquinho, violão e pandeiro) é lembrado em
momentos da peça: o violão nas �baixarias� da seção A; o pandeiro na seção B; o som
cantabile e lânguido da flauta na seção C; e finalmente o som dos acompanhamentos do
cavaquinho nos acorde rasgueados do final da seção A3.
Em suma, parece-nos que a fragmentação e transformação dos diversos
elementos do chorinho � sejam eles do gênero choro ou do próprio grupo instrumental
que o executa � são as principais estratégias composicionais de Marlos Nobre no intuito
de criar uma reminiscência deste que é um dos mais importantes gêneros de música
instrumental brasileira.
99
4.3 � O Gênero Seresta
Seresta é uma designação genérica da música executada por boêmios em
andanças pelas noites. A denominação passou a ser usada no Rio de Janeiro, a partir de
inícios do século XX, em substituição aos nomes serenata ou serenada. Esses termos
derivam do substantivo �sereno�, fazendo uma clara alusão a algo que no período
noturno, e se referem mais especificamente à prática, de origem bastante remota, de se
tocar canções sentimentais à noite, diante das residências das mulheres amadas.
Segundo Câmara Cascudo, �todos os povos históricos tiveram a serenata. Cantar à porta
do seu amor é direito consuetudinário e milenar�103.
Os gregos antigos chamavam de Paraclausithyron as cantigas amorosas
noturnas. Os romanos também admiravam as serenatas e, inclusive, existem referências
a esta prática nas Odes II e VII de Horácio. Na Península Ibérica, conforme os
testemunhos de cronistas da Idade Média, era comum trovadores e menestréis entoarem
cantigas de amor para suas amadas. Em Portugal, a serenata aparece descrita em 1505,
na farsa Quem tem farelo?, de Gil Vicente (1465-1536). No Brasil, já aparecem
referências escritas sobre a prática das serenatas no ano de 1717, no livro Nouveau
voyage autour du monde, do viajante francês Lê Gentil de la Barbinais, ao narrar sua
passagem por Salvador, na Bahia.
A seresta tem estreita ligação com dois outros gêneros da música brasileira:
a modinha brasileira e o choro.
A modinha, surgida em meados do século XVIII, é apontada por
pesquisadores como o primeiro gênero da música brasileira cantada a atender ao gosto
das novas camadas médias das cidades. Esse gênero acabou por se tornar um dos
principais a ser utilizado nas serenatas noturnas, frente às casas das pessoas
103 Luiz Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962, p. 707.
100
homenageadas, geralmente das namoradas ou pretendidas. José Ramos Tinhorão afirma
que, �até o aparecimento da modinha, não havia um gênero de canção capaz de atender
às expectativas de homens e mulheres, dentro da nova tendência de maior aproximação
entre sexos, característica da moderna sociedade definitivamente urbanizada� 104.
Ainda segundo Tinhorão, a modinha mais popularesca, acompanhada ao
som de violas e violão pelos seresteiros, coexistiu com a modinha mais erudita que era
cantada nos salões burgueses com o acompanhamento do piano. Inclusive, a
repopularização do gênero, que ficou a esta época conhecido como modinhas
romântico-sentimentais, também foi feita pelas mãos dos boêmios cantores,
especialistas em serenatas.
Foi também por meio dessa nova modinha seresteira que se deu o advento,
no Brasil, de uma nova forma de se escrever música popular, que era a da parceira entre
o compositor da música e o autor da letra. A referida parceria deu-se entre os poetas
eruditos românticos brasileiros que, na busca de uma identidade nacional, se
aproximaram de manifestações tidas como �do povo�, como era o caso dos choros que
incorporavam e popularizavam diversos gêneros importados da Europa105. Segundo
Câmara Cascudo, �por todo o século XIX parte essencial da produção poética
destinava-se às serenatas�106.
Estilisticamente, a modinha seresteira começa a abandonar os compassos
2/4 ou 4/4, que eram os mais usados nas modinhas do Primeiro Império, para usar,
preferencialmente, os compassos ternários derivados das Valsas. Segundo Oneyda
Alvarenga, �a melódica adquiriu seus elementos característicos, esboçados por vezes na
104 José Ramos Tinhorão, Op. Cit. p. 118. 105 Ver José Ramos Tinhorão. Op. Cit. 106 Luiz Câmara Cascudo, Op. Cit. 707.
101
produção anterior: a linha cheia de arabescos ondulosos, o uso intenso de arpejos, e
saltos largos�107.
O instrumental passa a ser o mesmo dos choros. Luciano Gallet chega a
afirmar que �a seresta (serenata) é o choro, com a mesma formação instrumental, ou
diversa, - acompanhando um cantor solista popular�108. Sobre a formação instrumental
mais comum das serestas, Câmara Cascudo informa que �obrigatoriamente, o único
instrumento de sopro nas serenatas era a flauta. Os demais, de cordas, o indispensável
violão, os cavaquinhos, às vezes o violino e depois o bandolim, solista, nos intervalos,
melocomentando a modinha�109.
A seresta atingiu o seu auge no início do século XX, porém, atualmente,
tornou-se anacrônico diante do alto grau de urbanização e do ritmo frenético que as
cidades atingiram, não havendo mais tempo nem ocasião para a apreciação desse
gênero. Entretanto, os compositores da música erudita brasileira ainda encontram na
seresta uma rica fonte de inspiração.
4.4 - Análise do Segundo Movimento � �Seresta�
�Seresta�, segundo movimento da suíte Reminiscências Op. 78, possui 91
compassos estruturados com base no esquema formal AABBA, comum em diversos
gêneros da canção brasileira, como a modinha e a seresta. Segundo Nobre, esta peça �é
uma canção triste, uma evocação de uma serenata ao luar�110, na qual o estilo de João
Pernambuco é lembrado, uma vez que a intenção inicial do compositor foi de prestar
uma homenagem ao referido violonista.
107 Oneyda Alvarenga, Música Popular Brasileira, São Paulo: Duas Cidades, 1982, p. 129. 108 Luciano Gallet, Apud Mário de Andrade, Dicionário Musical Brasileiro. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1989, p.471. 109 Luiz Câmara Cascudo, Op. Cit. p.707. 110 Marlos Nobre, Joaquim Freire � Texto do Encarte do CD LC44601, Léman Classics, 1993.
102
O termo seresta, como foi dito anteriormente, é bastante genérico, e os
elementos musicais encontrados aqui são muito próximos dos encontrados no choro,
sendo a principal diferença o caráter mais romântico e melancólico.
O quadro a seguir mostra um resumo da estrutura formal de �Seresta�:
Tabela 5 Seção Andamento Subdivisão Compasso Dinâmica
Introdução Liberamente - 1-4 mf, mp, f
A 5-10 p, mp
B 11-14 (mp), mf
a� 15-18 mp, crec. A1 Calmo
Conectivo 19-22 f, decresc.
A 23-28 p, mp
B 29-32 (mp), mf
a� 33-36 (mf), mp A2 Calmo
Conectivo 37-40 Ff
A 41-44 p, mp
B 45-48 mf, f
C 49-53 mp, mf, f B1
Piu Animato ed Agitato
Conectivo 54-56 piú f, ff, mf, decresc.
A 57-60 p, mp
B 61-64 mf, f
C 65-69 mp, mf, f B2 -
Conectivo 70-72 piú f, ff, mf, decresc.
A 73-78 P
B 79-82 mp, mf
a� 83-86 MP A3 Calmo
Coda 87-90 f, piú f, ff,
É interessante observar que Nobre, ao invés de usar ritornelos, reescreve
cada parte, mas inserindo, a cada repetição, diversas variações e ornamentações tal
como um músico de choro faria ao repetir as partes durante a execução, embora o
�chorão� fizesse isso de forma improvisada no momento da execução. Este
procedimento de variações já foi referido durante a análise do �Choro�, e é uma prática
comum na obra deste compositor, mas na �Seresta� as variações são, principalmente,
nas formulas das �baixarias�, dando um caráter improvisatório. Os exemplos a seguir
demonstram as variações feitas por Nobre em três repetições do mesmo compasso:
103
Exemplo 30a: Seresta (Marlos Nobre), comp. 6:
Exemplo 30b: Seresta (Marlos Nobre), comp. 24:
Exemplo 30c: Seresta (Marlos Nobre), comp. 74:
�Seresta�, além de ter um caráter melancólico típico das canções
sentimentais noturnas brasileiras, apresenta diversas características tonais marcantes. O
principal centro tonal da peça é o de �Ré�, sendo a tonalidade maior na parte A e menor
na parte B.
Harmonicamente, em geral, os acordes, representam funções tonais
definidas, embora o compositor faça uso de notas alteradas, dissonâncias acrescentadas
ou, em certos momentos, de acordes incompletos que deixam sua função harmônica
ambígua.
As funções harmônicas mais usadas são tônica, acordes com função de
dominante secundário, segundos cadenciais e dominantes. Os cromatismos também são
muito explorados nas conduções internas das vozes dos acordes.
Em �Seresta�, mais uma vez, assim como no primeiro movimento, o
compositor explora a linha de baixo cromática descendente, que ele diz ser um
104
verdadeiro �leitmotiv da música brasileira para violão�111, e, assim como no �Choro�,
também são usadas figurações que lembram as já comentadas �baixarias�.
Exemplo 31: Seresta, comp. 23-26:
O uso de �baixarias�, feito pelos violões nos acompanhamentos de choro,
samba e da seresta, tem funções específicas: primeiramente, deve dar a marcação clara
dos tempos e do fundamento da harmonia; e em outros momentos, realizar um
contraponto interagindo com a melodia, ou formar frases mais ativas em momentos
quando não houver muita atividade melódica. Essas frases, na maioria das vezes
descendentes, podem ter um caráter virtuosístico e fazem uso constante de notas
cromáticas, sempre tendo como meta a �nota alvo�. Todas essas funções citadas podem
ser encontradas nas �baixarias� feitas por Nobre, tanto neste movimento quanto no
precedente, embora, mais uma vez, as cromatizações aqui são bem mais acentuadas que
o usual na música popular.
Na seção A, após uma introdução desenvolvendo um motivo de três notas, o
compositor passa a explorar, na linha superior, uma idéia que vem fazer referência à
flutuação rítmica dos rubatos feitos pelos cantores de seresta, ao atrasar a entrada da
melodia com relação à parte forte do tempo. Em toda a seção, são poucos os momentos
em que a melodia incide sobre o pulso ou sobre a parte forte do tempo, dando uma
impressão constante de �flutuação� da melodia. Observa-se também que, a cada dois
111Gerard Béhague, �Marlos Nobre: Reminiscências and Homenagem a Villa-Lobos; Marlos Nobre: Orchestral, Vocal and Chaber Works� in Latin American Music Review, Volume 17, No. 1 (1996), p. 87.
105
compassos, os desenhos melódicos desta seção repetem, na maioria das vezes, o padrão
de uma linha ascendente seguida de uma resolução descendente.
Exemplo 32: Seresta, comp. 4-7:
Já a voz inferior cria um efeito de falsa polifonia, uma vez que há uma
considerável distância entre a nota mais grave e as restantes, fazendo com que soem
como linhas independentes. Inclusive, a parte mais grave desempenha uma clara função
de marcar os pontos de apoio da harmonia, além de apresentar uma lógica própria em
sua condução. Por outro lado, a parte mais aguda desempenha também um importante
papel no desenvolvimento harmônico, e evoca o efeito dos �dedilhados� usados
tradicionalmente nos acompanhamentos deste gênero.
A parte �B� de �Seresta� segue o estilo geral já apresentado na seção
anterior, porém, na tonalidade menor e com um caráter um pouco mais agitado. Mais
uma vez, a escrita de Nobre esconde a textura a três vozes, porém, desta vez, é a linha
superior que tem a dupla função de melodia e acompanhamento. A �flutuação� da
melodia presente na parte A continua sendo usada, nesta seção, pelo atraso, a cada
compasso, da entrada da melodia e pelo uso de uma polimetria entre a voz superior e
inferior na segunda parte de cada compasso.
106
Exemplo 33: Seresta, comp. 41-44:
Aquilo que seria a repetição desta seção, também é reescrita e apresenta os
mesmos procedimentos de variação presentes em A. Digno de nota é o procedimento
adotado pelo compositor de trocar a ordem das notas da voz superior. Com isso, o
compositor cria um efeito interessante, pois acaba modificando a melodia, e as
quiálteras da voz superior passam a ter funções melódicas diferentes, passado, por
exemplo, de bordadura para apogiatura ou nota de passagem.
Exemplo 34: Seresta, comp. 57-60:
Um elemento constitutivo importante desta peça, que ainda não foi
comentado até o momento, é a sua introdução, que posteriormente é reutilizada como
transição entre as seções. O motivo de três notas é transposto e transformado,
explorando o cromatismo e antecipando a tendência de uso deste recurso durante toda a
peça. Faz, ainda, pelo uso dos cromatismos, uma identificação com o movimento
anterior, proporcionando maior coesão entre os movimentos. A cada vez que a transição
é utilizada entre as seções, Nobre a transforma, desenvolve ou modula, enfim, usa
107
algum tipo de variação. A variação e transformação de idéias como esta é marcante em
todos os movimentos da peça. Segundo o compositor:
Este princípio, aprendi principalmente através do estudo
aprofundado das obras de Mozart... Mais do que qualquer outro compositor da história da música, Mozart jamais disse a mesma
coisa duas vezes, sem que da segunda não exercesse o seu
mágico domínio da variação112.
Exemplo 35a: Seresta, comp. 2-3: Exemplo 35b: Seresta, comp. 19-20: Exemplo 35c: Seresta, comp. 37-38:
A última repetição escrita da seção A não traz nenhuma novidade com
relação às outras. O compositor faz variações especialmente em algumas �baixarias� e
finaliza a peça com o acode de Ré maior com sétima maior e sexta acrescentadas,
deixando inequívoco a tom de Ré que marca esta peça.
112 Vanessa Rodrigues da Cunha, Op. Cit., p. 49.
108
4.5 � O Gênero Frevo
O carnaval brasileiro é palco das mais diversas manifestações populares e
folclóricas expressadas através das danças e músicas, nas quais estão representados
elementos culturais representativos dos três principais grupos étnicos que formaram o
povo brasileiro: o branco, o indígena e o negro.
Entre as cidades que se destacam pela realização do carnaval, Recife
aparece como uma das que possui maior diversidade de ritmos carnavalescos, possuindo
em torno de 13 gêneros diferentes, dentre os quais, o de maior notoriedade talvez seja o
frevo. Este é caracterizado por ser uma marcha, em compasso binário, feita para
acompanhar a dança � de rua ou de salão � e que possui um ritmo acelerado,
�sincopado, obsedante, violento e frenético, que é a sua característica principal�,
segundo Câmara Cascudo113.
O Frevo � dança e música �, apesar de já difundido por todo o país, ainda
pode ser tido como um gênero exclusivamente pernambucano, pois, além de ter-se
originado neste Estado, é também o local onde o ritmo é mais executado. No dizer do
pesquisador do frevo, Valdemar de Oliveira,
Pernambuco (somente Pernambuco, não há falar nem mesmo
em seus vizinhos mais próximos) possui uma música e uma
dança carnavalesca que são coisa sua, original, que se criou no
meio do povo, quase espontaneamente, e se cristalizou depois, como traço marcante de sua fisionomia urbana. Urbana sim. Até
seria mais justo dizer de Recife, do que de Pernambuco.114
É importante ressaltar que, apesar de o Frevo ter surgido �quase
espontaneamente�, isso não significa, para o autor supracitado, que o gênero tenha se
113 Luiz Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962, p. 346. 114 Valdemar de Oliveira, Frevo, Capoeira e Passo, Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1971, p.11.
109
tornado folclórico, já que, pelo conceito tradicional de Folclore115, o anonimato seria um
dos requisitos essenciais à sua caracterização. E reforça sua convicção quando assevera:
Ao encarar o frevo como obra musical, é bom considerá-lo, desde logo, em sua verdadeira posição de música popular � e não folclórica, pois não revela uma ascendência ou um
�passado� a que esteja o povo ligado de qualquer modo. (...) O autor do frevo nunca é anônimo e os elementos de que se serve
não se envolvem no anonimato, como sucede na música
folclórica.116
A origem da música do frevo vem da tradição das bandas de corporações
militares que, a partir da segunda metade do século XIX, passaram a prover música
instrumental ao gosto das amplas camadas sociais das grandes cidades, função esta que,
nas cidades menores, era exercida pelas bandas ou liras municipais. Segundo José
Ramos Tinhorão,
uma das poucas oportunidades que a maioria da população das
principais cidades brasileiras tinha de ouvir qualquer espécie de
música instrumental, nessa segunda metade do século XIX, era
de fato a música domingueira dos coretos das praças ou jardins,
proporcionada pelas bandas marciais. Pois foi exatamente pela necessidade de entremear as marchas militares com músicas do
agrado do público de gosto popular que essas bandas de corporação fardadas começaram a incluir em seus repertórios os
gêneros mais em voga àquele tempo, ou seja, as valsas, polcas,
schottisches e mazurcas importadas da Europa para atender aos propósitos de modernidade das novas camadas da pequena burguesia. 117
Os gêneros que mais influenciaram a formação do frevo foram a modinha, o
maxixe, o dobrado, a quadrilha e principalmente a marcha-polca. Os primeiros
compositores, daquilo que viria a ser o frevo, aproveitavam livremente os elementos
harmônicos, rítmicos e melódicos das músicas em voga, sejam elas cantadas,
instrumentais ou dançadas, e aceleravam e sincopavam mais seus ritmos e andamentos,
115 Segundo a Carta do Folclore Brasileiro, elaborado no I Congresso Brasileiro do Folclore Brasileiro, no Rio de Janeiro em 1951. 116 Valdemar de Oliveira, Op. Cit., p.41. 117 José Ramos Tinhorão, Op.Cit. p.182.
110
a fim de melhor adaptarem a música à dança e ao gosto popular. A partir dessas
modificações, foi surgindo um gênero com características próprias, assim como
aconteceu com o choro. Destarte, não existe um exato momento para o aparecimento do
frevo, embora a maioria dos pesquisadores apontem José Lourenço da Silva (1889-
1952), o capitão Zuzinha, mestre da banda do 4º Batalhão de Infantaria do Recife, como
principal precursor desse gênero.
Já o �passo� � nome dado aos movimentos de dança do frevo � teve sua
origem a partir do costume, comum em alguns grandes centros, dos chamados
�valentões� abrirem passagem para as bandas, principalmente nas saídas das procissões.
No caso particular de Recife, esses �valentões� pertenciam a grupos rivais dos partidos
de capoeira, divididos entre os que eram os defensores dos desfiles das bandas de
música do 4º Batalhão de Infantaria do Recife, conhecida como �Quarto�, e os
defensores da banda de música do corpo da Guarda Nacional, dirigida pelo espanhol
Pedro Garrido e que era conhecida como �Espanha�. Durante os desfiles, os capoeiras
saíam gingando e aplicando rasteiras em uma espécie de competição coreográfica,
facilitada pela quantidade crescente de síncopes executadas pelos músicos das bandas,
que estimulavam cada vez mais o virtuosismo dos dançarinos.
Dada a rivalidade, os capoeiras, armados com paus, facas e outros artefatos,
se exibiam e lutavam entre si causando, muitas vezes, grandes confusões, com vários
feridos. No início do século XX, com a proibição dos capoeiristas de usarem armas,
começou-se a usar um guarda-chuva que, além de ser manuseado como arma de ataque
e defesa, também servia para equilibrar o passo. Com o tempo, a sombrinha
multicolorida passou a ser um dos mais representativos símbolos do frevo e deixou sua
função de ataque e defesa para ser um dos mais importantes acessórios para a
coreografia desta dança.
111
Nos atuais passos ou evoluções do frevo, como a pernada, apesar de já
estilizados pelo tempo, assemelham-se a golpes de capoeira de Angola. Esse fato,
indiscutivelmente, remonta à presença de capoeiristas nas bandas de música do passado.
São ainda passos comuns nas coreografias do frevo: a �tesoura�, �britadeira
parada�, �saci-pererê�, �pontilhando com calcanhar�, �passa-passa embaixo� e �faz que
vai e não vai�. E, apesar de dançado por multidões, o frevo é uma dança individual, na
qual os passos são improvisados de acordo com o ritmo da música.
Muito já se discutiu sobre o que veio primeiro: a música ou a dança do
frevo. Entretanto, hodiernamente os pesquisadores têm sido unânimes em afirmar que,
na verdade, nasceram juntas e que uma foi influenciando a outra, até se estabelecer o
frevo tal como é conhecido hoje.
A incorporação do frevo como música carnavalesca, deu-se por volta de fins
do século XIX e início do século XX, em conseqüência das mudanças sociais que se
operavam a essa época. Um dos motivos era a ascensão dos ex-escravos, agora homens
livres, e as novas classes trabalhadoras urbanas que incluíam, principalmente, negros e
mestiços que não podiam participar do carnaval da alta sociedade de Pernambuco. O
carnaval das elites acontecia em clubes fechados e era centrado nos bailes de máscaras e
alegorias, na tentativa de realizar um carnaval culto em que se fazia a crítica social dos
costumes, e no qual não havia espaço para as camadas mais pobres. Assim, a população
excluída criou os Clubes Carnavalescos Pedestres e invadiu as ruas com um modelo de
carnaval completamente diferente do festejo das elites, que, inclusive, fora mal visto por
elas e nem sequer era visto como carnaval.
Fica bem clara a relação existente entre a nova classe trabalhadora e os
Clubes Carnavalescos Pedestres no nome dado aos recém criados clubes-de-rua. Já por
volta do ano de 1888, saía às ruas o Bloco das Pás de Carvão, que depois ficou
112
conhecido como o Clube das Pás, composto pelos carvoeiros e estivadores que
trabalhavam no cais. Outros blocos de rua também faziam alusão aos trabalhos dos
participantes como o Clube Vassourinhas � formado pelos varredores da cidade � além
dos clubes dos Suineiros, dos Empalhadores do Feitosa, dos Abanadores, dos
Verdureiros, Espanadores, entre outros. Alguns destes existem até hoje, sem que haja,
no entanto, co-relação entre o nome e a profissão de seus componentes.
Da aglomeração formada nas ruas pelo povo comum, o trabalhador
assalariado pobre e toda a massa dos marginalizados, nasceu a expressão �frevo�, termo
que vem de �ferver�, uma alusão metafórica de efervescência e ebulição feita às grandes
massas em frenética agitação.
Já em 1907, surge, na imprensa escrita, o primeiro registro da palavra
�frevo� que aparece numa nota de 9 de fevereiro, no Jornal Pequeno, como o nome de
uma das músicas do repertório do Clube dos Empalhadores do Feitosa. Devido a esse
primeiro registro, o ano de 1907 passou a ser considerado o ano do nascimento do
frevo, muito embora a expressão �olha o frevo� já fosse muito comum nos carnavais
antes daquela data, e a música já tivesse adquirido uma forma muito semelhante à
atualmente conhecida. Nesse sentido, Valdemar de Oliveira afirma, numa linguagem
conotativa, que:
Os nomes de batismo vieram depois de nascida a criança, já ela
crescida e dona de si. A palavra �frevo� veio tarde, quando a
música � que era uma �marcha� para todos os efeitos � se impunha no carnaval.118 Por volta de 1930, o frevo já apresentava variantes que o distinguiam em
três tipos: o frevo-canção, frevo-de-bloco e o frevo-de-rua.
O frevo-canção ou marcha-canção nasceu de certas composições, algumas
já de fins do século XIX, que possuíam melodias bonitas e que eram capazes de animar
118 Valdemar de Oliveira, Op.Cit., p. 11.
113
tanto o público dos mais reservados bailes, como os passistas nas ruas. A estrutura,
dentre vários outros aspectos, se assemelhava à marcha carioca, contendo uma parte
introdutória e outra cantada, começando ou acabando com estribilhos. Valdemar de
Oliveira diferencia as duas marchas da seguinte forma:
Duas coisas, porém, as diferenciam: primeira: a parte
introdutória tem todas as características do frevo autenticamente
pernambucano, rasgado, desabrido, furioso. Depois ameniza, abrindo passagem para o canto. Segunda: o andamento da marchinha carioca é moderado; o do frevo-canção é bem mais
vivo.119
Já o frevo-de-bloco, ou marcha-de-bloco, tem sua origem nas famílias, em
sua maioria da classe média e moradora dos bairros burgueses, que, por não se
agradarem de entrar no meio da confusão do carnaval das multidões, faziam uma
carnaval mais reservado, não ao som das barulhentas bandas formadas com
instrumentos de metais, mas ao som das chamadas orquestras de pau e corda, formadas
por flautas, clarinetes, bandolins, cavaquinhos e violões. Em regra, o frevo-de-bloco é
cantado. Nota-se, neste tipo de frevo, uma fusão entre elementos do frevo-de-rua, do
frevo-canção e dos ranchos de reis e dos pastoris. Segundo Valdemar de Oliveira:
A introdução da marcha-de-bloco é pura jornada de pastoril. No
miolo da peça, a melodia é, via de regra, movimentada,
saltitante, sucedendo-se, livremente, quiálteras e semicolcheias.
Resulta mais ingênua, mais singela, mais sentimental. Até na
letra, à qual não se aplicam certas licenças, comuns, até
necessárias, ao condimento do frevo-canção.120
O frevo-de-rua, normalmente identificado simplesmente como frevo, é
considerado o mais autêntico e original dos três tipos. Sua principal característica é ser
puramente instrumental e destinado à dança. Os instrumentos geralmente utilizados para
119 Ibidem, p.36. 120
Ibidem, p.36.
114
a sua execução são os mesmos dos instrumentos das bandas marciais, ou seja, os
instrumentos de metais, sopros e percussão.
Costuma-se distinguir três classes diferentes de frevo-de-rua: o frevo-abafo,
ou de encontro, no qual há a predominância dos trombones e dos trompetes tocando em
fortíssimo e que era executado com o intuito de �abafar� as bandas de outros blocos,
quando acontecia de haver encontros nas ruas de diferentes blocos. O frevo-coqueiro é
aquele que contém muitas notas extremamente agudas que saem muito do pentagrama.
Já o frevo-ventania é caracterizado por possuir uma introdução repleta de semicolcheias
em andamento muito rápido.
Melodicamente e, por conseqüência, na harmonia, o frevo não apresenta
características do modalismo presente em tantos outros gêneros da música nordestina
devido à sua herança européia mais recente121. Embora não haja uma estrutura formal
única, segundo Câmara Cascudo, o frevo-de-rua costuma �dividir-se em duas partes e os
seus motivos se apresentam sempre em diálogos de trombones e pistões com clarinetes
e saxofones�122.
A introdução do frevo costuma ser anacrústica, e a peça, quase
invariavelmente, acaba de forma brusca, seguido de um acorde agudo longo e em
fortíssimo no segundo tempo do compasso que, nos frevos mais antigos, era um acorde
perfeito e, nos mais recentes, acrescido de diversas dissonâncias. Valdemar de Oliveira
chama atenção, ainda, para a passagem entre as parte que, segundo ele, �intervêm todos
os instrumentos, sobressaindo-se os metais, num �rasgado� violento�123 e que este seria
�um dos aspectos mais impressivos do frevo�124.
121 O modalismo presente na música nordestina, possivelmente, provém de uma herança remota da música
modal dos países ibéricos da Idade Média, enquanto que o frevo tem como origem a música européia em voga durante o século XIX. 122 Câmara Cascudo Op. Cit., p. 346. 123 Valdemar de Oliveira,Op.Cit., p. 50. 124 Ibidem
115
O andamento, sempre rápido e frenético, é repleto de síncopes para
estimular os movimentos da dança. O compositor de frevo costuma deslocar figurações
iguais, em tempos fortes e fracos, para, assim, desestabilizar a métrica. Segundo
Valdemar de Oliveira:
A imaginação do compositor intervém arbitrariamente, embora
submissa a certas constantes composicionais. Ele utiliza colcheias e semicolcheias como um perdulário, visando um
único fim: a movimentação da melodia, que se desenvolve em
imprevistos e surpresas. Pode dizer-se mesmo que o frevo é
tanto mais dinamogênico quanto mais explora esses imprevistos
e essas surpresas, principalmente à custa das síncopas e dos
grupos de 2 semicolcheias e 1 colcheia.125 Na música erudita brasileira, os compositores não recorreram ao frevo como
fonte de inspiração com a mesma freqüência que a outros gêneros brasileiros como o
choro, mas existem diversos exemplos que merecem destaque. O amazonense Cláudio
Santoro (1919-1989) escreveu um frevo para piano em 1953 e posteriormente realizou
uma versão para orquestra da mesma peça. O paulista Mozart Camargo Guarnieri
(1907-1993) também se utilizou de temas do frevo em peças suas, como o Concerto
para Piano e Orquestra nº 2 e o Concertino para Piano e Orquestra de Câmara,
embora de forma bem pessoal, distanciando-se do frevo mais autêntico. César Guerra-
Peixe, Marlos Nobre, Wellington Gomes e Clóvis Pereira são alguns outros importantes
nomes da música brasileira que também se utilizaram de elementos do frevo em suas
composições.
4.6 - Análise do Terceiro Movimento � �Frevo�
O último movimento de Reminiscências Op. 78 é intitulado �Frevo� e é uma
recriação de Nobre, no violão, do último movimento de seu IV Ciclo Nordestino Op. 43
para piano solo. O compositor, ao comentar o referido frevo para piano, afirmou que
125Valdemar de Oliveira,Op.Cit., p.49.
116
�não é uma �estilização� desta dança, é um Frevo mesmo, com todas suas características
rítmicas e harmônicas, e também de dança�126.
Apesar de �Frevo�, tanto a versão para piano quanto para violão, apresentar
muitas características de um autêntico frevo-de-rua, é perceptível o alto grau de
dissonância e modernidade dado por Nobre nestas peças, que, no entanto, não chega a
descaracterizá-las como frevo, mas dá um toque pessoal e renovador ao gênero.
O tom central da peça é o Ré menor. O estudioso do frevo, Valdemar de
Oliveira, faz o seguinte comentário, bastante poético, a respeito dos frevos nesta
tonalidade:
Nos frevos escritos em menor, há um indecifrável encanto, uma certa força nostálgica na fusão da melodia triste com o rasgado
repentino dos metais em ff , quase uma contradição, espécie de
tristeza desesperada, arranque de pessoa que passa de um pranto amargo a uma revolta incontida.127
No �Frevo�, assim como nos dois movimentos precedentes, observa-se uma
grande concisão na escrita e o uso constante de texturas polifônicas. Mas, ao contrário
das outras duas peças, no �Frevo�, Nobre não usa o padrão formal usual do gênero. A
estrutura mais comum no frevo é a forma binária, com repetições que podem variar de
acordo com o arranjo, ou mesmo serem decididas pelos intérpretes na hora, conforme a
maior ou menor empolgação do público dançante. O �Frevo� de Nobre não apresenta
seções definidas, mas um contínuo desenvolvimento dos temas, criando inesperadas
surpresas rítmicas, ao explorar as síncopes e os acentos deslocados, como em todos os
frevos, mas sempre com base no mesmo material temático. Esse procedimento de
Nobre, revela, em parte, que as suas intenções não eram documentais, mas tão somente
expressar a forma como ele via e sentia o frevo.
126 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 265, 09 de março de 2005, acessado em 15 de janeiro de 2006. 127Valdemar de Oliveira, Op.Cit., p.37.
117
A organização dos temas de �Frevo� pode ser demonstrada no seguinte
quadro: Tabela 6
Temas Compassos
a1 1-8 b1 9-16 a1 17-24 b1 25-32 a2 33-41 a3 41-48 b2 49-57 b3 57-65 a3 65-72 b1 73-80
a3 (fragmento) 81-85 a3 85-92 b2 91-100 b3 101-108 a3 109-116 b1 117-126
Os tipos de desenvolvimentos temáticos usados no �Frevo� e no �Choro� da
Suíte Reminiscências Op. 78 são semelhantes. As transformações dos temas incluem
ornamentação, transposição, inversão, fragmentação, variação rítmica, entre outros,
como pode ser verificado nos seguintes exemplos:
Exemplo 36a: Frevo, comp. 17-20 (transposição, ornamentação e inversão):
Exemplo 36b: Frevo, comp. 45-46 (fragmentação e variação rítmica):
118
Exemplo 36c: Frevo, comp. 33-37 (transformação do tema):
No plano harmônico, a peça revela relações tonais bem claras, embora o
grau de dissonância e a quantidade de notas alteradas, como as que podem ser
observadas nos exemplos abaixo [37a], não sejam usuais nos frevos tradicionais. Além
do mais, em diversos momentos, Nobre se utiliza de harmonias quartais [37b e 37c]:
Exemplo 37a: Frevo, comp. 1-11:
Exemplo 37b: Frevo, comp. 101-104: Exemplo 37c: Frevo, comp. 96:
No plano rítmico, Nobre é conservador: utiliza o compasso 2/4 e células
rítmicas e as síncopes características do gênero, embora, em alguns momentos, ele
119
também faça uso de compassos que não são usuais nos frevos, como os 3/4 e 4/4, que
Nobre usa especialmente em algumas finalizações como a seguinte:
Exemplo 38: Frevo, comp. 105-108:
Mesmo em se tratando de uma peça para violão solo, a polifonia presente na
escrita da peça, além do constante jogo de perguntas e respostas dos temas, lembra o
diálogo que acontece entre os diferentes naipes das orquestras de frevo. Já os trechos
em que aparecem dinâmicas mais fortes ou o uso dos rasgueados lembram o tutti
orquestral típico. O dissonante acorde final, no segundo tempo do último compasso, é
praticamente uma marca registrada dos frevos e também está presente nesta peça de
Nobre.
O cromatismo observado nos dois movimentos precedentes desta suíte
também é marcante no �Frevo�, da mesma forma que a quebra das linhas melódicas
oitavando notas, o que dá uma sonoridade mais moderna à peça, como pode ser
observado nos seguintes exemplos:
Exemplo 39a: Frevo (acorde final), comp. 125-126:
Exemplo 39b: Frevo (cromatismo), comp. 74-75:
120
Exemplo 39c: Frevo (oitavas), comp. 99:
4.7 - Conclusões
Os três movimentos de Reminiscências Op. 78, �Choro�, �Seresta� e
�Frevo�, demonstram diversos aspectos que dão unidade e coerência entre si.
Primeiramente, a existência de uma matriz popular aliada ao uso de técnicas
contemporâneas para a criação de uma peça de concerto com uma linguagem pessoal,
refletindo uma tendência pós-modernista da quinta fase de Marlos Nobre.
O uso do centro tonal Ré e o constante cromatismo são outros importantes
fatores unificadores. O princípio da variação, a concisão de escrita, a importância do
ritmo, o uso de síncopes, acentos deslocados, também são elementos presentes nos três
movimentos.
Num fórum da internet, Nobre fez uma declaração informal orientando como
é o seu processo de criação. Por conseguinte, em decorrência de tal declaração, tornou-
se mais fácil compreender a razão da economia e concisão de materiais nas três peças
analisadas:
Ao criar, deve o compositor identificar claramente sua idéia
musical mãe, a "célula-mater" do pensamento musical que brotou talvez do seu inconsciente; depois, deve o criador reunir a maior quantidade possível de idéias derivadas, através dos
processos de transformação, variação, transgressão, proliferação
temática e metamorfose. Este estágio já é mais consciente, mas
nele não deve e não pode o compositor aplicar o espírito
121
analítico nem judicioso (a autocrítica); o terceiro estágio é o de
tentar criar o maior número possível de idéias-soluções, idéias-contrastantes, idéias-díspares; de posse do maior número
possível de idéias derivadas, pelos processos acima, já
subliminarmente o criador estará exercendo um processo de
filtragem, de escolha das idéias que mais lhe parecem lógicas
para seu trabalho; segue então a etapa mais consciente, de julgar,
analisar, filtrar e organizar as idéias: aqui começa o processo de
composição, que é definitivamente o processo de ESCOLHA e
RECHAÇO daquilo que presta e aquilo que não presta, de
acordo com a ótica do criador. Este processo é essencialmente
individual, é aí que se sente o compositor real, pois ao escolher,
rechaçar e aplicar idéias, ele o faz de acordo com suas
necessidades pessoais mais íntimas128.
Outra declaração de Nobre esclarece o cromatismo constante usado nos três
movimentos e que já faz parte da linguagem desse compositor:
A minha busca harmônica baseia-se sempre na íntima convicção consolidada com o tempo, de que é ainda
possível descobrir novas possibilidades harmônicas
independentes da técnica de 12 sons, da tonalidade e da consonância tal como as vemos tradicionalmente. Acredito
que a escala tradicional cromática ainda não foi totalmente
explorada e esgotada. É possível ainda descobrir meios
diferentes e novos, além dos tradicionais, dos
dodecafônicos e dos seriais, de ligar e religar as harmonias
entre si.129
Enfim, Reminiscências Op. 78 é um exemplo bem acabado da combinação
entre o tradicional e o moderno, sempre com o traço marcante do estilo e da
personalidade de Marlos Nobre.
128 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 88, 27 de fevereiro de 2003, acessado 15 de janeiro de 2006. 129 Marlos Nobre, �Minhas convicções musicais� in Home Page Oficial de Marlos Nobre, disponível em
<http://marlosnobre.sites.uol.com.br>.
122
CAPÍTULO 5
Técnica e Interpretação em Reminiscências Op. 78
Já foram comentadas, no Capítulo 3, as dificuldades de execução e
interpretação que a maioria dos violonistas se depara ao preparar para execução a peça
Reminiscências Op. 78 de Marlos Nobre. Nesse sentido, Fábio Zanon, no artigo O
Violão no Brasil depois de Villa-Lobos, menciona que
A considerável dificuldade técnica de suas obras tem se mostrado um fator inibidor, e Nobre é, num plano
internacional, mais respeitado que tocado, mas este é um fator
que deve ser superado em favor de obras de qualidade superlativa que merecem atenção incondicional.
130
No entanto, o domínio de Nobre da escrita para violão é inegável. Em um
depoimento num fórum da internet, o compositor narra um ocorrido que ilustra tanto o
conhecimento dele das possibilidades do violão, quanto a necessidade de empenho dos
intérpretes para superar as dificuldades impostas por uma obra que pretende ir além dos
clichês usuais do violão:
Marcelo Kayath, logo após triunfar nos concursos de Paris e
Toronto, era muito amigo meu e me pediu uma peça para
estrear em Londres. Escrevi o Prólogo e Toccata. Na primeira vez que leu, o Marcelo me disse ser demasiadamente difícil.
Então fiz uma versão mais fácil. O Marcelo a provou e me
disse: �Fico com a primeira, a mais difícil, vou estudar� E a
tocou e gravou excepcionalmente bem. Eu mostrei ao Marcelo que podia escrever �mais fácil�, mas que a dificuldade inicial da obra não era gratuita, mas um elemento essencial ao espírito
da obra. Eu o havia provocado, escrevendo uma versão mais
fácil, e isso mexeu com os brios dele. A obra foi editada como
a concebi e assim é tocada, e joguei fora a versão �fácil�131.
130Fábio Zanon, O Violão no Brasil depois de Villa-Lobos, Artigo disponível em:
<http://vcfz.blogspot.com/2006/05/o-violo-no-brasil-depois-de-villa.html>, Acesso em: 01 de maio de 2006. 131 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 37, 10 de outubro de 2003, acessado 8 de abril de 2006.
123
Com o intuito de minimizar algumas das dificuldades técnicas existentes
especificamente em Reminiscências Op. 78, foi elaborada, neste trabalho, uma nova
edição da peça, contendo novas digitações, além da inclusão de sinais que representam
procedimentos instrumentais � aqui chamados de orientadores técnicos �, que também
visam facilitar o estudo e a execução da peça. Esperamos que, com a adição desses
dados, aliada a informações sobre elementos da interpretação, consigamos tornar a peça
mais acessível a um maior número de violonistas.
A respeito das digitações de sua obra para violão, Marlos Nobre comenta
que normalmente não faz consultas a violonistas durante o processo composicional das
peças,132 e que os intérpretes já as recebem finalizadas, seja com as digitações
totalmente inclusas, ou parcialmente deixadas a cargo dos mesmos, mas, geralmente,
não são necessárias modificações da peça em si133. No caso específico de
Reminiscências Op. 78, a digitação foi feita com ajuda do violonista Marcelo Kayath,
mas o compositor comenta, em depoimento, que �uma vez que eu assimilei totalmente
como escrever a digitação eu sempre prefiro colocar, eu mesmo, as digitações que
pensei eu mesmo, originalmente�134. E conclui seu pensamento com a seguinte
declaração:
Penso que todo instrumentista tem seus macetes particulares e isso é coisa deles. Eu tenho minhas próprias idéias
instrumentais para o violão, especificamente, e coloco o mais
exatamente possível estas idéias em escritura definitiva em
minhas partituras para o violão.135
132 O compositor afirma também que possui dois ótimos violões e que ele próprio, apesar de não ser
violonista, faz, posteriormente, o teste de escritura nos violões. Diz ainda que o seu processo composicional, tanto para violão como para qualquer outro instrumento, dá-se mentalmente, não
necessitando do instrumento. Ver Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007). 133 Ver Entrevista No. 1 (Realizada em 09/04/07) e Colin Cooper, �Speaking Internationally, Colin Cooper Interviews with Marlos Nobre� in Classical Guitar Volume 12, No. 3 (Novembro, 1993). 134 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007). 135 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007).
124
Portanto, as digitações originais de Nobre podem, ou, até mesmo, devem,
servir como ponto de partida para tentar entender sua idéia original, mas, a despeito da
importância e grande fonte de informação para o intérprete, há de ser levado em
consideração que Marlos Nobre, apesar de grande conhecedor do instrumento, não era
violonista e, devido a isso, algumas particularidades próprias da execução do
instrumento podem ter passado despercebidas. Além do mais, como já foi comentado no
Capítulo 2, uma das grandes virtudes da obra para violão de Nobre, é o fato de sua
escrita extrapolar os padrões costumeiramente usados no violão, e criar uma linguagem
inovadora que exigirá novas soluções por parte dos intérpretes.
Sobre a elaboração de uma digitação, sabe-se que muitas vezes ela pode
fazer com que uma idéia musical seja bem entendida ou prejudicada de acordo as
escolhas feitas e que, para tais escolhas, segundo Daniel Wolff, �é necessário um
profundo conhecimento do violão através de estudo�136, ou seja, só por meio da prática
contínua de execução do instrumento que se poderá ter o domínio de como realizar uma
boa digitação. Por outro lado, há ainda o fato de que uma digitação pode funcionar para
uns e não para outros. Para Wolff, a escolha de uma digitação depende de fatores como:
Dificuldade da peça; Características individuais (anatomia, instrumento a ser usado,
domínio técnico, sonoridade do instrumento); Estilo da peça; Interpretação (fraseado,
articulação, timbre, etc.).
Por tudo isso, ao digitar Reminiscências Op. 78, o executante deve tentar
buscar, em primeiro lugar, as intenções musicais do compositor. Essas intenções
poderão ser percebidas através de indícios encontrados na análise musical da peça; no
levantamento de questões estilísticas; e nas próprias indicações do compositor na
partitura, que incluem as suas digitações e demais anotações. Só após um exame
136 Daniel Wolf, �Como Digitar uma Obra para Violão� in Violão Intercâmbio No. 46 (2001).
125
aprofundado de diversos aspectos de cada música, é que o interprete poderá, então,
definir a sua própria digitação para executar a peça de forma eficiente e coerente.
No caso de Nobre, ele é um compositor, normalmente, muito detalhista em
sua escrita, que contém muitas indicações de articulações, dinâmicas, caráter, entre
outros fatores que explicitam suas intenções musicais, mas, por outro lado, sempre há
uma grande margem entre o que está no papel e o que é realmente intencional do
compositor, como atesta Nicholas Cook no livro Musical Analysis and the Listener:
Quando o compositor coloca uma música no papel ele conta
com que os leitores tenham ouvido musical e imaginação o
suficiente para precisar o intervalo, ritmo e dinâmica que a
notação omite, da mesma forma que ele [o leitor] terá que
contribuir com valores sonoros, dramáticos e emocionais que
não são possíveis de se especificar na partitura137.
Levando em consideração a influência que a digitação tem sobre o resultado
final de uma execução, passaremos a comentar sobre os orientadores técnicos que serão
usados em apoio à digitação elaborada. Em seguida, passaremos a expor os critérios e as
conclusões acerca da interpretação de Reminiscências Op. 78, assim como a relação
desta com as digitações e orientadores técnicos inseridos na edição que elaboramos.
5.1 - Os Orientadores Técnicos
Pode-se definir �orientadores técnicos� como o conjunto de sinais impressos
em partitura que indicam não necessariamente como a música deve soar, mas como o
executante deve proceder em sua técnica instrumental para tocar determinada passagem.
137�When a composer writes down music he is relying heavily on the reader�s musical ear and
imagination in supplying the precise intervallic, rhythmic and dynamic values that the notation omits, just as he has to contribute sonorous, dramatic and emotional values that cannot possibly be specified in the score.� Nicholas Cook, Apud Fredi Gerling,�Analysis for Performance and Performance Analysis: A
Study of Villa-Lobos Bachianas Brasileiras No.9�. Tese de Doutorado. University of Iowa, 2000.
126
Na literatura violonística tradicional, é comum encontrar alguns tipos de
orientadores técnicos simples como, por exemplo, a indicação dos dedos a serem usados
pela mão esquerda ou direita, o uso de pestanas, indicação da corda em que a nota deve
ser tocada, tipo de timbre da mão direita, ou em qual posição no braço do instrumento
deve ser executado determinado trecho.
No entanto, vários outros procedimentos técnicos, freqüentemente usados
por violonistas, ainda não se encontram impressos em partitura, ficando tais
informações restritas às orientações de professores ou violonistas mais experientes, por
meio de tratados sobre execução ou em aulas privadas, como observa Albérgio Diniz
Soares, em sua dissertação de mestrado138.
O mesmo autor observa que tal situação vem paulatinamente se
modificando, e diversos trabalhos já começam a inserir sinais representando novos
procedimentos técnicos como parte integrante da partitura. Na referida dissertação de
mestrado de Albérgio Diniz Soares, são elaborados e aplicados orientadores técnicos,
numa edição de dois estudos para violão solo de Francisco Mignone. Há também, no
Brasil, o livro Técnica Violonística de Edílson Eulálio, que desenvolveu símbolos que
representam diferentes modos de pulsar as cordas com a mão direita, e, também, a
dissertação de mestrado de Eugênio Lima de Souza139, na qual é tratada a utilização de
símbolos, que são chamados por ele de Operadores de Execução (Opex), e que, de
forma semelhante ao trabalho de Diniz Soares, representam tanto procedimentos
mecânicos como interpretativos. Mario Ulloa, no artigo Articulação musical e técnica
instrumental, e Orlando Fraga, no livro 10 Estudos de Leo Brouwer: Análise Técnico-
138 Albérgio Claudino Diniz Soares, �Orientadores Técnicos nos Estudos IV e VII de Francisco
Mignone�. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, 1998. 139 Eugênio Lima Souza,�Recursos Técnicos e Processos Intertextuais na Sonatina para Violão de José
Alberto Kaplan�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997.
127
Interpretativa, também incluíram, em seus trabalhos, símbolos que representavam
procedimentos técnicos.
Para o presente trabalho, serão utilizados orientadores técnicos, não só com
o objetivo de facilitar a execução de determinados trechos da peça ora em estudo, mas
também tornar mais claras as intenções interpretativas sugeridas. Os símbolos a serem
utilizados e suas finalidades estão resumidos no seguinte quadro140:
Tabela 7
Símbolo Definição Apagamento da corda indicada.
Apagamento da corda indicada por um dedo da mão direita (p,i,m,a) ou da mão esquerda
(1,2,3,4).
[ Tocar as notas simultaneamente com um
dedo da mão direta.
Apagamento de cordas com a borda externa
da mão direita.
Apagamento de cordas com a borda interna
da mão esquerda.
Tocar a nota indicada com o polegar da mão
esquerda.
Posição transversal do braço esquerdo em
relação ao braço do violão. Aqui, os dedos
são posicionados paralelamente aos trastes do violão.
Posição semi-transversal. O braço esquerdo
fica posicionado com o cotovelo afastado do corpo, direcionado para a sua esquerda.
Posição oblíqua. O braço esquerdo
posiciona-se com o cotovelo direcionado para o lado do corpo, ou seja, no sentido
contrário à posição anterior.
140 Esses símbolos são os mesmos utilizados Albérgio Diniz e Orlando Fraga, em seus respectivos
trabalhos.
128
5.2 - Critérios e exemplos do uso da digitação e dos orientadores
técnicos em Reminiscências Op. 78
Passaremos a listar e justificar alguns exemplos nos quais utilizamos os
orientadores técnicos ou fizemos alterações na digitação. Para não tornar o capítulo
demasiadamente extenso e cansativo, serão mostrados apenas os principais trechos em
que ocorrem as referidas mudanças e inserções de símbolos, pois todos os restantes que
não forem comentados encaixam-se em algum dos casos descritos. Basicamente, as
mudanças foram guiadas por razões técnicas, musicais ou ambas.
Alguns orientadores técnicos inseridos e mudanças de digitação feitas na
edição de Reminiscências Op. 78 ocorreram em função da duração das notas no decorrer
da execução. Sendo a polifonia um dos elementos mais importantes em todos os três
movimentos da peça, o intérprete deve ter grande cuidado para que a nota não soe
menos do que deveria, perdendo a continuidade da linha; tampouco pode ela soar mais
do que o escrito, a fim de não obscurecer a polifonia. No entanto, em Reminiscências,
existem casos em que não será possível deixar soar o quanto está escrito, então o
intérprete terá que ter o cuidado para não fazer um corte brusco, mantendo alguma outra
voz soando para disfarçar a que não pôde ser ouvida até o final. Por outro lado, há casos
onde a textura é harmônica, e não polifônica, por isso, é interessante deixar a nota soar
mais do que está escrito. Nos exemplos a seguir, pode ser observado o uso da digitação
e dos orientadores técnicos atuando no sentido de deixar mais evidente para o
executante os problemas descritos acima:
Exemplo 40a: Choro, comp.75 - Henry Lemoine:
129
Exemplo 40b: Choro, comp.75 - Sugestão do Autor:
Exemplo 40c: Seresta, comp.15 - Henry Lemoine:
Exemplo 40d: Seresta, comp.15 - Sugestão do Autor:
No exemplo [40a], tanto a melodia quanto a voz interna são cortadas quando
ocorre a mudança da pestana da casa 2 para a 5, no segundo tempo do compasso. Dessa
forma, o �Lá4� e o �Ré4� ficam impossibilitados de continuarem soando, prejudicando
o entendimento da polifonia. A mudança de digitação feita em [40b] evita o referido
corte das vozes.
Outro fator que prejudicaria a polifonia seria se o executante deixasse a nota
�Lá3� da voz interna soando junto com o �Ré4�, pois daria uma impressão de uma
figuração com funções harmônicas, e não melódicas. O orientador técnico presente no
exemplo [40b] tem a função de alertar o intérprete para que o referido �Lá3� não
continue soando. As setas presentes em [40b] sugerem a posição do braço esquerdo do
violonista a fim de facilitar a execução trecho.
130
O caso contrário é representado nos exemplos [40c] e [40d], no qual deixar
as notas ressoando harmonicamente é uma possibilidade interpretativa interessante, pois
evita cortar o cromatismo do baixo e faz com que haja maior destaque para a harmonia.
Além da polifonia, outro elemento marcante de Reminiscências é, sem
dúvida, o ritmo. Em diversos trechos de toda a peça, o compositor escreve acentos, que
são de grande importância para dar o �gingado� típico da música brasileira. No entanto,
a interpretação de quanto forte deve ser o acento é altamente subjetiva e, portanto,
podem acontecer casos em que sua função é distorcida, causando um efeito diferente do
pretendido pelo compositor. Se nos basearmos nos acentos usados pelos executantes de
choro, por exemplo, veremos que o acento não deve ser tão explícito, mas, ao contrário,
discreto.
Em alguns casos, a simples escolha correta da digitação da mão direita pode
resolver, ou, pelo menos, minimizar o problema das acentuações. Em geral,
naturalmente, o dedo polegar da mão direita tende a tocar mais acentuado que os demais
dedos. Então, por essa razão, funciona muito bem, sempre que possível, se utilizar do
polegar nos momentos em que ocorrem acentos e os demais dedos quando não. Claro
que se o intérprete desejar acentuar ainda mais a nota, o polegar poderá fazê-lo com
mais facilidade. O uso do polegar para facilitar as acentuações pode ser observado nos
seguintes trechos do �Choro�:
Exemplo 41: Choro, comp.12-14:
131
Exemplo 42: Choro, comp.35-36:
Seria muito difícil executar o trecho do exemplo [41] só com o polegar e,
ainda, fazendo acentos, pois o trecho é consideravelmente rápido. Igualmente complexo
seria realizar os acentos com a digitação de mão direita alternando os dedos indicador e
médio, pois, além da velocidade, não existe regularidade nos acentos, o que causa certa
confusão para execução. Portanto, com a digitação usando o polegar para as
acentuações, tanto o problema técnico quanto o musical estão parcialmente resolvidos.
Já o exemplo [42], como já foi demonstrado em análise, provavelmente o
compositor faz recordar o ritmo do pandeiro de um grupo de choro. A simples
alternância do toque dos demais dedos com o polegar nos acentos torna o efeito muito
natural e próximo da acentuação típica do choro. No entanto, executar o exemplo [42]
usando sempre o polegar na voz inferior e alternando os dedos indicador e médio na voz
superior, seria uma forma de execução que, embora possível, deixaria o ritmo todo
muito pesado e o acento forçado.
De uma forma geral, durante o aprendizado de uma peça, a maioria dos
violonistas não tem tanta preocupação com a escolha dos dedos da mão direita,
improvisando, a cada momento, os dedos a serem usados. Além disso, as edições de
música para violão nem sempre costumam indicar os dedilhados da mão direita. Este
fato é lastimável, pois a boa digitação de mão direita é um fator básico para o
desempenho eficiente da mão direita e conseqüentemente de toda a música.
As digitações de mão direita foram inseridas em trechos nos quais havia
fatores complicadores como possíveis cruzamentos de dedos, mudanças inadequadas da
132
posição da mão, entre outros fatores. O exemplo seguinte demonstra um trecho de
considerável dificuldade técnica, em que uma boa digitação, tanto de mão direita quanto
de esquerda, é fundamental para a fluência da música, a não ser que o executante tenha
uma excepcional facilidade para realizar escalas.
Exemplo 43: Frevo, comp.29-30:
Ademais, há trechos nos quais é possível combinar o uso de ligados com
digitações alternativas, utilizando os quatro dedos da mão direita em trechos de escalas
que, tradicionalmente, são tocadas apenas com os dedos indicador e médio da mão
direita. Nos trechos seguintes, podem ser observados exemplos desse tipo de recurso
que, além de facilitar tecnicamente, contribui para a articulação:
Exemplo 44: Frevo, comp.12:
Exemplo 45: Frevo, comp. 36:
Aliás, o uso de ligados de mão esquerda, além de, em certas passagens,
facilitar a execução, torna a linguagem mais próxima de como os executantes de violão
de 7 cordas costumam tocar, fazendo com que soe estilisticamente mais aproximado das
intenções do compositor.
133
Exemplo 46: Choro, comp.25:
Exemplo 47: Seresta, comp.12:
5.3 - Elementos da Interpretação
Foi demonstrado na análise de Reminiscências Op. 78 (Capítulo 4) que
diversos elementos característicos da música popular urbana brasileira estão fortemente
presentes em todos os três movimentos da peça. Da mesma forma que na composição,
acreditamos que o intérprete deve tentar buscar uma execução da peça que valorize a
forma particular com que os gêneros de música popular que inspiraram Reminiscências
são tocados em seus contextos originais. Neste sentido, Marlos Nobre declarou:
Esta minha peça Reminiscências capta muito deste espírito
especial do �chorão� de tocar, reminiscência das reuniões dos
chorões pernambucanos, que se reuniam aos domingos
simplesmente para tocarem pelo prazer de fazerem música em
conjunto. Portanto, uma vivência ou uma especial atenção e
estudo dos toques tão peculiares dos �chorões� brasileiros é
muito útil para interpretar esta obra como tem de ser. 141
5.3.1 - Articulação
Um recurso interpretativo importante na busca de uma sonoridade mais
próxima daquela que Nobre se refere na citação anterior, certamente, é a articulação. Já
141 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007).
134
nos referimos acima ao uso dos ligados no estilo geral dos executantes de violão de 7
cordas nos choros. O violonista Charles Duncan, no livro The Art of Classical Guitar
Playing, ao comentar sobre a importância dos ligados como recurso expressivo, fazia
seguinte afirmação, que é perfeitamente condizente com maleabilidade típica dos
chorões no uso dessa técnica em suas frases melódicas:
Fazer um ligado de uma nota a outra resulta num contraste distinto. Primeiro, a nota tocada é sonoramente mais forte que a
ligada. Além do mais, o ligado cria uma sutil, mas inequívoca,
ênfase agógica; as notas tocadas não só são mais fortes, mas
também um pouco mais longas que as notas ligadas.142
Os ligados devem ser acrescentados, principalmente, nos trechos do
�Choro� e da �Seresta� em que o violão realiza as �baixarias�, já que os ligados são
idiomáticos do estilo. Em nossa edição, acrescentamos sugestões de ligados, não só com
essa finalidade musical, mas também com as já explicadas finalidades técnicas. O
intérprete, contudo, ter liberdade ao criar as suas próprias articulações.
Além dos ligados, os staccatos também têm uma importante função no
intuito de dar mais riqueza e �balanço� na execução da música brasileira. Almir Côrtes
Barreto ao analisar, em sua dissertação de mestrado, o uso do staccato por Jacob do
Bandolim, afirma que este recurso é �bastante utilizado em seções onde percebemos
mais �molho�143 no trato da melodia, de modo a reforçar os deslocamentos rítmicos�
144.
É importante que o intérprete determine exatamente em que momentos será
usado o staccato para dar maior variedade de articulação. O motivo inicial do �Choro�,
por exemplo, dá margem a diversas interpretações possíveis:
142 �Slurring from one note to the next results in distinct contrast. First, the plucked note is audibly louder
than the slurred note. Furthermore, slurs create a subtle but unmistakable agogic emphasis; plucked notes ore not only louder but also a little longer than slurred notes� Charles Duncan, The Art of Classical
Guitar Playing. Princeton, New Jersey: Summy-Birchard Music, 1980, p. 87. 143 Segundo Almir Côrtes Barreto, �molho� é uma gíria usada pelos tocadores de choro que significa
deslocamento rítmico, balanço, suingue, bossa. 144 Almir Côrtes Barreto, �O Estilo Interpretativo de Jacob do Bandolim�, Dissertação de Mestrado,
Universidade Estadual de Campinas � UNICAMP, 2006, p. 55.
135
Exemplo 48: Choro, comp.1:
Em nossa edição do �Choro� e da �Seresta�, optamos por não colocar
nenhum staccato que já não tivesse sido escrita pelo compositor. Isto porque as
possibilidades de articulações são infinitas e se trata de algo muito pessoal, que pode ser
usado à vontade, desde que não descaracterize o estilo. No entanto, sugerimos que, uma
vez determinada a articulação dos motivos recorrentes � como o do exemplo anterior �
ela deve ser mantida no restante da peça, a menos que o intérprete deseje,
conscientemente, realizar um contraste.
Já os staccatos que inserimos na edição de �Frevo�, foram copiados das
indicações que o próprio compositor colocou na versão para piano da mesma peça. É
importante lembrar que Marlos Nobre teve a oportunidade de vivenciar o frevo durante
muitos anos em que morou no Recife, e que todas as indicações de stacatos que
aparecem na partitura para piano são, na verdade, uma transposição do estilo de tocar
das bandas típicas de frevo. Em geral, os frevos são tocados de forma muito marcada e
rítmica, fazendo um uso freqüente de notas curtas. Embora o compositor não tenha
escrito as mesmas indicações da versão para piano na partitura de �Frevo� para violão,
ele declarou que:
No meu Frevo para violão, o intérprete pode ter certa liberdade,
dentro da escritura que proponho, mas esta liberdade tem de estar ligada à tradição do gênero, ou seja, do �frevo� popular de
Recife.145
145 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007).
136
Ainda que o intérprete não necessite fazer todas as indicações que
inserimos, elas podem servir como importantes referências do estilo geral de se tocar o
frevo.
Em alguns casos, o staccato também pode ser usado em substituição a
certos acentos, pois o acento não é só um golpe mais forte em uma nota. Pode-se
conseguir um efeito semelhante ao se tocar uma nota em staccato dentro de um contexto
essencialmente legato, chamando a atenção para a nota destacada, criando, assim, uma
maior riqueza de sonoridade.
Exemplo 49: Choro, comp.19-20:
Na técnica tradicional do violão, a execução do staccato pode ser feita tanto
com a mão direita quanto com a mão esquerda. No entanto, há diferenças perceptíveis
na sonoridade dos dois tipos de técnicas. O staccato feito com a mão direita tende a ser
mais seco e preciso, funcionando bem nas partes da peça que necessitam de maior
precisão, como no caso da seguinte passagem de �Frevo�:
Exemplo 50: Frevo, comp.33-34:
Entretanto, de uma forma geral, o staccato feito com a mão esquerda é o
mais usual entre os violonistas populares, pois faz com que a música não fique tão
marcada, ajudando com que ela tenha um �gingado� mais característico. Assim, desde
que não seja necessário um staccato mais marcado, como no exemplo anterior, o
137
intérprete deve dar preferência àquele tipo de técnica, sempre que for possível.
Ademais, Mario Ulloa, em seu artigo Articulação Musical e Técnica Instrumental,
lembra que esse tipo de articulação, quando feito com a mão esquerda, além de sua
contribuição no discurso musical, serve também como uma importante ferramenta para
o relaxamento muscular.
Já nas partes lentas de Reminiscências Op. 78 � a seção C do �Choro� e a
�Seresta� � devem ser tocadas explorando o máximo de legato e a polifonia destas
passagens. Neste caso, o staccato é usado com a finalidade de ressaltar a polifonia em
alguns momentos específicos. A este respeito, Elisa Alves Goritzki diz que:
Como os demais elementos interpretativos, a articulação está
diretamente ligada ao andamento e ao caráter da peça. De
acordo com isso, um choro rápido de caráter mais alegre,
necessita de uma articulação mais solta, salpicada. Em músicas
lentas a articulação mais usada é a ligada, sendo a destacada
utilizada como um ornamento para reforçar ou indicar o
fraseado.146
Na análise que Almir Côrtes fez das interpretações gravadas de Jacob do
Bandolim, ele observou que era muito freqüente o uso do staccato na colcheia
intermediária da célula rítmica semicolcheia/colcheia/semicolcheia: . Não significa,
entretanto, que, sempre que apareça essa célula rítmica, o intérprete deva fazer o
staccato, pois isso tornaria o efeito previsível e perderia o sentido de criar variedade.
Por outro lado, ao menos nos momentos em que tal célula rítmica aparece
com função de acompanhamento em acordes � tal como nos compassos 5 ou 25 do
�Choro� � recomendamos a inclusão de um staccato na colcheia central, por ser a forma
mais usual de se executar este padrão de acompanhamento por um violonista de choro.
146 Elisa Alves Goritzki, �Manezinho da Flauta no Choro: uma Contribuição para o Estudo da Flauta
Brasileira�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2002, p. 54.
138
5.3.2 � Agógica e Tempo
Marlos Nobre geralmente coloca em suas partituras as indicações de
andamento que ele deseja que sua música seja tocada, e costuma ser rigoroso quanto a
isso. Nos três movimentos da suíte Reminiscências, aparecem as indicações base do
andamento de cada peça, colocadas pelo próprio compositor. Suas partituras também
são muito detalhadas quanto a variações internas de andamento.
Na interpretação da música popular, entretanto, o suingue é tido como um
dos principais atributos de um bom executante. Acreditamos que para uma interpretação
coerente de Reminiscências Op. 78 é muito importante inserir esse elemento expressivo.
Suingue é um termo de difícil definição e descrição. Segundo J. Bradford Robinson, o
termo se refere, basicamente, �ao fenômeno rítmico resultante entre o conflito de um
pulso fixo e uma grande variedade de acentos e rubato�147. Segundo, Fábio Zanon, o
suingue �talvez seja uma percepção aguçada de alguns elementos da pronúncia musical,
que normalmente não são prioritários para músicos treinados exclusivamente na música
clássica�148.
Segundo Eliane Salek, �as variações rítmico-melódica utilizadas na
interpretação do choro são resultado da criatividade do intérprete, aliada aos elementos
de sua formação ou �escola� musical�149. Ouvir atenciosamente aos importantes
intérpretes e uma vivência especial nos gêneros é a principal forma de adquirir essa
habilidade cujo detalhamento fugiria ao escopo deste trabalho. Todavia, tem sido cada
vez mais freqüentes os trabalhos de acadêmicos que têm se debruçado na tentativa de
147J. Bradford Robinson, �Swing� in The New Grove Dictionary of Music and Musicians, London: Macmillan Publishers Corp., 1980, Vol. 24, p.416. 148 Fábio Zanon, �A Arte do Violão�. Roteiro do programa de rádio transmitido pela Cultura FM,
disponível em: <http://aadv.home.comcast.net/>. Acesso em: 01 de maio de 2006. 149 Eliane Salek, �A flexibilidade rítmico-melódica na interpretação do choro� in Cadernos de
Colóquio,(Abril 1999), p. 73.
139
levantar as características de execução de nomes da música popular brasileira que
fizeram escola por suas formas marcantes de execução.
Sabe-se que em diversos gêneros da música brasileira, nem sempre a escrita
corresponde à execução. Segundo Tânia Mara Lopes Cançado, há, na música brasileira,
certa irregularidade e instabilidade na execução dos ritmos sincopados que estariam
associados à origem africana de nossa música, a essa irregularidade a autora chama de
�fator atrasado�. Ela afirma que:
Esse fator atrasado não se apresenta definido na partitura, e para se interpretar de maneira idiomática os ritmos da música
brasileira, o músico necessita não só do conhecimento desses
elementos, mas, literalmente, incorporá-los. Assim, os intérpretes deveriam estar cientes dessa prática de performance ao lerem a notação musical de boa parte do repertório
nacional.150
Cançado diz ainda que �a irregularidade e instabilidade presente na
performance dos ritmos populares brasileiros são características antigas�151. Ela cita
Mário de Andrade, que confirma o fato e afirma que era comum, na época da formação
do maxixe, os compositores incluírem uma �dica� de como executar a célula rítmica
semicolcheia/colcheia/semicolcheia, com a seguinte representação:
Exemplo 51a: Transcrição mais antiga da síncope brasileira (�dica�):
Neste senso, segundo o compositor Cyro Pereira152, seria muito difícil
escrever o que realmente é interpretado num samba ou choro. Conforme ele, a
150 Tânia Mara Lopes Cançado, �O fator atrasado na música brasileira: evolução, características e
interpretação� in Per Musi � Revista Acadêmica de Música, nº2, (2000), p.12. 151 Ibidem, p.9. 152 Apud Renato Kutner, �Brasiliana nº 2 de Cyro Pereira: Análise Interpretativa, Preparação de Edição e
Redução para Viola e Piano�, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, 2006, p. 17.
140
correspondência entre o escrito e o executado desta célula rítmica seria,
aproximadamente, o seguinte:
Exemplo 51b: Execução da célula rítmica do choro
A irregularidade rítmica da música popular brasileira não é uma
característica apenas das músicas com origem na dança, mas também em músicas mais
lentas e sentimentais. Nobre, ao comentar sobre a atitude do intérprete ao tocar a sua
�Seresta�, diz:
Os baixos descendentes na �Seresta� não podem nem devem ser
tocados mecanicamente, mas com aquele jeito tão especial jeito
dos violonistas populares brasileiros e �chorões� de fazerem
esses baixos descendentes, como, por exemplo, o fazem no violão de sete cordas. (...) Uma espécie de �flutuação�, um
�rubato fluido� sem perder a precisão, que é uma característica
do �chorão brasileiro� é fundamental.153
No que diz respeito a músicas de caráter mais rítmico e dançante, a pulsação
deve ser muito precisa e constante como se houvesse uma percussão acompanhando
constantemente a execução. Os rubatos, preferencialmente, devem ser melódicos,
evitando os rubatos estruturais. Antonio Guerreiro de Faria, ao analisar gravações da
interpretação de Ernesto Nazareth de sua própria música, declarou o seguinte:
A surpresa foi a constatação da ausência de qualquer tempo
rubato, quando Nazareth, ora acompanhando o flautista Pedro de Alcântara, ora solando suas próprias composições, se
revelava sóbrio, imprimindo um caráter dançante e alegre às
suas execuções. Nada de parecido com a prática dos músicos de
concerto e recitalistas de música clássica que, ao executarem
153 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007).
141
música brasileira, imprimem o rubato estrutural, no afã de melodizar e vocalizar aquilo que é dançante e ritmado.
154
No exemplo seguinte podemos observar uma aplicação do que foi dito sobre
o rubato melódico na execução do �Choro� de Marlos Nobre:
Exemplo 52: Choro, comp.5-6:
Apesar de ser um final de uma frase e início de outra, o intérprete pode
atrasar o início da anacruse da segunda frase, desde que compense com um acelerando e
o início do compasso seguinte esteja estritamente em tempo, pois, numa execução dessa
peça por um regional de choro, o pandeiro manteria a marcação constante, e não faria
rubatos junto com a melodia ou �baixaria�; ou seja, o rubato pode acontecer desde que
sob uma pulsação fixa.
Ainda a respeito da variação do ritmo na interpretação do choro, é
importante lembrar que a inventividade dos músicos populares faz com que eles, muitas
vezes, mudem radicalmente muita coisa que está determinada pela partitura. Um
exemplo clássico é a diferença entre as seguintes formas de tocar Odeon de Ernesto
Nazareth, sendo a primeira, como o compositor escreveu:
Exemplo 53a: Odeon, comp.1-2:
154 Antonio Guerreiro de Faria, �O pianismo de Nazareth em tempo rubato� in Per Musi � Revista Acadêmica de Música, nº10, (2004), p.92.
142
Exemplo 53b: Odeon, comp.1-2:
Alguns intérpretes, como Marcus Llerena e Joaquim Freire, fazem o mesmo
tipo de variação acima em suas gravações do �Choro�, fazendo com que soem da
seguinte forma:
Exemplo 54a: Choro, comp. 1-5:
Ao invés de:
Exemplo 54b: Choro, comp. 1-5:
No entanto, é importante ressaltar que não é uma modificação que conta
com o apoio do compositor, inclusive, acreditamos que tal modificação prejudique o
efeito criado com o contraste entre o uso da figura rítmica , (cujo uso no choro é
derivado da Habanera), e o uso da síncope característica .
Para uma execução estilisticamente correta dos ritmos de �Frevo� de
Nobre, é igualmente importante ouvir e incorporar as sutilezas da interpretação próprias
do gênero. Valdemar de Oliveira faz uma declaração, com um certo exagero, próprio do
escritor, que ressalta essa importância na execução do frevo em geral:
Reclama, a execução do frevo, sangue pernambucano nas veias.
Não é tarefa para quem nunca o ouviu, num terceiro dia de carnaval, no Recife. Nem valores individuais pesam, isoladamente, na balança, como, de resto, toda orquestra. Não se
143
trata de homogeneidade, afinação, justeza. É preciso um cachet
especial, de cada músico em particular e do conjunto global, para emprestar ao frevo seu corte rítmico inconfundível. (...)
Também o frevo exige �jeitinho�, além do tudo o mais que o
singulariza no populário musical do Brasil.155
O ritmo é certamente um dos elementos essenciais para uma boa
interpretação desse gênero. A execução do �Frevo�, assim como no �Choro�, exige
grande precisão na marcação do tempo, pois todos os deslocamentos rítmicos
característicos do gênero só fazem sentido se feitos dentro de uma pulsação regular e
precisa. No entanto, a execução dos acentos no �Frevo� deve ser bem mais pronunciada
que no �Choro� ou na �Seresta�. Ao ouvir orquestras de frevo, percebe-se que é comum
uma ligeira antecipação de certas síncopes, recurso este que também pode ser feito na
interpretação da peça de Nobre.
5.3.4 - Dinâmica
Nobre também costuma ser muito detalhista ao escrever informações sobre
dinâmica em suas peças. No caso do violão, por ser um instrumento com uma gama
dinâmica relativamente pequena, é importante que o intérprete saiba dosar bem
principalmente os crescendos, para não correr o risco de chegar ao limite do
instrumento antes de atingir o ponto culminante da dinâmica.
A fim de ajudar o intérprete a planejar e controlar a dinâmica durante a
execução da peça, quadros, como o que inserimos aqui, podem servir de parâmetro, pois
oferecem uma visão geral da dinâmica da peça. Jonh Rink, no entanto, chama a atenção
do intérprete ao usar esse recurso:
Um ponto fraco dessa abordagem é sua limitada atenção ao
contexto, que normalmente influencia o resultado de uma dada
155 Valdemar de Oliveira, Frevo, Capoeira e Passo. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1971, p.54-55.
144
dinâmica. (Por exemplo, uma indicação de piano deve ter um significado diferente num contexto predominantemente fortíssimo do que numa passagem marcada com pianíssimo).156
Abaixo, estão apresentados os gráficos com as dinâmicas durante os dois
primeiros movimentos de Reminiscências Op. 78:
Choro:
Seresta:
É importante que o intérprete observe o contorno da dinâmica em cada
seção das peças, antes de ter uma noção do conjunto inteiro. No caso do Frevo, esse tipo
de gráfico não cumpre sua função de forma eficaz, devido à existência de uma variação
freqüente e intensa da dinâmica. A melhor solução para isso poderá ser ressaltar os
contrastes através de acentuadas diferenças dinâmicas e mudanças de timbres.
Rafael dos Santos, no artigo Análise e Considerações sobre a Execução dos
Choros para Piano Solo �Canhôto� e �Manhosamente� de Radamés Gnattali, ao 156 John Rink, �Analysis and (or?) Performance� in Musical Performance: a guide to Understanding, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 36.
1 4 7 10 13 16 19 22 25 28 31 34 37 40 43 46 49 52 55 58 61 64 67 70 73 76 79 82 85 88 91 94 97 100
103
106
109
112
115
118
121
Compassos
pp
p
mp
mf
piuf
ff
fff
sffff
f
Seção B Seção A2 Seção C Seção A3Seção A
1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31 33 35 37 39 41 43 45 47 49 51 53 55 57 59 61 63 65 67 69 71 73 75 77 79 81 83 85 87 89
Compassos
p
mp
mf
f
pf
ff
Intro. Seção A1 Seção A2 Seção B2 Seção A3Seção B1
145
comentar alguns cuidados que se deve ter ao executar peças que tenham relação com
práticas específicas da música popular, destaca a importância de que o intérprete deve
tentar buscar �uma sonoridade leve, que mantenha a textura transparente�157. Além
disso, chamamos a atenção para a necessidade de manter planos dinâmicos distintos nas
texturas polifônicas, distinguido bem o que é melodia, acompanhamento,
contramelodia, linhas do baixo ou outra função, e delimitar o que deve soar mais a cada
trecho. O seguinte exemplo retirado da �Seresta� ilustra bem como o intérprete deve
proceder:
Exemplo 55a: Seresta, comp. 55-56:
Exemplo 55b: Seresta, comp. 55-56: reescrito reforçando a polifonia
Já na interpretação de �Frevo� é importante que o intérprete defina timbres
que possam reforçar o contraste entre as perguntas e respostas que, nas orquestras de
frevo, são feitas entre diferentes naipes de instrumentos:
157 Rafael Santos, �Análise e considerações sobre a execução dos choros para piano solo Canhôto e
Manhosamente de Radamés Gnattali� in Per Musi � Revista Acadêmica de Música, nº3, (2001), p. 5.
146
Exemplo 56: Frevo, comp. 1-12:
5.4 � Conclusão
Esperamos que esses apontamentos sobre Reminiscências. Op.78 possam
ser utilizados na interpretação de toda a peça, já que tais informações abarcam os
principais problemas que a peça poderia gerar em sua execução. As demais soluções,
além das já sugeridas pela nova edição, poderão ser buscadas por cada intérprete com
base em suas próprias experiências musicais, sem prescindir da possibilidade de refutar
qualquer sugestão aqui apresentada.
147
CONCLUSÃO GERAL
Apesar de incluir em sua obra diversos elementos oriundos da música
popular e folclórica brasileira, o compositor Marlos Nobre não se identifica e, até
mesmo, rejeita a estética Nacionalista que dominou o cenário da música deste país
durante muitos anos. Segundo ele, os traços característicos da música brasileira estão
presentes em suas composições, na maioria das vezes, de forma espontânea, ou seja,
eles não são apresentados de forma intencional ou acadêmica, sendo apenas o reflexo
natural de suas experiências pessoais com a música genuinamente brasileira que ele
vivenciou desde a sua infância.
Tendo em vista que os referidos elementos característicos da música
brasileira estão intrinsecamente ligados às composições de Nobre e, levando-se em
consideração todas as informações levantadas acerca de Reminiscências Op. 78 e de seu
compositor, chegamos à conclusão de que a execução dessa peça, ressaltando a forma
peculiar de como os músicos populares tocam os gêneros que originaram os três
movimentos da peça, seria uma possibilidade interessante de interpretação.
A digitação que elaboramos como parte integrante do trabalho vem, não só
reforçar a concepção interpretativa sugerida, mas também minimizar as dificuldades
técnicas encontradas na peça. Sendo Marlos Nobre um compositor não-violonista e,
além do mais, preocupado em criar uma linguagem nova para o instrumento, muitas
demandas de suas peças requerem dos intérpretes algumas soluções que muito
contribuem para o enriquecimento da técnica do instrumento. No caso específico de
Reminiscências Op. 78, recursos pouco usuais como o uso do polegar da mão esquerda
e o uso de digitações alternativas de mão direita foram necessários para buscar a
sonoridade desejada a partir da concepção interpretativa escolhida.
148
Por fim, acreditamos que, por tratar de forma abrangente e, ao mesmo
tempo detalhada, diferentes aspectos de Reminiscências Op.78 � que é uma das mais
recentes e significativas peças para violão solo de Nobre � e por pertencer à sua quinta
fase composicional na qual elementos antigos são apresentados com uma visão mais
amadurecida e, de certa forma, com as características estéticas peculiares já
consolidadas do compositor, o presente estudo poderá ser de ímpar relevância para os
interessados na sua obra violonística ou, até mesmo, auxiliá-los na produção de novos
trabalhos acadêmicos.
149
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154
ANEXO I
Entrevistas a Marlos Nobre
155
Entrevista No. 1 (Realizada em 09/04/2007) 1) Moacyr Teixeira Neto, em sua dissertação de mestrado diz que Reminiscências
Op. 78 foi concebida inicialmente como uma homenagem a João Pernambuco. Por
outro lado, no comentário que o senhor fez sobre a peça no encarte do CD de
Joaquim Freire, apenas são feitas referências às reuniões de violonistas em Recife e
ao violonista Amarildo, não havendo qualquer menção a João Pernambuco. Há
contradição entre ambas as versões, ou uma é complemento da outra? Resposta: Na verdade, uma é complemento da outra. As reuniões das quais participei
ainda menino, levado pelo meu pai, violonista amador, foram a minha primeira iniciação no violão e esta experiência me marcou para sempre. A virtuosidade e a
maneira particular de tocar do Amarildo, me impressionaram imensamente sobretudo sua criatividade ao tecer uma polifonia natural, algo como se estivessem tocando dois, três violões. E para esta particularidade meu pai me chamou a atenção de maneira muito
especial. Veja portanto na escritura de �Reminiscências� que a polifonia, a
multiplicidade de vozes é um dado muito importante nesta peça, e, aliás, em todas
minhas peças para violão. Não me esqueço por exemplo, da observação do Odair Assad
ao tocar e gravar o �Momentos IV� que chamava a atenção para como a peça parecia
soar como dois violões, apesar da escritura ser para um só instrumento. 2) Caso tenha havido, de fato, a referida homenagem, de que forma ela foi
expressa, e quais elementos musicais foram utilizados para sua caracterização?
Existem, por exemplo, citações de obras de João Pernambuco nesta composição?
Resposta: Não existem realmente citações diretas, mas sobretudo na segunda peça de
�Reminiscências� (Seresta) há lembranças minhas claras do estilo em geral de João
Pernambuco, por exemplo os baixos descendentes, algumas suspensões harmônicas
características, o estilo seresteiro, que são aliás o estilo muito genérico dos �chorões�
tanto de Pernambuco quanto do Rio de Janeiro que eu de certa maneira, procurei homenagear nesta minha �Seresta�. São elementos genéricos, que é possível encontrar
em um sem número de peças dos chorões cariocas e em João Pernambuco, algo que
procurei cristalizar nesta peça, como homenagem minha a este estilo profundamente
brasileiro de fazer soar o violão. 3) Que outras observações relevantes o senhor faria a respeito de Reminiscências
Op. 78? (processo criativo e �inspiração� para escrever, história, características
técnicas e estilísticas da peça, relações com outras obras suas, etc.).
Resposta: A �inspiração� de maneira geral foi o que disse anteriormente: a maneira
peculiar dos �chorões� da primeira metade do século XX de tocarem o violão e de
criarem seus choros. Portanto a primeira peça �Choro� é um evocação deste estilo, no
qual não está ausente a grande figura de Ernesto Nazareth, um compositor popular
carioca que estudei profundamente quando estava ainda em Recife, na década 1950-60. Eu comprei simplesmente todos os �tangos brasileiros� de Nazareth e os estudei, todos,
quando estava em Recife. Sempre me pareceu que Ernesto Nazareth foi o primeiro compositor brasileiro a captar realmente, em toda sua integridade e autenticidade, o
156
estilo peculiar da música brasileira daquela época. Acho portanto Nazareth o compositor
mais importante no sentido de cristalizar, em suas obras para piano, o estilo tão próprio
dos cavaquinhos, flautas, baixos de violão, clarinetes, e percussão, que marcavam a
maneira peculiar de tocarem e criarem daqueles grupos de �chorões� cariocas. Nazareth
transpôs como ninguém o fez, nem antes nem depois, a verdadeira essência deste estilo.
Tão profunda foi a influência de Ernesto Nazareth em minha formação que minhas
primeiras obras, são �Homenagem a Ernesto Nazareth� para piano, o �Concertino� para
piano e orquestra de Cordas; a Nazarethiana para piano e o meu �Trio para
piano,violino e violoncelo�. Portanto esta obra �Reminiscências� para violão é uma
evocação e uma homenagem tripla, minha, a João Pernambuco, a Ernesto Nazareth e
aos �chorões� do Rio e de Pernambuco. O último (terceiro) movimento da peça é um
�Frevo�, que é o primeiro a ser escrito para violão solista. Nunca antes (que eu saiba)
algum compositor escreveu um verdadeiro �frevo� para violão solo. E esta peça é
realmente isto: um verdadeiro �frevo�, com todas suas características melódicas,
rítmicas, harmônicas e de inconfundível �gingado� desta dança que caracteriza
fundamentalmente o próprio Carnaval de Recife. Naturalmente eu vivi desde minha
infância a influência do frevo, escutando as mais variadas formas de frevo nas ruas de
Recife durante o carnaval. E ao escrever �Reminiscências� quis então render uma
homenagem a esta forma imperecível da criatividade popular de Pernambuco. 4) Sabe-se que cada movimento de Reminiscências Op. 78 é dedicado a um
violonista diferente. Existe alguma relação entre as dedicatórias e o estilo
compositivo de cada um dos movimentos?
Resposta: Na realidade não há um relação direta entre o estilo da composição das
diferentes partes e cada violonista a quem dediquei um das peças. Na verdade os três
são queridos amigos e grandes intérpretes de minhas obras para violão. E foi o Marcelo
Kayath quem provocou o nascimento da peça, ao me pedir uma peça �favorita� para ser
incluída em seu CD na Hyperion em Londres, entitulado �Guitar Favourites�. Ora, eu
tinha então de escrever uma peça �favorita� que ainda não existia e que não tinha sido
jamais tocada por ninguém! Certamente um desafio. E, como gosto de desafios eu
aceitei a idéia e comecei escrevendo apenas a �Seresta� que o Marcelo Kayath adorou
de cara e logo gravou realmente no CD em questão. Em seguida me veio a idéia de
completar a série, com mais três. Uma, o Choro, para o Marcus Llerena, grande
intérprete de minhas obras para violão e o �Frevo� para o Joaquim Freire, que aliás foi o
primeiro da gravar toda a suíte em CD (pela Leman Classics), e sendo pernambucano como eu, sentiu integralmente como fazer soar o �frevo�. 5) Houve alguma influência, sugestão ou consulta a algum violonista durante o
processo de composição dessa peça?
Resposta: Não, nenhuma sugestão nem consulta de qualquer espécie a algum violonista durante o processo de criação da peça. Aliás é assim que sempre fiz, desde o
�Momentos I� primeira peça que escrevi para o Turíbio Santos, ao qual entreguei a peça totalmente escrita para ele tocar, e assim foi com todas as peças para violão que fiz depois, incluindo a �Reminiscências�. Na realidade tenho dois excelentes violões em
casa e apesar de não ser violonista, eu realizo tudo que penso mentalmente e depois faço
o teste da escritura, eu mesmo nos meus violões. E nunca necessitei depois de consultar
157
um violonista para opinar: eles sempre receberam as obras totalmente pensadas e realizadas por mim. 6) Como foi o processo para incluir a digitação de Reminiscências Op. 78?
Resposta: A digitação foi feita esta sim, com a ajuda do Marcelo Kayath, fundamentalmente em todas as três peças. Mas uma vez que eu assimilei totalmente
como escrever a digitação eu sempre prefiro colocar, eu mesmo, as digitações que
pensei eu mesmo, originalmente. Mas naturalmente sempre estou aberto a sugestões
mas nunca a interferências de qualquer tipo que for ou que seja, por parte de algum
violonista. Penso que todo instrumentista tem seus macetes particulares e isso é coisa
deles. Eu tenho minhas próprias idéias instrumentais para o violão, especificamente, e
coloco o mais exatamente possível estas idéias em escritura definitiva em minhas
partituras para o violão. Um caso por exemplo típico: eu escrevi a versão para dois
violões do meus Três Ciclos Nordestinos e o Sérgio e Odair Assad vieram gravar
diretamente a obra nos estúdios da EMI no Rio de Janeiro. Praticamente leram à
primeira vista, na hora, e foram gravando número a número. E sempre me lembro do
espanto deles, ao constatarem que não havia nada a mudar, estava tudo ali, era só tocar.
Creio que este exemplo é bastante claro para responder á sua pergunta.
158
Entrevista No. 2 (Realizada em 23/06/2007) 1) Gostaria que o senhor esclarecesse uma dúvida, a respeito da digitação de
Reminiscências, que me surgiu ao comparar um e-mail seu enviado no dia 12 de
julho de 2006 e a resposta dada na entrevista que te enviei no dia 09 de abril de
2007. Na primeira, o senhor informava : �a digitação é do Marcelo Kayath (a
Seresta) e do Marcus Llerena (o chôro e o frevo)�. Já na última entrevista, senhor
dizia: �A digitação foi feita esta sim, com a ajuda do Marcelo Kayath,
fundamentalmente em todas as três peças. Mas uma vez que eu assimilei
totalmente como escrever a digitação eu sempre prefiro colocar, eu mesmo, as
digitações que pensei eu mesmo, originalmente�.
Por favor, esclareça-me como se deu o processo até se chegar à digitação que
aparece na partitura editada pela Henri Lemoine. Até que ponto são digitações
suas, digitações de outros violonistas ou revisão de outros violonistas, neste caso
específico? Resposta: A digitação definitiva tomou como base a digitação do Marcelo Kayath nas
três peças, apesar de também eu ter consultado e comparado com a digitação do Marcus
Llerena. No final do processo eu tomei como ponto de partida a digitação do Marcelo e
fiz uma digitação definitiva, minha, que é a que consta na partitura editada. 2) Nos manuscritos de Reminiscências não aparecem as dedicatórias a Marcus
Llerena, Marcelo Kayath e Joaquim Freire. Já havia, durante a concepção da
peça, a intenção de dedicá-la a estes três violonistas ou a dedicatória foi posterior à
escrita da mesma?
Resposta: A inclusão das dedicatórias foram colocadas definitivamente na edição
Lemoine. No princípio apenas a �Seresta� era dedicada ao Marcelo, que me
encomendou esta peça. Depois que ouvi as execuções da obra pelo Joaquim Freire e o Marcus Llerena, dediquei as outras também aos dois, principalmente pelo fato de que
estes três violonistas terem tido sempre uma atenção especial à minha obra violonistica,
fazendo constantemente primeiras audições e interpretações de minhas peças em seus
concertos. 3) O senhor comenta na entrevista feita no dia 09 de abril de 2007 que em
Reminiscências há uma homenagem sua ao �estilo profundamente brasileiro de
fazer soar o violão�. Ao mesmo tempo, em geral, a escrita de sua música é bem
detalhada, cheia de indicações de articulação, dinâmica, caráter, acentos e etc. O senhor acredita que, para uma boa interpretação de uma música inspirada em
gêneros populares � tal como é o caso de Reminiscências � a simples obediência às
indicações da partitura seriam suficientes para uma execução �correta� da peça,
ou o conhecimento daqueles gêneros e de suas particularidades de execução seriam
necessárias para um melhor desempenho na peça? Na sua opinião, qual deve ser a
atitude do intérprete ao executar esta música? O �estilo brasileiro de soar o violão�
de Reminiscências estaria apenas nos elementos da composição ou deve ser
buscado também na execução e de que forma o intérprete ele pode fazer isso?
159
Resposta: No espírito de sua pergunta, eu, por exemplo, ouvi um interpretação desta
obra por um excelente violonista inglês (não me lembro do nome agora) que tocou
exatamente todas as notas, respeitou todas as indicações dinâmicas, de tempo, mas cuja
interpretação me deixou insatisfeito. Faltava nele esta vivência especial com este tão
peculiar jeito brasileiro de tocar, seja o violão seja outro instrumento. Mas sobretudo no
violão, por exemplo, os baixos descendentes na �Seresta� não podem nem devem ser
tocados mecanicamente, mas com aquele tão especial jeito dos violonistas populares
brasileiros e �chorões� de fazerem estes baixos descendentes,como por exemplo o
fazem no violão de sete cordas. Esta minha peça �Reminiscências� capta muito deste
espírito especial do �chorão� de tocar, uma reminiscência das reuniões dos chorões
pernambucanos, que se reuniam aos domingos simplesmente para tocarem pelo prazer de fazerem música em conjunto. Portanto uma vivência ou uma especial atenção e
estudo dos toques tão peculiares dos �chorões� brasileiros é muito útil para interpretar
esta obra como tem de ser. Uma espécie de �flutuação�, um �rubato flúido� sem perder
a precisão, que é característica do �chorão brasileiro� é fundamental. 4) Ainda com relação ao detalhamento de escrita, o �Frevo� do �IV Ciclo
Nordestino� para piano apresenta uma quantidade bem maior de articulações do
que o �Frevo� da suíte �Reminiscências� para violão. Esta diferença significaria
uma maior liberdade do intérprete violonista na escolha das articulações, ou existe
alguma outra motivação para este fato? Resposta: Sim, eu procurei na versão para o violão não colocar um detalhamento mais
acentuado, como o fiz na escritura do �Frevo� para piano. Mas também neste caso, é
essencial um conhecimento prévio de como se tocam os frevos pelas orquestras típicas
de frevo de Pernambuco. Não quero dizer que isso seja absolutamente essencial, mas
sim aconselhável. Para fazer uma alusão clara, por exemplo, bem dizia Rubinstein que
para se tocar realmente bem as Mazurkas de Chopin, o pianista bem de conhecer como se dançam as mazurkas na Polônia. Um interpretação literal, mecânica, do ritmo escrito
por Chopin não leva ao verdadeiro espírito do gênero �mazurka�. Assim como as
�valsas vieneneses�, com uma ligeira tenuta no segundo tempo, isso só se aprende
ouvindo e praticando este gênero �in locu�. No meu Frevo para violão, o intérprete pode
ter certa liberdade, dentro da escritura estrita que proponho, mas esta liberdade tem de estar ligada à tradição do gênero, ou seja, do �frevo� popular de Recife. 5) Em sua obra existem vários exemplos de peças baseadas em um mesmo
material temático ou adaptações da mesma peça com formações instrumentais
diversas. No caso de �Frevo� para violão e para piano, como o senhor classifica o
�Frevo� para violão (transcrição, adaptação, versão, reutilização do material
temático, arranjo, etc.)?
Resposta: Em alguns casos específicos, eu pratico um tipo de revisitação a certas idéias
e certas obras minhas. É o caso da minha série de �Desafios� onde a mesma matéria
musical é escrita para diferentes instrumentos. Minha idéia neste caso é sempre o
resultado da minha disposição de que, nestes casos, eu não esgotei totalmente as
possibilidades ao usar um certo instrumento. Escrever para piano é uma coisa, para
contrabaixo solo é outra. No caso do �Frevo� não considero uma �transcrição�, mas
uma reutilização em um instrumento totalmente diferente das mesmas idéias. É como ao
fazer uma obra ficassem resíduos, isto é, escolhi antes um caminho mas ficaram abertos outros. No caso do frevo para violão o que me fascinou foi a idéia de que até então
160
ninguém tinha ousado escrever um verdadeiro frevo para violão. O frevo, sendo uma
dança típica do Carnaval de Recife, tocada por grande conjunto de metais, clarinetas e percussão, nas ruas de Recife, ao ser transportado para o violão me levou a um exercício
de imaginação que me foi extremamente excitante artística e musicalmente falando. É o
primeiro frevo escrito para um instrumento tão delicado como o violão, e nele soa
muitíssimo bem,pelo menos é o que penso. 6) Reminiscências e outras peças sua para violão foram editadas pela Henri
Lemoine na coleção Roberto Aussel. O contato com esta editora deu-se
diretamente ou por intermédio de Roberto Aussel? Como se deu o contato com este
violonista? Houve alguma participação dele na edição de Reminiscências (seja de
revisão, dedilhados ou outras)? Resposta: Na realidade meu primeiro contato com o Roberto Aussel é antigo, mas tudo
começou com o pedido dele para eu escrever uma obra nova para violão para a coleção
com seu nome na Henri Lémoine. Para atender este seu pedido eu escrevi não a
Reminiscências, mas sim a peça �Entrada e Tango�,que consta de sua coleção. Foi
somente depois de editada esta peça que enviei �Reminiscências� para o Aussel que se
entusiasmou com a obra e a incluiu também na sua coleção. No caso, houve uma
participação do Aussel na digitação da Entrada e Tango, mas não em Reminiscências.
Aliás quero lhe dizer que jamais eu deixaria que qualquer violonista, qualquer intérprete
fizesse jamais uma �revisão� de obra minha. Desde o princípio, desde minha primeira
obra escrita para violão o Momentos I, eu a escrevo toda e sempre os violonistas a
tocaram, como todas as demais, exatamente como eu as escrevi, sem tirar nem pôr.
Aliás é o mesmo com as obras para piano. Em nenhuma obra para piano que escrevei eu
coloco jamais o dedilhado, inclusive também coloco pouquíssimas indicações de pedal.
Os verdadeiros artistas e grandes intérpretes não necessitam destas indicações, pois
dedilhado e pedal são opções muito pessoais, sobretudo o dedilhado, que vai sempre de
acordo com a mão de cada executante. O que serve para um não serve para outro. No
caso do violão existe uma espécie de mania de dar importância à digitação, quando eu
até prefiriria editar minhas obras para violão sem qualquer digitação. Mas por questão
editorial, as editoras como a Lémoine ou a Max Eschig sempre preferem colocar as
digitações para facilitar de certa maneira a venda das partituras para os estudantes, sobretudo.
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Entrevista nº 3 (realizada em 09/07/2007) 1) A sua peça para orquestra �In Memorian� (1973/ 1976) foi escrita em
memória de seu pai que era um violonista amador. O senhor acredita haver
alguma relação entre �In Memorian�, cuja composição se iniciou em 1973 e o
senhor começar a escrever peças para violão solo (Momentos I) a partir de 1974?
Qual foi sua motivação para começar a escrever para violão?
Resposta: A motivação para eu escrever a minha primeira obra para violão �Momentos
I� decorreu do naquela época amigo o violonista Turíbio Santos, que me pediu
insistentemente uma obra para violão, para ele estrear em seus concertos. Naquela
época, ou seja, em 1974, o violonista Turíbio Santos tinha uma certa carreira no exterior como violonista, e ao receber a obra em questão, a estreou em diversas apresentações
dele na Europa. A partir desta primeira obra senti despertar em mim o interesse pelo instrumento e comecei a série dos Momentos escrevendo os de nº 2,3 e 4 que pretendo completar, com o tempo, até o número 12. A editora Max Eschig imediatamente editou
os 4 primeiros Momentos. Não há portanto nenhuma relaçõ com minha peça In
Memoriam, mas o fato do meu pai ter sido violonista amador e ter me levado desde pequeno, como disse em diversas ocasiões, a reuniões de grupos de violonistas em
Recife, foi um fator também importante para despertar meu interesse pelo instrumento.
2) Em depoimento seu a um fórum de discussão na internet (Forum Allegro) o
senhor comenta: �Desenvolvi, com o tempo, um tal conhecimento dele [do violão]
que escrevo diretamente para o papel pensando no instrumento�. Ao mesmo
tempo, na matéria sobre sua obra para violão da �Classical Guitar� de novembro
de 1993, Colin Cooper comenta: �Later he studied violin, cello and the guitar�.
Gostaria que o senhor esclarecesse este dado, informando se houve, em algum
momento, o estudo formal do violão? Como se deu o seu conhecimento do violão a
ponto de dominar a escrita de um instrumento que muitas vezes é estigmatizado
por compositores não-violonistas devido às suas particularidades idiomáticas?
Resposta: Eu estudei o violão totalmente de maneira autodidata, sem qualquer
professor. Aliás o mesmo ocorreu praticamente com o piano, pois após minha iniciação
passei a estudar só, por minha conta, seguindo o método Leimer-Gieseking. Com o violão foi o método de Tarrega que me orientou desde o início e comprei dois
excelentes instrumentos. Quero salientar que escrevo mentalmente sempre, seja para o violão ou qualquer outro meio. Realizo a obra mentalmente e depois a passo para o papel. Neste processo eu realizo testes, diretamente no violão, eu mesmo provando os
acordes, as posições, as diferentes cordas que quero que sejam usadas. Por exemplo no
meu Concerto Duplo para dois violões eu entreguei a partitura para Sérgio e Odair
Assad, com todos os detalhes, incluindo sutilezas como até mesmo as cordas, os
dedilhados, exatamente como quero que sejam utilizados. Chame isso de profissionalismo no mais grau, mesmo, pois quando entrego qualquer obra minha, para qualquer instrumento, seja solo, em conjunto, câmara ou orquestra, tudo já foi testado,
pensado e colocado com a maior exatidão possível. 3) Gostaria que o senhor comentasse um pouco sobre a sua peça �Rememórias�
para violão solo (história, �inspiração� para escrever, características técnicas e
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estilísticas da peça, intertextualidade, estréia, relações com outras obras suas,
etc.)? Resposta: A peça �Rememórias� nasceu de uma encomenda o Concurso Internacional
de Violão de Alessandria, Itália, para ser a peça de confronto deste Concurso de 1998 sendo dedicada à memória do criador do Concurso, Michele Pittaluga e também à
violonista Susanne Mebes. A obra consta de Embolada, Cantilena e Caboclinhos. A obra foi então estreada mundialmente na ocasião do Concurso mencionado, mas não
tenho no momento a data certa nem o nome do violonista. O 1º movimento, Embolada,
é inspirada na primeira peça de uma Suíte de Bach creio que em mi menor. O ritmo de
embolada nordestina me surgiu primeiro e naturalmente a melodia minha me lembrava algo, e um dia depois de escrevê-la soube que era a tal Suíte de Bach. Portanto, é um
caso típico de �rememória� de algo ouvido antes, mas surgido em estado meio
nebuloso. Não foi absolutamente uma coisa deliberada, eu não peguei a Suíte de Bach e
fiz a Embolada, não mesmo! Foi então que decidi pelo nome de �Rememória�, pois era
uma peça que rememorava uma experiência auditiva anterior que me marcara muito.
Portanto o caráter da peça é de um prelúdio tipo �embolada nordestina�. A 2ª. Peça
�Cantilena� é uma rememória de uma canção do nordeste, �A muié de Lampião� que
sempre me pareceu belíssima e que eu utilizo no meu �Ciclo de Lampião� para coro
mixto a cappella. A escritura é muito trabalhada e muito polifônica,com aquêle caráter
tipicamente nostálgico do nordeste; a 3ª. Peça �Caboclinhos� é uma rememória dos
grupos folklóricos dos caboclinhos do Carnaval de Recife, um grupo de crianaças índias
que pulam, dançam e tocam uma espécie de arco e flecha que bate na madeira, pontualizando o ritmo. É uma lembrança muito forte do Carnaval de minha infância. É
opus 79 portanto logo em seguida de Reminiscências. Como toda peça minha, ela é
independente como obra, mas tem sempre algo no plano rítmico, formal e harmônico
que marcam meu estilo. 4) Respectivamente nos anos de 1965 e 1966, o senhor escreveu �Praianas Op.
18� e �Beiramar Op. 21� para voz e piano (que posteriormente são reescritas para
voz e violão). Porque razão o senhor escreveu estas peças em estilo tão tradicional
logo em seguida a peças mais experimentais como o �Ukrinmakrinkrin Op. 17� e
seu ao estudo no Tocuato Di Tella?
O senhor acredita haver alguma continuidade entre essa parte mais tradicional de
suas canções e o gênero da canção nacionalista, mesmo declarando rejeitar o
nacionalismo musical como ideologia?
Resposta: Eu nego e rejeito o nacionalismo musical ou qualquer outro tipo de nacionalismo isso quero deixar bem claro. Mas não nego nem jamais negarei as raízes
mais puras e fortes de minhas experiências musicais de minha infância, que sempre vão
estar presentes em minhas obras. Elementos rítmicos, melódicos, harmônicos e até
formais destas experiências sobretudo do Carnaval de Recife, sempre estão em minhas
obras. O fato de ter escrito peças como Praianas e Beiramar, logo depois de
Ukrinmakrinkrin, nunca foi algo estranho para mim. Na minha mente criadora, sempre existem resíduos de pensamentos e de experiências passadas que afluem naturalmente à
superfície me obrigando quase diria, a escrevê-las. Depois de uma obra tão
experimental com Ukrinmarkrinkrin era como se minha mente desejasse um repouso, um retorno, algo para mim natural. Tudo faz parte natural de minha criação. Não tenho
preconceitos de parecer vanguarda ou retaguarda, para mim isso não existe. Somente
existe o impulso forte e essencial da criação.
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ANEXO II