162
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ANA CAROLINE PIRES MIRANDA "POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS": análise do processo de construção sociológica e jurídica da expressão São Luís 2012

Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

  • Upload
    hatu

  • View
    261

  • Download
    7

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ANA CAROLINE PIRES MIRANDA

"POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS": análise do processo de construção

sociológica e jurídica da expressão

São Luís

2012

Page 2: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

1

ANA CAROLINE PIRES MIRANDA

"POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS": análise do processo de construção

sociológica e jurídica da expressão

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão para obtenção do título de mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior.

São Luís

2012

Page 3: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

2

MIRANDA, Ana Caroline Pires

Povos e comunidade tradicionais: análise do processo de construção sociológica e jurídica da expressão / Ana Caroline Pires Miranda. – 2012.

161 f.

Impresso por computador (fotocópia)

Orientador: Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, 2012.

1. Comunidades – Sociologia 2. Comunidades tradicionais. 3. Povos – Causa socioambiental 4. Direito – usos. I. Título.

CDU 316.334.52

Page 4: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

3

ANA CAROLINE PIRES MIRANDA

"POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS": análise do processo de construção

sociológica e jurídica da expressão

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão para obtenção do título de mestre em Ciências Sociais.

Aprovada em: _____/_____/_____

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior (orientador) Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão

_____________________________________________

Prof. Dr. Igor Gastal Grill Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão

_____________________________________________ Profa. Dra. Madian de Jesus Frazão

Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão

São Luís 2012

Page 5: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

4

AGRADECIMENTOS

Esta dissertação somente se tornou possível a partir do esforço conjunto de muitas

pessoas e instituições, que contribuíram sobremaneira para a sua concretização. A muitos,

portanto, devo meus agradecimentos, porém, nem todos poderão ser aqui mencionados, pelo

que peço, de antemão, desculpas.

Inicialmente, agradeço ao meu orientador, Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior,

por quem nutro intenso respeito e admiração pela competência que demonstra na condução de

seus trabalhos, pela postura ética e comprometida com que se dedica às Ciências Sociais e

pela humildade, por vezes desconcertante, que manifesta nas relações profissionais e pessoais.

Agradeço pela leitura atenta e pelas críticas realizadas a este trabalho, pelo incentivo dado à

continuidade dos estudos na pós-graduação em Ciências Sociais e, acima de tudo, por todos

os ensinamentos ao longo desses anos de trabalho e convívio.

Agradeço aos professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-graduação em

Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (PPGCS/UFMA) por me

possibilitarem as condições de realização deste trabalho. Agradeço especialmente aos

professores Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho, Dra. Maristela de Paula Andrade, Dr.

Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao

Dr. Igor Gastal Grill, Dr. Marcelo Domingos Sampaio Carneiro, Dra. Eliana Tavares dos Reis

e Dr. Paulo Keller – professores de quem fui aluna no mestrado.

Aos professores Dr. Igor Gastal Grill, do PPGCS/UFMA e Dra. Madian de Jesus

Frazão, do Departamento de Sociologia e Antropologia/UFMA agradeço pelos comentários,

críticas e sugestões feitas por ocasião do exame de qualificação e que muito ajudaram no

redimensionamento deste trabalho.

Agradeço também aos professores do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais

da Universidade Federal do Pará, em especial Jean Pierre Teisserenc, Maria José de Aquino e

Denise Cardoso, pelas contribuições na construção das reflexões acadêmicas e pela

receptividade com que nos receberam na UFPA.

Meus sinceros agradecimentos aos entrevistados, que gentilmente cederam parte do

seu tempo e do seu conhecimento para que fosse possível a realização deste trabalho. No

Ministério Público Federal, agradeço aos Procuradores da República Alexandre Silva Soares e

Felício Pontes Júnior e na Universidade Federal do Pará aos professores do Instituo de

Ciências Jurídicas Dr. José Heder Benatti e Dr. Domenico Girolamo Treccani.

Page 6: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

5

Agradeço ainda à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES) pela concessão de bolsa de mestrado, bem como ao Programa Nacional de

Cooperação Acadêmica (PROCAD/CAPES) pelo financiamento ao Projeto PROCAD:

“Territórios Emergentes da Ação Pública Local e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia

Brasileira”, o que me possibilitou a realização de intercâmbio com a Universidade Federal do

Pará. Sem o auxílio dessas instituições de fomento, teria sido inviável a obtenção das

condições financeiras e estruturais para a realização desta pesquisa.

Agradeço a Turma 07 do mestrado em Ciências Sociais – Antonio Carlos Gomes,

Bruno Azevedo, Carla Georgea, Cristiane Viana, Daisy Damasceno, Douruezia Fonseca,

Emerson Rubens, Ingrid Pereira, João Gilberto, Joelma Santos, Jorge Luiz, Luciana Meireles,

Marco Antonio, Renata Desterro e Thimóteo de Oliveira – por todos os momentos de

concentração e de descontração que compartilhamos.

Sou grata a família “Ledo Reis”: D. Helena, Seu Pedro, Daniela, Carla e Larinha, que

nos acolheu em seu “recanto” durante a nossa estadia em Belém e foi nosso suporte no

período em que lá estivemos.

A Daisy Damasceno e Raíssa Moreira Lima agradeço pelo aprendizado da

convivência e pelos bons e produtivos momentos que passamos juntas em Belém do Pará.

A João Gilberto agradeço por toda dedicação e cumplicidade manifestada no período

de realização desta pesquisa.

Meu muito obrigada a Carla Georgea, Dayana Delmiro, Lenir Moraes e Regimeire

Oliveira, sempre presentes nas minhas conquistas pessoais e profissionais. Nossa amizade é

algo muito valioso e se fortalece não só nos momentos de alegria... Sou muito grata por poder

contar com vocês. À Dayana um agradecimento especial, por todo apoio e incentivo nos testes

que passei.

Agradeço ainda aos meus irmãos, Ana Karine e Marco Antonio, tios, primos e demais

familiares, que me estimulam a seguir adiante nos estudos, em especial a minha querida tia

Maria da Glória Pires Martins, que nos dá, a todos da família, aulas diárias de fé e esperança e

nos ensina, com o seu exemplo, o que realmente importa na vida.

Por fim, não poderia deixar de agradecer aos meus maiores torcedores e

incentivadores, meus pais, Antonio José Bernardo Miranda e Maria das Graças Pires Miranda,

que nunca mediram esforços para investir na formação de seus filhos. A eles meu eterno

agradecimento pela abdicação, pelo incentivo e por se realizarem com as minhas conquistas,

que acabam sendo nossas vitórias.

Page 7: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

6

RESUMO

Análise do processo sociológico e jurídico de construção da expressão "povos e comunidades tradicionais". Sistematização de discursos, interpretações e posicionamentos adotados por diferentes agentes, situados no espaço do direito, em prol do reconhecimento e legitimidade da expressão. Investigação sobre o processo internacional de invenção e institucionalização da causa socioambiental – no âmbito da qual se situam as discussões sobre “povos e comunidades tradicionais – com destaque para a rede de ativismo ambiental e para o processo de importação de modelos institucionais para países periféricos, via difusão do discurso desenvolvimentista. Análise das modificações processadas no âmbito do Poder Judiciário e nos perfis profissionais dos que compõem seus quadros em decorrência do processo de democratização do país. Reflexão sobre a o processo de construção de uma comunidade de intérpretes jurídicos voltados para os direitos dos “povos e comunidades tradicionais”. Utiliza-se como estratégias metodológicas levantamento bibliográfico sobre a temática, análise de documentos e legislações em âmbito nacional e internacional, coleta de dados em fontes secundárias e entrevistas com profissionais de direito.

Palavras-chave: Povos e comunidades tradicionais. Causa socioambiental. Usos do direito.

Page 8: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

7

ABSTRACT

Sociological analysis of the process and legal construction of the term "peoples and traditional communities”. Systematization of discourses, interpretations and positions adopted by different agents, located in the right space, for recognition and legitimacy of the expression. Research on the international process of invention and institutionalization of social and environmental causes - within which lie the discussions on "traditional peoples and communities” - especially the network of environmental activism and the process of importation of institutional models for peripheral countries, via spread of development discourse. Analysis of changes processed within the Judiciary and profiles of professionals that make his paintings as a result of the democratization process in the country. Reflection on the process of building a community of interpreters facing the legal rights of "peoples and traditional communities." It is used as methodological strategies literature on the subject, examining documents and legislation at national and international data collection from secondary sources and interviews with legal professionals.

Keywords: People and traditional communities. Social and environmental causes. Uses the right.

Page 9: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

8

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEPAF – Conselho Estadual de Política Agrícola, Agrária e Fundiária

CF – Constituição Federal

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CNPCT – Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

CNPT – Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais

CNS – Conselho Nacional dos Seringueiros

CNJ – Conselho Nacional de Justiça

CONAFLOR – Comissão Coordenadora Política Nacional de Florestas

CONAMP – Conselho Nacional do Ministério Público

CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CPT – Comissão Pastoral da Terra

DF – Distrito Federal

EIA – Estudo de Impacto Ambiental

FASE – Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional

FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação

FETAGRI – Federação dos Trabalhadores na Agricultura

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

FUNATRA – Fundação Pró-Natureza

GERUR – Grupo de Estudos Rurais e Urbanos

GEDMMA – Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente

GTA – Grupo de Trabalho da Amazônia

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal

IEB – Instituto Internacional de Educação do Brasil

IMAZON – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia

INCRA – Instituto Nacional de Reforma Agrária

Page 10: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

9

INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

IPAM – Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia

ITERPA – Instituto de Terras do Pará

IUH – Instituto Humanitas

MMA – Ministério do Meio Ambiente

MONAPE – Movimento Nacional da Pesca

MPU – Ministério Público da União

MPF – Ministério Público Federal

NAEA – Núcleo de Altos Estudos da Amazônia

NAJUP – Núcleo de Assessoria Jurídica Popular

NEA – Núcleo de Estudos Ambientais

NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros

NESSA – Norte Energia Sociedade Anônima

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONG – Organizações Não Governamentais

ONU – Organização das Nações Unidas

PAC – Programa de Aceleração de Crescimento

PNCSA – Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia

PNPCT – Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente

PPGDA – Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental

PROCAD – Programa Nacional de Cooperação Acadêmica

PUC – Pontifícia Universidade Católica

RESEX – Reserva Extrativista

SEIR – Secretaria Extraordinária de Igualdade Racial

SEPPIR – Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial

SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação

SPDH – Sociedade Paraense de Direitos Humanos

STF – Supremo Tribunal Federal

STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais

SUBCOM – Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais

TI – Terra Indígena

UEA – Universidade Estadual do Amazonas

UFMA – Universidade Federal do Maranhão

Page 11: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

10

UFPA – Universidade Federal do Pará

UNB – Universidade de Brasília

UNDB – Unidades de Ensino Superior Dom Bosco

UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

USAID – Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional

Page 12: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1. INVENÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CAUSA SOCIOAMBIENTAL ....... 23

1.1 Da “descoberta” da crise ambiental ao surgimento do socioambientalismo .................. 23

1.2 A construção da ideologia e do discurso desenvolvimentista ......................................... 33

1.3 Instituições internacionais no processo de importação de modelos ............................... 40

1.3.1 Instituições internacionais e a expressão “povos e comunidades tradicionais” ....... 47

2. CONSTRUÇÃO SOCIOLÓGICA E JURÍDICA DA EXPRESSÃO “POVOS E

COMUNIDADES TRADICIONAIS” .................................................................................. 54

2.1 Conflitos socioambientais na Amazônia e construção de categorias jurídicas ............... 56

2.1.1 Reservas Extrativistas e Populações tradicionais: discussões em torno do processo

de elaboração da Lei 9.985/2000....................................................................................... 57

2.2 Análise da construção sociológica da expressão “povos e comunidades tradicionais” .. 67

2.3 Processo de territorialização e identificação ................................................................... 74

3 JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E DEFESA DOS

“POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS” .............................................................. 82

3.1 Instituições, agentes jurídicos e usos do direito .............................................................. 87

3.2 Interpretações e posicionamentos dos profissionais do direito sobre a expressão “povos

e comunidades tradicionais” ............................................................................................... 127

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 147

REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS .................................................................................. 150

APÊNDICES ......................................................................................................................... 155

Page 13: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

12

INTRODUÇÃO

A judicialização dos conflitos socioambientais é resultado de um processo, ainda em

curso, de ressignificação da temática meio ambiente, no âmbito do qual se verifica um

processo de “ambientalização” das pautas do diferentes grupos implicados nessa discussão.

Este neologismo, conforme destaca José Sérgio Leite Lopes (2008, p.17), indica uma

interiorização, por parte das pessoas e grupos, das “diferentes facetas da questão pública do

meio ambiente”, sendo tal incorporação manifestada pelas transformações na forma e na

linguagem de conflitos sociais, bem como na institucionalização parcial desta nova questão

pública. Assim, para o autor, o termo “ambientalização” indica o processo histórico de

construção de novos fenômenos, que implicam, simultaneamente, na transformação do Estado

e da vida das pessoas.

Henri Acserald (2010, p.103), tomando por base as reflexões de Lopes (2008), afirma

que a “ambientalização” compreende “tanto o processo de adoção de um discurso ambiental

genérico por parte dos diferentes grupos sociais, como a incorporação concreta de

justificativas ambientais para legitimar práticas institucionais, políticas, científicas, etc.”,

destacando que é por meio desse processo que “novos fenômenos vão sendo construídos e

expostos à esfera pública, assim como velhos fenômenos são renomeados como ‘ambientais’,

e um esforço de unificação engloba-os sob a chancela da ‘proteção ao meio ambiente’”.

Merece destaque nesse processo de “ambientalização” a existência de uma extensa

rede de agentes que, apesar dos discursos, concepções, instituições e práticas bastante

diferenciadas entre si, se aproximam por serem associados aos “movimentos ambientais” e ao

“discurso ambiental”, ou seja, “agentes envolvidos na elaboração do meio ambiente como

questão e como horizonte problemático de construção societal” (ACSERALD, 2010, p.104).

Cumpre destacar que tal rede é composta por intelectuais, cientistas sociais, políticos,

juristas, integrantes de movimentos sociais e outros segmentos que se articulam, dentre outros

objetivos, em prol das causas socioambientais e do atendimento das demandas dos chamados

“povos e comunidades tradicionais”, bem como do reconhecimento e legitimidade desta

expressão (que possui um caráter extremamente aberto e dinâmico, apesar das tentativas de

definição, inclusive jurídica, desta categoria).

Assim a expressão "povos e comunidades tradicionais" tem sido acionada, tanto por

representantes de movimentos sociais, quanto por agentes situados no espaço acadêmico e

Page 14: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

13

jurídico, com o objetivo de fomentar a adoção de estratégias de identificação, resistência e

garantia dos direitos específicos desses grupos, sobretudo os relativos a direitos territoriais.

Dentre essas estratégias, destaca-se a articulação desses agentes em redes nacionais e

transnacionais voltadas para a discussão de políticas públicas e para a criação e

implementação de legislações que contemplem as reivindicações desses segmentos. Destaque-

se ainda as estratégias direcionadas também para atender aos objetivos dos diferentes agentes

envolvidos na ressignificação da problemática ambiental.

Diante desse contexto brevemente apresentado, o presente trabalho objetiva analisar o

processo sociológico e jurídico de construção da causa1 socioambiental, bem como analisar o

processo de produção e reprodução da expressão "povos e comunidades tradicionais" no

âmbito dos projetos e conflitos inseridos nesta causa.

O foco da análise aqui empreendida recairá sobre os discursos e interpretações de

profissionais do direito implicados no processo de institucionalização da expressão em análise

por meio da publicização e da mobilização social em torno da legitimidade e reconhecimento

da expressão.

Para tanto, será realizada uma análise do processo histórico de construção do

socioambientalismo, com destaque para a elaboração e edição da Lei 9.985/2000, que institui

o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e que traz à tona, pela primeira vez no país,

as discussões sobre a expressão “populações tradicionais” em âmbito normativo.

Também será enfocada a construção da ideologia e do discurso do desenvolvimento,

no qual as ONGs ambientalistas – cada vez mais profissionalizadas – exercem um importante

papel ao funcionarem como vetores de modelos políticos, institucionais e ideológicos de

origem ocidental, sobretudo norte-americana.

No que concerne aos profissionais do direito que atuam na defesa das causas

socioambientais – nos tribunais, na academia ou mesmo fora dos espaços jurídicos –

destaque-se que os mesmos funcionam como “tradutores” das causas políticas em jurídicas e,

de modo inverso, de causas jurídicas em políticas, dada a preocupação que revelam em

socializar e descomplexificar o direito para que o mesmo possa ser compreendido pelos

diferentes agentes envolvidos nos conflitos.

1 Utilizamos o termo causa no mesmo sentido empregado por Virginia Vecchioli (2006, p. 15), para quem “esse conceito remete tanto ao processo judicial, que tramita nos tribunais, quanto ao conjunto de interesses a serem sustentados e a fazerem valer na esfera pública”.

Page 15: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

14

Focalizar a análise nesses profissionais permite perceber como o campo judicial2 atua

como princípio de construção da realidade social que, no caso específico, se refere à

construção e legitimação da categoria “povos e comunidades tradicionais”.

Com relação a esse processo de classificação realizado no âmbito jurídico, cumpre

destacar as reflexões de Bourdieu (1998) no que se refere à redefinição das situações

ordinárias a partir da sua definição jurídica bem como da sua retradução para que as mesmas

se tornem consagradas socialmente. Nas palavras do autor:

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas (...) O direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este (BOURDIEU, 1998, p. 237).

Conforme destaca Vecchioli (2006, p. 11), este é o campo que fornece as categorias

sociais apropriadas, os cenários onde se interpretam e julgam os fatos e os meios através dos

quais se aspira solucionar os conflitos coletivos, o que garante aos seus profissionais a

centralidade no que se refere a consagração de uma maneira de intervir e interpretar o mundo

social.

Sobre este papel determinante que desempenham os profissionais do direito na

construção da realidade social, Bourdieu (1998) chama atenção para esse processo de

tradução, para a linguagem do direito, de problemas que se exprimem na linguagem vulgar, o

que possibilita a transformação de conflitos e disputas em processos judiciais. Conforme

destaca:

Nada é menos natural do que a ‘necessidade jurídica’ ou, o que significa o mesmo, o sentimento de injustiça que pode levar a recorrer aos serviços de um profissional: é sabido, com efeito, que a sensibilidade à injustiça ou a capacidade de perceber uma experiência como injusta não está uniformemente espalhada e de que depende estreitamente da posição ocupada no espaço social (...) O poder específico dos profissionais consiste em revelar direitos e, simultaneamente, as injustiças (...), em resumo, de manipular as aspirações jurídicas, de as criar em certos casos, de as aumentar ou de as deduzir em outros casos (BOURDIEU, 1998, p. 232).

2 De acordo com Pierre Bourdieu (1998, p. 229), “o campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito directo entre as partes diretamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que atuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as leis escritas e não escritas do campo”.

Page 16: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

15

Ainda no que se refere a esses profissionais do direito engajados na defesa dos direitos

dos “povos e comunidades tradicionais”, cumpre destacar que não se perderá de vista a rede

maior em que estes agentes sociais se situam. A análise dos discursos dos profissionais

entrevistados e pesquisados revela uma intensa articulação dos mesmos com os movimentos

sociais nacionais e internacionais voltados para a defesa dos direitos coletivos e difusos, nas

quais se inserem as discussões sobre as causas socioambientais.

Dessa forma, conforme destacado, além de nos atermos à discussão sobre as condições

e possibilidades de construção de uma comunidade de intérpretes jurídicos voltados para as

causas socioambientais, contextualizamos a “descoberta” e o “surgimento” dessas causas, o

processo de ambientalização dos movimentos e conflitos sociais e o papel das instituições

internacionais de pesquisa e desenvolvimento em torno da construção e reprodução da

temática. Essas discussões são fundamentais para compreender o processo de construção da

expressão “povos e comunidades tradicionais”, uma das categorias centrais utilizadas por

estes diferentes atores na legitimação das causas socioambientais.

Cumpre explicitar os motivos que me levaram a escolha desse tema como objeto de

estudo. Nesse sentido, pode-se falar na realização de um exercício de auto-reflexão, na

medida em que serão evidenciadas as relações entre as minhas experiências acadêmicas e

profissionais com a pesquisa realizada.

Novamente recorremos a Bourdieu (1982), quando chama a atenção para a

necessidade de, em sociologia, o pesquisador estar predisposto a realizar a “objetivação do

sujeito objetivante”, ou seja, a objetivação do local que o próprio pesquisador ocupa em suas

análises.

Essa sociologia da sociologia ou sociologia reflexiva3 pode e deve ser utilizada como

um instrumento do método sociológico, contribuindo, dentre outros elementos, para auxiliar

no conhecimento do sujeito de conhecimento e possibilitar ao pesquisador tomar a distância

necessária para pensar na sua posição social de pensador.

Tal exercício de objetivação, contudo, não é de fácil realização. Colocar em suspenso

conhecimentos adquiridos, perspectivas teóricas, posturas, adesões e filiações (sociais,

políticas, morais etc.) durante a realização das pesquisas traz à tona uma série de dilemas.

Nesse sentido, as reflexões realizadas por Norbert Elias (1998) no que se refere ao

envolvimento e a alienação presentes nos estudos científicos das Ciências Sociais evidenciam

3 Para Bourdieu (1982), a vantagem dessa objetivação do sociólogo com o seu objeto – ou da objetivação dos seus interesses em objetivar – torna possível um certo domínio dos fins sociais que estão, ou podem estar, implicados nos fins científicos perseguidos.

Page 17: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

16

esses dilemas. De acordo com este autor, dentre as especificidades apresentadas pelas

Ciências Sociais e que acabam se tornando uma dificuldade adicional encontra-se o fato de

seus “objetos” de pesquisa serem ao mesmo tempo “sujeitos”, e, além disso, o próprio

pesquisador faz parte do seu objeto de estudo.

Dado esse grau de envolvimento maior do pesquisador com os acontecimentos e

fenômenos analisados, comumente acaba ocorrendo uma fusão entre a preocupação científica

dos cientistas sociais e suas preocupações extra-cientificas ou políticas, o que pode levar a,

dentre outras implicações, uma análise superficial da situação analisada, de onde decorre a

necessidade de redobrarem-se os cuidados relativos ao envolvimento com a temática

estudada.

Acrescem-se ainda as dificuldades decorrentes da própria constituição das abordagens

científicas voltadas para o estudo das questões ambientais, tendo em vista que, conforme

destaca Oliveira (2008), há uma forte imbricação das Ciências Sociais com a militância em

partidos políticos e organizações e movimentos sociais, o que acarreta uma reduzida

autonomia científica no tratamento da matéria. Segundo o autor, “as abordagens, os tipos de

problemas e os resultados da análise estavam diretamente associados às preocupações,

problemas e reivindicações levantadas pelas próprias lideranças e organizações que

participavam de tais mobilizações” (OLIVEIRA, 2008, p. 108).

Dessa forma, é comum haver uma continuidade entre as abordagens científicas e o

debate político sobre o ambientalismo em vez da consolidação de um espaço próprio de

estudos e pesquisas, distintos das preocupações políticas e ideológicas dos movimentos

ambientalistas (OLIVEIRA, 2008).

Feitas essas considerações, cumpre ressaltar que a minha relação – acadêmica e

ideológica – com a temática atualmente estudada se intensifica quando das pesquisas nas

quais fiz parte durante a graduação em Ciências Sociais4, haja vista que as mesmas foram

4 Em 2003 integrei o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB, participando de um projeto de pesquisa que objetivava levantar informações sobre a situação de crianças e adolescentes de comunidades rurais quilombolas nos municípios de Codó e Itapecuru Mirim, no estado do Maranhão. Em 2006, fiz parte do Grupo de Estudos Rurais e Urbanos – GERUR nos projetos de pesquisa “Produção de alimentos e cultura alimentar”, que objetivava avaliar os hábitos alimentares e aspectos da cultura alimentar de grupos camponeses e pescadores afetados pela instalação do Centro de Lançamento de Alcântara, e “Estudo sócio-antropológico sobre a presença de comunidades em faixas de servidão de linhas de transmissão da Eletronorte”, com vistas a entender as representações e utilizações dos diferentes agentes sociais que ocupam e utilizam as faixas de servidão de linhas de transmissão de alta tensão da Eletronorte. De 2006 a 2009, compus a equipe de pesquisa do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente – GEDMMA, como pesquisadora do projeto “Modernidade, desenvolvimento e consequências sócio-ambientais: a implantação do pólo siderúrgico na Ilha de São Luís – MA”, que buscava analisar a implantação do pólo siderúrgico no município de São Luís, suas conseqüências socioambientais e sua relação com a instalação em curso da Reserva Extrativista do Tauá-Mirim. Desta última pesquisa resultou o trabalho de conclusão do curso de Direito, que contou com o apoio financeiro

Page 18: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

17

realizadas a partir de um “compromisso” político e social com as questões envolvendo grupos

subalternizados.

De forma geral, pode-se afirmar que tais projetos de pesquisa, além de visarem

analisar os impactos negativos decorrentes de ações governamentais de caráter

desenvolvimentista sobre grupos étnico-raciais, buscavam ser apropriados de forma

instrumental nas lutas empreendidas por estes grupos, tanto na esfera política quanto na esfera

jurídica.

Além do mais, durante a graduação no curso de direito5, a participação em projetos

relacionados com temáticas dos direitos humanos, acesso à justiça e direitos coletivos e

difusos também condicionaram a minha inclinação para discussões relacionadas ao pluralismo

jurídico, ao direito alternativo, ao direito ambiental.

A participação nesses projetos ajuda a explicar a minha predisposição para estudar a

temática em questão e os profissionais do direito aqui apresentados (que possuem intensa

atuação e/ou produção acadêmica e científica sobre as temáticas relacionadas a formas de

promoção e tutela do meio ambiente e à proteção de grupos étnicos).

Por fim, cumpre ainda ressaltar a minha breve incursão profissional na Secretaria

Extraordinária de Igualdade Racial – SEIR, órgão público estadual que tinha como

destinatários das suas ações populações negras, indígenas, quilombolas, comunidades

tradicionais, etc.

A experiência de trabalho neste órgão me permitiu o “trânsito” entre diferentes

mundos sociais que se organizavam em torno dessas categorias: o das lideranças dos

movimentos sociais representativos dos grupos indígenas, quilombolas e demais povos e

comunidades tradicionais; os integrantes dos grupos sociais identificados como tradicionais; o

dos políticos, representado por secretários estaduais e municipais, prefeitos, vereadores,

assessores...

Esse trânsito, ainda que tenha durado pouco tempo, possibilitou o início de algumas

reflexões sobre os interesses e as alianças dos atores envolvidos nessa malha de conexões que

se estruturou em torno das discussões sobre promoção de direitos e ampliação de políticas

públicas para os grupos étnico-raciais.

do Instituto Internacional de Educação do Brasil por meio da concessão da Bolsa de Estudos para a Conservação da Amazônia. Por fim, cumpre destacar que todas estas pesquisas realizadas ocorreram no âmbito do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão. 5 No que se refere a minha participação em projetos vinculados ao Departamento de Direito da Universidade Federal do Maranhão, integrei, entre os anos de 2002 a 2003, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular NAJUP-Negro Cosme e, no ano de 2005, fiz parte da equipe do Núcleo de Estudos Ambientais – NEA.

Page 19: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

18

A ocorrência de algumas situações vivenciadas à época de trabalho – viagens a

municípios com o intuito de “mapear” as comunidades tradicionais existentes; conversas com

populações da zona rural ou urbana desses municípios que não se identificavam com nenhuma

categoria, mas que eram identificadas pelo estado e por movimentos sociais como populações

tradicionais; participação em reuniões com representantes de instituições estatais e

representantes de movimentos sociais nas quais as disputas por poder, legitimidade e recursos

se tornavam evidentes, dentre outras situações – fomentou algumas reflexões e indagações

importantes, inclusive sobre a atuação do cientista social nesses processos de classificação

social.

Além disso, essa experiência possibilitou a percepção de alguns elementos

antagônicos no que se refere a essa expressão, tendo em vista que ao mesmo tempo em que se

observa um movimento que visa legitimar o uso de tal categoria por determinados segmentos

sociais, existem vários entraves ao reconhecimento e à garantia de direitos a esses mesmos

grupos, constantemente questionados em sua “tradicionalidade”, sobretudo no que se refere a

discussão no espaço jurídico6.

A escolha dos objetivos do estudo, portanto, deve-se a essas experiências que

suscitaram reflexões sobre o processo de apropriação da expressão “povos e comunidades

tradicionais” por integrantes de movimentos sociais – apoiados por setores ligados à academia

e à ONGs nacionais e internacionais – bem como possibilitaram a observação de como a

expressão ensejava disputas jurídicas e políticas em torno da definição desses grupos e de

quem seriam os destinatários legítimos de tal classificação.

Cumpre ainda destacar que essas experiências também possibilitaram perceber que a

categoria em análise articula-se a contextos sociais específicos, de modo que se faz necessário

considerar essas especificidades para compreender como e quando essa expressão faz sentido,

como ela é representada e por quem e como se integra a diferentes relações de poder.

No que se refere às estratégias metodológicas utilizadas para a realização desta

pesquisa, a mesma se baseou em levantamentos bibliográficos sobre a temática em estudo,

análise de documentos textuais e legislações produzidas e reproduzidas pelas instituições

internacionais, análise da legislação nacional no que pertine aos direitos dos “povos e

comunidades tradicionais”, bem como análise de publicações e documentos relativos à

temática de pesquisa.

6 Durante a experiência neste órgão, foram feitos, pelo Poder Judiciário do Maranhão, “pedidos de manifestação” da SEIR com vistas a “atestar” a ancestralidade e a tradicionalidade de grupos (especialmente quilombolas) envolvidos em conflitos fundiários no interior do estado.

Page 20: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

19

Também procedi a pesquisas na Internet com vistas a obter informações sobre os

profissionais do direito que possuem produções referentes aos direitos dos “povos e

comunidades tradicionais”, além de realização de entrevistas.

As entrevistas foram realizadas com profissionais do direito situados nos estados do

Maranhão e do Pará que possuem, na sua trajetória profissional – quer seja na academia, quer

seja na atuação junto ao Poder Judiciário – envolvimento com temáticas relativas aos grupos

estudados.

Dadas as peculiaridades apresentadas por estes dois estados – sobretudo no que

concerne a existência de uma variedade de apropriações do território por parte dessas

comunidades e a incidência de projetos e políticas de desenvolvimento que confrontam os

modos de vidas desses grupos e acarretam inúmeros e violentos conflitos agrários – foi

possível mapear um bom número de juristas engajados nessas causas, sobretudo no estado do

Pará. Contudo, por limitações temporais e financeiras (já que alguns atuavam no interior do

estado), não foi possível entrevistar mais profissionais.

A estadia no estado do Pará se deveu ao convênio firmado entre a Universidade

Federal do Maranhão, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal do

Pará por meio do Projeto PROCAD NF 21/2009: “Territórios Emergentes da Ação Pública

Local e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Brasileira”, financiado pela CAPES, e se

estendeu durante os meses abril e maio de 2011, na cidade de Belém.

Neste estado, realizei entrevistas com professores universitários vinculados ao

Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, Prof. Dr. Girolamo

Domenico Treccani e o Prof. Dr. José Heder Benatti, assim como procedi a realização de

entrevista com o Procurador Geral da República do Estado do Pará, Felício Pontes Junior.

O primeiro contato com os professores Girolamo Treccani e Heder Benatti, no

Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA, ocorreu no dia 16 de maio de 2011, com vistas a

agendar as datas da entrevista, o que foi acertado posteriormente através de e-mails. As

entrevistas com o professor Girolamo Treccani foram realizadas nos dias 16 e 17 de maio,

enquanto com o professor José Heder Benatti ocoreu dia 23 de maio de 2011.

As informações sobre o Procurador Felício Pontes Júnior foram obtidas tanto pela

Internet quanto pela realização de entrevista. O contato com o Procurador foi realizado por e-

mail, quando ele se dispôs prontamente a conceder a entrevista ficando na dependência da sua

agenda a marcação da data. O dia 26 de maio foi a data inicialmente marcada pela sua equipe

de assessores, contudo, devido ao assassinato dos trabalhadores rurais Maria do Espírito Santo

e João Cláudio Ribeiro, do município de Nova Ipixuna, ocorrido no dia 25 de maio

Page 21: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

20

(acontecimento que teve repercussão nacional, haja vista que o crime se relacionar com o fato

de os trabalhadores, várias vezes já ameaçados de morte, denunciarem ao IBAMA atividades

ilegais de desmatamento e o roubo de madeira de lei) e de reunião realizada na mesma data e

horário com governador do estado sobre este caso, a entrevista fora adiada para o dia 27 de

maio de 2011, na sede do Ministério Público da União do estado do Pará.

No Maranhão entrevistei o Procurador da República do Estado do Maranhão,

Alexandre Silva Soares, no dia 24 de novembro de 2011, na sede do Ministério Público da

União. A entrevista foi agendada diretamente com o Procurador via e-mail e, posteriormente,

confirmada por telefone, transcorrendo sem maiores contratempos.

Cumpre ainda destacar que visando complementar essas entrevistas, realizei coleta de

dados junto a fontes secundárias para obtenção de informações sobre a produção intelectual,

currículos e perfis profissionais, além de matérias jornalísticas e informativos institucionais

envolvendo os agentes mencionados.

Além dessas entrevistas pessoalmente realizadas, também fiz uso de entrevistas

realizadas por terceiros e disponibilizadas na Internet, sobretudo as relativas a

Subprocuradora-geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira. Assim, as

informações foram obtidas em fontes indiretas de pesquisa: sites, matérias veiculadas na

Internet e entrevistas publicadas em revistas especializadas, conforme serão indicadas ao

longo do texto.

Tal recurso foi utilizado tendo em vista, por um lado, a dificuldade de realizar contatos

pessoais com a mesma (que, além de ter uma agenda de trabalho muito intensa, reside e

trabalha em Brasília – DF) e, por outro lado, devido à disponibilização de muitas informações

na Internet sobre Deborah Duprat, dada a centralidade do cargo que ocupa e também devido

aos posicionamentos jurídicos pouco convencionais adotados pela Subprocuradora.

Ainda no que tange a obtenção de dados de forma indireta, procedi ao levantamento de

informações sobre produção bibliográfica e trajetória profissional do professor da

Universidade Estadual do Amazonas e da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (MA),

Prof. Dr. Joaquim Shirashi Neto.

No que se refere à estrutura do trabalho e à disposição das reflexões suscitadas pela

pesquisa, às mesmas encontram-se ordenadas em três capítulos.

No primeiro capítulo, será enfatizado o processo internacional de invenção e

institucionalização da causa socioambiental, no bojo do qual encontram-se os processos de

construção da categoria “povos e comunidades tradicionais”. Destaca-se como e em que

contexto as discussões sobre a temática ganharam espaço nas agendas das instituições

Page 22: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

21

internacionais, bem como os diferentes interesses envolvidos no processo de ambientalização

das demandas sociais.

Ainda no primeiro capítulo, é realizada uma discussão sobre o discurso do

desenvolvimento, realizando uma revisão conceitual da expressão, no intuito de demonstrar a

importância dos organismos e instituições internacionais na formulação de conceito, teorias,

valores e mecanismos voltados para a produção institucional de determinadas realidades

sociais.

A partir dessa discussão, aborda-se o papel das alianças entre os movimentos sociais

nacionais e o movimento ambientalista internacional (rede de ativismo ambiental), a

importação de modelos institucionais para países periféricos e a difusão do discurso

desenvolvimentista que fundamentam as discussões realizadas em torno dessas causas.

No segundo capítulo, encontra-se uma reflexão sobre as construções jurídicas e

sociológicas elaboradas, sobretudo, por teóricos das ciências sociais, com vistas a dar

visibilidade aos segmentos classificados como “povos e comunidades tradicionais”.

Neste capítulo, discorre-se sobre o processo de construção legislativa e de

conceituação jurídica desses grupos, com destaque para as discussões em torno da elaboração

e aprovação da Lei 9.985/2000 (e as polêmicas sobre a presença ou não de populações

humanas em unidades de conservação da natureza7, sobretudo na modalidade de Reserva

Extrativista) e do Decreto 6.040/2007, que dispõe sobre a Política Nacional dos Povos e

Comunidades Tradicionais.

Ainda no segundo capítulo retomam-se as principais formulações teóricas sobre a

relação entre territórios, identidades, lutas sociais – sobretudo na Amazônia pós década de

1980 – com vistas a compreender como se dá o processo de constituição de movimentos

sociais que se articulam em torno da defesa das “terras tradicionalmente ocupadas”.

7 Conforme o art. 7º da Lei 9.985/2000, as unidades de conservação da natureza dividem-se em dois grupos com características bem específicas: Unidades de Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável. Nas Unidades de Proteção Integral não é permitido o compartilhamento de seus espaços com atividades outras que não aquelas especificamente integradas ao objetivo da própria unidade, ou seja, como o objetivo primordial é o de preservar a natureza, admite-se apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, salvo exceções previstas na própria lei. Já com relação às Unidades de Uso Sustentável, os recursos podem ser utilizados diretamente, desde que de maneira sustentável, uma vez que o objetivo dessa unidade é a compatibilização da conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais. As Unidades de Proteção Integral são compostas por cinco categorias de unidades de conservação: Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional; Monumento Natural e Refúgio de Vida Silvestre. As Unidades de Uso Sustentável, por sua vez, compõem-se por sete categorias de unidades de conservação: Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista; Reserva de Fauna; Reserva de Desenvolvimento Sustentável; Reserva Particular do Patrimônio Natural. Existe ainda a Reserva da Biosfera, uma espécie de unidade de conservação que não está formalmente enquadrada em nenhuma das categorias ou grupos mencionados.

Page 23: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

22

Já no terceiro capítulo será analisado como as discussões nacionais e internacionais

sobre o “socioambientalismo” influenciaram modificações no Poder Judiciário, que foram

intensificadas no final da década de 1980 devido ao contexto de redemocratização do país.

Enfatiza-se ainda o papel das instituições e dos agentes engajados em causas

ambientais e que ocupam posições no espaço jurídico judicial (professores, advogados,

membros do Ministério Público...) no processo que neste trabalho será denominado de

“judicialização dos conflitos socioambientais”, assim como se analisam os discursos destes

profissionais no que concerne a categoria “povos e comunidades tradicionais”.

Page 24: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

23

1. INVENÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CAUSA SOCIOAMBIENTAL

1.1 Da “descoberta” da crise ambiental ao surgimento do socioambientalismo

A compreensão do que se convencionou chamar de socioambientalismo requer que

retomemos, ainda que de forma sumária, o processo de “descoberta” e publicização da crise

ambiental, entendendo por esta a percepção difundida, sobretudo, por agências e instituições

internacionais de pesquisa e desenvolvimento, de que os recursos ambientais são finitos e

encontram-se extremamente ameaçados diante dos processos industriais e tecnológicos cada

vez mais agressivos ao meio ambiente, bem como diante da apropriação de recursos naturais

limitados para satisfazer necessidades ilimitadas8.

Pode-se afirmar que o reconhecimento desta crise costuma ser associado à década de

1960, período em que a questão ambiental passou a ocupar, progressivamente, mais espaço

nos debates políticos, acadêmicos e científicos. Contudo, no que se refere à tendência corrente

de considerar esta década como o ponto de partida da emergência de reivindicações, protestos

e mobilizações em defesa das causas ambientais, Wilson José Ferreira de Oliveira (2008) faz

algumas ressalvas.

Conforme destaca o autor, há um descompasso entre o recorte temporal estabelecido

pela literatura e a existência de mobilizações bastante antigas em defesa de causas ambientais,

o que o leva a afirmar que o final da década de 1960 expressa muito mais o marco da

constituição da “problemática ambiental” como objeto de estudo das Ciências Sociais do que

o período de nascimento das primeiras mobilizações concretamente voltadas para a defesa de

tais causas. Acerca dessas antigas mobilizações em defesa das causas ambientais, Oliveira

(2008, p. 104) pontua:

Cabe salientar diversos trabalhos nos quais se pode observar que o sentimento de amor à natureza, aos animais e às plantas, à paisagem e à vida rural é um dos traços constitutivos do processo de emergência e de desenvolvimento da chamada “civilização industrial”, “capitalista” ou “moderna”, estando ligados a um complexo de mudanças que estavam em curso neste período. Do mesmo modo, o aparecimento de manifestações e movimentos de retorno à natureza, à vida campestre e à vida natural pode ser

8 A esse respeito, o autor Gustavo Esteva (2000a, p. 75) destaca que os fundadores da economia encontraram na escassez a pedra fundamental para toda a sua construção teórica. Assim, a partir desse viés economicista que vislumbra a escassez a partir de carência, raridade, restrição, necessidade e insuficiência, os grupos humanos nos quais as premissas não econômicas regem a vida das pessoas são desconsiderados e desvalorizados. Conforme destaca: “O estabelecimento de valor econômico exige a desvalorização de todas as outras formas de vida social. Essa desvalorização transforma, em um passe de mágica, habilidades em carências, bens públicos em recursos, homens e mulheres em trabalho que se compra e vende como um bem qualquer, tradições em um fardo, sabedoria em ignorância, autonomia em dependência” (ESTEVA, 2000a, p. 74).

Page 25: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

24

observado tanto no antigo regime da França (...) quanto no início do século XX nos Estados Unidos (...) e, inclusive, no Brasil (...).

A “descoberta” dessa crise, portanto, decorre não do surgimento de algo novo, mas

sim, efetivamente, de um novo olhar para uma questão pré-existente, tendo em vista que os

problemas ambientais e as manifestações de preocupação para com a preservação e

restauração dos recursos naturais, conforme observado na citação acima, são de longa data,

não podendo ser considerados como de origem recente. Há que se ressaltar que embora tais

discussões não sejam recentes, os processos tecnológicos em curso amplificam o potencial

destruidor da espécie humana sobre os recursos naturais e o agravamento da problemática

ambiental de forma sem precedentes.

Assim, a percepção intensificada na década de 1960 de que o desenvolvimento

econômico e o processo de industrialização em larga escala – em curso desde o século XVIII,

com a sua amplificação após a segunda metade do século XX – estavam acarretando

resultados desastrosos para todo o planeta, levou aglutinação de diferentes agentes, de

distintas nacionalidades, a discutir formas “alternativas” de conciliação entre

desenvolvimento e preservação/conservação do meio ambiente.

Nesse contexto se insere a realização do primeiro grande evento internacional sobre

meio ambiente, realizado na cidade de Estocolmo, Suécia, em junho de 1972 e sobre os

auspícios da Organização das Nações Unidas. A reunião, denominada Conferência das

Nações Unidas sobre Meio Ambiente, também conhecida por Conferência de Estocolmo,

contou com a participação de 113 países e 250 organizações não governamentais e

organismos vinculados a ONU.

Tal evento é apontado como um dos grandes marcos da história do ambientalismo

internacional, e apesar da pouca representatividade do Brasil na Conferência de Estocolmo,

algumas conseqüências internas foram produzidas, tal como a criação, em 1973, do primeiro

órgão brasileiro de meio ambiente, a Secretaria de Meio Ambiente no âmbito do então

Ministério do Interior, e a edição de leis voltadas para a proteção ambiental9.

9 Dentre essas leis, menciona-se a Lei nº 6.938/1981, que estabeleceu os princípios e objetivos da Política Nacional de Meio Ambiente, diferenciando-se das leis anteriormente editadas, pois considerava o meio ambiente de forma holística e sistêmica e não desarticulada, como os instrumentos jurídicos anteriores. Conforme destaca o jurista Édis Milaré (2007, p. 746) “A lei 6.938, de 31.08.1981 (...) entre outros tantos méritos, teve o de trazer para o mundo do Direito o conceito de meio ambiente como objeto específico de proteção em seus múltiplos aspectos; o de instituir o Sistema Nacional de Meio Ambiente, apto a propiciar o planejamento de uma ação integrada de diversos órgãos governamentais através de uma política nacional para o setor; e o de estabelecer, no art. 14, § 1º, a obrigação do poluidor de reparar os danos causados, de acordo com o princípio da responsabilidade objetiva (ou sem consideração da culpa) em ação movida pelo Ministério Público”.

Page 26: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

25

Outro evento de grande repercussão mundial e que influenciou na construção da causa

ambientalista no Brasil foi a divulgação, em 1987, do relatório das Nações Unidas intitulado

“Nosso Futuro Comum” coordenado pela então primeira ministra da Noruega, Gro

Brundtland – razão pela qual ficou conhecido como “Relatório Brundtland” (CMMAD,

1991).

Este relatório é o primeiro documento de agências internacionais que faz referência ao

conceito de desenvolvimento sustentável10, definindo-o como aquele que satisfaz as

necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de

satisfazer as suas próprias necessidades.

Cumpre ainda destacar, no âmbito do desenvolvimento histórico do processo de

consolidação internacional da questão ambiental, que, além da centralidade dada à polêmica

categoria de desenvolvimento sustentável, o “Relatório Brundtland” enfatizou ainda os graves

contornos da crise ambiental mundial. Este fato, por sua vez, abriu precedentes para que a

Assembléia Geral das Nações Unidas convocasse, no ano de 1989, uma Conferência das

Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conferência esta que se realizou

três anos depois, em 1992, na Cidade do Rio de Janeiro, contando com a presença de 172

países, representados por aproximadamente 10.000 participantes, incluindo 116 chefes de

Estado e de Governo.

Essa Conferência, mais conhecida como “Rio 92” ou “Eco 92”, e também denominada

“Cúpula da Terra”, abordou uma imensa variedade de aspectos relacionados ao meio

ambiente e ao desenvolvimento. Houve, a partir desse evento, o fortalecimento e a

consolidação da tendência mundial de incluir nas discussões sobre a temática ambiental

questões relacionadas a aspectos sociais e culturais, que até então eram ofuscadas diante da

necessidade de proteção e restauração de ecossistemas e proteção de espécies da fauna e flora.

Dito de outra forma passou-se a inserir questões sociais na discussão ambiental,

resultado da articulação dos movimentos sociais em prol da conciliação da biodiversidade e

sociodiversidade, bem como das consequentes formulações políticas e jurídicas possuidoras

de uma visão mais abrangente acerca dos componentes integrantes do meio ambiente. Assim,

além do meio ambiente natural passa-se a incluir o meio ambiente cultural e artificial,

representados pelas realizações humanas, formas de expressão cultural e criações sociais.

O processo de construção do socioambientalismo tem nessa conferência internacional

um momento chave, tendo em vista que se observa, através da análise das declarações

10 A noção sobre a construção do discurso e da ideologia do desenvolvimento será abordada no item seguinte.

Page 27: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

26

proferidas por representantes de Estados bem como dos documentos produzidos e assinados

por vários países, uma mudança de discurso no que concerne ao meio ambiente, até então

excessivamente pautado no meio ambiente natural.

Além da realização da “Rio 92” – que criou um amplo espaço de mobilização e

debates que consolidaram o movimento socioambiental no pais11 - deve-se ressaltar que,

anteriormente a realização deste evento, a promulgação da Constituição Federal de 1988 já

havia exercido um importante papel no que pertine à sedimentação legal dessa discussão.

Segundo Santilli (2007, p.42):

Outro marco do processo de democratização do país foi a aprovação, em 1988, da nova Constituição, que passou a dar sólido arcabouço jurídico ao socioambientalismo. A Constituição, pela primeira vez na história constitucional brasileira, dedicou todo um capítulo ao meio ambiente, assegurando a todos o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (artigo 225,caput). Indubitavelmente, a Constituição de 1988 representou um grande avanço na proteção jurídica ao meio ambiente. Tanto a biodiversidade – os processo ecológicos, as espécies e ecossistemas – quanto a sociodiversidade são protegidas constitucionalmente, adotando o paradigma socioambiental.

Esse contexto histórico de consolidação democrática no país foi resultado de um

amplo espaço de participação da sociedade civil e, consequentemente, do processo de

mobilizações e articulações entre os mais variados segmentos voltados para a defesa dos

chamados “novos direitos” 12. Tais mobilizações levaram a formação de alianças estratégias

entre movimentos ambientalistas – antes focados no aspecto estritamente ambiental diante da

preocupação com a escassez de recursos naturais – e demais movimentos sociais, tanto

nacional como internacionalmente situados.

11 Conforme destaca Juliana Santilli (2007, p. 31), “O socioambientalismo brasileiro – tal como reconhecemos e identificamos – nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir das articulações políticas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista. O surgimento do socioambientalismo pode ser identificado com o processo histórico de redemocratização do país, iniciado com o fim do regime militar, em 1984, e consolidado com a promulgação da nova Constituição, em 1988, e a realização de eleições presidenciais diretas, em 1989. Fortaleceu-se, como o ambientalismo geral – nos anos 90, principalmente depois da realização da Conferência das Nações unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992 (Eco-92), quando os conceitos socioambientais passaram claramente a influenciar a edição de normas legais”. 12 Os “novos direitos” são identificados como aqueles que decorrem do direito de participação e de incorporação da manifestação direta dos cidadãos na resolução de seus problemas imediatos (MILARÈ, 2007, p. 756). Na ciência jurídica, tais direitos são considerados como de “terceira dimensão”, e dizem respeito aos direitos de titularidade coletiva e difusa, dentre os quais se incluem o direito ao meio ambiente. Sobre esse aspecto, pontua Juliana Santilli (2007, p. 22): “Os ‘novos’ direitos, conquistados por meio de lutas sociopolíticas democráticas, têm natureza emancipatória, pluralista, coletiva e indivisível, e impõem novos desafios a ciência jurídica, tanto do ponto de vista conceitual e doutrinário quanto do ponto de vista de sua concretização”.

Page 28: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

27

Os grupos humanos – mais especificamente, populações indígenas e “povos e

comunidades tradicionais” – passam a integrar as preocupações de algumas correntes

preservacionista não mais como entraves aos objetivos de preservação e conservação do meio

ambiente natural13, mas como aliados potenciais nesse processo.

Ainda no que concerne à articulação entre movimento social e ambientalista, cumpre

ressaltar a importância e a grande repercussão internacional obtida a partir da formação, na

Amazônia brasileira, do movimento denominado “Aliança dos Povos da Floresta”. Tal

movimento é formado a partir das relações políticas estratégicas travadas entre povos

indígenas e populações tradicionais e destes com aliados nacionais e internacionais situados

em diferentes espaços sociais (partidos políticos, universidades, ONGs dentre outros).

Esta articulação se dá no âmbito dos violentos conflitos fundiários travados na região

Amazônica desde meados da década de 1970, decorrentes dos desmatamentos e exploração

predatória dos recursos naturais, dos processos de construção de rodovias federais e pela

abertura de grandes pastagens destinadas a projetos agropecuários. Como conseqüência, tem-

se a migração de colonos e agricultores atraídos pelo discurso difundido pelo regime ditatorial

que proclamava a ocupação do vazio demográfico existente na Amazônia e a transformação

da região em um pólo produtor rentável para a nação.

Contextualizando esse conflito, pode-se identificar nos seringueiros14 da região

amazônica os iniciadores do movimento político que se opunham às injustiças geradas pela

estrutura social e econômica então vigente na região após o processo de decadência

econômica dos antigos seringais, sobretudo na Amazônia Ocidental, com destaque para o

estado do Acre.

13 Sobre esta mudança de perspectiva, o processo de discussão e promulgação da Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e que demorou mais de 20 anos para ser aprovado no Congresso Nacional, explicita bem os conflitos e divergências em torno das visões existentes sobre as populações humanas no que concerne a preservação/conservação e sobre a articulação entre biodiversidade e sociodiversidade. Conforme destaca Santilli (2007, p. 41): “O socioambientalismo passou a representar uma alternativa ao conservacionista preservacionista ou movimento ambientalista tradicional, mais distante dos movimentos sociais e das lutas políticas por justiça social e cético quanto à possibilidade de envolvimento das populações tradicionais na conservação da biodiversidade. Para uma parte do movimento ambientalista tradicional preservacionista, as populações tradicionais – e os pobres de uma maneira de maneira geral – são uma ameaça à conservação ambiental, e as unidade de conservação devem ser protegidas permanentemente dessa ameaça. O movimento ambientalista tradicional tende a se inspirar e a seguir modelos de preservação ambiental importados de países do Primeiro Mundo, onde as populações urbanas procuram, especialmente em parques, desenvolver atividades de recreação em contato com a natureza, mantendo intactas as áreas protegidas. Longe das pressões sociais típicas de países em desenvolvimento, com populações pobres e excluídas, o modelo preservacionista tradicional funciona bem nos países desenvolvidos, do norte, mas não se sustenta politicamente aqui”. 14 Por seringueiros compreendem-se os trabalhadores rurais, oriundos principalmente do Nordeste, vivendo da extração do látex e também de outras atividades extrativistas e, portanto, dependentes dos recursos naturais para a sua manutenção física e social.

Page 29: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

28

Sobre essas injustiças, os antropólogos Manoela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida

(2001) expõem que a decadência econômica dos antigos seringais, sobretudo no estado do

Acre, criava oportunidade para a compra de terra barata, das quais eram detentores os

seringueiros que não possuíam os títulos legais da terra. Devido a esse fator, uma das

primeiras tarefas dos compradores das terras era a de expulsar os seringueiros, bem como as

demais populações extrativistas que viviam nas áreas, o que levou esses grupos destituídos de

suas posses ou em ameaça de sê-lo, a se organizar em sindicatos com vistas a resistir a essas

expulsões.

A partir de mobilizações sociais e políticas realizadas naquele estado, inicialmente, no

município Basiléia, sob a liderança de Wilson Pinheiro15, presidente do STR de Basiléia e,

posteriormente, no município de Xapuri, sob a liderança de Chico Mendes, presidente do STR

de Xapuri, houve várias denúncias das práticas predadoras do ambiente natural (como o

desmatamento e especulação fundiária) bem como de injustiças sociais (como assassinatos e

expulsão de milhares de pessoas de suas terras). Nesse sentido, conforme Sant’Ana Júnior

(2004, p. 196):

Juntamente com a organização dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, uma intensa luta social é desencadeada pelos trabalhadores rurais acreanos, especialmente pelos extrativistas. Essa luta assume forma de empates16, acampamentos, comissões a Brasília, pressões sobre parlamentares, denúncias aos órgãos públicos, demandas judiciais, multidões armadas para impedir violência contra a posse.

Na década de 1980, o movimento sindical rural no Acre ganhou grande repercussão

nacional e internacional e a liderança de Chico Mendes bem como sua capacidade de

articulação com outros setores sociais – organizações ambientalistas internacionais,

pesquisadores, estudantes, jornalistas, trabalhadores urbanos, dentre outros – trouxeram

visibilidade e reconhecimentos à luta empreendida pelos seringueiros.

Ainda nesse contexto de formação de alianças políticas, os seringueiros de Xapuri,

liderados por Chico Mendes, iniciaram um processo de diálogo junto aos seringueiros e

extrativistas de toda a Amazônia com vistas à realização de um encontro nacional, no qual as

15 Wilson Pinheiro foi uma das principais lideranças do movimento sindical no Acre. O seu assassinato, em 21 de julho de 1980, foi o primeiro de uma série de assassinatos a lideranças importantes no estado e gerou uma grande revolta entre os seringueiros. (SANT'ANA JÚNIOR, 2004, p. 203). 16 De acordo com Sant’Ana Júnior, os empates eram formas de resistência e luta contra os desmatamentos e consistiam na tentativa empreendida pelos seringueiros de impedir que os peões contratados para realizar o desmate alcançassem seus objetivos. Para tanto, os seringueiros lançavam mão tanto do diálogo quanto do próprio corpo, por meio da formação de barreiras humanas, que impediam o avanço das motosserras e dos peões nas florestas. O primeiro empate de que se tem notícia foi realizado no município de Basiléia, em março de 1976, sob a liderança de Wilson Pinheiro (SANT'ANA JÚNIOR, 2004, p. 196-197).

Page 30: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

29

suas demandas específicas fossem discutidas e efetivadas. Esses diálogos, portanto,

envolviam além de seringueiros, ribeirinhos, pescadores dentre outros grupos. Ainda de

acordo com Sant’Ana Júnior (2004, p. 224):

Após uma série de reuniões e encontros preparatórios nos estados do Acre, Amazonas, Pará e Rondônia, em outubro de 1985 aconteceu o I Encontro Nacional dos Seringueiros, em Brasília – DF. Neste encontro foi criado o CNS (Conselho Nacional dos Seringueiros) que adotou como principal bandeira a luta pela criação das Resex (...).

Foi no referido encontro que surgiu a proposta de criação da reserva extrativista –

sendo o termo reserva tomado emprestado das reservas indígenas – nas quais as terras não

mais seriam divididas em lotes tendo em vista que uma idéia central na proposta de tais

reservas é a titularidade coletiva e compartilhada sobre os direitos de uso dos recursos

naturais nelas existentes17.

Devido a uma série de alianças políticas internas levadas à cabo por Chico Mendes,

inclusive com os grupos indígenas da região18, constitui-se um movimento social e político

denominado Aliança dos Povos da Floresta. Conforme já mencionado, este movimento tinha

como meta principal a defesa do modo de vida das populações tradicionais amazônicas, cuja

continuidade dependia da conservação da floresta, que estava gravemente ameaçada pelo

desmatamento e pela abertura de grandes rodovias e de pastagens destinadas às fazendas de

agropecuária.

O destaque obtido pelo movimento, somado às pressões internacionais, foi de suma

importância para a elaboração de estudos relacionados à atividade e ao fortalecimento dos

grupos extrativistas, tendo em vista que tal atividade passou a ser exaltada como alternativa ao

impacto ambiental devastador provocado pelos grandes projetos de colonização e

agropecuários.

Dessa forma, o fortalecimento da articulação entre o movimento social dos

seringueiros e o movimento ambientalista, bem como a ampla repercussão nacional e

17 Inspirados nos modelos das terras indígenas, as reservas extrativistas se baseiam no conceito de que são bens de domínio da União (de forma que evite a sua venda e lhe dê as garantias de que somente gozam os bens públicos) e de que a transferência do usufruto para os moradores das reservas extrativistas se faria pelo contrato de concessão de direito real de uso às entidades representativas dos moradores da reserva. 18 Ainda segundo Sant’Ana Júnior, “devido ao brutal processo de ocupação das terras indígenas, no período da implantação da empresa seringalista, através das correrias [expedições armadas contra os povos indígenas], seringueiros e índios, tradicionalmente, viam-se como inimigos. Procurando demonstrar que a ambos interessava a floresta em pé, Chico Mendes buscou estabelecer contatos com lideranças indígenas e seus assessores e construir uma agenda comum de reivindicações, configurando o que mais tarde se chamou “Aliança dos Povos da Floresta”. (2004, p. 230-231).

Page 31: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

30

internacional do assassinato de Chico Mendes, ocorrido 22 de dezembro de 1988, levou à

criação, em 1990, das primeiras reservas extrativistas19 no país.

De acordo com a definição da Lei nº 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de

Unidades de Conservação, a modalidade de unidade de conservação denominada reserva

extrativista é definida como:

Art. 18. Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.

Este é o primeiro instrumento jurídico nacional que faz menção ao termo “populações

tradicionais”20 e tem recebido atenção, conforme já destacado, por tratar-se de uma categoria

que tenta conciliar e unir as preocupações ambientalistas com as prerrogativas das

comunidades consideradas tradicionais (CHAMY, 2002, p. 02).

A proposta de criação dessas unidades de conservação passou a ser considerada por

estudiosos e formuladores de políticas públicas, tal como José Heder Benatti, como uma via

de desenvolvimento possível de se tornar eficaz, uma vez que no conceito e na figura jurídica

das reservas extrativistas está presente a influência do socioambientalismo.

Tal como afirma Benatti (2009, p. 547), a reserva extrativista passa a ser vislumbrada

como a reforma agrária das populações tradicionais (posse agroecológica), levado a um

processo de questionamento da forma predatória da ocupação oficial da Amazônia.

Nessa mesma linha argumentativa, Santilli (2007, p.33) ressalta que as reservas

extrativistas surgiram da demanda dos seringueiros por um modelo diferenciado de reforma

agrária a ser desenvolvido na Amazônia, no qual seria levado em consideração a enorme

diversidade cultural e biológica da região e as formas locais de apropriação territorial, o que

não era contemplado pelo modelo tradicional de assentamento proposto pelo Instituto

Nacional de Reforma Agrária (INCRA).

19 O decreto nº 98.863, de 23 de janeiro de 1990, criou a reserva extrativista do Alto do Juruá, de 506.186 hectares, no Acre. Logo depois, em 15 de março de 1990, foram criadas mais três reservas extrativistas: Chico Mendes, no Acre, de 970.570 hectares; Rio Cajari, no Amapá, de 481.650 hectares; e Rio Ouro Preto, em Rondônia, de 204.583 hectares (Santilli, 2007, p. 36). 20 Muito embora, a definição jurídica desses grupos, que deveria constar no art. 2º, inc. XV da Lei 9.985/2000 tenha sido vetada pelo Presidente da República ante as divergências existentes sobre a definição até então existente, como teremos oportunidade de discutir com mais detalhes no Capítulo 2.

Page 32: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

31

Tal observação nos permite destacar a existência de diferentes interesses envolvidos

nesse processo de “ambientalização” das demandas sociais, que não estão ligadas somente a

questões de cunho preservacionista/conservacionista. Para além das preocupações ambientais

propriamente ditas, existem interesses motivados por diferentes fatores, a depender das

expectativas dos agentes envolvidos.

A essencialização realizada em torno dos diferentes grupos sociais identificados como

tradicionais, ou seja, a sua associação direta a agentes voltados para a proteção e defesa das

florestas e demais recursos naturais, não permite perceber outros interesses envolvidos nesse

processo de ambientalização de discursos e práticas.

Ao levantar essa questão, não se quer deslegitimar as práticas desses grupos – que, de

maneira geral, apresentam-se de fato menos impactantes ao meio ambiente quando

comparadas aos demais setores da sociedade associados a outros modos de vida – mas sim

evidenciar que o objetivo imediato desses grupos, ao estabelecer alianças e estratégias com

demais agentes e instituições nacionais e internacionais (e exemplo de ONGs, institutos de

pesquisa, universidades etc.), tinha em vista a manutenção de seu território e preservação de

suas formas de vida.

Não se tratam, portanto, de práticas e discursos racional e conscientemente articulados

ao discurso ambientalista, mas que, de forma, imediata ou incidental, referem-se à

preservação dos recursos naturais.

Da mesma forma, pode-se afirmar que agentes situados nos movimentos sociais e

ambientais, bem como em instituições internacionais de desenvolvimento e pesquisa, também

possuem outros interesses, muito deles se sobrepondo a preocupação de cunho estritamente

ambiental, como acesso a recursos econômicos assim como legitimidade e prestígio.

Essa complexa rede articulada em torno das discussões ambientais, na qual impera, na

maioria das vezes, o “bom uso do mau entendido”, nas palavras de Benjamim Bouclet (2009),

é composta por uma grande diversidade de agentes, com suas especificidades interpretativas e

cognitivas relacionadas com diferentes visões de mundo orientadoras das suas práticas e

discursos.

A rede de mediadores articulada em torno da produção e reprodução de categorias,

dentre elas a de “povos e comunidades tradicionais”, é composta por atores sociais que, por

deterem propriedades políticas e sociais, conseguem transitar entre vários mundos sociais,

dominar códigos aplicáveis a cada um deles e mediar a passagem de um mundo para o outro.

Nesse contexto, é interessante destacar alguns elementos sobre a mediação, que

ajudam a pensar sobre o caso em estudo. De acordo com Wolf (2003), o instituto da mediação

Page 33: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

32

pode ser entendido como uma ligação entre os níveis da comunidade e da nação, ligação esta

realizada por grupos sociais estratégicos. Ainda conforme o autor, esses grupos – que podem

ser distinguidos entre os orientadores para as comunidades e orientadores para a nação – usam

da influência das suas posições intermediárias para, atuando em diferentes níveis da

sociedade, manipular interesses.

Assim, os sistemas legais, políticos e outros não são fechados, mas possuem

dimensões sociais e culturais que não podem ser compreendidas em termos puramente

institucionais. Para Wolf (2003, p. 75), “as instituição não passam, em última análise, de

padrões culturais para relação de grupos”, de forma que mudanças nas relações e nos

interesses devem ser consideradas caso se pretenda refletir sobre outras dimensões da

“realidade” institucional.

Dessa forma, os mediadores se articulam em uma malha de conexões, ou rede de

relações de grupos, que conecta os diferentes interesses entre comunidades e nação. Isto,

posto, percebe-se que os mesmos devem ser capazes de adotar padrões apropriados de

comportamento público, que os possibilitem manipular laços sociais em diferentes grupos.

Conforme Wolf (2003, p. 83):

Os indivíduos capazes de atuar em termos de expectativas tanto orientadas para a comunidade como para a nação tendem a ser selecionados para a mobilidade. Eles se tornam os “intermediários” econômicos e políticos das relações nação-comunidade, função que traz suas recompensas.

Dessas considerações, decorrem a reflexões sobre as formas em que os grupos sociais

se organizam e reorganizam, com conflitos e acomodações, em torno dos principais eixos

econômicos e políticos da sociedade, ou seja, a disputa por reconhecimento, espaço e poder.

No caso em estudo, isso nos leva a reflexão sobre as agências internacionais de

desenvolvimento e os diferentes atores envolvidos no processo de “invenção” desse termo, as

simbologias ativadas, as lógicas de articulação dos diferentes agentes envolvidos e os

interesses desses mediadores envolvidos na disputa pela legitimidade da discussão sobre a

questão socioambiental.

Page 34: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

33

1.2 A construção da ideologia e do discurso desenvolvimentista

O uso corrente da expressão desenvolvimento por políticos e pesquisadores das mais

diversas áreas de conhecimento terminou por transformá-la em uma categoria de uso comum,

naturalizada e fortemente enraizada na percepção espontânea dos mais diversos segmentos

sociais. Diante disso, e com vistas a melhor compreender os usos e desusos do termo, se faz

necessário realizar uma revisão conceitual da expressão e para tanto nos utilizaremos das

contribuições de antropólogos que trabalham com a crítica a essa noção e demonstram em

seus estudos as simplificações, contradições, equívocos e violências subjacentes a essa

categoria.

Inicialmente, mencionamos o estudo de Gustavo Esteva (2000b) que, com o propósito

de “desvelar el secreto del desarrollo y de verlo em toda su crudeza conceptual” (ESTEVA,

2000b, p. 67), realiza um exercício de elencar as diferentes acepções que a expressão assumiu

ao longo da história, bem como de relacionar essas acepções às práticas acriticamente

realizadas em prol dessa ideologia.

Para o autor, estudar o desenvolvimento é tratar de uma das ideologias mais arraigadas

e manipuladas por economistas, políticos e cientistas, contudo, é um exercício necessário,

sobretudo para que se possa tomar uma posição crítica frente a esta categoria e,

conseqüentemente, defender outras formas de sobrevivência que não as pautadas no modelo

ocidental.

Pontua Esteva (2000b) que o termo desenvolvimento, em seu sentido mais comum,

refere-se ao processo biológico por meio do qual um objeto ou organismo alcança a sua forma

natural, chegando à completude. Prossegue afirmando que embora os estudos de Wolf (1759)

e Darwin (1859) tenham propiciado posteriores correlações entre as esferas biológica e social,

inclusive fortalecendo a interpretação de que termos como evolução e desenvolvimento

podem ser utilizados como sinônimos – foram os estudos de Karl Marx que mais contribuíram

para que o termo desenvolvimento passasse a ser vislumbrado como uma categoria central da

análise das ciências sociais.

Para Karl Marx, ainda segundo Esteva (2000b), devido à estreita proximidade entre

fenômenos naturais e sociais, as leis da natureza poderiam também ser aplicadas às leis da

história, sendo estas as responsáveis por levar a espécie humana à evolução e ao

desenvolvimento.

Tal interpretação dos fatos históricos tomando por base fenômenos ou leis naturais

passa a ser cristalizada e, nesse processo, o conceito de desenvolvimento se impõe a todas as

Page 35: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

34

culturas e povos indistintamente. Também era comum a interpretação de que o

desenvolvimento nos moldes evolucionistas se impunha às sociedades humanas como um

imperativo, devendo por isso ser seguido por todos os grupos humanos.

Com o passar do tempo, tal expressão passa a ter um grau de abrangência maior,

designando processos mais amplos, de forma a se tornar difícil definir exatamente seu

significado, uma vez que a palavra passa a ser aplicada a todas as coisas e criaturas.

Agregam-se novas significações que visam complementar o sentido da palavra

desenvolvimento e, nesse processo, termina-se contribuindo para que ela perca seus

contornos, passando a assumir diferentes significados a depender do contexto.

Conforme destaca Esteva (2000b), palavras que ajudaram na sua formação – como

crescimento, evolução, maturação – se mesclam a outras – bem estar, humano, sustentável –

na tentativa de conferir ao desenvolvimento uma especificidade de conteúdo, contudo, tal

tentativa leva a uma cegueira de pensamento e ação.

A título de exemplo, podemos mencionar a definição “desenvolvimento sustentável”,

que ganha força a partir da década de 1970 e se apresenta como alternativa aos graves

problemas sociais e ambientais ocasionados pela exploração de recursos naturais.

A expressão “desenvolvimento sustentável” se tornou central nos discursos das

instituições internacionais de desenvolvimento, bem como nos movimentos sociais nacionais

relacionados com a questão socioambiental. Acerca do conteúdo e significado desta

expressão, Sant’Ana Júnior e Muniz (2009, p. 258) pontuam:

O conceito de desenvolvimento sustentável tenta estabelecer meio ambiente e desenvolvimento como binômio indissociável, em que questões sociais, econômicas, políticas, culturais, tecnológicas e ambientais encontram-se sobrepostas. Essa postura assume um significado político-diplomático na medida em que estabelece os princípios gerais que norteariam um compromisso político em escala mundial com vistas a propiciar o crescimento econômico sem a destruição dos recursos naturais.

Muitas críticas são feitas a tal definição, como por exemplo, a afirmação de que a

adjetivação do desenvolvimento visa tão somente utilizar uma nova palavra para mascarar

velhos modelos de crescimento econômico, além da extrema heterogeneidade de atores

sociais que utilizam e adotam esse conceito de forma corrente, ainda que os seus objetivos e

práticas sejam bastante contrários ao discurso propalado. Nesse sentido, conforme destaca

Benjamin Buclet (2011, p. 138):

Se as promessas do desenvolvimento sustentável são atraentes, existem muitas críticas, às vezes justificadas. Alguns autores vêem-na como a nova religião dos países ricos, outros como uma nova razão para continuar a exploração do terceiro mundo pelos países desenvolvidos, e outros ainda

Page 36: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

35

como uma utopia pouco clara e irrealista, que não dá conta da complexidade da economia do mercado. (...) O desenvolvimento sustentável se tornou uma idéia universalmente aceita, e não existe hoje uma só organização ou instituição que se declare contra ela: conceito proteiforme, cuja definição se adapta àquele que o estiver usando, o desenvolvimento sustentável perdeu o sentido.

A expressão apresenta-se ainda, sobretudo, sob a forma de um compromisso político

pautado na possibilidade de imbricação entre crescimento econômico e preservação do meio

ambiente (SANT’ANA JÚNIOR e MUNIZ, 2009, p.258).

Contudo, tal compromisso político, ante as constatações de que a sustentabilidade

buscada é, sobretudo, do próprio sistema capitalista, é de difícil consecução, pois visa

conciliar lógicas sobre os usos e representações dos recursos naturais que são antagônicas.

Isso acarreta no fato de que o chamado desenvolvimento, embora, associado a

processos favoráveis (como engrandecimento, avanço, progresso, etc...) não é vivenciado

desta forma pela maior parte da população mundial.

Assim, as definições usuais de desenvolvimento – quais sejam, as que designam o

processo histórico de transição para uma economia moderna, industrial e capitalista e as que

identificam o desenvolvimento com sustentabilidade, aumento da qualidade de vida,

erradicação da pobreza e consecução de melhores indicadores de bem estar material –

parecem cada vez mais insustentáveis, posto que por trás das proclamadas benesses do

desenvolvimento, ocultam-se processos contrários àqueles divulgados e desejados.

É nesse sentido que Andreu Viola (2000, p.11) destaca que a palavra

“desenvolvimento” se converteu em uma palavra fetiche, carregada de ideologias e prejuízos

e que funciona como um poderoso filtro intelectual da nossa percepção do mundo

contemporâneo.

Para o referido autor, a ocultação dos processos maléficos do desenvolvimento e os

prejuízos acarretados à percepção de que o discurso propalado não corresponde à prática

podem ser atribuídos a dois fenômenos correlatos: o economicismo e o eurocentrismo.

Acerca do economicismo, o autor destaca a centralidade da teoria econômica

neoclássica na configuração de imagens dominantes do desenvolvimento, entre elas, a

identificação do desenvolvimento com o crescimento econômico e com a difusão da

economia de mercado indistintamente.

Já com relação ao eurocentrismo, Andreu Viola ressalta que o mesmo é inerente ao

discurso do desenvolvimento, uma vez que o modelo de sociedade européia e ocidental é

adotado como parâmetro para definir o grau de atraso ou progresso dos diferentes povos.

Page 37: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

36

Para o autor, a ideologia do desenvolvimento, fundamentada nesses dois fenômenos,

pressupõe uma determinada concepção da história da humanidade e das relações entre homem

e a natureza e, ao assumir um modelo implícito de sociedade considerado como

universalmente válido e desejável, se pretende uma visão de mundo única e legítima.

Essa ideologia em torno da qual se construiu o discurso do desenvolvimento tem como

marco de generealização, conforme apontam alguns estudiosos (ESCOBAR, 1996; VIOLA,

2000; ESTEVA, 2000b), o final da Segunda Guerra Mundial, mais especificamente o

pronunciamento de posse do presidente norte-americano Harry Truman, em 1949.

Conforme pontua Esteva (2000b, p. 68), o presidente estadunidense consegue fazer

com que a palavra desenvolvimento passe a ocupar um lugar até então não alcançado na

história geopolítica, ao mesmo tempo em que atribui para os Estados Unidos da América a

missão de difundir os benefícios da ciência e da tecnologia por todas as partes do globo.

A partir dessa representação, os norte-americanos se autointitularam desenvolvidos, ao

mesmo tempo em que converteram os países mais pobres em subdesenvolvidos, devido sua

posição de subordinação ante as grandes potências e sua situação de miserabilidade. Assim,

grande parte da humanidade passa a ser retratada como massas de pessoas mal-nutridas,

incultas e doentes, habitando o hemisfério sul do globo terrestre.

Arturo Escobar (1996) afirma que o termo desenvolvimento – compreendido nos

moldes difundidos pelo discurso economicista estadunidense pós década de 1940 – deve ser

vislumbrado como um regime de representação, uma invenção, que acaba criando práticas e

realidades e converte-se em uma certeza no imaginário social.

Essa certeza, conforme pontua Escobar (1996), nada mais é do que uma forma

ocidental de criar e representar o mundo, capaz de dominar pensamentos e ações de grupos

sociais inteiros. Nesse processo de dominação, ocorre uma espécie de conversão dos agentes

sociais, além da institucionalização de uma série de estereótipos, capazes de submetê-los,

domesticá-los e reprimi-los.

Perfazendo brevemente a história social desse regime de representação, Escobar

afirma que o segundo pós-guerra marcou a eclosão do termo desenvolvimento no cenário

internacional e, juntamente com ele, termos como pobreza e terceiro mundo, também foram

descobertos – ou melhor, redefinidos – e utilizados para designar os integrantes e os países da

África, da Ásia e da América Latina.

Com relação a esse processo, escreve o autor:

En 1948, cuando el Banco Mundial definió como pobres aquellos países con ingreso per cápita inferior a 100 dólares, casi por decreto, dos tercios de la

Page 38: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

37

población mundial fueron transformados en sujetos pobres. Y si el problema era de ingreso insuficiente, la solución era, evidentemente, el crecimiento económico (ESCOBAR, 1998, p. 55).

Tal crescimento deveria ser posto em marcha pelos tecnólogos e cientistas dos países

europeus e, principalmente, dos Estados Unidos da América. Este país, após a ocorrência das

duas guerras mundiais, passou a assumir uma posição de proeminência militar e econômica, o

que contribuiu para que os estadunidenses passassem a se sentir legitimados e autorizados a

intervir nas situações dos países tidos como subdesenvolvidos.

A criação de institutos e agências internacionais também deve ser apontada como fator

de grande importância no contexto de interferências internacionais nos países pobres, pois

esses institutos reivindicavam para si o conhecimento e o poder para nomear, categorizar e

representar os demais grupos humanos de acordo com suas conveniências.

Dessa forma, o discurso desenvolvimentista elabora categorias nomeadoras de sujeitos

universalizados e pré-construídos, que devem ser transformados pela intervenção direta dos

chamados países desenvolvidos.

Conforme Escobar (1998), todo um regime de representação é constituído, de forma

que a ciência e a tecnologia, ambas voltadas para atender às expectativas economicistas,

passam a ser destinadas à garantia, implantação e à execução de mecanismos de controle e

dominação.

Tal processo, conforme assinalado se torna possível a partir da elaboração e aplicação

de um sistema de intervenções técnicas, cuja função é levar aos grupos humanos (concebidos

como populações destituídas de singularidade ou constituídas apenas por carências) bens e

serviços a serem aplicados também de forma universalizante, desconsiderando-se

especificidades próprias aos diferentes povos e grupos sociais.

Esse sistema de intervenções técnicas encontra embasamento e justificação intelectual

na ciência moderna, que se apresenta como um sistema universal e neutro, embora, em

verdade, seja um projeto de construção retórica da ciência ocidental, conforme assinala

Vandana Shiva (1998).

Para esta autora, o conhecimento científico sobre o qual se baseia o processo de

desenvolvimento é, em si, uma grande fonte de violência, pois “resultó ser un proyecto

patriarcal, que excluyó a las mujeres como expertas, y simultáneamente excluyó como ciencia

los modos ecológicos y holísticos de conocimiento que entienden y respetan los procesos e

interconexión de la naturaleza” (SHIVA, 1998, p. 46).

Page 39: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

38

Para Shiva (1998), a neutralidade com a qual a ciência moderna se reveste nada mais é

do que produto de uma construção histórica, como são todas as demais categorias construídas

socialmente, tal como o próprio desenvolvimento. Por meio dessa construção, se torna

possível a esse projeto científico moderno apresentar conceitos reducionistas como

verdadeiras representações da realidade, legitimando assim a centralização e a dominação de

grupos inteiros, em nome da ciência.

Cumpre ainda destacar que um dos elementos fundamentais para a construção do

discurso do desenvolvimento refere-se ao que Andreu Viola (2000, p. 20) nomeia de

“maquinaria de conhecimento e poder”. Tal maquinaria relaciona-se à despolitização dos

problemas socioeconômicos e culturais e a sua consequente transformação em problemas

técnicos, que são solucionados pelos profissionais dos países desenvolvidos.

Essa maquinaria, por sua vez, se apóia em uma linguagem tecnicista e burocrática

responsável pela produção de representações e etiquetas que identificam a população ou

segmentos da população com problemas que devem ser corrigidos.

Nesse “campo institucional de saber” (Escobar, 1996), os discursos são produzidos,

registrados e postos em circulação e, nesse processo, as instituições internacionais criadas no

segundo pós-guerra exercem um papel fundamental.

Conforme Escobar (1996), ao incorporarem o sentimento paternalista e

“salvacionista”, numa espécie de metáfora da infantilização dos países pobres que necessitam

da tutela e da orientação dos adultos para lhes guiar, tais instituições fomentam os valores

culturais modernos por meio da apresentação da ciência e tecnologia como instrumentos

benéficos e neutros para a consecução das intervenções.

Tais intervenções são pautadas na relação agente e cliente, construção social que se

estrutura mediante mecanismos burocráticos e textuais que antecedem à interação. Nesse

sentido, conforme assinala Escobar:

Los expertos en economía, demografía, educación, salud pública y nutrición elaboraban sus teorías, emitían sus juicios y observaciones y diseñaban sus programas desde estos espacios institucionales. Los problemas eran identificados progresivamente, creando numerosas categorías de “clientes”. El desarrollo avanzó creando “anormalidades” (como iletrados, subdesarrollados, malnutridos, pequeños agricultores o campesinos sin tierra) para tratarlas y reformarlas luego. Estos enfoques habrían podido tener efectos positivos como alivio de las restricciones materiales, pero ligados a la racionalidad desarrollistas se convirtieron, dentro de esta racionalidad, en instrumento de poder y control (1996, p. 90).

Page 40: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

39

Para Escobar (1996), a construção de categorias de clientes exerce uma influência

muito grande na construção das realidades e, consequentemente, na própria criação do mundo

em que vivemos.

O autor defende a tese de que as práticas rotineiras e textuais das instituições

contribuem para estruturar as condições nas quais as pessoas pensam e vivem e que tais

práticas são assentadas em esquemas e procedimentos implícitos, “que organizan la realidad

de una situación dada y la presentan como hechos, como la forma de ser de las cosas” (1996,

p. 207).

Assim, as formas textuais e documentais são um meio de representar e preservar uma

dada realidade, num fenômeno denominado por Escobar (1996) de “produção institucional da

realidade social”. Contudo, conforme o referido autor procura demonstrar, o discurso do

desenvolvimento se difunde através de um campo de práticas que tem relação direta com as

instituições concretas que organizam tantos os tipos de conhecimento como as formas de

poder, relacionando uns e outros na produção das formas sociais e da realidade pretensamente

“retratada”.

Esta produção institucional é apontada pelos profissionais das instituições e do

governo como um sistema de ação racional, no entanto tais produções, expressas por textos e

documentos oficiais, estão inevitavelmente desligadas do contexto histórico da realidade a

qual supostamente representam.

Tal fato nos leva a afirmar que nos discursos e nas práticas têm prevalecido as relações

de poder que garantem a reprodução material, cultural e ideológica das instituições. Percebe-

se ainda que nesses processos institucionais e governamentais “una cierta subjetividad es

privilegiada, al mismo tiempo que se margina la de aquellos que se suponer receptores del

progreso” (ESCOBAR, 1996, p. 206).

No processo de formação do discurso do desenvolvimento, o conhecimento e

competência necessários convergiam para os profissionais das instituições internacionais, que

detinham a autoridade moral, profissional e legal para classificar e definir estratégias.

Dessa forma, conforme aponta o próprio Escobar (1996), falar de desenvolvimento

como construção histórica requer uma análise dos mecanismos que estão estruturados por

formas de conhecimento e poder e que podem ser estudados em termos de seus processos de

institucionalização e profissionalização.

Nesse sentido, o recrutamento de profissionais das mais diferentes áreas de

conhecimento científico possibilita que os problemas vivenciados pelas populações dos países

ditos subdesenvolvidos sejam traduzidos em linguagem científica pelas agências e instituições

Page 41: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

40

internacionais de desenvolvimento, que possuem o instrumental moral, jurídico e científico

para solucioná-los.

La pobreza, lo analfabetismo e hasta el hambre se convirtieron en fuente de una lucrativa industria para los planificadores, los expertos y los empleados públicos. Ello no significaba negar que en ocasiones el trabajo de estas instituciones ha beneficiado a las gentes. Significa, en cambio, subrayar que el trabajo de las instituciones de desarrollo no ha sido un esfuerzo inocente hecho en nombre de los pobres. Significa que el desarrollo ha tenido éxito en la medida en que ha sido capaz de integrar, administrar y controlar países e poblaciones en formas cada vez más detalladas y exhaustivas (ESCOBAR, 1996, p. 99).

Nesse contexto se inserem as discussões acerca da construção da categoria “povos e

comunidades tradicionais”, bem como da reprodução, via documentos textuais dos

organismos internacionais, de valores, idéias e conceitos relacionados à ideologia fomentada

pelas instituições internacionais.

Antes de adentrarmos na análise de alguns desses documentos textuais, é necessário

fazer uma breve reflexão acerca das “estratégias internacionais” que visam à importação de

modelos políticos, institucionais e ideológicos de origem ocidental (DEZALAY & GARTH,

2000; BADIE & HERMET, 1993; GUILHOT, 2003), uma vez que tais estratégias são

responsáveis por assegurar a hegemonia de uma determinada visão política, muito embora, tal

processo ocorra de forma “imperceptível”, sobretudo para os importadores.

1.3 Instituições internacionais no processo de importação de modelos

Os autores Dezalay e Garth (2000), no intuito de evidenciar a importância da

circulação internacional de tecnologias institucionais e das definições do direito nos processos

de mudança de Estado, forjaram o conceito de “estratégia internacional” que muito nos ajuda

a pensar o caso em estudo.

Esses autores concebem-na como a “forma pela qual os indivíduos usam capital

internacional – títulos universitários, conhecimento técnico, contatos, recursos, prestígio e

legitimidade obtida no exterior – para construir suas carreiras em seus países natais”

(DEZALAY & GARTH, 2000, p. 164). Este capital internacional, traduzido, sobretudo, por

meio da produção de conhecimento técnico, tem como centro de produção e difusão os

Estados Unidos e suas instituições.

Page 42: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

41

Tais profissionais (técnicos políticos, politólogos, experts...) “formatados” e

“certificados” pelos centros universitários e institutos de pesquisa norteamericanos, “tendem a

falar as mesmas línguas, tanto técnica como linguisticamente, e a circular com relativa

facilidade entre diferentes países – e bancos multilaterais, organizações não-governamentais,

escritórios de advocacia e centros de pesquisa que assessoram a administração pública”

(DEZALAY & GARTH, 2000, p. 164).

Percebe-se, portanto, o processo de criação de um mercado internacional de

conhecimento engendrado pelas instituições dos Estados Unidos, no qual discursos e

ideologias construídos têm potencial para circular por todo o mundo, abrindo precedentes para

intervenções práticas nos mais diferentes países, sem que se atente para as especificidades dos

mesmos.

Nesse sentido, a denominação “dinâmicas órfãs”, elaboradas pelos autores Badie e

Hermet (1993, p. 181), ajuda a pensar sobre a situação dos Estados periféricos que importam

modelos (políticos, institucionais e ideológicos) que não são produtos da história social e

política interna, o que, consequentemente, leva-os a sujeitarem-se a reprodução de uma

estrutura de hierarquização e dominação.

Ainda de acordo com estes autores, há uma estreita relação entre a “homogeneização

dos âmbitos políticos” e o nascimento de um “sistema internacional”, que propicia a

circulação de modelos de governo e de um código comum para todos os atores do sistema

internacional, concorrendo para a universalização de alguns aspectos da prática estatal

hegemônica.

Como já destacado, esse processo de circulação de modelos e códigos tem como

consequência o estabelecimento de relações de dependência econômica, política e militar

entre os Estados produtores e Estados periféricos, ou importadores de modelos. Nesse sentido,

segundo Badie e Hermet (1993, p. 181):

Así, pues, es peligroso e costoso introducir en las sociedades periféricas un modelo estatal importado: donde quiera se perpetua y a la larga define los contornos de un ‘Estado hibrido’ que conviene delinear para observar que consagra una ruptura con la tradición lo bastante profunda para dar lugar a “dinámica huérfana”.

Nicolas Guilhot (2003), também refletindo sobre esse mercado internacional de

importação de modelos, destaca o papel central ocupado pelos “profissionais da democracia”

no que ele denomina de indústria extremamente promissora, qual seja, a indústria voltada para

o financiamento de reformas do Estado e beneficiamento de inúmeros agentes e instituições

Page 43: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

42

internacionais (consultores, ONG, centros de pesquisa universitária, associações profissionais

etc.).

Tal mercado – que conforme Guilhot se configura como “cruzadas democráticas” –

visa exportar um modelo de democracia para os países periféricos e, ao mesmo tempo,

assegurar o controle e a dominação desses “novos Estados”.

Isso se deve, dentre outros fatores, à ramificação desses “profissionais da democracia”,

que acumulam diferentes posições, se interpenetram em redes e mobilidades múltiplas e

perpetuam seu poder por diferentes países. Assim, esses profissionais, para além de parecerem

pertencer a instituições plurais e diferenciadas, frequentemente ocupam posições acumuladas

e contiguas ao espaço social norteamericano.

Existe, portanto, uma relativa homogeneidade entre esses experts especializados nos

problemas de transição para a democracia e na difusão do sistema de direitos humanos, que

atuam, concomitantemente, em instituições “ditas” privadas (embora financiadas com

dinheiro público) e em instituições governamentais.

Diante das observações realizadas por Guilhot (2003) – que se situam no âmbito da

análise do processo de criação e expansão do Fundo Nacional para a Democracia, criado pelo

governo norteamericano em 1983, no contexto da Guerra Fria –, percebe-se de que forma se

disfarça com uma fachada científica intervenções eminentemente políticas. Disso decorre que

há um equívoco em conceber fronteiras rigidamente estabelecidas entre os interesses estatais e

os interesses dos ativistas internacionais. Conforme o autor:

As demarcações institucionais, todas feitas entre o governamental e o não governamental, o estatal e o não estatal, são inoperantes se quisermos compreender o modo de construção desse campo, que se desenvolveu precisamente para além de tais divisões. Por outro lado, vale perguntar se esses discursos científicos não fazem parte dos dispositivos pelos quais, por assim dizer, os interessados constroem a imagem pública de seu desinteresse (GUILHOT, 2003, p. 211).

Essa situação de importação de sistemas internacionais e de intercâmbio entre esferas

aparentemente opostas pode ser bem visualizada em dois estudos realizados por Benjamim

Buclet, o primeiro acerca dos peritos não governamentais e sua atuação em pesquisas voltadas

para o estudo da biodiversidade amazônica (BUCLET, 2009) e o segundo sobre a descrição

das ONGs21 e suas atividades na Amazônia Ocidental, analisando o seu papel na definição de

políticas públicas (BUCLET, 2011).

21 Adotamos a definição de ONG exposta por Buclet (2011, p. 141), para quem trata-se de “uma associação de direito privado, sem fins lucrativos (o lucro deve ser reinvestido inteiramente dentro das estruturas), que atua para o benefício público e que se coloca, em nome da sociedade civil, como mediadora entre: 1) certas categorias

Page 44: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

43

No primeiro estudo, o autor questiona a independência das ONGs ambientalistas frente

aos seus respectivos financiadores internacionais e, tendo por pressuposto o fato de que essas

ONGs, por meio de suas perícias, condicionam a “voz oficial” do governo em matéria

ambiental (Ministério do Meio Ambiente), questiona também a possibilidade de se efetivar a

soberania nacional no contexto da internacionalização do movimento socioambiental.

Acerca da relação estabelecida entre os agentes representativos das ONGs

ambientalistas e agentes governamentais, Buclet (2009, p. 98) afirma:

De um lado, as ONGs são usadas por burocratas de ministérios de menor força política (como é o caso do MMA), que tem interesse em criar alianças para adquirir peso nas negociações governamentais internas. Por outro lado, o jogo do mercado (e com certeza, uma forma de desejo de poder) incentiva as ONGs em aceitar as aproximações, facilitadas pela proximidade dos percursos individuais em termos de educação, formação e trajeto profissional.

A partir das análises desenvolvidas por Buclet sobre o IPAM e o IMAZON, duas

ONGs bem posicionadas no contexto nacional e internacional, o autor demonstra que os perfis

profissionais dos membros dessas instituições revelam uma aproximação com os dos agentes

situados no âmbito governamental, ou seja, há similaridade de formação, o que pode ser

atestado por meio de publicações conjuntas, consultorias, etc.

Em ambos os casos, também se percebe uma estreita conexão com instituições de

ensino e pesquisa dos Estados Unidos, haja vista que, sobretudo no caso das ONGs, é possível

perceber lógicas de importação e exportação de perícia ambiental que tem nas universidades

norte americanas o seu centro de referência.

Cumpre ainda destacar que é na formação norteamericana que os agentes estão

expostos à produção e à aquisição de sentidos e valores e que essa formação os condiciona a

se submeterem – embora de forma não perceptível – a uma lógica de importação de trabalho,

ou seja, ao mercado do desenvolvimento.

Conforme ressalta Buclet (2009, p. 99), as ONGs existem porque respeitam as lógicas

estruturais do mercado do desenvolvimento, constituído de ofertas e demandas e, portanto,

devem justificar a sua existência por meio da extrema profissionalização dos seus membros e

da venda e compra de produtos (que assumem a forma de projetos, programas, discursos,

idéias, conceitos, técnicas...).

de população (geralmente desfavorecidas) e o poder público; 2) o meio ambiente (no sentido amplo) e a sociedade como um todo”.

Page 45: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

44

Essas lógicas estruturais do mercado, por seu turno, levam ao isoformismo normativo

– compreendido como a divulgação e aceitação dos mesmos conceitos, idéias e ferramentas

pelas ONGs, fundações, organizações comunitárias e agências bilaterais – e isoformismo

institucional – que se refere à uniformização das ONGs e à padronização do seu

funcionamento segundo a ortodoxia do desenvolvimento.

Esses isoformismos possibilitam que essas instituições utilizem conceitos, idéias e

ferramentas parecidas, ainda que não haja uma concordância sobre o seu significado.

Importante destacar, portanto, que “os financiamentos seguem orientações que dependem das

tendências do momento no ‘mercado internacional da solidariedade’, que são baseados sobre

conceitos, freqüentemente resumidos a uma palavra, ou expressões, geralmente mal definidas

e sempre polêmicas” (BUCLET, 2009, p. 106).

Acerca desse “mercado internacional da solidariedade”, Buclet (2011, p.139) destaca

que o processo de expansão do terceiro setor no país foi influenciado sobremaneira pelo

contexto internacional. Disso decorre que a definição das políticas públicas implementadas no

Brasil pós década de 1980 eram orientadas, sobretudo, pelas definições e postulações das

organizações multilaterais.

Nesse contexto, as ONGs exerceram – e ainda exercem – um importante papel nessa

“transfusão” de ideias entre os contextos internacional e nacional e isto ocorre devido ao fato

de que, de acordo com Buclet (2011, p.147), o campo de atuação das ONGs está estritamente

relacionado ao campo do desenvolvimento, dados os laços evidentes destas instituições com

as agências de cooperação internacional. Conforme destaca o autor:

Sem falar aqui dos financiadores, é relevante ressaltar que todas as ONGs pesquisadas tem relações diretas com o exterior: através de seus fundadores (vindos de outros países ou de outras regiões do Brasil), através das suas ligações com o mundo acadêmico internacional ou através das relações interpessoais dos seus líderes. Estas ligações internacionais são construídas em torno da adesão a uma certa concepção de sociedade (BUCLET, 2011, p. 147).

Tal vínculo com o campo internacional de desenvolvimento, portanto, possibilita a

adoção e disseminação no contexto nacional de valores universais e globais, uma vez que os

projetos de intervenção elaborados resultam de interpretações da realidade local feita pelos

agentes integrantes da ONGs, que os elaboram a partir dos referenciais que, como destacado

anteriormente, são externos, internacionais. Nesse sentido, segundo afirma Buclet (2011, p.

149):

O forâneo tende a ver a realidade a partir de seus conhecimentos e experiências, ou seja, interpreta o que vê segundo seus próprios valores,

Page 46: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

45

objetivos e preocupações. Os projetos são então, em larga medida, o resultado de uma leitura externa da realidade local.

Ressalte-se ainda que, para além desses valores, a própria lógica de estruturação

dessas instituições deve se submeter à lógica do mercado de desenvolvimento e essa

adequação pode ser constatada na mudança de perfil dessas instituições ao longo das últimas

décadas.

Percebe-se uma mudança da perspectiva militante para uma perspectiva mais técnica,

com exigência de competências e habilidades específicas, dadas as novas exigências por parte

dos financiadores internacionais (normas de avaliação, planejamento e de quantificação da

eficiência das ações) e a escassez de recursos financeiros, levando a uma maior competição

entre as ONGs na busca por financiamentos, tanto das agências de cooperação internacional,

quanto do poder público.

Nesse sentido, as reflexões de Henri Acserald (2010) acerca da mudança de projetos

dos movimentos ambientalistas processadas a partir da década de 1990, corroboram com as

análises realizadas no que se refere à profissionalização das ONGs ambientalistas.

De acordo com este autor, a noção de “movimento ambientalista” tem sido evocada no

Brasil para designar um espaço de circulação de discursos e práticas associados à “produção

ambiental”, configurando uma “nebulosa associativa” formada por um conjunto bastante

diversificado de organizações com diferentes graus de estruturação formal.

A expressão “nebulosa associativa” é utilizada por Acserald a partir das reflexões

desenvolvidas pelo autor André Micoud (2001, apud ACSERALD, 2010) sobre o

ambientalismo francês. Para Acserald, este termo é plenamente adequado ao caso brasileiro,

“tanto pelo caráter disseminado e multiforme do conjunto de instituições que a noção

compreende, como pela nebulosa intransparência que envolve crescentemente certos

procedimentos de ambientalização” (ACSERALD, 2010, p. 104).

A década de 1990 possibilita a percepção de uma importante mudança no

ambientalismo brasileiro, sobretudo no que concerne a sua institucionalização. A partir desse

período, surgem organizações com corpo técnico e administrativo profissionalizado e com

grande capacidade de captação de recursos financeiros.

Acserald (2010, p. 107) assinala ainda que tal profissionalização corresponde a um

processo de substituição de um “ecologismo contestatório” por uma atuação técnico-

científica, visando resultados práticos e aferíveis, o chamado “ecologismo de resultado”,

propósito comum a organismos multilaterais, governos e empresas poluidoras.

Page 47: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

46

Percebe-se ainda nessas instituições, além de uma aproximação com o mercado por

meio do fornecimento de “soluções discursivas, mediação e legitimação ao processo de

ambientalização das empresas” (ACSERALD, 2010, p. 105), uma tendência, já assinalada

anteriormente, de aproximação com o setor ambiental do governo, fornecendo informação,

perícias ou mediação de conflitos. Sobre esse processo, Acserald (2010, p. 106) destaca:

A tendência observada à cientificização das políticas ambientais teve por contrapartida uma tendência a cientificização dos movimentos, a tecnocracia oficial é confrontada por contraperícias, e, ao chamado “setor ambiental do governo”, passa a corresponder uma comunidade ambiental de associação de especialistas. Formam-se instituições de caráter para-administrativo que funcionam como nós de redes, ora estando no Estado, ora servindo como correia de transmissão para a execução de suas políticas, via prática pedagógica ou de consultoria. Muitas dessas organizações tendem a dar prioridade ao pragmatismo da ação eficaz do que aos dispositivos democráticos e de organização da sociedade.

No mesmo sentido, afirma Buclet que o ambiente de atuação das ONGs passa por esse

processo de profissionalização devido às modificações das leis do mercado, levando,

consequentemente, a um maior investimento no aspecto técnico dos projetos e no

fortalecimento de redes de relações entre profissionais das ONGs, setores do funcionalismo

público e pesquisadores vinculados a institutos de pesquisa e universidades.

Assim as ONGs, dado o contexto competitivo no qual se inserem, passaram a ser mais

requeridas na criação e gestão de projetos e também na busca de financiamentos para

acessarem recursos o que, por sua vez, acarretou na profissionalização das suas ações. De

modo geral, Buclet (2011, p. 146) destaca como características dessa profissionalização ditada

pelas leis do desenvolvimento as seguintes:

1) Investe-se mais na tecnicidades dos projetos, o que compreende sua elaboração, seu monitoramento e avaliação, sendo dada uma grande atenção aos indicadores de resultados e impactos; 2) A maioria das ONGs e dos seus profissionais especializaram-se numa área de conhecimento e intervenção; 3) Constituí-se um círculo de relações entre profissionais das ONGs, setores da função pública e, eventualmente, pesquisadores, que facilita o acesso a projetos, seu enquadramento e sua tramitação; 4) Muda o perfil dos quadros das ONGs. Aumenta a porcentagem de pessoas com formação superior, inclusive com pós-graduação. Encoraja-se o aperfeiçoamento profissional; 5) Procura-se melhorar os salários, tradicionalmente modestos, e implementar planos de cargos e salários; 6) Procura-se dar visibilidade ao seu trabalho, à eficácia e ao impacto das suas ações.

Todas essas modificações operadas nas estruturas das ONGs corroboram para o que

Buclet chama de “crise de identidade” por que passam essas instituições, uma vez que,

expostas a intensa profissionalização com vistas a justificar a sua posição e a sua própria

Page 48: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

47

existência no mercado, elas assumem várias responsabilidades, atinentes a diferentes campos

de atuação. Nesse sentido, afirma Buclet (2009, p.153):

Lugar de expressão da democracia e empresa competitiva, prestadoras de serviço e parceiras das instituições públicas, representantes das populações e assessoras dos grupos de base, partilhadas entre independência ideológica e militância política e/ou religiosa, as ONGs estão no cruzamento de várias dinâmicas contraditórias, reveladas pela dificuldade de ir além das experimentações realizadas nos projetos.

Exercendo as funções de experimentador na gestão dos problemas sociais, participante

da gestão das políticas públicas e de prestador de serviços ao Estado (BUCLET, 2009, p.

150), as ONGs acabam defendendo, muitas vezes, posições contraditórias, assumindo, ainda,

como terceiro setor, o papel de Estado.

Cumpre assinalar que este papel é desempenhado tendo por influências pautas

externas (internacionais) e com base na dependência de financiamentos transitórios, o que as

fazem sustentar posições de mediadoras e conciliadoras entre interesses por vez

contraditórios: da sociedade civil, do mercado empresarial, do Estado e das agências de

cooperação internacional, a depender de onde provém a maior parcela dos financiamentos.

Isso leva Buclet (2011, p.154) a afirmar que as “ONGs se situam numa posição institucional

tão imprecisa, quanto o conceito chave no qual se baseia a maioria das suas atividades: o

desenvolvimento sustentável”.

1.3.1 Instituições Internacionais e a expressão “povos e comunidades tradicionais”

Além do “desenvolvimento sustentável”, podemos mencionar o termo “povos e

comunidades tradicionais”, categoria que consta nos editais de licitação dos organismos

financiadores como “público alvo” de projetos, bem como constantemente presente em

inúmeros documentos, nacionais e internacionais, e, também, em programas e políticas

públicas nacionais, que padece dessa mesma imprecisão teórica, adequando-se, muitas vezes,

as pautas externas mais do que a demandas desses próprios grupos catalogados como tais.

De início, ressalte-se que a categoria “povos e comunidades tradicionais” surgiu em

um contexto das mobilizações realizadas por representantes de movimentos sociais em

articulação com instituições internacionais de pesquisa e desenvolvimento com vistas a

garantir a efetivação de direitos e a aplicação de políticas voltadas para grupos étnica e

culturalmente diferenciados.

Page 49: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

48

Internacionalmente, diversos são os instrumentos legais que fazem menção a esses

grupos22, dentre os quais se destacam a Convenção sobre a Proteção e Promoção da

Diversidade das Expressões Culturais, de 2005, e a Convenção nº 169, da Organização

Internacional do Trabalho, de 1989.

Acerca da Convenção 169 da OIT, ressalte-se que a OIT foi a primeira agência

internacional a reconhecer os direitos dos “povos” indígenas e tribais como sujeitos de direito,

tendo em vista que os instrumentos normativos anteriores vislumbravam esse grupos como

fadados a total assimilação da cultura das sociedades envolventes e, portanto, ao

desaparecimento. Segundo Shiraishi Neto (2007, p. 38):

A Convenção nº 169 da OIT foi adotada pela Organização Internacional do Trabalho em 1989. Entrou em vigor em 1991 após ter sido ratificada por dois Estados membros, revogando a Convenção nº 107, de caráter integracionista ou assimilacionista. A Convenção nº 107 ancorava-se em modelos explicativos que pressupunham a irreversibilidade do processo de “integração” ou de “assimilação” dos povos indígenas. Essa posição foi revista pela Convenção nº 169, que incluiu a noção de permanência da vida dos “povos indígenas e tribais”.

No Brasil, a referida Convenção de 1989, embora ratificada apenas em 2003,

influenciou o ordenamento jurídico interno no que concerne a legislação infraconstitucional

que trata dos grupos afetáveis pelo instrumento normativo. Nesse sentido, conforme afirma

Deborah Duprat (2007a, p. 20):

Não há como se recusar que nosso direito interno não está isolado no contexto global. Um rápido exercício comparativo permite visualizar como a Constituição brasileira reflete o desenvolvimento do direito internacional no reconhecimento e respeito às diferenças étnicas e culturais das sociedades nacionais.

No âmbito da legislação nacional, ainda que não utilize o conceito de “povos”, a

Constituição Brasileira23 reconheceu direitos coletivos específicos aos povos indígenas e às

comunidades quilombolas, em especial a seus territórios, também os assegurando aos demais

grupos que tenham formas próprias de expressão e de viver, criar e fazer. Da mesma forma, o

Decreto nº 6.040/2007, de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, visa dar reconhecimento

22 Conforme afirma Shiraishi Neto (2007, p. 42), os dispositivos jurídicos internacionais e nacionais vem utilizando diferentes termos e expressões para se referir a esses grupos, embora os mesmos sejam utilizados como sinônimos, tais como populações indígenas, populações locais, populações extrativistas, populações tradicionais, comunidades indígenas, comunidades locais, comunidades tradicionais, povos indígenas, povos tribais, povos autóctones e minorias. 23 A esse respeito, ver os arts. 215, 216 e 231 da Constituição Federal de 1988 e art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Page 50: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

49

político e jurídico aos diferentes grupos que possuam identidades étnicas e culturais

específicas. Juridicamente, este é o primeiro documento interno que contém uma definição

desses grupos, qual seja:

Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

No âmbito das ciências sociais, várias são as tentativas de definição desta

categoria, todas elas partindo da diferença destas populações com relação à sociedade

envolvente. Contudo, a tentativa de encontrar uma definição por meio da listagem das

características, traços comuns e pela identificação de algo que dê unidade aos mesmos, é algo

impraticável, dada as especificidades que cada grupo comporta.

No Brasil, percebe-se que a diversidade social de tais comunidades e sua

distribuição pelo país possibilita um mosaico bastante diferenciado de situações, o que leva

Alfredo Wagner B. de Almeida (2007, p. 17) a afirmar que:

A heterogeneidade aponta para diferenciações sociais, econômicas e religiosas entre esses povos, embora eles estejam em alguma medida unidos por critérios político-organizativos e por modalidades diferenciadas de uso comum dos recursos naturais. O consenso que envolve o termo “tradicional” está sendo, portanto, construído a partir desses dissensos sucessivos, que aparentemente não cessam de existir.

No entanto, apesar da terminologia “povos e comunidades tradicionais” ser

adotada pelos institutos internacionais, redes de ativismo ambiental e pelo poder público no

intuito de reconhecer e de encaminhar as pautas específicas desses diferentes grupos sociais

frente ao Estado, as suas demandas, conforme atestam os inúmeros conflitos sociais

envolvendo esses grupos, não tem sido contempladas. Nesse sentido, conforme destaca

Almeida (2007, p. 15):

Tais atos não significaram acatamento absoluto das reivindicações encaminhadas pelos movimentos sociais, não significando, portanto, uma resolução dos conflitos e tensões em torno daquelas formas específicas de apropriação e de uso comum dos recursos naturais.

Dessa forma, percebe-se que tal categoria – dentre tantas outras expressões que

passam a funcionar como formas adjetivadas, tanto no discurso das entidades multilaterais,

quanto no discurso dos órgãos governamentais – embora seja construída a partir de um

Page 51: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

50

aparente consenso, esconde, em verdade, uma teia de significados e de relações de poder,

inclusive no que pertine à nomeação e à definição de categorias.

Cumpre ressaltar que a categoria em questão é acionada pelos atores que são

identificados pelos órgãos governamentais e instituições internacionais em contextos

específicos, o que denota claramente que não é neutra, posto que está imbricada em uma série

de relações que envolve reconhecimento, poder e recursos financeiros e simbólicos. Nesse

sentido, conforme expõe Escobar, “las prácticas documentales non son inocuas en absoluto.

Están inmersas en relaciones sociales externas y se hallan profundamente implicadas en los

mecanismos de poder” (1996, p. 210).

Por vezes, essa invenção de categorias, conforme assevera Escobar, provoca efeitos

devastadores sobre os grupos catalogados, convertendo-os em estereótipos, normalizando ou

fragmentando experiências dos grupos sociais, envolvendo, conforme expõe o autor, “una

política del conocimiento que permitiera a los expertos clasificar problemas y formular

políticas, emitir juicios acerca de grupos sociales enteros y hasta predecir su futuro, en

síntesis, producir un régimen de verdades y normas al respecto” (ESCOBAR, 1996, p. 97).

Existem, portanto, mecanismos de poder subjacentes à atuação dessas instituições

internacionais, uma vez que a lógica de tais instituições, ainda quando preconizam o respeito

e a valorização da diferença, é, sobretudo, voltada para a internacionalização de categorias,

valores, ideias, conceitos.

Tal lógica fomenta uma certa uniformização e padronização desses grupos que passam

a ser submetidos às intervenções técnicas de profissionais formados nos grandes centros de

produção científica e política e que vislumbram nesse intervencionismo uma forma de

manutenção das redes de relação de dominação e dependência, conforme atestam os estudos

de pesquisadores que se dedicaram ao tema da importação de modelos institucionais para

países periféricos (BADIE & HERMET, 1993; BUCLET, 2009; DEZALAY & GARTH,

2000; GUILHOT, 2003).

Por outro lado, alguns autores assumem um posicionamento mais relativista perante a

intervenção técnica dessas instituições. Conforme destaca Buclet (2011, p.150), as ONGs

assumem um importante papel na definição e atendimento de demandas24 das populações.

24 Com relação à definição de demandas ou finalidade, Buclet (2011, p. 144) destaca que “Idealmente, o que determina as finalidades deveria ser a ‘utilidade social’, e essa utilidade social deveria ser determinada pelos ‘usuários’, ‘beneficiários’. Mas não é tão simples, porque, de um lado, a ‘demanda social’ nunca, ou muito raramente, é explícita. Trata-se de um princípio chave: a demanda não existe em si. As demandas aparentemente espontâneas, mesmo se elas revelam uma necessidade real, são na verdade construídas por um conjunto de fatores, como a capacidade da expressão dos indivíduos, as suas situações sociais, a confiança que eles tem nos interlocutores, etc”. Ainda no que concerne a esse aspecto, o autor pontua: “Isto constitui um problema?

Page 52: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

51

Diante dessas demandas identificadas, elas podem ou implantar de forma direta projetos

visando contemplá-las ou dar visibilidade aos problemas vivenciados e chamar atenção das

instituições governamentais responsáveis.

Assim, Buclet (2011) destaca que as ONGs podem operar mudanças concretas na vida

das populações (constantemente “esquecidas” pelo Poder Público) tanto por meio de ações

voltadas para ampliação e acesso a serviços de saúde, educação, geração de renda,

capacitação profissional etc., quanto por meio da influência que tais instituições exercem

sobre a implementação de políticas públicas.

Contudo, Buclet faz a ressalva de que o Estado tem se eximido das suas

responsabilidades, deixando a cargo das instituições não governamentais a identificação e o

atendimento dessas demandas sociais. Tais ações, quando implementadas pelas ONGs, podem

levar a transformação do “terceiro setor” num substituto das ações estatais, fazendo com que o

Estado protele a resolução de problemas estruturais do país, renunciando as suas

responsabilidades e atribuições (BUCLET, 2011, p. 153).

Da mesma forma, há que se destacar que, para além dos efeitos negativos advindos da

padronização fomentada pela importação de modelos institucionais, Bertrand Badie (1999) e

Sidney Tarrow (2009) apontam que as organizações e redes de ativismo internacionais

também são responsáveis pela produção de oportunidades de ação coletiva que abrangem

atores nacionais e internacionais. Ocorre, portanto, uma amplificação das demandas

específicas dos movimentos sociais domésticos.

Para Tarrow (2009) a cooperação através de fronteiras entre atores sociais nacionais

articulados em redes, possibilita que objetivos coletivos sejam assegurados, o que se dá tanto

por intermédio de leis, quanto por meio das instituições internacionais.

Dessa forma, é possível falar em difusão de ideias através de fronteiras e da circulação

de atores sociais, o que possibilita uma uniformização da linguagem e a descoberta de

problemas similares em diferentes partes do globo.

Prossegue afirmando Tarrow (2009) que essa ação coletiva se torna possível graças à

formação de movimentos sociais transnacionais (bases sociais formadas para o confronto

político e ultrapassam fronteiras nacionais), as trocas políticas transnacionais (compreendidas

como formas de interação temporárias de cooperação entre atores de diferentes

nacionalidades) e as redes transnacionais de ativismo, que “inclui aqueles atores relevantes

Provavelmente, não, porque, apesar do fato das populações ‘beneficiárias’ dos projetos muitas vezes não estarem formulando nenhuma solicitação específica a priori, os projetos são elaborados a partir do que se poderia chamar de demandas latentes que, uma vez satisfeitas, representam uma melhoria significativa das condições de vida de certos grupos” (BUCLET, 2011, p. 149).

Page 53: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

52

que trabalham internacionalmente por uma questão, que estão ligados por valores

compartilhados, por um discurso comum e por densas trocas de informação e serviço”

(TARROW, 2009, p. 236) e que são beneficiários do suporte financeiro de agências

internacionais e de governos do Hemisfério Norte.

Badie (1999) insere tais discussões no âmbito da perda da soberania dos Estados, ou,

dito de outra forma, no âmbito da interdependência crescente que une entre si atores para

além das fronteiras, retirando dos Estados nacionais o monopólio das relações internacionais.

Essa interdependência leva os Estados a sofrerem influências, constrangimentos,

pressões e controles não só externos, mas também internos, o que os leva a assumir

obrigações e responsabilidades para com o bem comum.

Ainda de acordo com Badie (1999), essas obrigações a que se vêem submetidos os

Estado nacionais implicam responsabilidades anunciadas pelos próprios Estados por meio de

princípios e declarações internacionais. Tais declarações ultrapassam a mera figura retórica,

pois, os seus enunciados transcendem legislações nacionais e possibilitam que, em caso de

descumprimento, sejam geradas mobilizações de atores sociais espalhados em vários países.

A discussão sobre “povos e comunidades tradicionais” pode ser abordada a partir

dessa perspectiva, tendo em vista que, transformados em atores internacionais e gozando da

proteção normativa “assegurada” em diversas Convenções, Declarações e Tratados, os grupos

identificados como “tradicionais” expõem, na arena internacional, as violências a que estão

submetidos internamente, bem como utilizam estratégias oriundas da formação de redes

transnacionais em prol de objetivos considerados por eles como comuns.

Cumpre destacar que para além da responsabilização judicial – que na esfera

internacional, ante a soberania dos Estados, é de mais difícil consecução – existem formas

diferentes de obrigar os Estados a cumprirem com o que foi pactuado, tais como embargos

econômicos e políticos. Assim, como destaca Badie (1999, p. 220):

Os constrangimentos exercidos sobre Estados e suas legislações nacionais são mais eficazes e mais seguros quando impostos de um modo mais sociopolítico do que estritamente jurídico. A história da OIT está aí para lembrar a profusão das normas em matéria social que a comunidade internacional pretende universalizar: esta obra, porém, é realizada por meio de convenções que os Estados têm a possibilidade de assumir ou ignorar, sem que nenhuma sanção seja exercida contra os que ficam de fora.

Page 54: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

53

Dessa forma é necessário levar em consideração as diferentes formas de fazer com que

os Estados se sintam obrigados a responder perante as “comunidades de responsabilidade” 25 –

formas estas que estão para além do direito, tendo em vista que:

Efeito da visibilidade no âmbito de um espaço econômico internacional onde ninguém se quer distinguir pelos seus desvios, o jogo informal das pressões e das orquestrações desempenha um papel mais determinante do que a ameaça de uma hipotética sanção jurídica (BADIE, 1999, p. 220).

Assim sendo, as ações desenvolvidas por essas “comunidades de responsabilidade” em

torno de um objetivo coletivo comum, ganham amplitude social e política a partir da

articulação a redes de ativismo, possibilitando dessa forma uma maior visibilidade em torno

das suas lutas específicas.

Tais lutas terminam por envolver diferentes atores em suas reivindicações, que,

embora sejam de diferentes formações acadêmicas, possuem acesso a novos tipos de recurso

para organizar a ação coletiva além das fronteiras, o que inclui viagens ao exterior,

comunicação com pessoas que pensam da mesma forma e habilidade em utilizar as

comunicações transnacionais e as instituições internacionais (Tarrow, 2009, p. 228). Nesse

contexto que se insere a discussão sobre o caso de juristas engajados em causas políticas,

conforme teremos oportunidade de discutir no terceiro capítulo deste trabalho.

25 Segundo Badie (1999, p. 177) “Locais, regionais ou mundiais, as comunidades de responsabilidade reúnem todos aqueles que se consideram afetados solidariamente pelas mesmas ações públicas. Modo determinante da organização contemporânea dos espaços mundiais, estas comunidades inventam assim uma nova gramática das relações internacionais: a ação internacional aprecia-se agora não só por referência a uma deliberação soberana, mas também em função da satisfação das necessidades de comunidades de responsabilidade mundial, regional ou local”.

Page 55: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

54

2. CONSTRUÇÃO SOCIOLÓGICA E JURÍDICA DA EXPRESSÃO “POVOS E

COMUNIDADES TRADICIONAIS”

Conforme assinalamos no capítulo anterior, a expressão “povos e comunidades

tradicionais” foi constituída a partir da articulação dos “novos” movimentos sociais com

agentes situados em diferentes espaços sociais e institucionais (ONGs, universidades,

instituições de pesquisa e desenvolvimento...) com vistas à garantia de direitos e de efetivação

de políticas públicas que contemplassem as especificidades desses grupos.

Neste capítulo, pretende-se aprofundar alguns aspectos relacionados a esse processo

de criação e apropriação da expressão, relacionando as discussões internacionais voltadas para

a legitimação do termo “povos e comunidades tradicionais” com as iniciativas direcionadas

para o fortalecimento de movimentos sociais locais, sobretudo no âmbito dos conflitos sociais

vivenciados na Amazônia a partir da década de 1980.

Nesse contexto, recuperamos as discussões realizadas por teóricos das Ciências

Sociais visando a problematização desta expressão. Cumpre ressaltar que muitos destes

teóricos realizaram um exercício de teorização sobre esses grupos no âmbito de disputas

intelectuais e políticas, com vistas a legitimar o termo em análise em diversos espaços (e não

só na academia).

Assim sendo, não se pretende realizar esta análise com o intuito de encontrar a

“essência” ou “substância”26 da expressão “povos e comunidades tradicionais”, mas sim

perceber como tais categorias estão envoltas em processo de construção social e de disputas.

Em tais disputas, voltadas para a ampliação e legitimação de direitos, pode-se afirmar

que há a formação de um domínio discursivo em torno da temática que, embora tenham como

eixo central as discussões travadas no âmbito das Ciências Sociais, resvalam para outros

campos de conhecimento, como o jurídico, por exemplo, possibilitando a formação de

categorias de classificação e identificação.

26 Com relação ao processo de substancialização de categorias, retomamos as reflexões desenvolvidas por Gaston Bachelard (1996), para quem a idéia substancialista nas pesquisas – por meio da busca pelo “interior” das substâncias, a idéia de virá-las do avesso, encontrar sua essência, adjetivar os fenômenos como forma de descrever a realidade – deve ser evitada pelo pesquisador, pois essas práticas terminam por comprometer a racionalização. O “espírito científico” não pode satisfazer-se apenas com ligar elementos descritivos de um fenômeno à sua respectiva substância e, no caso em estudo, a tentativa de encontrar uma definição de “povos e comunidades tradicionais” por meio da listagem de suas características, traços comuns, pela identificação da essência desses grupos e de algo que dê unidade aos mesmos, levaria a adjetivação e substancialização. Destaque-se ainda que tal expressão encontra-se em permanente construção de significado, possuindo, portanto, um caráter aberto e dinâmico. É uma expressão que, longe de ser estabelecida e consolidada, designa uma variedade de articulações, idéias e práticas sociais, conforme tentaremos demonstrar nesse capítulo.

Page 56: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

55

Ao analisar o processo de construção sociológica e jurídica da expressão “povos e

comunidades tradicionais”, pretendemos realizar um exercício de “tomar para objeto os

instrumentos de construção do objeto” (BOURDIEU, 1998), ou, em outras palavras, refletir

sobre os processos de produção intelectual e acadêmica realizados por cientistas sociais sobre

a expressão em análise. Tal reflexão, num segundo momento, nos auxilia a perceber de que

forma essa produção teórica influencia a tomadas de posições teóricas e práticas no espaço

jurídico, o que será abordado no terceiro capítulo.

Cumpre ressaltar que a realidade estudada – nunca clara e evidente – mantém uma

relação intrínseca com as representações feitas a seu respeito, de modo que tais representações

exercem um papel fundamental na produção daquilo por elas descrito ou designado.

É equivocado, portanto, tentar operar uma cisão entre representação e realidade,

devendo-se “incluir no real a representação do real ou, mais exatamente, a luta das

representações, no sentido de imagens mentais e também de manifestações sociais destinadas

a manipular as imagens mentais” (BOURDIEU, 1998, p.113).

Nesse sentido, é interessante recuperar as idéias de Becker (2009) acerca das

representações sociais, sobretudo no que concerne à parcialidade das representações das

realidades sociais. Como destaca o autor, todos os dados apresentados como representações

do social, embora não sejam precisos o suficiente devido a sua parcialidade, são orientados

para determinada finalidade, ou seja, com todas as suas omissões e imprecisões são “bons o

suficiente” para algo.

Assim, nas acepções de Becker (2009) e Bourdieu (1998), as representações realizadas

pelas Ciências Sociais (embora esta área reivindique para si o monopólio das representações

sobre a sociedade) detêm, apenas, um tipo de representação (e consequentemente parcial)

sobre a realidade. Deve, pois, o sociólogo resistir à ambição de legislar sobre a realidade

social, o que só é obtido por meio de uma crítica epistemológica radical, que o impeça de cair

na tentação do discurso de autoridade científica.

Conforme Bourdieu (1998), é necessário realizar um exercício constante de fazer a

crítica social da sociologia, sobretudo, do lugar que a sociologia acha que ocupa: a posição de

árbitro das disputas sociais, de representante dos grupos que estuda, de detentor das “visões

soberanas”, desenvolvidas por sociólogos que se arrogaram ao direito de determinar e

classificar as coisas, assumindo – ou usurpando – o papel de soberano e de autoridade

legítima para poder dizer quais são as fronteiras e os limites de determinada realidade.

Page 57: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

56

Bourdieu faz uma crítica a esse caráter “recenseador” que assume o sociólogo, de

detentor estatutário legítimo desse poder de constituição, capaz de converter em realidade as

divisões do mundo social por ele elaboradas.

Essa ambição de fundar na razão as divisões arbitrárias da ordem social pode e deve

ser combatida por meio de uma tomada de posição diferenciada da sociologia: ao invés de se

lançar ao fetiche das classificações, a sociologia deve tomar como objeto a luta pelo

monopólio das classificações, das representações legítimas do mundo social. Assim, no lugar

de engajar-se na luta pela construção e imposição da taxonomia legítima, deve passar a ser a

ciência dessa luta, buscado conhecer o funcionamento e as funções das instituições “oficiais”

envolvidas na classificação.

Conforme Bourdieu (1982, p.13):

Sem dúvida, o sociólogo não é mais o árbitro imparcial ou espectador divino, o único a dizer onde está a verdade – ou, para falar nos termos do senso comum, que tem razão – e isso leva a identificar a objetividade a uma distribuição ostensivamente equitativa de erros e das razões.

Dessa forma, o sociólogo deve tomar como objeto de análise aquilo que é colocado

como instrumento indiscutível do trabalho, deve questionar os conceitos, as representações e

as classificações “dadas” e legitimadas, para fugir da tentação de descrever a realidade social

“assim como ela é”.

É com base nestas premissas, tomando como pressuposto o fato de que a categoria em

análise envolve manipulações, disputas e interesses variados, que pretende-se recuperar o

processo histórico, jurídico e social de construção social do termo “povos e comunidades

tradicionais”.

2.1 Conflitos socioambientais na Amazônia e construção de categorias jurídicas

Conforme destaca Almeida (2008a), o final da década de 1980 foi marcado pelas

polêmicas em torno da relação entre fragilidade do “ecossistema amazônico” e as

“alternativas de desenvolvimento”, o que, por sua vez, levou a mudanças de perspectiva e

rupturas com os esquemas de pensamento comumente adotados nos discursos oficiais no

âmbito das políticas ambientais.

Tal ruptura, segundo o autor, pode ser compreendida a partir da ampliação da noção de

“ecossistema amazônico”, que passa a ser percebido como “um produto das relações sociais e

Page 58: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

57

antagonismos, ou seja, pensado como um campo de lutas em torno do patrimônio genético, do

uso de tecnologias e das formas de conhecimento e apropriação dos recursos naturais”

(ALMEIDA, 2008a, p. 128) e não mais reduzido ao seu quadro natural, no que concerne a

descrição de paisagens e inventários de espécies animais e vegetais e pensado

predominantemente por biólogos e geógrafos.

Ante esse quadro, abre-se possibilidade de se colocar em execução projetos de

reconhecimento do “saber nativo” (ALMEIDA, 2008a, p. 129), acumulado a partir de

experiências não só de manejo, processamento e transformação de recursos naturais, mas

também demais formas de relação com o meio pelos grupos locais da Amazônia. Com relação

a esses grupos, afirma Almeida (2008a, p. 142):

A questão ambiental não pode mais ser tratada como uma questão sem sujeito. Não se restringe ao contorno de um quadro natural isolado, pensado preponderamente por botânicos e biólogos. E quem seriam os sujeitos? Os sujeitos desta questão ambiental na Amazônia tem se constituído na última década e meia. Eles não têm existência individual ou atomizada. A construção desses sujeitos é coletiva e se vincula ao advento dos vários movimentos sociais que passaram a expressar as formas peculiares de usos e de manejo dos recursos naturais por povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, ou seja, pelas denominadas “populações tradicionais”.

Essas populações, consideradas os novos sujeitos da questão ambiental, organizaram-

se em movimentos sociais, nos quais os processos coletivos de autoidentificação e

territorialização assumem fundamental importância.

Esse processo histórico de constituição deve ser concebido como desdobramento das

discussões realizadas no âmbito dos movimentos, nacional e internacionalmente relacionados

com o processo de fortalecimento das demandas de grupos considerados tradicionais. Nesse

contexto, as discussões sobre a implantação de reservas extrativistas na Amazônia são

emblemáticas e ajudam a perceber o processo de construção e apropriação de categorias

sociológicas e jurídicas.

2.1.1 Reservas Extrativistas e Populações tradicionais: discussões em torno do processo de

elaboração da Lei 9.985/2000

Conforme destacamos no primeiro capítulo deste trabalho, as décadas de 1970 e 1980

possibilitaram a consolidação de novas categorias fundiárias, que surgiram a partir da

articulação e das discussões travadas entre movimentos sociais e diferentes organizações não-

governamentais.

Page 59: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

58

Ressalte-se que o fim da ditadura militar, em 1985, e a instalação de governos civis

possibilitaram que os “novos” direitos e questões socioambientais passassem a ser

problematizados, culminando com a promulgação da Constituição da República Federativa do

Brasil em 1988.

A partir de 1988, vários grupos sociais formadores da sociedade brasileira – dentre os

quais se incluem os chamados “povos e comunidades tradicionais” – passaram a receber

reconhecimento especial da Constituição Federal, conforme dispõe os artigos 215 e 21627, que

tratam sobre o direito a diversidade cultural e o dever do poder público de proteger as

manifestações dos povos e grupos que participaram do processo civilizatório brasileiro.

Além dessas referências ao patrimônio cultural, o texto constitucional incorpora

distintas modalidades territoriais na sua proteção, como o caso das terras indígenas (art. 231)

e dos remanescentes das comunidades de quilombo (art. 68 dos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias).

Nesse processo de redemocratização e de discussão sobre a ampliação de direitos,

surgem as discussões sobre o processo de consagração de categorias identitárias (tais como

povos da floresta, populações tradicionais, seringueiros) bem como sobre a invenção28 das

reservas extrativistas. De acordo com Antonaz (2009, p. 175):

A invenção da reserva extrativista é um produto conjunto da ruptura com um modo de vida, da atuação de um contexto particular no Acre dos anos 1970, da atuação singular de Chico Mendes e dos efeitos de sua morte mas, mais do que isso, é o resultado de um processo de reinvenção e de criação de identificações e de um trabalho a muitas mãos, que vai do campo, às cidades, expandindo-se por organizações do mundo todo.

Para Antonaz (2009), as reservas extrativistas, diferentemente das demais unidades de

conservação, não resultaram de uma elaboração feita pelos experts em questão ambiental, mas

sim de um processo de discussão realizada pelos próprios “candidatos” a ocupar ou preencher

27 A Constituição Federal dispõe em seu art. 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”, cabendo ao art. 216 dispor sobre patrimônio cultural nos seguintes termos: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. 28 Por “invenção” tomamos de empréstimo a definição utilizada por Hobsbawn (1997, p. 09) para referir-se aos processos de tradições inventadas, no sentido de que são “conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza real ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”. Refere-se, portanto, ao processo de formalização de uma construção que, no caso, tem em vista validar, pela repetição e difusão, uma classificação diferente da dominante.

Page 60: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

59

as categorias de identificação que aproxima diferentes grupos sociais em prol da legitimação

do direito de uso dos recursos naturais, tais como as categorias “povos da floresta” ou

“populações tradicionais”29.

O jurista José Heder Benatti (2009, p. 547) destaca que as reservas extrativistas devem

ser entendidas como parte da luta pela reforma agrária na região amazônica, na qual novos

critérios de apossamento da terra são propostos, inclusive com o questionamento do modelo

de reforma agrária pautado pelos assentamentos em lotes agrícolas padronizados e sem levar

em consideração as especificidades de apossamento das populações rurais da Amazônia.

Nesse sentido, de acordo com Benatti (2009), há uma marginalização do sistema de

“uso comum” na estrutura agrária brasileira, o que pode ser evidenciado pela ausência de um

conceito juridicamente consolidado da expressão30. Segundo destaca:

A dificuldade em definir áreas de uso comum, também conhecidas como terras comuns, está no fato de que o controle dos recursos básicos não é exercido livre e individualmente por uma família ou grupo doméstico de camponeses, e as normas que regulam essa relação social vão além das normas jurídicas codificadas pelo Estado (BENATTI, 2009, p. 546).

Dessa forma, as reservas extrativistas, apoiando-se nessa noção de terras de “uso

comum”, surgem como uma figura jurídica que visa aliar conservação ambiental à exploração

econômica, sendo destinada às populações extrativistas ou, nos termos da lei que institui essa

modalidade de unidades de conservação, às populações tradicionais. Segundo Benatti (2009,

p. 250), “ela distingue-se da concepção tradicional de unidade de conservação de espécies

vegetais e animais porque prevê a exploração auto-sustentável e a conservação dos recursos

naturais renováveis pelas populações extrativistas, ou seja, garante a presença humana”.

Com relação à presença de populações humanas em espaços territoriais especialmente

protegidos por lei, cumpre resgatar, ainda que sumariamente, o processo de discussão da Lei

9.985, de 18 de julho de 200031. Cumpre ainda destacar que, embora o ápice dessas discussões

29 Conforme destaca Antonaz (2009, p. 159), “trata-se de uma categoria inventada no interior das organizações de seringueiros. Os seringueiros, por sua vez, constituem mais uma classificação socialmente construída”. 30 Para Almeida (2008b, p. 28) a noção de “uso comum” designa situações sociais nas quais um conjunto de regras, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, são acatadas de maneira consensual entre os diversos grupos familiares que compõe uma unidade familiar. Assim, esses recursos básicos não são apropriados de forma livre e individual por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores. Tais práticas de ajuda mútua incidem sobre os recursos naturais renováveis e revelam um conhecimento aprofundado e peculiar dos ecossistemas de referência. 31 A Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, foi criada com vistas a regulamentar o disposto no art. 225, §1º, inc. III da Constituição Federal de 1988, que estabelece ser de incumbência do Poder Público “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção”.

Page 61: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

60

tenha se dado no momento de elaboração e promulgação desta lei, ainda hoje é possível

observar inúmeras polêmicas em torno da legitimidade desses grupos no interior de unidades

de conservação.

A análise do processo histórico de tramitação da Lei nº 9.985/2000, sobretudo ao

longo da década de 1990, possibilita a percepção do embate travado entre os defensores de

uma visão biocêntrica do mundo, que vislumbravam na ação humana, necessariamente, uma

ameaça à conservação dos recursos naturais e ao equilíbrio ambiental e, por outro lado, os

que, partindo de uma concepção sistêmica de mundo, procuram o equilíbrio e a harmonia

entre as formas de interação do homem com a natureza, concebendo na ação de determinadas

populações um instrumento a mais no projeto de conservação da natureza.

Conforme pontua Lima (2002, p. 39), o SNUC pode ser interpretado como sendo um

sistema legal que abriga duas visões contrárias da conservação –

conservacionistas/preservacionistas e socioambientalistas – baseadas em posicionamentos

diferentes sobre a relação entre sociedade e a natureza, uma vez que “a redação do SNUC

refletiu claramente essa disputa entre os proponentes de um e de outro modelo de

conservação”.

Por seu turno, as autoras Delduque e Pacheco (2004, p. 13) apontam que as polêmicas

em torno do modelo de conservação a ser adotado no Brasil refletiam o momento político da

época, permeado de conflitos ideológicos e por disputas de poder com vistas a legitimar

instituições e categorias com respeito às unidades de conservação. Conforme afirmam, a partir

de 1988, quando o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) encomendou à

Fundação Pró-natureza (FUNATURA) o primeiro anteprojeto do SNUC, intensificam-se

esses conflitos ideológicos.

A proposta a ser elaborada deveria pautar-se no objetivo de unificar a legislação

acerca dos variados tipos de unidades de conservação até então existentes no país, uma vez

que estava em curso o processo de fusão dos órgãos destinados a gerir os recursos naturais em

âmbito nacional e regional, aumentando o clima de tensão provocado pela instabilidade

institucional e gerando disputas por espaço e poder. Além dessas disputas institucionais, que

aprofundaram os conflitos que cercaram o processo legislativo do SNUC, ainda havia a

disputa pela definição de categorias a serem adotadas no texto legal (DELDUQUE;

PACHECO, 2004, p. 16).

Conforme destaca Juliana Santilli (2007), o primeiro projeto da lei do SNUC

encaminhado ao Congresso pelo então presidente Fernando Collor de Mello, em maio de

Page 62: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

61

1992, baseava-se na idéia de que a presença humana representa uma ameaça à conservação da

diversidade biológica.

Adotava, portanto, uma orientação eminentemente conservacionista/preservacionista,

inspirada em um modelo de unidade de conservação preocupado unicamente com o valor de

espécies e ecossistemas e com a perda da biodiversidade em si, priorizando as unidades de

proteção integral – em que não se admite a presença de população humana – em detrimento

das unidades de uso sustentável – que previam a presença de populações humanas.

Distribuído ao deputado Fábio Feldmann, relator da Comissão de Defesa do

Consumidor, Meio Ambiente e Minorias do Congresso Nacional, ele apresentou, em 1994, a

sua primeira proposta de substitutivo, com diversas alterações no texto original. Ao justificar

as modificações introduzidas, o relatório apresentado pelo deputado Fábio Feldmann bem

sintetiza as controvérsias que dividiram conservacionista/preservacionistas e

socioambientalistas durante a tramitação da lei, conforme transcrito:

Na perspectiva tradicional, criar uma unidade de conservação significa, em essência, cercar uma determinada área, remover ou – alguns diriam – expulsar a população eventualmente residente e, em seguida, controlar ou impedir, de forma estrita, o acesso e a utilização da unidade criada. A preocupação básica, quase exclusiva, é com a preservação dos ecossistemas (...) A visão conservacionista, a rigor, é incapaz de enxergar uma unidade de conservação como um fator de desenvolvimento local e regional, de situar a criação e a gestão dessas áreas dentro de um processo mais amplo de promoção social e econômica das comunidades envolvidas. Consequentemente, as populações locais são encaradas com desconfiança, como se fossem uma ameaça permanente à integridade e aos objetivos da unidade, o que, nessas circunstâncias, isto é, nesta situação de isolamento e confronto, acaba se tornando verdade. A sociedade local, alijada do processo, sem possibilidades de participação e decisão – o que lhe permitiria conhecer e compreender melhor o significado e a importância de uma unidade de conservação, percebe a intervenção do Poder Público como sendo um ato violento, autoritário, injusto e ilegítimo, e assume uma atitude de resistência, discreta algumas vezes, ostensiva, outras (FELDMANN apud SANTILLI, 2007, p. 116).

Com o afastamento do deputado Fábio Feldmann do Congresso para assumir a

Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, em 1995, a relatoria do projeto de lei

que instituiu SNUC foi distribuída ao deputado Fernando Gabeira, que incluiu modificações

nas propostas e acrescentou novas modalidades de unidades de conservação, todas de uso

sustentável. O deputado Fernando Gabeira, em seu parecer, justifica as alterações introduzidas

em seu substitutivo:

A principal crítica à concepção tradicional das unidades de conservação é a de que essas áreas são criadas e geridas sem consulta à sociedade,

Page 63: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

62

especialmente às comunidades mais diretamente atingidas, vale dizer, aqueles que vivem dentro ou no entorno das unidades. Os parques e reservas permanecem assim isolados, sem se integrarem à dinâmica socioeconômica local e regional (...) Hoje se reconhece que a expulsão das populações tradicionais é negativa não apenas sob o ponto de vista social e humano, mas tem conseqüências danosas também no que se refere à conservação da natureza. Essas comunidades são, em grande medida, responsáveis pela manutenção da diversidade biológica e pela proteção das áreas naturais. Ao longo de gerações desenvolveram sistemas ecologicamente adaptados e não agressivos de manejo do ambiente. Sua exclusão, aliada as dificuldades de fiscalização dos órgãos públicos, muitas vezes expõe as unidades de conservação à exploração florestal, agropecuária e imobiliária predatórias. Com isso perde-se também o conhecimento sobre o manejo sustentável do ambiente natural acumulado por essas populações (GABEIRA apud SANTILLI, 2007, p. 121).

Diante desses debates e polêmicas em torno da presença ou não de grupos humanos

nas unidades de conservação e os embates entre socioambientalistas e conservacionistas /

preservacionista, o conceito de “populações tradicionais”, que deveria integrar uma das

dezenove definições constantes no art. 2º da Lei 9.985/2000, foi eliminado do referido

instrumento legal.

Ante a dificuldade de encontrar uma definição para esses grupos, tanto por parte dos

intelectuais quanto por parte de parlamentares e dos próprios representantes dos grupos

envolvidos nos debates de construção da Lei 9.985/2000, a lei foi sancionada, mas foi

negociado o veto32 junto ao então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, à

definição de populações tradicionais.

Tal negociação se deu entre representantes de movimentos sociais, sobretudo o

Conselho Nacional dos Seringueiros, e o Senado Federal, vez que a então senadora Marina

Silva foi acionada para que, no processo de votação do SNUC, a lei não fosse alterada, mas

fosse vetada a definição de “populações tradicionais”.

O dispositivo vetado, bem como as razões do veto, são abaixo transcritos:

Art. 2º. XV “população tradicional: grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável”.

32 Com relação ao veto presidencial, cumpre esclarecer que os projetos de leis aprovados pelo Congresso Nacional, independentemente da iniciativa, serão submetidos ao Presidente da República, para sanção ou veto, total ou parcial, no prazo de quinze dias. Assim, se o Presidente da República discordar do que está sendo debatido, poderá vetar o projeto totalmente (quando o abarcar integralmente) ou parcialmente (se atinge apenas partes do projeto). Tal veto deve ser expresso e fundamentado e não apresenta caráter absoluto, ou seja, existe a possibilidade de o Congresso Nacional rejeitar o veto, mantendo o projeto que aprovou (MENDES, 2011, p.906).

Page 64: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

63

Razões do veto: "O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil. De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser definidos como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema não se presta para delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o número de gerações não deve ser considerado para definir se a população é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a noção de tempo de permanência em determinado local, caso contrário, o conceito de populações tradicionais se ampliaria de tal forma que alcançaria, praticamente, toda a população rural de baixa renda, impossibilitando a proteção especial que se pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais. Sugerimos, por essa razão, o veto ao art. 2º, inciso XV, por contrariar o interesse público" (Lei nº 9.985/2000, disponível em <http://www.planalto.gov.br/>).

Conforme afirma Renata Sant’Anna (2003), havia vários aspectos levantados no que

se refere à utilização do termo, que iam desde a preocupação para que o mesmo não ensejasse

pré-noções e desse margem a questionamentos futuros quanto a “tradicionalidade” dos grupos

aos quais seria dado o direito de permanecer nas unidades de conservação, até a desconfiança

no que se refere à relação desses grupos com o meio natural, o que se traduzia na preocupação

de não se concederem benefícios ou privilégios a quem não merecesse.

Tais preocupações demandavam um trabalho de objetivação de uma categoria que

estava em processo de construção e se apresentava multifacetada e dinâmica, haja vista que, a

depender do contexto sociocultural, tais populações poderiam vir a desenvolver um

relacionamento diferenciado com o entorno.

Assim o veto presidencial se deu diante da dificuldade em se alcançar uma

conceituação capaz de, por um lado, não ser excludente e injusta e por outro, não ser

demasiadamente abrangente. Nesse sentido, conforme Renata de Sant’Anna (2003, p. 123):

Para muitos que se envolveram na elaboração do SNUC, o veto representou a melhor solução possível naquele momento, pois não restringia ou generalizava, mas abria espaços para que cada grupo social interessado em participar do sistema de unidades de conservação fosse avaliado segundo seu caso específico.

Contudo, ressalte-se que, embora a definição legal tenha sido rejeitada, o termo

aparece em outros dispositivos da Lei 9.985/2000 que tratam da relação entre essas

populações e as unidades de conservação que admitem a presença humana (áreas de proteção

ambiental, floresta nacional, reserva extrativista e reserva de desenvolvimento sustentável)33.

33 Alguns dispositivos da Lei 9.985/2000 que fazem referência expressa ao termo “populações tradicionais” são abaixo transcritos: art. 17, § 2º. “Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo

Page 65: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

64

No ano de 2003, o Estado brasileiro ratificou a Convenção 169 da OIT, que trata sobre

povos indígenas e tribais, o que reforça o processo de visibilidade desses grupos, em curso

desde a década de 1980. Conforme destaca Almeida (2008b, p. 27)

A expressão “comunidades”, em sintonia com a idéia de povos “tradicionais”, deslocou o termo “populações”, reproduzindo uma discussão que ocorreu no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1988-89 e que encontrou eco na Amazônia através da mobilização dos chamados “povos da floresta”. O “tradicional” como operativo foi aparentemente deslocado do discurso oficial, afastando-se do passado e tornando-se cada vez mais próximo das demandas do presente. Em verdade, o termo “populações”, denotando certo agastamento, foi substituído por “comunidades”, que aparece revestido de uma conotação política inspiradas nas ações partidárias e de entidades confessionais, referidas à noção de “base”, e, de uma dinâmica de mobilização, aproximando-se por este viés da categoria “povos”.

Nesse sentido, afirma Litlle (2002, p.23) que a substituição do termo “populações” por

“povos” coloca esse conceito nos debates sobre o direito dos povos, transformando-se em

instrumento estratégico nas lutas por justiça social e pelo reconhecimento da legitimidade de

seus regimes de propriedade comum.

Atualmente, influenciada por essa discussão internacional, bem como pela produção

acadêmica, pode-se falar na elaboração de uma conceituação jurídica desses grupos, que se

encontra no Decreto nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que dispõe sobre a Política

Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT.

O art. 3º do Decreto define e esclarece os conceitos normativos chaves para a implementação

desta política, quais sejam, povos e comunidades tradicionais, territórios tradicionais e

desenvolvimento sustentável, abaixo transcritos:

I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem

da unidade”; art. 18. “A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade”; art. 19. “A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica”.

Page 66: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

65

os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações; e III - Desenvolvimento Sustentável: o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras.

Comparando a atual definição com o vetado inciso XV, do artigo 2º da Lei

9.985/2000, percebe-se que apesar da expressão “culturalmente diferenciados” ter sido

mantida, ocorreram muitas modificações na forma de conceber tais grupos.

Assim, além da modificação do termo “populações” por “povos e comunidades”,

conforme já apontado, o critério temporal – expresso na exigência de permanência dos grupos

humanos em determinado ecossistema por no mínimo três gerações – foi abolido da definição

constante no Decreto nº 6.040/2007.

Também adotaram-se critérios menos biologizantes para se referir a esses grupos, uma

vez que a expressão “vivendo (...) em um determinado ecossistema” foi substituída pela

expressão “que ocupam e usam seus territórios e recursos naturais como condição para a sua

reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica”, indicando uma mudança de

perspectiva na forma de conceber o relacionamento desses grupos com o meio no qual vivem.

Por fim, foi incluído ainda o critério de autodefinição ou autoidentificação (“grupos

que se reconhecem como tais”) e não apenas a atribuição externa, levando-se em conta que tal

critério deve implicar, além dos aspectos históricos, os aspectos culturais, políticos e

econômicos.

Ressalte-se, contudo, conforme pontua Ronaldo Lobão (2006), que o processo através

do qual o acesso aos direitos desses grupos, bem como a recursos públicos e programas

governamentais, devem passar pela categorização e recenseamento Estado e seus agentes.

Assim, mesmo o processo de autoidentificação desses grupos deve, necessariamente, passar

pelas malhas do Estado, de modo que os diferentes agentes e órgãos que o compõe – a

exemplo das Secretarias de Meio Ambiente, Universidades, ONGs – disputam entre si

“reconhecimento e a definição de quais grupos são elegíveis para efeito de aplicação dos

dispositivos legais” (LOBÃO, 2006, p. 155).

Nesse sentido, cumpre ainda destacar, com relação à apropriação pelos aparelhos de

estado, que a elaboração e divulgação de políticas públicas e a criação de órgãos que

incorporam tal categoria nas suas definições institucionais propiciam, ao mesmo tempo, a

invenção e a oficialização dessas categorias.

Page 67: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

66

Conforme destaca Lobão (2006) é possível verificar esse processo de

institucionalização de categorias nas modificações processadas no órgão do CNPT – que até

1995 CNPT significava “Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações

Tradicionais”; de 1995 a 2004 “Centro Nacional para o Desenvolvimento Sustentado das

Populações Tradicionais” e a partir de 2004 “Centro Nacional de Populações Tradicionais e

Desenvolvimento Sustentável”34. Sobre esse processo, ressalta Lobão (2006, p.45):

No decreto que regulamentou as Reservas Extrativistas decreto 98.987, de 30 de janeiro de 1990, o grupo local que poderia explorar os recursos naturais de uma Resex ainda era denominado população extrativista (BRASIL, 1990, art. 1º). Em fevereiro de 1992, foi criado o Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais – CNPT. O nome do órgão que passou a ser o responsável pela criação, consolidação e desenvolvimento da Resex, no âmbito do IBAMA, consagrou em sua criação dois conceito novos no processo: o de “desenvolvimento sustentado” e de “populações tradicionais” (LOBÃO, 2006, p. 45).

Assim, percebe-se que esses conceitos e categorias ao serem oficializados e

consolidados em políticas governamentais terminam por exercer um importante papel na

produção de novos significados, consagrando uma mudança radical ao oficializar essas

categorias no “mundo das regras, das leis e regulamentos” (LOBÃO, 2006, p.44).

Entretanto, ainda que tais expressões, como “povos e comunidades tradicionais”,

sejam incorporadas em diversos instrumentos legislativos bem como apropriada e/ou

construída pelos aparelhos de Estado (tanto por meio de políticas públicas quanto através da

criação de órgãos que incorporam tais expressões em suas definições institucionais), isso não

gera, de forma automática, o acatamento das reivindicações encaminhadas pelos movimentos

sociais representativos desses grupos, tampouco consensos no que se refere à inclusão desses

grupos sociais nessas categorias externas.

34 Atualmente a sigla CNPT designa o “Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Socio-biodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais”, centro “com expertise técnico-científica” criado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por meio da portaria nº 78 de 03 de setembro de 2009. Conforme art. 1º, inc. I, alínea “d” da referida portaria, constituí-se como objetivo do CNPT – que possui sede no município de São Luis, estado do Maranhão – “promover pesquisa científica em manejo e conservação de ambientes e territórios utilizados por povos e comunidades tradicionais, seus conhecimentos, modos de organização social, e formas de gestão dos recursos naturais, em apoio ao manejo das Unidades de Conservação federais”.

Page 68: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

67

2.2 Análise da construção sociológica da expressão “povos e comunidades tradicionais”

Antonio Carlos Diegues (1996), Manoela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida

(2001), Paul Litlle (2002) e Alfredo W. B. de Almeida (2008a, 2008b, 2009), são alguns dos

cientistas sociais que, nos seus trabalhos e publicações, destacam a heterogeneidade de grupos

sociais considerados “povos e comunidades tradicionais”, bem como a diferenciação interna

existente dentro de um mesmo povo ou comunidade. De igual forma, abordam em seus

trabalhos elementos sobre os quais, para além da extrema multiplicidade de práticas

socioculturais e econômicas existentes, seja possível falar em pontos de unificação e de

aproximação entre esses grupos tão diversos.

No intuito de melhor compreender esses pontos de convergência existentes entre as

concepções defendidas nos trabalhos desses autores, iremos retomar, de forma breve, as suas

principais ideias no que concerne a expressão “povos e comunidades tradicionais”.

Antonio Carlos Diegues (1996, p.125) pontua que a preocupação com as chamadas

“populações tradicionais” no Brasil é relativamente recente e ao se referir a esses grupos,

utiliza a denominação “culturas tradicionais”.

Por “culturas tradicionais” entende os padrões de comportamento transmitidos

socialmente, ou seja, “modelos mentais usados para perceber, relatar e interpretar o mundo,

símbolos e significados socialmente compartilhados, além de seus produtos materiais,

próprios do modo de produção mercantil” (DIEGUES, 1996, p. 87).

Além dessa definição, Diegues (1996, p. 88) enumera outras as características que são

peculiares às culturas tradicionais, dentre as quais:

a) dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis a partir dos quais se constrói um modo de vida; b) conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração em geração por via oral; c) noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente; d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns membros individuais possam ter-se deslocado para os centros urbanos e voltados para a terra de seus antepassados; e) importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de mercadoria possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica uma relação com o mercado; f) reduzida acumulação de capital; g) importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais; h) importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e atividades extrativas;

Page 69: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

68

i) a tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente. Há reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo produtor (e sua família) domina o processo de trabalho até o produto final; j) fraco poder político, que em geral reside com os grupos de poder dos centros urbanos; l) auto-identificação ou identificação pelos outros de se pertencer a uma cultura distinta das demais.

Para Diegues, tais características são identificadoras das “populações tradicionais” (o

que evidencia uma visão um tanto quanto essencializada e normativa do autor no que se refere

a esses grupos) e demonstram a estreita conexão que estes grupos mantêm com os recursos

naturais, vez que seus modos de fazer e viver dependem dessa conexão.

Já os antropólogos Manuela Carneiro Cunha e Mauro Almeida (2001) destacam que o

processo de criação e apropriação de categorias não deve ser encarado como uma novidade no

âmbito das Ciências Sociais, uma vez que termos como índios, tribais, nativos, aborígenes e

negro são todas categorias externas, criadas quando do contato com o colonizador europeu.

De acordo os autores, ainda que tenham sido genéricos, artificiais e impostos como

categorias de classificação exógena eles foram, aos poucos, sendo habitados por “gente de

carne e osso”, que acabaram por incorporar e reverter um estigma negativamente imputado

por meio de sua apropriação como categoria de luta e mobilização. Conforme destacam:

Não deixa de ser notável o fato de que com muita freqüência os povos começaram habitando essas categorias pela força, tenham sido capazes de apossar-se delas, convertendo termos carregados de preconceito em bandeiras mobilizadoras. Nesse caso a deportação para um território conceitual estrangeiro terminou resultando na ocupação e defesa desse território (CUNHA e ALMEIDA, 2001, p. 184).

Pensando no caso das chamadas “populações tradicionais”35, os autores destacam que

houve uma mudança de rumo ideológico no que se refere a esses grupos, sobretudo pensando

no caso das populações da Amazônia, historicamente associadas como entraves aos projetos e

concepções desenvolvimentista até então vigentes (ou, como destacam, quando muito

candidatas a serem positivamente “transformadas” por esses projetos e concepções).

Essa mudança ideológica, conforme enfatizam, ocorreu basicamente devido a

associação feita entre essas populações, seus conhecimentos tradicionais e a conservação

ambiental. Um ponto de unificação entre esses grupos para Cunha e Almeida (2001, p. 184) é

justamente o fato de que possuem, ou tiveram, em algum momento, uma relação histórica de

35 Manuela Carneiro Cunha e Mauro Almeida (2001) trabalham com a categoria “populações tradicionais”, tendo em vista que o termo “povos e comunidades tradicionais” é resultado de um processo social, histórico e político de reelaboração da expressão, processo discutido no item 2.1 deste capítulo.

Page 70: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

69

baixo impacto ambiental e que se comprometem a “prestar serviços ambientais em troca da

recuperação ou manutenção do controle sobre o território”.

Embora reconheçam que o termo “populações tradicionais” é propositalmente

abrangente, os autores defendem que essa abrangência não deve ser interpretada como

confusão conceitual. Destacam ainda que definir tais populações como apegadas à tradição

seria contraditório aos conhecimentos antropológico atuais, ou defini-las como tradicionais

por estarem fora do mercado também não se coaduna com as práticas socioeconômicas e

culturais desses grupos. Defini-los com base nesses critérios, portanto, tornaria praticamente

impossível a identificação desses grupos.

Uma definição que esboçam sobre esses grupos é de que:

Populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando para conquistar (por meios práticos e simbólicos) uma identidade pública que inclui algumas e não necessariamente todas as seguintes características: o usos de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas organização social, a presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir com suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados (CUNHA e ALMEIDA, 2001, p. 192).

Assim, tornar-se tradicional, para estes autores, inclui um processo de autoconstituição

que se faz em meio a lutas e conquistas, tanto para a afirmação da sua identidade como para

acessarem o controle sobre seus territórios, ressaltando que este processo passa pelo

estabelecimento de regras de conservação, bem como formação de alianças com agentes

externos. Segundo os autores: “deve estar claro que a categoria de ‘populações tradicionais’ é

ocupada por sujeitos políticos que estão dispostos a constituir um pacto: comprometer-se a

uma série de práticas, em troca de algum tipo de benefício e sobretudo de direitos territoriais”

(CUNHA e ALMEIDA, 2001, p. 192).

Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008b, p. 95), ao analisar os processos de

políticas de identidade e de modalidades de existência coletiva, afirma que se está diante da

fabricação de novas unidades discursivas. Tais unidades, ao mesmo tempo em que

substantivam e diversificam o significado das “terras tradicionalmente ocupadas”, refletem

mobilizações políticas levadas a cabo por sujeitos da ação que, a despeito das suas diferenças,

podem ser agrupados por diferentes critérios, tais como “raízes locais profundas, laços de

solidariedade reafirmados mediante a implantação de ‘grandes projetos de exploração

econômica’, fatores políticos-organizativos, autodefinições coletivas, consciência ambiental e

elementos distintivos de uma identidade coletiva”. Segundo o autor:

Page 71: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

70

Em virtude disto é que se pode dizer que mais do que uma estratégia de discurso tem-se o advento de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também um certo modo de viver e suas práticas rotineiras no uso dos recursos naturais (ALMEIDA, 2008b, p. 89).

O autor pontua que, apesar da heterogeneidade nas condições materiais de existência

dos “povos e comunidades tradicionais”, os mesmos têm em comum, sobretudo, o fato de

serem alvo das intervenções estatais universalizantes que desconsideram suas especificidades.

Pode-se, diante disso, afirmar que o termo “tradicional” passa por um processo de

ressemantização, tendo em vista não se referir de forma exclusiva a fatos passados, mas sim,

atrelado a fatos do presente e às atuais reivindicações dos movimentos sociais. Não pode,

portanto, ser reduzido à história, ao passado, pois incorpora reivindicações atuais e que

decorrem, diretamente, da ação estatal que ameaça, fragiliza e desestabiliza tais grupos.

Conforme afirma Almeida (2008b, p. 123).

Neste sentido, não se está diante do “tradicional” que resiste às políticas governamentais “modernas”, mas sim do tradicional que é construído a partir do fracasso destas políticas em assegurar, para além do discurso, o que dizem ser um ‘desenvolvimento sustentável’. Aqueles agentes sociais que 15 anos atrás eram considerados como residuais ou remanescentes hoje se revestem de uma forma vívida e ativa, capaz de se contrapor a antagonismos que tentam usurpar seus territórios.

Nesse sentido, Almeida (2008b) utiliza a noção de "unidades de mobilização” que se

refere a grupos que, ainda que não representem necessariamente categorias profissionais ou

segmentos de classe, têm se organizado em todo o país com vistas à mobilização e articulação

política. Conforme Almeida, “unidades de mobilização” se refere a:

Aglutinação de interesses específicos de grupos sociais não necessariamente homogêneos, que são aproximados circunstancialmente pelo poder nivelador da intervenção do Estado – através de políticas desenvolvimentistas, ambientais e agrárias – ou das ações por ele incentivadas e empreendidas, tais como as chamadas obras de infra-estrutura que requerem deslocamentos compulsórios (ALMEIDA, 2008b, p. 32).

Assim, os elementos básicos que possibilitam a composição de vínculos solidários

entre agentes pertencentes a grupos tão distintos emanam de intervenção estatal e/ou de

empreendimentos da iniciativa privada, que ameaçam as condições de vida e de existência

desses grupos e possibilitam a formação e articulação política de movimentos contestatórios

perante essas ações.

Conforme Almeida (2009, 2008b), esses grupos, outrora classificados como

camponeses ou trabalhadores rurais (sobretudo por partidos políticos, movimento sindical dos

Page 72: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

71

trabalhadores rurais e entidades confessionais), passam a se articular a “novos” movimentos

de identificação que, sem destituir o atributo dessas categorias36, possibilitam uma maior

mobilização face ao poder do Estado, visando a manutenção do controle sobre seus territórios

e, em alguns casos, a sua (re)afirmação étnica. Segundo Almeida:

A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em décadas passadas estava associada principalmente ao termo “camponês”. Politiza-se aqueles termos e denominações de uso local. Seu uso cotidiano e difuso coaduna com a politização das realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida cotidiana (ALMEIDA, 2008b, p. 80).

Tais “unidades de mobilização”, conforme destaca Almeida (2009, p. 519) devem ser

percebidas como forças sociais que alteram padrões tradicionais de relação política com os

centros de poder e com instâncias de intermediação, possibilitando ainda a emergência de

lideranças independentes e desatreladas daqueles que detêm o poder local.

Destaque-se, neste particular, que mesmo distante da pretensão de serem movimentos para a tomada de poder político, logram generalizar o localismo das reivindicações e mediante estas práticas de mobilização aumentam seu poder de barganha face o governo e o Estado. Para tanto suas formas de atuação transcendem as realidades localizadas e geram movimentos de maior abrangência, que agrupam diferentes unidades (ALMEIDA, 2009, p. 519).

Cumpre ainda destacar que esses sujeitos sociais, nesse processo de transformação de

uma existência atomizada para uma existência coletiva que, de acordo com Almeida (2008a,

p. 143), pode ser “objetivada numa diversidade de movimentos sociais e suas respectivas

redes sociais, redesenhado a sociedade civil da Amazônia e impondo seu reconhecimento aos

centros de poder”, contam com um suporte técnico capacitado e permanente.

Esta assessoria técnica é prestada por ONGs, universidades, instituições de pesquisa,

conforme mencionamos no capítulo anterior ao nos referirmos à utilização de estratégias

internacionais no processo de importação de modelos institucionais.

Percebe-se, pois, uma forte articulação entre o conhecimento científico (produzido,

sobretudo, por intelectuais engajados e que intervêm na luta política desses grupos por meio

36 De acordo Almeida (2008b, p. 88), “tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio político do significado do termo camponês e trabalhador rural, que até então eram utilizados com prevalência por partidos políticos e pelo movimento sindical centralizado na CONTAG (Conferência Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e do termo “posseiro” utilizado pelas entidades confessionais (CPT - ACRE). Tal ruptura ocorre sem destituir o atributo político daquelas categorias de mobilização, haja vista que quilombolas, quebradeiras de coco, seringueiros, pescadores, garimpeiros e ‘atingidos’ também se associam a Sindicatos de Trabalhadores Rurais através dos quais passam a ter direitos aos benefícios da previdência social”.

Page 73: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

72

de sua competência técnica e seu saber e prestígio acadêmicos) e os integrantes dos

movimentos sociais dos chamados “povos e comunidades tradicionais”.

Destaque-se, ainda, o fato de que os representantes dos movimentos sociais desses

grupos passam por um processo constante de capacitação, que inclui, além da articulação com

instituições internacionais para a capacitação em temas relacionados com a sua atuação

militante, a obtenção de formação universitária e a conversão dessa formação em prol de

causas específicas. Nesse sentido, afirma Almeida (2008a, p. 145):

Às lutas pelo livre acesso das chamadas ‘populações tradicionais’ aos recursos naturais acrescente-se aquela de uma nova geração de índios, quilombolas e seringueiros, que migrou para as cidades concluindo cursos de formação superior e que agora se voltam para aprimorar seus estudos na questão do patenteamento e dos direitos territoriais.

Dessa forma, não se pode desconsiderar a formação de redes de organização e

movimentos que objetivam capacitar os agentes para que, em muitos casos, a interlocução

entre os representantes dos “povos e comunidades tradicionais” e o Estado se faça

diretamente, sem intermediários.

Já Paul Litlle (2002) discorre sobre a diversidade de grupos englobados pelas

categorias “populações”, “comunidades”, “povos”, “culturas”, bem como a quantidade de

termos que são utilizados para adjetivar tais grupos, como “tradicionais”, “autóctones”,

“rurais”, “locais” dentre outros, revelando a complexidade que tais nomeações acarretam.

Conforme pontua:

Qualquer dessas combinações é problemática devido à abrangência e diversidade de grupos que engloba. De uma perspectiva etnográfica, por exemplo, as diferenças entre as sociedades indígenas, os quilombos, os caboclos, os caiçaras e outros grupos ditos tradicionais – além da heterogeneidade interna de cada uma dessas categorias – são tão grandes que não parece viável tratá-los dentro de uma mesma classificação (LITLLE, 2002, p. 02).

Oura dificuldade decorre da opção da palavra “tradicional” para se referir a esses

grupos, tendo em vista que este termo já se apresenta tão carregado de significados e quase

sempre vislumbrado como oposto a noção de moderno37, incidindo assim na associação

desses grupos com concepções de imobilidade histórica, atraso econômico e social.

37 Nesse sentido, afirma Litlle (2002, p. 22) que “A teoria da modernização, por exemplo, prognosticava a inevitável (e desejável) superação da “sociedade tradicional” (...) Todavia, nesta análise, a importância dada às constantes mudanças históricas provocadas pelos processos seculares de fronteiras em expansão e aos múltiplos tipos de territórios sociais que produziram, mostra que o uso do termo tradicional aqui refere explicitamente a realidades fundiárias plenamente modernas (e, se quiser, pós-modernas) do século XXI. Aqui a conceito de

Page 74: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

73

A despeito desses “entraves”, Litlle (2002, p. 23) defende a utilização desta expressão

nas Ciências Sociais, tendo em vista que a mesma “procura oferecer um mecanismo analítico

capaz de juntar fatores como a existência de regimes de propriedade comum, o sentido de

pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e práticas adaptativas sustentáveis”

dos variados grupos englobados por esta categoria.

Com relação à impossibilidade aparente de tratar tais grupos como pertencentes a uma

mesma categoria, o autor, tendo como foco a questão territorial, se propõe a demonstrar

semelhanças importantes existentes quando se vinculam tais grupos às suas reivindicações e

lutas fundiárias (semelhanças estas que ficam ocultas quando se utilizam outras categorias),

sem contudo, eliminar ou ignorar as diferenças efetivamente existentes entre os diversos

grupos.

No que concerne às suas reflexões sobre o processo de criação de conceitos

territoriais, Litlle (2002) destaca que tal atividade deve ser considerada, ao mesmo tempo,

uma atividade acadêmica centrada na descrição de territorialidades existentes, mas, também,

uma atividade política utilizada para o reconhecimento legal desses grupos. Assim, enfatiza

que é possível constatar no conceito de “povos tradicionais” tanto uma dimensão empírica

quanto uma dimensão política, de modo tal que as duas dimensões são praticamente

inseparáveis.

Por outro lado, o autor chama atenção para que esse fenômeno de convergência entre

categorias sociológicas, jurídicas e políticas pode levar ao risco de fundir o lado conceitual

com o lado pragmático, levando a substituição das categorias etnográficas pelas categorias

jurídicas. Conforme pontua, “a análise etnográfica, mesmo quando engajada em lutas

políticas, necessita manter certa autonomia, tendo a realidade empírica em toda sua

complexidade − e não só seu lado instrumental − como seu fundamento em última instância”

(LITLLE, 2002, p. 15).

Com relação ao termo “povos e comunidades tradicionais” e seus subsequentes usos,

tanto políticos, quanto sociais, Paul Litlle (2002, p. 23) destaca os diferentes contextos nos

quais a expressão é utilizada. Dentre eles, o autor destaca o processo das fronteiras em

expansão (no qual o termo é acionado com vistas a defender o território da usurpação do

Estado), da união dos movimentos ambientalistas e socioambientalista e ainda no âmbito dos

tradicional tem mais afinidades com uso recente dado por Sahlins (...) quando mostra que as tradições culturais se mantêm e se atualizam mediante uma dinâmica de constante transformação”.

Page 75: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

74

debates internacionais (atrelados às discussões sobre reconhecimento e legitimidade

vinculadas à Convenção 169 da OIT).

Cumpre ainda analisar um aspecto bastante enfatizado pelos diferentes teóricos

implicados nas reflexões sobre esses grupos, quais sejam os debates em torno do processo de

territorialização e identificação ou, em outros termos, o processo de construção de identidades

coletivas articulado à construção de territórios específicos, o que será discutido no próximo

tópico.

2.3 Processo de territorialização e identificação

A territorialização, para Almeida (2008b), deve ser entendida como um processo

resultante de uma conjugação de fatores, que envolvem desde a capacidade mobilizatória em

torno de uma política de identidade, até um “jogo de forças” em que os agentes sociais, por

meio de suas expressões organizadas, travam lutas e reivindicam direitos face ao Estado.

Assim, entender a territorialização como um processo implica em reconhecer que o agente

está implicado nessa construção social.

Ainda de acordo com o autor, o processo político de construção de identidades

coletivas se dá de forma conjunta e articulada à construção de territórios específicos. As

identidades, portanto, são redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada,

apresentando-se como produtos de reivindicações e de lutas, sobretudo, perante o Estado,

levando a um redesenho da sociedade civil pelo advento de vários movimentos sociais. Nesse

sentido, destaca Almeida (2008b, p. 72):

A estas formas associativas, expressas pelos “novos movimentos sociais” (...), que agrupam e estabelecem uma solidariedade ativa entre os sujeitos, delineando uma “política de identidades” e consolidando uma modalidade de existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, Movimento Nacional dos Pescadores, Movimento dos Fundos de Pasto...), correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e asseguram sua reprodução física e social. Em outras palavras pode-se dizer que cada grupo constrói socialmente seu território de uma maneira própria, a partir de conflitos específicos em face de antagonistas diferenciados, e tal construção implica também numa relação diferenciada com os recursos hídricos e florestais.

Cumpre destacar que essas territorialidades específicas não podem ser confundidas

como correspondentes às categorias formais utilizadas pelo Estado para cartografar, mapear

Page 76: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

75

ou situar geograficamente esses grupos, tais como ocorre com a noção de terra, imóvel rural

ou estabelecimento, uma vez que as modalidades de apropriação do território não encontram

correspondência com o ordenamento jurídico formal38.

Nesse sentido, pode-se afirmar que há uma limitação das categorias cadastrais e

censitárias no que se refere à identificação desses grupos, da mesma forma que se pode

afirmar que tais lacunas são reflexos da pouca preocupação do Estado com as chamadas

“comunidades tradicionais”.

Já Paul Litlle (2002) articula suas reflexões sobre os “povos e comunidades

tradicionais” a partir da categoria da territorialidade, definida como sendo o “esforço coletivo

de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de

seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu ‘território’” (2002, p. 03).

A partir da categoria territorialidade e a despeito da extrema diversidade entre os

grupos, bem como das diferenciações internas existentes em um mesmo grupo, o autor

procura evidenciar que é possível encontrar semelhanças importantes entre eles.

Este novo “olhar analítico”, como define Litlle (2002), permite vincular essas

semelhanças às suas reivindicações e lutas fundiárias, descobrindo possíveis eixos de

articulação social e política que levam a uma modificação do quadro de invisibilidade social e

marginalidade econômica a que esses grupos foram historicamente submetidos.

Com relação à discussão sobre território e territorialidade, cumpre ainda destacar as

reflexões desenvolvidas pelo geógrafo Haesbaert Costa (2009), que nos ajudam a melhor

compreender as diferentes dimensões envolvidas nestes conceitos.

O autor direciona as suas análises com vistas a explicitar o que se entende por

território, tendo por objetivo desconstruir a confusão conceitual que se observa nos debates

realizados nas Ciências Sociais sobre o que se convencionou chamar de “desterritorialização”

ou “fim dos territórios”.

Assim sendo, suas reflexões são elaboradas em torno das seguintes questões básicas

sobre os discursos e práticas da “desterritorialização”: geralmente não há uma definição clara

de território nesses debates; a “desterritorialização” é focalizada quase sempre como um

processo genérico e uniforme, nunca vinculado a sua contraparte, qual seja, a (re)

territorialização e, por fim, a “desterritorialização”, como sinônimo de “fim dos territórios”, é

38 Conforme Almeida (2008a, p. 147), em texto referente à questão fundiária da Amazônia, “os grupos que se objetivam em movimentos sociais se estruturam também para além de categorias censitárias oficiais. Importa distinguir a noção de terra daquela de território e assinalar que as categorias imóvel rural usada pelo INCRA, e estabelecimento, acionada pelo IBGE, já não bastam para compreender a estrutura agrária da Amazônia. Os critérios de propriedade e posse não servem exatamente de medida para configurar os territórios em consolidação na Amazônia”.

Page 77: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

76

apresentada como se a predominância de redes39 implicasse, necessariamente, na dissociação

ou na oposição da noção de território.

Como expõe o autor, a crescente globalização e mobilidade espacial não podem ser

tomados como sinônimos de desterritorialização, pois a desterritorialização pode ocorrer sem

que haja deslocamento físico, “bastando para isso que vivenciem uma precarização das suas

condições básicas de vida e/ou a negação de sua expressão simbólico-cultural” (COSTA,

2009, p. 251).

Para Haesbaert Costa (2009), o que muitos autores denominam de desterritorialização

é, no seu ponto de vista, a intensificação da territorialização, ou seja, um processo de

multiterritorialidade no qual se observa, concomitantemente, a destruição e a construção de

territórios, “mesclando diferentes modalidades territoriais (como os territórios-zona e os

territórios-rede) em múltiplas escalas e novas formas de articulação territorial”40 (COSTA,

2009, p. 32).

Nesse sentido, Arturo Escobar (2005), refletindo sobre os debates em torno do

“desparecimento” do lugar diante os processos desterritorialização, propõe uma fuga das

armadilhas epistemológicas impostas pelas teorias da globalização por meio da articulação da

defesa do “lugar”.

Sem desconhecer o fato de que os processos globais alteraram as dinâmicas culturais e

econômicas, o autor destaca que tem ocorrido uma assimetria neste debate, de modo que para

alguns a condição generalizada do dessenraizamento tornou-se a condição dos tempos atuais,

o que, por sua vez, tem levado ao enfraquecimento do “lugar” e uma limitação na compressão

da cultura, do conhecimento, da natureza e da economia. Conforme afirma:

O lugar e a consciência baseada no lugar têm sido marginalizadas nos debates sobre o global e o local. Isto é duplamente lamentável porque, por um lado, o lugar é central no tema do desenvolvimento, da cultura e do meio ambiente, e é igualmente essencial, por outro lado, para imaginar outros contextos para pensar acerca da construção da política, do conhecimento e

39 Embora o autor não apresente uma definição do que entende por “rede”, podemos afirmar, com base nas suas reflexões, que a “rede” pode ser compreendida como a articulação através de múltilas escalas, que ligam o global ao local, conectando diferentes pontos ou áreas. Assim, associando essa noção de rede à de território (e não vislumbrando-as como esferas dissociadas), Haesbaert Costa compreende a formação dos territórios-rede, que, embora espacialmente descontínuos, são extremamente conectados e articulados entre si (COSTA, 2009, p. 79). 40 De forma geral, com base nas ideias desenvolvidas por Haesbaert Costa (2009), podemos tomar o fenômeno da desterritorialização como exclusão, privação ou precarização do território como recurso ou apropriação material ou simbólica indispensável à nossa participação efetiva como membros de uma sociedade. Já a territorialização seriam as relações de domínio e apropriação do espaço, ou seja, nossas mediações espaciais do poder, poder em sentido amplo, que se estende do mais concreto ao mais simbólico. Por fim, a multiterritorialidade implicaria na possibilidade de acessar ou conectar diversos territórios, o que pode se dar tanto através de uma mobilidade concreta, no sentido de um deslocamento físico, quanto virtual, no sentido de acionar diferentes territorialidades mesmo sem deslocamento físico.

Page 78: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

77

da identidade. O desaparecimento do lugar é um reflexo da assimetria existente entre o global e o local na maior parte da literatura contemporânea, na qual o global está associado ao espaço, ao capital, à história e à ação humana, enquanto o local, contrariamente, é vinculado ao lugar, ao trabalho e as tradições, assim como sucede com as mulheres, as minorias, os pobres e poder-se-ia acrescentar, as culturas locais (ESCOBAR, 2005, p. 151).

Entendendo o lugar como sendo a “experiência de uma localidade específica com

algum grau de enraizamento, com conexão com a vida diária, mesmo que sua identidade seja

construída e nunca fixa” (ESCOBAR, 2005, p. 134), o autor destaca que o predomínio do

espaço sobre o lugar tem levado à invisibilidade de modelos culturalmente específicos. Tais

modelos, que não são baseados na relação binária entre natureza e cultura, possibilitam a

continuidade entre o mundo biofísico, humano e supra natural, bem como modos de

identificação e classificação diferenciados.

Para Escobar (2005, p. 136) é possível – e necessário – que seja realizada uma defesa

do lugar, mas sem naturalizá-lo, sem reificar as permanências, a presença, a ligação, a

corporeidade e similares e, principalmente, reinterpretando os lugares e vinculando-os a

construção de redes e que permitam a transposição de fronteiras e identidades parciais sem

descartar completamente a noções de enraizamento, limites e pertencimentos.

Uma das condições que tornam possível a defesa e o reforço do lugar é por meio de

redes reais e virtuais, coalizões de movimentos sociais e através de coalizões heterogêneas de

diversos atores como acadêmicos, ativistas, ONGs. Conforme destaca o autor:

Redes tais como as dos indígenas, dos ambientalistas, das ONGs e outros movimentos sociais estão tornando-se mais numerosas e adquirindo maior influência nos níveis locais, nacionais e transnacionais. Muitas destas redes podem ser vistas como produtoras de identidades baseadas-no-lugar, e ao mesmo tempo transnacionalizadas (ESCOBAR, 2005, p. 160).

É possível, portanto, que o lugar seja reinterpretado a partir das redes e mesmo de

espaços desterritorializados. No que concerne à definição do termo território, Costa (2009)

ressalta a enorme polissemia que acompanha a utilização do conceito pelos autores de

diferentes áreas de conhecimento41, destacando ainda que boa parte das confusões advindas

41 Afirma Haesbaert Costa (2009, p. 40) que, de forma geral, a noção de território pode ser abrigada em três grupos de concepções bastante diferenciadas entre si. No primeiro deles, a noção de território está relacionada as relações de espaço-poder em geral, configurando a vertente política ou jurídico-política do território. Essa noção é a mais difundida, na qual o território é visto como um espaço delimitado e controlado pelo poder do Estado. A segunda noção refere-se ao território cultural ou simbólico-cultural, na qual se prioriza a dimensão simbólica e subjetiva implicadas no território, “em que o território é visto, sobretudo, como produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido”. Por fim, tem-se a noção econômica do território, sendo a menos difundida das três, e que enfatiza a dimensão espacial das relações

Page 79: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

78

do uso do termo território decorre justamente da perspectiva que o considera como simples

sinônimo de espaço ou espacialidade, ou como a simples e genérica dimensão material da

realidade.

Assim, como forma de superar essa visão reducionista do território, o autor destaca a

necessidade de buscar uma superação da dicotomia entre as perspectivas materialistas e

idealistas do território. Na perspectivas materialistas tem-se a ênfase nas relações econômicas

de produção e, sobretudo, conotação fortemente vinculada ao espaço físico como evidência

empírica, ao passo que nas perspectivas idealistas, desenvolvidas, sobretudo, nas Ciências

Sociais, em especial na Antropologia, as referências são feitas de forma mais enfáticas aos

“poderes invisíveis” que fazem parte do território, ou seja, a valorização do território como

representação e realidade simbólica.

O autor defende ainda que o território deve ser pensado em seu sentido relacional, ou

seja, uma relação social mediada e moldada na/pela materialidade, portanto, não deve ser tido

como uma “coisa” que se possui ou um espaço que visa o enraizamento, a estabilidade, a

delimitação e/ou a fronteira. Nesse sentido, conforme destaca Costa (2009, p. 79):

Fica evidente neste ponto a necessidade de uma visão de território a partir da concepção de espaço como um híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e idealidade, numa complexa integração tempo-espaço (...), na indissociação entre movimento e (relativa) estabilidade – recebam estes os nomes de fixos e fluxos, circulação e ‘iconografia’ ou o que melhor nos aprouver. Tendo como pano de fundo esta noção híbrida (e, portanto, múltipla, nunca indiferenciada) de espaço geográfico, o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural.

O autor chama atenção para o fato de que, mais do que território, territorialidade é o

conceito utilizado para enfatizar essas questões de ordem simbólico-cultural. Assim, os

processos de territorialidade teriam como referência justamente esses aspectos simbólicos,

que, por sua vez, estão diretamente referidos às relações sociais e culturais, bem como a

contextos históricos específicos.

Dessa forma, é importante situar a que contexto se refere essa noção de território e de

territorialidade, uma vez que os grupos e sociedades possuem diferentes formas de incorporar

essa relação com as esferas materialistas e idealistas. Nesse sentido, conforme afirma Costa

(2009, p. 73), o grau de centralidade do território na cosmovisão dos grupos sociais pode ser

econômicas, passando o território a ser concebido como fonte de recursos e/ou incorporado no debate entre classes sociais e na relação capital-trabalho.

Page 80: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

79

bastante variável, daí a necessidade de se redobrarem os cuidados quando da utilização deste

conceito em contextos socioculturais distintos.

Assim, de acordo com Haesbaert Costa (2009), ainda que não seja o elemento

dominante e tampouco esgote as características do território, este caráter ou dimensão

simbólica deve ser sempre considerado quando da análise dos processos de territorialização.

Sobre esse aspecto, o autor destaca que uma noção de território que ignore a sua dimensão

simbólica – mesmo entre aquelas que enfatizam seu caráter político – implica na limitação em

compreender os laços existentes entre espaço e poder42.

Por fim, cumpre ainda destacar o caráter que assume o território como instrumento de

classificação, que opera as suas distinções tanto internamente – levando a uma padronização,

uma vez que todos os que estão dentro de seus limites tendem a ser vistos como “iguais” –

quanto externamente – uma vez que na relação com outros territórios estabelece-se uma

relação de diferença entre os que se encontram no interior e os que se encontram fora de seus

limites.

Toda relação de poder espacialmente mediada é também produtora de identidade, pois controla, distingue, separa e, ao separar, de alguma forma, nomeia e classifica os indivíduos e os grupos sociais. E vice-versa: todo processo de identificação social é também uma relação política, acionada como estratégia em momentos de conflito e/ou negociação (COSTA, 2009, p. 89).

Pensando nesses processos de identificação que tem no território um elemento

constituinte, Araújo (2007) destaca a necessidade de se trabalhar mais com interseções e

ambivalências do que com fronteiras ou limites bem definidos, da mesma forma que ressalta o

jogo entre material e imaterial e as relações de poder implicadas nesse processo de

identificação, que é, ao mesmo tempo, um processo de classificação. Conforme destaca,

“estas classificações com que re-significamos o mundo, nós e os outros, inclusive através dos

territórios, são objetos de intensas disputas entre aqueles que têm o poder de formular e

mesmo de fixar essas classificações” (ARAÚJO, 2007, p. 37).

Com relação às classificações baseadas em identidades territoriais, é importante fazer

algumas considerações, ainda que gerais, sobre o tema. Nesse contexto a noção de “luta das

42 Nas palavras do autor, “o poder não pode de maneira alguma ficar restrito a uma leitura materialista, como se pudesse ser devidamente localizado e ‘objetificado’. Num sentido também aqui relacional, o poder como relação, e não como coisa a qual possuímos ou da qual somos expropriados, envolve não apenas as relações sociais concretas, mas também as representações que elas veiculam e, de certa forma, também produzem. Assim, não há como separar o poder político num sentido mais estrito e poder simbólico (COSTA, 2009, 93).

Page 81: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

80

classificações” utilizada por Bourdieu (1998) é de grande valia para pensar o processo em

análise.

Essa luta, que segundo o autor é a luta pela definição da identidade regional ou étnica

legítima, tem mais relação com as representações mentais e atos de percepção e apreciação,

conhecimento e reconhecimento do que com critérios objetivos de identidade “regional” ou

étnica, oriundos da “realidade”.

Conforme destaca, tais lutas se estabelecem em torno do “monopólio de fazer ver e

fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões

do mundo social através dos princípios de di-visão” (BOURDIEU, 1998, p. 113), de tal forma

que quando são impostas como legítimas ao conjunto de um determinado grupo, concretizam

e tornam “real” o sentido e a unidade do grupo.

Assim sendo, conforme Bourdieu, o que é instituído é o resultante, num dado

momento, da luta para fazer existir ou “inexistir” o que existe e as representações são

enunciados performativos que pretendem que aconteça aquilo que enunciam. Por este motivo,

ressalta o autor que:

A ciência que se pretende propor os critérios mais bem alicerçados na realidade, não deve esquecer que se limita a registrar um estado da luta das classificações, quer dizer, um estado das relações de forças materiais ou simbólicas entre os que têm interesse num ou noutro modo de classificação e que, como ela, invocam freqüentemente a autoridade científica para fundamentarem na realidade e na razão a divisão arbitrária que querem impor (BOURDIEU, 1998, p. 115).

Assim, segmentos extremamente diversificados entre si, como no caso dos “povos e

comunidades tradicionais” são vislumbrados como grupos semelhantes a partir de alguns

critérios e passam a ser agrupados, teoricamente, como pertencentes ao mesmo segmento. São

classificados, portanto, a despeito de todas as suas diferenças, como pertencentes à mesma

categoria de sujeitos. A esse respeito, postula Bourdieu:

O efeito simbólico exercido pelo discurso científico ao consagrar um estado das divisões e da visão das divisões, é inevitável na medida em que os critérios ditos “objetivos”, precisamente os que os doutos conhecem, são utilizados como armas nas lutas simbólicas pelo conhecimento e reconhecimento: eles designam as características em que pode firmar-se a ação simbólica de mobilização para produzir a unidade real ou a crença na unidade (tanto no seio do próprio grupo como nos outros grupos) que a prazo, e em particular por intermédio das ações de imposição e inculcação da identidade legítima tende a gerar a unidade real (BOURDIEU, 1998, p. 120).

Assim sendo, ocorre uma espécie de retroalimentação entre representação do real e

realidade a partir de um movimento político e intelectual que possibilita que esses grupos,

Page 82: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

81

antes negados e ignorados, obtenham visibilidade – não só para os outros grupos, mas

também para ele próprio –, e, consequentemente, reconhecimento.

Essa visibilidade se torna possível através da utilização positiva de um estigma

negativamente imputado a esses grupos, uma vez que, conforme Bourdieu, “as propriedades

(objetivamente) simbólicas, mesmo as mais negativas, podem ser utilizadas estrategicamente

em função dos interesses materiais e também simbólicos do seu portador (BOURDIEU, 1998,

p. 112).

Ainda segundo o autor, é o estigma que dá a revolta não só as suas determinantes

simbólicas, mas também os seus fundamentos econômicos e sociais, princípios de unificação

do grupo e pontos de apoio objetivos da ação de mobilização.

É porque existe como unidade negativamente definida pela dominação simbólica e econômica que alguns dos que nela participam podem ser levados a lutar (e com probabilidades objetivas de sucesso e de ganho) para alterarem a sua definição, para inverterem o sentido e o valor das características estigmatizadas, e que a revolta contra a dominação em todos os seus aspectos – até mesmo econômicos – assume a forma de reivindicação regionalista (BOURDIEU, 1998, p. 127).

Nesse contexto se inserem as discussões levadas à cabo por agentes sociais situados

em diferentes espaços sociais, que visam auxiliar nesse processo de reverter o estigma

negativo imputado, por meio de sua produção intelectual e acadêmica, bem como por meio da

sua atuação prática e política.

Tal processo de visibilidade e inversão de estigma possibilita a esses grupos sociais

agrupados sob a denominação de “povos e comunidades tradicionais”, antes invisibilizados e

indiferenciados, passem a se constituir em sujeitos coletivos, organizados e articulados a

variadas redes de relações, que inclui, dentre outros agentes sociais, os juristas engajados nos

conflitos socioambientais e na defesa desses segmentos.

Page 83: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

82

3 JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E DEFESA DOS

“POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS”

Conforme destaca Maria Tereza Sadek (2008, p. 110), tornou-se lugar comum

constatar que a promulgação da Constituição Federal de 1988 provocou inúmeras

transformações na sociedade brasileira, consolidando-se o novo diploma legal como um

“verdadeiro marco na história do país, impondo um antes e um depois”.

O processo de democratização que se seguiu ao período de autoritarismo vivenciado

no Brasil durante o regime ditatorial evidenciou o processo de aprofundamento de atitudes de

indiferença política da população e desorganização da vida social vigorantes no período

anterior à Constituição. Como destaca Werneck Vianna:

O processo de transição à democracia pôs a nu os efeitos da modernização autoritária conduzida pelo regime militar, sobretudo no que se refere à degradação da dimensão do público, não somente na esfera estatal, como também na própria sociedade civil (VIANNA, 1999, p. 153).

Ainda segundo Vianna (1999), somente a partir da década de 1990 esse processo de

degradação e indiferença social e política passa por modificações substanciais, sendo tal

fenômeno decorrente, dentre outras circunstâncias, da crescente internalização pelo Ministério

Público do seu papel nas ações públicas e da pressão democratizadora exercida sobre o Poder

Judiciário. Essa pressão é exercida, sobretudo, pelos setores mais pobres e desprotegidos da

população, que vêem neste poder uma possibilidade de atendimento das suas expectativas de

direito e de aquisição da cidadania frustradas pelo regime militar.

Nesse contexto, o Ministério Público ocupa um papel central no modelo de Estado e

de sociedade, redesenhado pela Constituição Federal, bem como o Poder Judiciário passa a

ser visto como uma instituição estratégica na democracia, “invadindo” o direito diferentes

esferas da vida política e social e alcançando a regulação da sociabilidade e de práticas antes

tidas como de natureza eminentemente privada.

Ainda segundo destaca Vianna (1999, p. 145), percebe-se um processo de

massificação da tutela jurídica, de modo que o Poder Judiciário passa, também, a ser

considerado uma alternativa viável para a solução dos conflitos sociais43, levando ao que o

43 Nas palavras do autor, “o Poder Judiciário surge como uma alternativa para a resolução dos conflitos coletivos, para a agregação do tecido social e mesmo para a adjudicação da cidadania, tema dominante na pauta e facilitação do acesso a justiça” (VIANNA, 1999, p. 22).

Page 84: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

83

autor denomina de “judicialização” das relações sociais e políticas. Tal processo pode ser

compreendido como:

Todo um conjunto de práticas e de novos direito, além de um continente de personagens e temas até recentemente pouco divisáveis pelo sistema jurídico (...), novos objetos sobre os quais se debruça o Poder Judiciário, levando a que as sociedade contemporâneas se vejam, cada vez mais, enredadas na semântica da justiça” (VIANNA, 1999, p. 149).

Assim, o modelo de democracia então inaugurado com o texto constitucional, após

anos de ditadura, possibilitou a formação de um novo desenho institucional, formalizando

uma ampla gama de direitos – sem precedentes na história do país – e passando o Poder

Judiciário a incorporar uma dimensão de intervenção no âmbito social. Dessa forma, cria-se

um cenário público de modo que “nessa nova arena, os procedimentos políticos de mediação

cedem lugar aos judiciais, expondo o Poder Judiciário a uma interpelação direta dos

indivíduos, de grupos sociais e até de partidos” (VIANNA, 1999, p. 23).

Essa maior democratização do Judiciário, por seu turno, pode ser relacionada com uma

maior diversificação dos profissionais que têm acesso ao título de bacharel em direito, uma

vez que, em decorrência da maior diversificação social e econômica desses profissionais, há

uma espécie de “pluralização44” das concepções de direito e justiça, assim como sobre os

diferentes usos possíveis de se fazer o direito.

Nesse sentido, utilizamos as reflexões desenvolvidas por Fabiano Engelmann (2006, p.

11), ao analisar o contexto da estrutura do judiciário no Rio Grande do Sul, para quem essa

conjuntura de redemocratização do país, acompanhada do fim do regime militar e da

promulgação da Constituição Federal de 1988, possibilita a emergência de novos usos e

definições das instituições jurídicas e políticas. A partir da década de 1990, conforme afirma o

autor, observa-se uma maior diversificação nos usos das profissões jurídicas, bem como nas

disciplinas que fundamentam o conjunto de atividades nesse espaço.

Essa diversificação tem relação com as características sociais daqueles que passam a

ter acesso ao título de bacharel em direito, uma vez que, segundo Engelmann (2006), pode-se

afirmar que as tomadas de posição públicas em relação a temas conjunturais (principalmente

políticos e sociais) por parte dos juristas e o engajamento em causas coletivas, estreitamente

vinculadas aos “movimentos sociais”, decorrem da ascensão de grupos de juristas mais

44 As teorias do “Pluralismo Jurídico” ou do “Direito Alternativo”, que reconhecem a possibilidade de existência de direitos que não sejam diretamente emanadas do positivismo jurídico estatal, ganharam força com o processo de promulgação da Constituição de 1988 e influenciaram uma série de profissionais do espaço judicial, conforme discutiremos ao longo deste capítulo.

Page 85: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

84

diversificados socialmente e dissociados, social e intelectualmente, dos padrões de juristas

mais conservadores.

Assim, Engelmann, referindo-se a configuração específica no estado do Rio Grande do

Sul, destaca a existência de dois pólos45 concorrentes no campo jurídico nacional, campo este

definido como “universo de interação dos bacharéis em direito, (que) implica num espaço

socialmente instituído por ritos, símbolos, códigos, hierarquias e garantias legais legitimadas

pelo Estado” (2006, p. 17).

O primeiro pólo seria composto por segmentos mais tradicionais do direito,

caracterizado pela neutralidade, conservadorismo e praticidade. Nesse pólo, agrupam-se os

bacharéis associados às “grandes famílias de juristas e políticos”, que detêm amplo capital

social e que se posicionam nas carreiras jurídicas e na gestão das faculdades de direito mais

tradicionais. Já o segundo pólo é mais diversificado, caracterizado pela politização, criticidade

e academicismo, nele se posicionando os grupos que se legitimam enfrentando a tradição

jurídica, havendo, portanto, uma tendência à valorização do ensino universitário de pós-

graduação como opção de carreira profissional (ENGELMANN, 2006, p. 12).

Faltam-nos elementos e material empírico para melhor elucidar a construção dos

espaços jurídicos nos estados do Maranhão e do Pará, no entanto, podemos afirmar, a título de

aproximação e como hipótese para futuros trabalhos de pesquisa, que o perfil social dos

bacharéis em direito nos dois estados obedecem a outras lógicas de estruturação, diferentes

das verificadas no Rio Grande do Sul.

Sobretudo no que se referem à realidade do Maranhão, tais diferenças dizem respeito à

aquisição de títulos de mestrado e doutorado e na profissionalização daqueles bacharéis que,

quando da graduação, apresentavam um envolvimento maior com essas discussões tidas como

mais politizadas e críticas. Tais afirmações são feitas com base no depoimento de um agente

investigado no estado do Maranhão, o Procurador da República Alexandre Silva Soares.

Para o Procurador da República, a maioria dos estudantes com envolvimento junto aos

movimentos estudantis, sociais e à assessoria jurídica popular quando da sua graduação em

direito na UFMA, estão atuando hoje em áreas que não guardam relação com o ensino

universitário ou com a defesa das causas coletivas. Segundo afirma:

45 Diferentemente do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil não há uma oposição entre as posições de “teórico” – voltados para a elaboração puramente acadêmica da doutrina – e as posições de “prático” – referentes a avaliações práticas de um caso jurídico particular (BOURDIEU, 1998, 217). No Brasil, conforme expõe Engelmann (2006, p. 27), “as disputas em torno da definição do direito legítimo de ser ‘aplicado’ e as problemáticas consideradas ‘juridicamente legítimas’ são definidas tradicionalmente no espaço do ‘mundo prático’ da advocacia e das carreiras de Estado”.

Page 86: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

85

Eu até observo o seguinte, aqui tem uma detalhe interessante no Maranhão. Eu tava observando a minha turma de graduação (...) todo mundo que tava no NAJUP46 passou em concurso público, quase todo mundo (...) Então, onde que essas pessoas estão? E é uma coisa curiosa que observo inclusive nos primeiros movimentos de assessoria jurídica popular universitária que existiam, algumas pessoas estão inclusive na advocacia pública, estão advogando para o Estado, estão dentro do aparelho, ainda que tenham sido formados nessa linha, digamos assim, mais crítica com relação ao direito, com relação à atuação do profissional de direito (...). Se pararmos para observar essa trajetória, é uma trajetória do concurso público, como fonte de acesso democrático de ascensão (Entrevista realizada no dia 24/11/2011).

Ainda conforme destaca Alexandre Silva Soares com relação ao ensino jurídico, uma

das críticas feitas aos professores do curso de direito da Universidade Federal do Maranhão –

por muito tempo, a única instituição de ensino superior jurídico do estado – era que os

mesmos tinham um bom domínio da prática jurídica, mas não possuíam uma boa didática em

sala de aula. Conforme afirma, “Na verdade você tinha muito professores na universidade que

tinham experiência, mas a aula... Era uma das críticas ao direito, na verdade, que era cheio de

professores que eram aqueles advogados medalhões” (entrevista realizada no dia 24/11/2011).

Poucos professores possuíam o título de mestre ou doutor e os que haviam adquirido

tais títulos de pós-graduação faziam parte da elite jurídica ou, nos termos de Engelmman

(2006), pertenciam à tradição jurídica do estado, às grandes famílias de juristas e políticos

(ainda que, ideologicamente, pudessem ser posicionados no pólo mais crítico do direito). Isso

os possibilitava acesso às condições necessárias para cursar a pós-graduação em outros

estados. O Procurador também destaca este aspecto na sua fala:

Na verdade assim, a minha meta inclusive era ter feito carreira acadêmica, mas, como falei há pouco, meus pais eram funcionários públicos estaduais, assim, para eu sair para fazer mestrado fora, eu precisaria de ter um certo aporte de capital que na época não tive (...), então eu não tinha como seguir da forma que havia planejado, que era me formar e fazer mestrado. Não ter mestrado em direito aqui é uma grande limitação que existe hoje (...) porque, enfim, para quem não pode sair daqui para fazer mestrado é muito difícil (Entrevista realizada no dia 24/11/2011).

Contudo, para além dessa diversificação dos espaços jurídicos observados e do perfil

social dos agentes que os compõe, algumas reflexões do estudo realizado por Fabiano

Engelmman (2006) podem ser utilizadas neste trabalho. Cite-se, como exemplo, a

“sociologização” do campo jurídico, ou seja, a aproximação dos juristas com a Sociologia

46 Núcleo de Assessoria Jurídica Popular NAJUP - Negro Cosme, vinculada ao Departamento de Direito da Universidade Federal do Maranhão.

Page 87: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

86

para a fundamentação de posições políticas e intelectuais, numa tentativa de aproximação do

direto com a realidade dos grupos socialmente dominados, característica esta que observada

nos profissionais analisados.

Outro aspecto relevante na análise de Engelmann (2006, p. 20) e que pode ser

utilizado neste estudo, diz respeito às análises das tomadas de posições doutrinárias acerca das

definições e usos do direito e justiça (uso mais “conservador” ou mais “politizado” do

direito), que passam pela análise de uma série de variáveis, incluindo desde características

relacionadas à origem social dos agentes até o estudo do espaço social de produção do

conhecimento. Conforme afirma:

O estudo do espaço de produção desse saber doutrinário, que é um dos objetos centrais das lutas pela definição do direito e do monopólio de dizer o direito, é fundamental para a compreensão dos princípios de estruturação das disputas. Nessa análise, é necessário pôr em questão as relações dos produtores do direito com diversos grupos sociais aos quais estão vinculados, e com os interesses sociais que estes agentes traduzem na forma do direito. Nesse sentido, é importante considerar o espaço social e profissional no qual são mobilizados diversos recursos de definição e tradução, que instituem seu monopólio em relação aos profanos, na manipulação dos códigos jurídicos.

Dessa forma, ainda que tais reflexões se refiram ao contexto estudado e analisado em

um estado da federação, alguns pontos destacados por Engelmman (2006) são de grande valia

para analisar a posição adotada por agentes implicados na construção da causa

socioambiental, haja que vista que os mesmos se articulam em um malha de conexões, ou

rede de relações de grupos, que os conecta a diferentes interesses e diferentes usos e

apropriações feitas em torno da categoria “povos e comunidades tradicionais”.

Tais considerações, quando aplicadas no caso em estudo, permitem relacionar as

tomadas de posição dos diferentes agentes em prol do reconhecimento e legitimidade da

categoria em análise, permitindo elucidar questões acerca das formas que os agentes – em

especial, do Ministério Público e da academia – utilizam o termo para organizarem e se

reorganizarem em torno das disputas por reconhecimento, espaço e poder.

Nesse contexto, pretende-se expor algumas aproximações com aspectos relacionados a

estratégias sociais, formação acadêmica e perfil profissional e social de alguns profissionais

representativos situados no espaço jurídico e que possuem “engajamento” com as causas

relativas aos direitos dos “povos e comunidades tradicionais”. A ideia é apenas a de iniciar

uma reflexão, a partir desses perfis preliminarmente levantados, e perceber a correlação entre

Page 88: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

87

os mesmos e as interpretações e posicionamentos adotados na esfera jurídica, com vistas à

legitimação da expressão mencionada.

3.1 Instituições, agentes jurídicos e usos do direito

Para Baeta Neves e Petrarca (2009, p.09), a importação de causas coletivas pelo

espaço jurídico e a emergência dos novos usos do direito apresenta-se como um fenômeno

histórico recente, não só no Brasil, mas também em outros países.

Desse modo, tais usos do direito se manifestam, por exemplo, através de mobilizações

de advogados no âmbito do Direito do Trabalho na França (por meio da advocacia para

sindicatos de trabalhadores na década de 1970), da advocacia voltada para defesa dos

excluídos nos Estados Unidos e, no âmbito das causas relacionadas aos direitos humanos na

América Latina, em defesa dos presos políticos dos regimes autoritários então vigentes.

Assim, pode-se afirmar, com base no estudo desenvolvido por essas autoras, que o

movimento dos direitos humanos ganha proporções destacadas a partir dos movimentos

políticos de contestação das ditaduras militares na década de 1970 na América Latina.

Entretanto, ainda conforme Baeta Neves e Petrarca (2009, p.10), as modalidades de

engajamento dos advogados em causas coletivas se modificam substancialmente no contexto

dos anos de 1990, sobretudo devido à ampliação dos movimentos sociais nesse período e à

profusão de novas causas (tais como direitos ambientais, direitos indígenas, direito dos sem

terra etc.).

Nesse contexto, pode-se afirmar que a emergência de novos direitos se dá de forma

concomitante ao processo de atuação engajada no âmbito das profissões jurídicas, bem como

a possibilidade de mobilizar a lei em favor de determinadas causas. Há, portanto, ínsito a este

processo de ampliação da defesa da causa, um crescente processo de interação entre direito e

política, bem como a transformação de causas particulares em causas jurídicas levando a

legitimação dessas causas e tornando-as passíveis de serem discutidas e debatidas na esfera

pública.

Neste momento, “os advogados investem na tradução de problemáticas construídas no

âmbito dos movimentos sociais para o universo do direito” (BAETA NEVES; PERTRARCA,

2009, p. 10), de modo que faz necessário examinar as relações entre o espaço judicial e as

Page 89: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

88

causas coletivas, bem como o processo de profissionalização no direito colocado a serviço de

determinadas causas.

Assim, conforme já afirmado por outros autores, esse contexto da redemocratização

criou as condições necessárias para a institucionalização de determinadas causas, o constante

acionamento da esfera judicial e a criação de uma série de associações da sociedade civil e

instituições jurídicas. Conforme afirmam Baeta Neves e Petrarca (2009, p.12):

Nesse sentido, pode-se dizer que o momento de abertura política e de redemocratização da política brasileira, assim como a organização do processo constituinte, decorrente de tal abertura, a qual se iniciou nos anos de 1980 para a realização da nova constituição brasileira, criou as condições tanto para a emergência de novos atores na política nacional quanto para novas formas de mobilização no espaço jurídico. Dentre esses novos atores estão os movimentos sociais que se diversificam nesse período, contando com quadros militantes oriundos de várias profissões e com diferentes formações universitárias. Estes novos atores, sobretudo advogados, sentiram-se autorizados a mobilizar a lei em favor da causa que empreendiam.

Além dos advogados, outros agentes do espaço judicial, situados em instituições

jurídicas engajadas nos processos de discussão sobre ampliação e efetivação dos chamados

“novos direitos” (dentre os quais se incluem os direitos difusos dos “povos e comunidades

tradicionais”), são os membros do Ministério Público, tanto em suas em suas esferas estadual

como federal.

No que se refere à instituição Ministério Público, pode-se afirmar que, de forma sem

precedente na história do constitucionalismo no país, a Constituição Federal de 1988 alçou-a a

um papel basilar no que concerne a promoção e manutenção do regime democrático. Assim, o

texto constitucional estatuiu a independência, a não vinculação a nenhum dos demais Poderes

do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e proveu o Ministério Público com todas as

garantias de autonomia administrativa e funcional. Nesse sentido, conforme Sadek (2008, p.

111):

O texto constitucional aprovado em 1988 não deixa dúvidas sobre o papel central do Ministério Público nos modelos de Estado e de sociedade aí idealizados. A inserção do Ministério Público no Capítulo IV – “Das Funções Essenciais à Justiça” -, integrando o Título IV – “Da Organização dos Poderes” – bastaria por si só para indicar que a instituição foi alçada a uma posição de relevo, merecendo um capítulo próprio.

O Ministério Público, conforme definição constitucional, “é instituição permanente,

essencial à função jurisdicional, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime

Page 90: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

89

democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, Constituição

Federal).

Apresenta-se, tal como o Judiciário, dividido em dois ramos: o da União e dos

Estados. O Ministério Público da União – que tem por chefe o Procurador-Geral da

República, nomeado pelo Presidente da República para mandato de dois anos – compreende o

Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar e o

Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios, enquanto o Ministério Público

Estadual – tendo por chefe o Procurador-Geral, nomeado pelo chefe do Executivo Estadual –

é composto pelos Ministérios Públicos de cada estado da Federação (art. 128, Constituição

Federal).

O texto constitucional estabelece ainda as seguintes funções do Ministério Público:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

Percebe-se, pois, a quantidade de atribuições que competem a esta instituição,

destacando ainda que as mesmas não são exaustivamente relacionadas no texto, mas sim

exemplificativas, tendo em vista a redação do último inciso, que determina ao Ministério

Público exercer outras funções, desde que compatíveis com as suas finalidades.

Tais atribuições, somadas ao extenso rol de direitos individuais e coletivos constantes

em todo o texto da Constituição, transformaram a instituição do Ministério Público e os seus

Page 91: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

90

membros nos “guardiães da promessa”47 (VIANNA, 1999, p. 23), atuando como fiscais dos

atos e ações dos demais agentes estatais, entidades governamentais e instituições sociais, bem

como na defesa da cidadania.

Tal característica possibilita aos membros da referida instituição bastante visibilidade

nas ações desenvolvidas, tendo em vista que, dada a amplitude de atribuições e funções,

dificilmente se encontra um tema no qual não seja possível a presença dos seus membros na

resolução de conflitos sociais. Nesse sentido, segundo Sadek (2008, p. 114):

As novas funções conferidas ao Ministério Público combinadas à ampla lista de direitos individuais e supra-individuais, implicam indeclinável presença da instituição e de seus integrantes na arena pública, particularmente na fiscalização da atuação de agentes políticos e no controle da definição e da consecução de políticas públicas. A abrangência das possibilidades de interferência do Ministério Público nas dimensões política, econômica e social são ingredientes que estimulam a constituição de um ator relevante tanto na arena judicial quanto na política, em seu sentido mais amplo. Saliente-se, ainda, que o Ministério Público, diferentemente do Poder Judiciário, que só age quando provocado, possui controle de agenda. Essa característica contribui fortemente para acentuar seu papel de destaque no cenário público.

Assim, ante a redefinição do papel do Ministério Público, tal instituição, após a década

de 1980 passa a obter uma importância significativa na arena pública do país, não só do ponto

de vista das disposições legalmente prescritas, mas igualmente na atuação prática de seus

membros.

No entanto, cumpre destacar que a atuação prática de seus membros em determinadas

questões está, muitas vezes, para além das determinações legais, ou seja, conforme dispõe

Sadek (2008, p. 117), os reflexos das mudanças legais na efetividade das ações na prática dos

membros do Ministério Público se relacionam ao empenho individual dos integrantes da

instituição. Ainda conforme destaca a mencionada autora:

Em tese, as transformações de virtualidades contidas em preceitos legais em realidade dependem em larga medida da atuação dos integrantes da instituição. No caso do Ministério Público, essa dependência é particularmente forte e possui especificidades. Como salientamos, trata-se de uma instituição de tipo monocrática, não havendo uma hierarquia baseada em estritos princípios de mando e obediência. A subordinação a um chefe é apenas de natureza administrativa. Cada membro possui garantia de independência funcional, sendo livre para atuar segundo sua consciência e suas convicções, baseados na lei. Isso significa dizer que, ao mesmo tempo

47 De acordo com Werneck Vianna, os membros do Ministério Público e os magistrados seriam os novos personagens da intelligentzia nos modelos de justiça adotados nos países ocidentais. Conforme destaca, “Guardiães das promessas, na definição de Garapon, em meio a um mundo laico dos interesses e da legislação ordinária, seriam os portadores das expectativas de justiça e dos ideais da filosofia que, ao longo da história do Ocidente, se teriam naturalizado no campo do Direito” (VIANNA, 1999, p. 23).

Page 92: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

91

em que há consideráveis empecilhos para a definição e implementação de políticas institucionais, cada integrante é, em si, a instituição, possuindo ampla margem de discricionariedade (SADEK, 2008, p. 117).

Ainda segundo Sadek (2008, p. 117), podendo-se considerar cada integrante uma

instituição, existe amplo espaço para uma atuação que extrapole o que está contido na

legislação. Disto decorre que o empenho depende, dentre outros fatores, de características

individuais dos membros do Ministério Público e do grau de independência real e da

vinculação ideológica dos membros a diferentes instituições sociopolíticas e a determinadas

causas sociais.

Assim sendo, perceber a relação que cada um de seus membros possui com os poderes

e atores políticos, econômicos e sociais – tanto políticos quanto privados – possibilita a

compreensão das suas tomadas de decisão, do seu engajamento com determinadas causas, do

empenho com que se dedicam a determinadas ações, elementos que, conforme já assinalado,

extrapolam o conhecimento das funções propriamente institucionais arroladas na Constituição

Federal.

Ressalte-se ainda que esse desempenho não se restringe à atuação de promotores e

procuradores no âmbito estritamente dos procedimentos judiciais, não se circunscrevendo aos

gabinetes, tribunais e demais espaços judiciais, tendo em vista que “a atividade fora de

gabinete e a busca de soluções extrajudiciais orientam parte considerável das atividades dos

integrantes da instituição” (SADEK, 2008, p. 119).

Assim, buscar compreender as motivações desses agentes implica uma análise mais

detida, na qual deve ser analisada não somente as ações desenvolvidas na esfera jurídica

propriamente dita, mas também as ações realizadas fora do gabinete, feitas de maneira

voluntária e relacionadas, muitas vezes, a comprometimentos de ordem ideológica.

A análise desse grau de influência de fatores externos às atribuições dos membros do

Ministério Público é resultante de uma série de fatores e variáveis, “cuja mensuração é difícil

e dependente de análises empíricas que levem em consideração o contexto econômico, social

e político” (SADEK, 2008, p. 118). Nesse sentido, Sadek afirma que para a realização de um

“retrato” mais bem acabado no Ministério Público que surge no contexto pós-1988, aos traços

provenientes de estímulos oriundos da esfera legal-normativa devem ser acrescidos e

combinados traços de natureza demográfica e sociológica.

Ainda conforme pesquisas realizadas pela autora, houve um grande crescimento

numérico de promotores e procuradores em todo o país no período compreendido entre 1988 e

Page 93: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

92

200848, de modo que esse aumento expressivo guarda relações com as alterações verificadas

na instituição. Conforme destaca a autora:

O mero fator numérico já provocaria alteração nas características da corporação. O tamanho o grupo faz a diferença. Ou seja, independente de outros aspectos, a transformação de um grupo restrito em um de tamanho maior tem capacidade de gerar aumento no grau de heterogeneidade interna. Com efeito, o crescimento na quantidade de promotores e procuradores implicou alterações na composição etária, de gênero e extração social, no tipo da experiência anterior; na ideologia; em termos doutrinários (SADEK, 2008, p.122).

Essa heterogeneidade interna se revela no maior empenho com que alguns membros se

dedicam às funções e às atribuições institucionais, sendo alguns mais voltados a persecução

penal enquanto outros se dedicam de forma mais acentuada para a defesa da sociedade e dos

direitos sociais de forma que “a opção por este último extremo favorece a presença pública, e

maior visibilidade, já que crescem, proporcionalmente, as iniciativas voltadas à defesa dos

direitos sociais, da probidade administrativa, da moralidade pública” (SADEK, 2008, p. 119).

Esse empenho no que concerne à atuação como agente promotor da cidadania e

defensor da sociedade – bem como pela “opção pelos mais pobres” – tem relação, muitas

vezes, com a história de vida desses agentes e seus relacionamentos estabelecidos

previamente à entrada no espaço judicial que direcionaram, conscientemente ou não, suas

escolhas profissionais a uma articulação com suas concepções ideológicas.

Nesse sentido, buscando discorrer sobre alguns agentes no âmbito do Ministério

Público Federal49, sistematizamos algumas informações sobre três membros desta instituição:

a Subprocuradora-geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, o

Procurador da República no estado do Pará, Felício Pontes Júnior e o Procurador da

República no estado do Maranhão, Alexandre Silva Soares.

O critério de escolha por estes agentes deveu-se a fatores estruturais – como

possibilidade de acesso, facilidade de obtenção de materiais informativos (institucionais ou

não) sobre os mesmos etc. – bem como pela grande visibilidade que possuem por conta das 48 De acordo com Sadek (2008, p. 122) “segundo dados obtidos na Conamp, enquanto em 1988 o Ministério Público dos Estados somava 4.300 integrantes, em 2008 passaram a ser 13.428. Em vinte anos, multiplicou-se por três o número de procuradores e promotores atuando em todas as unidades da Federação. O mesmo ocorreu com o Ministério Público da União”. 49 No Ministério Público Federal, conforme informações obtidas no site oficial da instituição, os membros iniciam a carreira no cargo de Procurador da República, por meio de aprovação em concurso público específico para o ramo. Quando promovidos, passam a exercer o cargo de Procurador Regional da República e, após nova promoção, o de Subprocurador-geral da República, último cargo da carreira. Ainda conforme dados obtidos no site oficial, a instituição conta com 633 Procuradores da República (12 no estado do Maranhão e 08 no estado do Pará); 188 Procuradores Regionais da República e 58 Subprocuradores da República. Disponível em: www.pgr.mpf.gov.br. Acesso em 20/11/2011.

Page 94: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

93

ações judiciais e atividades extrajudiciais que desenvolvem no que concerne à defesa de

povos indígenas, quilombolas e “povos e comunidades tradicionais”.

A atual Subprocuradora-geral da República50 Deborah Macedo Duprat de Britto

Pereira, graduou-se em direito pela Universidade de Brasília (UNB), possuindo mestrado em

Direito e Estado, pela mesma instituição. Seus trabalhos, publicados por editoras comerciais

bem como pela Procuradoria Geral da República versam, predominantemente, sobre questão

indígena e quilombola, tal como se observa pela sua produção bibliográfica.

Tal produção inclui os livros: “O papel do judiciário” (2006), “Breves considerações

sobre o Decreto no 3.912/01 (2002), “O direito de ser índio e seu significado” (2000), “500

anos sem liberdade e igualdade” (2000), “Para índio, terra é vida, não propriedade” (1999); os

capítulos de livros: “O estado pluriétnico” (2002), “Os fundamentos jurídicos da titulação das

terras de Quilombos” (2001), “Declaração da área indígena Yanomami por forma contínua”

(1990).

No que diz respeito às suas motivações para atuar junto a esses grupos, Deborah

Duprat revela:

Eu sempre quis trabalhar com a questão indígena, e, curiosamente, tão logo entrei no Ministério Público Federal, por razões absolutamente fortuitas, tive essa oportunidade. Em 1987, salvo engano, atuei em um habeas corpus, contra a expulsão do Paulinho Paiakan do Brasil. Quando veio a Constituição de 1988, foi instituída, no âmbito do MPF, uma comissão para tratar da temática indígena, e a integrei já em sua primeira composição. Em 1989, eu e o colega Eugênio Aragão ingressamos com a primeira ação para assegurar, ao povo yanomami, território tradicional nos moldes em que delineado pela Constituição. Desde então, e depois como membro da 6ª Câmara, prossegui atuando na matéria. Em relação aos quilombolas, acredito que por volta de 1992, 1993, nos foram apresentados os trabalhos do Rafael, geógrafo e professor da UnB. Começamos, de alguma maneira, a elaborar teoricamente a questão, que não nos parecia muito clara. Já havia algumas iniciativas do MPF, no Vale do Ribeira, em São Paulo, e Oriximiná, no Pará, onde a discussão a respeito do que era quilombo já se colocava. Por outro lado, existia uma disputa entre as instituições. Então, a 6ª Câmara assumiu o papel de chamar essas várias instituições para que juntos pensássemos competências e instrumentos que pudessem viabilizar os direitos assegurados às comunidades quilombolas51.

De acordo com a Subprocuradora-geral, ao tentar reconstruir sua história de vida, a

opção pelo direito deveu-se menos a critérios relacionados a questões de ordem financeira e

50O Procurador-geral da República exerce a chefia do Ministério Público da União e do Ministério Público Federal, além de atuar como Procurador-geral Eleitoral. É escolhido e nomeado pelo presidente da República, e seu nome deve ser aprovado pela maioria absoluta do Senado Federal (www.pgr.mpf.gov.br). 51 SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.

Page 95: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

94

econômica, pois, conforme afirma em entrevista publicada em sites especializados na área

jurídica52: “Quando fui estudar direito, nunca pensei em me dedicar ou especializar nas áreas

tradicionais. Na verdade, nunca pretendi fazer algo que me deixasse rica”. Ainda segundo a

matéria, a opção pelas “classes menos favorecidas” começou antes da sua aprovação, em

1987, para o concurso da Procuradoria da República. Segundo Duprat "Meu primeiro trabalho

em 1985, quando voltei do Rio (...) foi com o ministro Armando Rollemberg, com quem

aprendi muito em termos de preocupação com as classes menos favorecidas”.

Deborah Duprat ao exercer, ainda que interinamente, o cargo de Procuradora-geral da

República (PGR), foi a primeira mulher a ocupar o comando da instituição53, tendo

permanecido no cargo no período de 29 de junho até 22 de julho de 2009, quando da

nomeação do Procurador Roberto Monteiro Gurgel Santos para o provimento definitivo do

cargo pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.

Pela centralidade do cargo ocupado, Deborah Duprat conta com bastante visibilidade

institucional e midiática, “trunfos” por ela utilizados para disseminar as suas concepções

sobre direito e justiça. Cumpre destacar que, considerando os posicionamentos polêmicos

assumidos frente ao Judiciário, a mesma é alvo de muitas críticas junto aos setores mais

conservadores do direito.

A título de exemplo, mencione-se que durante o curto período que assumiu a

presidência da PGR (menos de um mês), Deborah Duprat propôs inúmeras ações polêmicas

perante os órgãos de cúpula do judiciário: ações a favor da união homoafetiva; solicitação ao

STF para que fosse garantido aos transexuais o direito de trocar de nome mesmo que ainda

não tenham realizado a operação de mudança de sexo; posicionamentos favoráveis ao aborto

de anencéfalos; questionamento do STF (Supremo Tribunal Federal) acerca de decisões

judiciais que proibiam atos públicos pró-legalização das drogas e, contrariando também ao

governo, ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade questionando artigos da Lei

11.952/2009, baseada na Medida Provisória 458, que trata da regularização fundiária de

posses na Amazônia Legal. Segundo avaliação da Subprocuradora, o texto da lei deixou

brechas para “privilégios injustificáveis em favor de grileiros que se apropriaram ilicitamente,

no passado, de vastas extensões de terra pública”54.

52 HOLLANDA, Eduardo. Deborah, uma defensora dos indígenas, é Procuradora-Geral por 10 dias.

Disponível em: http://www.revistabrasileiros.com.br. Acesso em: 30 de janeiro de 2011. 53 Dados obtidos junto ao site oficial da Procuradoria Geral da República. Fonte: www.pgr.mpf.gov.br. 54 DOLME, Daniella. Ousada, Deborah Duprat se destaca como a primeira mulher no comando da PGR.

Matéria veiculada no site: www.ultimainstancia.uol.com.br. Acesso em: 30 de janeiro de 2011.

Page 96: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

95

Enquanto Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério

Público Federal (cargo que ocupa desde 2004) e que trata especificamente dos direitos das

populações indígenas e minorias étnicas, Deborah Duprat é autora de inúmeras peças e

pareceres, bem como de artigos publicados em sites de movimentos sociais que atuam na

temática ambiental (como Instituto Socioambiental, ONG Racismo Ambiental etc.), nos

quais, freqüentemente, contesta a interpretação e aplicação “acrítica” e “fragmentada” do

direito por parte dos operadores jurídicos.

No que tange a interpretação jurídica, sobretudo temas como direitos humanos,

indígenas, quilombolas, meio ambiente e demais direitos sociais, Duprat afirma:

Se prevalece a compreensão do direito estatal como corpo de normas objetivo, neutro e determinado – visão por muito tempo naturalizada – desfaz-se o compromisso com a pluralidade. Um significado aparentemente claro da norma atesta apenas a hegemonia de uma interpretação específica (DUPRAT, 2007, p. 22).

Ainda no que se refere à interpretação da norma jurídica, Deborah Duprat evidencia

um posicionamento bastante peculiar, uma vez que a Subprocuradora-geral da República

defende o não monopólio dos juristas na interpretação de uma norma jurídica. Conforme

destacado no livro “Pareceres Jurídicos – Direito dos Povos Tradicionais” (2007, p. 18), no

qual figura como organizadora:

É preciso, portanto, em primeiro lugar, desfazer a noção de que o intérprete, por uma dada competência, está habilitado a decifrar, por si só, uma norma em abstrato. Não há esse ato de deciframento prévio. Norma e prática se interpelam o tempo todo, e aquela só tem sentido à vista desta. Depois é preciso por mandamento constitucional, reconhecer ao grupo e aos seus membros a sua liberdade expressiva. Há aqui um deslocamento da terceira pessoa para a primeira. São elas que apresentam o ambiente no qual se faz uso da norma e a atenção que a ela conferem. Só então, compreendido o contexto de uso revelado pelos próprios agentes e, a partir daí, o sentido da norma, será possível, ao aplicador do direito, decidir adequadamente.

Deborah Duprat acredita ainda que é necessária uma profunda reformulação dos

cursos de direito, exatamente para que a defesa dessas minorias étnicas e sociais passe a ser

prioridade. Conforme destaca em entrevista dada a Eduardo Holanda:

O direito é uma ciência social. É um absurdo que, no currículo das faculdades, sejam dados oito semestres de direito civil e apenas um de direito constitucional, por exemplo. Os cursos precisam ter uma orientação holística, serem interdisciplinares. Aliás, não apenas no direito55.

55 HOLLANDA, Eduardo. Deborah, uma defensora dos indígenas, é Procuradora-Geral por 10 dias.

Disponível em: http://www.revistabrasileiros.com.br. Acesso em: 30 de janeiro de 2011.

Page 97: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

96

Ainda com relação à formação jurídica e os reflexos dessa formação nas questões

atinentes a esses grupos – que extrapolam o âmbito do Judiciário, se fazendo repercutir no

Poder Executivo, sobretudo nos órgãos relacionados à questão fundiária – Duprat assevera,

em entrevista concedida a Gilda Santos e Gilson Afonseca:

Ninguém está preparado. Não é um problema só do INCRA, não é um problema só do Ministério Público, não é um problema só do Judiciário. Acho que começa nos nossos cursos, nas nossas universidades. O curso de direito ainda é marcadamente privatista. São seis semestres estudando direito civil. Direitos humanos, quando muito, um assunto de direito constitucional, de breve referência. Sobre quilombos não se fala, sobre índios não se fala56.

Com vistas a superar o que chama de “distorção”57 e devido ao cargo ocupado no

âmbito da Procuradoria Geral da República, Deborah Duprat afirma que tem buscado,

juntamente com outros membros do Ministério Público Federal, tencionar para que

determinados conteúdos sejam contemplados nos processos de seleção dos concursos para

Procuradores da República, considerados dos mais concorridos e difíceis do país. Conforme

destaca:

Aumentamos o número de questões das provas sobre direitos humanos, indígenas, quilombolas, meio ambiente, enfim, direitos sociais como um todo. Mesmo quem nunca viu isso nas faculdades, vai ter que estudar a fundo senão não é aprovado. As novas turmas de procuradores já trazem muita gente com esse tipo de preocupação. Acho que a diferença na atuação do Ministério Público Federal será sentida, para melhor, em pouco tempo.

Essa preocupação com temáticas como direitos humanos, meio ambiente e questões

relacionadas aos “povos e comunidades tradicionais”, contudo, se faz sentir na atuação não só

de procuradores aprovados nos últimos concursos realizados para preenchimento de vagas no

cargo. Procuradores há mais tempo atuando junto ao Ministério Público Federal, como é o

caso do Procurador da República no estado do Pará Felício Pontes Júnior, também

demonstram essa preocupação.

O Procurador Felício Pontes Júnior graduou-se em direito pela Universidade Federal

do Pará, no ano de 1988, e cursou por quatro anos o mestrado em Teoria do Estado e Direito

56 SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007. 57 Conforme matéria publicada por Eduardo Hollanda no site www.revistabrasileiros.com.br, “Deborah considera que a maioria dos estudantes pensa em se especializar em ramos do direito que os deixem ricos, ‘como o novo queridinho, o direito tributário’. Ela acha que é uma distorção que precisa ser corrigida, pois processos nessas áreas são menos de 2% das causas em tramitação. ‘Em um país como o nosso, a quem interessa direito de herança, a não ser a uma parcela ínfima da sociedade?’, critica”.

Page 98: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

97

Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, entre 1989 e 1993.

Durante a realização do mestrado, Felício Pontes Júnior advogou junto ao Centro de Defesa

dos Direitos Humanos Bento Rubião, na cidade do Rio de Janeiro, atuando, sobretudo, com as

causas relacionadas aos direitos da criança e do adolescente.

Essa atuação profissional, concomitantemente realizada ao curso de mestrado,

possibilitou a conexão entre a experiência prática de advocacia e a construção do seu trabalho

de conclusão do mestrado, versando sobre direito das crianças e adolescentes. Conforme

revela:

Eu fui advogado quando o estatuto estava nascendo, eu participei até da construção do Estatuto da Criança e do Adolescente (...) Meu trabalho foi sobre o direito de participação política e eu trazia dois instrumentos de participação direta, que estavam no estatuto, que era o conselho de direitos da criança, como um dos exemplos – era a última parte da dissertação – de instrumento de participação direta da população na formulação das políticas públicas para a infância. Então, quer dizer, tem toda uma formação nessa linha aí, mais social (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Ainda sobre essa relação existente entre trabalho prático e trabalho teórico, Felício

Pontes Júnior afirma que a composição do corpo discente do curso de mestrado possibilitava

uma formação mais crítica e voltada para a intervenção social, diferentemente do curso de

direito, que, em suas palavras, “formavam pessoas para que pudessem sustentar o status quo”.

Conforme revela:

Acho que daria para contar nos dedos de uma mão só durante o curso inteiro aqueles que alguma coisinha falavam sobre o sistema ou que deixavam que a turma pudesse pensar sobre a questão da legitimidade ou não das normas jurídicas (...) No mestrado, nos tínhamos cientistas sociais, psicólogos, tínhamos historiadores... Acho que me proporcionou uma riqueza de conhecimento muito grande. Por que você imagina, nos passávamos quase quatro anos juntos, acho que éramos 15 pessoas, e cada um de um lugar diferente do Brasil, então era, foi uma experiência riquíssima para mim... Acho que tudo que a universidade tentou fechar os olhos só para o mundo jurídico, o mestrado me abriu (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Essa interseção entre o trabalho propriamente jurídico e o trabalho de conscientização

da população sobre os seus direitos esteve presente na atuação profissional de Felício Pontes

Júnior antes do ingresso no MPU, da mesma forma que, no seu ponto de vista, as esferas

jurídica e social deveriam ser vistas como indissociáveis, percepção que também é constatada

na sua atuação como procurador. Conforme revela:

A gente tem muita confusão aqui no estado (Pará), então acaba tendo muita gente que faz a posição de vanguarda nessa questão de misturar o lado jurídico com o social. Eu, na verdade, não saberia como é que “desmistura” isso, como é que você separa isso, pra mim é uma coisa que tá muito ligada

Page 99: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

98

na outra, todo mundo, principalmente quem trabalha com o direito público, mas não só ele, eu vejo no direito privado também, que não há como você fazer essa separação. (...) Se você pega os grandes juristas nacionais, Afonso Arinos, o maior de todos, Rui Barbosa, as peças deles, quem já teve a oportunidade de ver isso, não desassociam uma coisa da outra (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Felício Pontes Júnior afirma que o período de democratização vivenciado no Brasil no

final da década de 1980 influenciou sobremaneira a sua formação. Durante a sua graduação

em direito vigorava, ainda, a ditadura militar, com todos os reflexos do autoritarismo no

sistema educacional, contudo, quando do seu início no mestrado se vivia no país um momento

de muita efervescência, social e política devido à recente promulgação da Constituição

Federal. Nesse momento que o Ministério Público ganha o status de defensor da sociedade e

sobre a esse momento, destaca Felício Pontes Júnior:

Eu me lembro que na época se discutia se nós íamos ter no Brasil a criação de um novo órgão para fazer a defesa da sociedade ou incorporaria isso ao Ministério Público e aí venceu essa segunda tese. Então foi uma hora de muita, de uma efervescência cultural muito forte, aí eu fui formado nesse período de muita esperança também. Fui formado nesse período, de quando o direito se abriu de novo. Que até ali o direito estava fechado, extremamente conservador, com uma política própria mesmo, como se ele fosse um fim em si mesmo. Com a Constituição, o direito se abre e eu vou para PUC, para uma universidade católica, estudar mestrado em Direito Constitucional. Então, era um momento riquíssimo de discussão, sabe, era um momento de sonhar com um novo país mesmo (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Após a conclusão do mestrado e como decorrência das experiências profissional e

acadêmica realizada nesta área, Felício Pontes Júnior foi chamado pra ser fiscal de projetos

sociais do UNICEF, em Brasília, atuando na área de financiamento de projetos que levassem

em consideração a promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Sobre essa

experiência Felício Pontes afirma: “foi uma época muito boa, pessoalmente, porque eu corria

o Brasil todo na busca desses projetos e no incentivo a esses projetos que o UNICEF queria

financiar”. Sobre a possibilidade de continuar atuando nesta instituição, o Procurador afirma:

Eu fiquei lá, acho que dois anos, foi, porque depois queriam me levar pro exterior, aí eu dizia que não queria sair, dizia que tinha muita coisa para fazer... Não era meu plano ir embora, meu plano era voltar para Amazônia e trazer todo esse conhecimento para cá. E eu, desde o início da faculdade, eu achava que o melhor lugar para aplicar esses conhecimentos era o Ministério Público, e o Ministério Público Federal. Era onde a gente tinha maior autonomia, maior liberdade, maior atribuição, maior infraestrutura para aplicar tudo isso, era o Ministério Público Federal. E aí eu volto para cá, fico dando aula de direito nas universidades aqui no Pará, principalmente para os

Page 100: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

99

cursos de Serviço Social. Eu ficava dando aula e me preparando para o concurso (Entrevista realizada em 27/05/2011).

O ingresso no Ministério Público Federal se deu após a aprovação de concurso,

realizado no ano de 1996, tomando posse no cargo inicial de Procurador da República em

1997. Acerca da instituição do Ministério Público, Felício Pontes Júnior, em entrevista

concedida ao IHU On-line, afirma que:

Acho que o Brasil tem uma experiência extraordinária com o Ministério Público. Uma coisa que salta aos olhos dos outros países é ver a independência dessa instituição, de como pode ser uma instituição ao mesmo tempo atrelada ao poder público, paga pelo poder público, e que consegue atuar independentemente dele. Acho que essa foi uma grande conquista da sociedade brasileira na Constituição de 1988. Nós conseguimos ter, como Procuradores da República ou Promotores de Justiça, uma atuação independente. O Procurador da República age na defesa da sociedade, não na defesa do governo. No momento em que o Ministério Público entra com uma ação contra alguém que cometeu um crime ambiental, está automaticamente defendendo a sociedade daquele que cometeu o crime58.

Conforme se evidencia nos relatos de Felício Pontes Júnior, o ingresso nesta

instituição se colocava como um objetivo profissional, tendo em vista sua percepção das

afinidades entre as práticas profissionais anteriormente exercidas como advogado e as

expectativas acerca dessa instituição e dos membros que a compõem. Conforme destaca:

O Ministério Público, se eu pudesse sintetizar, numa frase, a função dele, é fazer a defesa da sociedade (...) Então, se essa é a missão, você tem que tá muito enraizado, muito próximo, trabalhando dentro da sociedade para a qual você vai defender. E eu acho que trabalhar para essa sociedade é expor para ela a mesma coisa que eu fazia quando eu comecei a carreira jurídica, como advogado no Centro de Defesa no Rio, a mesma coisa que você tem que fazer, é o quê: não tratar a sociedade como um objeto de estudo, mas como um sujeito de direito (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Percebe-se que, na sua concepção sobre a função de um procurador do Ministério

Público, há uma continuidade entre as práticas desenvolvidas anteriormente à entrada na

respectiva instituição e as suas experiências profissionais e acadêmicas.

Procurando explicar de que modo a sua trajetória influencia as suas tomadas de

posição como Procurador da República, Felício Pontes Júnior ressalta que a sua relação com

as temáticas de direitos humanos, direito ambiental e “povos e comunidades tradicionais” é

anterior à entrada na faculdade e que possui uma relação muito próxima com essas causas,

58 IHU ON-LINE. Belo Monte de problemas. Entrevista especial com Felício Pontes Júnior. Disponível em: www.diarioliberdade.org. Acesso em: 20 de junho de 2011.

Page 101: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

100

sobretudo pelo fato de seu avô ser canoeiro e pescador, vivendo também do extrativismo no

município de Abaetetuba, no estado do Pará.

Assim sendo, embora nascido na cidade de Belém, Felício Pontes Júnior passou parte

de sua infância e de sua juventude no município de Abaetetuba e pode constatar as

transformações acarretadas pela chegada de grandes empreendimentos na região. A percepção

de tais transformações e das injustiças – tanto sociais, quanto ambientais – decorrentes da

implantação de grandes projetos, são apresentadas como constituintes de um olhar mais

crítico sobre essa realidade. Conforme afirma:

E naquele tempo, quando eu começo a me entender por gente, é que começa a implantação do projeto Albrás-Alunorte no município de Barcarena. Esse projeto se instala em Barcarena, mas os efeitos dele se irradiam por toda a região, principalmente na cidade de Abaetetuba que era a maior cidade daquela região. Então, eu pude ali ver como era a qualidade de vida das pessoas antes, durante e depois do projeto. E esse projeto vinha, eu lembro, que toda a parte de marketing era de que “agora chegou o progresso na Amazônia, desenvolvimento, nós vamos agora ter melhor condição de vida, tudo vai melhorar” e eu pude sofrer exatamente os impactos disso, ver o quanto isso piorou, o quanto isso deteriorou. E hoje, passados 20 e tantos anos desse projeto já implantado, eu posso dizer com clareza mesmo, de experiência própria, que nós tínhamos antes uma qualidade de vida muito melhor do que nós temos hoje. Acho que as pessoas até morriam muito mais velhas na época em que eu era criança do que morrem agora, principalmente a população mais próxima ali de Barcarena expostas aos detritos da bauxita, aquela transformação em alumínio, que tem causado um problema de saúde, de contaminação de igarapés, de rios. Existem igarapés e rios que foram lugares muito marcantes na minha infância e que eu vi já na minha adolescência já completamente estragados, deteriorados e as pessoas doentes por conta disso e tudo. Então foram, eu acho que eu sofri na pele mesmo, do ponto de vista pessoal, o impacto de um grande projeto na Amazônia. Isso vai marcar minha trajetória toda, isso vai marcar, porque eu acabei sem querer tendo mestrado, doutorado e pós-doutorado na área, porque sem querer eu comecei a perceber todos os efeitos danosos sobre a população local, sobre a população da Amazônia, desses grandes projetos. Isso abre os olhos da gente não só para esses aspectos ambientais, mas pros sociais também, de quanto não é levado em consideração a população da Amazônia, a população diretamente afetada por esses projetos (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Além dessa experiência pessoal, a sua trajetória escolar também é apresentada como

guardando continuidades com a sua opção profissional, pois, conforme afirma, Felício Pontes

Júnior estudou em escolas católicas, nas quais seria possível se fazer um questionamento

sobre a realidade vivenciada.

Eu tive uma formação muito forte por ter estudado (...) em escolas católicas, e isso deu, e num tempo em que, talvez a única maneira de se questionar a realidade era dentro de uma escola católica (...). Então, o ensino religioso foi muito forte para mim, eu cheguei até a dar aula em catecismo, eu cheguei até a ser professor de formação religiosa para crianças e isso foi muito

Page 102: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

101

instigante, em Abaetetuba e Belém, nos dois (...) E essa formação religiosa me permitiu fazer encontro de jovens no interior, com comunidades do interior, que eram muito parecidas com aquela que eu vivia e que também sofreram um impacto muito forte na área desses projetos sociais e num tempo, bem no meio da ditadura (...) Eu lembro, era nessas comunidades do interior que a gente se reunia em casa de farinha, morava junto com as pessoas lá, os encontros eram feitos assim. Então a gente tinha acesso a textos, a livros que não era comum nenhum jovem ler (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Em outro trecho da entrevista, o Procurador revela sua visão das continuidades entre a

sua formação religiosa e a afinidade com o Ministério Público no que tange à opção pelos

mais pobres e desassistidos, tendo em vista que:

A igreja tinha uma frase que dizia bem isso, que ainda hoje é aplicada, mas não tão em voga como antes, que era a opção preferencial pelos pobres, que foi uma determinação tirada na conferência, no congresso de Puebla, no México, ainda tava no final do regime ditatorial no Brasil, e isso perpassou a Igreja e não devia nunca ter saído da missão principal da igreja. Eu acho que quem faz isso dentro do sistema jurídico nacional é o Ministério Público. O Ministério Público não pode escolher, ele tem que ter uma opção preferencial pelos pobres e no sentido de fazer com que esses pobres possam viver com dignidade mesmo, que não tenham seus direitos violados, que possam ter reconhecidos seus direitos, eu acho que essa é a missão da gente (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Atuando, desde 1997, em inúmeros casos envolvendo direitos humanos e direitos

ambientais, além da tutela de povos indígenas, o Procurador da República recentemente

ganhou visibilidade midiática no âmbito nacional ao atuar de maneira mais efetiva no

chamado “caso Belo Monte”.

Felício Pontes Júnior é constantemente procurado pela imprensa para se pronunciar

sobre a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Em entrevista publicada na página

eletrônica “Diário Liberdade”59, o Procurador informa que, ao longo de cerca de uma década

de trabalho e investigação, mais de 10 ações judiciais contra o governo federal foram

produzidas, ações que envolvem irregularidades no processo de licenciamento ambiental do

projeto, problemas relacionados ao fluxo migratório para as cidades paraenses e viabilidade

técnica do empreendimento.

O Procurador Felício Pontes Júnior, por conta dessa visibilidade, goza de bastante

prestígio e representatividade junto aos movimentos sociais, conforme atesta a nota do

Movimento “Xingu Vivo” em defesa do Procurador da República e do Ministério Público

59 IHU ON-LINE. Belo Monte de problemas. Entrevista especial com Felício Pontes Júnior. Disponível em: www.diarioliberdade.org. Acesso em: 20 de junho de 2011.

Page 103: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

102

Federal, distribuída no seminário “Usina Hidrelétrica de Belo Monte: desenvolvimento para

quem?”, realizado na UFPA em 12 de maio de 2011 e assinada por mais de uma centena de

movimentos sociais, conforme abaixo, bem como em inúmeras cartas de apoio que circulam

em listas de e-mail na Internet.

Page 104: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

103

Em contrapartida, ao mesmo tempo em que desfruta de grande legitimidade junto aos

movimentos sociais, o Procurador é extremamente criticado por setores mais diretamente

ligados ao discurso desenvolvimentista e aos interesses econômicos do país, quer tais setores

estejam situados no governo, em suas diferentes esferas, quer no setor empresarial60, fato este

que pode ser ilustrado pela representação, no Conselho Nacional do Ministério Público,

apresentada pelo consórcio Norte Energia S.A (NESA) 61.

Acerca do blog www.belomontedeviolencias.blogspot.com de sua autoria, que motivou

a representação da citada empresa, o Procurador, reafirmando uma postura que se manifesta

desde o início da sua atuação com a temática dos direitos humanos, ressalta que:

O blog é uma tentativa de mostrar o que está em 12 volumes de processo – alguns processos com 20 volumes – de uma linguagem jurídica extremamente pesada, tendo do outro lado advogados da União, procuradores do IBAMA, advogados das maiores empresas desse país e tudo. Tentar pegar isso tudo e transformar numa linguagem que qualquer pessoa do povo possa entender. O blog tem essa missão, e acho que tudo isso foi experiência que eu tive durante toda a minha vida, de tentar transformar essa linguagem jurídica em algo que... Por que na minha cabeça, não tem nada dentro do direito, que a gente esteja fazendo, sobretudo quando se está trabalhando com o direito público, que não possa ser compreendido por quem vai ser beneficiado por ele. Tudo que a gente está fazendo tem uma causa, uma lógica, não é nada de outro mundo que não se possa entender (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Ainda de acordo com o Procurador, a necessidade de “desmistificar o direito” foi

buscada de forma consciente na sua atuação jurídica, o que pode ser ilustrado pela sua

preocupação – tanto no mestrado quanto na primeira experiência profissional como advogado

do Centro de Defesa, conforme já assinalado – de traduzir causas sociais para causas jurídicas

60 Essa situação se aproxima daquela analisada por Sadek (2008, p.123) com relação à atuação do Ministério Público, pois, conforme destaca a autora, “Hoje, dificilmente se encontra um tema, um conflito, uma campanha, uma denúncia, uma investigação em que o Ministério Público não esteja presente. E não se trata de qualquer presença. É uma presença de relevo. Em conseqüência, tem crescido, simultaneamente, o apreço e as críticas. Não vai aí nenhum paradoxo. O apoio e aplauso vêm principalmente da oposição, de minorias, de ONGs, da imprensa. As críticas mais mordazes, por sua vez, são vocalizadas pelo governo, políticos da situação, setores da magistratura, da polícia, advogados e de grandes empresas” (SADEK, 2008, p. 123). 61 Conforme matéria publicada pela Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal do Pará no site oficial da instituição (www.pgr.mpf.gov.br.), “a NESA pede o afastamento do procurador do caso Belo Monte devido à publicação, em seu blog, de uma série de artigos sobre os processos judiciais contra a usina hidrelétrica, bem como a retirada do link www.belomontedeviolencias.blogspot.com do site do Ministério Público Federal no Pará, sob alegação de que o blog ‘incita à violência’, ‘utiliza-se de informações privilegiadas’, tem o ‘nítido propósito de inviabilizar a construção da hidrelétrica de Belo Monte’, alegando ainda que o blog de Felício Pontes Júnior fere ‘a autonomia do Poder Executivo, na medida em que expõe os atos administrativos dos órgão competentes à execração pública, taxando-os de ilegais e irregulares’. Na sua defesa apresentada, Felício Pontes Jr. enfatiza que a reclamação tem um caráter autoritário evidente e carece de substância, afirmando ainda que ‘se esse pensamento vigorar, o governo não pode ser criticado, ainda que as críticas expostas no blog tenham como origem autos processuais. Se assim for, não só o direito à informação deve ser abolido, mas também o direito de expressão’”.

Page 105: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

104

e possibilitar a compreensão dos instrumentos jurídicos pela população, sobretudo a mais

desassistida, quer por meio de palestras informativas quer por meio de publicações62 que

possam ser apropriadas e instrumentalizadas pelos grupos sociais. Conforme afirma:

Uma coisa que a gente usava muito na época, uma expressão chamada “desmistificar o direito”. Então, eu tinha que “desmistificar o direito” tanto no mestrado – porque o mestrado era basicamente para que eu pudesse dar aula também, então eu tinha que ler livros toda semana e apresentar aula para todo mundo, pros companheiros de aula que não eram formados em direito e isso foi muito cativante e ao mesmo tempo eu aprendi muito com isso, porque eu tinha que traduzir, eu tava falando o tempo todo pra quem não tinha formação jurídica – e no Centro de Defesa eu tinha que fazer as duas coisas, por que eu tinha que tá correndo com os processos no fórum do Rio de Janeiro, utilizando a linguagem jurídica, mas para que, chegasse a esse ponto lá, eu tinha que ter trabalhado isso antes, nas favelas do Rio (...). Então, nos tínhamos muitos encontros onde eu fazia muitas palestras para essas pessoas sempre no sentido de “desmistificar o direito”, de dizer que havia instrumentos jurídicos, por exemplo, que poderiam ser apropriados por essas pessoas, como habeas corpus, que não precisava de advogado, que nas prisões ilegais poderiam fazer e até exercitar esses instrumentos com essas pessoas (...). Então, eu acho que eu fui toda vida tentando fazer isso, “desmistificar o direito” (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Também com destacada atuação nas questões envolvendo conflitos socioambientais

no âmbito do MPU, menciona-se o Procurador Geral da República no estado do Maranhão,

Alexandre Silva Soares. Tendo sido aprovado para o cargo de Procurador da República no

ano de 2005, Alexandre Silva Soares ingressou no Ministério Público, originalmente, no

estado do Pará, atuando como Procurador Chefe Substituto, junto com o Procurador da

República do Estado do Pará Felício Pontes Junior, até o ano de 2007.

Conforme revela em entrevista, o Procurador graduou-se em direito na Universidade

Federal do Maranhão no ano de 2002, tendo exercido, antes da entrada no Ministério Público

Federal, as atividades de docência em uma universidade particular de São Luís e uma rápida

experiência como assessor jurídico da Diocese de um município no Maranhão, por oito meses.

Conforme relatado por Alexandre Silva Soares, sua atuação se dá nas causas

ambientais e de populações tradicionais63, uma área em que atua desde o ano de 2007 no MPF

62 Quando questionado sobre publicações sobre a sua temática de estudo no mestrado, Felício Pontes destacou que o incentivo recebido na pós-graduação era de que os estudos realizados fossem publicados como forma de possibilitar um processo de apropriação de conhecimento pela população. Conforme destaca: “a editora Malheiros de São Paulo publicou uma série chamada Direito da Criança e eram uns livrinhos para a população entender aquilo que tava acabando de nascer. Eu participei dessa série com um dos livros que é sobre o conselho de direitos da criança e do adolescente” (Entrevista realizada em 27/05/2011). 63 A distribuição dos processos entre os Procuradores da República no estado do Maranhão obedece a uma sistemática parecida com a verificada no Ministério Público Federal no estado do Pará, pois existem duas formas de atuação na área ambiental, que embora integradas, são distintas: as áreas penal (criminal) e cível, a primeira com um viés mais repressivo e a segunda com viés mais preventivo. A atuação do Procurador Alexandre Silva

Page 106: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

105

do estado do Maranhão por opção, pois, em suas palavras, “entendi que era oportuno ficar

mais um tempo nessa área em que estou, de meio ambiente e populações tradicionais”

(entrevista realizada em 24/11/2011).

Com relação aos processos tramitando nesta área no estado, o Procurador destaca:

Existe uma vara ambiental aqui em São Luís, Federal. Toda demanda ambiental tramita nessa vara especializada da justiça federal. Ano passado o levantamento que eu fiz, quando a vara foi instalada, era de 500 ações coletivas em matéria ambiental. Então era um número razoável. Eu mesmo – isso ano passado – esse ano eu propus cerca de 50 ações civis públicas em matéria ambiental e nos anos anteriores... acho que ao todo [pausa]... eu acho que eu já propus mais ou menos 90 ações civis públicas em matéria ambiental desde que eu cheguei aqui no Maranhão. Não é um número ainda muito elevado, apesar de corresponder a quase 10% do que está em curso na vara ambiental, mas, assim, considerando o tamanho dos problemas que você tem aqui é pouco ainda (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Ainda com relação a sua atuação na área ambiental e de “povos e comunidades

tradicionais”, o Procurador destaca o desgaste pessoal sofrido por aqueles que defendem tais

causas no âmbito do Ministério Público, tendo em vista a existência de uma repercussão

negativa sobre a imagem dos membros que atuam nessas causas. Conforme afirma:

Eu acho que hoje em dia quem atua na área ambiental no Ministério Público tem fama de ficar com a pecha de louco, porque em geral você vai entrar com ações para barrar a obra, pra desfazer a obra... Então, acaba ficando com uma fama do cara que quer só destruir, e isso numa sociedade que é premente de carências materiais, que vê essas construções, que vê essas melhorias entre aspas como sinônimo de progresso (...). Então, eu acompanho alguns blogs, eu inclusive observo a repercussão de algumas notícias, aí tem algumas coisas que o pessoal escreve: “O que esse Alexandre tem contra o progresso? Deixa o Maranhão crescer procurador”. Eu já recebi uma mensagem desse jeito... (...) Antes de tu chegares aqui, por exemplo, eu tava discutindo com outros procuradores uma recomendação no caso da Via Expressa64, que é um negócio que vai trazer uma repercussão pessoal para mim muito negativa, mas é algo que tem que ser feito. Então, existe um desgaste pessoal muito grande para quem atua na área ambiental, porque é um camarada que é enxergado, socialmente e politicamente, como uma pessoa que defende, na verdade, o atraso, que defende, na verdade, que as coisas fiquem como estão... Numa sociedade onde existe muita demanda por crescimento, modernização, isso é tido como uma característica negativa (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Soares se verifica nas demandas das áreas cíveis envolvendo matéria ambiental e de povos e comunidades tradicionais. 64 Trata-se de um empreendimento do governo do estado do Maranhão visando à construção de uma avenida de nove quilômetros de extensão no município de São Luís e que prevê a supressão de áreas de preservação permanente (como o sítio Santa Eulália) bem como impacta o patrimônio histórico e arqueológico de um bairro centenário do município (o bairro do Vinhais Velho).

Page 107: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

106

Outro aspecto de destaque na entrevista realizada com o Procurador refere-se à

importância atribuída à interlocução com os demais agentes de outras áreas científicas – em

especial na academia – que possuem envolvimento com a temática socioambiental, tal como

professores vinculados aos Departamentos de Ciências Sociais, Geografia, Química, dentre

outros. Sobre esse aspecto, selecionamos o seguinte trecho da entrevista:

Eu acho que lá no Pará, no meio acadêmico, você tem o desenvolvimento de algumas figuras que se tornaram mais conhecidas socialmente do que aqui. Aqui não é que você não tenha, pelo contrário, aqui você tem até alguns professores bem engajados nessa questão ambiental, mas que não tem recepção, tal como o pessoal do GEDMMA65 e algumas poucas pessoas do departamento dessa área (...) A Maristela66 é o maior ícone na academia nessas discussões. Por exemplo, Alcântara, quem escreveu o laudo que nos permitiu recolocar, digamos assim, ou colocar o Ciclone 4 dentro da base, da área da base, foi a professora Maristela. Inclusive a professora Maristela tem contribuído muito com a discussão socioambiental aqui no estado do Maranhão, inclusive não apenas enquanto discussão acadêmica, mas também quanto à adoção de providências por parte de órgão públicos. A mesma coisa com relação à questão do Baixo Parnaíba, no qual ela está trabalhando no caso do eucalipto. Então efetivamente ela tem contribuído muito... (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Ao mesmo tempo em que revela o conhecimento e o reconhecimento do trabalho dos

profissionais de outras áreas disciplinares que não a jurídica para fundamentar as discussões

no âmbito das causas socioambientais – em particular, professores vinculados ao

Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão – o Procurador

Alexandre Silva Soares demonstra preocupação com o que percebe como instrumentalização

às avessas do trabalho acadêmico, por parte de alguns profissionais, no que se refere a essa

discussão.

Tal instrumentalização, segundo o Procurador, verifica-se, sobretudo, por meio da

realização de estudos técnicos e científicos feitos por professores de outros Departamentos da

Universidade com vistas ao fortalecimento dos objetivos das empresas e empreendimentos

direcionados a interesses políticos e econômicos em detrimentos dos direitos de grupos tidos

como tradicionais. Conforme afirma:

Agora, dentro disso, também tem um problema, que a gente tem observado na academia, que é o fato de que tem muita que tá trabalhando no espaço universitário na verdade para prestar serviços para grandes empresas que estão interessadas na degradação, na exploração de recursos ambientais. Isso é um fato que eu acho muito mais marcante na academia, principalmente nas áreas de ciências biológicas, oceanografia, do que a defesa do ambiente. O

65 Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente, vinculado ao Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão. 66 Dra. Maristela de Paula Andrade, professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão.

Page 108: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

107

que tenho visto com mais nitidez é exatamente isso. A utilização dessas ciências – ciências biológicas, ciências ambientais – nos seus quadros para instrumentalizar a operação de empresas no estado do Maranhão (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Essa valoração das diferentes disciplinas científicas e da atuação dos profissionais a

elas vinculadas teria relação com a formação acadêmica do Procurador Alexandre Silva

Soares, pois, conforme afirma em entrevista, durante a graduação em direito, o engajamento

em movimentos (estudantil, de defesa de direitos humanos) e a realização de disciplinas em

outros cursos possibilitou uma tomada de posição mais crítica ante alguns processos sociais.

Nesse sentido, afirma que o envolvimento com as temáticas nas quais hoje atua como

Procurador tem mais relação com experiências vivenciadas fora das salas de aula do curso de

direito. Assim sendo, menciona a realização de estágios extracurriculares e curriculares, junto

a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e ao Centro de Cultura Negra, a realização de

disciplinas em outros Departamentos (como foi o caso da disciplina de Métodos e Técnicas de

Pesquisa, do curso de Ciências Sociais, ministrada pela professora Dra. Maristela de Paula

Andrade) e a participação no Núcleo de Assessoria Jurídico Popular Negro Cosme, da

Universidade Federal do Maranhão. Acerca da experiência no núcleo, destaca o Procurador:

(...) Foi bem interessante para tomar conhecimento desses problemas nos quais hoje eu atuo e também para determinadas formas de atuação que não se limitam apenas a atuação judicial, a atuação de gabinete. Isso aí eu acho que foi um diferencial razoável para formação, sobretudo no modo de agir, no modo de utilizar, digamos assim, o campo do Poder Judiciário também como um campo de afirmação de direitos para as populações tradicionais (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Percebe-se, portanto, a preocupação do Procurador Alexandre Silva Soares em atuar,

na prática jurídica, de uma forma mais ativa e próxima aos grupos considerados tradicionais,

de modo que essa atuação não esteja circunscrita aos limites estritos do espaço judicial.

Assim, a interlocução, na medida do possível, é buscada com estes grupos, e, conforme

afirmado, essa forma de proceder tem relação com uma concepção diferenciada do direito, tal

como observamos também nos depoimentos dos demais membros que compõem o Ministério

Público e aqui foram apresentados.

Além do Ministério Público, agentes situados em outros espaços acabam exercendo

grande influência no que concerne às discussões sobre a ampliação e ao reconhecimento de

direitos. Nesse sentido, destaca-se a atuação de professores da área jurídica – alguns com

atuação anterior como advogados desses grupos e outros com atuação posterior a entrada na

academia no exercício de cargos no Executivo – mas todos com vínculo junto a universidades

Page 109: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

108

federais e estaduais e com uma vasta produção bibliográfica sobre a temática, com vistas à

defesa dos chamados “povos e comunidades tradicionais”.

Dentre esses, podemos situar três professores analisados para fins dessa pesquisa: o

Dr. Joaquim Shiraishi Neto, docente da Universidade Estadual do Amazonas e com vínculo

junto à Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, no estado do Maranhão e doutores Girolamo

Domenico Treccani e José Heder Benatti, ambos da Universidade Federal do Pará.

Conforme dados preliminarmente obtidos junto a fontes secundárias, Joaquim

Shiraishi Neto possui uma atuação atual mais voltada para a produção acadêmica nos temas

relativos a conflitos socioambientais, movimentos sociais e direito dos “povos e comunidades

tradicionais” do que para o exercício da prática da advocacia no que se refere à defesa judicial

desses grupos (embora, tenha atuado como assessor jurídico, sobretudo na década de 1990,

em movimentos associativos em diversos estados da federação, conforme tabela ao final do

trabalho).

Joaquim Shiraishi Neto67 é bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo (1988) e possui mestrado em Planejamento do Desenvolvimento pelo Núcleo de

Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará (1997) e doutorado em Direito

pela Universidade Federal do Paraná (2004).

Ex-professor da Universidade Federal do Maranhão e da Universidade Estadual do

Maranhão, atualmente ministra disciplinas na Universidade Federal do Pará, na Universidade

do Estado do Amazonas junto ao Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental

(PPGDA-UEA) em Manaus – AM e na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, em São Luís

– MA.

Dada a vinculação com diferentes cursos e programas de pós-graduação, não somente

em direito, mas em áreas como sociologia, geografia, políticas públicas dentre outras, muitos

são os artigos, capítulos de livros e obras publicadas, individualmente ou não, por Joaquim

Shiraishi Neto, conforme lista da sua produção bibliográfica que inclui, dentre outras obras,

os artigos: “Novas Sensibilidades Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações

jurídicas” (2011); “Redefinições em torno da propriedade privada na Amazônia: ecologismo e

produtivismo no tempo do mercado (2011); “Idealismo Jurídico como Obstáculo ao ‘Direito à

Cidade’: a noção de planejamento urbano e o discurso jurídico ambiental” (2009); “O campo

jurídico em Pierre Bourdieu: a produção de uma verdade a partir da noção de propriedade nos

manuais de direito” (2008); “Novos Movimentos Sociais e Padrões Jurídicos no Processo de

67 Dados obtidos junto a Plataforma Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Fonte: lattes.cnpq.br.

Page 110: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

109

Redefinição da Região Amazônica” (2008); “Tentativa de Compreensão da Lei de Recursos:

estratégias do capital e "novas" formas de privatização da água” (2007); “Reflexões do

Direito das ‘Comunidades Tradicionais’ a Partir das Declarações e Convenções

Internacionais” (2006).

Com relação aos livros publicados, menciona-se: “Meio Ambiente, Território e

Práticas Jurídicas: enredos e conflitos” (2011); “Conhecimento Tradicional e Biodiversidade:

normas vigentes e propostas” (2010); “Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no

Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma

política nacional” (2007) “Leis do Babaçu Livre: práticas jurídicas das quebradeiras de coco

babaçu e normas correlatas” (2006); “Guerra Ecológica nos Babaçuais: o processo de

devastação das palmeiras, a elevação do preço de commodities e o aquecimento do mercado

de terras na Amazônia” (2005); “Economia do Babaçu: levantamento preliminar de dados”

(2001); “Inventário das Leis, Decretos e Regulamentos das Terras no Maranhão” (1998).

Já como capítulos de livros, tem-se: “Tensões entre o Dito e o Feito” (2011); “The

complex rite of passage from invisible subjects to subjects of rights to attain benefit sharing in

the implementation of the CBD: the case of the babassu breaker women in Brazil (2010); “ O

Direito dos Povos dos Faxinais” (2009); “Conhecimento Tradicional e Biodiversidade:

normas vigentes e propostas” (2008); “O Pluralismo como Valor Fundamental: a co-

oficialização das línguas nheengatu, tukano e baniwa, à língua portuguesa, no município de

São Gabriel da Cachoeira, Estado do Amazonas” (2007); “A Particularização do Universal:

povos e comunidades tradicionais face às Declarações e Convenções Internacionais” (2007);

“Experiências com Áreas Protegidas: cinco estudos de caso” (2003); “As Palmeiras Enquanto

Patrimônio Jurídico Mínimo das Chamadas Quebradeiras de Coco Babaçu” (2002); “Babaçu

Livre: conflito entre a legislação extrativa e práticas camponesas” (2000); “Prá cá não é tão

bom como no Goiás” (2000); “A greve da CELMAR: conflito, direito e mobilização

camponesa” (1998); “Grilagem de Terra no Leste Maranhense” (1995).

Percebe-se pelos títulos de seus trabalhos a circulação deste autor por diferentes áreas

de conhecimento, sobretudo as relativas às Ciências Sociais, conforme mencionado

anteriormente. Essa relação estabelecida com antropólogos e cientistas sociais através de

projetos de pesquisa e publicações em conjunto, possibilita que o seu posicionamento sobre o

Direito e os temas elegidos como fonte de pesquisa e trabalho sejam perpassados pelas

discussões realizadas no âmbito das Ciências Sociais.

Mencione-se ainda a posição de Shiraishi Neto com relação ao necessário afastamento

do operador jurídico de uma postura dogmática no que concerne a interpretação das normas

Page 111: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

110

relativas aos direitos étnicos. Organizador da obra “Direito dos povos e das comunidades

tradicionais no Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos

definidores de uma política nacional” (2007), Shiraishi Neto afirma:

A inversão da ordem de se pensar o direito a partir da situação vivenciada pelos povos e comunidades tradicionais, leva a uma ruptura com os esquemas jurídico pré-concebidos. Essa dinâmica que serve para iluminar o direito tem provocado três movimentos, os quais podem ser delineados: a) deslocamento de disciplinas tidas como tradicionais, a saber: o direito civil, o direito agrário e o próprio direito ambiental; b) a relativização e reorganização hierárquica de determinadas normas e regras consagradas pelos intérpretes; e c) a reafirmação e ampliação de dispositivos jurídicos internacionais de proteção dos direitos humanos (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 29).

Shiraishi Neto (2007), constantemente nas suas publicações, recorre a sociólogos e

antropólogos para fundamentar a necessidade de “outras” práticas jurídicas que se encontram

coadunadas a “outras” formas de saber, situadas nas experiências de cada grupo social. De

acordo com o autor:

Convém enfatizar que para além das reivindicações dos povos e comunidades tradicionais se está diante de uma luta interna no campo jurídico, onde há um enfrentamento dos “operadores do direito” em torno do direito de dizer o direito (BOURDIEU, 1989). A referida disputa identificada inicialmente no plano dos operadores, não pode desgastar as intervenções ou mesmo paralisar os atos oficiais ou inibir as discussões que envolvem os procedimentos operacionais. Sublinhe-se que os direitos aos quais se está referido se encontram no bojo dos direitos fundamentais e, portanto, de aplicação imediata, conforme determina o texto constitucional brasileiro (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 31).

Dessa forma, percebe-se a mediação realizada no que se refere ao discurso acadêmico

e à articulação realizada entre este saber científico e também político e a defesa dos povos

indígenas e grupos e comunidades tradicionais, conforme teremos oportunidade de analisar no

próximo item.

Outro agente que também realiza essa mediação é o professor da Universidade Federal

do Pará Dr. Girolamo Domenico Treccani. Diferentemente dos demais entrevistados,

Girolamo Treccani nasceu na Itália, tendo adquirido a cidadania brasileira por meio do

Certificado de Naturalização, em 2001. Conforme revelado em entrevista, o prof. Dr.

Girolamo Treccani veio ao Brasil integrando uma congregação religiosa há mais de trinta

anos.

Page 112: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

111

Desde que chegou, estabeleceu-se no estado do Pará, inicialmente no interior do

estado e, a partir de 1986, atuou como Secretário Regional da Comissão Pastoral da Terra.

Com relação a essa experiência, destaca Treccani:

Um fato marcante daquele tempo foi à conquista da federação dos trabalhadores na agricultura do estado do Pará e Amapá, naquele tempo, a FETAGRI68, por parte da chapa encabeçada pela CUT69. Era ainda um período final da ditadura, começo da nova república, aonde os movimentos sociais, de maneira especial os sindicatos, tinham, aqui e acolá, já adquirido feições mais combativas, mas na sua grande maioria ainda, abre aspas, denominados pelegos, isso é, aqueles que não se enquadravam, vamos dizer assim, em perfis mais avançados no que diz respeitos as lutas populares. Portanto um das primeiras coisas que a gente se envolveu foi exatamente a conquista da direção da FETAGRI através de uma ampla campanha de sensibilização. Naquele momento histórico, por isso faço referência a isso, a idéia é de que todo mundo era trabalhador rural, isto é, apesar de que, evidentemente alguma noção de que não era uma categoria monolítica, mas não existia a preocupação de se encontrar grandes diferenças. Se talvez diferença poderia ser vista era entre o trabalhador rural – o camponês – e o sem terra – aquele que iria ocupar terras, portanto. Mas também era a mesma representação sindical, portanto toda essa discussão, seja aquelas relativas à regularização fundiária, seja aquelas relativas à reforma agrária eram traçadas de maneira conjunta pelos mesmos atores sociais, portanto, não se via naquele momento, pelo menos eu pessoalmente posso dizer de maneira mais genérica, não se via naquele momento qualquer diferenciação maior, a não ser, evidentemente, já naquele tempo era bem claro isso, populações indígenas, que aí sim, era outro ato de estratégias, de reunião, etc etc etc... Integrando a Comissão Pastoral da Terra evidentemente o trabalho era aquele de sensibilizar as comunidades, sensibilizar os sindicatos, sensibilizar enfim a própria igreja, ou as igrejas, melhor dizendo nesta tarefa... (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

No que se refere à sua formação profissional, conforme mencionado, a primeira

graduação obtida foi no curo de Teologia, na Itália, vindo a ingressar o curso de direito após

sua estadia no Brasil, em 1987, obtendo o grau de bacharel em 1991. A especialização, o

mestrado e o doutorado também foram realizados na Universidade Federal do Pará, em

diferentes programas de pós-graduação. Com relação a esses programas, destaca:

Naquele tempo [no mestrado em Direito] ainda não se tinha essa diferenciação, apesar de que a linha de pesquisa na qual entrei diga respeito a Amazônia, na verdade era Amazônia e outra linha de pesquisa Direito do Estado, e eu preferi Amazônia... Bom, aqui, nesta mesma universidade eu fiz, como disse ainda pouco, uma especialização, essa especialização tem caráter latino americano, na medida em que se discutia o desenvolvimento sustentável e daí, portanto, a preocupação já naquele momento de tentar entender melhor, do ponto de vista mais teórico, como é que se constituíam as diferentes realidades. A especialização foi aqui no Núcleo de Altos

68 Federação dos Trabalhadores na Agricultura. 69 Central Única dos Trabalhadores. Representa naquele momento histórico o pólo combativo do movimento sindical.

Page 113: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

112

Estudos da Amazônia, realizada em 1994. O mestrado foi feito em direito nesta mesma universidade, de 1996 a 1999, e do doutorado 2001 a 2005 (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

Atualmente, Girolamo Treccani é professor da Faculdade de Graduação e do Programa

de Pós-graduação do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA e Vice-Coordenador do

Programa de Pós-graduação em Direito da UFPA. Ainda conforme o Currículo Lattes (ver

mais detalhes em anexo), de janeiro de 2007 a dezembro de 2010 foi Assessor Chefe do

Instituto de Terras do Pará (ITERPA), assumindo a presidência nas ausências do titular, e

Consultor Jurídico da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI-PARÁ), da

Coordenação das Associações das Comunidades Remanescente de Quilombo do Estado do

Pará (MALUNGU/PARÁ) e da Comissão Pro-Índio de São Paulo.

Da sua formação acadêmica resultaram inúmeras publicações, algumas de caráter mais

“acadêmico” e “técnico” e outras com um caráter mais “politizado”, tal como a elaboração de

inúmeras cartilhas voltadas para instrumentalização dos movimentos sociais, bem como a

participação em diversas comissões de elaboração de minuta de decretos estaduais, tratando

da regularização fundiária, projetos de assentamento e ordenamento territorial do estado do

Pará.

Com relação a publicações de artigos e livros publicados, predominam as temáticas

relacionadas a conflitos agrários e questão fundiária. Os livros são: “Manual de Direito

Agrário Constitucional. Lições de direito agroambiental” (2010), “Terras de quilombo:

caminhos e entraves do processo de titulação” (2006), “Violência e grilagem: instrumentos de

aquisição da propriedade da terra no Pará” (2001); os capítulos de livros: “Combate à

Grilagem: Instrumento de promoção dos direitos agroambientais da Amazônia” (2008),

“Identificação e análise dos diferentes tipos de apropriação da terra e suas implicações para o

uso dos recursos naturais da várzea amazônica no imóvel rural, na área de Gurupá” (2005),

Terras de Quilombo (1999); artigos: “O Título de Posse e a Legitimação de Posse como

formas de aquisição da propriedade” (2009), “A questão fundiária e o manejo dos recursos

naturais de várzea” (2005), “Direito Agrário Brasileiro” (1999). Já as Cartilhas publicadas

são: “Direitos Fundamentais violados no caso da usina Hidrelétrica de Belo Monte” (2011),

Coletânea de Legislação Agro-Ambiental e Correlata (2010), “Ordenamento Territorial

Avanços e Desafios 2007-2010” (2010), “Trilhas da Regularização Fundiária para

Comunidades nas Florestas Amazônicas” (2010), “Pará: do caos fundiário à terra de direitos”

(2010), “Trilhas da regularização fundiária para populações nas florestas amazônicas” (2008),

“Ordenamento Territorial e Regularização Fundiária no Pará” (2008), “A regularização

Page 114: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

113

fundiária como instrumento de ordenar o espaço e democratizar o acesso á terra” (2007),

“Regularização fundiária e manejo dos recursos naturais” (2006), “A posse da terra no

ambiente de várzea. Debates para uma possível solução” (2005), “Os diferentes caminhos

para o resgate dos territórios quilombolas” (2005), “Nova Legislação Remanescente de

Quilombo” (2003), “Documentar a terra: uma luta constante” (2001), “A Luta pela terra no

Pará - Os Camponeses como criadores de um novo direito” (1997).

Cabe destacar a preocupação do prof. Girolamo Treccani em tornar acessíveis aos

grupos estudados os resultados de seus trabalhos, de forma que os mesmos pudessem ser

“traduzidos” e, consequentemente, compreendidos pelos grupos sociais.

Dessa perspectiva, surge a tentativa de construção das cartilhas que, segundo afirma,

partem de uma discussão mais teórica, feita a partir de uma experiência concreta, para

oferecer subsídios a essas populações tradicionais de modo que as mesmas possam conhecer

quais são as diferentes formas de reconhecimento e consolidação de direitos. Acerca da sua

produção bibliográfica, destaca que:

Fruto do meu mestrado foi o meu primeiro livro sozinho, “Violência e grilagem: instrumento de aquisição da propriedade no estado do Pará ” e fruto do doutorado foram outros dois livros, um mais específico sobre as comunidades remanescentes de quilombo e outro retomei a discussão, um capítulo, no coletivo, a discussão sobre o combate a grilagem. A publicação conjunta é “Direitos humanos em concreto”, foi publicado em 2008 pela editora Juruá. Na realidade este livro é uma coletânea, todos os doutores do programa de pós graduação em direito escreveram um capítulo. O meu capítulo era “Combate a grilagem e instrumentos de promoção dos direitos agro ambientais na Amazônia”. A discussão sobre as populações tradicionais fez parte do meu doutorado. Já no mestrado trabalhei em parte isso, mas muito pouco, eu procurei aprofundar mais essa discussão no doutorado. (...) Nós publicamos várias cartilhas. A parte mais científica está na minha própria tese de doutorado, mais uma das características da FASE Amazônia – de maneira especial o projeto demonstrativo Gurupá, como era chamado naquele tempo – era exatamente a publicação de materiais, cartilhas enfim, materiais em nível de divulgação popular, isso exatamente para poder atender a essas populações, partindo do pressuposto de que é importante evidentemente a discussão mais técnica mas ela tem que ser colocada ao serviço e traduzida no linguajar que o próprio pessoal pudesse se apropriar (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

A sua atuação profissional também é permeada por essa preocupação em

disponibilizar aos grupos de maior vulnerabilidade o seu conhecimento e a sua formação,

pois, conforme afirma em entrevista, as instituições, movimentos sociais, comissões de

direitos humanos e sindicatos nos quais, por meio de discussões específicas sobre

regularização fundiária e reforma agrária, ajudaram a definir estratégias de combate à

grilagem e a violência no campo. Em suas palavras:

Page 115: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

114

Trabalhava na CPT e ao mesmo tempo oferecia assessoria jurídica eventual à FASE. Uma das estratégias da CPT naquele tempo, isso significa até praticamente 10 anos atrás, mais ou menos, era priorizar o acompanhamento do movimento sindical. Portanto, enquanto integrante da coordenação estadual da CPT, uma das minhas tarefas era aquela de oferecer assessoria jurídica também eventual para a FETAGRI. Porque eventual? Na realidade eu nunca peguei processos específicos, minha tarefa era muito mais ajudar a discutir a estratégia global e a implementação dessa estratégia de regularização, estratégia de reforma agrária, estratégia de combate a violência no campo, estratégia de combate à grilagem, enfim foram várias iniciativas que em conjunto foram feitas, canalizadas naquilo que nasceu no estado do Pará, o chamado Grito do Campo, em 1991, que hoje tem dimensão nacional no Grito da Terra Brasil (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

A análise do currículo do jurista – tanto no que se refere a suas publicações

acadêmicas, trabalhos técnicos e experiências profissionais – permite perceber que a sua área

de atuação predominante refere-se às discussões realizadas no âmbito do Direito Agrário,

Ambiental e Civil, atuando principalmente nos temas terra, legislação agrária, grilagem, meio

ambiente, comunidades quilombolas e Amazônia bem como na consultoria nessas áreas.

Com relação a sua experiência no ITERPA (2007-2010), Girolamo Treccani fez uma

avaliação na qual se dizia um tanto quanto frustrado pela experiência no governo, embora

reconheça que houve muitos avanços com relação a administrações anteriores. Ponderou que

a prática comum nesse órgão era tão somente a emissão de documentos (trabalho

eminentemente técnico) e que, em sua gestão conjunta com o Dr. José Heder Benatti, o

objetivo, dentre outros, seria também o de discutir algumas categorias com os próprios

integrantes da administração, o que, no prazo de quatro anos, não foi possível. Conforme

destaca:

Nossa intervenção se deu através de várias vertentes. Primeiro, o reconhecimento da situação caótica na qual vive o estado do Pará em seu aspecto fundiário, e daí a necessidade, portanto, de ter uma visão de como se chegar a superar isso. O ponto mais importante dessa discussão chegou a ser o cancelamento administrativo de algumas dezenas, centenas, milhares, ninguém sabe exatamente o número – pois até agora ainda não se teve feedback de quanto registros foram cancelados – mas enfim, o cancelamento administrativo por parte do CNJ70 de dezenas de registros fraudulentos. Uma outra vertente fundamental no nosso trabalho foi aquela de encontrar caminhos para a regularização fundiária e (...) chegamos a adotar aquilo que denominávamos de “varredura fundiária”, isto é, o primeiro passo era a identificação da realidade fundiária de determinado município ou região e a partir da daí, desse contato preliminar, já desenhar as possíveis categorias sociais que precisariam ter um tratamento específico. E daí nascia, por exemplo, a discussão de, os processos administrativos correspondentes, de criação de reconhecimento de direito de comunidades quilombolas. No

70 Conselho Nacional de Justiça.

Page 116: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

115

mesmo trabalho se identificavam áreas a serem regularizadas de maneira coletiva, e daí, portanto, a discussão sobre os projetos estaduais de assentamento agroextrativista. Uma outra possibilidade, a criação de projetos de assentamento mais tradicionais, no sentido dos PA, do INCRA, portanto, os projetos de desenvolvimento sustentável. A grande diferença teórica entre um e outro é que, enquanto o projeto de assentamento agroextrativista tem como beneficiário uma associação, portanto coletiva, no desenvolvimento sustentável ele tem como base a própria unidade familiar. E isso leva também, apesar que teoricamente não necessariamente, mas na prática, o que quê se percebeu: a grande maioria das populações tradicionais escolheu a modalidade coletiva. Isso aconteceu por exemplo em Juriti, isso aconteceu em Oriximiná, isso aconteceu em Porto de Moz, isso aconteceu em Santarém, isso aconteceu em Gurupá... Áreas, pelos nomes desses mesmos municípios, aonde a quantidade de floresta em pé ainda é significativa. Naqueles municípios, aonde ao contrário, a frente de expansão agropecuária foi muito mais forte – me refiro, por exemplo, Tailândia (que é um dos municípios enquadrados no Arco Verde, antigo Arco de Fogo, né) Tailândia, Rondon do Pará, Dom Elizeu, enfim, municípios esses, todos, praticamente, esses que citei, dentro do Arco Verde ou até municípios que não estão no Arco Verde, como Acará, Mujaú e outros, mas onde a dinâmica do desmatamento foi muito maior – estes municípios, todos eles, escolheram como modalidades de assentamento aquele familiar. Além disso, evidentemente, há regularização fundiária familiar fora dos assentamentos. E a terceira grande vertente que nós, na verdade, demos continuidade a política que começou a ser adotada desde 97 pelo governo de Gabriel, que continua no governo, no primeiro governo Jatene, que foi a política dos reconhecimentos dos direitos territoriais das comunidades quilombolas. Uma outra vertente deste trabalho dentro do governo do estado, dentro do ITERPA, foi o diálogo com o INCRA, com o órgão federal, exatamente... Primeiro, diante do estado de confusão. Nem sempre é muito fácil entender se aquela área é estadual ou federal. Isso é herança histórica que desde a década de 70 carregamos na Amazônia, famoso decreto lei 1164, que federalizou 100 km de cada lado das rodovias federais e que criou uma grande confusão, exatamente porque estas, a incorporação dessa área ao patrimônio público federal se deu em mapas daquele tempo, e hoje fica meio complicado se saber exatamente onde é que é jurisdição de um e de outro. E daí necessidade de um trabalho em conjunto, além do que os próprios assentamentos estaduais foram reconhecidos pelo INCRA para oferecer a essas famílias, a essas associações, a possibilidade a ter acesso aos créditos da reforma agrária (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

O prof. Dr. José Heder Benatti, com quem o prof. Dr. Treccani compartilhou a

experiência no órgão público de terras estadual assim como a carreira docente na

Universidade Federal do Pará, incluindo produções bibliográficas conjuntas, é formado em

direito pelo Centro de Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Pará (1986), Mestre

em direito pela Universidade Federal do Pará (1996) e Doutor em Ciência e Desenvolvimento

Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará

(2003).

Page 117: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

116

Atualmente, conforme consta na Plataforma Lattes do CNPq é pesquisador e Professor

Adjunto da Universidade Federal do Pará, com experiência em Direito de Propriedade e Meio

Ambiente, atuando principalmente com os temas Amazônia, populações tradicionais, unidade

de conservação, regularização fundiária e posse agroecológica.

Conforme destaca José Benatti, o início da carreira se deu na Sociedade Paraense de

Direitos Humanos, mais precisamente no interior do Pará, no município de Marabá, ainda

como estagiário, vínculo este que se manteve durante a realização do mestrado em direito na

UFPA.

Quando eu me formei, eu já estava trabalhando no movimento estudantil, tinha ligação com a esquerda, e tal, no movimento estudantil, criação de centro acadêmico. Quando, eu fui para Marabá. Eu fui trabalhar aqui, fui discutir na Sociedade Paraense de Direitos Humanos e abriu a possibilidade para ir, num estágio, quando eu era estudante, abriu a possibilidade de ir para Marabá. Aí primeiro que ninguém de Belém queria ir para Marabá, não porque seria Marabá na época, 86, mas era mais porque o pessoal não queria ir para o interior. Eu me dispus a participar do projeto, tinha um outro advogado que ia receber a gente lá, que era da CPT. Depois quando eu terminei o projeto, me formei em julho de 1986, o projeto terminava em dezembro de 1986. Quando eu terminei o projeto as pessoas de lá me convidaram para ir para Marabá e a entidade de Direitos Humanos tinha interesse de criar um núcleo de Direitos Humanos, que é a Sociedade Paraense de Direitos Humanos lá em Marabá. Então eu fui para lá com o objetivo de criar um núcleo da entidade em Marabá (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Ainda conforme relatado em entrevista, José Benatti retorna a Belém, após essa

experiência no município de Marabá, com o objetivo de realizar o mestrado em direito. O

objeto da dissertação de mestrado possuía relação direta com as situações vivenciadas no

interior do estado, no que se refere a conflitos agrários, questão possessória e uso coletivo das

terras, focalizando a análise nos confrontos e hierarquias entre legislação federal e estadual.

Um dos motivos de vir para Belém foi para fazer mestrado, em direito, na época em direito aqui, tinha aqui. Eu continuei trabalhando na Sociedade de Direitos Humanos, quando eu voltei eu já vim como vice, depois fui presidente. Mas eu trouxe a discussão que encontrei lá. Qual era o debate? Eu percebia assim... que tinha um conflito que eu peguei, logo quando eu cheguei lá, que era um despejo em área de castanhal. Nós conseguimos ganhar na justiça a não liminar, o juiz não deu liminar favorável ao dono do castanhal, que era um tal de Montram. Eu fiquei com aquele negócio na minha cabeça: “porque que o juiz não deu a liminar, uma discussão que tem uma família tradicional que dominava politicamente a região e o juiz não deu a liminar”? Aí, mas também, no dia a dia, na correria, falei, tudo bem, depois eu vou pensar com calma ... Aí, eu comecei a trabalhar lá com a questão indígena, assessorando um caso indígena, um processo de reivindicação de área indígena dos índios Gaviões da Montanha, que tinham sido transferidos por causa da Barragem de Tucuruí, comecei também uma discussão com a questão quilombola e, também, o Conselho Nacional dos

Page 118: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

117

Seringueiros me convidou para ajudá-los a debater a questão fundiária. Tava começando a ter encontro nacional de seringueiros e tal... E aí, quando eu resolvi voltar para Belém, a minha dissertação foi exatamente discutir as posses, que eu vi que tinha a posse seringueira, a posse dos quilombolas, a posse agrária, a posse indígena, então eu vi que tinha uma pluralidade de posses e depois eu fui entender qual era o problema de enfrentar... Por que o juiz não deu? Por que na realidade o juiz entendeu que naquele conflito tinha duas concepções de posse: a posse agrária, que está no Código Civil e no Estatuto da Terra, que ele estava trabalhando, e tinha a posse prevista na legislação estadual, que era a posse do extrativismo da castanha, que tem uma legislação estadual que regulamenta, que diz que tem que ter um barracão, que ele tem que limpar a estrada, que ele tem o período de dezembro a março fazer a coleta da castanha... obviamente os castanhais têm por trás um aforamento que não era delimitado. Então, o juiz, como não entendeu que se tratava de duas concepções na mesma área, o que ele fez? Ele, pela sua formação tradicional, não foi contra a legislação federal, porque uma posse regulamentada pela lei federal e outra posse pela estadual... Então na cabeça dele tinha uma hierarquia, ele tinha que manter a hierarquia federal, que naquele momento favoreceu os posseiros. Quando eu voltei de Belém, eu voltei para trabalhar... tinha a minha formação desde quando eu sai daqui de Belém, o meu trabalho de dissertação, de conclusão de curso, foi sobre a Lei de Anilzinho, que é uma lei que acontecia com o apoio da Igreja Católica na região de Cametá, onde eles pediam a regularização fundiária coletiva, que pra época era novidade, isso foi 85, 84 e a partir daí eu comecei a discutir já... eu discuti que, olha, tinha um apossamento coletivo, posse, não era só individual... (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

No que se refere a sua formação acadêmica, José Heder Benatti ressalta que a mesma

sofreu influência tanto da participação no movimento estudantil, que, segundo afirma, “me

introduziu mais na discussão da dialética, a discussão mais, do compromisso social,

preocupação com a justiça, de apoiar o segmento mais fraco ou marginalizado da sociedade”,

quanto dos autores vinculados ao “direito alternativo”, que possibilitavam uma tomada de

posição mais crítica ante os fenômenos jurídicos. Nesse sentido, destaca que:

A partir daí também a outra formação teórica foi à questão do pluralismo jurídico. Eu achava que existia um pluralismo jurídico, aí vem a influência teórica que eu trabalhei, a referência teórica que era Roberto Lyra Filho, José de Souza, o... professor da UnB, tinha Marilena Chauí. Tive contato também com Boaventura de Souza Santos que escreveu um livro sobre pluralismo jurídico, que discute, a dissertação dele de mestrado foi sobre o pluralismo jurídico, ou seja, a minha formação foi nessa formação plural. A gente lia o “Direito achado na rua”, tinha as produções de Roberto Lira Filho, na época era “O que é direito?”, tem toda uma construção teórica nessa parte... que aí, tem uma coisa que eu percebi também. Qual era a novidade até então? Antes os juristas faziam crítica ao direito com base na sociologia, na filosofia, na ciência política... A partir dessas construções teóricas você fazia crítica ao direito por dentro do direito. Você pegava os próprios teóricos do direito e começava a rediscutir. Então, era uma crítica mais fundamentada, nos não éramos estranhos ao direto, nos estávamos criticando o direito por dentro

Page 119: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

118

dele, a parte lá do positivismo jurídico, quais eram os limites dele... Aí fazia uma distinção muito clara entre positivismo jurídico e dogmática jurídica. Olha, dogmática não quer dizer que seja um dogma, você pode usar a dogmática jurídica para construir o direito. Então à medida que, qual foi essa grande diferença até naquela época – em Marabá foi muito claro no meu comportamento – eu dizia o seguinte: eu não sou um militante político, eu sou um militante jurídico, quer dizer, eu luto pelo direito dentro das regras do direito e (...) não confundia direito com norma, direito muitas vezes está acima das normas às vezes até contra a norma... Então essas discussões teóricas começavam a construir mais ou menos clara essa distinção... Para a geração anterior não, ele era militante, político, organizava o partido, então eu fazia muito bem clara essa distinção da militância política da militância jurídica (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Ainda conforme relatado, essa formação, apoiada nos autores mais críticos associados

à corrente do pluralismo jurídico, não se dava no âmbito do ensino oficial do curso de

graduação em direito. Havia, conforme Benatti, poucos professores simpáticos à essa

discussão, de modo que uma das estratégias encontradas pelos alunos, vinculados ao

movimento estudantil, era realizar seminários e trazer professores convidados. Nas suas

palavras:

Por que na realidade você ainda tá a transição71. Depois disso, começou a surgir a corrente dos juízes alternativos, era um momento, no final da ditadura, com a consolidação da democracia, a democratização do país. Então, você tinha também essa transição, que é o forte das reivindicações políticas, a conquista do espaço democrático, na construção do centro acadêmico, DCE72, dos partidos políticos, surgimentos das ONG... (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Um dos aspectos destacados no relato de Benatti é a necessidade de demarcar o caráter

técnico, e não eminentemente político, que se exigia dos profissionais do direito que atuavam

junto aos movimentos sociais. Conforme ressalta, ainda que assessorando o Partido dos

Trabalhadores em eleições, ele sempre destacava que o vínculo com o partido se dava no

caráter eminentemente técnico.

Nesse sentido, o jurista traça uma distinção entre essas esferas, pois, como destaca,

“participava do movimento estudantil, do PT, sempre assessorei o PT, nas eleições e tal... Até

fui convidado para ser candidato, aí eu não quis, não meu papel é mais técnico, sou mais da

área técnica, falei não levo jeito para ser político, no sentido político-partidário” (entrevista

realizada no dia 23/05/2011). Ainda sobre essa demarcação, asseverara José Benatti:

71 Período compreendido entre o final do regime ditatorial e o processo de redemocratização do país, no início da década de 1980. 72 Diretório Central dos Estudantes.

Page 120: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

119

Tanto é que num debate da Sociedade de Direitos Humanos, ela quando surge, em 77, ela aglutinou toda a esquerda em Belém, no Pará. Então, ela tinha todo mundo. Depois, com a redemocratização, o que acontece? Começam a surgir os partidos políticos, o PT, os outros partidos, os sindicatos e a Sociedade de Direitos Humanos foi diminuindo a quantidade de pessoas, que ela era que mobilizava tudo, tinha aquele fórum, aquela disputa – a eleição era disputadíssima, tinha muitas pessoas, tinha voto, chapa... – e quando eu vou assumindo, aí eu digo, “não, a sociedade tá em outro patamar”. Então, a gente propunha mudanças no estatuto para deixar de ser uma sociedade, para ser uma ONG, e aí tinha um debate, “não, a gente não pode abrir mão disso, porque ela e uma entidade militante”, não, ela é militante enquanto compromisso político, mas ela tem que ser formada por quadros técnicos, ela não pode viver mais do voluntarismo das pessoas, ela tem que ter um quadro técnico e apoiar o movimento social. Se apóia o movimento social, e não se é o movimento social. Então nesse ponto, passei nessa transição, fui vice, depois presidente, e havia esse embate, um embate que eu acho construtivo, no debate, que acabou consolidando a entidade como uma ONG e no quadro, quase majoritariamente formado por advogados. Até hoje ela continua com esse viés (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Após essas experiências profissionais – assessorando juridicamente os movimentos

sociais por meio da atuação na Sociedade Paraense de Direitos Humanos – José Benatti se

dedicou a um objetivo que garantisse visibilidade aos estudos realizados com vistas a melhor

refletir sobre os conflitos agrários no estado do Pará, o que foi obtido por meio da criação da

ONG Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM. Segundo destaca:

Sai do núcleo (da SPDH), aí eu fiz mestrado, depois, em 91, 90, eu vou ajudar a criar uma outra entidade, que é o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o IPAM, que é uma ONG mais ambientalista, ligada à pesquisa, e essa ONG tinha um espaço dentro da Universidade e tinha uma sala dentro do NAEA. Então, ela começa, surge, até mais ou menos a sua estruturação, eu era pesquisador associado do NAEA e tinha meu projeto de pesquisa, que foi minha dissertação de mestrado (...), consegui um financiamento da Ford para aprofundar o debate sobre o pluralismo jurídico, como é que funcionava e depois eu publico meu livro sobre posse agroecológica, resultado da minha dissertação e mais quatro anos de pesquisa, que analisei o Parque Nacional do Jaú, analisei a criação da reserva extrativista, analisei a questão dos quilombolas e aí eu fui aprofundar mais esses conceitos, o que é esses conceitos, como é que funciona, os limites, mais em casos concretos (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

No doutorado realizado no NAEA, Benatti dedica-se a discutir a questão da

propriedade coletiva, da propriedade comum, tendo em vista a realização dos estudos sobre a

posse no âmbito do mestrado. Acerca da sua opção em realizar um doutorado interdisciplinar,

Benatti revela que:

Quando eu comecei a levantar onde vou fazer o doutorado, a crítica era a seguinte, todos os doutorados eram muito tradicionais, USP, Rio Grande do Sul, Brasília, Rio de Janeiro. Então, eu não me identificava com o que tava

Page 121: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

120

sendo colocado, ou eu tinha que ir para a área de Sociologia, Filosofia e não tinha a discussão mais na área que eu queria discutir. Então, eu decidir fazer uma coisa, não, antes de discutir a propriedade comum, vou discutir o que é propriedade. Na verdade, a minha dissertação de mestrado, doutorado foi sobre direito de propriedade, por que eu falei, bem, se eu domino os conceitos... E eu escolhi o NAEA porque era um curso interdisciplinar, por que eu achava que além das discussões jurídicas, eu precisava também entender as discussões metajurídicas, ou seja, que influenciavam o debate jurídico, eu achava que só o jurídico não ia resolver a fazer a crítica... O direito dialogando com outras ciências, que a questão da ecologia, biologia, sociologia, economia... Por que o direito teve um movimento que era muito forte direito e economia, depois ele rompe na década de 70, 80 teoricamente, metodologicamente e acaba criando um sistema meio isolado... E aí escolhi o NAEA por causa disso, pela capacidade de dialogar com outros ramos (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

O convite para assumir o órgão do ITERPA ocorreu no ano de 2007, quando Benatti

atuava como coordenador do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Meio

Ambiente da Universidade Federal do Pará. A sua atuação no ITERPA ocorreu nos anos de

2007 a 2010 e, conforme destaca José Benatti, ao avaliar a sua participação neste órgão

público, destaca as intersecções – ou fusões – existentes entre o conhecimento produzido no

âmbito das ONGs e as políticas públicas gestadas pelo órgão governamental.

É interessante que quando, em 2004, eu tinha feito dois estudos, em 2004-2005, 2003-2005 eu fiz dois estudos, um sobre, uma consultoria via ONG, o IPAM, para o Ministério do Meio Ambiente, sobre grilagem de terra. Então eu discuti grilagem, então naquele momento eu procurei resolver se você tivesse uma legislação que incorporasse os diferentes segmentos, tinha que fazer a diferença entre a grilagem, uma coisa o que é ilegal, e o que é irregular. O irregular você pode regularizar o ilegal não. Então começava a discutir que tinha que ter critérios para regularizar, pois um dos problemas da grilagem é a falta de terra regular, por que a terra tá disponível, mas todo mundo tá, porque se todo mundo tá irregular tem alguma coisa errada, porque boa parte não tinha título, e tal. E eu tinha feito um estudo também pro MMA, mas via o Pró-várzea, que era a discussão da regularização fundiária da várzea. Então, quando eu vou pro governo, eu já tinha duas, dois estudos que me diziam qual era importância da regularização fundiária. Então eu fui pra lá pra implementar um programa, olha, nós temos que criar uma política de regularização fundiária e temos que priorizar a pequena propriedade. (...) E outra coisa que o Estado não criava que a gente achava importante era criar assentamento. Criamos um programa de regularização fundiária, priorizamos a pequena propriedade... Parte do nosso debate, que em 2007 já tinha esse debate, em 2008 lançamos um caderninho dizendo as linhas gerais da nossa política de regularização fundiária, lá a gente priorizava, tinha que priorizar todo mundo, mas priorizando a pequena, ele tem que optar se ele quer assentamento ou não quer e que tipo de assentamento ele quer, o fato se ele quiser assentamento individual tem que respeitar o título individual (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Page 122: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

121

De acordo com informações obtidas junto à Plataforma Lattes do CNPq (mais detalhes

em anexo), José Heder Benatti conta com uma grande produção bibliográfica. Destaquem-se,

entre os artigos completos publicados em periódicos, os seguintes: “Questão fundiária e

sucessão da terra na fronteira Oeste da Amazônia” (2010), “Possibilidade jurídica do

cancelamento administrativo de matrículas de imóveis rurais: repercussões no Pará” (2010),

“Internacionalização da Amazônia e a Questão Ambiental: o direito das populações

tradicionais e indígenas à terra” (2007), “Aspectos jurídicos e fundiários da utilização social,

econômica e ambiental da várzea” (2004), “Políticas públicas e manejo comunitário de

recursos naturais na Amazônia” (2004), “Políticas públicas e manejo comunitário de recursos

naturais da Amazônia” (2003), “A titularidade da propriedade coletiva e o manejo florestal

comunitário” (2002), “Aspects juridiques de l aménagement du territorie et de la préservation

de l environnement au Brésil. Vivre avec la forêt: gestion locale des ressources naturelles en

Amazonie brésilienne et au Costa Rica” (2002), “Derecho, institucionalidad y ordenamento

territorial en Brasil y Costa Rica” (2000), “O papel da propriedade territorial rural na proteção

da floresta: uma análise jurídica da função social e ecológica do imóvel rural (1999),

“Constituição e Cidadania” (1998), “Posse agroecológica: um estudo das concepções jurídicas

dos apossamentos de camponeses agroextrativista na Amazônia” (1998), “Aspectos jurídicos

das unidades de conservação no Brasil” (1997), “Posse coletiva da terra: um estudo jurídico

sobre o apossamento de seringueiros e quilombolas” (1997), “El pluralismo jurídico y las

posesiones agrarias en la Amazonia” (1994), “Os crimes contra etnias e grupos étnicos:

questões sobre o conceito de etnocídio” (1992).

Com relação a livros organizados e publicados por José Heder Benatti, têm-se os

seguintes títulos: “Manual de Direito Agrário Constitucional: lições de Direito

Agroambiental” (2010), “Direito Ambiental e Políticas Públicas na Amazônia” (2007), “A

grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira” (2006), “A questão fundiária e o manejo

dos recursos naturais da várzea: análise para elaboração de novos modelos jurídicos” ( 2005),

“Posse agroecológica e manejo florestal” (2003).

Já com relação a capítulos de livros publicados e demais trabalhos técnicos, são

relacionados os títulos: “Proposals, Experiences, and Advances in the Legalization of Land

Tenure in the Várzea” (2011), “Integrating Comanagement and Land Tenure Policies for the

Sustainable Management of the Lower Amazon Floodplain” (2011), “Apropriação privada

dos recursos naturais no Brasil: séculos XVII ao XIX (estudos da formação da propriedade

privada)” (2009), “Áreas Protegidas no Brasil: uma estratégia de conservação dos recursos

naturais” (2008), “Análise jurídica para realização da regularização fundiária. Atlas

Page 123: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

122

socioambiental: municípios de Tomé-Açu, Aurora do Pará, Ipixuna do Pará, Paragominas e

Ulianópolis” (2008), “Estado e Sociedade no BR 163: desmatamento, conflitos e processos de

ordenamento territorial” (2008), “Aspectos jurídicos e fundiários da várzea: uma proposta de

regularização e gestão dos recursos naturais” (2005), “A questão fundiária e o manejo dos

recursos naturais da várzea: análise para elaboração de novos modelos jurídicos” (2005),

“Privately-owned forests and deforestation reduction: an overview of policy and legal issues”

(2005); “Terra coletiva ou comum” (2005), “O meio ambiente e os bens ambientais” (2005),

“Indenização da cobertura vegetal no imóvel rural: um debate sobre o papel da propriedade na

contemporaneidade” (2005), “Ordenamento territorial e proteção ambiental: aspectos legais e

constitucionais do zoneamento ecológico econômico” (2004), “A legislação e os sistemas

institucionais de gestão dos recursos hídricos no Brasil e sua relevância para a Amazônia”

(2003), “O direito para o Brasil socioambiental” (2002), “Constituição e cidadania: a

demarcação das terras de quilombolas no Estado do Pará” (2001), “Formas de acesso à terra e

a preservação da floresta amazônica: uma análise jurídica da regularização fundiária das terras

dos quilombolas e seringueiros” (2001), “Presença humana em unidade de conservação: um

impasse científico, jurídico ou político?” (2001), “Zoneamento Ecológico-Econômico:

aspectos fundamentais de sua implementação” (2000), “Carajás: desenvolvimento ou

destruição” (1997); “O pluralismo jurídico e as posses agrárias na Amazônia” (1994), “A

posse agrária alternativa e a reserva extrativista na Amazônia” (1994), “Os crimes contra

etnias e grupos étnicos: questões sobre o conceito de etnocídio” (1993), “Categorias

Fundiárias na Amazônia” (2005), “Direito de Propriedade e proteção ambiental no Brasil:

apropriação e uso dos recursos naturais no imóvel rural” (2003).

Dentre as produções técnicas, destaca-se: “A regularização fundiária como

instrumento de ordenar o espaço e democratizar o acesso à terra” (2007), “A grilagem de

terras públicas e a sua inserção nas dinâmicas do desmatamento na Amazônia brasileira”

(2005), “Aspectos Jurídicos e Fundiários da Utilização Social, Econômica e Ambiental da

Várzea: análise para elaboração de modelos de gestão” (2004), “Elaboração de propostas

jurídicas para regularização fundiária das comunidades extrativistas na Floresta Nacional do

Purus” (2003), “Detalhamento de execução dos estudos estratégicos do sub-estudo A questão

fundiária da várzea: análise para elaboração de novos modelos jurídicos” (2001), “Sugestões

para a estruturação jurídica e estutária do Instituto de Terras do Estado do Acre” (2000),

“Impacto sobre políticas públicas sobre manejo comunitário dos recursos naturais” (2000),

“Diagnóstico dos aspectos jurídicos relacionados ao uso dos recursos naturais no âmbito do

Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre” (1999), “Avaliação da situação fundiária das

Page 124: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

123

áreas com potencial para criação de unidades de conservação de uso indireto na Amazônia”

(1998), “Elaboração de Cartilha para esclarecer as implicações fundiárias para as

comunidades no caso de permanecerem ou se excluirem da Floresta Nacional do Tapajós”

(1996), “Diagnóstico Fundiário do Parque Nacional do Jaú” (1995), “Preparação de guia de

desenvolvimento de plano de utilização e solicitação de concessão” (1993), “Legislação

fundiária do Pará” (1992).

A partir da leitura das publicações de José Heder Benatti – livros, capítulos de livros,

artigos e demais produções técnicas – percebem-se alguns títulos publicados em inglês bem

como trabalhos que possuem um caráter mais técnico e intervencionista na realidade social.

Esta característica deve-se, dentre outros fatores, às conexões existentes entre o profissional

analisado e as redes mais amplas de movimentos sociais, inclusive de caráter internacional –

em especial os Estados Unidos – das quais Benatti faz parte.

Conforme revelado em entrevista e por meio da análise de seu currículo, José Benatti

foi orientado pelo norte-americano David Gibss McGrath, um dos fundadores da ONG

ambientalista IPAM, junto com David Nepstar73.

Acerca desta ONG, afirma Buclet (2011, p. 142) que o IPAM pode ser classificado

como uma ONG socioambientalista de pesquisa que, além de defender valores relacionados à

ecologia e ao humanismo, desenvolve atividades centradas em torno da avaliação científica e

da consultoria. Ainda segundo Buclet (2009) e conforme já discutido em capítulos anteriores,

o conhecimento técnico dessas ONGs, centrado no circuito universitário dos Estados Unidos e

instituições correlatas, é voltado para um mercado internacional e, ao mesmo tempo, funciona

como um direito de entrada no mercado da perícia não governamental no espaço nacional.

Dessa forma, percebe-se na trajetória das pessoas chave dessas organizações lógicas de

importação e exportação de perícia ambiental.

Nesse sentido, importante recuperar as reflexões de Fabiano Engelmann (2007, p.01)

acerca dos fenômenos de “internacionalização do direito vinculados à importação-exportação

73 Conforme Bouclet (2009, p. 96), “Nepstar foi o primeiro presidente do IPAM, passando depois para a função de coordenador. Um doutorando orientado por ele, Paulo Moutinho, se tornou o primeiro diretor e as equipes dos dois projetos se juntaram para formar o corpo técnico da ONG: conforme Daniel Nepstar, ‘o IPAM nasceu com 35 pessoas, era um mostro já’. Esse ‘monstro’ contava também com a participação de José Benatti, advogado de movimentos sociais no Pará, que tinha um vínculo muito forte com os movimentos sociais, em particular com o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), e que fortaleceu a diferenciação do IPAM em relação ao IMAZON no sentido de atuação social (...). Com mais de 110 funcionários, o IPAM encontra-se organizado em cinco programas: Biodiversidade, Cenários para a Amazônia, Floresta e Comunidades, Manejo da Várzea, Mudanças Climáticas e Planejamento Regional (...). Quatro desses programas são coordenados pelos fundadores, McGrath e Nepstar, Moutinho e Benatti e, como o IMAZON, vários profissionais se formaram ou tiveram experiência profissional nos Estados Unidos”.

Page 125: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

124

de causas políticas traduzidas para o espaço judiciário por juristas vinculados a um padrão de

militantismo político e jurídico”.

Para o referido, a importação-exportação das causas coletivas se apóia em redes

formais (associadas ao movimento internacional dos "direitos humanos") e em redes

informais (vinculadas ao militantismo e a defesa judicial de determinados grupos, tal como o

pertencimento a determinado partido político, ONG, movimento social ou órgão de defesa

corporativa). Nesse sentido, conforme expõe o autor:

No caso brasileiro, os advogados relacionados à militância política através do direito constituem uma modalidade de agentes que conseguiram ascender no espaço jurídico combinando a expertise jurídica com um conjunto de relações estabelecidas através do militantismo (ENGELMMAN, 2007, p. 06).

Cumpre ainda destacar que a vinculação desses agentes jurídicos com os movimentos

sociais e ativistas internacionais de instituições voltadas para a defesa dos direitos humanos e

do meio ambiente, que se dá por meio de consultorias, publicações, participação em eventos

etc., possibilita que os mesmos se engajassem em causas políticas, “traduzindo” para o campo

jurídico os conflitos vivenciados pelos grupos nas esferas política e social.

Percebe-se, portanto, há uma assimilação de causas coletivas internacionais, que são

difundidas através de redes de ativistas internacionais e, inclusive, pelo ensino jurídico, o que

tem como implicação a efetivação de uma forma específica de lidar com as idéias e princípios

jurídicos, conforme observamos no que se refere à compreensão desses agentes com as causas

relacionadas aos “povos e comunidades tradicionais”.

Estes aspectos aplicam-se aos demais profissionais analisados, tendo em vista que com

base nos depoimentos colhidos nas entrevistas e no material pesquisado no que concerne às

carreiras destes diferentes profissionais situados no espaço judicial, podemos perceber que os

mesmos revelam um comprometimento de caráter predominantemente político com o serviço

das causas socioambientais.

Assim, é perceptível uma conjunção entre engajamento militante e exercício

profissional na trajetória dos agentes estudados, que concebem tais espaços como simultâneos

e não dissociados.

De igual forma, pode-se afirmar que os agentes analisados se inserem no chamado

“ativismo judicial”, o que produz transformações tanto nas formas de fazer e pensar a política

quanto nas formas de fazer e pensar o direito.

Page 126: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

125

Nesse sentido, tomando de empréstimos as considerações elaboradas por Vecchioli74

(2006, p.01) no que se refere à análise de advogados especializados na causa dos direitos

humanos, podemos afirmar que “trata-se de profissionais que se constituem como tal por

terem como referência dois espaços simultâneos de atuação: o engajamento militante e o

exercício profissional do direito”.

No mesmo sentido, as afirmações de Baeta Neves e Petrarca (2009) corroboram com o

entendimento de que a ampliação das esferas de ação jurídica se relaciona com a ampliação

do militantismo profissional, ou seja, a conciliação entre a prática profissional e o

engajamento militante, funcionando como tradutores dos problemas sociais para a esfera do

direito.

Assim, conforme destacam as autoras, “a utilização da justiça se apresenta como

substituto da arena política tradicional e um espaço de luta política, constituindo-se como

importante argumento para impor e construir a causa” e, da mesma forma, além da imposição

e construção desta causa há que se destacar que a utilização dos recursos jurídicos e do saber-

fazer profissional pelos agentes situados neste espaço funciona como importante instrumento

de demarcação de suas tomadas de posição no campo de poder (BAETA NEVES,

PETRARCA, 2009, p. 17).

Ocorre, portanto uma relação entre o espaço judicial e as mobilizações coletivas,

existindo estratégias desenvolvidas, tanto pelos movimentos sociais na apropriação deste

espaço judicial, quanto na preocupação, por parte dos profissionais situados neste espaço, de

aproximar – e traduzir – as causas sociais para as causas jurídicas, ou como menciona Baeta

Neves e Pertarca (2009, p. 10), “a tradução das causas militantes para causas profissionais”.

Assim, percebe-se, na análise das informações prestadas pelos agentes, que, embora

pertencentes a diferentes instituições (no caso, o Ministério Público, a Academia e os

movimentos sociais e instituições públicas e privadas vinculados a temática socioambiental)

há um estreito relacionamento entre esses agentes. Constatou-se inclusive nas falas dos

entrevistados – tanto nos momentos da gravação das entrevistas quanto nas conversas não

gravadas – a referência que tais agentes faziam uns aos outros75 no que se refere a análise

desta temática.

74 As reflexões desenvolvidas por Virgínia Vecchioli (2006), embora se refiram a um contexto histórico, político e espacial diferenciado – pois se reporta ao engajamento de advogados especialistas na Argentina envolvidos na institucionalização da causa dos direitos humanos naquele país – nos ajuda a pensar na construção da causa socioambiental e nas intersecções existentes entre o engajamento militante e o exercício profissional. 75 A título de exemplo, mencione-se que, sobretudo quando questionados acerca do seu entendimento sobre a expressão “povos e comunidades tradicionais” vários dos entrevistados fizeram menção aos estudos desenvolvidos pelo antropólogo Alfredo Wagner B. de Almeida, com quem revelam possuir laços de amizade,

Page 127: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

126

Nesse sentido, conforme ressalta Vecchioli, (2006, p.12) acerca da importância dessas

redes de relações entre os agentes, “as ações desenvolvidas pelos militantes da causa ganha

sentido não só ao serem consideradas por sua relação com o Estado, mas pela relação com

outros profissionais da política e do direito que se colocam em uma posição de maior

proximidade com essa militância”.

Da mesma forma, podemos afirmar que tais agentes possuem uma grande circulação

entre diferentes instituições – inclusive, agências internacionais de desenvolvimento e

pesquisa – o que leva, em alguns aspectos, a uma uniformização de seus discursos.

Cumpre ainda destacar a similaridade entre os agentes analisados no que se refere ao

posicionamento de que a formação acadêmica e profissional deve ser instrumentalizada e

colocada a serviço da politização das causas que atuam. A ênfase no relato das experiências

de ativismo vivenciadas, antes mesmo da entrada na Universidade, demonstra a afinidade com

questões relacionadas com a causa socioambiental, bem como a ênfase dada à necessidade de

aliar “realidade” e “prática”, ou seja, a importância de articular a formação escolar e

universitária ao engajamento político e em movimentos sociais e religiosos.

Isso se torna ainda mais evidenciado quanto se analisa os relatos das motivações de

alguns agentes – sobretudo nos relatos dos membros do Ministério Público Federal – acerca

das suas trajetórias e motivações para atuar nas causas socioambientais. Nesse sentido, como

destaca Oliveira (2008, p. 110):

O valor e a utilidade da formação escolar e universitária para o exercício profissional sempre implica a capacidade ou a competência de “articular” os recursos adquiridos durante o processo de escolarização à “realidade” e à “prática”. A aquisição de uma formação universitária, de competências técnicas e de suas vinculações com o exercício profissional são apresentados como indissociáveis da capacidade de integrar tais tipos de conhecimento e “ideologias e práticas políticas”, de modo que sem esse “compromisso” ou “articulação” com a “realidade”, a escola e a formação que ela oferece não tem nenhum valor.

Por fim, cumpre ainda destacar a existência de um questionamento, por parte desses

juristas – tanto situados no Ministério Público quanto na Academia – sobre a instituição do

“monopólio do direito de dizer o direito”, que, por sua vez, contribui para que haja uma cisão

social entre profanos e os profissionais. (BOURDIEU, 1998, p. 213). Acerca desse

monopólio, afirma Pierre Bourdieu (1998):

O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na

expressos em agradecimentos constantes em suas obras e situações vivenciadas – e relatadas de forma informal – no que se refere ao desenvolvimento de trabalhos realizados de forma conjunta.

Page 128: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

127

qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social (1998, p. 212).

Ainda segundo Bourdieu, a prática teórica de interpretação dos textos jurídicos está

orientada para fins práticos, de modo que é necessário manter a restrição de sua autonomia,

com vistas a assegurar uma interpretação juridicamente regulada. Conforme Bourdieu: “as

divergências entre os intérpretes autorizados são necessariamente limitadas e a coexistência

de uma pluralidade de normas jurídicas concorrentes está excluída por definição da ordem

jurídica” (1998, p. 213).

Por meio dos casos representativos dos juristas analisados evidencia-se que deve haver

uma crítica constante direcionada as relações de poder fundadas no “monopólio” dos juristas

de dizer o direito, uma vez que, conforme afirmam, deve haver uma preocupação dos

operadores do direito em “compreender ao invés de interpretar” (DUPRAT, 2007, p. 23) e

uma “ruptura com esquemas jurídicos pré-concebidos” (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 29).

Nesse sentido, conforme destaca Engelmann (2006, p. 33), o conjunto de tomadas de

posição acerca de definições do direito construídas a partir da apropriação da “sociologia” e

da “filosofia do direito”, bem como o investimento em títulos escolares (mestrado e

doutorado), possibilitam aos juristas relacionados à produção “crítica do direito” que façam

usos mais “políticos” e “sociais” do direito.

3.2 Interpretações e posicionamentos dos profissionais do direito sobre a expressão “povos e comunidades tradicionais”

Conforme analisado, os profissionais do direito aqui investigados possuem

diferenciadas formas atuação junto aos “povos e comunidades tradicionais”. Por um lado,

alguns apresentam uma atuação mais relacionada à prática jurídica com esses grupos, ao

defenderem as demandas nos tribunais, por outro, abordam as temáticas envolvendo os

direitos desses grupos a partir de uma perspectiva mais acadêmica, por meio de publicações

de livros, artigos e demais trabalhos técnicos.

De qualquer forma, percebe-se um processo de construção e consolidação da categoria

analisada, quer nos espaços propriamente jurídicos, quer nas discussões e debates acadêmicos,

Page 129: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

128

levando à formação de uma comunidade de intérpretes jurídicos autorizados para falar em

nome dessas questões.

Contudo, a partir dos relatos e posicionamentos a respeito da expressão “povos e

comunidades tradicionais” por parte dos diferentes profissionais, tanto os situados no

Ministério Público quanto os situados nas universidades, percebe-se a existência de discursos

heterogêneos e diferenciados.

Tais discursos, como já tivemos a oportunidade de ressaltar, encontram-se

disponibilizados em diferentes meios, contudo, para fins desta análise, serão considerados

apenas os depoimentos colhidos em entrevistas76. Ressalte-se, ainda, que esses discursos,

muitas vezes, acabam sendo incorporados nos processos legislativos acerca dos “povos e

comunidades tradicionais”, de modo que os juristas aqui investigados podem ser tidos como

produtores de categorias e realidades jurídicas.

Nesse sentido, mencione-se a participação de José Heder Benatti no processo de

elaboração da Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação,

haja vista que, durante o processo de discussão e aprovação da lei, assessorou juridicamente o

Conselho Nacional dos Seringueiros.

Quando questionado sobre a sua atuação nesses processos legislativos de elaboração

de instrumentos jurídicos, afirma Benatti que sua participação se deu em regulamentos tanto

em nível de decreto como na própria legislação sobre a possibilidade de regularização

coletiva. No âmbito das discussões sobre a legislação em nível federal, afirma:

Participei diretamente, discutia, propunha, no próprio SNUC eu dizia – porque a gente assessorava o Conselho Nacional dos Seringueiros e alertava: “olha cuidado se tiver esse comando, pode prejudicar vocês”. Porque, lembro que na reserva extrativista, na primeira propostas, dizia que não podia ter plano de manejo, não podia ser feito exploração florestal. Isso é um erro. Se vai ter manejo florestal ou não é uma decisão de vocês, e não da Lei. É o plano de manejo que vai ter que definir, se vai ter ou não. Se a priori vocês optarem pela exclusão, vocês tão fora, e é o principal recurso (...) que vocês têm de acesso financeiro, é madeira. Então, já excluir... O que vai acontecer na prática é que vai ser exploração ilegal, achar que não vai explorar é besteira. Depois você tem o debate na legislação, que a gente participou também, da política nacional de concessão florestal, que tinha a questão lá, a questão muito forte de assegurar direitos das populações tradicionais, as áreas que seriam cedidas, só seriam cedidas depois que fossem reconhecidos os direitos das populações tradicionais ou então as áreas que eles reivindicassem tinha que ser excluída essa concessão, participamos lá desse debate e o decreto que regulamentou a questão das

76 Quer estas tenham sido diretamente realizada ou obtida em outras fontes, como a Internet. Tal ressalva se faz importante, vez que, a despeito da intensa e importante produção bibliográfica de alguns dos agentes investigados, não pudemos – por questões de limitações de tempo e mesmo de acesso a estas publicações – analisar as obras dos mesmos no que concerne a temática em estudo, o que deverá ser feito na continuidade da pesquisa aqui apresentada.

Page 130: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

129

populações tradicionais, que é que criou a política nacional das populações tracionais, mas foi uma participação mais indireta (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Da mesma forma, destaca-se a atuação de Girolamo Treccani que ajudou a discutir a

legislação dos estados do Pará e do Piauí e a legislação de vários estados que se refere à

reflexão sobre as comunidades quilombolas e ainda atuou em reuniões do processo legislativo

que culminaram com a elaboração do Decreto Federal 4.887/2003, que trata da

regulamentação das terras quilombolas.

Conforme destacou em entrevista, Girolamo Treccani destacou os avanços obtidos

com a aprovação deste decreto em relação ao anterior que regulamentava a matéria, o Decreto

Federal 3.912/200177, bastante criticado, dentre outros fatores, pelo critério de tempo adotado

para reconhecer o direito dos quilombolas.

Estas críticas são também compartilhadas pela Subprocuradora-geral, Deborah

Duprat, para quem o Decreto 3.912/2001 seria ostensivamente discriminatório e sua

orientação estritamente escravagista, de modo que o instrumento posterior, o Decreto

4.887/2003, traduziria de forma mais adequada o que diz a Constituição Federal no que

pertine a esses grupos. Conforme afirma Duprat:

Eu tenho um artigo, em que procurava mostrar a inconstitucionalidade do antigo Decreto 3.912, onde dizia que toda escritura tem que ser lida no contexto atual em que se apresenta. Aliás, isso não é novidade alguma, faz parte do cotidiano dos operadores do direito. No caso, o dado é particularmente grave, pois o conceito de quilombo foi produzido por aqueles que escravizavam. Significar quilombos tal como conceituado à época da escravidão seria importar aquele regime para o seio de uma Constituição cujo princípio vetor é o da dignidade da pessoa humana. Ou seja, há uma incompatibilidade fundamental e lógica: de um lado, uma Constituição erigida sob princípios de dignidade do indivíduo, de pluralismo sócio-cultural, de justiça social; de outro, uma norma constitucional, que segundo alguns, lexicamente, remetia a sua compreensão do período da escravidão. De modo que a conceituação de quilombos, a partir de regra produzida no regime da escravidão, é, à toda evidência, inconstitucional78.

77 O Decreto 3.912/2001 trazia a seguinte redação em seu art. 1º: “Compete a Fundação Cultural Palmares – FCP iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades de quilombo, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupadas. Parágrafo único: Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a propriedade sobre as terras que: I – eram ocupadas por quilombos em 1888; e II – estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 05 de outubro de 1988”. Conforme afirma Duprat (2007, p. 32), o prazo definido no decreto acarretava a necessidade de comprovar a ocupação por cem anos de qualquer terreno reivindicado, sendo que o art. 68 do ADCT não apresenta qualquer critério temporal quanto à antiguidade da ocupação, nem determina que haja coincidência entre a ocupação originária e a atual, motivo pelo qual foi alegada a inconstitucionalidade do referido instrumento. 78 SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.

Page 131: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

130

Isto posto, percebe-se que a atuação desses agentes não se circunscreve apenas a uma

discussão mais acadêmica ou jurídica: ela tem efeito na elaboração e no aperfeiçoamento de

instrumentos legislativos, de modo que podemos situar esses juristas, conforme já

mencionamos, como produtores de sentidos no que concerne a essa discussão.

No entanto, cumpre ressaltar novamente que embora em alguns momentos os agentes

pareçam convergir nas suas interpretações, em outros apresentam posicionamentos

diferenciados, quer tais posicionamentos decorram da percepção e da atuação mais prática

com esses grupos ou ainda, a partir de uma maior apropriação das discussões realizadas no

âmbito das ciências sociais

Acerca desses aspectos acima mencionados, podemos destacar alguns trechos das

entrevistas realizadas, como forma de perceber quais as divergências e as convergências de

entendimentos entre profissionais de diferentes instituições ou que, ainda pertencentes à

mesma instituição, manifestem posicionamentos bastante diversificados sobre essas questões.

Tal reflexão, portanto, se faz necessária para melhor compreender as acepções dadas à

expressão “povos e comunidades tradicionais” e as especificidades destacadas pelos

entrevistados no que se refere ao entendimento sobre essa categoria.

Nesse sentido, expondo sua percepção sobre esta expressão, Girolamo Treccani

afirma:

No meu entender, pela minha experiência mais concreta, pelos estudos feitos, eu entendo que existe um núcleo fundamental comum, que seria uso, não diria coletivo no sentido que a gente dá, de maneira, assim, no sentido comum da terra. Na realidade, comunidades remanescentes de quilombo no estado do Pará e outros grupos sociais, cada um deles tem seu lote, portanto não é nenhum coletivo no sentido que existe uma exploração comunitária. Agora, apesar disso, a propriedade é coletiva, porque além do espaço familiar tem o espaço efetivamente coletivo onde a exploração de fato é feita a partir de negociações, e negociações que muitas vezes nem sequer estão escritas, nem sequer estão evidentemente consagradas em instrumentos como contratos ou como estatutos ou como regimentos internos. (...). Portanto se é uma propriedade coletiva no sentido estrito, é uma propriedade coletiva no sentido amplo, exatamente por essas discussões de necessidade de se estabelecer normas de utilização de alguns recursos comuns e daquilo que é pessoal, pessoal familiar, como é que isso é trabalhado e é respeitado. Portanto, muito difícil para mim dar conceitos. Eu li o livro do Diegues, li o livro do Alfredo79, li o livro dos meus amigos antropólogos, mas existe muita complicação no meio do caminho (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

79 Os autores citados referem-se aos antropólogos Antonio Carlos Diegues e Alfredo Wagner Berno de Almeida. Este último é recorrentemente citado em outros trechos da entrevista realizada com Girolamo Treccani como “Alfredo”.

Page 132: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

131

Ainda fazendo menção aos profissionais e às discussões realizadas no âmbito das

ciências sociais, José Heder Benatti, quando questionado sobre seu entendimento acerca da

categoria “povos e comunidades tradicionais”, afirma que a mesma não possui uma definição

propriamente jurídica, mas sim antropológica, ou, em suas palavras, “o conceito nosso é

muito alimentado do diálogo com a antropologia” (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Para Benatti, tal categoria seria aplicável aos grupos que se apropriam dos recursos

naturais a partir do extrativismo. Segundo menciona, “não é a única fonte, mas (...) o

extrativismo é importante, pois exige muito tempo de uso desses recursos naturais e tem

alguma identidade do espaço que [os povos e comunidades tradicionais] ocupam” (Entrevista

realizada no dia 23/05/2011).

Acerca dos grupos aos quais essa categoria pode abranger, Girolamo Treccani, a partir

da sua experiência profissional – tanto no que se refere ao trabalho de campo no contato

direto com esses grupos, quanto no que se refere a uma reflexão mais teórica – afirma:

Na realidade, quais são os grupos fundamentais, são ribeirinhos – e na categoria ribeirinho eu incluiria aquele camponês que ao mesmo tempo vive da roça dele, vive da pesca, vive da exploração, sobretudo do açaí na nossa região, e vive da exploração da castanha, aqui e acolá, enfim, poderia ser definido como agroextrativista no sentido mais técnico da coisa. Outra categoria fundamental, aquilo que poderia ser definido como lavrador ou campesinato clássico, que é aquele, sobretudo na região mais perto de Belém, que já está naquela região a algumas gerações, não se reconhece como população tradicional no sentido clássico do termo, tem, portanto, uma pretensão de ter uma propriedade familiar específica, com um documento específico de sua terra, mas que tá aberto, tá em diálogo e é até o aliado, normalmente, inclusive contra o latifúndio, contra o poder público, contra o juiz que vai dar a liminar, contra a polícia que vai dar o despejo... enfim, aliado um do outro. Claro que não se reconhece como população tradicional, mas não deixa de não ter características que fariam dele como muito próximo as populações tradicionais (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

Outra discussão levantada por Treccani, refere-se à incapacidade de o poder público

perceber a diversidade de grupos implicados nessa categoria. Conforme destacado, uma das

questões aprofundadas em seu doutorado foi discutir a dificuldade da legislação agrária,

federal e estadual, dialogar com a multiplicidade de situações, não só fundiárias, mas também

relativas a questões étnico-culturais. Para ele, essas diferentes realidades nunca foram

efetivamente incorporadas no arcabouço jurídico, exceto no caso das populações indígenas,

que já possuem uma legislação mais consolidada.

A incapacidade desses instrumentos criados pelo poder públicos em perceber essas

nuanças produz algumas situações que, do ponto de vista do entrevistado, são discrepantes,

Page 133: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

132

tendo em vista que categorias censitárias oficiais não dão conta de traduzir as realidades

desses grupos. Segundo afirma:

Isso fez com que, por exemplo, todas as comunidades remanescentes de quilombo do estado do Pará, que tenham área superior a 300, 400 hectares, praticamente 90% delas, são enquadradas pelo INCRA como grandes e improdutivas, exatamente porque não se usam categorias específicas de entendimento daquela realidade. É aquilo que o Alfredo trabalha em vários livros que ele escreveu e, sobretudo, nas introduções ao livro sobre Jamary dos Pretos, sobre Frechal, ele faz muito a diferença entre imóvel rural, como categoria censitária do IBGE, e outras dinâmicas, as terra de negro, terra de santo etc., enfim... Isso faz com que se tenha, evidentemente, como tava dizendo, uma dificuldade inclusive teórica de tentar identificar melhor o que significam essas realidades (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

No mesmo sentido, na tentativa de destacar essa incapacidade do Estado, em suas

diferentes esferas, de perceber as diferenças implicadas quando se trata desses grupos, bem

como a reprodução da visão errônea que os concebe apenas a partir de carência e da falta,

Deborah Duprat afirma:

O Estado ainda não está preparado para lidar com as diferenças. Isso é um dado inequívoco. Suas políticas públicas, em geral, são orientadas pelo modelo anterior, em que havia um padrão de sujeito de direito, aparentemente abstrato, sem qualidades, intercambiável. É preciso, portanto, que o Estado se capacite, que produza para si conhecimento, de modo a que a sua atuação leve em conta, de fato e de modo eficaz, a diferença. Do contrário, o Estado seguirá sendo um agente colonizador. É também necessário que se desfaça da noção de que todos os pleitos são de natureza econômica, que há um quadro de pobreza que alcança a todos esses grupos e seus membros indistintamente. Essa é uma falsa visão. Por isso, antes de mais nada, conhecimento, para poder agir com eficácia80.

Ainda com relação à definição da categoria, para Girolamo Treccani, mais importante

do que definir esses grupos, é perceber como eles próprios entendem sua inclusão entre os

“povos e comunidades tradicionais”. Importante também, conforme destaca é perceber a

multiplicidade de grupos implicados nessa discussão e o fato de que, apesar das diferenças

que guardam entre si, os mesmos possuem algo parecido e reivindicam questões específicas.

Afirma Treccani:

No Encontro dos Povos da Floresta (...) a grande discussão que percebi – não só nesse encontro mais específico, mas também no encontro nacional, onde se discutia a política de plano nacional – era a multiplicidade de realidades. Por exemplo, nesse último encontro de dois anos atrás em Olinda, quando nas teses aparecia “populações tradicionais” a plenária levantava e dizia, “não, tem que ser populações tradicionais e dizer quem é quem”. E aí vinha uma lista de 05, 10, 20 nomes diferentes. Acho que hoje este é um dos

80 SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.

Page 134: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

133

desafios que o trabalho do Alfredo Wagner e sua equipe mostra claramente, no trabalho de cartografia social, isto é, a grande quantidade de grupos diferentes que, ao mesmo tempo, reconhecem algo parecido entre si – portanto o decreto 6.040/07 seria o grande guarda chuva para todo mundo – mas ao mesmo tempo, reivindicam questões bem específicas. Portanto, por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu, do Maranhão, Tocantins e sul do Pará, não tem nada que ver com o castanheiro da região dos castanhais de Marabá – é claro que ambas estão no mesmo quadro, e até, no caso específico, no CNS – que não tem muita coisa que ver com o explorador da castanha do Pará do Acre, no sentido de que a organização é diferente, apesar de ser o mesmo produto (...) mas a realidade socioeconômica é diferente, tem nuances diferentes... (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

Outro aspecto levantado pelos entrevistados no que se refere à discussão sobre essa

categoria, refere-se à invisibilidade desses grupos sociais, tendo em vista que durante muito

tempo questões relacionadas às identidades diferenciadas e territorialidades específicas não

foram objeto de debate e discussão.

Nesse sentido, destacando esse processo, ainda incipiente, de recente visibilidade dos

“povos e comunidades tradicionais”, afirma o Procurador da República do estado do Pará

Felício Pontes Júnior:

Elas sempre existiram, mas, quando eu comecei a atuar na prática eu percebi que havia mesmo era invisibilidade, que elas eram invisíveis aos olhos dos juízes, e que tinham uma carência muito grande de produção literária sobre eles. Nós não tínhamos isso ainda incorporado, até a própria denominação deles era uma coisa que se discutia. As pessoas por muito tempo, eu me lembro que de 1988 até mais ou menos 1999, 2000, (...) a própria denominação quilombola era uma coisa que tava ainda em construção, tinha acabado de vir da Constituição e ainda não tinha, isso tudo era, eles eram invisíveis, completamente invisíveis. Então, eu acho que uma coisa que mudou em relação a isso, que vem mudando, embora a gente ainda esteja muito aquém, é que nós precisamos de uma produção acadêmica que possa falar sobre essas pessoas, dar visibilidade a esses grupos sociais, uma primeira coisa, e que possa também aprofundar a questão dos direitos delas, trabalhar as questões dos direitos (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Sobre essa discussão de direitos diferenciados e as implicações sobre os “povos e

comunidades tradicionais” no âmbito do Judiciário, o Procurador da República no estado do

Maranhão, Alexandre Silva Soares, faz importante reflexões, enfatizando a falta de marcos

jurídicos muito claros no que concerne aos direitos desses grupos. Segundo afirma:

Na verdade é uma categoria ampla, é uma categoria em construção, que está sendo delimitada com relação a esses grupos. Se você observar a situação, há trinta anos, quem era povo tradicional? Era só índio, na fala dos juristas. Hoje em dia, o leque foi ampliado. Foi ampliado, inicialmente com a inclusão da categoria das comunidades de remanescente de quilombo e hoje em dia você tem uma série de grupos, você tem as quebradeiras de coco, você tem a questão das populações ribeirinhas, uma série de múltiplas partes,

Page 135: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

134

digamos assim. Tem todo um conjunto aí de integrantes do campesinato que pode ser considerados também como populações tradicionais a serem objeto de especial proteção. O grande problema é que ainda que a gente tenha essa definição do que sejam populações tradicionais, você não tem muita clareza com relação aos direitos dessas populações tradicionais. Por quê? Pela falta de marcos muito claros com relação a elas. Com relação a indígenas e quilombolas é que você tem alguns marcos. Agora com relação a outros grupos, você não tem direitos diferenciados para essas pessoas. Aí é que você tem que fazer a leitura diferenciada de direitos que estão presentes nos textos normativos, mas isso é uma tarefa ainda a ser feita (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Com relação aos instrumentos jurídicos e aos marcos legais sobre essa questão,

cumpre destacar a existência de diversos dispositivos internacionais ratificados pelo Brasil

que reafirmam o reconhecimento desses povos e grupos sociais. Dentre estes, menciona-se a

Convenção 169 da OIT que trata dos “povos indígenas e tribais” e foi adotada pela

Organização Internacional do Trabalho em 1989, conforme discutido no item 1.3.1 deste

trabalho.

Tal instrumento, composto de 44 artigos, distribuídos em dez “partes”, possui um

caráter programático, ou seja, seu conteúdo funciona como princípios jurídicos orientadores

de demais instrumentos e ações a serem adotados nos âmbitos dos Estados nacionais. Assim,

as Declarações e Convenções Internacionais carecem de efetividade propriamente jurídica,

possuindo um caráter sancionatório de cunho mais político e comercial (por meio dos

embargos econômicos), conforme discutimos no primeiro capítulo deste trabalho.

Disto decorre a dificuldade em operacionalizar a categoria “povos indígenas e

tribais”, dado caráter universal e abstrato da mesma e, além do mais, ainda existem algumas

polêmicas que a utilização dessas categorias pode suscitar, conforme observado por alguns

dos entrevistados. Nesse sentido, afirma o Procurador Alexandre Silva Soares:

Que você tenta fazer a partir do texto da Constituição e de algumas convenções internacionais, como é o caso da Convenção 169 da OIT, mas mesmo assim suscita muita polêmica na aplicação. Eu lembro assim que há pouco tempo atrás a gente lançou uma recomendação (...) sobre questão da Resex do Tauá-Mirim e um dos fundamentos que a gente tava suscitando para o não deslocamento de populações tradicionais da área da Resex do Tauá, era da Convenção 169 da OIT. E aí, assim, uma das discussões que a gente teve na Procuradoria e que a gente suprimiu do texto da recomendação foi exatamente a utilização da Convenção 169. Porque iam ficar naquela discussão: mas o pessoal de Tauá Mirim, eles podem ser enquadrados nesse contexto povos tribais? Afinal de contas, caberia ou não caberia nesse conceito ou ele seria, digamos assim, um elemento de embate negativo socialmente? Porque isso é uma questão (...), porque a gente tem que ter a preocupação de que essa discussão não caia, digamos assim, não seja alvo de crítica maior do que já é. Então, você também tem que pensar nas

Page 136: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

135

repercussões da adoção de determinados instrumentos com as conseqüências dele (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Além da manifesta preocupação com a possível estigmatização que a categoria “povos

indígenas e tribais” poderia lançar sobre os grupos que a Convenção 169 da OIT pretende

abranger, o Procurador Alexandre Silva Soares também destaca o necessário, porém difícil,

processo de “adequação” à realidade nacional de uma categoria pensada e elaborada em

contexto externo. Nesse sentido, afirma:

O grande problema na verdade é esse, que esses conceitos são pensados em uma realidade que não é a nossa, e quando a gente faz a leitura disso causa uma certa estranheza aos olhos dos demais brasileiros (...). Pensar que a nossa sociedade não é uma coisa única, digamos assim, uniforme, onde no máximo você tem aquela figura exótica do índio. Porque é isso: o índio é índio quando ele é visto com exotismo, o índio que não tem essa característica é tido como um desviante (...) “ah, mais esse cara não é mais índio, ele usa computador”. Então assim, essa leitura (...) de instrumentos internacionais no contexto interno é uma leitura que tem que ser feita com cautela, certo? Nesse sentido, é preciso ter atenção para as particularidades do contexto nacional, percebendo que a sociedade brasileira é uma sociedade formada por vários grupos, é uma sociedade que é formada por diversos segmentos e esses diversos segmentos têm formas de pensar a realidade diferente das nossas... Ainda que não totalmente, às vezes as lógicas coincidem, às vezes não, às vezes essa diferença não é com relação a aspirações de vida e outras é, quanto a conforto, quanto a bens de consumo, quanto a utilização de bens ambientais... Então, essas diferenças de visões, de sociedade, de mundo, de fazeres, de modos de criar e viver às vezes ela é em todo distinta, como no caso dos índios, mas as vezes não é de todo distinta. E a questão é até que ponto você pode considerar isso como um grupo que tem essa marca da tradicionalidade e, sobretudo, a ser alcançada por um instrumento internacional de proteção como a Convenção 169 (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Precisamente no que se refere à adoção no contexto nacional de uma categoria

internacionalmente elaborada, os demais juristas entrevistados manifestam a mesma

preocupação do Procurador Alexandre Silva Soares, ou seja, de que essa discussão não seja

feita de forma descontextualizada, tendo em vista que a desconsideração das diferenças leva à

um agravamento dos problemas.

Por outro lado, os entrevistados também afirmam que, a despeito das limitações desses

instrumentos normativo devido o contexto exógeno em que fora elaborado, existem ganhos no

que se refere à utilização da Convenção 169 da OIT. Nesse sentido, o Procurador Felício

Pontes Júnior faz a seguinte reflexão:

Eu acho que num primeiro momento, eu vou lhe dar uma resposta de quem está fazendo uso disso na prática, de quem tem que usar essa legislação na prática de todo o dia. Num primeiro momento ela nos é extremamente válida. Por quê? Porque como nós não temos nenhuma outra legislação,

Page 137: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

136

como nós não temos nada específico, pelo menos para essas categorias de povos tribais, elas nos servem nesse momento. Mas o que eu acho, que a evolução tem que fazer é dizer o seguinte: que esses estatutos são estatutos que falam dessas categorias todas em termos gerais, como se fosse a espinha dorsal, e dessa espinha saem as ramificações que estes estatutos não contemplam. Então, eu acho válida a existência delas, porque, a gente tem que fazer uso delas e ainda bem que elas existem, por que senão nem isso nós teríamos como regras jurídicas para defender os direitos dessas populações, então é muito válido que isso exista, mas não pode ficar só nisso. O perigo que se tem não é a existência delas, mas é que ela acabe sendo as especificidades de todas as outras categorias, o que não pode ser. Eu vejo os direitos contemplados na Convenção 169, por exemplo, como direitos que pudessem ser ditos assim, estavam no capítulo das considerações gerais de um código e de que os outros capítulos fossem as considerações específicas de cada uma dessas categorias sociais (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Dessa forma, com base nos depoimentos, a Convenção 169 da OIT pode ser analisada

a partir do seguinte prisma: ela fornece alguns instrumentais (ainda que genéricos),

necessários à proteção coletiva de determinados grupos, que, por sua vez, poderão se

identificar com a categoria “povos indígenas e tribais” para fins de reconhecimento de direitos

sociais, econômicos, culturais dentre outros.

Nesse sentido, são pertinentes as reflexões levantadas pelos entrevistados com relação

à aplicação da Convenção 169 junto aos povos indígenas, às comunidades quilombolas e aos

“povos e comunidades tradicionais” a partir do reconhecimento do próprio grupo como

destinatários deste dispositivo jurídico. A esse respeito, Girolamo Treccani pontua:

Acho que é uma discussão jurídica a ser feita: para quem se aplica o 169? Ninguém duvida que se aplique às populações indígenas, ninguém discute, é tão louco de duvidar disso. Mas se nos formos pegar a Ação Direita de Inconstitucionalidade apresentada pelo PFL, hoje Democratas, contra o Decreto 4887/2003, expressamente esta ADIN não se coloca dizendo que comunidade remanescente de quilombo não se enquadrariam no 169. Mas dois argumentos fundamentais utilizados naquela ADIN contrariam o 169: a possibilidade do auto-reconhecimento e a possibilidade de que aquele grupo social possa indicar e desenhar, portanto, os limites do seu território. Isso significa na prática que, e eu já vi isso em alguns autores que defendem no rumo do PFL, que não acham que o169 não se aplicaria a comunidades remanescentes de quilombo. Pessoalmente acredito que não é bem assim, tá, eu entendo que aplica-se sim...(...). Ampliar, como já vi em vários debates e em algumas teses, esta realidade para as populações tradicionais que são abrangidas pelo 6.040/2007, aí já não é tão simples e não é tão aceito por parte considerável da doutrina. Eu pessoalmente acho que aplica-se sim a 169, agora isso, evidentemente, nos cria alguns problemas. Quais? Tem três coisas, pra mim fundamentais do 169. Duas são aquelas que referi ainda pouco, isto é o auto-reconhecimento e o segundo é a questão – e aqui fazendo um paralelo com o art. 231, §1º, na parte final da Constituição – que se refere a índios, tá. Portanto é bem específico, mas quando se refere a índios lá no final, diz seus usos e costumes, que seria o critério para

Page 138: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

137

determinar se aquela população é indígena ou não. Não existe dispositivo constitucional nesse sentido nem para remanescentes de quilombo nem para os demais que se reconhecem como comunidades tradicionais, mas pessoalmente entendo que aplica-se sim. Claro, não se aplica este dispositivo constitucional específico, ele é só para índio mesmo, mas de maneira similar eu entendo que é possível sim extrapolar esta categoria para as demais populações tradicionais fazendo com que, portanto, elas possam encontrar na 169 a sua filosofia de trabalho. E aí tem uma terceira coisa que ainda não coloquei que é a necessidade que toda e qualquer política pública, toda e qualquer legislação, os PAC81 da vida, que venham a atingir essas populações, necessariamente terão que passar por uma consulta a essas populações (...). E daí não vejo como consulta aqui onde o poder público vai dizer é assim e se não quiser é assim mesmo. No que diz respeito a Belo Monte, vai ser muito interessante, caso se venha a ter, não só como hoje esta entrada no cenário de Belo Monte da OEA, mas que por enquanto é só pedido de informações, se isso for mais adiante será interessante verificar se a 169 poderá ser utilizada não só pelas comunidades indígenas, que estão sendo e serão atingidas caso Belo Monte continue os trabalhos, como o governo federal está dizendo recentemente, mas também se, por exemplo, as outras comunidades, é, vamos pensar, por exemplo, as comunidades dos PDS82 que forma criados pelo INCRA naquela região. Ou comunidades ao redor, como por exemplo a comunidade do Bacajaí, onde o Estado criou um projeto de assentamento agroextrativista, enfim: será que essas populações poderão invocar o 169 para defender seus direitos? Essa é uma discussão que eu acho plausível mas que será interessante ver como é que será trabalhada, seja pelo Ministério Público Federal, em eventuais ações, qualquer que elas sejam, seja pelo próprio movimento enquanto reconhecimento desse instrumento a favor deles (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

Dessa forma, interessante sublinhar a indagação realizada por Girolamo Treccani,

tendo em vista que esta discussão não se encontra pacificada: os povos e grupos que não são

reconhecidos “oficialmente” como “povos indígenas e tribais” ou “povos e comunidades

tradicionais” poderão ser amparados pela Convenção 169 da OIT?

A priori, há entendimento que sim, posto que a Convenção 169, e mesmo o Decreto

6.040/2007, não definem que são esses grupos, mas sim, possibilitam os instrumentos

necessários para que o próprio sujeito se defina diante do seu grupo. Contudo, ainda paira a

indagação sobre a efetividade desta autoidentificação, sobretudo por parte dos grupos que não

são indígenas e nem quilombolas (vez que estes contam com outros instrumentos normativos

específicos de proteção), especialmente entre os setores mais conservadores e apegados à

dogmática jurídica.

Nesse sentido, interessante recuperar as reflexões de Deborah Dupart acerca do

conceito de auto-atribuiição ou autoidentificação, que ainda causa bastante estranheza a

81 Programa de Aceleração de Crescimento, do Governo Federal. 82 Projetos de Desenvolvimento Sustentável.

Page 139: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

138

alguns operadores do direito, havendo inclusive, manifestações, em alguns pareceres jurídicos

que exigem provas desta identificação. Conforme destaca:

Não só viemos de uma sociedade hegemônica; ela ainda luta por sobreviver. Nesse contexto, há um grupo que, dominante, tem o poder da classificação e da outorga de direitos dela decorrentes. Numa sociedade plural, não há quem possa validamente, a partir de uma posição de superioridade, classificar os demais. Se pudesse, não seria mais plural. Aliás, é de todo absurdo imaginar uma disputa judicial por identidades: alguém diz que é, o outro diz que não é, e um terceiro define se é ou não é. Em boa hora, isso acabou, não obstante a luta daqueles que desejam que tudo permaneça como era antes (...) Falam em remanescência, resíduo daquilo que um dia foi. Mas a Constituição tem em vista grupos existentes no presente, com projetos de futuro. Seu olhar não é para o passado. De resto, não é só juridicamente. Factualmente, os grupos estão aí, afirmando as suas identidades. Além do despropósito de alguém ficar por aí classificando pessoas e grupos, como iria provar essa remanescência? Fazer exame de DNA e procurar um ancestral histórico? Aliás, essa disputa em torno de identidades não é novidade alguma. De diferente, apenas que os quilombos são a bola da vez. Antes, foram os índios, e aquela tal prova de que eram descendentes de populações pré-colombianas. O desatino é tão grande que não resiste ao tempo83.

Essa discussão, portanto, se atualiza no caso dos chamados “povos e comunidades

tradicionais”, sem que as polêmicas em torno da identificação e da aplicação dos dispositivos

jurídicos – como a Convenção 169 da OIT – sobre indígenas e quilombolas tenham sido

superadas, conforme afirma Deborah Duprat. Retomando essa questão de outro modo, o

Procurador Alexandre Silva Soares afirma:

Eu acho que com relação à indígena e quilombola eu não tenho dúvida com relação à aplicabilidade dela, a questão é com relação aos outros grupos da sociedade brasileira, essa é que é a questão na verdade, até que ponto ela consegue alcançar efetivamente esses vários grupos formadores da sociedade brasileira, ou se faltam instrumentos que possam dar conta disso. A gente tem um marco normativo muito importante que é o Decreto 6.040/2007, que é o decreto de povos e populações tradicionais, a política nacional de povos e populações tradicionais, mas, que assim, é um negócio que é quase esquecido. Não tem muita aplicabilidade... (Entrevista realizada em 24/11/2011).

Ainda sobre a abrangência e aplicabilidade do Decreto 6.040/2007, que institui a

Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, Girolamo Treccani faz a seguinte

reflexão:

Se nós vamos pegar o decreto 6.040 e toda a legislação que implementa políticas para essas populações, desde o SNUC84 com (...) a possibilidade de

83 SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007 84 Sistema Nacional de Unidades de Conservação.

Page 140: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

139

criar RDS e RESEX, RESEX e RDS85, no sentido mais importante a nível de números, mas enfim, o próprio decreto ele abre, quando cria depois o conselho nacional de populações tradicionais, abre um vasto leque de nomes e aí fica de fato meio complicado poder chegar a categorias homogêneas. A própria definição que consta no 6.040 não diz muita coisa, do ponto de vista mais técnico. Ela quer ser abrangente, todas as vezes que se quer ser abrangente quando a realidade prática é muito diferenciada evidentemente não se tem muito como fazer esses enquadramentos (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

No que tange a esses enquadramentos e diferenciações entre “povos e comunidades

tradicionais”, “quilombolas” e “indígenas”, os agentes entrevistados manifestam

posicionamentos diferenciados, pois, se alguns não percebem grandes diferenças entre os

mesmos, outros os concebem como extremamente distintos entre si.

Questionada acerca desses aspectos, sobretudo devido ao fato de que os grupos acima

referidos tenham alguns de seus direitos abordados em instrumentos normativos específicos, a

Subprocuradora-Geral da República, Deborah Duprat, em entrevista concedida a Gilda Santos

e Gilson Afonseca, pontua que:

Rigorosamente, não vejo grande diferença. A começar que as distinções são externas aos grupos. São meras classificações produzidas por terceiros, sem maiores compromissos com os grupos que se pretende estejam ali refletidos. De resto, com a convenção 169, da OIT, toda essa discussão perdeu sua razão de ser. A uma, pelo critério da auto-atribuição. A duas, porque ela coloca, num grande bloco a que denomina povos tribais, grupos cujas condições sociais, econômicas e culturais os distinguem. Temos aí comunidades remanescentes de quilombos e populações tradicionais. O que há de diferente são os direitos que cabem a cada qual e que ficam a depender exatamente do modo específico de vida de cada um deles. Uma anotação com relação a esse Decreto 6.040. Ele traz para o plano legal aquilo que, não obstante já revelado pela Constituição, ainda era por muitos recusados. Essa é uma sociedade plural, e a diferença acarreta direitos específicos. Rompe-se o pressuposto, que orientou o direito anterior, de uma sociedade homogênea. Também acaba com aquela noção de cultura que a fazia corresponder exclusivamente aos seus aspectos arqueológicos, arquitetônicos, artísticos e folclóricos. A cultura é tomada como expressão de vida, e, portanto, é ela também essencialmente plural. A partir da Constituição de 88, da Convenção 169, desse Decreto, comunidades tradicionais não são aquelas que se imobilizaram no tempo, até porque não há nenhum grupo humano que possa assim permanecer. A cultura e a tradição são processos dinâmicos que estão em permanente renovação, no dia-a-dia86.

85 Reserva Extrativista e Reserva de Desenvolvimento Sustentável, duas modalidades de unidades de uso sustentável estabelecidas pela Lei 9.985/2000. 86 SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.

Page 141: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

140

No mesmo sentido do entendimento anterior, Deborah Duprat defende que, do ponto

de vista étnico, cultural e jurídico, não há que se falar em diferença com relação à posse da

terra. Assim, para a Subprocuradora-geral:

Em ambos os casos, cuida-se de assegurar um território necessário à produção e reprodução física e cultural do grupo. Ao Estado, incumbe garantir a pluralidade da sociedade nacional, o que significa que as suas responsabilidades são as mesmas, sejam eles índios, quilombos, ribeirinhos, quebradeiras, etc. As mesmas cautelas que se tem em relação aos territórios indígenas, constitucionalmente estipuladas, hão de ser tomadas em relação aos territórios dos demais grupos: gestão plena por seus membros, impossibilidade de deslocamentos compulsórios, atuação de terceiros a depender de consentimento prévio informado, inclusive no que diz respeito a políticas públicas87.

Já o Procurador da República Felício Pontes Júnior no que se refere à adoção de

estatutos jurídicos para indígenas, quilombolas e “povos e comunidades tradicionais”, possui

entendimento um tanto quanto diferenciado do que expôs Deborah Duprat, pois, conforme

afirma:

Há uma espinha dorsal que passa por todos eles. Mas é preciso reconhecer que são populações diferentes entre si, que tem especificidades e que não podem ser consideradas todas com um estatuto só, jurídico, para abrigar os direitos de todas essas comunidades. Há especificidade, há diferenças entre essas populações e isso precisa estar bem definido, e só se faz esta definição com a perfeita compreensão e conhecimento do uso, da forma de vida, de organização, de produção dessas comunidades, que são diferentes. Então eu acho que não há problema nenhum quando a gente vai pra cima e pode falar pra fora, eu defendo os povos das florestas, das populações tradicionais, não tem problema nenhum em relação a isso, de que isso aconteça, mas na hora que você tá lidando especificamente com uma população, em perigo, por algum projeto ou por alguma ação de alguma pessoa, aí você tem que ter mesmo, e definido, o grupo de direitos específicos daquela comunidade porque elas são, pra quem conhece a Amazônia, pra quem nela viveu, para quem trabalha com essas pessoas, sabe que há diferenças de compreensão de mundo mesmo entre elas (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Assim sendo, percebe-se que as classificações em torno dos “povos e comunidades

tradicionais” não são percebidas de forma homogênea. A depender do critério utilizado para

implementar as disposições relativas aos direitos desses grupos – sobretudo os territoriais – os

entrevistados podem sustentar que tais grupos pertencem a um mesmo “bloco”, no qual se

inserem também os povos indígenas e quilombolas, ou, de outra forma, podem alegar as

identidade e territorialidades específicas implicadas nessa discussão, impedindo a redução

desses grupos a uma mesma classificação.

87 SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.

Page 142: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

141

Trata-se, portanto, da tentativa, por parte destes operadores jurídicos, de encontrar

semelhanças importantes dentro da diversidade de situações que se apresentam na atualidade

sem, no entanto, reduzi-las a categorias universais e a-históricas, tão caras ao direito, mas tão

criticadas por esses profissionais aqui analisados.

Ainda no que concerne a percepção que dos profissionais entrevistados sobre esses

grupos, cumpre ressaltar como eles percebem a relação entre os “povos e comunidades

tradicionais” e o discurso ambientalista.

Tal relação, conforme se percebe nos trechos selecionados abaixo, aparece como

constitutiva desses grupos sociais, de modo que, para esses agentes, os objetivos de

convervação/preservação ambiental e as formas de vida dos chamados “povos e comunidades

tradicionais” são sinônimos.

José Heder Benatti, ao ser questionado sobre essa relação e apoiando-se em reflexões

desenvolvidas na antropologia, destaca que:

Ah, com certeza, na verdade, embora eles não tinham essa lógica, essa preocupação ambiental, mesmo que você queira excluir a área para o uso coletivo, mas, eu diria que, há um uso, eles tem o uso, eles tem uma preocupação do ponto de vista ambiental. Tanto é que na antropologia, na antropologia ambiental, eles mostram que tem estudos que dizem que na verdade a biodiversidade amazônica, das florestas tropicais, advêm muito mais da ação antrópica do que da própria natureza, que no próprio manejar da floresta eles foram aumentado a biodiversidade existente. Então não foi só formação natural, há uma intervenção humana já milenar aí (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Girolamo Treccani, ao ser questionado sobre a existência da relação entre o discurso

ambientalista e esses grupos sociais revela a mesma certeza no que se refere à convergência

de objetivos e, inclusive, menciona a necessidade de remunerar esses grupos pelos serviços

ambientais prestados. Segundo Treccani:

Sim, com certeza. Inclusive uma das discussões que nos fazíamos dentro da FETAGRI/Pará era exatamente o pagamento dos serviços ambientais como uma forma de remunerar essas práticas. Práticas estas que, evidentemente, tem seu ônus, do ponto de vista econômico e que, portanto, deveria se ter também o reconhecimento formal por parte da política pública com políticas específicas de apoio e de remuneração. Infelizmente esse discurso de serviços ambientais até hoje não encontrou eco nos governo federal nem nos governos estaduais, fazendo com que não se tenha conseguido avançar muito nisso. Hoje, ressurge, de uma maneira diferente quando se fazem as discussões sobre o seqüestro de carbono e toda essa dinâmica de pagamento... que no meu entender não é exatamente a mesma coisa. Tem coisas que vão na mesma direção mas não é exatamente a mesma coisa. Mas enfim, eu acho portanto que é uma discussão esta que precisaria ser melhor trabalhada, pois a conexão entre, não só o discurso mas a prática... (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

Page 143: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

142

Já o Procurador da República Felício Pontes Júnior, ao pensar sobre essa relação,

recupera o histórico de constituição do ambientalismo (inclusive no âmbito do direto),

destacando uma evolução no que concerne a visão da presença humana em espaços

protegidos, já que antes a relação destes grupos considerados “tradicionais” com o direito era

de embate e disputa. Em suas palavras:

Eu acho que houve uma evolução, pelo menos durante os 14 anos que eu tenho de Ministério Público, um pouco mais, porque eu tinha 10 anos de advocacia, mais de 14 de Ministério Público, eu vejo que houve uma diferença no tempo. Num primeiro momento, quando o movimento ambiental surge, ele surge com base numa formulação muito americana de concepção de Direito Ambiental, que era colocar numa redoma as áreas protegidas e que ninguém pudesse fazer parte disso. Então, num primeiro momento houve um choque muito grande entre as populações tradicionais, povos e comunidades tradicionais, com o Direito Ambiental. O que deveria ser um se apropriar do outro e fazer um movimento único, como eu acho que hoje existe, num primeiro momento não havia isso. Porque, até se você puder estudar, por exemplo, a Lei do SNUC, a Lei das Unidades de Conservação, a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, essa lei, a lei da política principalmente, ela vai ser, o projeto de lei entra no Congresso com uma mensagem do presidente Collor, e quando ele entra, ele entra com um viés extremamente de proteção integral, de que temos que proteger, era aquela visão americana dizendo: “vamos proteger o meio ambiente, vamos transformar isso aqui em Parque Nacional, retira todo mundo”. Então ela entra com esse viés, com essa característica, e ela vai, eu não me lembro quantos anos, mais foram mais de 05 anos com certeza, de discussão no Congresso e ela sai completamente diferente. Quando ela sai, ela sai já abrigando, mostrando que a presença humana nessas florestas foi um fator extremamente rico para a biodiversidade, um fator extremamente rico até para a proteção dessas florestas, então o que, aí começa a diferenciar a categoria dos homens da cidade, daqueles que qualquer interferência no meio ambiente é destruidora, dos povos da floresta, daqueles que qualquer interferência no meio ambiente é protetora. Então essa evolução vai se dar com o tempo mesmo. Eu acho que os primeiros contatos do Direito Ambiental com as populações tradicionais foi de choque, e hoje eu acho que a evolução permitiu ver que não há possibilidade mesmo de se desassociar, que ao invés de choque eles tem que estar juntos, vivendo juntos ... Ainda bem, porque isso nos facilita muito a vida quando a gente tá trabalhando com os juízes daqui (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Por fim, no que se refere à receptividade dessas questões no âmbito do Poder

Judiciário, os entrevistados, embora apontem alguns avanços verificados nos últimos tempos,

destacam que ainda muito precisa ser feito para que efetivamente ocorra uma mudança de

postura deste poder para o atendimento das demandas específicas desses grupos. Conforme

destacam, ainda é muito incipiente as iniciativas e aquém do esperado, caso se leve em

Page 144: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

143

consideração a dimensão e a quantidade de pessoas envolvidas e implicadas nessas

discussões.

Com relação à atuação dos operadores do direito no que trata da discussão sobre os

conflitos fundiários, por exemplo, a Subprocuradora Deborah Duprat destaca que:

As visões homologadas pelo direito importam no descarte das visões concorrentes. A noção de território, cara a quilombolas e índios, entre outros, não tem similar no direito civil. Todavia, o judiciário segue julgando conflitos fundiários a partir da noção civilista da posse. A vitória, nesse caso, está de antemão definida, porque a visão de um dos lados já foi previamente adotada como a única legítima88.

Nesse sentido, há uma crítica ao discurso jurídico dominante, que subjuga as formas

de entendimento e compreensão da realidade por parte desses grupos considerados

tradicionais e se apóia em disciplinas orientadas por critérios estranhos a esses grupos. Dessa

forma, ilustrativa a fala de Girolamo Treccani, ao se referir a uma ação judicial de duas

décadas atrás, envolvendo a comunidade de ribeirinhos da ilha do Marajó.

Se tratava de ver se alguns ribeirinhos poderiam ser considerados como ocupantes de uma determinada região, e o juiz chegou a se manifestar no seguinte sentido na decisão dele: como a atividade principal deles é açaí e eles só ocupam, portanto, aquela determinada região, durante alguns meses do ano, não se pode reconhecer a estas famílias qualquer tipo de posse, porque posse, no sentido civilista que estava na cabeça dele, era uma presença física ao longo dos doze meses do ano. Hora, é evidente que ninguém vai para o açaizal quando não tem o açaí. É verdade de que tem uma atividade de limpeza, a atividade de manutenção, uma atividade de manejo que não se faz única e exclusivamente durante o período da safra. Mas é claro que no período da safra a atividade, inclusive econômica, é muito mais intensa do que fora desse período e no estado do Pará, pelo menos, o período da safra do açaí é bem específico, não dura doze meses. (...) Existem algumas decisões, no meu entender, absolutamente equivocadas do nosso tribunal (...) onde o Tribunal não reconhece que numa ação possessória se discuta função social da propriedade, pois numa ação possessória não se discute propriedade portanto não tem porque discutir função social. Para mim isso é uma aberração jurídica. Isto é, não existe posse que não seja condicionada pelo cumprimento da função social, não é só propriedade que tem que fazer isso. Esta distinção entre posse e propriedade para mim, feita dessa maneira, é totalmente fora de cogitação (...) Isso leva praticamente a reconhecer como a dimensão da população tradicional não passa pela cabeça de juízes, a maioria deles que se formaram décadas atrás (Entrevista realizada no dia 16/05/2011).

88 SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007.

Page 145: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

144

Também compartilha desse posicionamento José Heder Benatti, destacando ainda que,

embora existam muitos conflitos de natureza fundiária, discutindo posse e propriedade,

poucos são os que efetivamente conseguem chegar às instâncias de decisão jurídica e, quando

chegam nessas instâncias, nelas prepondera uma concepção dominante, que é prejudicial aos

grupos considerados tradicionais. Segundo afirma:

O Judiciário tem dificuldade de entender essa diversidade, para chegar nesse conceito, nesse debate, o que é propriedade comum, como é que se dá. Você acaba se especializando, você acaba tendo contato com toda uma literatura... E o juiz tem que se virar, com dezenas, milhares de casos. Desses milhares, um ou dois casos é sobre populações tradicionais. É obvio que ele não vai ter informação, não vai ter dimensão dessa situação, então cabe aos interessados de municiar, informar ao máximo sobre o que se tá discutindo, para que ele possa, ao decidir, ter o mínimo de informação possível para fazer a decisão. Apesar de que hoje você tem segmentos, alguns juízes mais preocupados com a questão social, que pensa duas vezes antes de dar liminar. Mas, você tá tratando com pessoas, que podem ser simpatizantes do latifúndio, por origem histórica familiar ou por simpatia mesmo, como podem ser pessoas mais preocupadas com a questão social (Entrevista realizada no dia 23/05/2011).

Dessa forma, conforme se extraí dos depoimentos obtidos, os profissionais que atuam

nessas causas precisam se municiar de estratégias para atuar nessas disputas, que são disputas

internas ao direito, nas quais se coloca em questão até mesmo o que dizer e como dizer, com

relação a essa discussão, nesse espaço. Assim, conforme destaca o Procurador Alexandre

Silva Soares:

Em primeiro lugar, nem tudo o que é discutido nesse sentido é levado para o Judiciário. Então, isso é um fato. Nem tudo que a gente discute quanto a isso é levado efetivamente à judicialização. Às vezes por uma questão estratégica inclusive, porque afinal de contas não é interessante você levar a uma instância com essa capacidade decisória de dizer o direito em última palavra alguns temas tão polêmicos. Então isso é um fato: nem tudo que é discutido quanto a essas categorias, quanto a esses grupos tradicionais é levado ao Judiciário e não é levado de forma estratégica. Em alguns casos você, dentro do Judiciário, você encontra posicionamentos absolutamente divergentes, e divergentes não apenas com relação a povos e populações tradicionais, mas também com relação à própria visão de meio ambiente. Então você vai encontrar uma discrepância muito grande entre instâncias diferentes e, sobretudo, um grande diferencial é o interesse econômico que está em jogo, interesses econômico, político e tudo mais... (Entrevista realizada em 24/11/2011).

È preciso ter em conta, conforme revelam os profissionais do direito entrevistados, que

o Poder Judiciário é extremamente conservador, e apenas recentemente tem se observado

algumas mudanças, tal como afirma Benatti ao destacar que “apesar de que ainda tem muito

preconceito (...) mas acho que você já tem bons avanços e a discussão esta conseguindo

Page 146: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

145

ampliar um pouco mais do que era” (Entrevista realizada no dia 23/05/2011). No mesmo

sentido, avalia o Procurador da República do estado do Pará, Felício Pontes Júnior, ao afirmar

que:

O Judiciário ainda é o mais conservador de todos os Poderes e isso se reflete nessas decisões. (...) Então eu vejo hoje, o Judiciário, as pessoas que chegam agora à Justiça, com uma cabeça social muito mais consciente, com uma consciência social muito maior do que aqueles do passado, e isso se reflete nas decisões. Então você tem, assim, os tribunais, hoje eu vejo a primeira instância muito mais fácil de entender aquilo que tá sendo proposto nessas ações sociais, nessas ações que envolvem essas categorias sociais e o Tribunal muito distante disso. Vejo um conflito de gerações mesmo, sabe, um conflito de gerações. Os novos juízes foram juízes que tiveram, por exemplo, direito ambiental ou direito indígena como matérias obrigatórias. (...) E as pessoas que estão hoje nos Tribunais, os magistrados, os Tribunais Superiores, principalmente, o nosso Tribunal, o Regional Federal, embora, alguns sejam extremamente, salvo raríssimas exceções, que são estudiosos e foram buscar essas matérias novas, que tem absoluta compreensão do tema, eles são minoria, eles estão a minoria lá dentro. Então hoje o Judiciário, na segunda instância, na terceira instância é extremamente conservador e o Judiciário na primeira instância é progressista, ou pelo menos com uma consciência social maior (Entrevista realizada em 27/05/2011).

Nesse aspecto podemos afirmar que os entrevistados convergem, ou seja, as críticas

direcionadas ao Poder Judiciário pela forma como este lida com os direitos dos “povos e

comunidades tradicionais” e com as questões relacionadas à identidade e à territorialidade são

uníssonas.

Para os entrevistados, portanto, a existência de um discurso jurídico dominante e de

modelos jurídicos pré-existentes, baseados no direito civilista de propriedade privada,

funciona como um entrave no processo de consolidação de direitos étnicos e de

reconhecimento de situações territoriais especificas.

Dessa forma, percebe-se um movimento por parte desses juristas de conceber o direito

a partir de outras bases, o que passa, necessariamente, pela reformulação dos cursos jurídicos,

conforme revelaram. Assim, são favoráveis a inclusão, no ensino jurídico, de disciplinas que

abordem as discussões sobre os “povos e comunidades tradicionais”.

Outro ponto no qual as falas convergem, refere-se à relação – necessária e bem quista

– entre esses grupos e o discurso ambientalista, muito embora, não haja uma essência

ambientalista entre os grupos tidos como “povos e comunidades tradicionais”, tal como se

verifica nas preocupações ambientalistas em sentido estrito.

De outro modo, diversos são os pontos em que os entrevistados divergem, o que

demonstra a diversidade de interpretações feitas por estes profissionais, que, apropriando-se

das discussões realizadas em outras áreas disciplinares (sobretudo nas ciências sociais) e em

Page 147: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

146

contextos diferenciados (como as discussões internacionalmente realizadas sobre a temática

socioambiental) utilizam as diferentes acepções da expressão para fundamentar as suas

tomadas de posição jurídica com relação a esses grupos.

Assim, no que concerne à própria expressão “povos e comunidades tradicionais”,

podemos perceber algumas diferenças, inclusive na própria nomenclatura utilizada, vez que a

exceção da Subprocuradora-geral Deborah Duprat, os entrevistados referiam-se aos grupos

passíveis dessa classificação, na maioria das vezes, como “populações tradicionais”.

Tal fato, no entanto, não pode ser analisado como revelador de um desconhecimento

do processo de ressemantização e transformação pela qual passou essa categoria (processo

este analisado no segundo capítulo deste trabalho) mas sim reflexo das discussões e das

primeiras legislações que tratavam sobre esses grupos e nos quais a denominação

predominante é “populações tradicionais”.

Verificou-se divergência também no que se refere à generalização desses grupos por

meio da adoção da categoria “povos e comunidades tradicionais”. Se para a Subprocuradora-

geral Deborah Duprat é possível incluir indígenas e quilombolas nessa denominação sem

maiores problemas, significando tal inclusão um avanço na garantia dos direitos desses

grupos – posicionamento também compartilhado pelo Procurador da República Alexandre

Silva Soares – para outros entrevistados as especificidades de cada grupo precisam ser bem

definidas. Para estes, tal generalização pode ser vista como limitadora do ponto de vista

prático, tornando de difícil concretização a garantia dos direitos desses grupos, sobretudo ante

as críticas de setores considerados mais conservadores da sociedade.

Esses são apenas alguns aspectos que podem ser levantados a partir da análise das

falas dos profissionais investigados que, conforme dito no início deste item, manifestam

posicionamentos diferentes. Contudo, cumpre destacar que todos eles fazem parte de um

espaço judicial que se pretende produzir uma releitura dos esquemas jurídicos dominantes,

que desconsideram as discussões voltadas para os modos de viver dos “povos e comunidades

tradicionais”.

Page 148: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

147

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se neste trabalho analisar a construção sociológica e jurídica da expressão

"povos e comunidades tradicionais" a partir da sistematização dos posicionamentos adotados

por diferentes profissionais em prol do reconhecimento e legitimidade da expressão.

Neste intuito, procedeu-se à identificação de alguns desses profissionais e as

instituições às quais pertencem – inclusive internacionais – evidenciando as correlações

existentes entre a produção de um saber institucional e as intervenções científicas e políticas

realizadas nos países importadores de modelos institucionais.

A análise, centrada em alguns documentos textuais produzidos e reproduzidos pelas

instituições internacionais, possibilitou perceber de que forma se dão as estratégias de

circulação de conhecimento técnico e de profissionais mobilizados por estas instituições.

Assim sendo, o trabalho investigou o processo internacional de invenção e

institucionalização da causa socioambiental – no bojo do qual se encontram os processos de

construção da categoria “povos e comunidades tradicionais” – com destaque para a análise de

uma rede de ativismo ambiental e para o processo de importação de modelos institucionais

para países periféricos.

Tal importação se dá via difusão do discurso desenvolvimentista, motivo pelo qual,

analisou-se o processo de construção deste discurso e da ideologia por ele empreendida.

Discutiu-se também o papel central assumidos pelas ONGs nessa difusão, bem como o

processo de construção de realidades sociais por elas produzido.

Buscou-se analisar também as construções jurídicas e sociológicas realizadas em torno

dos segmentos classificados como “povos e comunidades tradicionais” e do processo de

constituição de movimentos sociais que se articulam em torno da defesa das “terras

tradicionalmente ocupadas”.

Nesse sentido, ressaltou-se a influência das discussões internacionais na elaboração de

instrumentos jurídicos nacionais, a exemplo da Convenção 169 da OIT e sua influência no

processo de elaboração e edição da Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de

Unidades de Conservação e, sobretudo, no Decreto 6.040/2007, que estabelece a Política

Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais.

De igual forma, procurou-se demonstrar a formação de redes de ativismo engendradas

pelas instituições internacionais, com destaque para o processo de judicialização de conflitos

sociais e políticos, levados a cabo por agentes situados no espaço jurídico. Tais redes, formais

Page 149: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

148

e informais, possibilitam a importação e exportação de causas políticas e a transformação das

mesmas em causas jurídicas.

Nesse passar, afirmamos que as discussões em torno da “ambientalização” dos

fenômenos sociais – sobretudo realizadas no final da década de 1980, no contexto de

redemocratização do país – influenciaram modificações no âmbito do Poder Judiciário e

possibilitaram as condições para a consolidação de uma comunidade de intérpretes jurídicos

voltados para a discussão sobre os “povos e comunidades tradicionais”.

Dessa forma, pode-se falar em processos de tradução e mediação realizada pelos

agentes investigados e o empenho com que tentam “descomplexificar” o direito, para que o

mesmo possa ser apropriado pelos destinatários das normas jurídicas.

Assim, conforme mencionado, a análise neste trabalho foi orientada, sobretudo, para

compreender os discursos e interpretações de juristas, de modo que a análise dos discursos

dos profissionais que ocupam posições no espaço jurídico e que possuem uma atuação

profissional direcionada para a defesa desses grupos – tais como professores universitários,

advogados e membros do Ministério Público Federal, situados, majoritariamente, nos estados

do Maranhão e do Pará – foi fundamental para as conclusões deste trabalho.

Dentre essas conclusões, pode-se afirmar que as teorias do pluralismo jurídico,

segundo a qual o direito produzido pelo Estado não é o único, influenciaram os

posicionamentos dos juristas aqui analisados no que se refere às discussões sobre os “povos e

comunidades tradicionais”, orientando, por sua vez, o processo de consolidação de um corpo

de profissionais especializados nessas discussões.

Verifica-se, portanto, uma produção acadêmica e uma atuação profissional voltada

para a crítica intensa da postura dogmática que vigora no Poder Judiciário no que se refere a

esses grupos. Tal crítica é realizada com base em aportes científicos de outras áreas de

conhecimento, que são vistas não apenas como auxiliares nas suas tomadas de posição, mas

sim como constituintes das suas concepções teóricas sobre os grupos considerados

tradicionais.

Nesse sentido, defendem que o direito mantenha diálogo com outras disciplinas, em

especial as ciências sociais, tendo em vista que, conforme se verifica na análise dos

depoimentos dos entrevistados, há uma apropriação das discussões realizadas nesta disciplina

bem como uma relação de proximidades com antropólogos e outros cientistas sociais na

realização de seus trabalhos, pareceres, peças técnicas etc.

Observa-se ainda por parte desses profissionais um empenho em alterar as relações de

dominação historicamente estabelecidas, sendo tal postura relacionada com os compromissos

Page 150: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

149

ideológicos, de caráter eminentemente político, assumidos por esses operadores jurídicos com

as causas socioambientais.

Verifica-se por parte desses profissionais um intenso questionamento sobre o

monopólio de dizer o direito e uma tentativa de ruptura com esquemas jurídicos estabelecidos.

Tais processos se tornam evidenciados a partir da análise dos posicionamentos – nem sempre

convergentes – que os entrevistados relevam no que concerne aos direitos dos povos e

comunidades tradicionais.

Por fim, percebe-se uma indiferenciação entre o engajamento militante e o exercício

profissional na trajetória desses agentes estudados, que concebem tais espaços como

simultâneos e não dissociados.

Percebe-se a necessidade de realização de uma análise mais detida sobre o

relacionamento existente entre as condições sociais, profissionais e políticas dos profissionais

investigados, e de que forma essas condições possibilitam a vinculação entre o tratamento

jurídico da causa socioambiental e a defesa militante da mesma, tidas como esferas

simultâneas. Tal análise poderá ser realizada em outros trabalhos.

Page 151: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

150

REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS

ACSERALD, Henri. A ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça

ambiental. Revista Estudos Avançados, 24 (68), 2010. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”. In: Antropologia dos archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8 / Fundação Universidade do Amazonas, 2008a. ______________________________. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais

livres”, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2ª Ed., Manaus: PGSCA – UFAM, 2008b. ______________________________. Apresentação. In: In: SHIRAISHI NETO, Joaquim. (org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil: declarações, convenções

internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus: UEA, 2007. ______________________________. Universalização e localismo: movimentos sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazônia. In: D’INCAO, Maria Ângela. SILVEIRA, Isolda Maciel. A Amazônia e a crise da modernização. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA/UFPA) / Museu Paraense Emílio Goeldi: Belém, 2009. ANTONAZ, Diana. Invenção e reprodução das reservas extrativistas na Amazônia: relações entre movimentos sociais, igrejas, ONG e governos. In: GRIMBERG, Mabel et all. Estado y

mobilización social: estúdios etnográficos en Argentina y Brasil. FFyL Antropología, Buenos Aires, 2009. ARAÚJO, Frederico Guilherme Bandeira de. Identidades territoriais: entre a multiterritorialidade e a reclusão territorial (ou: do hibridismo cultural à essencialização das identidades). In: HAESBAERT, Rogério. Identidades e territórios: questões e olhares contemporâneos. Rio de Janeiro: Access, 2007. BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BADIE, Bertarnd; HERMET, Guy. Las dinámicas huérfanas. In: Política comparada. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1993. BADIE, Bertrand. As comunidades de responsabilidade. In: Um mundo sem soberania: os Estados entre o artifício e a responsabilidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. BAETA NEVES, Clarissa Eckert. PETRARCA, Fernanda Rios. Formação universitária,

carreiras militantes e atuação em causas sociais no Rio Grande do Sul. XXXIII Encontro Anual da ANPOCS, 26 a 30 de outubro de 2009, Caxambu, MG. Disponível em: www.anpocs.br Acesso em: 21 de agosto de 2011. BECKER, Howard Saul. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de

representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009.

Page 152: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

151

BENATTI, José Heder. A posse agrária alternativa e a reserva extrativista na Amazônia. In: D’INCAO, Maria Ângela. SILVEIRA, Isolda Maciel. A Amazônia e a crise da modernização.

Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA/UFPA) / Museu Paraense Emílio Goeldi: Belém, 2009. BOURDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ________________. Lições da aula. São Paulo: Editora Ática, 1982. ________________. O ponto de vista do autor: algumas propriedades gerais dos campos de produção cultural. As regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. BUCLET, Benjamin. ONGS na Amazônia oriental: responsabilidades e poder na implementação do mercado socioambiental. In: ARAÚJO, Roberto. LÉNA, Phillippe (orgs). Desenvolvimento sustentável e sociedades na Amazônia. Belém: MPEG, 2011. _________________. Os peritos não governamentais da biodiversidade amazônica e seus

financiadores internacionais: uma parceria desigual em torno de interesses comuns. In: Revista Pós Ciências Sociais / Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, v. 6, nº 12, 2009. São Luís; EDUFMA, 2009. CHAMY, Paula. Reservas extrativistas marinhas: um estudo sobre posse tradicional e sustentabilidade. In: I Encontro Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, 2002, São Paulo. Disponível em: <http://www.anppas.org.br>. Acesso em 12 fev. 2007. CMMAD – Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente E Desenvolvimento Nosso Futuro

Comum. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1991. COSTA, Rogério Haesbaert. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à

multiterritorialidade. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. CUNHA, Manuela Carneiro da. ALMEIDA, Mauro W. B. Populações tradicionais e conservação ambiental. IN: CAPOBIANCO, João Paulo Ribeiro [et al]. Biodiversidade na

Amazônia brasileira: avaliação e ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios. São Paulo: Estação Liberdade: Instituto Socioambiental, 2001. DIEGUES, Antonio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Editora Hucitec,1996. DELDUQUE, Maria Célia. PACHECO, Inês S. Reserva ecológica do Gama: conflitos ambientais. In: BESSA, L.F.M., PACHECO, I.S.,MENON, L. DELDUQUE, M.C.. (Org.). A

gestão de áreas protegidas no cerrado: O caso da reserva ecológica do Gama-DF. 1 ed. Brasília: Universa, 2004. DEZALAY, Yves; GARTH, Bryant. A dolarização do conhecimento técnico profissional e do

Estado: processos transnacionais e questão de legitimação na transformação do Estado, 1960-2000. RBCS, vol. 15, nº 43, junho 2000.

Page 153: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

152

DOLME, Daniella. Ousada, Deborah Duprat se destaca como a primeira mulher no

comando da PGR. Matéria veiculada no site: www.ultimainstancia.uol.com.br. Acesso em: 30 de janeiro de 2011. DUPRAT, Deborah. Prefácio. In: SHIRAISHI NETO, Joaquim. (org.). Direito dos povos e

das comunidades tradicionais no Brasil: declarações, convenções internacionais e

dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus: UEA, 2007a. ________________. Pareceres Jurídicos – Direito dos Povos Tradicionais. Manaus: UEA, 2007b. ELIAS, Norbert. Envolvimento e Alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ENGELMANN, Fabiano. Internacionalização e ativismo judicial: causas políticas e causas

jurídicas na década de 90 e 2000. Sociedade e Estado, vol.22, nº. 2, Brasília Mai/Ago, 2007. Disponível em: www.scielo.br. ___________________. Questões para o estudo de “elites de Estado”: o caso representativo dos juristas. In: CORADINI, Odaci Luiz. Estudos de grupos dirigentes do Rio Grande do Sul:

algumas contribuições recentes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. ___________________. Sociologia do campo jurídico: juristas e o uso do direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed., 2006. ESCOBAR, Arturo. La invención del tercer Mundo: construcción y desconstrucción del desarrollo. Barcelona: Grupo Editorial Norma, 1996. _______________. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In: LANDER, Edgar. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências

sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005.

ESTEVA, Gustavo. Desenvolvimento. In: Sachs, Wolfgang (editor). Dicionário do

desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000a. ________________. Desarrollo. In: VIOLA, Andreu (comp.) Antropología del desarrollo -

teoría y estudios etnográficos en América Latina. Barcelona: Paidós, 2000b. GUILHOT, Nicolas. Os profissionais da democracia em ação. In: LINS, Daniel; WACQUANT, Loïc. Repensar os Estados Unidos: por uma sociologia do superpoder. Campinas: Papirus, 2003. HOLLANDA, Eduardo. Deborah, uma defensora dos indígenas, é Procuradora-Geral por 10

dias. Disponível em: http://www.revistabrasileiros.com.br. Acesso em: 30 de janeiro de 2011. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003. IHU ON-LINE. Belo Monte de problemas. Entrevista especial com Felício Pontes Júnior. Disponível em: www.diarioliberdade.org. Acesso em: 20 de junho de 2011.

Page 154: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

153

JACOBI, Pedro Roberto. Socioambientalismo. In: Almanaque Brasil Socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental – ISA, 2008. LIMA, Deborah. Ética e política ambiental na Amazônia contemporânea. In: Boletim Rede

Amazônia – Diversidade sócio cultural e políticas ambientais. Rio de Janeiro: Ano 1. nº 01, 2002. LITLLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma Antropologia da

territorialidade. Série Antropologia, nº 322: UNB (digital), 2002. LOBÃO, Ronaldo Joaquim da Silva. Cosmologias políticas do neocolonialismo: como uma

política pública pode se transformar em uma política de ressentimento. Brasília: UNB/PPGAS, 2006. LOPES, José Sérgio Leite (Coord.). A ambientalização dos conflitos sociais: participação e controle público da poluição industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2008. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Elites dirigentes, engajamento político e retribuições do

militantismo ambientalista. In: TOMO, Revista do Núcleo de Pós Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais / Universidade Federal de Sergipe. Nº 1 (1998). São Cristovão – SE, NPPCS/UFS, n. 13 jul./dez., 2008. SADEK, Maria Tereza. Ministério Público: a construção de uma nova instituição. In: OLIVEN, Ruben George; RIDENTI, Marcelo; BRANDÃO, Gildo Marçal (org.). A

Constituição de 1988 na vida brasileira. São Paulo: Aderaldo e Rothschield: ANPOCS, 2008. SANT'ANA JÚNIOR, Horácio Antunes de. Florestania: a saga acreana dos povos da floresta. Rio Branco: EDUFAC, 2004. _________________________________. MUNIZ, Lenir Moraes. Desenvolvimento sustentável: uma discussão crítica sobre a proposta de busca da sustentabilidade global. In: SANT’ANA JÚNIOR, Horácio Antunes de; PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. ALVES, Elio de Jesus Pantoja. PEREIRA, Carla Regina Assunção. Ecos dos conflitos

socioambientais: a Resex de Tauá-Mirim. São Luís: EDUFMA, 2009. SANT’ANNA, Renata de. Populações Humanas em Unidades de Conservação. In: Boletim

Rede Amazônia – Dinâmicas de ocupação e de exploração – efeitos socioculturais. Rio de Janeiro: Ano 2, nº 01, 2003. SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2007.

Page 155: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

154

SANTOS, Gilda Diniz dos; AFONSECA, Gilson Rodrigues de. Entrevista com a

Subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat. Disponível em: Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 20, no 21, 2007. SHIRAISHI NETO, Joaquim. (org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais no

Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma

política nacional. Manaus: UEA, 2007. SHIVA, Vandana. Abrazar la vida: mujer, ecología y superveniencia. Espanha: JC Produccion, 1988. TARROW, Sidney. Confronto transnacional. In: O poder em movimento: movimentos sociais

e confrontos políticos. Rio de Janeiro: Petrópolis, 2009. VECCHIOLI, Virginia. “A luta pelo direito”. Engajamento militante e profissionalização dos

advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2006. VIANNA, Luiz Werneck (et al). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Renavan, 1999. VIOLA, Andreu. La crisis del desarrollismo y el surgimiento de la antropología del desarrollo. In: VIOLA, Andreu (comp.) Antropología del desarrollo – teorías y estudios

etnográficos en América Latina. Barcelona: Paidós, 2000. WOLF, Eric. Antropologia e Poder. FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins. (Orgs). Brasília: Ed. UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Ed. Unicamp, 2003.

Page 156: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

155

APÊNDICES

Informações relativas às carreiras dos profissionais analisados

Alexandre Silva Soares

O Procurador da República no estado do Maranhão graduou-se em direito pela Universidade Federal do Maranhão, tendo obtido o título de bacharel no ano de 2002. Durante a graduação, integrou o movimento estudantil e o Núcleo de Assessoria Jurídico Popular NAJUP, da UFMA. Iniciou uma pós-graduação em Ciências Criminais, no UNICEUMA. Antes da entrada no Ministério Público Federal, desenvolveu atividades de docência, ministrando a disciplina Direito Ambiental em universidades particulares e teve uma rápida experiência, de 08 meses, como assessor jurídico da Diocese do município de Brejo, estado do Maranhão. Antes de ser aprovado no concurso para Procurador do Ministério Público Federal, se submeteu e foi aprovado nos concursos para Defensor Público, Procurador do Estado, Advogado da União e Procurador da Fazenda.

Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira

A Subprocuradora-geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, possui graduação em Direito e mestrado em Direito e Estado, pela Universidade de Brasília. Antes de ingressar no Ministério Público, Deborah Duprat exerceu as funções de auxiliar judiciário, técnica judiciária e assessora de ministro do extinto Tribunal Federal de Recursos. Já no Ministério Público Federal, conforme informações junto ao site do oficial da Procuradoria Geral da República, Deborah Duprat exerceu as seguintes funções: 16/10/87: nomeada para o cargo de Procurador da República de 2ª categoria; 10/11/89: representante do MPF na apuração das sessões eleitorais da 1ª Zona Eleitoral; 31/05/89: designação para compor comissão permanente de atuação na defesa dos interesses indígenas; 07/12/89 - promovida ao cargo de Procurador da República de 1ª categoria; 21/05/93 - promovida, por transformação, ao cargo de Procurador Regional da República; 25/07/93 - designação para o exercício da Coordenadoria de Defesa do Meio Ambiente e dos Direitos do Consumidor, em substituição; 1993/1994 - Coordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos - CODID, em substituição; 1994/1996 - Membro da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão (consumidor e minorias); 1997/2004 - Membro da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (populações indígenas e minorias étnicas); 03/12/2003 - promovida, por merecimento, ao cargo de Subprocurador-Geral da República; 06/05/2004 - Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e

Page 157: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

156

Revisão (populações indígenas e minorias étnicas); 29/06/2009 – Exercício interino do cargo de Procuradora-geral da República.

Felício Pontes Júnior

O Procurador da República Felício Pontes Júnior graduou-se em direito pela Universidade Federal do Pará, no ano de 1988, e possui mestrado em Teoria do Estado e Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1989-1993). Durante a realização do mestrado, Felício Pontes Júnior advogou junto ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião, na cidade do Rio de Janeiro. Após a conclusão do mestrado, Felício Pontes Júnior atuou no UNICEF (1994-1995), em Brasília e, após essa experiência, atuou como docente na UNAMA, faculdade particular do município de Belém – Pará (1995-1996), enquanto se preparava para o concurso do Ministério Público. Sua entrada como membro do Ministério Público Federal ocorreu no ano de 1997.

Girolamo Domenico Treccani

O prof. Dr. Girolamo Domenico Treccani possui graduação em Teologia pelo Instituto Teológico Saveriano - Pontificia Universitá , Roma - Itália (1981) e graduação em Direito pela Universidade Federal do Pará (1991). Especialista em Planejamento do Desenvolvimento Regional pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos - NAEA/UFPA (1996) e mestre em Direito (1999), também pela Universidade Federal do Pará. Atualmente, professor da Faculdade de Graduação e do Programa de Pós Graduação do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA e Vice-Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPA. Possui vínculo de professor junto a Escola de Governo (2009); a Faculdade Brasil Amazônia (2007); a Escola Superior de Magistratura do Pará (em 1991 e 2006), ministrando o curso de aperfeiçoamento em Direito Agrário e Ambiental para juízes, além de assessoria jurídica. Atuou, entre 2007 a 2010, como Assessor Chefe do Instituto de Terras do Pará (ITERPA); Consultor Jurídico da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI-PARÁ), da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescente de Quilombo do Estado do Pará e da Comissão Pro-Índio de São Paulo . Como assessor jurídico, atuou junto a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR (2003-2006), desenvolvendo, no âmbito da Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais (SUBCOM), os projetos de pesquisa: Melhoria dos Procedimentos de Reconhecimento e Regularização de Terras de Comunidades Quilombolas; Banco de Dados Comunidades Quilombolas; Sistematização da Legislação Federal e Estadual Referente às Comunidades Remanescentes de Quilombos;

Page 158: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

157

Apoio à Promoção da Igualdade Racial e Reconhecimento do Domínio de Terras Quilombolas, bem como ao Ministério da Cultura (2002), desenvolvendo o projeto “Análise dos Processos de Titulação das Comunidades Quilombolas”. Ainda como assessor jurídico, atuou junto a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB Norte II), no período de 1988 a 1999. Atuou ainda no Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal – MMA (2001-2002), junto ao projeto de pesquisa “Estudo de áreas comunitárias na várzea amazônica”, com o sub-estudo “Identificação e análise dos diferentes tipos de apropriação da terra e suas implicações sobre o uso dos recursos naturais renováveis na várzea amazônica no imóvel rural, na área Gurupá”. Atuou como Secretário Executivo Regional da Comissão Pastoral da Terra dos estados do Pará e Amapá (1986 - 1988) e também como Membro do Conselho Diretor Nacional da CPT, no período de 1987 a 1991. No Governo do Estado do Pará, atuou junto a Secretaria da Justiça, como vice-diretor da Colônia Agrícola “Heleno Fragoso” (1986) e, no período de 2001 a 2011, junto aos projetos “Levantamento dos registros de imóveis bloqueados e a serem cancelados” (2007 - 2011), “Apoio à promoção da igualdade racial”; “Melhoria dos procedimentos de reconhecimento e regularização de terras de comunidades quilombolas”; “Reconhecimento de domínio das terras quilombolas”; “Banco de dados de comunidades quilombolas”; “Sistematização da legislação federal e estaduais referentes às comunidades remanescentes de quilombos”; “Análise dos processos de titulação das comunidades quilombolas”; “Estudo de áreas comunitárias na várzea amazônica, com o sub-estudo “Identificação e Análise dos Diferentes Tipos de Apropriação da Terra e suas Implicações sobre o Uso dos Recursos Naturais Renováveis da Várzea Amazônica no Imóvel Rural, na Área de Gurupá”. Destaca-se ainda a atuação como representante da CONTAG na Comissão Coordenadora Política Nacional de Florestas - CONAFLOR (2004-2006); o Conselho Estadual de Política Agrícola, Agrária e Fundiária do Estado do Pará - CEPAF (1996-1998 Decreto nº 1.339, de 27 de maio de 1997 e de 2007 até dezembro de 2010) e o Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável.

Joaquim Shiraishi Neto

O prof. Dr. Joaquim Shiraishi Neto graduou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1988), possuindo mestrado em Planejamento do Desenvolvimento pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará (1997) e doutorado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2004). Possui atuação como docente na Universidade Federal do Maranhão (1999-2001), Universidade Estadual do Maranhão (2003-2008),

Page 159: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

158

Universidade Federal do Pará (2008-2011), Universidade do Estado do Amazonas (2007-atual) e Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (2008-atual). Possuiu vínculos com a Fundación Interuniversitaria Fernando González Bernáldez, da Espanha, orientando o trabalho de conclusão de mestrado de Javier Sosa Ruiz intitulado “Empoderamento dos Povos Tradicionais em torno da Criação de uma Reserva Extrativista: o caso da Enseada da Mata, Maranhão – Brasil”; como professor colaborador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, como professor colaborador do Programa de Mestrado Profissional em Gestão de Áreas Protegidas da Amazônia, ministrando a disciplina “Legislação ambiental e direitos étnicos” e “Economia extrativa” no curso de especialização “Políticas Governamentais, Desenvolvimento Sustentável e Comunidades Tradicionais na Amazônia” (2006-atual), tendo ainda passagem como colaborador e assessor jurídico em diversos movimentos associativos na década de 1990 (Comissão Pastoral da Terra de Araguaia Tocantins, Comissão de Direitos Humanos Pe. Josimo Moraes Tavares do Bico do Papagaio, Associação em Defesa da Moradia, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Sindicatos de entidades representativas de categorias profissionais...). Além de ministrar disciplinas nos cursos de direito das instituições de ensino superior mencionadas, Shiraishi Neto participou ainda dos projetos “Identificação de Áreas de Remanescentes de Quilombo”, em 1998, desenvolvido pelo Mestrado em Políticas Públicas e coordenado pela antropóloga Maristela de Paula Andrade e, no período de 1999 a 2001, na Universidade Federal do Maranhão e na Universidade Estadual do Maranhão integrou como pesquisador o projeto de pesquisa “As quebradeiras de Coco Babaçu e o Direito” e “Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA)”, coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida (2005-2009). Na Universidade Estadual da Amazônia participa dos projetos de pesquisa “A Cultura na Construção e Defesa dos Territórios Tradicionais: legislação e políticas públicas para a proteção dos conhecimentos tradicionais numa sociedade pluriétnica”; “A proteção jurídica da sociodiversidade na Amazônia brasileira e países integrantes do Tratado de Cooperação Amazônica”; “O pluralismo Jurídico como valor fundamental: o Estatuto das Sociedades Indígenas”. Na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, atualmente, Joaquim Shiraishi coordena o Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade e o projeto “Povos, Comunidades Tradicionais e a Cidade de São Luís: dilemas entre as demandas localizadas e a pretensão universal do direito”.

Page 160: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

159

José Heder Benatti

O prof. Dr. José Heder Benatti graduou-se em direito na Universidade Federal do Pará em 1986, possuindo Mestrado em Direito (1990-1995) e Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (1999-2005), todos na Universidade Federal do Pará. Atua como professor da UFPA, ministrando cursos ("Comparative Property Law", 2005) e as disciplinas Direitos humanos e meio ambiente, Direito Agrário, Direito Civil V - Direito das Coisas (2004-atual), além de atuar nos seguintes projetos de pesquisa: Direito de Propriedade na Amazônia: estudo das políticas públicas de regularização fundiária no Estado do Pará (2010-2012); Propriedade comum na Amazônia:: acesso e uso dos recursos naturais pelas populações tradicionais (2007-2010); Análise dos instrumentos jurídicos da proteção ambiental na Amazônia brasileira: estudo de caso Pará (2004-2006); Impacto das Políticas Públicas sobre Manejo Comunitário de Recursos Naturais (2000-2002); Regularização fundiária em apossamento agroextrativista na Amazônia (1995-1999), além de cargos e funções de direção e chefia no âmbito do Departamento/Coordenação de direito. Presidiu o Instituto de Terras do Pará, ITERPA (2007-2010); atuou como colaborador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, IPAM (2000-2006); assessor jurídico da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (1987-1995). Destaca-se ainda a atuação como Membro da Comissão de Direito Ambiental da IUCN, com sede em Born, Alemanha, desde 2001; Membro do Instituto o Direito por um PlanetaVerde, desde 2001; Professor visitante da University of Florida Levin College of Law, em 2005; Revisor do texto "The Rise of Brazil as an Agricultural Superpower and the Dilemma over the Amazon Rais Forest: a World Systemic, Treamill of Production View", para "The Jounal of Environment and Development - Graduete School of International relations and Pacific Studies” - University of California, San Diego, EUA, em 2006; Consultor externo do processo de avaliação de projetos de pesquisa da UFRN, no ano de 2010.

Page 161: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

160

Roteiro de Entrevista

1 – Origem Geográfica, Social e Familiar a) O (a) Sr.(a) nasceu em qual município e estado? b) O (a) Sr.(a) poderia descrever as suas origens familiares por parte paterna e materna

(atividades as quais se dedicavam seus antepassados, principais características dos ancestrais, origem étnica, município em que habitavam, participação política, etc.)?

c) Qual a principal profissão do seu pai? d) Qual a principal profissão da sua mãe? e) Qual é o grau de escolarização do seu pai? f) Qual é o grau de escolarização da sua mãe?

2 – Trajeto escolar

a) Em que tipo de escola o(a) Sr(a) cursou os seus estudos pré-universitários (pública ou privada)?

b) Em quais instituições de ensino universitário o (a) Sr(a) estudou? c) O (a) Sr(a) fez alguma pós graduação? d) O (a) Sr(a) fez pós graduação em qual área? Em quais instituições?

3 – Atuação Política (passada e presente)

a) O (a) Sr(a) é filiado (a) a algum partido político? b) O (a) Sr(a) teve algum envolvimento com entidades estudantis (na escola,

universidade etc.)? c) O (a) Sr(a) exerceu ou exerce algum tipo de atuação em movimentos sociais? Poderia

descrever como se deu ou se dá a sua participação nesses espaços? d) O (a) Sr(a) tem algum envolvimento com movimentos que atuam nas áreas de direitos

humanos e ambientais? 4 – Trajeto profissional

a) O (a) Sr(a) já exerceu outra profissão? Quais as profissões que o (a) Sr(a) já desempenhou?

b) Já ocupou cargos em associações e instituições que atuou? Quais? c) A que se deve a opção para exercer sua atual profissão? d) Na sua profissão é comum lidar com temas relacionados a direitos humanos e direitos

ambientais? De que forma? e) A que o (a) Sr(a) atribui o seu interesse por questões ligadas aos direitos humanos e

ambientais? 5 – Produção intelectual

a) O (a) Sr(a) tem alguma relação/vinculação com instituições de pesquisa? b) Essas instituições têm envolvimento com a temática relativa a direitos humanos e

ambientais? c) Quais as principais fontes de financiamento/agências de fomento das pesquisas

realizadas? d) Possui publicações? Em que áreas?

Page 162: Disserta o Ana Caroline Pires Miranda.docx) - gedmma.ufma.br · Carlos Benedito Rodrigues da Silva – que me acompanham desde a graduação – bem como ao Dr. Igor Gastal Grill,

161

6 – Povos e Comunidades Tradicionais a) Como o (a) Sr(a) entende a categoria “povos e comunidades tradicionais”? b) O (a) Sr (a) teve alguma participação na construção acadêmica / jurídica da categoria

“povos e comunidades tradicionais”? c) A que grupos o (a) Sr(a) acha que se aplica esta categoria? d) Com relação à expressão “povos e comunidades tradicionais”, como o (a) Sr(a) analisa

a abrangência de grupos a que a mesma se refere? e) Como o (a) Sr(a) analisa a adoção, no contexto nacional, desta categoria

internacionalmente formulada? f) Qual a relação que o (a) Sr(a) concebe entre os povos e comunidades tradicionais e o

discurso ambientalista? g) Qual a sua opinião sobre a postura do Judiciário nas ações que envolvem os direitos

desses grupos (comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas...)? h) Na sua opinião o ensino jurídico contempla a discussão sobre as questões relativas a

direitos desses grupos (comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas...)? i) Existe uma correspondência entre o que o hoje e debatido academicamente sobre

direitos dos povos e comunidades tradicionais e o que é aplicado na prática jurídica (sentenças, proposições de ações, pareceres)?